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ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO

Consciência de finitude, sofrimento e espiritualidade


Conscience of finitude, suffering and spirituality
Conciencia de la finitud, sufrimiento y espiritualidad

Alexandre Andrade Martins*

RESUMO: O ser humano diante da morte sofre a dor indescritível do fim da existência. Perto do fim, sentimentos de angústia, medo,
solidão e tristeza surgem com muita força e podem levar a pessoa humana ao desespero. Sendo assim, este trabalho enfatiza o ser
humano diante da sua morte. Em um diálogo com a filosofia, fazemos uma reflexão sobre a morte e seu processo: o morrer. Queremos
mostrar a importância de se pensar sobre o fim da existência na primeira pessoa do singular, isto é, cada um pensar a sua própria morte
e, para isso, apresentaremos fundamentos filosóficos e teológicos importantes para o debate bioético sobre o fim da vida, sobretudo em
relação a pacientes terminais. Neste trabalho, defenderemos a importância da reflexão filosófica e antropológica na discussão sobre a
morte e o morrer e também a reflexão teológica – espiritual. Nossa convicção é que a fé tem uma importante função para o ser humano
diante do desafio de enfrentar a sua própria morte.
PALAVRAS-CHAVE: Morte. Filosofia. Fé.
ABSTRACT: Human beings before death suffer the indescribable pain from the end of existence. Close to the end, intense feelings of
anguish, fear, solitude and sadness appear and they can take the person to desperation. Due to this, this work aims to emphasize the
condition of human beings before death. In a dialogue with philosophy, we make a reflection on death and its process: dying. We want
to show the importance of thinking on the end of existence in the first person of the singular, that is, each person thinks about her own
death and, for this, we will present important philosophical and theological bases for the bioethical debate on the end of life, over all
in relation to terminal patients. In this work, we will also defend the importance of the philosophical and anthropological reflection in
the debate on death and dying and the theological (spiritual) reflection. Our certainty is that faith has an important function for the
human that faces the challenge of her own death.
KEYWORDS: Death. Philosophy. Faith.
RESUMEN: Los seres humanos ante la muerte sufren el dolor indescriptible del final de la existencia. Cerca del fin, las sensaciones
intensas de angustia, miedo, soledad y tristeza aparecen y pueden llevar a la persona a la desesperación. Debido a esto, este trabajo
pretende acentuar la situación de los seres humanos antes de muerte. En un diálogo con la filosofía, hacemos una reflexión acerca de
la muerte y su proceso: el morir. Deseamos demostrar la importancia del pensamiento en el final de la existencia en la primera persona
del singular, es decir, cada persona piensa su propia muerte y, para esto, presentaremos importantes bases filosóficas y teológicas para la
discusión bioética acerca del final de la vida, sobre todo en lo referente a pacientes terminales. En este trabajo, también defenderemos
la importancia de la reflexión filosófica y antropológica en la discusión sobre la muerte y el morir y la reflexión teológica (espiritual).
Nuestra certeza es que la fe tiene una función importante para el ser humano que hace frente al desafío de su propia muerte.
PALABRAS LLAVE: Muerte. Filosofia. Fe.

Introdução passa é um dia mais próximo da dor e o fim da vida faz parte da op-
morte (porém vivemos na angústia ção de vida.
Falar sobre a morte é algo difícil de não sabermos quando será esse Tentando ajudar na reflexão
em nossa cultura, porém necessá- grande dia). Existem pessoas que li- sobre a morte e seu processo (o
rio, pois ela está presente em todos dam bem próximo da morte do ou- morrer), sem a pretensão de abor-
os momentos da vida, seja ouvindo tro, falo dos profissionais de saúde, dar todas as problemáticas que en-
ou vendo a morte do outro (uma sobretudo médicos, enfermeiros e volvem o tema, apresentamos um
pessoa próxima a mim, parente por agentes de pastoral da saúde (in- texto, fruto de pesquisa bibliográfi-
exemplo, ou um estranho que vejo cluímos também os padres capelães ca, da experiência de agente de pas-
no noticiário), seja olhando para hospitalares). Para essas pessoas, o toral da saúde e dos debates sobre
mim mesmo, pois a cada dia que conviver com o sofrimento, com a o tema em questão,sobretudo no

* Religioso Camiliano. Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção. Estudante do curso de especialização
em Bioética e Pastoral da Saúde no Centro Universitário São Camilo. Graduando de Teologia na UNISAL.
E-mail: alefilosofia@yahoo.com.br

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curso de Especialização em Bioética O Homem tem, na sua consti- O ser acaba, morre. A possibili-
e Pastoral da Saúde do Centro Uni- tuição ontológica, a abertura para dade por excelência é a morte. Ela
versitário São Camilo. as coisas e faz parte da sua substân- diz respeito ao próprio ser do Ho-
O texto segue um roteiro sim- cia estar aberto às coisas e aos ou- mem, finaliza sua existência. A voz
ples e de fácil compreensão.Tra- tros humanos. Tem a “necessidade da consciência chama-o a si mes-
çamos uma reflexão de cunho fi- do mundo e das coisas que o cons- mo, ao que é e não pode deixar de
losófico sobre a morte e o morrer; tituem e que são a realidade útil, ser: um ser-para-a-morte. Para o Ho-
destacando o como é importante os instrumentos da sua vida e da mem encontrar seu verdadeiro ser
pensar sobre a morte e o sofrimen- sua ação. Estar no mundo significa autêntico é necessário reconhecer a
to causado por sua iminência; e, para ele (Homem) cuidar das coisas: possibilidade da morte e assumi-la.
baseado nessa intenção, pensar a mudá-las, manipulá-las, repará-las, Conceber a morte como parte fun-
nossa própria morte. construí-las e esta preocupação, damental do seu ser, compreender
Nosso trabalho não visa abor- por ser característica do homem a possibilidade inegável da impos-
dar questões técnicas do mundo da enquanto está no mundo, deter- sibilidade da existência enquanto
saúde; estamos preocupados com mina também o ser das coisas do tal. Porém, tomar consciência da
o aspecto antropológico, filosófico, mundo” (Heidegger apud Abbgna- possibilidade da morte não deixa
espiritual e solidário do ser huma- no, 1970, p. 197-198). É próprio do o Homem inerte, imóvel e sem a
no diante da morte. ser do homem utilizar das coisas e é menor perspectiva de realização.
próprio das coisas serem utilizadas É justamente o contrário. Abre-o à
pelo Homem, pois só assim ambos sua temporalidade e mostra a im-
Sobre a morte e o morrer ganham algum sentido. portância de uma existência autên-
O Homem é um “ser lançado
1 A existência do Homem vai-se tica e realizada.
constituindo do uso das coisas feitas A compreensão de ser-para-a-
no mundo”. Essa afirmação é do
no tempo, no seu tempo: entre o morte vem acompanhada da angús-
filósofo alemão Martin Heidegger.
início e o fim da vida. O Homem é, tia. “A angústia é a situação emoti-
Iniciamos com uma frase forte des-
portanto, um ser de possibilidades, va capaz de manter aberta a contí-
te filósofo porque partilhamos da
ou seja, tem possibilidades de usar nua e radical ameaça que sai do ser
mesma concepção e também por-
as coisas de um jeito ou de outro; de mais íntimo e isolado do homem”
que o seu pensamento acompa-
utilizar uma ou outra; enfim, pos- (Heidegger apud Abbagnano, 1970,
nhará (algumas vezes como plano
sibilidade de escolher. Nesse bojo, p. 207). Ela faz o Homem sentir-se
de fundo e outras vezes diretamen- “em presença do nada, da impossi-
a vida humana vai-se constituindo
te) nosso percurso reflexivo sobre a e se desenvolvendo. Contudo, só bilidade possível da sua existência”
morte e o morrer. ficar nesse estado de uso das coisas (Ibid.) Coloca o Homem diante do
O Homem é um ser lançado não proporciona uma existência nada, do fim, da morte. A angústia
num mundo hostil, isto é, o mundo autêntica, não revela o significado revela também o sentido autêntico
é um lugar que não acolhe o ser com autêntico da presença humana no da presença do Homem no mundo.
compaixão e misericórdia. O mundo mundo. Sua consciência anseia por Ela antecipa o nada, levando a pes-
recebe o Homem e não se preocupa uma existência autêntica, aberta às soa a compreender sua existência e
com ele, é somente mais um ente estruturas ontológicas para trans- a transcender no tempo.
lançado na existência em um lugar cender o mundo. Para isso ocor- Chegamos a um ponto impor-
nada amistoso, porém não é possí- rer, o Homem deverá ouvir a voz tante da nossa reflexão, que, de-
vel existir fora do mundo, portanto da consciência incitando-o à verda- pois de toda nossa viagem filosó-
ser é estar-no-mundo. Tudo realizado deira existência. Para isso ocorrer, é fica (importante e fundamental),
pelo Homem acontece no mundo, preciso voltar à sua ontologia, suas encaminharemos a reflexão para
não há como fugir. A existência do manifestações ônticas e perceber: o mais próximo do nosso contexto e
ser humano é transcendência no Homem é um ser de possibilidades objetivos do trabalho. A angústia,
estar-no-mundo. Existir é essencial- realizadas dentro da temporalidade como falamos, revela o real sentido
mente transcendência. Desse modo, existencial, marcada pelo intervalo da existência humana, pois colo-
o Homem ao dar significado para o entre finito e infinito, pela solidão ca o Homem diante do nada. Com
seu hábitat, projeta-se nele e utiliza e sociedade, pelo envelhecimento essa idéia, transportaremos esse
as coisas para transcender. e pela mortalidade. argumento para a dor e para o so-

1. Sempre usaremos o termo Homem, com a inicial maiúscula, referindo-se à humanidade e não ao gênero masculino.

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frimento como situações humanas dor (agora sempre que falarmos de causa medo, pois encontra a maio-
de extrema angústia, porque coloca dor,entenda-a unida com a angús- ria das pessoas despreparadas; pas-
o ser diante da morte. tia) em si não tem sentido. Muitos saram (quase) toda a vida em uma
A dor é uma experiência única tentam encontrar sentido objetivo existência inautêntica, não deixa-
e particular. Ela gera sofrimento e, nela. Não é fácil, mas é possível. ram espaço para refletirem sobre
de certo modo, antecipa a morte, Talvez o despertar para a consciên- o fim em primeira pessoa. No leito
ou melhor, leva a pensar a morte cia da morte seja o sentido objetivo, do hospital, começam a perceber a
(para nossa realidade é uma coisa portanto a dor em si tem um sen- falta que isso faz. Muitos (para não
impensada e escondida, apesar de tido objetivo. A dor também tem, dizer a grande maioria) concluem
pessoas morrerem todos os dias). sobretudo, um sentido subjetivo, de que teriam optado por caminhos
Convivemos diariamente com a pois é vivida dentro da realidade do e realizações diferentes.
morte, porém com o falecimento indivíduo, e essa subjetividade está Refletir sobre a morte, compre-
do outro. Sempre estamos falando junto com o despertar, logo, a dor ender que o Homem é um ser lan-
dela, mas em terceira pessoa, muito desperta a consciência da morte çado no mundo e um ser-para-a-
distante de nós. Quando algum ente subjetivamente. morte, causa angústia, mas leva a
querido morre, tal fenômeno mexe O Homem vive acompanhado saber utilizar melhor as coisas (e
com a estrutura da pessoa que sofre pela dor. Há uma existência sem a convivência com o semelhante
a perda, sentimentos angustiantes dor? Há momentos na vida so- também). A dor, fiel acompanhante
brotam, chegando até a manifesta- mente de puro gozo? Talvez exis- do Homem, o desperta à existência
ções fenomênicas, como o choro. tam momentos sem dor, com puro autêntica, é a abertura para chegar à
No entanto, não se pensa na morte gozo, mas são interrompidos pela consciência da possibilidade das im-
em primeira pessoa, e quando fala- dor e faz a existência ontologica- possibilidades e, assim, viver bem.
mos sobre o assunto, é do outro, do mente se sentir ameaçada. Vivemos numa sociedade que
morto. O sentimento de dor depois “A dor nos vem então acompa- tenta esconder e fugir da morte.
passa, pois a “vida continua”, assim nhar e antecipar a morte, especi- “Vida e morte estão intimamen-
o dizem, ficando somente a lem- ficando-se à própria do homem e te entrelaçadas, conscientemente
brança daquele que se foi. da mulher: no suor do rosto comerás unidas uma com a outra, não ape-
A morte pensada é sempre, em pri- o teu pão, que tornes à terra, pois dela nas nas culturas primitivas, mas
meiro lugar, a morte do outro; a proje- fostes formado (Gn 3.19); em fadigas em todas as civilizações, menos a
ção para si vem apenas num segundo obterás da terra o sustento durante os civilização industrial em que esta-
tempo. Ao passo que a dor experimenta- dias de tua vida (Gn 3,17)” (Leparg- mos imersos” (Lepargneur, 1986,
se em primeiro lugar, com provocação neur,1986, p. 27). O Homem, na p. 37). Essa afirmação de Leparg-
pessoal; só em seguida é que projetamos sua existência, é acompanhado neur, dita na década de 1980, ex-
sobre os outros o que a experiência que pela dor e a própria tradição bíblica pressa a situação do início do sécu-
fizemos nos ensinou (Lepargneur, afirma isso. Heidegger defende a lo XXI. Hoje tentamos tardar cada
1986, p. 25). existência autêntica como aquela vez mais a morte, e ela não é vista
A morte do outro, se é próxi- que compreende a possibilidade como algo natural, dentro de toda a
ma, causa um certo sofrimento, das impossibilidades, e nós acres- existência humana, constituída do
mas não a ponto de projetar a mi- centamos na dor com o despertar intervalo entre o finito e o infinito.
nha morte. No entanto, a dor que para essa compreensão. Muitas técnicas são desenvolvidas
sinto pode despertar para minha A vida é testemunhada pela dor para não deixar o doente morrer e
finitude. e pela morte como processo. “Toda quando alguém está perto do fim a
Na reflexão feita anteriormen- dor é lembrança, antecipação, sua autonomia é comprometida; a
te, percebemos que a angústia é participação, por pouco que seja, família não aceita a proximidade do
colocada no fim da compreensão por discreta e longínqua que seja, fim e tenta evitá-lo, mesmo à custa
do ser-para-a-morte, quando o Ho- do processo de morte” (Leparg- de maior sofrimento do moribun-
mem desperta essa consciência de neur,1986, p. 31). Essa participação do. Elizabeth Kübler-Ross defende
finitude. Aqui vamos colocar a an- e antecipação do fim pela dor tor- que a vontade do paciente deve
gústia no início também. Ela como na-se mais presente e forte no hos- ser respeitada. Se ele quer mor-
responsável (não sozinha) pelo pital, quando se está acometido por rer naturalmente, que se faça sua
despertar à morte; angústia atre- uma doença grave, principalmente vontade. O paciente terminal tem
lada (podemos dizer também que se for incurável. No leito hospitalar, uma linguagem difícil de ser com-
provoca) à dor e ao sofrimento. A a morte torna-se real, próxima e preendida, pois muitas vezes não é

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verbal e isso exige grande atenção, atribui a culpa a um Ser superior). impossibilidade das possibilidades”.
dificultando como saber a vonta- A espiritualidade é um fator muito Ele encontra um sentido para a sua
de do moribundo. O querer uma presente nos pacientes próximos dor e sofrimento. Acredita no en-
morte natural, ou não, faz parte da morte. A grande maioria dos contro definitivo com o Criador, o
da dimensão ontológica do ser. É agonizantes, não tendo mais em Ser Superior, e ver a morte como
a compreensão tardia de que é um que se agarrar e a quem recorrer, um fato inevitável e bom para o ser
ser-para-a-morte. Não podemos des- deposita sua esperança na fé. Em finito unir-se definitivamente com
crever o sentimento, o tamanho do se tratando de fé cristã, a confiança o infinito.
sofrimento do agonizante, mas te- está na ressurreição dos mortos e A existência é única, marcada
mos uma certeza: é uma passagem no céu, “lugar onde habita as almas pela temporalidade e pela contin-
difícil, principalmente para aqueles dos bons”. gência. Fazer dela algo bom e re-
que nunca deixaram espaço para O Homem de fé passa por todo o alizador é passar pela angústia da
alcançar a consciência da finitude. processo descrito com o ingredien- compreensão da finitude e fazer o sal-
No nosso contexto social, a mor- te da sua crença. A fé dá esperança to na fé para, assim, trazer a morte
te é algo incompreensível e inacei- e conforta a alma. Ela oferece um da terceira pessoa para a primeira
tável, pois vivemos em meio a uma sentido para a dor e para o sofri- do singular; confiar na esperança
super valorização dos bens tempo- mento, levando a uma preparação oferecida pela fé e não ter medo
rais, do material e, morrendo, não para a morte e, em muitos casos, a do fim, pois ele é a oportunidade
se pode mais usufruir das coisas pro- desejar a morte, porque ela propor- do encontro com o infinito e esse
porcionadas pela sociedade tecno- cionará o encontro definitivo com é o objetivo supremo da constante
lógica e consumista. Se o sentido o Ser Criador. Morte, então, nessa busca do ser humano.
das coisas é o de serem usadas pelo perspectiva, não é perda, mas um
Homem (e é próprio da nossa es- ganho, pois o ser ultrapassa o limite Conclusão
pécie usar as coisas), com a morte, humano dessa existência finita para
tudo perde o sentido. O morto não ter um encontro com o infinito. Essa Sofrimento e morte fazem par-
fará mais essa utilização. Nessa pers- atitude, que é a de um indivíduo de te da existência humana. Todos
pectiva, as coisas e o Homem — fé, não ocorre com qualquer teísta. passam por algum tipo de sofri-
morto — não existem mais. Sendo Somente com aqueles que fazem mento (uns mais, outros menos)
assim, não haveria porquê ter essa um salto na fé e depositam toda sua
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e morrem. Com esse nosso texto,
preocupação materialista de, com a confiança no Ser Transcendente, pretendíamos mostrar que o ser
morte, não usufruir mais das coisas. mesmo com a razão dizendo ser um humano é um ser-para-a-morte e
Morrendo, nada existe mais. O uso absurdo fazer esse salto. ter essa consciência de finitude,
das coisas são feitas no intervalo da O homem que fez o salto na fé, quanto mais cedo adquirida (refle-
existência. O Homem atual não “nada contra a maré” do mundo tindo a morte em primeira pessoa),
quer aceitar essa realidade. Existir é materialista. Vimos morte como pode ajudar na compreensão da
estar-no-mundo e o mundo só existe a perda da possibilidade de usu- existência humana, percebendo-
enquanto existimos. Morreu, aca- fruir as coisas do mundo e por isso a como existência de possibilidade
bou tudo. É a possibilidade que faz ninguém aceita o fim, logo, nessa e a importância de fazer escolhas
tudo se tornar impossibilidade. concepção, a morte é uma grande para uma vida mais realizada. Em
Dentro de tudo isso que fala- perda e não pode ser pensada. Po- outras palavras, propusemos uma
mos, podemos acrescentar mais um rém, para o indivíduo de fé, morte é reflexão sobre a morte em primeira
elemento: a espiritualidade. Essa di- ganho, o maior ganho que alguém pessoa para que todos possam es-
mensão traz uma grande esperança poderá ter, pois encontrará com a colher com mais lucidez diante de
ao Homem que está diante do seu razão última do seu viver: a volta inúmeras possibilidades e, assim,
fim. Nesse sentido, ela pode con- para o Criador. buscar uma existência realizada.
tribuir para um final de vida mais O aspecto da espiritualidade Tudo isso não acontece sem a
tranqüilo (por mais que, em al- apresentado parece-nos contradi- angústia, sem a dor, sem o sofri-
guns casos, provoque revolta, pois zer tudo que falamos. Todavia não mento; sentimentos importantes,
o indivíduo pode-se encontrar em são aspectos opostos. O Homem pois despertam a consciência de
uma situação tão deprimente que de fé vai além da “compreensão da finitude.

2. Salto na fé: retiramos esse conceito da obra do filósofo dinamarquês Sören A. Kierkegaard. Usamos o termo como ele concebia: uma experiência religiosa de total entrega
e confiança em Deus. Cf. Kierkegaard S A. Temor e tremor. 3a ed. São Paulo: Nova Cultural; 1988.

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Mostramos, também, que, no (no caso do cristianismo, a certeza não pode ser dado por ser humano
momento da morte, a dor é maior. da ressurreição), mas constatamos algum de forma tão completa, que
Contudo, para os moribundos que na pesquisa de campo, acompa- chegue a alcançar também a famí-
fizeram um salto na fé, esse mo- nhando pacientes terminais. Cons- lia sofredora com a perda do ente
mento tende a se tornar menos tatamos claramente o conforto querido. A espiritualidade deve ser
trágico, porque a fé oferece uma proporcionado pela certeza da fé. considerada ao lidar com pacientes
certeza impossível de ser oferecida Notamos uma morte mais sere- terminais, pois somente a fé res-
pela ciência. na, confiante no encontro com o ponde o que é absurdo à ciência.
Não podemos provar a certeza transcendente e na ida para uma A certeza da fé vai além dos limites
da fé em uma vida após a morte realidade melhor. Esse conforto da racionalidade.

REFERÊNCIAS

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Vendrame C. A cura dos doentes na bíblia. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola; 2001.

Recebido em 9 de janeiro de 2007


Versão atualizada em 6 de fevereiro de 2007
Aprovado em 27 de fevereiro de 2007

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