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Durante muito tempo o indivíduo foi tratado evidenciando a dicotomia corpo e mente,

sem relacionar a psiqué com a estrutura física que constitui o homem. Freud
compreende um corpo unificado à mente, que padece e adoece à medida que esta
incorpora desprazeres ou eventos traumáticos em um lugar inconsciente, mas que se
revela através de representações sutis. Para a psicanálise, esse corpo é objeto do
psiquismo e possui uma relação de significação com a história do indivíduo (Lazzarini e
Viana, 2006). Freud identificou aspectos corporais sintomáticos nas histéricas, até então
incompreensíveis à medicina, e os relacionou a uma linguagem.
Hoje, o senso comum já afirma que o corpo é capaz de “falar”, e que características
físicas podem revelar nuances da personalidade e desejos de uma pessoa. Para Freud, o
sintoma é a comunicação do recalque, é a forma que o inconsciente manifesta “um novo
método de satisfazer a libido” (Freud, 1916, 1917). A partir daí, desenvolve uma técnica
para dar conta da origem desses sintomas.
“Diga, pois, tudo que lhe passa pela mente. Comporte-se como faria, por exemplo,
um passageiro sentado no trem ao lado da janela que descreve para seu vizinho de
passeio como cambia a paisagem em sua vista.” (Freud, 1913, p.136). A associação
livre psicanalítica consiste na fala sem censuras, sem amarras, um discurso livre do que
vem à mente do analisado. É justamente quando não há obstáculos que a psique divaga
espontaneamente, revelando “os elementos que estavam em condições de liberar os
afetos, as lembranças e as representações” (Roudinesco, 1998, p. 649).
No caso clínico de Elizabeth Von R. Freud se depara com uma jovem histérica que
apresenta dores intensas nas pernas e dificuldade de deambular. Sua história, marcada
pelas perdas do pai e da irmã, parece exercer forte influência no aparecimento dos
sintomas. Neste caso, porém, o psicanalista não consegue estabelecer a hipnose como
terapêutica e passa a utilizar um método catártico diferente do original que relacionava a
fala em associação com toques expressivos na cabeça.
Durante o processo, Elizabeth relata assumir o cuidado principal de seu pai enfermo e
que, no decorrer deste período, se afeiçoa por um jovem, mas que renuncia qualquer
envolvimento em virtude da condição do pai e da necessidade de dedicar-se
integralmente ao seu cuidado. Lembra que foi justamente nessa época que percebeu os
primeiros sintomas. Freud constata o sucesso da técnica quando a própria paciente
consegue, através dos insights provocados pelo livre falar, identificar a razão do
surgimento de suas dores localizadas na coxa e a motivação de seus sintomas: a
repressão de um amor e o conflito entre seu desejo e sua obrigação como cuidadora. O
psicanalista observa que as dores da jovem flutuam conforme ela fala:
O que tenho em mente é o seguinte fato notável: em geral, a paciente estava
sem dor quando começávamos a trabalhar. Se então, por meio de uma
pergunta ou pela pressão na sua cabeça, eu despertava uma lembrança, surgia
uma sensação de dor, e esta era comumente tão aguda que a paciente
estremecia e punha a mão no ponto doloroso. A dor assim despertada
persistia enquanto a paciente estivesse sob a influência da lembrança;
alcançava seu clímax quando ela estava no ato de me contar a parte essencial
e decisiva do que tinha a comunicar, e com a última palavra desse relato,
desaparecia. Com o tempo, passei a utilizar essas dores como uma bússola
para minha orientação: quando a moça parava de falar mas admitia ainda
estar sentindo dor, eu sabia que ela não me havia contado tudo e insistia para
que continuasse sua história, até que a dor se esgotasse pela fala. Só então eu
despertava uma nova lembrança. (Freu,1893, 1895)

Em outro momento, a jovem, ao falar sobre seu cunhado e a relação de


admiração, e até inveja, pela conquista de sua irmã, demonstra passar por dores
intensas. Freud adentra nesta lembrança, pois acredita que ali encontra-se o foco dos
sintomas. Elizabeth descreve o passeio acompanhada do marido de sua irmã e das
conversas que teve, e como percebeu o quanto ansiava por um companheiro. Com a
morte da irmã, seu desejo pelo cunhado fica mais evidente e seus pensamentos mais
primitivos vêm à tona: posso me tornar sua esposa agora que está livre.
A ternura e amor que nutria pelo cunhado e a culpa pela morte da irmã, sem que
pudesse prestar seus cuidados ou se despedir, além da sensação da imoralidade e do
pecado que atravessava seus pensamentos por conta de suas pulsões, resultaram em seu
adoecimento. Toda situação erótica recalcada e afastada de um cenário de afeto e de
concretização de seu desejo, para não ter que lidar com aquilo que concebia ser errado e
repugnante.
Seus quereres primitivos abafados pelo inconsciente eram tão terríveis, mas ao mesmo
tempo tão satisfatórios, que seu corpo manifesta em uma linguagem sintomática. O
corpo expressa aquilo que o sujeito não fala, e é por meio da fala que o corpo encontra
sua cura.

Referências:
BREUER, J.; FREUD, S. (1895). Estudos sobre a histeria. In: FREUD, S. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 2. Rio
de Janeiro: Imago, 1990, p. 15-297.
FREUD, S. (1917[1916-17]). Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. In: FREUD,
S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
v. 16. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 287-539.
Lazzarini, Eliana Rigotto e Viana, Terezinha de Camargo. O corpo em psicanálise.
Psicologia: Teoria e Pesquisa [online]. 2006, v. 22, n. 2 [Acessado 28 setembro 2021],
pp. 241-249. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-37722006000200014>.
Epub 13 Nov 2006. ISSN 1806-3446. https://doi.org/10.1590/S0102-
37722006000200014.
MENDONÇA, Aline Maria M. V. Drummond. Aula 5: Neurose, psicose e
perversão. Universidade Veiga de Almeida, 21, set. 2021.
ROUDINESCO, Elisabeth. (1998). Dicionário de Psicanálise. Jorge Zahar Editor, Rio
de Janeiro.

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