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Resenha crítica do livro Bruno - psicomotricidade e terapia

de Aucouturier e Lapierre

Embora não seja este o tema central do livro, fica evidente a importância do
olhar notório e individual à criança. Que a enxerga como um todo, como um sujeito, e
não como um depósito de expectativas do adulto. Aucouturrier teve a sensibilidade de
distinguir o ser da patologia e de concentrar-se na singularidade de Bruno.
O histórico de Bruno não era otimista, tampouco o prognóstico era promissor. Mas o
terapeuta, dotado de empatia e grande conhecimento a respeito do desenvolvimento
humano, evolucionista, antropológico, soube conduzir um tratamento psicomotor com
vistas às peculiaridades daquela criança e projetado especificamente para ela e sua
condição.
Após uma gestação conturbada, o nascimento de Bruno foi marcado por
violências, o que favoreceu a ocorrência das patologias. Também sua mãe padece e
precisa de cuidados, o que faz com que Bruno passe por longos períodos de ausência
materna. Pouco se fala a respeito do pai. O que fica manifesto na primeiríssima infância
do menino, é justamente uma falta de vínculo parental, de rotina – essencial nos
primeiros anos de vida. Essa conduta torna opaca a percepção de que algo diferente
havia em Bruno e atrasa uma possível intervenção.
A ausência de linguagem, dificuldade em ações simples do cotidiano, o
desenvolvimento motor exíguo e a falta de ação são características da criança nessa
fase. Bruno mantém-se como espectador de sua própria vida, vê os outros, mas não
imita, não reage, não deseja. A bagagem psicológica potencializa as especificidades
orgânicas e, inclusive, dissimula alguns sintomas como a retenção esfincteriana, por
exemplo. É essa a realidade do menino ao começar seu caminho terapêutico.
O tratamento iniciou-se tardiamente, aos 7 anos e meio, após outras tentativas
mais tradicionais que se mostraram nada eficientes. Enquanto estas viam as falhas e
deficiências que a criança apresentava, a terapia de Aucouturrier visava destacar suas
habilidades e potencialidades, o que empenhou significativa transformação, embora
gradual, na evolução de Bruno. A terapia proposta por Bernard e Andre dividiu-se em
fases:
O contato corporal: no qual o terapeuta coloca-se ao mesmo nível do menino, no chão,
em quatro apoios, assumindo uma postura de respeito e igualdade. Ao se apresentar, tal
sugere Freud, como espelho, a fragilidade do sujeito é representada ali com o
acolhimento do terapeuta, proporcionando uma identificação, favorecendo, inclusive, a
instituição da transferência. A transferência implica no deslocamento de valores, objetos
e impressões, e na repetição de afetos, fundamentais na relação entre os dois.
O objeto transacional: ao introduzir um objeto mediador entre eles, Bernard permite
que Bruno disponha ali parte de sua afetividade, dando início a um pequeno
distanciamento, mas fundamental para o desenvolvimento de sua autonomia.
O objeto meio de comunicação: introdução de novos objetos, as cordas. Estabelece-se
os primeiros sinais de comunicação entre eles, os gritos e a imitação. Por sermos seres
sociais, que aprendem através da imitação e da sensação de pertencimento, ao perceber
uma similaridade com Bernard, Bruno fica livre para estabelecer novos contatos.
Objeto sonoro e o aparecimento da linguagem: objetos que proporcionam sons e uma
respectiva brincadeira de provoca-los, vira uma linguagem bastante particular. Neste
momento, Bruno pronuncia sua primeira palavra - de forma espontânea - fazendo
Bernard acreditar que existe um repertório abafado pelo desejo do outro.
Comunicação grafo-sonora: nesta fase, Bruno começa a relacionar os sons à traços,
pontos e desenhos. Além disso, a comunicação se estabelece para além da imitação e
passa a atingir o nível da complementariedade estrutural. Ao impor seu traço sob o
quadro de madeira e dar continuidade à brincadeira de apagar e riscar, a criança
novamente ressalta sua “vontade de existir”, como bem coloca o autor.
Cooperação construtiva: novos objetos passam a fazer parte do espaço, agora menos
estruturados e afetivos. Inicia-se uma parceria na construção de “cabanas” e para o
empilhamento do material. Trata-se de um aspecto importante para a evolução de
Bruno, o de estabelecer uma nova forma de relação com o objeto, menos afetiva, mais
racional e construtiva.
Pintura e liberação fóbica: é no desconforto com as manchas de tinta sob a pele que
Bruno passa a vocalizar mais. A atividade estressora serve como aprendizado de
autorregulação e superação.
Ao findar um ano de registro das práticas terapêuticas, a evolução de Bruno era
evidente. Existia nele uma afirmação de si mesmo, antes desconhecida. Bruno assume
seu lugar de sujeito e passa de espectador para ser ativo e desejante. Apesar da
deficiência neurológica, sua bagagem emocional era tamanha, que impedia que suas
habilidades pudessem se destacar. Era, como dizia sua mãe, inerte. Uma criança sem
desejo de ser e, “na ausência do desejo positivo, não há evolução possível”.
Bruno não foi “curado”. Embora, após o término do período de 3 anos e da
institucionalização em outros locais terapêuticos e centros educacionais especializados,
foi possível observar melhora significativa na marcha, manipulação de objetos e
linguagem, por exemplo, o trabalho é contínuo. Sua evolução certamente foi possível,
graças ao afeto, ao olhar e sorriso tranquilizadores do terapeuta, à libertação de
expectativas (irreais) e à aceitação de Bruno como ele era, com seu próprio ritmo. Uma
terapia não tradicional, mas centrada no ser que ali está e em toda as suas
potencialidades.

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