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Da identificação à singularidade do sujeito: o que diz a

psicanálise?

Creudênia de Freitas Santos

Acolhendo a provocação da II Jornada da Seção Nordeste, a partir do tema:


“E o analista em tempos de evaporação do pai?”, senti-me impulsionada a escrever
sobre um fenômeno que tem acontecido entre sujeitos de determinados grupos que
procuram a análise.
A partir da minha experiência clínica, tenho verificado um fenômeno individual
de sujeitos que procuram a análise, a partir de certos critérios: que o analista seja da
comunidade LGBTQIA+, ou que o analista tenha o tom de pele semelhante. Numa
dada situação me foi pedida indicação de um psicanalista que fosse da comunidade
LGBT, razão pela qual perguntei se tinha mesmo de condicionar a escolha a alguém
que pertencesse ao movimento, alegando então: “ele diz que apenas um gay vai
entendê-lo”. O mesmo também se passou em relação a solicitação de uma analista
com tom de pele semelhante. Seguindo essa lógica identitária, supõe-se que, a
escolha de um analista teria de obedecer a critérios grupais, seria necessário o
sentimento de grupo, de ajuda mútua, de “sentir o que o outro sente”, para só assim
ser possível ao analista acolher a demanda do outro. O fortalecimento dessas
identificações identitárias presentes nos movimentos coletivos seria uma bússola
ante a queda do simbólico? Estaríamos diante de um sintoma de nossa época?
O sujeito ao fazer tal solicitação espera que o analista responda essa
demanda, porém “posicionar-se no lugar do outro” seria reduzir a alteridade do
sujeito ao sofrimento de quem o acolhe. No texto o analista cidadão Laurent afirma
que, “o analista há de saber, pela sua própria prática, que qualquer identificação
permite o desencadeamento dessas paixões narcísicas e deve ser capaz de
silenciá-las.”
No texto, “Serenidade e sintoma”, Laurent expõe que, “O sintoma é o ponto
impossível de ser incorporado ao mundo em que o sujeito funciona.”. É possível que
o sujeito reinvente seu lugar no Outro ao transformar o insuportável do sintoma num
ponto de apoio. Supõe-se que nessa reinvenção não faz existir o Um desse Outro,
portanto, o Outro do sintoma é despedaçado. (Laurent, 2007, p. 174-175).
Em “A Sociedade do Sintoma”, Laurent (2007), afirma que, o conjunto
inconsistente das interpretações dadas aos sintomas atuais é o avesso analítico da
civilização contemporânea. “Os lugares dessas interpretações são tanto os
tratamentos individuais e as instituições em que o psicanalista encontra lugar,
quanto suas intervenções nos diferentes discursos”. Ele acrescenta, que precisamos
intervir onde os sintomas se apresentam.
Diante da subjetividade da política do “somos todos iguais” como a
psicanálise se situa? No texto “O Mal-Estar na Cultura” (1930), Freud se posiciona
em relação ao enunciado “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, ele aponta que,
para amar o próximo é preciso que ele seja igual a mim, só irá merecer o meu amor
se for tão semelhante a mim e que nele eu possa amar o meu ideal de minha própria
pessoa. Esse amor está vinculado à idealização e à identificação, evoca a
estruturação narcísica do eu, aproximando-se assim do narcisismo das pequenas
diferenças, o que for difícil de amar será rechaçado, odiado. A diversidade põe o
sujeito à frente de suas próprias faltas, torna-se mais fácil apontar as faltas do outro.
A constituição da subjetividade desses grupos tem como matriz essencial a
identificação, a formação de laços acontece entre os iguais, para ser parte integrante
de um grupo é necessário despir-se de si mesmo. Freud, ao estudar o
funcionamento dos grupos, na sua proposição do narcisismo das pequenas
diferenças, ao nível do imaginário, observou que, qualquer traço de diferença de
outro grupo, ou que demande a sustentação do ideal de coesão de um grupo,
provocará agressividade. O ódio que é gerado pela ilusão de identidade que
sustentam os grupos, está na base do processo de segregação na cultura.
Lacan considera que a fraternidade é um afeto que se origina em determinado
vínculo e que resulta da segregação, pois sem o vínculo fraternal a segregação não
ocorreria, isso torna-se evidente, ao mencionar à morte do pai em “Totem e Tabu”,
quando a fraternidade é apresentada por ele como um paradoxo, isolados juntos, um
grupo separado do resto. "Só conheço uma origem da fraternidade… é a
segregação. Simplesmente […] na sociedade, tudo o que existe se baseia na
segregação, e a fraternidade em primeiro lugar." (Lacan, 1970, p. 107).
A psicanálise não segue na direção do discurso de igualdade, pelo contrário,
se propõe a fazer laço pela diferença, caminha na direção da singularidade, cada
sujeito se posiciona de um modo único ante o seu analista, cada início de análise é
um novo saber inconsciente. Segundo Lacan (1954, p. 31) “A análise é uma
experiência do particular. A experiência verdadeiramente original desse particular
assume, pois, um valor ainda mais singular.”
Sabe-se, desde então, que a transferência é da ordem da singularidade, o
sujeito transfere ao analista o saber inconsciente, a fórmula da transferência é
suportada pelo sujeito suposto saber, logo o que estabelece o encontro entre
analista-analisante não é da ordem da identificação, mas sim de um saber
inconsciente endereçado ao analista.
Os movimentos coletivos apresentam demandas que podem ser acolhidas
pela psicanálise, mas como participar de espaços estruturados a partir de
identificações identitárias? Na conversação realizada pela EBP, “A Presença dos
Analistas na Democracia”, Marcelo Veras (2022), comenta que, o melhor dispositivo
para reduzir a alteridade radical é a prática da conversação. O analista deve se fazer
presente onde há um silenciamento da palavra, para promover espaços de fala.

Esta afirmação confirma-se na aula “La pareja y el amor” quando Miller (2005)
apresenta a definição de Conversação, que cito a seguir, “a ficção da Conversação
consiste em produzir – não uma enunciação coletiva – senão uma associação livre
coletiva, da qual esperamos um certo efeito de saber.” (Miller, 2005, p. 16). Diferente
de outras formas de abordagem de grupo, na Conversação, o grupo é tomado como
um sujeito, a fala é produzida a partir dos elementos singulares dos participantes, o
discurso produzido refere ao todo do sintoma daquele coletivo.
O analista inspirado na ética da psicanálise e presente nos lugares onde os
sintomas contemporâneos são recolhidos devem assegurar espaços de fala que
visem tornar o mundo possível para o sujeito que não cessa de tomar a palavra.

Este movimento coletivo presente na atualidade suscita muitas questões das


quais não tenho respostas, mas que estão abertas para a escuta atenta da
psicanálise.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. (2010). "Mal-estar na civilização" - 1930, in Obras completas. São Paulo:


Companhia das Letras.
Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 1: Primeiras Intervenções sobre a questão da
Resistência - 1954, p. 31
Lacan, J. (2001). Proposição de 09 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola. In: Outros Escritos, p. 570-590. Rio de Janeiro: Zahar. (original publicado em
1967). 
Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. P. 107, Rio de
Janeiro: Zahar. (original publicado em 1970).
Laurent, E. (1999). O analista cidadão. Revista Curinga | EBP - MG | n.13 | p.07-13 |
set. | Tradução: Helenice S. de Castro. Revisão: Sérgio de Castro
Laurent, E. (2007). Serenidade e sintoma. In: A sociedade do sintoma a psicanálise,
hoje. Rio de Janeiro: Ed. Contra capa.

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