Você está na página 1de 15

_________________________________________________________________________

OS SETE PODERES DE TRANSFORMAÇÃO DA BIODANZA


_________________________________________________________________________

Antonio Sarpe *

RESUMO

Este artigo procura abordar os principais instrumentos utilizados em Biodanza e


comentar sobre a sua eficácia, relacionando-os de forma coerente e buscando referência em
vários campos teóricos para demonstrar a extensão de sua atuação. Visando gerar
elementos para responder à pergunta do porquê a Biodanza funciona de forma integral nos
seus participantes.

AGRADECIMENTOS

À Nathália Massi, Alessandra Moraes e Leonardo Cruz por todo o apoio que me
ofereceram.

INTRODUÇÃO

“O que aconteceria se, em vez de apenas


construir nossa vida, nós nos entregássemos
à loucura e à sabedoria de dançá-la?”
Roger Garaudy

A interrogação feita acima pelo pensador francês se desdobrará ao longo deste


artigo gerando novas questões, não só relacionadas à dança, mas sobretudo à Biodanza,
método criado pelo antropólogo chileno Rolando Mário Toro Araneda. Afinal, que efeitos
produzem a Biodanza nas pessoas que a praticam? Como é possível mediante a dança e
exercícios em grupo gerar benefícios nos níveis orgânico, social e mudanças no estilo de
vida dos participantes? Será a Biodanza um método capaz de contribuir para um mundo
*
Facilitador Didata de biodanza, Diretor Pedagógico das Escolas de Biodanza Rolando Toro do Rio de
Janeiro e do Porto (Portugal), Psicólogo.
mais solidário e humanitário? Que recursos dispõem a Biodanza para atingir seus
objetivos?
Estas perguntas serão o meu leitmotiv 1 para construir o artigo e para propor a
Biodanza como uma prática capaz de atuar positivamente diante dos desafios e
complexidades do estilo de vida do mundo contemporâneo.
Sendo esta abordagem geradora de efeitos terapêuticos e pedagógicos, pretende não
só recuperar níveis elevados de saúde como atuar de forma profilática 2 , possibilitando aos
seus participantes uma reeducação para um cotidiano que respeite as necessidades vitais
básicas 3 . Para isto é necessário que se tenha uma visão integrada 4 , não dissociando o que é
psicológico do que é corporal. Concordo com Groddeck (1994) quando afirma que não se
devem tratar as doenças, mas a pessoa e que não há diferença entre doenças do espírito e do
corpo, soma 5 e psique são, em essência, a mesma coisa. Este autor chamou de ‘isso’ a algo
desconhecido, do qual, tanto a saúde, como a doença são manifestações.
A Biodanza amplia esta noção e se autodefine como uma terapia para “enfermos da
civilização” (Toro, 1991, p.135), isto quer dizer que o estilo com o qual se vive, pode ser
patológico ou gerador de saúde e os tratamentos perdem sua eficácia se não se modifica o
cotidiano. Como destaca Lewis (1993), as pessoas portadoras de certos traços de caráter
têm maior probabilidade de contrair determinadas doenças. Para poder atuar não só no
indivíduo, mas no estilo de vida, as bases conceituais da Biodanza se apóiam na biologia,
antropologia, fisiologia, psicologia, sociologia e mitologia, englobando ao máximo as
manifestações humanas. E para dar coerência sistêmica 6 a este arcabouço teórico, Toro
(2002) norteia o caminho criando o Princípio Biocêntrico, no qual faz referência imediata à
vida, e se inspira nas leis que conservam os sistemas vivos e permitem sua evolução. Este
princípio propõe que o universo é teleonomicamente 7 orientado para a vida, da qual somos
uma manifestação. Este autor encontra ressonância em De Duve (1997), que afirma ser a
vida um imperativo cósmico, e Bohm (1998), quando critica a limitação da percepção

1
Idéia diretriz ou dominante.
2
Que previne doenças.
3
Que tem relação com os instintos de preservação.
4
Que estabelece unidade.
5
Corpo em Grego.
6
Relativo a sistema: conjunto ou combinação de coisas ou partes de modo a formarem um todo complexo ou
unitário.
7
Orientado para a realização de determinada finalidade.

2
fragmentada do universo e amplia a visão para a totalidade. O Princípio Biocêntrico garante
à Biodanza coerência para só incorporar elementos ao seu método que estejam de acordo
com sua intenção de favorecer a integração.
Para falar da aplicação prática do que descrevi vou utilizar como guia Os Sete
Poderes de Transformação de Biodanza: o poder da música, o poder do movimento
integrado (dança), o poder da vivência, o poder do grupo, o poder da carícia, o poder do
transe e da regressão e o poder da expansão da consciência. Estes possibilitam extrema
eficácia à abordagem em Biodanza, pois integrados num método congruente ganham uma
dimensão transformadora incomum.

O PODER DA MÚSICA

“Então elevou-se uma árvore! Pura elevação!


Orfeu está cantando! Uma grande árvore no ouvido!
E Tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime,
Nasceu novo princípio, gesto e transformação”
Rainer Maria Rilke

A música encontra seu antecedente mítico em Orfeu 8 , acima celebrado nos versos
do poeta alemão. Para Brandão (1996) a maestria de Orfeu com sua cítara e a suavidade de
sua voz arrastava por encantamento animais selvagens, seres da natureza, fazendo com que
as árvores se inclinassem para ouvi-lo, transformando espíritos coléricos em almas plenas
de ternura e bondade. Na antiguidade o filósofo Pitágoras de Samos, como descrito em Kirk
et al (1994), exaltava a harmonia dando-lhe uma dimensão cósmica e relacionando-a com o
princípio ordenador de todas as coisas. Bornheim (1993) comenta que para o pensador e
matemático esta harmonia é engendrada nos astros como sons produzidos sinfonicamente,
gerando assim a música das esferas. Acho importante perceber que desde o início da
estruturação do pensamento humano, e de acordo com Durand (1997), os mitos são idéias
em estado nascente e o imaginário corresponde à infância do pensamento, a música foi
considerada como dotada de um poder excepcional capaz de gerar estados não passíveis de
serem alcançados através de outros métodos. Para o filósofo Nietzsche (s.d.) a vida sem a
música se transforma numa tarefa cansativa, num exílio, simplesmente um erro.

8
Mito grego que, tocando sua cítara, conseguia efeitos mágicos.

3
Saltando para a atualidade, Benenzon (1985), fundador do curso de Musicoterapia,
ensina que a música não nos chega por uma via cortical 9 . É no tálamo – região do cérebro
onde se recebem os sinais sensoriais correspondentes às sensações e emoções – que somos
tocados por ela num plano não-consciente; isto é, mediante um ritmo musical podemos
condicionar uma resposta inconsciente automática.
Toro (2002), assinala a capacidade da música de promover a regulação do sistema
nervoso autônomo através de músicas ativadoras com ritmos euforizantes, resultando numa
ativação simpático-adrenérgica, que gera o aumento da pressão arterial, do batimento
cardíaco, da vaso-constrição, do deslocamento do sangue para os músculos que vão entrar
em ação, da broncodilatação para permitir uma ventilação maior – todas essas são reações
de emergência. Já as músicas suaves, com movimentos em câmara lenta, geram diminuição
do ritmo cardíaco, aumento da secreção das glândulas lacrimais e salivares, fomento da
acumulação de reservas, predisposição ao sono e ao repouso – todas essas sensações de
plenitude e paz. O autor também indica um caminho para a evolução de uma semântica
musical 10 , onde os elementos orgânicos da musica, denominada biomúsica 11 - tais como:
fluidez 12 , harmonia, ritmo, tônus, unidade de sentido 13 - sejam preservados. Agregando
elementos que resgatam na música um potente instrumento deflagrador de vivências14 ,
emoções e sentimentos. “Nas primeiras batidas de uma música está, em certo sentido, o
embrião de sua totalidade (...) um esquema de resposta afetivo-motor-expressivo, que
determinará os movimentos sucessivos da dança; da coerência entre música e dança surge a
vivência”.(Toro 2002, p.130).
Todas as idéias e reflexões até então elaboradas me permitem destacar o poder de
transformação da música em alguns de seus efeitos. A música em Biodanza já contém a
dança que será gerada no participante que por ela for tocado. Como também, a
potencialidade de gerar gestos integradores motivados pelas sensações, emoções,
sentimentos e vivências.

9
Relativo a córtex: região do cérebro responsável pelo pensamento, linguagem, movimento voluntário,
julgamento e percepção.
10
Pesquisa voltada ao estudo dos significados emocionais contidos na música.
11
Música feita com base nos ritmos orgânicos.
12
Movimento contínuo que compromete todo o corpo.
13
Aqui se refere ao fato da música manter um sentido emocional único do início ao fim.
14
Experiências que envolvem os níveis somático e psíquico, sensações, emoções e sentimentos. O conceito
será desenvolvido mais adiante no poder do método vivencial.

4
O PODER DO MOVIMENTO INTEGRADOR

“A dança gera o destino


Sob as mesmas leis que vinculam a flor e a brisa
Sob o girassol de harmonia
Todos somos um”.
Rolando Toro

Ao longo de sua história, a dança foi perdendo seu sentido originário. Deixou de ser
uma manifestação profundamente conectada com as raízes constitutivas do homem diante
do seu mundo e transformou-se num objeto de apreciação estética na forma de um
espetáculo, onde dançarino e público estão separados. Concordo com Garaudy (1980)
quando afirma que a dança se tornou uma língua morta “depois de quatro séculos de balé
clássico e vinte séculos de desprezo ao corpo por um cristianismo pervertido pelo dualismo
platônico” (p. 13). Estas dissociações têm ocorrido ao longo do processo de afastamento da
dança de sua origem, fazendo com que o movimento deixe de ter sua orientação gerada a
partir da vivência 15 , passando a ser orientado pelo aprendizado por vezes mecânico e
repetitivo de gestos estereotipados com fins coreográficos. O mesmo autor comenta que em
sua forma originária a dança está vinculada aos ritos de fertilidade, à reverência aos deuses,
à celebração, à magia , à religião, ao trabalho, à festas e à reiteração de laços sociais.
Acrescentando, ainda, que a dança moderna, sobretudo com Isadora Duncan, retoma a
dança “... não apenas como uma arte, mas como um modo de viver” (Garaudy, 1980, p. 13).
A Biodanza parte deste princípio para propor a dança da vida.
Dentro da metodologia Biodanza, o sentido originário da dança em sua acepção de
‘movimento pleno de sentido’ é recuperado e a dança reativa sua dimensão arquetípica 16 ,
profundamente conectada com as matrizes de gestos eternos acumulados desde a gênese da
cultura humana. Ainda que não se dê conta se está dançando a vida. Como comenta Toro
(1991):
Mais que um espetáculo, a dança é o movimento interior que origina os atos vitais: o abraço,
o acalanto do bebê, as carícias e o beijo, o trabalho, os gestos abatidos de solidão e os gestos do
encontro. (p. 491)

15
Como descrita na nota de rodapé nº 14.
16
Relacionada com padrões de estruturação do desempenho psicológico ligados ao instinto.

5
O PODER DO MÉTODO VIVENCIAL

“Vemos as coisas mesmas,


o mundo é aquilo que vemos,
se perguntarmos o que é
este nós, o que é este ver e
o que é esta coisa ou este mundo,
penetramos num labirinto
de dificuldades e contradições”
M. Merleau-Ponty

A história da cultura ocidental tem se caracterizado por um afastamento gradual e


intenso do mundo vivido 17 , que na linha do pensamento de Merleau-Ponty (1990, p. 42)
constitui: “... o fundo sempre pressuposto de toda racionalidade, todo valor e toda
existência”. Antes do racionalismo platônico 18 ser dominante, seus antecessores, os
pensadores pré-socráticos, estavam buscando princípios básicos e unificadores de
organização do Universo – “Arché” em Peters (1967), é a busca de uma substância básica
de que são feitas todas as coisas – “Kósmos” em Peters (1967) alude à noção de ordem e
beleza de tudo que existe. Estes pensadores viam na “Physis” (Bornheim, 1993) o germinar
de todas as coisas, pois esta constitui “a totalidade de tudo que é” (p. 14). Em Thales de
Mileto 19 temos a água como Arché, já em Heráclito 20 o fogo, e foi com Empédocles 21 que
se encontrou uma harmonia entre os quatro elementos, atraídos pelo amor e separados pelo
ódio. Estes protofilósofos 22 ainda viviam em um mundo único e foi somente com a
filosofia de Platão que se construiu um modo de pensar, no qual há a possibilidade de
mundos separados – o mundo da Physis e o da Metafísica 23 , onde o primeiro refere-se ao
‘mundo das coisas’ e outro se refere ao ‘mundo das idéias’. A esta separação de mundos
seguiu-se a separação de corpo e alma e o desprestigio crescente do corpo, encontrando seu
paroxismo em Descartes, onde o desprezo pelas sensações se justifica como método de
acesso ao verdadeiro saber. Alguns filósofos e pensadores têm sido responsáveis por
restituir ao mundo, à vida, ao corpo e à vivência sua dimensão fundadora de todo

17
Estágio anterior à separação observador e mundo.
18
Busca da verdade por uma via racional.
19
Um dos filósofos pré-socráticos.
20
Um dos filósofos pré-socráticos.
21
Um dos filósofos pré-socráticos.
22
Uma das designações dadas a estes pensadores originários da filosofia.
23
Designação dada ao pensamento platônico de divisão dos mundos.

6
conhecimento. Tais como: Nietzsche, em Deleuze (s.d.), discorre sobre a pluralidade de
forças que envolvem um corpo e critica os filósofos que se detiveram tanto no estudo da
consciência e não sabem o que pode o corpo; Merleau-Ponty (2000) “Eu organizo com meu
corpo uma percepção do mundo (...) habito meu corpo e por ele habito as coisas” (p. 122),
continuo com Góis (1995) “..naquele instante o que se vive é tudo, não havendo nada
mais”. (p. 69) Considero que o surgimento do conceito de vivência na filosofia significa
uma recuperação da sabedoria dos antigos pensadores. O conceito de vivência foi elaborado
por Dilthey (1949) como :
...um modo característico distinto em que a realidade está aí para mim. A vivência não se me
apresenta como algo representado ; não é dada, a realidade vivência está aí para nós porque nos
percebemos por dentro dela, por que a tenho de modo imediato como pertencente a mim em algum
sentido. (p. 362)

E desenvolvida por Toro (2000):

Vivência é uma experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo em um lapso
de tempo aqui-agora (gênese atual), abarcando as funções emocionais, cenestésicas e orgânicas. As
vivências geram a sensação global de "sentir-se vivo", evocam a intensa percepção de ser quem se é.
Como a experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo no momento presente, que
envolve a cenestesia, as funções viscerais e emocionais. (p. 3)

A vivência é forma privilegiada de ativação dos potenciais genéticos 24 responsáveis


pela expressão da identidade 25 e ocupa lugar central na abordagem do método Biodanza.

O PODER DO GRUPO

“A filosofia ocidental tem sido


muito constantemente uma ontologia:
uma redução do Outro ao Mesmo, por mediação
de um termo médio e neutro que assegura
a inteligência do ser.”
Emmanuel Lévinas
“No começo é a relação”
Martin Buber

24
Base biológica herdada.
25
Diz respeito ao modelo teórico de Biodanza no qual a identidade se expressa através do desenvolvimento
dos potenciais genéticos.

7
O poeta Hesíodo em sua Teogonia 26 descreve os quatro seres divinos primários
surgidos na origem do Universo. Eros, símbolo da vida e da ligação entre os seres, estava
presente entre eles. Destaco este fato para considerar a importância da união e do vínculo e
desenvolverei a idéia de que a vida não teria sido possível sem solidariedade, como destaca
Margulis (2001) em sua visão de um planeta simbiótico no qual acoplamentos e
interdependência foram um importante motor para a evolução. Em nossa espécie
encontramos pautas de comportamento instintivo tanto para o amor como para o ódio como
descreveu Eibl-Eibesfeldt (1998).
Reunir-se em grupo com o objetivo de crescimento é por extensão uma confirmação
desta tendência gregária 27 em que, através da união e do compartilhamento, da atração e
repulsão, possibilita a cada participante enriquecer-se com a diversidade de estímulos
afetivos próprios dessas dinâmicas. A crença em um crescimento solitário tem sido
criticada por autores como Hillman (1992) que assinalam a tendência do ‘projeto
terapêutico’ focar-se no indivíduo e alienar-se dos problemas coletivos, isso reforça o
individualismo e o isolamento. Toro (1991), tem denunciado esta tendência solipsista 28 das
terapias que, influenciadas pelo individualismo anglo-saxão, se afastam de soluções
comunitárias transformadoras do meio social. O grupo é mais eficaz para o indivíduo e
também para a sociedade, pois este, é uma amostra micro-social e, a partir dele, cada
participante retorna de forma transformadora ao meio em que vive.
Autores como Pagès (1982) destacam que no grupo vive-se toda a dinâmica de
sentimento de ligação e amor autêntico como, também, a angustia da separação. Bion
(1970), dedicou-se a estudar o processo dos grupos que evoluem em diversas suposições
básicas, como a necessidade de dependência de um líder e de ter esperanças messiânicas,
como, também, alcançar constituir-se um grupo cooperativo e maduro.
Em Biodanza, segundo Toro (2000):

O grupo de Biodanza é um bio-gerador, um centro gerador de vida. A concentração de


energia convergente dentro de um grupo produz um potencial maior que a soma de suas partes. Esta
energia biológica renovadora compromete a unidade e a harmonia do organismo. É criado, assim, um
campo magnético no qual se refletem e se projetam emoções, desejos, sensações físicas de grande

26
Qualquer sistema religioso da Antiguidade, fundado nas relações dos deuses entre si e entre eles e os
homens.
27
Relativa ao instinto gregário (de viver em grupo).
28
Que segue um caminho solitário.

8
intensidade. Produz-se uma percepção mais essencial de outras pessoas, um modo de identificação
novo. (p. 03)

A afetividade ocupa lugar central na dinâmica do grupo de Biodanza, na forma de


empatia, solidariedade e de um continente estruturado 29 , fundamental para que o indivíduo
se sinta protegido e respeitado em suas necessidades.

O PODER DA CARÍCIA

“A tua presença entra pelos sete buracos


da minha cabeça
A tua presença
Pelos olhos, boca, narinas e orelhas
A tua presença
Envolve meu tronco, meus braços e minhas pernas
A tua presença.”
Caetano Veloso

As psicoterapias tiveram sua trajetória marcada pelo confronto com o meio social,
como destaca Hillman (1992): “A revolução de Freud foi uma tentativa de lidar com o
puritanismo europeu do século XIX. Depois Jung e Reich fizeram a mesma coisa”.(p. 204)
Apesar dos ataques sofridos por eles, suas teorias foram absorvidas em campos variados da
expressão cultural, desde o cinema até o marketing. Na área da psicologia resultaram em
inúmeras ramificações de práticas analíticas 30 e neo-reichianas 31 . O meio acadêmico
continua refratário às abordagens chamadas ‘corporais’ e os códigos de psicologia mantêm-
se em alerta quanto às abordagens de contato em psicoterapia. Práticas sempre vistas como
perigosas e ameaçadoras ao limite ético da ação psicológica.
Dentre as distintas formas de vínculo entre terapeuta e cliente, observo variantes
como o distanciamento na Psicanálise Ortodoxa, passando por abordagens ‘pessoa a
pessoa’ como na psicoterapia de orientação rogeriana e chegando em terapias de contato
como na , Rolfing 32 , Biossíntese 33 , dentre outras. O efeito terapêutico do contato tem sido
evidenciado em pesquisas como as de Harlow (apud Mussen et al, 1977) onde foram feitos
29
Manutenção de um vínculo contínuo.
30
Aqui me refiro a autores como Winnicot, Lacan, Dolto, McDougall, Klein, dentre outros, que apesar de
serem analistas tinham sua própia contribuição.
31
Que, tendo como base a teoria reichiana, desenvolveram seu próprio método.
32
Método criado por Ida Rolf, visando à integração estrutural do corpo ao agir no tecido conjuntivo.
33
Método criado por Boadella, trabalha com movimentos como formas ondulantes da respiração.

9
experimentos com macacos que, embora aceitassem serem alimentados por uma mãe
mecânica feita de arame, no momento de medo e necessidade buscavam a proteção e a
nutrição propiciadas pelo contato com a mãe mecânica feita de tecido similar a pêlos. Além
de Harlow, Montagu (1988) destaca a necessidade de que, nos primeiros meses
imediatamente após o nascimento, estabeleça-se contato íntimo corporal entre a mãe e o
bebê, para que sejam satisfeitas as exigências dos sentidos cinestésico 34 e muscular.
Ademais, afirma ainda que, para desenvolver-se bem em todos os níveis, o bebê deve ser
acariciado e aninhado nos braços e deve-se falar com ele carinhosamente. O ser humano
pode sobreviver a outras privações sensoriais extremas, como a visual e a sonora, mas não à
privação sensorial da pele.
Compartilha do mesmo pensamento Spitz (apud Toro, 2002), que observou que
crianças privadas do amor materno, do estímulo afetivo derivado do contato nos seus
primeiros meses de vida, sofrem danos irreversíveis nos níveis motores, afetivos e
intelectuais e no desenvolvimento da linguagem . Tudo isso é corroborado por Eibl-
Eibesfeld (1998), cuja extensa pesquisa etológica revela padrões de comunicação através do
contato, presentes na natureza em diversas espécies e, também nos agrupamentos humanos,
fundamentais para gerar vínculos de cooperação e solidariedade.
Em Biodanza, avançamos do contato35 em direção à carícia 36 – que envolve
diversos níveis de sensibilidade, de compromisso corporal, de qualidade da presença. As
carícias têm como efeito apaziguar as angústias, recuperar a auto-estima e dissolver tensões
crônicas. Esta passagem é feita progressivamente, dada a quantidade de crenças negativas
que se têm em relação ao contato e, além disso, a nossa cultura não logrou perceber e
fomentar o contato como essencial para a saúde. Compartilho da visão de Marcuse (s.d.),
onde Eros e Civilização 37 podem conviver de forma integrada, eliminando a excessiva
carga da ‘mais-repressão’, que são restrições requeridas pela dominação social com o
objetivo de através do empobrecimento da libido, poder direcionar a débil energia restante
para um trabalho mecanizado e alienado. Segundo este padrão de organização social, sem

34
Sentido que permite, ao ser humano, a percepção dos movimentos musculares, peso e posição dos
membros.
35
União de dois ou mais sistemas para permitir o fluxo de informação.
36
Expressão de afeto através do contato corporal e cuja condição essencial é um balanço entre o desejo de dá-
la e o desejo de recebê-la.
37
Título do livro no qual propõe uma reinterpretação da noção freudiana de que instinto e cultura são
inconciliáveis.

10
um controle repressivo intenso, o homem retornaria à barbárie e à desordem cultural, “a
civilização explodiria e reverteria à barbárie pré-histórica”, (Marcuse, s.d., p.142). Estas
crenças têm sido usadas para justificar a impossibilidade de uma sociedade mais amorosa e
humanitária. A ‘mais-repressão’ distingue-se da repressão ‘básica’, que faz parte da
regulação dos instintos necessários à perpetuação da vida e para a ordem cultural. Esta não
impede que se manifeste a afetividade em atos concretos de contato, apenas as regula e
adequa ao lugar e em feedback com o meio circundante.

O PODER DO TRANSE E DA REGRESSÃO

O estilo de vida contemporâneo tem predomínio ergotrópico, caracterizado por hiper-


estimulação perceptiva, excesso de atividades, poucas horas de sono e constante estado de
alerta. Para compensar este desequilíbrio é necessário ativar os mecanismos de reparação
orgânica, renovação celular e descanso, denominado por Toro (2000) de estados
regressivos:
O estado de regressão é um retorno psico-fisiológico à etapa fetal ou perinatal, isto é,
imediatamente anteriores ou posteriores ao nascimento. Durante o estado de regressão o indivíduo
reedita condições psíquicas e biológicas da infância. A regressão pode ter um caráter renovador
integrativo, de reparação e compensação psico-biológica. A regressão integrativa tem um efeito
saudável. Seu efeito anti-stress é aceito cientificamente. (p.03)

Para se atingir tais efeitos, torna-se necessário fazer um trânsito do estado da consciência,
como na explicação do autor:
Transe e regressão são fenômenos que freqüentemente se produzem de forma simultânea. A
palavra transe provém, etimologicamente do término "transir", transitar, transportar-se, passar de um
estado a outro. Seu significado usual é "mudança de estado de consciência". As experiências de “cair
em transe”, “entrar em transe”, se referem a um mecanismo psico-fisiológico no qual a pessoa se
abandona a certas condições externas ou internas para ingressar em um estado de consciência
diferente. Os estados de transe são acompanhados sempre por modificações cenestésicas 38 e
neurovegetativas. (p. 03)

O efeito harmonizador orgânico derivado dos estados de transe e de regressão


possibilita aos participantes de Biodanza a adoção de um estilo de vida mais equilibrado e
profunda vivência de renovação.

O PODER DA EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA

38
Sensibilidade interna que nos informa sobre o estado de nossos órgãos.

11
“Se as portas da percepção se purificassem
cada coisa apareceria ao homem tal como é,
infinita.”
Willian Blake

Vamos abordar agora um dos efeitos mais profundos da Biodanza, com grande
capacidade de gerar transformação no cotidiano dos indivíduos que a alcançam mediante
estados especiais. Seguirei a indicação de Damásio (2000) quando afirma que: “O alicerce
indispensável da consciência é a consciência central, mas sua glória é a consciência
ampliada.” (p.251) A consciência de estar vivo foi uma aquisição fundamental para a nossa
espécie pois nos possibilitou criar o mundo da cultura, mas a consciência ampliada nos
permite ir além, como define Toro (2000) :
O sentimento de íntima vinculação com a natureza e com o próximo é uma experiência
culminante que se tem rara vez na vida. Experimentá-la uma só vez permite iniciar uma mudança na
atitude frente a si mesmo e frente aos demais. O saber com “certeza” que não somos seres isolados,
mas que participamos do movimento unificante do cosmos, basta para deslocar nossa escala de
valores. Mas este saber com certeza não é um saber intelectual; é um saber mais comovedor e
transcendente.
A possibilidade de alcançar um estado de consciência superior, em que cada um possa
liberar-se dos hábitos mentais e emocionais que o torna “desligado”, é escassa para os homens desta
civilização, acossados, aplainados pela estandardização, enfermos pela tensão que devem suportar,
tiranizados pelo mecanicismo.
Sua importância sobrepassa o âmbito da clínica e da investigação psiquiátrica para abarcar o
da antropologia, da pedagogia, da arte e de outros setores da cultura. (p. 07)

Em Neumann (1968), há a narrativa da evolução criativa da consciência humana e


sua autolibertação do inconsciente. Este autor nos revela que a evolução da consciência se
deu por estágios, ao mesmo tempo, coletivos e individuais, assim sendo, o desenvolvimento
ontogenético 39 é uma recapitulação modificada do desenvolvimento filogenético 40 . Saber
que existimos num universo vivo e em perene criação nos projeta em uma dimensão de
expansão de consciência, de religare 41 . Nestes estados especiais reencontramos nosso

39
Relativo ao desenvolvimento individual
40
Relativo à historia da espécie
41
Religação, donde derivou a palavra religião.

12
antigo caminho de acesso ao sagrado, como diz Eliade (1957): “O cosmos dessacralizado é
um acontecimento recente na história do espírito humano.” (p. 19)
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse artigo discorri sobre os sete poderes de transformação de Biodanza


com o objetivo de abrir caminhos para responder à pergunta inicial sobre porque a
Biodanza funciona e atua de forma integral nos seus praticantes. Os níveis orgânicos,
afetivos, cognitivos e existenciais são ativados de forma integradora porque são utilizados
recursos teóricos e metodológicos contemporâneos de alta eficácia. Também espero
contribuir para que se tenha maior clareza a respeito do alcance desse método. Tanto para
os alunos conhecerem mais sobre o efeito dessa prática, como para estimular os
facilitadores a buscar maior domínio desses recursos. Isto irá possibilitar ampliar o espaço
de atuação, utilizando melhor a riqueza de recursos acumulados ao longo de mais de
quarenta anos de pesquisa feita por seu autor, Rolando Toro e colaboradores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENENZON, Rolando O. 1985. Manual de Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros.

BION, W. R. 1970. Experiência com grupos: Os fundamentos da psicoterapia de


grupo. Rio de Janeiro: Imago.

BOHM, David. 1998. A Totalidade e a Ordem Implicada: Uma nova percepção da


realidade. São Paulo: Cultrix.

BORNHEIM, Gerd A. 1993. (org) Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix.

BRANDÃO, Junito S. 1996. Mitologia Grega (vol. II). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.

BUBER, Martin. 1979. Eu e Tu. 2. ed. rev. São Paulo: Cortez e Moraes.

CUNHA, Maria Helena L. 1998. Espaço Real Espaço Imaginário. Rio de Janeiro: UAPÊ.

DAMÁSIO, Antônio. 1999. O Mistério da Consciência. São Paulo: Companhia das


Letras.

DE DUVE, Christian. 1997. Poeira Vital: A vida como Imperativo Cósmico. Rio de
Janeiro: Campus.

13
DELEUZE, Gilles. (s.d.) Nietzsche e a Filosofia. Porto, Portugal: RÉS.

DURAND, Gilbert. 1997. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo:


Martins Fontes.

ELIADE, Mircea. 1957. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo:
Martins fontes.

EIBL – EIBESFELDT, Irenäus. 1998. Amor e Ódio. Lisboa, Portugal: Bertrand Editora.

GARAUDY, Roger. 1980. Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

GÓIS, Cezar Wagner L. 1995. Vivência: Caminho á identidade. Ceará: Viver.

GRODDECK, Georg. 1992. Estudos Psicanalíticos sobre Psicossomática. São Paulo:


Perspectiva.

GRODDECK, Georg. 1994. O homem e seu isso. São Paulo: Perspectiva.

KIRK, G. S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELD, M. 1994. Os Filósofos Pré-Socráticos. Lisboa,


Portugal : Fundação Calouste Gulbenkian.

LÉVINAS, Emmanuel. 2000. Totalidade e infinito. Lisboa, Portugal: Edições 70.

LEWIS, Martha; Howard R. 1993. Fenômenos Psicossomáticos. Rio de Janeiro: José


Olympio.

MARCUSE, Herbert. (s.d.) Eros e civilização: Uma interpretação do pensamento de


Freud. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan.

MARGULIS, Lynn. 2001. O Planeta Simbiótico: Uma nova perspectiva da evolução.


Rio de Janeiro: Rocco.

MERLEAU – PONTY, Maurice. 2000. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes.

MERLEAU – PONTY, Maurice. 1996. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins


Fontes.

MERLEAU – PONTY, Maurice. 1990. O Primado da Percepção e suas Conseqüências


Filosóficas. Campinas, SP: Papirus.

MONTAGU, Ashley. 1988. Tocar: O Significado da Pele. São Paulo: Summus.

MUSSEN; CONGER; KANGA. 1977. Desenvolvimento e Personalidade da Criança. 4ª


ed. São Paulo: Harbra.

NEUMANN, Erich. 1968. História da Origem da Consciência. São Paulo: Cultrix.

14
NIETZSCHE, Friedrich. (s.d.) O Caso Wagner. Porto, Portugal: RÉS.

PAGÈS, Max. 1982. A Vida Afetiva dos Grupos: Esboço de uma teoria da relação
humana. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.

PETERS, F. E. (s.d.) Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico. Lisboa, Portugal:


Fundação Calouste Gulbenkian.

TORO, Rolando. 2000. Apostilas do Curso de Formação. Chile: IBF.

TORO, Rolando. 2002. Biodanza. São Paulo: Olavo Brás.

TORO, Rolando. 1991. Coletânea de textos de Biodanza. Ceará: Alab.

15

Você também pode gostar