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Análise Psicológica (2003), 2 (XXI): 175-183

Contratransferência: Uma revisão na


literatura do conceito

LEOPOLDO GONÇALVES LEITÃO (*)

1. INTRODUÇÃO rência como um fenómeno «total», uma reacção


emocional total do psicanalista para o paciente,
Coube a Freud o mérito de ter sido o primeiro durante a situação terapêutica. Ilustram-se como
a identificar e a descrever o fenómeno da contra- autores principais: Cohen, Fromm-Reichmann,
transferência. Dos seus comentários sobre este Heimann, Racker, Weigert, Winnicott e, em parte,
assunto, procederam correntes divergentes que Thompson. Enquanto Little, ao defini-la, se
caracterizaram o pensamento e a teorização sub- aproximou da abordagem clássica, o uso que esta
sequentes. autora deu à contratransferência, acercou-se mais
A sua sistematização, efectuada por Kernberg da ala «radical» da segunda abordagem supra re-
(1985), Jacobs (1999), e por nós corroborada, ferida. Menninger e Orr ocupam uma posição
comporta duas abordagens. intermédia.
A clássica, que tem como base a tese central Distintamente, Louise de Urtubey (1994, cit.
de Freud – que remete para a noção de que a in Duparc, 2001) propõe uma organização teó-
contratransferência actua como um impedimento rica que discrimina quatro grupos principais de
à compreensão (uma forma de resistência in- teorias.
consciente do analista, um obstáculo – a ser re- O primeiro corresponde às teorias clássicas –
movido) e bloqueia o progresso (e a credibilida- a contratransferência é vista com incredulidade e
de da psicanálise enquanto disciplina científica). considerada como um resíduo não analisado do
Como expoentes principais desta abordagem analista, que deve ser controlado através da neu-
evidenciam-se autores como: Reich, Glover, tralidade e do silêncio. Aqui englobam-se auto-
Fliess e, com algumas reservas, Gitelson. res como: Glover, Numberg, Ida Macalpine, An-
E a perspectiva oposta, que advoga o seu uso nie Reich, Robert Fliess, Greenson, Schafer e
técnico como instrumento de compreensão do in- Sandler.
consciente do paciente, indispensável no trata- O segundo, no qual a contratransferência é
mento analítico. Aqui encara-se a contratransfe- vista como a totalidade das emoções e sentimen-
tos que o paciente faz surgir no analista. Estas
permitem-lhe compreender o paciente. Os seus
protagonistas, para além de Ferenczi, são maiori-
tariamente autores britânicos, tais como: Strachey,
(*) Licenciado em Psicologia na Área de Clínica pe- Balints, Winnicott, Bion, Searles e, em particular,
lo Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa. Grinberg (um extremista desta posição).

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O terceiro grupo é o da teoria da contratrans- Em «Conselhos ao médico sobre o tratamento
ferência neurótica mas útil. Enfatiza a auto-aná- psicanalítico»4, para além de Freud (1912) ter
lise como um factor essencial no processo ana- instituído a análise didáctica, podem encontrar-
lítico. Louise de Urtubey deu exemplo de autores se ainda as origens da contratransferência como
como: Margaret Little, Harold Searles e Pontalis. um fenómeno «total». Reconheceu que a análise
O quarto grupo é o preferido da autora e, se- envolve comunicação. Desta forma, a transmis-
gundo esta, da maioria dos autores franceses e de são contínua e encoberta das mensagens incons-
muitos autores da América do Sul, da actuali- cientes (em ambos os sentidos), entre os dois
dade. A contratransferência é considerada uma participantes, constituiu para este autor, uma
componente do campo analítico. Não é um parte essencial do processo analítico. Ao enten-
problema, ou total, ou algo que deve ser subme- der que o analista: «(...) deve voltar o seu próprio
tido primeiro a auto-análise. Mas serve para inconsciente, como um órgão receptor, na di-
compreender a situação analítica. Transferência e recção do inconsciente transmissor do paciente
contratransferência são elementos que consti- (...)» e que «(...) deve ajustar-se ao paciente co-
tuem uma unidade, um processo de trabalho mo um receptor telefónico se ajusta ao micro-
que deve ser levado a cabo em conjunto. fone transmissor (...)» (Freud, 1912, pp. 115-
-116)5, abriu caminho e permitiu a Heimann su-
por que «(...) o inconsciente do analista compre-
2. FREUD: A GÉNESE DO CONCEITO ende o do paciente (...)» (1949, p. 82)6.

Apesar de não ter chegado a elaborar uma


teoria da contratransferência, Freud (1910) refe- 3. 40 ANOS NA «PENUMBRA»
riu, pela primeira vez, a palavra «contratransfe-
rência» que descreveu como a resposta emocio- Depois de Freud, e durante alguns anos, a
nal do analista aos estímulos que provêm do pa- contratransferência ocupou um lugar periférico
ciente. Em «As perspectivas futuras da terapia na psicanálise e a teoria da intuição assumiu um
psicanalítica»1, advertiu para as limitações da papel de destaque com Ferenczi em 1919, Stern
própria neurose do analista e para a necessidade em 1924, Deutsch em 1926, e outros (Etche-
imprescindível deste superar os seus «pontos ce- goyen, 1989; Zimerman, 1999). A eficácia do
gos» (Etchegoyen, 1989; Jacobs, 1999), apresen- analista dependia da harmonia entre as transfe-
tando uma solução que reforçou mais tarde em rências de ambos os intervenientes e a sua abor-
«Análise terminável e interminável»2 (1937): dagem devia ser comedidamente centrada na
«(...) nenhum psicanalista avança para além do compreensão cognitiva. Só assim se permitia que
quanto lhe permitem os seus próprios complexos os seus sentimentos e fantasias surgissem em
e resistências internas; e nós, consequentemente, sintonia com os do paciente, de modo a conse-
requeremos que ele inicie a sua actividade por guir captar as comunicações inconscientes deste.
uma auto-análise, aprofundando-a continuada- A importância dada à consciência intuitiva dos
mente, enquanto esteja a realizar as suas obser- pacientes para com as respostas emocionais do
vações nos seus pacientes» (Freud, 1910, p. analista, conduziu alguns autores (Ferenczi,
145)3.

4
«Recommendations to physicians practissing psy-
1
«The future prospects of psycho-analytic therapy». cho-analysis».
2
«Analysis terminable and interminable». 5
«(...) He must turn his own unconscious like a re-
3
«(...) No psycho-analyst goes further than his own ceptive organ towards the transmitting unconscious of
complexes and internal resistances permit; and we the patient. He must adjust himself to the patient as a
consequently require that he shall begin his activity telephone receiver is adjusted to the transmitting mi-
with a self-analysis and continually carry it deeper crophone (…)».
while he is making his observations on his patients 6
«(...) The analyst’s unconscious understands that
(…)». of his patient (…)».

176
Balint & Balint, 1939, cit. in Jacobs, 1999, entre mente perturbadoras. Foi, em parte, como resul-
outros) a defenderem a auto-revelação e, por tado desta experiência que alguns autores, ins-
isso, a distinguirem-se das posições críticas de pirados nos conceitos kleinianos, começaram a
Freud7, de Greenson, que chega a referir-se ao referir os fenómenos contratransferenciais.
analisando como o «(...) ‘psicanalista júnior’, Em 1947, Rosenfeld referiu apenas ter con-
uma caricatura de uma aliança de trabalho (...)» seguido entender uma paciente psicótica através
(1972, p. 216)8, ou de Matos (1978). dos seus próprios sentimentos (Zimerman, 1999)
Tal como Ferenczi, foram muitos mais os au- e, em 1949, Winnicott dá um primeiro passo ao
tores que contribuíram para antecipar alguns publicar «Ódio na contratransferência» onde in-
dos problemas, ainda actuais, acerca da contra- formava sobre a sua técnica. Não se refere à con-
transferência. Em 1926, Deutsch mencionou o tratransferência, se a considerarmos estritamente
modo como o analista devia receber e utilizar o como instrumento técnico, mas mais a certos
material do paciente. Defendia que as associa- sentimentos reais que podem aparecer no analis-
ções do paciente se deveriam tornar numa expe- ta, especialmente o ódio. Enfatizou o importante
riência interna para o analista. Para este autor, papel que a contratransferência negativa desem-
processar o material deste modo, dava azo a que penha no tratamento de pacientes muito pertur-
surgissem no analista fantasias, memórias, que bados (em particular psicóticos e psicopatas) e
demonstrou que a evocação de tais sentimentos é
seriam a base de toda a intuição, no entanto, in-
uma parte necessária e essencial do tratamento
suficiente para que o analista examinasse o ma-
(Etchegoyen, 1989; Jacobs, 1999).
terial do paciente, através do seu inconsciente.
Ele também devia processar os dados, de forma
intelectual, de modo a alcançar a compreensão
4. REDEFINIÇÃO DO PROCESSO ANALÍTICO:
necessária.
A CONTRIBUIÇÃO DE HEIMANN E OUTROS
Actualmente, esta posição polémica ainda
conquista adeptos (como Arlow) e opositores Pela mesma altura, a importante contribuição
(como Renik), (Jacobs, 1999). Fliess, por exem- de Paula Heimann (1949) afirmou-se como o
plo, em 1942, usou o conceito de identificação ponto da viragem. Heimann «(...) lançou as ba-
experimental9 que reflecte actualmente uma ideia ses da utilização analítica da contratransferência
importante para a nossa compreensão dos pro- (...)» (Matos, 1978, p. 32).
cessos internos do analista. Contrariamente a Racker, Heimann, ao utili-
Até à Segunda Guerra Mundial, embora mui- zar o conceito de identificação projectiva, no
tas e diferentes suposições possam justificar es- sentido de Klein (pelo menos até às suas últimas
te hiato, muitos factores vieram mudar este ce- publicações em 1978), enfatizou, como nenhum
nário10. A experiência durante a Segunda Guerra outro autor, o valor positivo da contratransferên-
Mundial, permitiu aos analistas contactarem com cia como ajuda diagnóstica essencial (Thomä e
uma grande variedade de problemas mentais fo- Kächele, 1989). Assim, postulou que «a contra-
ra do território estritamente neurótico, o que lhes transferência do analista é um instrumento de
proporcionou experimentar emoções extrema- investigação para os processos inconscientes do
paciente» (Heimann, 1949, p. 81)11 e evidenciou
a necessidade premente do analista consultar a
sua resposta emocional como a «chave» para
7
aceder ao inconsciente do paciente. Caso contrá-
«(...) Experience does not speak in favour of an
affective technique of this kind (...)» (1912, p. 118).
rio, as suas interpretações seriam pobres. Melhor
8
«(...) ‘Júnior psychoanalyst’, a caricature of a dizendo, «(...) o inconsciente do analista entende
working alliance (...)». o do seu paciente. (...) Na comparação entre os
9
«Trial identification».
10
De acordo com o PEP Archive CD-ROM, antes
de 1950, apenas estavam registados 90 artigos refe-
rentes ao tema da contratransferência, actualmente, e
referente ao período pós 1950, estão inscritos 3685 11
«(…) The analyst’s counter-transference is an ins-
artigos (cit. in Hinshelwood, 1999). trument of research into the patient’s unconscious».

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sentimentos nele despertados, com as associa- do Sul e em alguns países europeus (Jacobs,
ções e o comportamento do paciente, o analista 1999).
obtém o melhor meio para verificar se por acaso A influência de Melanie Klein teve um rápido
entendeu ou não o seu paciente» (Heimann, crescimento na Inglaterra do pós-guerra. Na
1949, p. 82)12. Isto é, o analista «(...) conhece o mesma linha de Freud, sempre sustentou, e por
inconsciente do analisando pela resposta que lhe vezes calorosamente (chegando a hostilizar
dá» (Matos, 1978, p. 32). Paula Heimann e Little, pelos pontos de vista
Com Heimann, os sentimentos contratransfe- que defenderam nos seus trabalhos de 1949 e
renciais originam-se no analista como produtos 1951, respectivamente), que a contratransferên-
do paciente: «(...) a contra-transferência do ana- cia era um obstáculo para a análise, uma vez que
lista não é apenas parte essencial da relação ana- ela corresponderia a núcleos inconscientes do
analista, insatisfatoriamente analisados e, como
lítica, como também é a criação do paciente, ela
tal, poderia servir como desculpa para que os
é parte da personalidade do paciente» (1949, p.
analistas atribuíssem as causas das suas próprias
83)13.
deficiências aos pacientes (Hinshelwood, 1999).
Outra contribuição de grande influência sur- Em linguagem kleiniana: «a transferência não
giu pouco tempo depois. Pioneira ao explorar a analisada do analista para com o paciente» (Bott-
contratransferência em maior profundidade, -Spillius, 1983, cit. in Thomä & Kächele, 1989).
Little, em 1951, destacou a tendência do analista Em 1946, descreveu o fenómeno que ela de-
repetir o comportamento dos pais do paciente e nominou como identificação projectiva que, jun-
satisfazer certas necessidades pessoais, mais do tamente com a sua conceptualização dos proces-
que as do analisando, dando ênfase à identifica- sos dissociativos (splitting), propiciou um me-
ção complementar de Racker (Matos, 1978). lhor entendimento dos mecanismos primitivos
Por esta altura, aludiu ainda para o facto de a que participam no fenómeno contratransferencial
relação conter fatalmente uma mistura de ele- (Zimerman, 1999).
mentos normais e patológicos, derivados da psi- Outro autor kleiniano a referir, Money-Kyrle,
cologia de ambos os intervenientes – paciente e no seu único trabalho de 1956, introduziu o
analista. Assim, reforçou a ideia de que o suces- conceito de contratransferência normal, isto é,
so da análise dependia da qualidade do trabalho algo que se apresenta regularmente e que inter-
centrado na patologia do analista. vém com características próprias no processo
Little, foi ainda a proponente mais importante psicanalítico. Esta linha de trabalho investigou
do uso da contratransferência como material a os mecanismos base da empatia – a projecção
ser comunicado ao paciente (Kernberg, 1985). (pelo paciente) e a introjecção (pelo analista). O
Os trabalhos de Winnicott, Heimann e Little processo normal consistiria em ciclos destes
tiveram uma influência substancial no futuro mecanismos (Hinshelwood, 1999). Assim, cha-
desenvolvimento do conceito de contratransfe- mou de contratransferência normal à do analista
que assume um papel parental, complementar ao
rência e das suas diferentes concepções, em par-
do paciente. Este critério é oposto ao de Racker,
ticular em Inglaterra, mas também na América
já que atribuiu a maior empatia a uma transfe-
rência do tipo complementar (Etchegoyen,
1989).
Em 1967, Bion preferia entender o fenómeno
12
transferencial-contratransferencial pelo seu mo-
«(...) The analyst’s unconscious understands that
of his patient. (…) In the comparison of feelings rou- delo da interacção continente-conteúdo, de modo
sed in himself with his patient’s associations and be- a valorizar sobretudo a função continente do
haviour, the analyst possesses a most valuable means analista (Thomä & Kächele, 1989). Ao contradi-
of checking whether he has understood or failed to zer a orientação de Kyrle, assumiu a posição de
understand his patient». que a contratransferência é um fenómeno in-
13
«(...) The analyst’s counter-transference is not
only part and parcel of the analytic relationship, but it consciente e, portanto, não pode ser usada cons-
is the patient’s creation, it is a part of the patient’s cientemente pelo analista, pelo menos durante a
personality». sessão, o que vai ao encontro da tese de Segal

178
(1977, cit. in Zimerman, 1999) quando refere 5. AS CONTRIBUIÇÕES DE RACKER E
que «a parte mais importante da contratrans- GRINBERG
ferência é inconsciente e somente pudemos re-
conhecê-la a partir de seus derivados conscien- O analista Argentino, nascido na Polónia,
tes» (o sono, o tédio, etc.). Heinrich Racker foi o autor que mais consistente
Em França, em 1966, Lacan derivou a sua e sistematicamente estudou e divulgou o
perspectiva da contratransferência da posição fenómeno contratransferencial promovendo, tal
clássica freudiana: afirmou que interfere directa- como Heimann, uma mudança de paradigma. Ao
mente no paciente e, simultaneamente (da mes- contrário de Heimann, Racker publicou uma
série de trabalhos, onde foi estudando aspectos
ma forma que Heimann), rejeitou o princípio da
importantes da contratransferência que chegou a
neutralidade técnica, (Hinshelwood, 1999). Sus-
articular numa teoria coerente e ampla (Etche-
tentava que a transferência se iniciava quando a
goyen, 1989; Zimerman, 1999). Apesar disso, o
contratransferência obstruía o desenvolvimento
seu falecimento súbito em 1961 impediu-o de
do processo analítico. (Etchegoyen, 1989). Refe- desenvolver muitas das suas concepções que, no
riu-se ainda aos efeitos da contratransferência entanto, tiveram um profundo impacto no pensa-
indirecta (de Racker). mento da sua época e estimularam as reflexões,
Nos Estados Unidos, em 1965, Otto Kernberg investigações e teorizações consequentes (Ber-
assinalou que a reacção contratransferencial nardi, 2000).
ocorre como um contínuo em relação à psicopa- Racker definiu o processo analítico em função
tologia do paciente. Assim, quanto mais regres- dos seus dois participantes e propôs um conceito
sivo for o paciente, maior será a sua contribuição rigoroso: a neurose de contratransferência, que
na relação contratransferencial do analista. Por caracteriza como a expressão patológica da con-
esta altura, Kernberg, concordando geralmente tratransferência. Assim, a tomada de consciên-
com Racker, descreve um caso especial de po- cia, por parte do analista, dos seus processos psi-
sições contratransferenciais: a fixação contra- copatológicos, torna-se premente.
transferencial crónica que Bion traduz pelo De forma similar ao modelo freudiano sobre a
«ataque aos vínculos» e a consequente formação transferência, Racker (1960) afirmou que a con-
de conluios inconscientes (Etchegoyen, 1989; tratransferência operava de três formas. Simul-
Zimerman, 1999). taneamente, como obstáculo (identificação com-
Preocupada com as ideias contrárias à sua, ex- plementar) e como instrumento técnico (identi-
pressas nos trabalhos de alguns colegas (durante ficação concordante). E ainda como campo em
a década de cinquenta), Annie Reich tentou cla- que o analisado pode realmente adquirir uma ex-
rificar em 1951, 1960 e 1966 a posição prevale- periência viva e diferente da que «crê» que teve
originalmente.
cente entre os analistas clássicos. A influência
De acordo com Etchegoyen (1989), Racker
dos seus trabalhos e da corrente tradicionalista
descreveu a neurose de contratransferência a
dos anos sessenta foi enorme, nos Estados Uni-
partir de três parâmetros. No primeiro parâmetro,
dos. Durante duas décadas a visão de Reich, da
Racker (1960) distingue entre as reacções con-
contratransferência, foi aceite em silêncio pela tratransferenciais directas e indirectas. As pri-
maioria dos analistas tradicionais deste país. meiras são aquelas que são estimuladas pelo pa-
Gitelson, entre outros, em 1952, veio quebrar ciente, provêm dele. Pelo contrário, quando o
esse silêncio e exibiu, nos trabalhos que apre- objecto que mobiliza a contratransferência não é
sentou, o seu cada vez maior conservadorismo, o analisado, mas outro, fala-se de contratrans-
no modo de olhar a contratransferência (Etche- ferência indirecta. Estas, surgem como um fenó-
goyen, 1989; Jacobs, 1999). meno mais complexo. Representam as reacções
Em Inglaterra e noutros países fortemente in- emocionais do analista para com os seus super-
fluenciados pelo pensamento kleiniano, o modo visores, professores, colegas ou outros indiví-
de perspectivar o tema era diferente. Os países duos significativos (inclusivamente indivíduos
da América do Sul eram disso exemplo. que pertencem ao mundo do paciente), que exer-

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cem uma influência no seu modo de perceber e O terceiro parâmetro reporta-se a duas classes
trabalhar com o paciente (Jacobs, 1999). distintas de vivências contratransferenciais. As
No segundo parâmetro, Racker (1960) consi- «ocorrências contratransferenciais» que não im-
derou que os diferentes modos de identificação, plicam, em geral, um grande envolvimento do
que surgem entre analista e paciente, conduziam ego – o analista encontra-se de repente a pensar
a duas formas de contratransferência: a contra- em algo que não se justifica racionalmente no
transferência concordante ou homóloga e a con- contexto em que aparece ou que não parece rela-
tratransferência complementar – nomenclatura cionado com o analisando. As associações deste,
utilizada por Deutsch, em 1926. um sonho ou acto falho, entretanto, mostram a
Na primeira, mecanismos de introjecção e relação (Etchegoyen, 1989). A respeito destas
projecção permitem ao analista identificar o seu vivências, Racker considera perigoso «(...) que
ego, de forma concordante, com o ego, o id e o não se faça uso delas para a compreensão e
superego do analisando, nas suas diferentes fa- eventual interpretação (...)» (1960, p. 170)16.
cetas, experiências, impulsos e defesas. Pressu- As «posições contratransferenciais», a outra
põe processos de ressonância e reconhecimento classe, que de forma distinta reflectem o envol-
entre o que pertence a ambos os intervenientes. vimento profundo do ego do analista visto a ex-
Estas identificações são, em geral, empáticas e periência contratransferencial ser «(...) vivida
expressam a compreensão do analista que actua por ele com maior intensidade e como realidade
como intérprete. No entanto, o autor adverte ain- (...)» (Racker, 1960, p. 171)17. É o caso do analis-
da que quanto maiores forem «(...) os conflitos ta que reage com raiva, ira, angústia ou preo-
entre as próprias partes da personalidade do cupação frente a um determinado paciente. Às
analista, tanto maiores serão as dificuldades pa- vezes, esse aspecto da neurose de contratrans-
ra realizar as identificações concordantes na sua ferência é muito sintónico e passa completa-
totalidade (...)» (Racker, 1960, p. 161)14. mente inadvertido.
As segundas, produzem-se quando o analista Um outro autor da América do Sul, León
se identifica com os objectos internos (transfe- Grinberg, vai basear-se no pensamento de Ra-
renciais) do analisando. Isto é, o analisando tra- cker e continua-o. Diferentemente deste, Grin-
ta o analista como um objecto interno, fazendo berg tem muito em conta a identificação projec-
com que este se sinta tratado enquanto tal. No tiva. Estabelece uma graduação que vai da con-
entanto, para Racker – tal como para Deutsch tratransferência concordante à complementar,
(cit. in Ferreira, 1998) – a identificação comple- para chegar à contra-identificação projectiva
mentar não resulta só das projecções do paciente. que entende produzir-se «como resultado de
Resulta também da reactivação da neurose in- uma excessiva identificação projectiva do ana-
fantil do analista que faz com que este evite dar lisado, que não é percebida conscientemente pe-
uma resposta concordante e o conduza a uma lo analista e que, como consequência, se vê “le-
identificação complementar com o objecto rejei- vado” passivamente a desempenhar o papel que,
tante do paciente (Bernardi, 2000). Pelo que de forma activa – ainda que inconsciente – o
Racker refere «(...) uma estreita conexão com o analisado “forçou dentro de si”» (1958, cit. in
destino das identificações concordantes: parece Etchegoyen, 1989).
que na medida em que o analista fracassa nes-
tas, e as recusa, intensificam-se determinadas
identificações complementares (...)» (1960, p.
162)15.
15
«(...) Una estrecha conexión con el destino de lás
identificaciones concordantes: parece que en la me-
dida en que el analista fracasa en éstas, y lás recha-
za, se intensifican determinadas identificaciones com-
plementarias (...)».
14
«(...) los conflitos entre lás próprias partes de la 16
«(...) En que no se haga uso de ellas para la com-
personalidad del analista, tanto maiores serán lás di- prensión y eventual interpretación (...)».
ficultades para realizar lás identificaciones concor- 17
«(...) Vivida por él con mayor intensidad y como
dantes en su totalidad (...)». realidad (...)».

180
Num trabalho mais recente (1982), Grinberg uma verdade narrativa (Spence, 1982, cit. in
depura e precisa seu pensamento anterior, e inte- Jacobs, 1999).
gra-o numa concepção interaccional, superando O trabalho original e criativo de Ogden é dis-
algumas falhas. Agora, a contra-identificação so um testemunho. Com base no conceito klei-
projectiva passa a oferecer ao analista «a pos- niano de identificação projectiva, desenvolveu o
sibilidade de vivenciar um espectro de emoções conceito de «terceiro analítico»18 que define co-
que, bem compreendidas e sublimadas, podem mo «(...) um produto de uma dialéctica única
converter-se em instrumentos técnicos utilíssi- gerada por (entre) as diferentes subjectividades
mos para entrar em contacto com os níveis mais do analista e analisando dentro do setting ana-
profundos do material dos analisados, de um mo- lítico» (Ogden, 1994, p. 4)19. Desta forma, pôde
do análogo ao descrito por Racker e por Paula perceber como é que paciente e analista, como
Heimann para a contratransferência» (Grinberg, sujeito e objecto (transferência e contratransfe-
1982, cit. in Etchegoyen, 1989). rência) interdependentes que são, se juntam para
Nos finais dos anos setenta, nos Estados Uni- formar um terceiro objecto (Hinshelwood,
dos, por inúmeros factores intervenientes, o ce- 1999). Ou seja, aquelas ideias, crenças e imagi-
nário alterou-se abruptamente e a literatura ficou nações criadas juntas e partilhadas por ambos, e
repleta de artigos sobre o tema da contratrans- que afectam as percepções e o pensamento dos
ferência. O trabalho de Racker, a escola inglesa dois.
das relações de objecto e os autores kleinianos Também uma figura-chave da actualidade,
Owen Renik, é um autor controverso. Defende
tornaram-se mais familiares e estimularam o in-
que a subjectividade do analista é inerente ao
teresse pela contratransferência.
processo analítico. Sendo assim, e para este au-
tor, o conceito de contratransferência não tem
significado, torna-se redundante. O analista, em
6. DEPOIS DOS ANOS 70
vez de tentar a tarefa impossível de monitorizar e
controlar a sua subjectividade, deve torná-la
Em 1971, o trabalho de Kohut surge muito
parte do processo analítico. Assim, pensa que o
criticado pelos analistas clássicos. Na sua pers-
analista deve partilhar algumas das suas ideias e
pectiva, e também na de Greenson (1959), a em-
percepções com os pacientes de forma a que es-
patia é o elemento chave do instrumento analí- tas possam ser discutidas abertamente, durante o
tico e é dependente da capacidade introspectiva e tratamento (Jacobs, 1999).
do sentido de identidade do analista. Kohut des-
tacou que a empatia possibilitava a condição de
o analista «se colocar no lugar do outro», pro- 7. CONCLUSÃO
piciava uma «vivência emocional compartilha-
da» e possibilitava no paciente uma «interna- A contratransferência, um dos conceitos fun-
lização transmutadora» (Zimerman, 1999). As- damentais do campo analítico, a sua conceptua-
sim, indirectamente, enfatizou o papel indis- lização é uma das mais complexas e controver-
pensável que a contratransferência desempenha sas entre as diferentes correntes psicanalíticas e,
no trabalho analítico mas, alertou para o facto de ainda hoje, permanece problemática.
o narcisismo patológico se constituir como um Geralmente aceite como o «conjunto das reac-
dos principais obstáculos para o uso da empatia. ções inconscientes do analista à pessoa do ana-
Neste novo clima, os analistas sentiram-se lisado e mais particularmente à transferência
mais confortáveis para explorar as suas reacções
contratransferenciais e escrever sobre elas.
Agora, o analista passou a ser visto como um
parceiro na jornada analítica. A análise tornara-
se num projecto que, utilizando as experiências 18
subjectivas de ambos os intervenientes, lhes «Analytic third».
19
«(...) A product of a unique dialectic generated by
permite trabalhar, em conjunto, para desencobrir (between) the separate subjectivities of analyst and
o núcleo das fantasias inconscientes e construir analysand within the analytic setting (…)».

181
deste» (Laplanche & Pontalis 1998, p. 102)20, Ferreira, T. (1998). As identificações na contratrans-
cada vez mais, os analistas a reconhecem como ferência. Revista Portuguesa de Psicanálise, 17,
uma entidade complexa que contém elementos 43-62.
Greenson, R. (1959, July). Empathy and its vicissitudes.
derivados das projecções do paciente, da psico- Enlarged version of paper presented at the 21st
logia do analista (incluindo aspectos da sua per- Congress of the International Psycho-Analytical
sonalidade e história) e da relação transferencial- Association, Copenhagen.
-contratransferencial no aqui-e-agora. Greenson, R. (1972). Beyond transference and interpre-
Nesta perspectiva – que se apoia fortemente tation. International Journal of Psychoanalysis, 53,
na noção de formação de compromisso e no 213-217.
princípio do funcionamento múltiplo – que é Heimann, P. (1949). On counter-transference. Paper
presented at the 16th International Psycho-Ana-
também a que nos parece mais razoável, a con- lytical Congress, Zürich, Switzerland.
tratransferência é uma criação que utiliza os di- Hinshelwood, R. D. (1999). Countertransference. Inter-
ferentes componentes, de uma forma dinâmica, national Journal of Psychoanalysis, 80, 797-818.
como resposta ao desenvolvimento do processo Jacobs, T. J. (1999). Countertransference past and pre-
analítico, alterando a psicologia do analista. sent: A review of the concept. International Jour-
Nos últimos cinquenta anos, investigações nal of Psychoanalysis, 80, 575-594.
Kernberg, O. (1985). Borderline conditions and patho-
sobre a contratransferência e sobre a mente do
logical narcissism. New Jersey: Jason Aronson.
analista tiveram um impacto significativo nas Laplanche, J., & Pontalis, J-B. (1998). Vocabulaire de
perspectivas contemporâneas: expandiram a la psychanalyse (2ª ed.). Paris: PUF.
nossa compreensão do processo analítico e per- Matos, C. (1978, Outubro). A contratransferência como
mitiram uma tomada de posições mais conscien- resistência do analista e como material do proces-
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realizada na Sociedade Portuguesa de Psicanálise,
Lisboa.
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Technique and other works (Vol. XII). London:
Editora Artes Médicas Sul.
Hogarth Press.
Freud, S. (Ed.). (1937-1939). The Complete Psycholo-
gical Works: Moses and Monotheism, an outline of
Psycho-Analysis and other works (Vol. XXIII). RESUMO
London: Hogarth Press.
Neste trabalho, apresenta-se uma breve revisão
diacrónica do conceito de contratransferência. A mo-
desta síntese dos autores apresentados permite apenas
aludir ao seu percurso evolutivo, complexo e proble-
mático. Caracterizada originalmente por Freud como
20
«Ensemble des réactions inconscientes de l’ana- um obstáculo à compreensão, quarenta anos depois
lyste à la personne de l’analysé et plus particulière- surge como um instrumento de compreensão que tor-
ment au transfert de celui-ci». nou o analista mais responsável no seu trabalho. Faz-

182
-se também alusão à mudança do clima analítico, cept of counter-transference. The modest synthesis of
após a Segunda Guerra Mundial, que veio promover a these authors covers only the concept’s evolutionary,
re-emergência do conceito de contratransferência, da complex and problematic process. Originally descri-
penumbra. bed by Freud as an obstacle to understanding, forty
Distinguem-se ainda autores como Heimann, Ra- years later it emerged as an instrument of understan-
cker e outros que, ao virem estabelecer um vínculo en- ding that made the analyst more responsible in his
tre a ideia original de Freud e a ideia de Reik sobre a work. Reference is also made to the changing analy-
intuição como instrumento maior do analista, assegu-
tical climate after World War II, as the concept of
raram a sua organização como um corpo de doutrina
counter-transference began to re-emerge from obscu-
completo. Finalmente, conclui-se que, apesar da sua
controvérsia se manter actual, a contratransferência é rity.
um conceito que tem vindo a adquirir, cada vez mais, Authors such as Heimann, Racker and others are
uma certa permanência e estabilidade no léxico analí- distinguished for having organised this doctrine into a
tico. complete work by linking Freud’s original idea with
Palavras-chave: Contratransferência, obstáculo, Reik’s idea about intuition as the analyst’s best ins-
instrumento, intuição, identificação projectiva, contra- trument. Lastly, although still enveloped in controver-
identificação projectiva, neurose de contratransferên- sy, the concept of counter-transference has been in-
cia, contratransferência concordante e complementar, creasingly gaining a certain permanence and stability
contratransferência directa e indirecta, empatia, o ter- in the lexicon of analysis.
ceiro analítico. Key words: Counter-transference, obstacle, instru-
ment, intuition, projective identification, projective
counter-identification, counter-transference neurosis,
ABSTRACT concordant and complementary counter-transference,
direct and indirect counter-transference, empathy, the
This work is a brief diachronic revision of the con- analytic third.

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