Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/292982851
CITATIONS READS
0 4,028
2 authors, including:
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Sandra Ramos and Jorge A. Ramos on 04 February 2016.
Cátia Barata (n.º 20700), Jorge A. Ramos (n.º 24121) e Sandra Ramos (n.º 24122 são
discentes do 4.º ano do Mestrado Integrado em Psicologia Clínica (Turma 3) no ISPA –
Instituto Universitário, em Lisboa, ano letivo de 2015-2016.
Este trabalho faz parte da Unidade Curricular com o nome Teoria e Clínica
Psicanalítica ministrada pela Professora Doutora Ângela Vila-Real.
Transferência
Conforme esclarecem Meyer e Bauer (2002) na sequência de cerca de duas décadas
de experiência clínica Freud publicou em 1912 o artigo – A Dinâmica da Transferência –,
onde radica este nosso trabalho que preconiza sintetizar e refletir sobre um conceito nuclear
da psicanálise: a transferência, que designa um “processo constitutivo do tratamento
psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos
externos passam a repetir-se, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado
na posição desses diversos objetos” (Roudinesco & Plon, 1998, pp. 766-767). Nas palavras
de Freud este conceito psicanalítico inclui a noção de que o paciente vê no analista “o
retorno, a reencarnação, de alguma importante figura saída da sua infância ou do passado, e,
consequentemente, transfere para ele sentimentos e reações que, indubitavelmente, se
aplicam a esse protótipo” (1939/1977, p. 112). No artigo que doravante iremos sintetizar, o
fundador da psicanálise explana os mecanismos deste processo inconsciente.
Porém somente uma parte das pulsões libidinais (que determinam o curso da vida
erótica) é que passa por um processo normal de desenvolvimento, ou seja, o modo como as
pulsões se expressam vai evoluindo ao longo das fases do desenvolvimento (oral, anal, fálica,
latência e genital). Logo, há outra parte (das pulsões) que não evolui, de onde resultam efeitos
contrastantes: as pulsões que evoluem normalmente são integradas na personalidade e ficam-
lhe disponíveis, ao passo que as que não evoluem, ficam desintegradas da personalidade,
recalcadas e, consequentemente, indisponíveis a esta dimensão humana de superfície; por
outro lado as pulsões que evoluem orientam o indivíduo para a realidade, ao passo que as que
não passam por um processo normal de desenvolvimento implicam um afastamento da
realidade, embora sejam expansíveis nas fantasias (idem, 1912/1980, pp. 111-112).
A dinâmica da transferência segundo Sigmund Freud (1912): síntese e reflexão crítica 4
Por conseguinte Freud (ibidem) explica que quando as necessidades de amor (bem
como de amar) não são totalmente satisfeitas pela realidade, as pessoas aproximam-se de
outras com expetativas libidinais (conscientes e inconscientes). E assim sendo é normal que o
investimento libidinal (ou catexia, i.e., a fixação da líbido numa representação mental de um
objeto, que fica associado e.g. à raiva ou ao amor) se transfira para o analista, incluindo-o
numa imago (e.g., paterna, materna ou fraterna) com caraterísticas que são inteligíveis para o
analista (se este estiver ciente desse fenómeno transferencial). Freud (ibidem) refere que
desta sequência salientam-se dois tópicos interessantes para os psicanalistas:
Porém, Freud (ibidem) refere que para libertar a líbido, a energia que a atrai para o
inconsciente (i.e., para fora da realidade) tem de ser eliminada, o que provoca uma maior
resistência. Assim o analista precisa de considerar que existem duas fontes de resistência, que
querem manter a introversão libidinal e que radicam em forças internas: (1) as que resistem
às tentativas do analista de libertar a líbido; (2) as que resistem à vontade de o paciente se
restabelecer. Por sua vez estas duas fontes de resistência estão na base da transferência:
quando na associação livre o paciente se aproxima de um complexo patogénico (e.g., um
complexo de édipo, um complexo de castração ou um complexo narcísico) e a associação
seguinte tem de o considerar (e expressar) há uma parte (desse complexo) que se transfere
A dinâmica da transferência segundo Sigmund Freud (1912): síntese e reflexão crítica 5
para o analista. Conforme Freud explica posteriormente (1914/1958, p. 150) “o paciente não
se recorda do que se esqueceu e recalcou, mas representa esse material”, ou seja, a ação –
transferência para o analista – substitui a relembrança. Portanto, o paciente reproduz o
material recalcado não como uma memória, mas como uma ação (sem saber que o faz) pois
ele não consegue fugir a essa compulsão. Assim, conforme esclarecem Meyer e Bauer (2002)
transferência e resistência são os dois lados de uma mesma moeda: a transferência é a parte
expressiva (pois dá voz e vida aos amores e ódios do paciente, da forma mais livre que está
disponível naquele momento); a resistência é a parte protetora (de aspetos desconfortáveis
dos sentimentos do paciente, que devem permanecer ocultos). Salienta então Freud
(1912/1980) que quanto mais o paciente reconhece que as distorções (ou fantasias) do seu
material patogénico (relacionado com as imagos infantis) não impedem a sua revelação, mais
usa a transferência como resistência; e por isso ela é nuclear no tratamento.
Por outro lado, quando o analista torna a transferência consciente ao paciente, desfaz
a associação que este criou (com o analista), porém o que está na base (da transferência)
subsiste: a introversão libidinal. E chegar lá, é o veículo para o sucesso da psicanálise. Mas
para alcançar essa meta é necessário penetrar no inconsciente do paciente, o que lhe provoca
uma reação idêntica à que ocorre nos sonhos: o paciente atribui realidade às pulsões
inconscientes. E quando o analista tenta apoiar o paciente a trazer ao consciente a líbido
recalcada surge a transferência, que se expressa numa luta entre o analista e o paciente, o
intelecto e a líbido e entre o conhecer e a busca de ação. Freud salienta assim que é nesta luta
que se deve procurar a vitória: a cura da neurose. E finaliza concluindo que a transferência é
um processo tecnicamente desafiante para o analista, mas é ela que torna “manifestos os
impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente” (1912/1980, p. 119).
Reflexões Críticas
As Redefinições da Transferência
Por Cátia Barata
O impacto deste trabalho de Freud na academia foi de tal ordem que o conceito de
transferência se tornou nuclear nas várias ramificações da psicanálise, onde foi repensado de
várias formas. Por exemplo Klein considerou que a transferência é uma reencenação de todas
as fantasias dos pacientes (e não apenas a expressão de defesas); Bion advogou que na análise
transferencial se deviam excluir as realidades materiais, em prol das psíquicas (que os
pacientes possuem do mundo e de si próprios); Winnicott incidiu sobre a transferência como
uma repetição do vínculo materno; Kohut focou-se na transferência narcísica onde o analista
é visto como um prolongamento do paciente; por sua vez Lacan ligou a transferência à pulsão
e definiu-a como uma encenação (no contexto analítico) da realidade do inconsciente
(Roudinesco & Plon, 1998).
A dinâmica da transferência segundo Sigmund Freud (1912): síntese e reflexão crítica 7
Mas as repercussões deste conceito, introduzido por Freud na prática clínica, não se
ficaram pelas suas redefinições. O psiquiatra austríaco Otto F. Kernberg criou (com início em
1976) uma nova psicoterapia psicanalítica que designou por Psicoterapia Focada na
Transferência (PFT) e que foi descrita em detalhe em 2008 (por Kernberg, Yeomans, Clarkin,
& Levy). Antes porém a PFT foi submetida a diversos testes de eficácia. Um deles foi o
efetuado por Clarkin, Levy e Schiavi (2005) que incidiu sobre o tratamento da perturbação de
personalidade borderline (N = 90) e onde concluíram que a PFT poderá ser um tratamento
eficaz para este tipo de perturbação. Num estudo mais recente, com base num projeto que já
tinha sido iniciado por várias instituições da rede catalã de saúde mental pública (que se
focaram, através da PFT, na melhoria da atenção dos pacientes com personalidade
borderline), Puig e Ignacio (2013) expuseram (do ponto de vista do observador) a supervisão
de um caso clínico onde foram mencionados os principais aspetos teóricos e técnicos da PFT.
Os resultados destacaram a grande utilidade das diferentes técnicas da PFT, mormente o
contrato terapêutico estabelecido entre o clínico e o paciente (que facilitou o trabalho com a
impulsividade do paciente). Os autores concluíram que a PFT teve diversas vantagens no
caso observado, de onde salientaram o seguinte facto: “dado que estes pacientes manifestam
os seus conflitos primitivos no seu comportamento dissociativo, e não nos conteúdos da
associação livre, as intervenções mais sistematizadas da PFT facilita o trabalho com eles”
(idem, p. 1).
não façam projeções inconscientes sobre os seus pacientes. Especificou depois que nesse
sentido é também importante trabalhar-se a relação com os pais, pois é com eles que se
possui as ligações humanas mais fortes e foi com eles que fomos atravessando as várias
etapas do nosso desenvolvimento. Perante o espanto de todos, um dos formandos interrompeu
e disse (num tom hostil): «Já estou farto de a ouvir!» o que deixou na sala uns longos dois
segundos de silêncio. Não havendo qualquer justificação lógica para aquela intervenção, a
formadora olhou para o formando, sorriu-lhe e disse-lhe “sinto muito, mas vou ter de
continuar”. E continuou a sua exposição exemplificando algumas formas de trabalhar o que
tinha sugerido. Porém ficou sem perceber em concreto o que tinha sucedido, ou seja, é
provável que aquilo que motivou aquela reação àquele indivíduo estaria ligado ao que estava
a ser dito pela formadora, mas qual o processo que levou àquela reação hostil? Com a leitura
deste artigo de Freud (1912/1980) salienta-se a possibilidade de ter ocorrido uma
transferência: as referências efetuadas a traumas e às figuras parentais poderão ter tocado em
representações recalcadas, que ergueram resistências, que se manifestaram sob a forma de
transferência de afetos negativos para com a formadora, os quais, hipoteticamente,
expressaram um aspeto hostil recalcado decorrente da relação do indivíduo com um objeto do
seu passado (e.g., o objeto materno).
É um facto que estas (e outras) dificuldades têm suscitado na academia (bem como
na sociedade em geral) o levantamento de uma pressão no sentido de que a psicanálise prove
a sua eficácia como um método terapêutico que possa ser financiado pelas companhias de
seguros (Leuzinger-Bohleber, Stuhr, Rüger & Beutel, 2003). Mas as dificuldades podem ser
vistas como oportunidades para evoluir e conforme sugere Goethe: “O homem deve persistir
na crença de que o incompreensível é compreensível; de outra forma não investigaria” (1992,
p. 128). Por outro lado, a dificuldade em se operacionalizarem os processos psicanalíticos,
não invalida o facto de que os resultados desses processos podem ser medidos, que foi o que
fizeram Leuzinger-Bohleber et al. (2003) com um estudo longitudinal (de 7 anos; N = 401)
onde aferiram que cerca de 75% dos indivíduos que finalizaram os tratamentos psicanalíticos
conseguiram manter as mudanças psicológicas efetuadas (o que teve um grande impacto no
seu bem-estar). Por seu turno, de Maat, et al. (2013) efetuou uma meta-análise (de 14 estudos,
com N total = 603) e aferiu, com a comparação de pré-testes e de pós-testes que a terapia
psicanalítica proporcionou mudanças significativas (e estáveis) em perturbações mentais
complexas de longa duração na maioria dos pacientes (i.e., em cerca de 70%). Nesta
sequência este trabalho levou-nos também a refletir sobre a possibilidade de o foco excessivo
– da psicologia contemporânea em geral – no método científico (para chegar a conclusões
causais e relacionais), aliado à pressão académica para publicar artigos (Fergusson, 2015),
poder estar a desconsiderar fenómenos e dinâmicas que sugerem uma extrema complexidade.
A dinâmica da transferência segundo Sigmund Freud (1912): síntese e reflexão crítica 11
Referências
Clarkin, J. F., Levy, K. N., & Schiavi, J. M. (2005). Transference focused psychotherapy:
Development of a psychodynamic treatment for severe personality disorders.
Clinical Neuroscience Research, 4(5), 379-386. DOI: 10.1016/j.cnr.2005.03.003
de Maat, S., de Jonghe, F., de Kraker, R., Leichsenring, F., Abbass, A., Luyten, P., Barber, J.
P., Van, R., & Dekker, J. (2013). The current state of the empirical evidence for
psychoanalysis: A meta-analytic approach. Harvard Review of Psychiatry, 21,
107-137. DOI: 10.1097/HRP.0b013e318294f5fd
Hair, J. F. Jr., Black, W. C., Babin, B. J., & Anderson, R. E. (2010). Multivariate Data
Analysis (7.ª ed.). Nova Jérsia: Prentice Hall.
Kernberg, O. F., Yeomans, F. E., Clarkin, J. F., & Levy, K. N. (2008). Transference Focused
Psychotherapy: Overview and Update. International Journal of Psychoanalysis,
89, 601-620.
Leuzinger-Bohleber, M., Stuhr, U., Rüger, B., & Beutel, M. (2003). How to study the quality
of psychoanalytic treatments and their long-term effects on patient’s well-being:
A representative, multi-perspective follow-up study. The International Journal of
Psychoanalysis, 84, 263-290. DOI: 10.1516/C387-0AFM-4P34-M4BT
Meyer, J. K., & Bauer, B. (2002). Transference. In E. Erwin (Ed.), The Freud Encyclopedia:
Theory, Therapt and Culture, (pp. 567-572). Londres: Routledge.
Ordem dos Psicólogos Portugueses (2011). Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos
Portugueses. Lisboa: Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Puig, L. M., & Ignacio, M. (2013). Clinical experience on the application of transference
focused psychotherapy in the supervision of a case after a year of observation.
European Psychiatry: Abstracts of the 21th European Congress of Psychiatry, 28,
1. DOI: 10.1016/S0924-9338(13)75960-1
Reuter, G. (1895). Aus Guter Familie: Leidensgeschichte eines Mädchens. Berlim: Fischer.
Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Sulloway, F. (1979). Freud: Biologist of The Mind. Nova Iorque: Basic Books.