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Solidão, aceitação, coletividade, encontro.

Arnaldo V. Carvalho
Pedagogo, terapeuta e fundador da escola de Shiatsu Shiem.
Pai e autor do livro “Shiatsu Emocional”
www.arnaldovcarvalho.com.br
www.shiatsuemocional.com.br

Nada do que escreverei será novo; o que você lerá é apenas mais um eco de uma
verdade universal. Por isso mesmo, o propósito deste texto que congrega a mim, a ti e a todos,
é acessar esse Eco. Ouvi-lo. Deixar reverberar. A verdade da Aceitação é a pura luz na sombra
do sofrimento.

Quero então começar lhes contando que recentemente, caminhei com um amigo que
me pedia orientações acerca dos males do sono, que o perseguem a anos. Em meio a conversa
sobre possíveis origens, ele me contou sobre sua leitura de um texto fenomenológico, onde o
autor, explicava sobre o conceito de adumbração cunhado por Edmund Husserl. Para meu
amigo, o conceito (que para os propósitos deste texto não é útil explicar), extinguia a seu
conforto de pensar-se como uma “existência real, autônoma”. Ao cogitar essa possibilidade,
ficou muito mal, fechou o livro imediatamente e uma crise se instalou. Em pura indignação e
angústia, questionou se tudo o que ele vive e viveu, toda sua percepção e memórias de
sofrimentos que já sentira na carne, na mente, no espírito, seriam apenas adumbrações,
percepções fragmentárias em um plano abstrato entre o sentir e o pensar. Era impossível aceitar
isso.

Por trás de tudo, o redemoinho emocional de meu amigo ativara seu maior medo,
confirmado para além de racionalidades. Sua construção de si mesmo, o “Eu” que tivera tanto
trabalho de lapidar, que colecionara vitórias sobre uma vida de desafios, era apenas uma ilusão.
Pela primeira vez, meu amigo se deu conta, no fundo da alma, que era finito (e talvez menos
que isso). Inteligente, já havia compreendido o nexo entre o terror de deixar de ser (o medo do
fim) e sua insônia, inclusive me relatara que sonhava de forma recorrente com a temática de
finais. Eram finais de festas, onde ele se vê num vazio (“aonde foram todos?”), final de viagem,
mortes simbólicas, mortes concretas.

Ao completar seus cinquentas anos, meu amigo declarou, para si mesmo, que se
encontrava irrealizado e assim, segundo suas palavras: “o inconsciente decretou uma contagem
regressiva”.
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Lamentava pelo fim eminente, e era aterrorizado pela irrealização, pela


impossibilidade de ser “só adumbração”, de ser só sombra, não luz. Em uma reflexão sobre
aceitação, vocês devem estar naturalmente pensando sobre a importância frente ao inevitável.
Alguns pensarão que o Ego é um “truque”, uma armadilha a ser vencida, uma ilusão que nos
aprisiona. O Ego, criador da ilusão do ser enquanto unidade, é o causador do sofrimento.
Aceitar, portanto, implica em vencermos o Ego.

Naquele final de tarde, tentei que meu amigo vislumbrasse outras vidas humanas
plenas de prosperidade, a fim de que lhe acendesse uma centelha de ânimo. Comentei que seres
mais iluminados não se preocupam em reivindicar uma posição de existência, porque não
desejam ser indivíduos, apenas sabem ser parte. Despreocupados com o fim, com o ser, com a
ideia de indivíduo, e em refletir o que eles têm ou fazem para alcançar essa paz de espírito
permanente.

É assim com diversos nomes reconhecidos por populações inteiras como de elevado
senso espiritual. Líderes como Dalai Lama, Sai Baba, Papa Francisco... E assim com cada
mulher que vive em plenitude o significado profundo de tornar-se mãe. Todos esses possuem
uma certeza, a de que só são enquanto partes e enquanto partes, simultaneamente estão e são.
Enquanto partes, não nascem, nem perecem. São apenas uma condição temporária de uma
existência, um Todo Maior. Pertencem a esse Todo e Dele nunca saíram, e ao mesmo tempo
para Ele retornam.

Sem julgar convicções ou crenças religiosas, o fato é que essas pessoas não se
percebem como acabados em si mesmos, no sentido de se apartarem do Todo. A ideia da
incompletude lhes ofereceu a certeza da completude. A constituição do Eu, tem como principal
armadilha, a ilusão da individualidade, e é nessa ilusão que vive a solidão, um dos aspectos do
sofrimento com base em não aceitação.

A solidão, no entanto, é vencida pelo contato, e neste se dá na aceitação da condição


de incompletude. Não nos bastamos sozinhos!

Na visão das terapias orientais, o aqui-agora está representado tanto no exterior como
no interior. O corpo surge como ponto de observação, nossa realidade interna refletindo como
nos relacionamos com o externo. Segundo a teoria milenar utilizada pela Medicina Tradicional
Chinesa, por exemplo, o corpo expõe simbolicamente as ambições da alma através do complexo
digestivo, enquanto a permissão para o desapego é simbolizado na respiração e na fisiologia
intestinal.
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Nesse caso, o estômago representa não apenas fome por alimentos, mas também a de
“ser”, percebida em sentimentos e ações gananciosas. Esta fome de ser, em um momento de
desequilíbrio, pode ser substituída pela “fome de ter”. Todas as “fomes existenciais”, nesse
sentido, são ligadas a um sentimento de ausência, compensada (de forma insatisfatória) por
coisas, comidas, títulos... Essa situação é, em última instância, um indicativo profundo de
desconexão para com a Natureza, a Realidade Cósmica e sua abundância.

Diariamente, pessoas morrem simbolicamente, esfomeadas em meio a um campo fértil


e pleno. Algo, em algum momento, ocorreu com essa pessoa, possivelmente em tempos
remotos, em tempos de falta. Quando teria sido? Na gestação? No parto? Na amamentação?
Em algum momento marcante, relacionado a mãe, ao pai, a um caso amoroso? Prováveis temas
para muita terapia.

Verifica-se, em uma sociedade obesa, a marca da ausência. Verifica-se, nessa mesma


sociedade, a existência de uma outra marca inversa, polarizada, obsessiva, com corpos atléticos,
mas sempre insatisfeitos, onde abundam academias e “viciados em malhação”. A ausência gera
fome, que crônica, leva a obsessão, fanatismos, polarização e uma incrível vulnerabilidade a
“miragens” - como falsas promessas, ofertas de cura, felicidades, uma sociedade mais justa e
segura, uma política realmente voltada ao povo...

Não se trata carência com coisas. Não se trata vazio com ilusões. O tratamento envolve
a pessoa conseguir reconectar-se consigo mesmo em sua condição de ser, SEM ILUSÕES. E
isso exige aceitação. Porque ser você mesmo, também evolve perceber que você é parte, e só
parte. É fragmento, é inacabado, precisa do outro, se inicia, mas também acaba. Não é fácil.
Mas é uma jornada possível. Não é preciso caminhar sozinho. Há lanternas, há conhecimento
acumulado, há pessoas que vem estudando e já conhecem algumas estratégias para o que vem
adiante.

Estar no caminho já principia a conexão. Por outro lado, a que se mantém na


desconexão, há uma sequência de situações, firmadas na não aceitação do inacabamento. Esta,
por sua vez, acarretará em dificuldade e redução de contato: com as pessoas, com a natureza,
com a Existência. Novamente recorremos aos orientais e os simbolismos utilizados em sua
medicina tradicional: para eles, o pulmão, representa a troca constante entre o eu e o Universo.
A falta de contato representa seu desequilíbrio, e vice-versa. É curioso, é sintomático, é
representativo que o mundo esteja abalado por uma doença que afeta sobretudo a respiração. E
sua solução reside em mais ausência de contato!
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Haverá uma mensagem do Universo em torno desse triste acontecimento? Eu arriscaria


dizer que sim, que precisamos questionar como estamos fazendo contato com aquilo a que
somos parte. Somos parte da Natureza, da sociedade humana, de alguma família, de alguns
vínculos reais. Reflita: qual é a qualidade de contato que você tem hoje com todas essas
dimensões?

Contra a pandemia, é preciso máscaras. Mas não estamos falando aqui dessas
máscaras, dessa pandemia concreta. A doença passa, é símbolo assim como também as
estratégias são simbólicas. Precisamos tirar nossas máscaras simbólicas frente ao outro, se
quisermos poder tirar as máscaras físicas! Precisamos rever nossas formas de contato, distantes,
frias, mediadas cada vez mais por aparelhos! Precisamos rever justamente esse contato da gente
com a gente mesmo; de humanos com os demais humanos; do humano com a natureza da Terra
e do Cosmos. Sofrendo do mal do contato, o pulmão entra em sofrimento e perde a capacidade
de troca.

Sim, você deve ter ouvido falar sobre muita gente que pegou o Covid-19 e teve também
problemas intestinais. Para a medicina oriental, isso não causa surpresa. O intestino também
tem a função de troca com o ambiente. Nesse caso, com a natureza. Nós devolvemos a ela, por
meio de nossas fezes, a energia que recebemos. Devolvemos transformadas fisicamente naquilo
que o mundo vegetal precisa para prosperar. Da mesma maneira que os animais, que vivem a
base de oxigênio e oferece aos vegetais o gás carbônico, nós oferecemos o complexo NPK
(nitrogênio, potássio, fósforo), fertilizantes do solo que nos alimentará. Os ciclos, os ciclos, os
ciclos...Ciclos entre o Eu-Natureza. Somos um só.

Essa é a consciência que precisa ser despertada, para resgatarmos a plenitude de ser no
estar, e assim permanecermos sendo enquanto estamos.

Mas para chegarmos a isso, o começo é a aceitação. Boa terapia para você.

“Aceitar que sou pequeno e tão pequeno que mal sou, e mal sendo,
nem sou. Se não sou, mas estou, o que sou, em verdade? Sou apenas
parte. Apenas como parte, sou.”
Arnaldo V. Carvalho
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