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EXPERIÊNCIAS TRANS E CONTORNOS DO INDIZÍVEL


Para Todos Um Indizível, Para Cada Um Seus Contornos

Rafaela Coelho de Ávila1

Experiências trans e contornos do indizível. Diante disso saltou


imediatamente aos olhos do pensamento a questão: o que é, afinal de contas, a
experiência trans? Pareceu impossível definir algo sobre a verdade disso. O que é a
experiência trans?! Toda definição parecia parcial, tendenciosa, científica demais ou
retórica demais ou generalista demais ou indefinida demais. Muito se pode dizer
sobre isso, mas algo queria justamente um dizer que não só contornasse, mas que
encostasse na coisa. Mas pra poder encostar o contorno na coisa contornada, pra
poder encostar a palavra trans na experiência, só havia um caminho: vivê-la. E isso
não é para todos.
Mas também outra questão se revelou logo em seguida: o que seriam os
contornos do indizível? O pensamento deu voltas e voltas e voltas e... ah, é isso!
Pareceu sensato dizer que são exatamente as voltas do pensamento, os percursos
da experiência, os trajetos que um sujeito faz, com palavras, com a imagem do
corpo, com o corpo — as amarrações entre o Simbólico, o Imaginário e o Real,
respectivamente. Demandas imaginárias que dão voltas, realizando um percurso
que pode vir a cingir o buraco simbólico do desejo, que, por sua vez, se revela
contornando o vazio do real. Enfim, não é a intenção falar aqui dessas categorias
teóricas da psicanálise, logo cabe pensar que entre a “experiência” e “os contornos
do indizível” se interpôs um significante: “Trans”. O que fazer com isso?
Ser trans. Eis a questão. Não... será mesmo que esta é a questão? Será que
é isso, o ser trans, que está em questão na experiência trans? Ou, a questão da
experiência trans diz mais respeito a um indizível e os seus contornos?
E se pensássemos a experiência trans como a descoberta de um outro sexo?
Ou, talvez, como a descoberta de um outro outro em nós? Uma íntima, um tanto
quanto familiar, mas também estranha e inquietante alteridade do mesmo. Aquilo
que, no mesmo, é outro. É mesmo e outro ao mesmo tempo. Um ponto obscuro,
indizível, que, entretanto, poderia ter ficado oculto, mas por acaso,

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Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH-UFMG;
especialista em Clínica Psicanalítica na Atualidade pela PUC-MG e graduada em Psicologia pela PUC-MG.
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contingencialmente, se revela ao sujeito. E, então, é aí que o sujeito precisa


responder a isso; a isso que não fala, mas que pulsa, seja no corpo, na alma, nos
gestos. Esse indizível que grita silenciosamente, que não se diz, mas que se vive —
é a ele que o sujeito precisará acertar as contas de seu ser.
Como responder ao indizível pulsante? Como responder à experiência viva de
deslumbrar o outro sexo em nós? O que fazer com isso? É possível que a primeira
resposta de um sujeito seja “não sei o que fazer com isso”. Mas será preciso fazer
mesmo sem saber.
Pedir para um outro responder, copiar a resposta do outro, comparar diversas
respostas de diferentes sujeitos e deduzir uma síntese, construir pacientemente ao
longo do tempo uma resposta complexa, construir árdua e pacientemente ao longo
do tempo uma resposta simples, inventar uma resposta inédita, silenciar-se, matar-
se... tantas tentativas e erros, tantas voltas, tantos contornos possíveis em torno do
impossível; em torno daquilo com o qual não se negocia: seu ser — este que, por
estar amarrado na pulsão “designa um nível onde o sujeito parece estar sob uma
demanda, da qual não pode se defender” (Miller, 1997, p. 339).
Será preciso atravessar, ir através, transitar, transpassar, transversar pelo
verso e avesso dessa estranha alteridade em nós, para poder realizar a experiência
de escrever com a vida, com o corpo e com palavras algum ponto do indizível. Será
preciso ser trans de seu próprio ser.
Neste ponto, não falamos mais de ser trans, mas de ser. Bem como de um
movimento de sujeito que opera com seu ser. Passamos de um ser trans, para um
ser de sujeito. Contudo, são pelos contornos das respostas dadas por cada sujeito
ao seu ser que iremos desembocar nos nomes, e, logo em seguida, nas
nomenclaturas; e, quando se vê, já se está banhado por toda uma gramática
institucional e instituída, sedenta pelo indivíduo mas não por seu individual. E o
grande perigo desse banho é que, ao final, acaba-se por jogar o bebê fora junto com
água. Junto com as palavras que dão lugar para o sujeito, vai-se embora o sujeito.
Isto é: as respostas que o sujeito enuncia, para si e para o mundo, o salvam do
vazio solitário do indizível, mas pode lhe condenar à presença indiferente da
multidão. É uma escolha forçada. A bolsa ou a vida, velha questão evocada por
Lacan: o ladrão lhe aponta uma arma e diz: “é a bolsa ou a vida”. Como responder a
isso sem perder nada? Pois, a bolsa está desde já perdida, ou por deixa-la ir com o
ladrão ou por perder a vida e consequentemente a bolsa. Responder ao indizível
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trata-se de negociar com o inegociável. Jacques-Alain Miller (1997) elucida a relação


entre resposta e responsabilidade, vejamos: “O irresponsável é aquele que não pode
dar conta de seus atos, que não pode responder. É, precisamente, a resposta que
define a responsabilidade; responsabilidade é a possibilidade de responder” (p. 336).
Logo, trata-se de, por se posicionar como sujeito, responder, neste caso é a
responsabilidade de se implicar com o que se perde.
O nosso indizível, por não podermos dizê-lo, o contornamos, e ao contorná-lo
o perdemos. Nos contornos do indizível produzem-se perdas. Neste nível, toda
operação gera um resto, e é preciso responsabilizar também pelos restos.
A nomeação “Trans” vem como significante que permite condensar o que se
sabe, mas, também e sobretudo, o que não se sabe dessa experiência. A cada vez
que um sujeito com este significante “trans” é identificado ou se identifica, idêntico
ele fica com um outro, e assim perde algo de si mesmo, um pedaço de seu ser,
indizível. Pois a designação “trans” é um significante do Outro, seja este Outro a
medicina, as ciências socias, a psicologia, etc. Na experiência trans trata-se de um
sujeito que, por alguma razão, se alojou ou foi alojado neste significante, “trans”,
que, todavia, nada pode dizer a respeito da marca singular do sujeito, senão que diz
de alguns traços imaginários que suspendem e alienam sua singularidade na teia
das identificações sociais — para o bem e para o mal, vale ressaltar. Mas, até então
tudo bem, afinal, como fazer uma boa separação do Outro sem antes não ter se
alienado nele? “O fenômeno da transexualidade expõe, em cada caso, a
singularidade de um corpo às voltas com a diferença sexual, mas que
paradoxalmente encontram no coletivo uma forma de ancoramento” (Santos, 2021).
Clinicamente, é precisamente neste ponto que incide a prática psicanalítica ao
convocar o sujeito em seu estatuto ético, ou seja, como aquele que a isso responde:
“que tens a dizer sobre o fato de entender-se como trans?”; “o que isso tem que ver
com o seu indizível?”; “tem se responsabilizado pelos contornos que faz?”.
É enquanto prática de uma ética que a psicanálise, diante do fato trans, só
pode vir a interrogar acerca do lugar assumido pelo significante “trans” na
experiência. Nesse sentido, cabe falar do “trans na experiência” em detrimento da
“experiência trans”. Isto é o mesmo que dizer que a experiência trans, sob o ponto
de vista psicanalítico, não deve recair numa “trans-generalização” da experiência.
Acima de tudo aborda-se uma experiência singular de um sujeito. É por levar
isso a sério que a psicanálise se coloca em uma posição contrária à da ciência. Por
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um lado a medicina que propõe “curas” a partir da manipulação dos corpos


(protocolos endocrinológicos e cirurgias), por outro lado as ciências sociais que não
propõe curas, até mesmo por defender que não se tratam de patologias, mas,
todavia, propõe ou terapias ou adequações discursivas, seja dos sujeitos com as
instituições ou das instituições com o sujeito. Diferentemente disso, a proposta
psicanalítica não é a de negar e nem contraindicar a manipulação dos corpos, nem
de inflar ou invalidar as adequações discursivas; mas, sim, em seu núcleo mais real,
de reconhecer que não se trata de curar ou terapeutizar o sujeito, mas de fazê-lo
existir em sua potência ética, para que ele possa responder por aquilo que, no seio
de seu indizível, lhe marca em sua pura diferença, esta sim, incurável.
Em seu último ensino Lacan diz que “o ser sexuado se autoriza de si mesmo
[...] e de alguns outros” (Lacan, 1974-75, inédito). Ao comentar esta afirmação de
Lacan, Fabián Fajnwaks mostra que isso “implica reconhecer que o ser sexuado não
precisa procurar no Outro sua nomeação sexual, mas que ele pode articular ele
mesmo o modo de gozo que vai defini-lo sexuado [...] implica centrar a sua relação
com o gozo a partir do UM só, e já não mais do Outro” (Fajnwaks, 2020, p. 38). Isto
é, não há cura para o que é do regime do gozo, há, todavia, os arranjos e sintomas
que cada um encontra para lidar com o real furo da sexualidade. Sendo assim, a
própria sexualidade de um sujeito pode ser encarada como uma resposta
sinthomática, ou seja, que a partir de seu gozo um sujeito possa sustentar um
sintoma homem ou um sintoma mulher, ou um sintoma queer, etc., se autorizar disso
e então se nomear.
Ao transitar pelos territórios da ciência, das teorias, das instituições,
classificações e nomeações, a prática psicanalítica não pode se perder de sua
própria via crucial, que é: a escuta e a escrita do ser de um sujeito. Se a princípio
partimos de um indizível, visamos alcançar os vestígios de um dizer. Propondo ao
sujeito um caminho possível, construir e encontrar as palavras que indicam, que
demonstram, que ressoam o nó íntimo de sua experiência. Forjar o contorno, o nó
desse dizer indizível que não se encadeia na cadeia dos ditos, mas que localiza
todos os ditos.
É sob essa perspectiva que podemos considerar, portanto, a subversão do
tema proposto neste trabalho. De “Experiências Trans e Contornos do Indizível”
atravessar para “O ‘Trans’ na Experiência e Contornos do Indizível”. Afinal, para
todos um indizível, para cada um seus contornos — e transições.
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REFERÊNCIA:

Fajnwaks, F. (2020) Despatologizar a Transexualidade. In Capanema, C. A (org);


Durães, F (org); Miranda JR, H. C (org); Motta, J. M (org) et al. Curitiba: CRV.

Lacan, J. (1974-75) O Seminário: RSI, livro 22. Inédito.

Miller, J-A. (1997). Patologia da ética. In Miller, J-A. Lacan Elucidado: palestras no
Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Santos, Niraldo de Oliveira. (2021). Transfamiliar. XXIII Encontro Brasileiro do


Campo Freudiano. Plenária III.

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