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ESCOLA DE BIODANZA “SISTEMA ROLANDO TORO” DE BELO

HORIZONTE

A VOZ PRIMORDIAL: Retorno à Origem

Uma experiência em grupo de Biodanza para mulheres

DANIELA COTA V. DE CARVALHO

Belo Horizonte

2011

1
ESCOLA DE BIODANZA SISTEMA ROLANDO TORO DE BELO
HORIZONTE
Diretora
Liliana Viotti

A VOZ PRIMORDIAL: Retorno à origem


Uma experiência em grupo de Biodanza para mulheres

Monografia apresentada ao Curso de Formação


Docente em Biodanza da Escola de Biodanza
“Sistema Rolando Toro” de Belo Horizonte/MG,
como requisito parcial à obtenção do título de
Professor de Biodanza.

DANIELA COTA V. DE CARVALHO

Orientadora
Jozânia Miguel Chaves

Belo Horizonte

2011

2
3
Agradecimentos

À Liliana Viotti, quando olhou para mim em minha primeira


vivência de Minotauro e enxergou meu “feminino profundo”. A todo
carinho e disponibilidade com que me acompanhou e a atenção amorosa
com que conduz a escola de formação de Biodanza.

À Jozânia, “Jô”, por sua atenção, dedicação, respeito,


profissionalismo e competência na orientação desta monografia. À mulher
guerreira que ela é, a minha admiração.

À Veruska Gontijo pela amizade, pelo exemplo da mulher selvagem


que é, “loba” companheira. Por me acompanhar por todos estes anos como
minha facilitadora de Biodanza, auxiliando amorosamente no meu processo
de co-criação de mim mesma. Minha profunda gratidão pela conexão de
nossos corações.

À Cynthia Diniz e Marcos Bortolus, companheiros fiéis do grupo


regular de Biodanza e da minha vida durante todos estes anos. Pelos
aprendizados, pelo compartilhar maravilhoso de tantas vivências profundas,
alegrias, momentos de êxtase, momentos difíceis, rompimentos, gritos
“primordiais”, renascimentos. Meus irmãos de alma!

À todos os amigos da formação da Escola de Biodanza, Professores,


Didatas, por todos os momentos maravilhosos compartilhados.

Aos meus pais, Maurício e Cida, por todo amor, carinho, paciência e
apoio em meus projetos.

À minha irmã Juliana e ao meu irmão Rafael pelo apoio, pelos


aprendizados e crescimento na convivência, pelo amor.

4
A todas as mulheres que participaram dos grupos e oficinas que
conduzi. Pelas trocas, pelos aprendizados, pelo compartilhar de suas vidas.

À Rolando Toro e a criação maravilhosa e amorosa desta dança da


vida.

À VIDA pela oportunidade única, singular, maravilhosa de celebrá-


la, de descobrir-me, de SER!

Enfim são muitas as pessoas e situações as quais sou profundamente


grata!

Sinto-me honrada pela oportunidade de vivenciar tantos momentos


intensos!

Daniela Cota Carvalho


Novembro de 2011

5
“Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber.
Casa cheia de coragem, vida, toda afeto que há em meu ser,
te quero ver, te quero Ser, alma”. (Milton Nascimento)

6
“Existe uma vitalidade, uma força vital, uma energia, uma
vivacidade que é traduzida em ação por seu intermédio, e como
em todos os tempos só existiu uma pessoa como você, essa
expressão é única. Se você a bloquear, ela jamais voltará a se
manifestar por intermédio de qualquer outra pessoa e se
perderá”.

(Martha Graham).

7
Dedico esta monografia à VIDA!

8
SUMÁRIO

Considerações Pessoais............................................................................10

Apresentação ...........................................................................................12
Introdução ................................................................................................13
Capítulo 1: Olhares e Conceitos sobre Instinto........................................16
Capítulo 2: Vias de Acesso à Voz Primordial..........................................29
Capítulo 3: A Importância da Conexão com a Voz Primordial...............41
Capítulo 4: Do Instinto à Transcendência.................................................45
Capítulo 5: Uma experiência em grupo de mulheres................................51
Capítulo 6: Conclusão.............................................................................. 65
Referências Bibliográficas....................................................................... 69

9
Considerações pessoais

A escolha deste tema tem profunda coerência com minha história


pessoal, com minha trajetória na Biodanza e com um desejo que me instiga
a pesquisar e descobrir mais profundamente formas de despertar a “voz
primordial” nas pessoas que passam e passarão pelo meu caminho como
facilitadora de Biodanza.

A busca por minha verdadeira essência, por minha identidade


profunda se faz como uma constante em minha vida. Visito “este lugar”
dentro de mim, ao qual chamo de voz primordial, em momentos que
vivencio profundas transformações em minha vida, onde preciso deixar
“morrer” velhas “capas” para chegar mais perto de quem realmente sou.

Este processo é vivo, dinâmico e se refaz todas as vezes que me


encontro absorvida nas “relações sociais” e nessa nossa cultura1. Nestes
momentos, me sinto desconectada desta voz que chama pelo meu nome,
que “grita” para que eu retorne à minha casa interna, à minha alma, à
minha essência, a quem sou de fato.

Instigada, inquieta, vivenciando muitas des-cobertas e por fim num


estado de deslumbramento por tantos instantes vivenciados, como os que
relato acima, fui, a partir das vivências de Biodanza e do Projeto
Minotauro- lugares fecundos das minhas pesquisas vivenciadas-
desenvolvendo esta monografia.

1
Cultura que dita comportamentos e formas de ser.

10
A VOZ PRIMORDIAL : Retorno à origem

Uma experiência em grupo de mulheres

Sonhei com uma onça que estava presa e era alimentada por
outros.

A onça estava enfraquecida

Até que...

Ela sai e vai caçar por si mesma

Vai retomar sua natureza e energia próprias.

(um sonho que tive neste ano de 2011, um pouco antes de começar a
escrever a monografia).

11
Apresentação

A voz primordial, título desta monografia, é o conceito investigado e


desenvolvido por mim neste trabalho. É uma pesquisa do que vem a ser
essa “voz visceral e instintiva” que há dentro de cada um de nós e que nos
move em direção àquilo que preserva a VIDA em seu sentido mais íntimo.
Dessa forma, o objetivo geral consiste em esclarecer o conceito de voz
primordial e resgatar sua importância enquanto fonte preservadora da vida.

Ao buscar a compreensão do que seja a voz primordial, pude


perceber suas inter-relações com outros conceitos apresentados por
diversos autores. Dentre eles, destaco neste trabalho: Rolando Toro,
Clarissa Pinkola Estés, Carl Jung e SanClair Lemos.

Pude observar ainda o quanto a experiência de vivenciar este “estado


de conexão” com a chamada “voz primordial” nos aproxima da nossa
natureza mais íntima e da natureza que nos cerca, facilitando assim o
contato com nosso ser mais original, com a nossa essência.

Nesse sentido, ressalto na Introdução desta monografia a


importância em se resgatar a sabedoria instintiva dos povos primitivos
como forma de nos aproximarmos da “voz primordial” que nos habita.

No primeiro capítulo, busco “destrinchar” o conceito de voz


primordial em sua inter relação com o conceito de instinto, proposto por
Rolando Toro. Apresento também um paralelo com o conceito do
arquétipo da “mulher selvagem”, proposto pela autora Clarissa Pinkola
Estés (1999) em seu livro: Mulheres que correm com os lobos.

12
No segundo capítulo apresento algumas vias de acesso, ou seja,
caminhos terapêuticos que podem nos auxiliar a reconectar com esta força
vital em nós.

No terceiro capítulo, investigo a importância em se conectar com


esta “fonte original”, isto é, em resgatar a vivência da força instintiva em
nós.

No quarto capítulo - do instinto à transcendência, destaco a


importância do aspecto instintivo integrar-se à dimensão afetiva humana,
como caminho para a sensação de plenitude e para a vivência de
transcendência proposta pela Biodanza, a ser explicitada através das
contribuições de SanClair Lemos2 (1996), em sua obra: A Vivência de
Transcendência.

Finalmente, no quinto capítulo, compartilho algumas experiências


como facilitadora em grupo de Biodanza para mulheres.

INTRODUÇÃO : CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE


INSTINTO

“A parte instintiva do ser humano foi fortemente reprimida através da


história pelas religiões e ideologias. Não obstante, os instintos tem a
função de conservar a vida e permitir o seu desenvolvimento”. (Rolando
Toro).

Em minhas pesquisas pude observar que a voz primordial encontra


ressonância no conceito de instinto, proposto por Rolando Toro. Este

2
SanClair Lemos é Facilitador Titular-Didata de Biodanza e Mestre em Educação Física.

13
impulso que, segundo Toro, nos leva a conservar a vida e que ao longo do
tempo vem sendo represado pelas civilizações. Algo que é essencialmente
natural, tornou-se extremamente distante para o homem contemporâneo.

O instinto é a inteligência que manifesta a sabedoria intrínseca da


vida, através da qual, uma planta procura a luz do sol para crescer. É pela
força do instinto que somos movidos a buscar nossos caminhos
“essenciais”.

Desde as civilizações mais primitivas, o homem dança em roda,


canta, emite seus sons, ritualiza com a natureza, com seus “animais de
poder”, como diziam os antigos índios norte americanos (Michael Harner,
1980).

O movimento, o som, o instinto são expressões originais anteriores à


própria cultura, ao aprendizado racional. Expressões que possibilitaram
uma ligação com a terra, com o vento, com o ar, com o fogo, com as forças
da natureza de uma forma em geral.

Havia uma sabedoria instintiva3 imensa nesses povos. Ao se


vincularem com a natureza ao seu redor, estavam se vinculando com a
própria natureza interna4, e não necessariamente faziam isto como algo
propositado ou consciente. Intuitivamente, percebiam que essa ligação com
as forças naturais geravam energia, vitalidade, sabedoria, força; levando-os
para mais próximos da natureza de si mesmo.

3
Termo utilizado por Sanclair Lemos- maratona de Transcendência/2008.
4
O conceito de natureza abordado refere-se ao ambiente ecológico e o de natureza íntima refere-se à
dimensão interna mais essencial do ser humano. Uma pode ser extensão da outra. “Cada um de nós é sua
própria Natureza, seu próprio meio ecológico. Vivemos em nós mesmos; o meio em que vivemos
primariamente é o nosso próprio ser”. (SanClair, 1996).

14
Identificados com os elementos da natureza que os cercavam, não
existia a noção de separatividade homem-natureza, por conseqüência não
havia exploração ou a ilusão contemporânea da supremacia do homem
sobre todas as coisas.

O cineasta James Cameron (2009), em seu filme AVATAR5, retrata


de forma interessante o que essa sobreposição do civilizado sobre a natureza,
gerou em termos de domínio, invasão e destruição. Por outro lado, o filme
mostra a beleza, a sabedoria instintiva e a capacidade de reconstrução dos
povos nativos, ditos “primitivos”.

Esta exploração e devastação da natureza (no sentido de ambiente


ecológico) correspondem, em um nível mais interno, a uma devastação da
nossa própria natureza instintiva. Não estamos distantes apenas das matas
que foram substituídas por prédios; estamos distantes da força que faz
“parir” um filho; do aconchego de um “ninho” afetivo; da sensação de auto
preservação da própria vida.

Esta “fonte original”, a qual o homem moderno encontra-se tão


distante, chamada por alguns autores de instinto, de força visceral, mulher
selvagem, núcleo essencial correspondem à idéia da voz primordial que
vamos investigar ao longo deste trabalho.

5
Avatar é um filme americano de ficção científica de 2009, escrito e dirigido por James Cameron. O
filme, tem seu enredo localizado no ano 2154 e é baseado em um conflito em Pandora, uma das luas
de Polifemo, um dos três planetas gasosos fictícios que orbitam o sistema Alpha Centauri. Em Pandora,
os colonizadores humanos e os Na'vi, nativos humanóides, entram em guerra pelos recursos do planeta e a
continuação da existência da espécie nativa. (fonte: Wikipédia. Acessado em 12/10/11)

15
CAPÍTULO UM: “OLHARES” E CONCEITOS SOBRE
INSTINTO

1.1. A voz primordial na obra de Rolando Toro e Clarissa Pinkola


Estés

Além do conceito de instinto proposto por Toro, observo também


uma ressonância entre a voz primordial e o arquétipo da mulher selvagem,
apresentado por Clarissa Pinkola Estés (1999).

De acordo com as observações de Rolando Toro e Clarissa Pinkola


(1999), pode-se dizer, de maneira metafórica, que a sabedoria instintiva nos
faz “farejar” e distinguir entre caminhos que geram vida e aqueles outros
que não geram vida.

Clarissa Pinkola (1999, p.26) comenta sobre a força saudável do


instinto manifestada na mulher, comparando-a ao lobo:

“ uma mulher saudável assemelha-se muito a um lobo; robusta, plena, com


grande força vital, que dá a vida, que tem consciência do seu território,
engenhosa, leal, que gosta de perambular.”

Rolando Toro nos apresenta um conceito de instinto destacando a sua


função vital:

“O instinto é uma conduta inata hereditária que não requer aprendizagem


e que se desencadeia frente a estímulos específicos. Sua finalidade
biológica é a adaptação ao meio para a sobrevivência da espécie.”

Clarissa Pinkola (1999, p. 27) traz a noção de instintivo em seu


conceito de mulher selvagem, esclarecendo-nos:

“ o que é a mulher selvagem? Ela é a origem do feminino. Ela é tudo o que


for instintivo, tanto do mundo visível quanto do oculto- ela é a base”.

16
Poeticamente a autora, semelhante a Rolando Toro, apresenta a idéia
do instinto como algo inato e herdado:

“Cada uma de nós recebe uma célula refulgente que contém todos
os instintos e conhecimentos necessários para a nossa vida.” (PINKOLA,
1999, p. 27).

Esta autora, nos esclarece, a partir de uma visão mais psicológica, da


beleza e da funcionalidade dos instintos:

“Pois foi aí que o conceito do arquétipo da mulher selvagem se


concretizou para mim: no estudo dos lobos”.

“os lobos saudáveis e as mulheres saudáveis têm certas características


psíquicas em comum: percepção aguçada, espírito brincalhão (...) são
gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força.
São profundamente intuitivos (...) tem grande preocupação para com seus
filhotes, seu parceiro e sua matilha (...) tem uma determinação feroz e
extrema coragem”. (PINKOLA, 1999, p. 26).

É possível observar que para estes dois autores, o instinto é fonte de


preservação da própria vida, é sabedoria que permite a sobrevivência da
espécie, presentes em todos nós.

1.2: Instinto: Fonte conservadora da Vida

Em suas observações sobre instinto, Rolando Toro faz referência a


Freud, o qual concebe o instinto como uma “força constante” provinda do
interior do corpo:

“O instinto nunca atua como uma fonte impulsiva momentânea, mas


sempre como uma força constante. Não provinda do mundo exterior, mas
do interior do corpo, é inútil fugir dele”.

17
Rolando Toro cita ainda, diversos autores ao tratar sobre os instintos,
discorrendo sobre antigas discordâncias entre linhas de pesquisa que
defendem os instintos como algo inato, e do outro, nas chamadas linhas
culturalistas- que defendem a influência da cultura sob o comportamento
humano, desconsiderando a influência do instinto sobre o mesmo.

Nesse contexto, Rolando Toro resgata o valor essencial dos instintos


reafirmando sua importância biológica como fonte conservadora da vida.
Segundo ele, esta visão foi negada por várias correntes dentro da psicologia
que ainda apresentam os fatores culturais como uma força preponderante
sobre o comportamento humano.

Quando Toro afirma que os instintos são inatos, isto é, que as


condutas instintivas se realizam sem aprendizagem, mas se reforçam
através da experiência, ele demonstra que considera o valor dos instintos
em nossas vidas, mas vai muito mais além disso, integrando então a
experiência, através da vivência6. Essa integração é essencial no sentido de
resgatar nossa saúde mais visceralmente.

Nessa concepção, Toro cita os etólogos Vitus - Droscher, Eibl


Eibesfeldt e Konrad Lorenz7- que defendem a influência fundamental dos
instintos sobre o comportamento humano, ainda que a aprendizagem e a
experiência possam modificar estes impulsos de diversas maneiras.

1.3: Instintos e outras dimensões humanas: para uma visão sistêmica


do ser humano.

6
Vivência é "a experiência vivida com grande intensidade por um indivíduo em um lapso de
tempo aqui - agora (gênese atual) abarcando as funções emocionais, cenestésicas e orgânicas. (Rolando
Toro, 1968- Apostila Vivência- Curso de Formação em Biodanza).

7
Apostila: Aspectos Psicológicos- Curso de Formação em Biodanza, p. 6

18
Reconhecer a base instintiva da vida como fundamental, assim como
também incluir o valor das emoções, sentimentos, pensamentos,
considerando a escala evolutiva humana, nos leva para uma visão sistêmica
e integrada do ser humano.

Logo abaixo apresento a Escala de Desenvolvimento do Instinto à


Emoção proposta por Rolando Toro:

De acordo com Toro, segue a escala em formato esquemático:

1- Instintos: “São os impulsos inatos que, ao pôr-se em contato com os


estímulos exteriores, geram as protovivências do recém nascido.”

2- Protovivências: “As protovivências, mais tarde, evoluem e dão


origem a vivências altamente diferenciadas. As vivências são estados
cenestésicos intensos que têm a característica do aqui agora, mas que
influem nos processos de autorregulação”.

3- Emoções: “são impulsos de origem instintiva que promovem ações


de aproximação frente à circunstâncias agradáveis e rechaço e fuga
frente as desagradáveis. As emoções possuem expressão e padrões
motores diferenciados em dimensões neurovegetativas, endócrinas e
imunológicas.”

4- Sentimentos: “estão constituídos por conjuntos complexos de


emoções que tem duração no tempo, componentes simbólicos e
elementos de consciência”.

“Em ordem de complexidade, o desenvolvimento instintivo tem


evolução até a consciência”. (Rolando Toro).

19
Na busca por aprofundar um pouco mais sobre o que nos apresenta
Rolando Toro sobre o instinto e sua inter-relação com as emoções, com a
razão e principalmente com nossa maneira de “estar-no-mundo” e de se
relacionar entre nós mesmos, seres humanos, encontrei o neurocientista
Paul MacLean (1973). Em seus estudos sobre a evolução das espécies, ele
observa que tal como uma árvore que ao longo dos tempos, acrescenta
camada sobre camada de córtex, nosso cérebro segue também assim:
“agregando” camadas que vão, desde o cérebro típicas de um réptil,
passando por uma camada, com características de um mamífero, até
finalmente os de um ser humano. Sua criação foi denominada “cérebro
triuno”.

Confira na figura8 abaixo:

De acordo com MacLean (1973), o cérebro do homo-sapiens-sapiens


teria evoluído neste caminho.

Cada cérebro9 tem sua estrutura específica:

8
Fonte Imagem: http://guerreirodaluzblog.blogspot.com/2009/05/teoria-do-cerebro-triunico.html.
Visitado em 20/10/11.
9
Fonte: site:www.cienciaweb.com.br. Visitado em 15/11/11.

20
A primeira estrutura arcaica - o cérebro nodal- originalmente
chamado de reptílico é responsável por funções básicas como controles
autonômicos do coração, respiração, digestão, assim como pelas funções do
cortejar, do acasalamento, da busca de abrigos, e outros sem os quais não
haveria a sobrevivência do organismo. É a parte responsável pelas ações
rápidas adequada para decisões vitais como ataque ou fuga.

O cérebro reptílico nos situa no presente, sem passado e sem futuro.


Neste estado de evolução predomina a impulsividade e a ação.

As funções apresentadas para este cérebro “reptiliano” correspondem


aos instintos básicos enumerados por Rolando Toro; dentre eles:

“alimentar; maternal; sexual; sedução, enfeite, exibição; guarida;


migratório; luta-fuga; exploratório, curiosidade; gregário; repouso”.

A segunda parte deste modelo do cérebro triuno é o mesencéfalo ou


sistema límbico, comum a todos os mamíferos. Este é responsável pela
proteção, emoções e sentimentos. É onde se encontra o sistema límbico-
hipotalâmico, estimulado pelas vivências de Biodanza. Este sistema é capaz
de aprender e transformar as emoções em memória, isto é, o presente inclui
também o passado, por isso a capacidade de aprendizagem. Se esta
memória se ativa, podemos nos emocionar. Para Paul MacLean, esta
capacidade pode favorecer a qualidade de vida, no que se refere às relações
humanas.
O sistema límbico ou mesencéfalo é o que nos permite sentir.
Finalmente, MacLean (1973) defende a formação de um terceiro
cérebro, o neocórtex, ou telencéfalo que para além dos sentimentos,
coordena o processo racional de entendimento e análise das coisas. É
considerado um cérebro mais evoluído que segundo os estudiosos do

21
Instituto Tecnológico da Califórnia, Sperry, Gazzaniga y Bogen10, está
dividido em dois hemisférios (esquerdo e direito) com funções específicas.
O hemisfério esquerdo é responsável pelos processos de raciocínio
lógico, função de análise, síntese e em geral sua maneira de decifrar as
coisas se dá por partes e não por uma visão do todo. Já no hemisfério
direito se dão os processos associativos, imaginativos e criativos. A visão é
globalizada, tendendo a ver as coisas como um todo único.
No neocórtex, alem de incluir o passado e o presente, inclui também
o futuro, trazendo assim uma capacidade de planejar, antecipar e visualizar.

O cérebro racional é o que diferencia o homem/primata dos demais


animais. Segundo Paul MacLean é apenas pela presença do neocórtex que
o homem consegue desenvolver o pensamento abstrato e tem capacidade de
gerar invenções.

É interessante destacar que estes sistemas não funcionam


independentes uns dos outros, mas estão interligados.

Em seu esquema, “MacLean (1973) afirma que os três cérebros


operam como três computadores biológicos interligados, cada um
executando sua própria inteligência, sua própria subjetividade, seu próprio
senso de tempo e espaço, e sua própria memória” (Larocca11 APUD
MacLean, 1973).

Algumas tradições esotéricas espirituais também consideram a


existência de três planos de consciência e a existência de três cérebros
diferentes. Dentre essas tradições, está George Gurdjieff, 12 que já afirmava

10
El Cerebro Triuno de Paul MacLean, Daniel Pastor in http://es.scribd.com/doc/4742292/El-Cerebro-
Triuno-de-Paul-McLean, acesso em 27 de novembro de 2011.
11
Fonte: site: http://www.monografias.com/trabajos56/comprender-cerebro/comprender-cerebro2.shtml).
Visitado em 20/11/11.

12
Georgii Ivanovich Gurdzhiev, mestre espiritual greco-armênio. Ensinou a filosofia do
autoconhecimento profundo, através da lembrança de si. (1866-1949).

22
sobre “o homem e os seus três cérebros”: um para o espírito, outro para a
alma e ainda outro para o corpo.13

Essas teorias nos auxiliam a ter um panorama geral da importância


de todas essas instâncias (instinto, emoção e razão) cada uma com suas
características específicas e ao mesmo tempo, integradas entre si.

No entanto, atualmente, o que presenciamos é uma ênfase


exacerbada ao néocortex, ou seja, aos aspectos racionais, desconsiderando
a importância das outras instâncias.

Em vários destes estudos que discorrem sobre os três cérebros, o


néocortex é destacado em sua importância evolutiva, o que acaba,
reduzindo, mesmo que nas entrelinhas, o valor dos outros “cérebros”
correspondentes ao instintivo e ao afetivo:
“o néocortex distingue os humanos dos outros animais dando ao ser
humano o estatuto de ser superior.” (LANDINI, 1988).

É válido ressaltar o conceito de evolução que estamos considerando,


associado à transformação e não necessariamente, a algo que era inferior e
tornou-se superior:

“o conceito de evolução não traz, intrinsecamente, nenhum valor de


ordenação hierárquica. Quando se fala em evolução não fica
caracterizado um movimento de um estado inferior para um estado
superior ou melhor. A evolução pode caminhar do melhor para o pior ou
em qualquer outra direção; a evolução pode levar a desintegração. A
evolução de uma determinada espécie, pode conduzi-la à sua extinção. O
processo de evolução não está relacionado diretamente com a
integração”( LEMOS, 1996, p. 28).

13
Uma educação para evolução pessoal e social, in:
http://www.claudionaranjo.net/pdf_files/education/education_ch_4_portuguese.pdf, acesso em 25/11/11.

23
Essas análises e afirmações nos remetem ao olhar cultural
contemporâneo supervalorativo para a cognição, em detrimento da própria
afetividade e também dos instintos.

Todas as instâncias são necessárias, são da nossa natureza e estão


interligadas. No entanto, se uma delas é mais valorizada que a outra, temos
um desequilíbrio, saímos da integração.

Para mim, toda essa extrema repressão ao “cérebro primitivo” gera


alguns efeitos colaterais que fazem, muitas vezes, os instintos serem vistos
e analisados em seu sentido mais pejorativo.

1.4: “Efeitos Colaterais” da repressão aos instintos

Discorrendo um pouco mais sobre a repressão aos instintos,


observamos que, atualmente esta forma de desvalorizar o instinto em
detrimento do que é “civilizado”, seja em nível pessoal ou em nível
ecológico, social, trouxe sérias conseqüências e diversos efeitos
“colaterais”. Efeitos estes manifestados não só na degradação da natureza,
nos desastres ecológicos, mas também na natureza intrínseca do próprio
homem, na sua saúde mental, afetiva e relacional como afirma Rolando
Toro.

Assistimos às críticas religiosas, culturais sobre os efeitos do


instinto, desqualificando-o, colocando-o como algo ameaçador, a ser
controlado. Na minha opinião, quanto maior a repressão, mais a visão sobre
o que é instintivo vai sendo deturpada, pois na medida em que se represa
este impulso inato, quando este vem a se expressar, pode vir de maneiras

24
exacerbadas, como por exemplo, nas manifestações de violência . Então, o
que se vê e “julga” são os efeitos “colaterais” do próprio instinto reprimido.

Tudo que é obstruído sai de maneiras não saudáveis, e pode


perverter-se: “a perversão do instinto alimentar se manifesta no aumento
da obesidade e anorexia. O instinto sexual está condicionado pelo
puritanismo, pelo medo. A relação entre homens e mulheres é cada vez
mais dramática. O instinto de ninho, de caverna, de lar, foi perdido pela
intromissão da TV nos lares e pela falta de motivação para o aconchego do
lar...” (Rolando Toro, p. 10).

Clarissa Pinkola (1999) comenta que a repressão dos instintos na


mulher gera, o que ela denominou: “hambre del alma” e que a mulher,
passada por muito tempo em privação daquilo que realmente a alimenta,
pode apresentar comportamentos excessivos na tentativa de suprir este
“tempo de privação”:

“hambre del alma também implica a privação dos atributos da alma: (...)
dos dons instintivos. Se um mulher tem de ser bem educada e só senta com
os joelhos bem juntinhos; se ela foi criada de modo a baixar a cabeça
diante da linguagem grosseira; se nunca lhe foi permitido beber nada...
(...) quando ela se liberar, cuidado!” (PINKOLA, 1999, p. 289).

“a aniquilição através de excessos, ou seja, os comportamentos


exagerados, é a reação da mulher que está faminta por uma vida que tenha
significado e faça sentido para ela”. (PINKOLA, 1999,p. 290)

Rolando Toro aponta que as repressões dos instintos não são somente
em nível das normas morais ou das estruturas político-sociais, mas de toda
uma cultura dissociativa: “o instinto alimentar é destruído pelos hábitos de

25
alimentação criados pela publicidade, pelo consumo de alimentos
adulterados; o instinto de ninho é destruído pela construção de cidades....”

E continua:

“a idéia de que os instintos são perigosos provém da tendência humana,


manifesta nas religiões orientais e ocidentais, de regular o comportamento
espontâneo e amortecer a vitalidade para dar acesso ao crescimento
espiritual”. (TORO, p.10).

Ele ainda reforça a idéia de que não há possibilidade de crescimento


espiritual sem considerar a base instintiva da vida. Ainda há um medo
generalizado com relação à possibilidade de vivência, de experienciar a
liberação dos instintos e mais do que isso, uma atitude de violência
repressiva diante de qualquer manifestação do instinto. (TORO, p. 6).

Essas atitudes civilizatórias acabam por gerar “efeitos colaterais” nas


manifestações saudáveis dos instintos. Com relação a estes efeitos, Toro
comenta que a aprendizagem pode permitir a manifestação dos instintos
ou:

 OBSTRUIR- impedir suas manifestações.


 PERVERTER- desvio do sentido biológico do instinto.
 DESORGANIZAR- dissociação caótica dos instintos, gerando
patologias sociais e individuais.

Ao resgatar as funções originárias dos instintos, como afirma o


criador da Biodanza, o sentido biológico do instinto, principalmente, o de
preservação da vida, percebemos o quanto estamos distantes dessa
vivência, em nossa sociedade “civilizada”.

26
1.5. A sabedoria dos instintos: sua bipolaridade

Rolando Toro ressalta a inteligência presente nos instintos, a


sabedoria que há em seu funcionamento. Sabedoria esta, considerada pela
cultura como algo irracional.

Para Toro (p.8), a “função instintiva revela uma forma de


inteligência cósmica que possui sua própria lógica.”

Assim como parte da sua sabedoria natural, os instintos possuem


aspectos complementares, o que permite sua auto regulação e afugenta o
medo cultural de liberarmos e vivenciarmos essa força interna.

Clarissa Pinkola (1999, p.26) também destaca a inteligência


instintiva, ressaltando a “integridade” que o acesso à natureza selvagem nos
possibilita:

“Aproximar-se da natureza instintiva não significa desestruturar-se,


mudar tudo da esquerda para a direita, do preto para o branco, passar o
oeste para o leste, agir como louca ou descontrolada. Não significa perder
as socializações básicas ou tornar-se menos humana. Significa
extremamente o oposto. A natureza selvagem possui uma vasta
integridade”.

Sobre os aspectos complementares dos instintos e sua bipolaridade,


Rolando Toro nos relembra a beleza e a perfeição da natureza que se
vivenciada em sua forma plena, nos oferece recursos para uma vida
saudável, harmônica:

27
Aspectos Instintivos Bipolares e Complementares14

Migratório Regressivo
Territorial-guarida, ninho Exploratório
Curiosidade, busca de estímulos Necessidade de regularidades
novos
Sedução, exibicionismo Ocultamento, mimetismo
(camaleão).
Fome Saciedade
Luta Fuga
Gregário Isolamento
Repouso Atividade

Afirmo que é justamente a auto regulação dessas polaridades que


permitem a vivência saudável dos instintos.

Sobre esta lógica da auto regulação dos instintos, Rolando Toro


comenta de forma muito interessante:

“ A força do impulso instintivo diminui na medida em que se satisfaz. A


auto-regulação dos instintos tem base orgânica. Por esta razão não existe
perigo na liberação dos instintos”. (Toro, p. 8).

14
Apostila Aspectos Psicológicos de Biodanza, p. 8.

28
CAPÍTULO DOIS: VIAS DE ACESSO À VOZ
PRIMORDIAL

E o que facilita acessar esta fonte original dentro de nós? Quais


caminhos?

Dentro do sistema Biodanza, quais são as vias de acesso que


favorecem a conexão com essa força instintiva?

Destaco então, algumas possibilidades que se constituem como


pontes de conexão à voz primordial:

 A Dança: corpo, movimento e vivência.


 Os Animais Interiores
 O Projeto Minotauro

2.1. A Dança

A voz primordial nos remete a uma sabedoria visceral. Ela pode até ser
“traduzida” e explicada posteriormente a nível cognitivo, porém o acesso a
ela não passa pelo racional, mas sim pelo corpo, pela sensação, pelo
movimento, pelo ser em estado de vivência.

A vivência nos mobiliza para o aqui agora, sede de onde tudo


acontece. Como afirma Rolando Toro, é no agora que temos a possibilidade
de “ser nós mesmos”:

“As vivências são uma porta, através da qual, penetramos no puro


espaço do ser, onde o tempo deixa de existir e onde somos nós mesmos
aqui e agora para sempre” (TORO, p. 4).

29
Em Biodanza, a vivência é induzida pela dança/movimento, pela
música e pelo encontro. Neste momento, os estímulos ao córtex são
praticamente suspensos e as funções límbico-hipotalâmicas que
correspondem às emoções, como já abordamos no capítulo anterior, são
super estimuladas. Podemos então afirmar que a metodologia vivencial da
Biodanza nos oferece caminhos e pontes de acesso a este lugar intrínseco a
nós mesmos.

O corpo se constitui como facilitador deste acesso ao mais visceral.


Na medida em que, ao movimentá-lo, é possível uma redução da atividade
cortical e uma aproximação das sensações que nos trazem para mais perto
de quem somos realmente. Ao movimentá-lo, ao ouvi-lo, permitimos,
mesmo que por instantes, sair do tamanho controle da mente e adentrar um
outro lugar de “verdade” dentro de nós. O corpo “não mente”, ele sinaliza.

O movimento facilita o acesso à expressão, e nos convida à


espontaneidade que permite sair de lugares já conhecidos para experienciar
novas maneiras de expressão de si mesmo.

“ os movimentos do indivíduo são plenos de sentido interno,


expressam um estado vivencial, mesmo quando apresentam tensões,
descoordenações ou dissociações” (LEMOS,1996, p. 27).”

Como forma de exemplificar a conexão com o mais “genuíno” de


nós pelo corpo, compartilho algumas vivências pelas quais passei por elas
no Projeto Minotauro:

Eu podia sentir mais fortemente, a nível visceral se assim posso


dizer, as emoções vivenciadas. Chegar a este lugar da sensação era uma
“luta” com as vozes da própria mente que, muitas vezes, resistiam à
entrega àquele momento. E percebia que só quando, de fato, me entregava
à sensação manifestada em meu corpo, é que era possível entrar em

30
vivência, realizar a “passagem”, a transmutação do padrão emocional
antigo.

“Biodanza utiliza uma metodologia vivencial... permitindo iniciar a


transformação interna sem a intervenção dos processos mentais de
repressão (TORO, p. 5- grifo meu)”

2.1.1. As origens mais primitivas da dança

A dança, como é proposta pela Biodanza, reúne em si, todos esses


elementos anteriormente citados: corpo, movimento, emoção, que juntos
nos levam a experimentar o estado de vivência.

Analisando especificamente a dança, não há como não falar das


danças primitivas vivenciadas pelos povos também chamados de
primitivos. Em sua sabedoria intuitiva, em seu grupo e na natureza ao
redor, era através dos ritos, sons e danças que estes seres reverenciavam
este lugar de força em si.

“Para o primitivo, dançar é revestir-se de uma força vital, é viver


uma vida mais plena, é Ser.”(TORO, p. 20).

Veja pela citação abaixo, como o criador do método Biodanza busca


inspiração nestas fontes:

“O estudo das manifestações antropológicas nas danças primitivas


permitiu-me compreender aspectos desconhecidos da alma humana que se
associam ao vínculo essencial com a natureza....(TORO, p. 15).

Dessa maneira:

“a biodanza religa o indivíduo a estados primordiais da história da


humanidade”. (TORO, p. 15).
31
Depois de citar a palavra “primitivo” tantas vezes, é importante
compreendermos que ela vem sendo ressignificada, nos tempos de hoje,
pelos antropólogos e a justificativa para isto seria o mau uso deste termo
em outros tempos, quando era comparado a algo que poderia ser atrasado
e/ou vinculado a alguma barbárie. Se tomamos o conceito de evolução
como transformação e não como algo em termos de melhoria, como já
comentamos anteriormente, “primitivo”, então, torna-se referência de
“primeiro”, de origem15.

A dança para Rolando Toro é vista como movimento genuíno, pleno


de significado, vinculado ao primordial e pertencente à humanidade,
independentemente de onde partiu ou se fez presente. A dança é uma
manifestação inerente ao ser humano e se constitui como via de acesso e
expressão do ser:

“A dança é um movimento profundo que surge do mais entranhado,


do mais íntimo do ser humano. É movimento de vida, é ritmo
biológico, ritmo do coração, da respiração, impulso de vinculação à
espécie, é movimento de intimidade”(TORO, p.3).

Por essa força a “Biodanza tem sua inspiração nas origens mais
primitivas da dança” sabendo-se que: “O primeiro conhecimento do
mundo, anterior à palavra, é aquele que chega a cada um de nós por meio
do movimento. (...) a dança surge das profundezas do ser
humano”.(Rolando Toro).

15
http://pt.scribd.com/doc/7018825/Manual-de-Conceitos-Da-Diversidade) . Acessado em
20/11/11.

32
E é deste lugar das “profundezas” que ela possibilita o acesso à voz
primordial.

2.2. Os Animais Interiores

Outro elemento que investiguei como facilitador deste processo,


citado por Rolando Toro, é a relação simbólica do homem com o animal.

2.2.1. Os Animais Interiores e as Danças Totêmicas.

Em diversas culturas observamos o costume de rituais onde os


homens dançavam os animais. De acordo com Rolando Toro, entre os
povos primitivos, os animais ocupavam significados muito preciosos dentro
da estrutura tribal, representando o acesso a poderes e forças naturais.

Além dos rituais citados acima, Rolando Toro especifica também


algumas danças primitivas e folclóricas de diversos locais que se baseiam
na imitação de certos animais: a “Cueca Chilena, como a dança que
reproduz o cortejo sexual do galo e da galinha, os aborígenes australianos
com a Dança do Canguru, os Mapuches argentinos com a Danza Del
Nandu; os antigos astecas com a dança de quetzalcoatl. (TORO, 1991,
p.50).

Dançar os animais era uma forma de se conectar com forças e


potencialidades presentes no próprio homem e identificadas no animal:

“quando um dançarino, pela dança, se identifica com algum animal,


está profundamente vinculado a certas potencialidades específicas da
natureza” (TORO, 2005, p. 17).

Algumas linhas terapêuticas como o Xamanismo – a ser citado mais


abaixo no texto- e Clarissa Pinkola Estés (1999), também destacam o

33
acesso aos animais como forma de resgatarmos potencialidades vitais.
Durante toda a obra do livro Mulheres que correm com os lobos, esta
autora faz o paralelo entre a mulher saudável, vinculada a seus instintos, e
os lobos em sua natureza selvagem. Veja o que ela escreve através de um
belo olhar de como o instinto se manifesta nestes dois seres:

“Pois foi aí que o conceito do arquétipo da Mulher Selvagem primeiro se


concretizou para mim: no estudo dos lobos. (1999, p. 16).

“Os lobos e as mulheres são gregários por natureza, curiosos, dotados de


grande resistência e força. São profundamente intuitivos e tem grande
preocupação para com seus filhotes, seu parceiro e sua matilha. Tem
experiência em se adaptar a circunstâncias em constante mutação. Tem
uma determinação feroz e extrema coragem.” (1999, p. 16)

Pinkola (1999), que também é contadora de histórias, continua


relatando seu aprendizado com os animais e com a natureza:

“uma loba matou um de seus filhotes que estava mortalmente ferido. Para
mim foi como uma dura lição sobre a compaixão e a necessidade de
permitir que a morte venha aos que estão morrendo. As lagartas cabeludas
que caíam dos seus galhos e voltavam a subir, arrastando-se, me
ensinaram a determinação. As cócegas do seu caminhar no meu braço me
revelavam como a pele pode ter vida própria. Subir ao alto das árvores me
mostrou como seria o sexo um dia.”

Os antigos índios norte americanos, assim como o xamanismo 16 ,


consideravam que cada pessoa possuía um ou mais animais com os quais

16
O xamanismo é um termo genericamente usado em referência a práticas etnomédicas, mágicas,
religiosas (animista, primitiva) e filosóficas (metafísica), envolvendo cura, transe, supostas metamorfoses
e contato direto entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, etc. (Fonte:
wikpedia).

34
sentia uma afinidade maior. A estes animais, dava-se o nome de “animal de
poder”, conforme relata o antropólogo Michael Harner 17( 1980, p. 99 ):
“A conexão entre os humanos e o mundo animal é essencial no xamanismo
(...)”

“Às vezes, os norte-americanos aborígenes se referem ao espírito guardião


como o animal de poder, como ocorre entre os Salish da Costa e os
Okanagon de Washington”.

Estes povos acreditavam que o animal agiria como um “espírito


guardião” daquela pessoa e, suas características e habilidades poderiam ser
úteis e necessárias. Vejam alguns exemplos: a águia que pode trazer uma
visão ampliada do todo, o tigre que inspira força vital e coragem, a coruja
que pode chamar à sabedoria.

Cada animal pode ser invocado de diversas formas: pelo som dos
tambores; pelas cartas do tarô; pelas danças que caracterizam os animais de
poder, onde o dançarino incorpora e vivencia seu arquétipo, etc.. Essas
mesmas técnicas são utilizadas hoje em práticas xamânicas, como descreve
o antropólogo Michael Harner (1980, p. 102):

No xamanismo, antigo sistema pouco conhecido no Ocidente, está um auxiliar inestimável da medicina
moderna, e um trabalho cativante de investigação psicológica e espiritual.(Harner,1980).
17
Michael Harner é professor de antropologia na Graduate Faculty of the News
School for Social Research de Nova York. Foi professor visitante nas Universidades de
Columbia e Yale, e na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde recebeu seu
Ph.D. e serviu como diretor-assistente do Museu Lowie de Antropologia. Seu trabalho
de pesquisa levou-o repetidas vezes ao Alto Amazonas, às florestas da América do Sul,
bem como ao oeste da América do Norte e ao México.

35
“Dançar, com o acompanhamento do tambor, é o método
mais comum empregado pelos xamãs, em grande parte do mundo
primitivo, para alcançar o estado de consciência suficiente para ter a
experiência. A iniciação dos xamãs entre os índios do Caribe, no norte da
América do Sul, por exemplo, envolve uma dança noturna durante a qual
os
neófitos se movem imitando animais. Isso é parte do processo através do
qual se faz o aprendizado de como se transformar em animal.”

De acordo com Harner (1980), ao dançar seus espíritos animais


guardiães, os xamãs costumam fazer não só os movimentos do animal de
poder, mas também representar seus sons. O autor comenta que na Sibéria,
bem como entre os aborígenes das Américas do Norte e do Sul, os xamãs
imitam o canto dos pássaros, gritam, grunhem, repetem outros sons de seus
animais de poder. Isso muitas vezes se dá no momento em que vivem suas
transformações.
Para Toro, O ritmo dos tambores e as danças xamânicas de cura
constituem uma parte indispensável de nosso crescimento interior”
(TORO, p. 37). Ele integra este conhecimento à teoria da Biodanza,
colocando o neo-xamanismo como uma das extensões em Biodanza e
destacando o contato com os animais como uma forma de acessar a vida
instintiva em nós.

“os animais foram nossas primeiras auto imagens. Quando o homem não
havia configurado a sua identidade, confundido no “todo” da natureza, os
animais eram aspectos de sua própria corporeidade...” (Rolando Toro).

Em um capítulo dedicado à tematica os “Animais Interiores”, em sua


coletânea de textos, Toro (1991, p.501) ressalta que o primeiro passo
36
terapêutico, para qualquer pessoa, é restabelecer a conexão com o instinto,
fortalecendo a linha da vitalidade: “regressando às fontes, às origens
primordiais da vitalidade”.

Como uma das formas de resgatar a vitalidade e a força instintiva,


Rolando Toro nos convida a vivenciar a força de nossos animais interiores:

“devemos renascer como animais plenos de força, graça e


harmonia”.

“As danças dos animais devem ser nossos novos ritos: recuperar
nosso tigre, nossa serpente, nossa garça, nosso hipopótamo. Temos
que despertar em nós a euforia de viver. Temos que salvar, para
nossa alegria, o salto, o vôo, o canto e permitir que surjam milhões
de animais de nosso coração...(TORO, 1991,p. 501).

Para Toro, se queremos conectar com nossa fonte instintiva perdida,


temos que submergimos as pulsões primitivas de nossa animalidade.

Citando o poeta Daumal, Rolando Toro prossegue:

“Despertados pelo amor, os animais de nosso corpo querem sair.


A serpente se desenrosca da base de nossa medula
O leão se estira em nosso peito
O elefante bate de frente com cada um de nós” (em: Toro, 1991,p.
501).

Ao mesmo tempo que os animais causam este fascínio no homem,


por outro lado, em nossa sociedade civilizada, são apresentados como
“assustadores”. Vejam no cinema e/ou na literatura. Como conseqüência,
muitas vezes aparecem nos sonhos das pessoas, em forma de pesadelos.
37
Rolando Toro comenta que estes sonhos e medos intensos diante dos
animais são reflexo do tamanho “estrangulamento” dos instintos e da perda
da vitalidade vivenciadas na sociedade contemporânea. “Os pesadelos com
animais pavorosos são o protesto de nossa própria animalidade frente aos
altíssimos níveis de repressão cultural (Toro, 1991, p. 503)”,

O paradoxo sábio desta questão é que aquilo que mais nos assusta
pode representar aquilo de que mais necessitamos.

“os monstros só podem ser controlados quando se conhecem. E para


conhecê-los há que desenhá-los” (Da Vinci apud TORO, 1991, p 504).

Ao mesmo tempo em que o contato com a voz primordial pode nos


assustar, num primeiro momento, como me assusta sempre que vou fazer
uma vivência de Minotauro, pode significar também uma grande libertação
e uma possibilidade de apropriação e expressão da nossa força vital mais
original.

Gostaria de compartilhar aqui, algumas observações pessoais que fui


escrevendo a partir de minhas experiências, em especial, no Projeto
Minotauro:

Às vezes nos causa medo, pois são forças adormecidas em nós, acessando-
as, talvez mudemos nossa vida, redirecionaremos nossas escolhas
existenciais.

Sairemos da opressão.

Criaremos uma nova vida.

É a força que nos faz romper.

38
2.3. Projeto Minotauro

E assim, para concluir este capítulo, destaco o Projeto Minotauro -


extensão da Biodanza, como um dos caminhos que nos facilita acessar a
fonte primordial e originária de nós mesmos.

“Em suas reflexões autobiográficas, C. G. Jung expressa que o


estudo dos mitos e arquétipos do inconsciente coletivo, que ele havia feito
a nível teórico, deveria no futuro alcançar uma dimensão corporal de
importância para a psicoterapia.

Este pensamento me animou a criar o “Projeto Minotauro”,


estruturado sobre este mito grego.

A idéia de “vivenciar” os mitos das religiões cósmicas, objetivando


a integração da pessoa, foi extremamente fecunda. Fiz a aplicação destes
mitos e arquétipos com os instrumentos de Biodanza...”

Assim expressa Rolando Toro, sobre a criação do Projeto Minotauro.

Esta aplicação terapêutica da Biodanza, integra todos os elementos


abordados anteriormente: a dança, o corpo, a vivência, os animais
interiores, acrescidos de uma maior intensidade na experienciação de tudo
isso.

Para mim, o Projeto Minotauro é a via de acesso, dentro da Biodanza


que mais nos conecta com este lugar a que chamo voz primordial.

Nas palavras de Toro:

“O objetivo do “Projeto” é restabelecer o contato com esta força


primordial, valorizar sua beleza e seu poder autorregulador.”

39
“(…) Para realizar modificações profundas da expressão instintiva, o
Projeto Minotauro cria um ambiente com solicitações extremas, de
estimulação instintiva. A ação estimuladora se realiza através de
“desafios”, no nível motor arcaico, no nível receptor - como mecanismos
de desencadeamento inato, no nível dos impulsos endógenos viscerais e,
finalmente, nas disposições inatas para a aprendizagem”.

A experiência em um Projeto Minotauro, nos coloca de frente a nós


mesmos e nos convida a invocar a força primitiva do homem animal
“minotauro” que há em nós, a contactar o que mais nos assusta e nos
liberta.

“(…)O Minotauro, criatura de corpo humano e cabeça de touro,


simboliza o aspecto selvagem e instintivo que habita em nós como força
primordial” (TORO, p. 19).
“A vivência do Minotauro nos permite o acesso às nossas mais
“verdadeiras e profundas forças.”

Numa tentativa de sintetizar o que significa esta experiência potente e


que representa uma força transformadora em minha vida, eu diria que é
pela força do instinto, acessado em uma vivência de “Minotauro”, que
conseguimos realizar esse profundo mergulho em nossas “entranhas” e é
através dessa mesma força instintiva que conseguimos romper, pelo “grito
primordial”, com nossas amarras internas.
De forma metafórica, após uma vivência de “Minotauro”, eu
descreveria assim:
Retomamos o “fio de Ariadne” e saímos do labirinto, renovados, para
construirmos novos caminhos.

40
CAPITULO TRÊS: A IMPORTÂNCIA DA CONEXÃO
COM A VOZ PRIMORDIAL

Rolando Toro, em sua proposta biocêntrica, apresenta algumas


funções essenciais dos instintos:

“resgatar os instintos cuja função é conservar a vida;


dar às pessoas a possibilidade de comunhão e empatia;
reforçar e expressar a identidade e a segurança em si mesmo, eliminando
os fatores paranóides;
aumentar a consciência ética cuja fonte é a inteligência do coração.”
(TORO, p. 10).
(...)“ o resgate dos instintos deverá ser no futuro a tarefa essencial
para criar uma civilização para a vida”.

Para o criador da Biodanza, vivenciar os aspectos instintivos como


“voltar à origem”, “recuperar a criança livre”, “conectar-se com a energia
cósmica”, “recuperar o orgasmo” são “formas de vinculação com a fonte
originária da vida”:

“minha abordagem é a de salvar essa selva interior e realizar


não apenas uma ecologia da mente, mas uma ecologia dos instintos.
(...) olhar as manifestações instintivas sob a perspectiva biológica de
exaltação da vida e da graça natural” . (TORO, p.6)

41
Quando Clarissa Pinkola (1999) comenta que o contato com a
“mulher selvagem” pode ser percebido em várias situações como uma
“revitalizante prova da natureza” também afirma os efeitos saudáveis do
resgate da vida instintiva feminina,

“... pois com ela suas vidas criativas florescem, seus relacionamentos
adquirem significado, profundidade e saúde; seus ciclos de sexualidade,
criatividade, trabalho e diversão são restabelecidos; elas deixam de ser
alvo para a atividade predatória dos outros, segundo as leis da natureza,
elas têm igual direito a crescer e vicejar.” (PINKOLA, 1999, p. 21).

Outra autora que destaca a importância dessa força originária


instintiva é Ruth Cavalcante18 (2001) através do conceito de Educação
Selvagem:

“Ao longo do processo civilizatório, o ser humano foi dando ênfase


à moral e deixando de lado questões vitais. Uma delas é a
preservação dos instintos. Estes passaram a ser considerados como
uma estrutura biológica desagregadora da cultura, sinônimo de
selvageria e expressão grotesca do homem. No entanto, o que eles
representam é a parte mais saudável de todo animal, conservador
das forças originárias de vida. Por mais bloqueados que estejam, os
instintos anseiam sempre por liberdade, por expressar-se”.

Ruth Cavalcante prossegue:

18
Ruth Cavalcante é Psicopedagoga, Facilitadora Didata de Biodanza, Formação em Psicologia
Transpessoal, Educação de Adultos, Educação Especial. Pesquisadora e uma das precursoras da
Educação Biocêntrica.

42
“Quando Rolando Toro propôs a Educação Selvagem entendi a
idéia como um chamamento para que voltássemos a ficar mais próximos
da natureza, olhar a vida instintiva não apenas naquilo relacionado com a
voracidade que garante a cadeia biológica, mas considerando a
possibilidade de o ser humano vir a expressar-se por inteiro, através dos
instintos, naturalmente, como os outros animais o fazem, garantindo a
conservação da vida.(CAVALCANTE, 2001, p. 7).

Ruth Cavalcante destaca, então, a importância do acesso à vida


instintiva como a possibilidade que nos permite à inteireza na expressão do
nosso ser.

O psiquiatra Carl Gustav Jung (apud STRAPASSON, 2007, p. 33)


fala sobre os efeitos do distanciamento do homem da natureza:

“O homem sente-se isolado no cosmos porque, já não estando


envolvido com a natureza, perdeu a sua „identificação emocional
inconsciente‟ com os fenômenos naturais”.

E segue apontando a discrepância entre a sabedoria dos povos


primitivos em sua integração com a natureza, e o homem civilizado:

“Os primitivos estão bem longe do particularismo


humano. Não sonham serem os donos da criação... O
homem está simplesmente encaixado na natureza, faz
parte do todo e não pensa que pode dominá-la. Todos
os seus esforços se destinam a proteger-se contra os
acasos. O homem civilizado, ao contrário, procura
dominar a natureza e coloca todo seu esforço na
descoberta de causas naturais que podem oferecer-lhe
a chave do laboratório secreto da natureza”.

43
Analisando estes trechos acima citados, sinto que ao acessar essa
força instintiva, ela nos coloca mais “sensorialmente” conscientes, com
uma maior capacidade de “farejar” e distinguir o que realmente traz vida
para nós. Acessar a voz primordial nos põe visceralmente conectados ao
nosso caminho essencial.

Citando Clarissa Pinkola:

“...quando farejamos seu rastro, é natural que corremos muito para


alcançá-la, que nos livremos da mesa de trabalho, dos relacionamentos ,
que esvaziemos nossa mente, viremos uma nova página, insistamos numa
ruptura, desobedeçamos as regras, paremos o mundo, porque não vamos
mais prosseguir sem ela”. (PINKOLA, 1999, p. 25).

A Biodanza é um caminho que, facilitando o acesso à fonte


instintiva, também favorece a escolha de novos caminhos existenciais.

Os mesmos efeitos descritos por Clarissa Pinkola (1999) de


reconexão com o aspecto instintivo da vida é observado na prática de
Biodanza: o florescimento da vida criativa, o cultivo de relacionamentos
saudáveis, o delineamento de limites necessários.

“ela implica delimitar territórios, encontrar nossa matilha, ocupar nosso


corpo com segurança e orgulho.... falar e agir em defesa própria, estar
alerta, descobrir a que pertencemos, despertar com dignidade e manter o
máximo de consciência possível.”(PINKOLA, 1999, p. 26).

Para mim, sintetizando um pouco de tudo que citei neste capítulo, a


força visceral instintiva- a voz primordial- nos faz caminhar em direção à
preservação da saúde em todos os sentidos, ela nos ajuda a romper e liberar

44
padrões emocionais/ comportamentais que nos deixam estagnados. A voz
primordial é a força interna que irrompe a favor da vida.

CAPÍTULO QUATRO: DO INSTINTO À


TRANSCENDÊNCIA

Ao chegar neste capítulo sobre a transcendência, uma sensação de


paz e integração tomam conta de mim. Como se nos capítulos anteriores,
uma constante inquietação me visitasse e transitando pelo instinto à
transcendência, a sensação fosse de harmonia. Era a peça do “quebra
cabeça” que faltava, pois afinal, buscamos a inteireza, caminho pelo qual a
Biodanza também percorre:

“Um dos objetivos prioritários do método biodanza é a superação


de dissociações, a integração” (Rolando Toro).

Buscamos ser plenos e o conceito de transcendência, dentro da


Biodanza, nos aproxima dessa “vivência”:

Nas palavras de SanClair (1996): “a transcendência é a vivência


plena de SER, em que descobrimos e revelamos aquilo que somos, que não
é um dado gratuito nem acabado”. (grifo meu).

Este conceito apresentado por SanClair Lemos (1996) também traz


uma ressonância com o que chamo a voz primordial.

45
Para se vivenciar a transcendência ou este lugar em que nos
encontramos mais conectados com o nosso núcleo essencial, expressão
citada por SanClair Lemos, é preciso percorrer um caminho. Um caminho
que nos integre, um caminho que inclua tudo que somos.

Neste caminho de integração, afirmo mais uma vez que é


imprescindível resgatar o lugar dos instintos, conforme cita Lemos (1996,
p. 44):

“Rolando Toro expressou o fato fundamental de que não há possibilidade


de evolução e transcendência quando se traem as forças que conservam e
nutrem essa essência divina. Perde-se a possibilidade de evoluir em
desenvolvimento, de criar mais vida se o ser trai, reprime, obstrui essas
forças que mantém, organizam e nutrem a própria vida. Não há
possibilidade de transcendência afastado dos instintos, que constituem a
força que move o organismo biológico. O instinto é a expressão da própria
vida.”

Para mim, o instinto me faz acessar uma força propulsora que me


fortalece quando necessito romper com alguns padrões que me aprisionam,
sabendo-se que faz parte desse caminho, o afeto, dimensão harmonizadora
desta liberdade possível de se conquistar.

Caminhemos então um pouco mais, considerando assim, o valor


fundamental dos instintos integrados à dimensão afetiva, inspirada e
guiada pela fio do coração de Ariadne19. É pelo amor que seremos guiados
à nossa essência original, como bem define SanClair Lemos (1996, p 41):

19
Ariadne, segundo a mitologia grega, é a filha de Minos, rei de Creta. Apaixonou-se por Teseu quando
este foi mandado a Creta , voluntariamente, como sacrifício ao Minotauro que habitava o labirinto

46
“O amor vem a ser a força integradora e estruturadora da existência. A
linha de vivência da afetividade é organizadora dos sistemas biológicos.
Essa força se expressa de diversas maneiras chamadas amor e estrutura,
integra e organiza o funcionamento do sistema vivente humano. O amor é
o caminho de acesso para a transcendência; não é sentimentalismo, não é
emocionalismo, não é paixão, não é um contrato social. O Amor é a
percepção e a vivência de si e de outrem como parte e expressão da
divindade”.

No caminho do amor e da transcendência, reconhece-se a divindade


em si, no outro e na totalidade e se conecta com a grandiosidade da vida.
Transcende-se, vai além de si mesmo, vivenciando o belo paradoxo
apresentado por Rolando Toro e comentado por Sanclair Lemos, dizendo
que ao mesmo tempo que se sente plenamente integrado e diluído no todo,
há uma consciência ampliada de si mesmo, uma conexão com o próprio
núcleo essencial, com sua identidade plena.

“Na plenitude da transcendência encontra-se a plenitude da identidade.


Na capacidade mais profunda de vinculação, de ir além de si nos estados
integrados de transcendência é que se é mais plenamente, é quando se está
mais vivo, mais presente, mais acordado”.(LEMOS,1996,p. 38).”

O conceito de identidade destacado por SanClair Lemos, retoma a


idéia do que significa para mim a voz primordial:

“A identidade é selvagem, tem origem na força do instinto que


surge das entranhas e que é organizada a partir do sistema límbico-
hipotalâmico do cérebro arcaico. (LEMOS, 1996, p.20)

construído por Dédalo. Ariadne, então, lhe deu uma espada e um novelo de linha (Fio de Ariadne), para
que ele pudesse achar o caminho de volta.

47
Estas reflexões nos remetem à idéia dos pólos “continuum” que
Rolando propõe no modelo teórico de Biodanza - eixo vertical onde as duas
polaridades são identificadas como caos- a origem- e integração e eixo
horizontal – identidade – consciência ampliada se si e regressão – retorno
ao primordial por meio do transe. Confira no modelo abaixo:

48
Nas palavras do próprio criador do método Biodanza: “Para
transcender, há de se retornar à origem; retomar a mensagem original. No
homem, o impulso de regressar às origens foi observado pelos
antropólogos em tribos primitivas”.

No caminho para a integração, transitamos por estes dois pólos:


revisitamos a “origem” para transcender:

“O Eterno Retorno é uma conduta registrada arquetipicamente nos


mitos de renascimento e nas festividades agrícolas. A tendência a voltar à
ordem primeva e reciclar os padrões biológicos originários é uma
constante em todos os povos. As cerimônias de transe e renascimento são
manifestações deste impulso”.(Rolando Toro).

A toda evolução antecede um regresso à origem. Como se para


darmos um salto, precisássemos relembrar de onde viemos. Essa lembrança
nos reconecta ao nosso Projeto Vital, que de acordo com Rolando Toro nos
ajuda a evoluir com mais coerência com nosso núcleo essencial:

“O ser humano, ao exercer sua autodeterminação está em constante


perigo de perder as chaves originárias da vida. A nostalgia de voltar às
origens renova a FORÇA DO PROJETO VITAL” (grifo meu).

Neste sentido, Rolando Toro apresenta o conceito de


“Retroprogressão: todo passo a uma estrutura mais integrada, complexa e
autônoma, requer uma regressão prévia.(...)
“Este processo é pulsante: do
íntimo para o mundo e do mundo para o íntimo; não é um processo de
regressão estática.”

49
Dessa forma, o que parece aparentemente contraditório, são forças
complementares: a conexão com o instinto, com a força primeva do ser e a
profunda vinculação com o todo, são duas faces da “mesma moeda”.

Considerando a transcendência como uma profunda vinculação com


a natureza mais íntima de si e com a vida que nos rodeia e o instinto como
um impulso que nos conecta a origem da própria vida, podemos dizer que
instinto e transcendência fazem parte de um mesmo continuum,
possibilitando, juntos a conexão com a sensação de plenitude.
Para finalizar este capítulo, compartilho minha vivência na
maratona20 de transcendência com SanClair Lemos, a qual descrevo abaixo:

Eu ainda tinha, mesmo que a nível inconsciente, uma idéia pré


concebida que transcendência era algo “divino”, espiritualizado, distante
do “humano”. Ao chegar, SanClair nos convidou a diversas vivências
rítmicas, vitais, pés no chão, tambores, força vital, saltos... Por fim, no
momento da vivência de conexão com a grandeza, senti muita integração,
todo o meu corpo era um só movimento e imenso prazer tomou conta de
mim, uma sensação quase orgástica! E por aquele instante vivenciei o
conceito integrado de “instinto transcendente.” (Maratona de
Transcendência, 2008).

20
Maratonas são os encontros mensais temáticos que fazem parte do curso de formação para facilitador
de Biodanza. Esta maratona de transcendência foi ministrada por SanClair Lemos, em 2008.

50
CAPÍTULO CINCO: UMA EXPERIÊNCIA EM GRUPO DE
MULHERES

Roda de Biodanza para Mulheres. (Belo Hte/2009).

Em minha primeira experiência como participante do Projeto


Minotauro, recebi o “desafio” de dançar o Feminino. Bastante
desconcertada, sem saber por onde começar, mal eu sabia que estava
iniciando uma longa jornada em direção à re-descoberta do princípio
feminino em minha vida.

Paralelamente a este processo de descoberta pessoal, iniciei diversas


oficinas temáticas, com vivências de Biodanza para mulheres. Além de um
grupo regular, que facilitei durante dois anos.

Venho construindo neste tempo a junção da metodologia da


Biodanza, com temas que resgatam o feminino profundo, associado ao
conceito do arquétipo da mulher selvagem proposto por Clarissa Pinkola
Estés.

51
Ao acompanhar estes grupos de mulheres, percebo o quanto estamos
desvinculadas de nossa natureza instintiva, dos nossos ciclos naturais, de
nossa força vital mais visceral.

O grupo de Biodanza para mulheres apresenta-se, assim, como um


lugar fecundo, restaurador das forças vitais, uma matriz de renascimento,
de “refazimento”, de reconexão com os ciclos naturais da vida, do próprio
corpo, dos próprios desejos. Um resgate da identidade mais profunda
enquanto mulher.

Para Clarissa Pinkola (1999), quando a mulher está afastada,


desvinculada de sua psique instintiva profunda, de sua “natureza
selvagem”, ela apresenta alguns sinais, descritos pela autora como:
“usando-se exclusivamente a linguagem das mulheres, trata-se de
sensações de extraordinária aridez, fadiga, fragilidade, (...) confusão, com
uma fúria crônica, amarrada, reprimida (....)

(...)“Quando a mulher se vê entregando a própria criatividade para os


outros, escolhendo parceiros, empregos ou amizades que lhe esgotem a
energia, superprotetora de si mesma, inerte, incapaz de regular a própria
marcha ou de fixar limites (...)

“Não conseguir insistir em seu próprio andamento, deixar-se envolver


exageradamente na domesticidade, no intelectualismo, no trabalho ou na
inércia, porque é esse o lugar mais seguro para quem perdeu os próprios
instintos”. (PINKOLA, 1999, p. 25).

Para Clarissa Pinkola, esses sintomas e “rupturas” são uma doença


não de uma era, nem de um século, “mas transformam-se em epidemia a
qualquer hora e em qualquer lugar, sempre que as mulheres se vejam
aprisionadas, sempre que a natureza selvática tiver caído na armadilha.”

52
É a própria Clarissa Pinkola que nos apresenta um caminho de
possibilidades para a mulher que se desvinculou do instintivo. Na obra “A
ciranda das Mulheres Sábias”, também de sua autoria, Clarissa Pinkola
(2007), novamente de forma poética, nos apresenta a fonte pulsante da vida
que reside “debaixo da terra”:

“Toda árvore possui por baixo da terra uma versão primeva de si


mesma. Por baixo da terra, a árvore venerável abriga uma “árvore
oculta”, feita de raízes vitais constantemente nutridas por águas invisíveis.
A partir dessas radículas, a alma oculta da árvore empurra a energia para
cima, para que sua natureza mais verdadeira, audaz e sábia viceje a céu
aberto.” (PINKOLA, 2007, p. 29, grifo meu.).

A autora estende esta linguagem simbólica para vida da mulher:

“O mesmo acontece com a vida da mulher. Como a árvore, não


importa em que condições ela esteja acima da terra, exuberante ou sujeita
a enorme esforço... por baixo da terra existe uma “mulher oculta”, que
cuida do estopim dourado, aquela energia brilhante, aquela fonte profunda
que nunca será extinta”. (p. 29).

53
Clarissa Pinkola (2007, p 30) comenta que, não importa os desgastes,
intempéries que a mulher viveu ao longo de sua vida, há sempre uma fonte
“submersa” pulsando em seu interior, “empurrando-a para cima” em busca
de mais vida.

5.1. A experiência nos grupos

Gostaria de compartilhar a experiência como facilitadora- sob


supervisão- do meu primeiro grupo regular de Biodanza para mulheres, que
teve a duração de dois anos. Complemento com alguns relatos e “poesias”
produzidos pelas participantes de outras oficinas (temáticas para mulheres,
com vivências de Biodanza) que venho conduzindo. O grupo de mulheres
iniciou-se no ano de 2008 estendendo-se até o ano de 2010.

O perfil das participantes eram mulheres entre 50 e 60 anos, casadas,


com filhos, residentes de um mesmo bairro de Belo Horizonte (onde
acontecia os encontros do grupo), classe média. O grupo era composto por
seis mulheres, sendo que duas trabalhavam fora de casa, uma estava

54
aposentada, uma começou a trabalhar fora na época do grupo, e uma delas,
desde que se casou, não trabalhou mais fora de casa.

O grupo regular de Biodanza para mulheres assume um caráter


diferenciado do grupo misto. Além do objetivo da própria Biodanza de
elevar os potenciais de saúde, há um outro propósito: o resgate do princípio
feminino, o fortalecimento da identidade enquanto mulher, o re-descobrir a
beleza e o valor em ser mulher.

Por vezes, percebia também um outro propósito “implícito” que foi


se constituindo naturalmente: o de resgatar ritos ancestrais, onde as
mulheres se reuniam para bordar, conversar, trocar experiências, “reunir”
os retalhos da própria vida. Neste caso, resgatávamos o rito do encontro
para dançar a vida.

Os relatos de vivência eram muito ricos e se apresentavam também


como um momento de elaboração da própria vida. Ao se verem espelhadas
no relato de uma outra participante, as mulheres iam se auxiliando na cura
de “feridas”, que para mim, refletiam não somente a história individual das
participantes, mas um inconsciente coletivo feminino de uma forma em
geral.

O grupo também assumia um caráter de convivência. O local onde


ocorreram os encontros é uma “clínica-casa”, algumas delas já se
conheciam do próprio bairro, os lanches e as confraternizações após as
aulas, davam este “tom” para o grupo.

O fato de algumas já se conhecerem, além de residirem no mesmo


bairro, demandou um certo cuidado na minha condução, no sentido de
reforçar a importância do sigilo nos relatos de vivências, do cuidado na
escuta das experiências de cada uma e do cuidado com o próprio grupo.

55
Nos relatos de vivência, as experiências vivenciadas nas aulas eram
aliadas a conteúdos do universo delas, como a relação com os maridos, a
dificuldade de limites com os filhos, as mudanças que muitas estavam
vivendo com os filhos saindo de casa, a re-descoberta de desejos e sonhos
pessoais. Conteúdos que refletiam muito do contexto das mulheres desta
geração, encontrando pontos comum em suas histórias, mas também
diversidades na maneira de cada uma reagir às situações vivenciadas, que
enriqueciam o grupo.

Aos poucos, com o decorrer das aulas, o grupo foi ganhando um


novo colorido, as identidades foram se fortalecendo, o estilo das roupas foi
se modificando, vestidos e saias começaram a aparecer...

A “voz feminina” começou a ganhar “corpo” e um gosto bom de ser


mulher e estar entre mulheres vai se manifestando no grupo.

O vínculo do grupo foi se fortalecendo e cada uma, em seu processo


individual, foi se transformando, refazendo suas escolhas existenciais.

Faço um breve relato abaixo das mudanças existenciais observadas


em cada participante:

A. 55 anos: no decorrer do grupo, estava em processo de


aposentadoria. A princípio, compartilhava o grande “medo” desta decisão,
o medo do desconhecido, do que viria depois... Acostumada a trabalhar
muito, a ter dedicado a maior parte da sua vida na empresa, a assustava a
possibilidade de ficar em casa.

A. vai se fortalecendo com o apoio e o afeto compartilhado nas


vivências. Gradativamente, ela vislumbra novas possibilidades, vai
assumindo novos “ofícios”, reconstruindo seu novo momento de um jeito
mais tranqüilo e prazeroso. O grupo assume um papel importante para ela

56
nessa transição, destacando principalmente o acolhimento e a afetividade,
que para mim, foi a linha de vivência mais trabalhada neste grupo.

Atualmente, A. já se aposentou (e o processo foi realizado de uma


forma bem mais tranqüila do que ela imaginava) e já está desenvolvendo
suas novas atividades e habilidades. “a biodança vai entrando na
gente”.“sei o que é vivência, comecei a dançar em minha
casa...”(A.55anos )

*C. 44 anos, chega ao grupo compartilhando uma situação difícil


vivenciada em seu casamento, anunciando uma possível separação. Ao
longo dos encontros, fica nítido como C. vai se fortalecendo em sua
individualidade. Começa a trabalhar fora, a realizar cursos de
aperfeiçoamento em sua nova área de trabalho, a ter uma maior autonomia
e independência financeira. Passa a sair e viajar com as amigas. Apesar de
viver uma “quase separação” com o marido, não havia ainda conseguido
dar este passo. No entanto, fica claro seu progresso no processo de
individuação.

*R. 56 anos, como ela mesma dizia “muito amagurada”, vai


resgatando maior leveza e afetividade em suas relações.Após uma vivência
muito afetiva, R. compartilha:“tirou um amargor de dentro de mim”.

*D. 51 anos, trazia uma história de muito “servir” ao outro, à


família, em detrimento de si mesma. Durante o grupo, D, segundo ela
mesma, “dá uma revolucionada” em sua vida. Passa a colocar “limites
saudáveis” na sua relação com os familiares. Muda o “visual”, começa a

57
usar vestidos, a se expressar mais, a cantar com maior desinibição em um
coral que participava. O grupo comenta que D. era a mudança mais visível
do grupo.

*M. 43 anos, chega ao grupo convidada por uma das participantes,


ainda muito receosa com relação à dança, sempre dizendo que seu
momento predileto era o relato de vivência, gostava de ouvir. M. continua
freqüentando as aulas e gradativamente, vai apresentando maior
flexibilidade no corpo e na vida, maior permissão às vivências de prazer,
manifestando, cada vez mais, a “sua mulher”. Reassume sua força sensual,
relatando mudanças na vida íntima com o esposo.

*MA. 60 anos, encontrou, através da Biodanza, uma


forma de manifestar e dar vazão à sua criatividade, resgatou suas poesias,
apresentou-as ao grupo, era a expressão de seus “dons criativos” na vida.

~~~~~~~~~~~

Assim, ao final deste tempo, observo que o grupo regular foi um


“ninho” revitalizador, curativo e fortalecedor para essas mulheres.

Para mim, além da experiência de começar a facilitar, foi uma


“recapitulação” e acolhimento da minha própria história. Provinda de uma
geração de mulheres, onde muitas perpetuaram o costume de servir aos
outros em detrimento dos próprios desejos, foi como “passar a limpo” a
história das mulheres de minha família.

58
Ficou claro o poder transformador e a capacidade de “recriar” a si
mesmo que um ambiente acolhedor proporciona.

Trazendo, mais uma vez, uma contribuição de Clarissa Pinkola


(1999): “as mulheres desenharão portas onde não houver nenhuma. E elas
a abrirão e passarão por essas portas para novos caminhos e novas
vidas”.

Atualmente, continuo realizando oficinas e encontros para mulheres


com vivências de Biodanza. Compartilho mais alguns relatos das
participantes destes encontros:

“estou me sentindo no palco, no meu palco interior, voltando os


holofotes para mim.” (E, 35 anos, vivência caminhar exaltando a própria
presença”).

“a mulher é como um véu, não se revela por inteira”. (MH, 55anos).

“confundimos resgate do feminino com feminismo e vi que não é


isso... tem delicadeza” (MH 55 anos).

Em uma das oficinas mais recentes (com oito encontros- dois meses
de duração), integrei várias passagens da obra de Clarissa Pinkola (1999)
com vivências de Biodanza. O processo foi extremamente fecundo e
transformador para o grupo.

59
Uma das participantes desta última oficina a qual chamei: Essência
Feminina, estava na época, “mergulhada” em seus estudos da obra de
Clarissa Pinkola- Mulheres que correm com os lobos. Com a permissão da
“autora”, transcrevo os poemas que ela escreveu durante a realização da
oficina, assim como seu comentário sobre este processo:

“a realização das oficinas essência feminina foi o mecanismo


prático que eu escolhi para me permitir vivenciar as experiências
propostas no Livro. As linguagens que você utilizou nas oficinas de
essência feminina me permitiram compreender a linguagem do livro,
exercitá-lo. Um canal de comunicação, de interação, de integração, de
conexão com meu próprio corpo, minha mente, meu coração, com toda
minha vida psíquica foi definitivamente aberto. Pude então compreender-
me. Em profundidade e extensão” (M.C, 40 anos).

Recolhendo ossos

Aos quarenta

não dá mais pra contemplar o próprio rabo.

Até hoje escondi meus instintos num intelecto

devorador.

Agora medito, canto, danço e escrevo poemas.

Descobri meu acesso ao mundo entre mundos.

Percebo essências e seres de névoa.

-----

Estou no deserto.

Meu fôlego e minhas verdades constroem o lar

60
da minha alma.

O rio debaixo do rio é minha âncora. Todos os

meus sonhos me espreitam na superfície.

Preciso permitir a morte para viver à céu aberto.

=====

Ninho

Ando acomodando sombras.

Pretendo muito em breve mergulhar no mais

profundo do amor e do sentimento

por minha natureza instintiva.

Quando retornar,

meu estado de espírito será pura expressão de minha

alma.

Daí então, a voz da minha alma irá sussurrar

a verdade do meu poder

e da minha necessidade.

~~~~~~~~

61
O encontro

Estou na morada de minh'alma

é morno

sou aquática

habito uma oca

no rio abaixo do rio.

Meus pés se apoiam numa grama verde-água recém -

nascida

meu lar é crepuscular

com flores miúdas multicoloridas

e gotas cristalizadas suspensas no ar.

"Aquela que sabe" surge caminhando em minha

direção

Imensa no ser

Que queres? se tudo que viveste até aqui foi escolha

tua

para viveres com plenitude a outra parte.

~~~~

Cansada? guerreira!

Em vez de se encher de vazio, toma aqui ... amor.

Se é o que precisas para retornar.

Retornar

62
Hora de voltar à superfície

transformada

não sem antes encontrá-lo

o profundo.

que me chocou com a visão de mim

deu-me nadadeiras nos pés

enfeitou-me os cabelos com ramos de

trigo verde

retirou-me as escamas

e pendurou-me nos braços uma bolsinha tipo

"canguru"

última moda aqui no rio debaixo do rio.

Combinamos de nos encontrar lá em cima

no reino das águas claras.

na estação do sólo fértil.

~~~~~~

Desabotoamente

Desabotoar a arma-dura é um ato de bondade com

a alma do mundo

Então desata-me os laços do cativeiro

E ata-me à esta tua língua-raíz que trazes na ponta

dos dedos

Prometo-te o imenso ritmo da dança nua.

63
O compartilhar de M.C nestes poemas e em seus relatos de vivência
durante a oficina, revelam toda sensibilidade e força de uma mulher
resgatando sua vida visceral e instintiva. A Biodanza se apresenta como um
caminho que possibilita o acesso vivencial ao mais íntimo de si e a
expressão, pelo movimento pleno de sentido dessa força natural na vida.
Para mim, uma bela integração!

Incluir todos estes relatos, poemas, assim como citar as passagens de


Clarissa Pinkola nesta monografia foi como “amaciar” a minha escrita,
experimentar o princípio feminino no ato de escrever. Por momentos, senti
como uma dança de integração “yin, yang”, onde o masculino de Rolando
Toro e o feminino de Clarissa Pinkola se encontravam em um compasso
harmonioso.

64
6. CONCLUSÃO

A idéia da voz primordial nasceu a partir de minhas vivências


pessoais e foi tomando forma e se confirmando à medida que investigava
os conceitos dos autores aqui tratados.
Diante de minha pergunta inicial - Que força é essa que nos impele a
seguir em frente, que nos remexe entranhas adentro, que nos faz ir além dos
padrões e expectativas culturais, impostos a nós, que nos faz romper rumo
ao que nos é mais original- caminhei e me aventurei na busca por desvelar
essa idéia; deparei-me, então, com conceitos afins: o de instinto, na visão
de Rolando Toro; o de “mulher selvagem” no olhar de Clarissa Pinkola
Estés.

Pude constatar que a voz primordial, à qual me era familiar na


experiência, encontrava ressonância com teorias que discorrem sobre a
sabedoria instintiva: a mesma que está presente nas plantas e as faz mover
em direção ao céu em busca da luz e em direção a terra em busca de
nutrientes (e aqui faço um paralelo com “do instinto à transcendência”); a
mesma que está presente nos animais, e os levam a demarcarem o seu
território muito precisamente.

Observei que esta fonte instintiva tratava-se de um tipo de


inteligência que conduz e preserva a VIDA. E que esta inteligência, que
nos acompanha desde os primórdios, encontra-se muito distante da cultura
civilizada, isto é pouco acessada por nós.

Em prol de valores civilizatórios, desconsideramos esta sabedoria


simples, a que chamamos instinto. A conseqüência deste distanciamento da
natureza, em um nível “macro” é a própria devastação da mesma, e em um
nível “micro” ou subjetivo é a sensação do homem de desintegração, ou

65
como citou Jung: “O homem sente-se isolado no cosmos (...), já não
estando envolvido com a natureza..” Ao priorizarmos algumas dimensões
humanas, seja a racional, seja a espiritual, em detrimento de outras,
colocamo-nos como seres dissociados.

Daí a urgência a qual Rolando Toro se refere ao nos convocar para o


resgate das “bases originárias da vida”.

Durante as investigações deste trabalho, foi possível perceber


também, através dos relatos da autora Clarissa Pinkola Estés, o quanto
acessar essa força instintiva nos mobiliza a refazer escolhas existenciais,
delimitar nosso “território”, buscar relacionamentos saudáveis, optar por
escolhas que nos geram vida e encantamento.

O autor SanClair Lemos (1996) nos relembrou que para transcender


é preciso primeiro, “bater os pés no chão”, sentir a raiz da vida, e assim
reverencia Rolando Toro quando este afirma que: “não há possibilidade de
transcendência afastado dos instintos, que constituem a força que move o
organismo biológico”.

Assim, todos estes autores nos apresentam suas experiências -


pesquisas intensas ao longo de anos com grupos de pessoas- observando e
constatando, empiricamente, como essa força instintiva acessada através
das danças, dos animais interiores, do Projeto Minotauro, dentre outros, nos
modifica, nos coloca mais conscientes da própria identidade. Ao mesmo
tempo essa mesma força, nos põe mais conectados ao Todo, vinculados à
totalidade da existência, podendo nos conduzir para um caminho mais
coerente com nossa origem essencial, única para cada pessoa.

Uma outra pergunta me interpela neste final: É possível sermos


inteiramente originais, expressarmos totalmente nosso ser mais genuíno em
nossa cultura? Talvez esta seja uma pergunta para um próximo trabalho...

66
SanClair Lemos (1996) também se faz uma questão semelhante em sua
obra A vivência da transcendência: “Será possível o relacionamento com o
mundo a partir da identidade pura? A qual ele mesmo comenta: “não
podemos responder pois nos escapa o que seja a identidade pura”. (p. 16).

Talvez o que esteja dentro do nosso alcance responder, neste


momento, a partir das pesquisas realizadas nesta monografia, é que é
possível estar cada vez mais próximos de nossa originalidade, é possível ir
“tirando as cascas gradativamente daquilo que não somos, para ir chegando
próximos ao nosso núcleo essencial”. E o sinal de que estamos próximos,
na minha experiência pessoal e observando as pessoas que venho
acompanhando21, passa por uma sensação de inteireza, de satisfação real,
de liberdade, de simplicidade.... até que... reiniciam-se as próximas
inquietações. E, se houver um desejo, uma busca por este
autoconhecimento, serão essas inquietações que nos farão caminhar para
mais uma jornada de autodescoberta que pode passar pelo acesso à força
visceral, nos auxiliando a relembrar quem somos. Por isso, na Biodanza,
realizamos diversos “Projetos” Minotauros, por isto é um “Projeto”, como
diria minha facilitadora Veruska Gontijo22 pois vamos construindo as
descobertas e revelações despertadas na vida cotidiana. E este caminho de
autodescoberta e crescimento pessoal vai acontecendo indefinidamente.
Talvez seja esta a beleza da própria vida, a constante re-descoberta e
recriação de si mesmo.

Diante destas colocações, concluo que a voz primordial provém da


força visceral instintiva, como o “grito” que nos chama de volta à vida, e
que este processo se complementa com a dimensão afetiva, com a escuta da
“voz do coração” e transcende a si mesmo. Nós nos resgatamos e ao

21
Em atendimentos psicoterapêuticos ou nos grupos e oficinas de Biodanza.
22
Veruska Gontijo é facilitadora de Biodanza. Participo de seus grupos há sete anos.

67
mesmo tempo nos sentimos profundamente vinculados ao todo, como
nossos irmãos primitivos.

Finalizo com esta passagem da música de Milton Nascimento, que


para mim, nos invoca a SER:

“Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber casa cheia de
coragem, vida, todo afeto que há em meu ser, te quero ver, te quero SER,
alma.”

68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVALCANTE, Ruth e outros – Educação Biocêntrica: um movimento


de construção dialógica – Fortaleza, Edições CDH - 2001.

ESTÉS, Clarissa P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias


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HARNER, M. O caminho do Xamã. São Paulo: Cultrix, 1980.

LEMOS, SanClair. A Vivência de Transcendência. Semente Editorial,


1996.

LANDINI, José Carlos, Do Animal ao Humano Uma Leitura


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STRAPASSON, Suzana L. Xamanismo: uma abordagem arquetípica. São


Paulo: 2007. (Monografia apresentada como requisito parcial para
obtenção do titulo de analista Junguiano pelo Instituto Junguiano de São
Paulo.)

TORO, Rolando. Definição e Modelo Teórico de Biodanza. Biodanza:


Sistema Rolando Toro. Apostila do Curso de Formação Docente.

-------. Afetividade. Biodanza: Sistema Rolando Toro. Apostila do Curso


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------- Ascpectos Psicológicos. Sistema Rolando Toro. Apostila do Curso
de Formação Docente. p. 10.

69
-------. Antecedentes Míticos e Filosóficos de Biodanza. Biodanza: Sistema
Rolando Toro. Apostila do Curso de Formação Docente.

--------. Vitalidade. Biodanza: Sistema Rolando Toro. Apostila do Curso de


Formação Docente.

--------. Identidade e Integração. Biodanza: Sistema Rolando


Toro. Apostila do Curso de Formação Docente.

--------. Aspectos Biológicos de Biodanza. Biodanza: Sistema Rolando


Toro. Apostila do Curso de Formação Docente.

--------. A Vivência. Biodanza: Sistema Rolando Toro. Apostila do Curso


de Formação Docente.

--------. Transcendência. Biodanza: Sistema Rolando Toro. Apostila do


Curso de Formação Docente.

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-------- Biodanza. Ed. Olavobrás. Escola Paulista de Biodanza. 2ª ed. 2005.

VIOTTI, Liliana. Texto: Formação em projeto Minotauro. Brasília:


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