O papel do psicólogo/psicanalista nas situações de desastre
Segundo Freud, trauma é um afluxo excessivo de excitação não tolerável pelo
aparelho psíquico, provocado por uma vivência violenta ou por um acúmulo de excitações que, se vividas separadamente, seriam toleráveis (Laplanche, Pontalis, 1970). O desastre ocorrido na serra fluminense, em março deste ano, é marcado por vivências de ordem traumática, por experiências de ruptura, de traspassamento de cotidianidade e do encontro visceral com a falta. As muitas perdas (de vidas, de lares, de objetos) atravessam os sujeitos que agora precisam lidar com essa ausência. Embora a condição de falta seja inerente ao sujeito, que se constitui a partir da sua incompletude, da sua castração, o desastre revela uma perda abrupta, precoce e de intenso sofrimento, deixando um sujeito vazio e dividido, incapaz de simbolizar suas faltas e com sua subjetividade abalada. O trabalho do analista em situação de emergência é criar condições para que o sujeito possa enunciar essas faltas e seja capaz de lidar com o real. A escuta analítica deve proporcionar o acercamento da subjetividade, afetada pelo desastre, oportunizando a elaboração daquela vivência. Daí a importância da associação livre para percorrer as representações e alcançar a cena traumática, podendo, assim, decantar os sintomas do sujeito. É a partir da fala desprendida de julgamento e trazendo livremente o que lhe vier à cabeça, que o sujeito manifesta aquilo que o afeta, permitindo sua elaboração. É neste momento que a posição “opaca” do analista deve prevalecer, assumindo o lugar de objeto a, de escuta livre de suas próprias subjetividades, permitindo que o sujeito vá ao encontro de seus traumas para que seja possível elaborá-lo e executar seu ato. Embora essa postura do analista seja importante, adotar uma atitude empática e solidária não a desconsidera ou desatende, pelo contrário. Ao se apresentar, tal sugere Freud, como espelho, a fragilidade do sujeito é representada ali com o acolhimento do analista, proporcionando uma identificação, favorecendo, inclusive, a instituição da transferência, principalmente em primeiro contato em situação de desastre. A transferência implica no deslocamento de valores, objetos e impressões, e na repetição de afetos, fundamentais na relação sujeito e psicanalista. E é por meio do livre falar que é possível instaurar a transferência no vínculo analítico e, portanto, de operar com a própria transferência para compreender a cena traumática e depurar os sintomas do sujeito. Referências bibliográficas
Freud, S. Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise (1912). In:
Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia em autobiografia (“O caso Schereber), artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol.10. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo. Cia. Das Letras. 2010.
Freud, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia em autobiografia (“O caso Schereber), artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol.10. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo. Cia. Das Letras. 2010.
Freud, S. Recordar, Repetir e Elaborar (1919). In: Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia em autobiografia (“O caso Schereber), artigos sobre a técnica e outros textos (1911-1913) – Obras completas, vol.10. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo. Cia. Das Letras. 2010.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. 2.ed. Santos: Martins