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Aula #018 - Identificações histéricas, o discurso do pai de Dora e o trauma do assédio

Na aula passada falamos sobre as lacunas e incertezas que se apresentam no discurso dos
pacientes, como elas se correlacionam aos sintomas neuróticos e as diretrizes clínicas de
Freud para lidar com elas.
Aquele que recebe um paciente na psicanalise esperando que o paciente vá apresentar para
ele a sua história de maneira clara, límpida e precisa, esse terapeuta vai se frustrar porque a
história que os pacientes nos apresentam é muito marcada por buracos, “furos” e também por
incertezas, por exemplo, o paciente diz que não sabe se tal fato aconteceu na realidade ou
não, se isso é coisa de sua cabeça, não sabe se aconteceu antes ou depois de certo episódio. A
narrativa que os pacientes nos apresentam na clinica é marcada por lacunas e também por
incertezas. Freud vai dizer que isso não é por acaso, porque justamente a doença neurótica, os
sintomas, as manifestações de adoecimento neurótico existem justamente por conta dessas
falhas na narrativa que o sujeito faz de si. O adoecimento neurótico é produto de uma
narrativa esburacada de si. É justamente pelo fato do sujeito não suportar certos pontos de
sua história, certos capítulos de sua história que ele adoece de maneira neurótica, os sintomas
são justamente a presentificação, a manifestação disfarçada e simbólica desses pontos
insuportáveis da história do sujeito e que ele subtraiu da sua narrativa. Justamente por isso
que ele está doente.

Por isso que elaborei a analogia entendendo o processo psicanalítico como aquele processo
em que ajudo o paciente a reconectar, a redescobrir, a trazer de volta aquelas cenas, aqueles
capítulos do filme da sua história que haviam sido descartados por ele. O processo analítico é
um processo de trazer novamente esses capítulos e de reintegra-los e esse processo de
reintegração não acontece do dia pra noite, ele depende de um vai e vem constante na própria
narrativa da própria história e é justamente quando esse processo vai acontecendo que o
adoecimento vai cedendo, que os sintomas começam a desaparecer porque eles só existem
para presentificar aquilo que falta no discurso do paciente sobre si. Os sintomas guardam o
capítulo da história do sujeito que foi subtraído por ele mesmo.

Freud também nos apresenta algumas diretrizes clinicas para lidar com essas lacunas e
incertezas. Freud diz por exemplo que se o paciente apresenta uma primeira versão de uma
história e depois apresenta uma segunda, devemos confiar na primeira porque aquela segunda
versão já é uma tentativa de editar a primeira, já é um movimento defensivo. A defesa é
sempre um processo secundário, primeiro tenho a manifestação espontânea e depois a
defesa.

Vimos também a importância que Freud confere ao contexto familiar da paciente e


começamos a falar sobre a função histérica da Outra mulher no quadro clinico de Dora.
Na psicanalise a família é muito importante, o que acontece no seio familiar, o
comportamento dos pais, dos irmãos, da família extensa, tudo isso tem uma importância
crucial no desenvolvimento do sujeito e na gênese da neurose. Embora nós reconheçamos o
papel remoto desempenhado por fatores sociais, políticos, culturais etc mas entendemos na
psicanalise que de fato as causas mais próximas, mais imediatas do processo de adoencimento
que o paciente apresenta estão dispersas no seu seio familiar, na sua relação com seus
cuidadores primários.

Ainda que o paciente venha no consultório pra falar do presidente, pra falar da guerra do
Vietnã, pra falar de outra questão genérica e social no final das contas é sempre sobre papai e
mamãe que o sujeito está falando. Freud destaca isso de maneira evidente, que o contexto
familiar é um dos elementos mais importantes em uma avaliação clínica que o psicanalista faz
do seu paciente. E ele faz questão de destacar isso pra mostrar a diferença entre a psicanalise
e outros procedimentos terapêuticos que estavam presentes naquela época.

Por isso que Freud passa a falar do contexto familiar de Dora. E então começamos a falar sobre
a função histérica da Outra mulher no quadro clinico de Dora, vimos que do ponto de vista de
Freud ele notou que Dora estava identificada com uma tia que havia sofrido muito no
casamento e Dora parece ter se identificado com o sofrimento dessa tia que havia morrido
num marasmo depressivo e Freud nota que Dora parece ter tomado essa mulher como um
modelo e passou então a imita-la inconscientemente. O que chamamos de identificação na
psicanalise é uma imitação inconsciente. Dora passa então a imitar sua tia e esse seria um dos
fatores em jogo no desenvolvimento do quadro depressivo que caracterizava parte da doença
dela.

“É lugar-comum constatar que a histérica fixa este ou aquele modelo feminino para tentar
assumir sua própria feminilidade [...] Se a histérica tão facilmente se deixa subjugar por uma
outra mulher investida como modelo, é porque esta última é suposta poder responder à
questão crucial da histérica: o que é ser uma mulher?
Essa é a grande pergunta que está no cerne da configuração subjetiva histérica, do jeito
histérico de ser: o que é ser uma mulher?

E para responder essa pergunta, ou seja, pra saber o que é ser feminina que a histérica toma
outra mulher como modelo e então copia essa mulher, a imita, e esse é um traço muito
característico da estrutura de personalidade histérica: tomar uma outra mulher como modelo
e passar então a imita-la, inclusive sobretudo nos seus sofrimentos. Vamos ver que Dora
imitou outras pessoas, não só mulheres, mas as mulheres tem um papel central, sobretudo
uma dessas mulheres será exatamente a Sra. K, esposa daquele senhor que cometeu um
assédio contra Dora e que foi o estopim para todo o desenvolvimento do adoecimento que a
levou para Freud.

- Aula de hoje:

Freud pontua que a mãe não encarnou essa função de modelo para Dora. Com efeito, a
jovem a menosprezava, criticava e “se subtraía por completo de sua influência”.
Porque Dora precisou buscar na Tia um referencial sendo que ela tinha uma mulher dentro de
casa? Dora não via na mãe um referencial de como ser mulher, pelo contrário, Freud diz que
Dora a menosprezava que é um ponto característico da estrutura histérica, uma relação
complicada com a própria mãe. Dora era muito mais próxima do pai do que da mãe, ao
contrário do irmão e talvez isso tenha contribuído pra que ela tenha adoecido da forma que
adoeceu, Dora ficou muito indignada com o fato do pai não ter rompido relações com Sr. e Sra.
K depois que contou que o Sr. K a havia assediado e por não defende-la.

Por outro lado, o irmão mais velho de Dora teria funcionado para ela como modelo “em
época anteriores”, mas, naquele momento, eles estavam mais distantes e, enquanto Dora
era mais ligada ao pai, Otto era mais próximo da mãe.
Na histeria parece haver um buraco identitário, o sujeito histérico parece que está sempre em
busca de tentar entender quem ele é, essa pergunta “quem eu sou?” parece que na histeria
fica sempre com um ponto de interrogação. O sujeito então pra responder essa pergunta ele
vai buscando modelos, então Dora vai buscar inicialmente na infância o irmão mais velho
como modelo, mas naquele momento em que Dora foi levada a Freud eles estavam mais
distantes. Freud dá indícios de como essa relação com o irmão pode ter contribuído no
desenvolvimento no quadro de histeria de Dora.

Freud, inclusive, assinala que Dora lhe contara que, na infância, ela sempre pegava as
mesmas doenças de seu irmão, mas “com manifestações mais graves”. O médico vê essa
memória como uma “lembrança encobridora”.
Freud diz que a fala de Dora tinha uma intenção simbolizadora, parecia que ela estava falando
de outra coisa e não de doença. Freud vai ver esse relato de Dora como uma lembrança
encobridora. Freud percebeu que as vezes o paciente se lembra com muita nitidez de um
determinado fragmento de sua infância e isso parecia pra Freud uma coisa estranha porque
em geral não nos lembramos das coisas que aconteceram na nossa infância, sobretudo, nos
primeiros anos e então o que explicaria um sujeito ter uma lembrança tão nítida? A medida
que Freud foi explorando lembranças dessa natureza ele foi se dando conta que na verdade
essas lembranças apresentam esse grau de nitidez justamente para encobrir outras
lembranças que não podem vir à tona, que são lembranças vinculadas a experiências sexuais, a
coisas que não sabem na narrativa, no filme oficial que o sujeito conta pra si.

Mais à frente, Freud deduzirá, com base nesse e em outros elementos, que até os 8 anos
(quando teve seus primeiros sintomas histéricos) Dora era como se fosse um menino devido
à identificação com o irmão, tendo “pegado” dele o hábito da masturbação.
Quando ela diz que pegava as doenças do irmão o que ela quer dizer por baixo desse discurso
oficial é que “pegou” o hábito da masturbação do irmão, taí o caráter simbolizante do que
Dora disse. Quando ela fala que pegou as doenças do irmão na verdade o que ela pegou foi o
habito da masturbação, mas pegar o habito da masturbação não é algo que esteja na sua
narrativa, é um ponto censurado e no lugar desse ponto censurado ela coloca a lembrança
encobridora.

Continuando a exposição do quadro clínica de Dora, Freud traça o seguinte histórico:

Por volta dos 12 anos: enxaquecas em um lado da cabeça, tosse nervosa (que começou com
uma gripe comum) e perda de voz.

16 anos: enxaqueca desaparece, mas tosse e afonia permanecem até a época em que ela foi
levada a Freud (18 anos), se manifestando em crises que duravam de 3 semanas a meses.

Nenhum dos método utilizados à época para tratar “nervosismo” funcionaram com Dora. A
moça, inclusive, se divertia com a impotência médica e passou a resistir à procura de outros
médicos, inclusive Freud.
Quando o pai decide leva-la à Freud, Dora não queria.

Freud relembra que viu Dora pela primeira vez aos 16 anos, quando a moça foi levada por
seu pai apresentando tosse e rouquidão e também que alguns meses depois ela voltou em
Viena e teve um quadro febril (que Freud posteriormente interpretará como um sintoma
histérico).
Achavam que Dora estava tendo essa febre por conta de apendicite. Freud acaba concluindo
ao longo do tratamento que na verdade a febre não era sintoma orgânico mas também um
sintoma histérico. Diferentemente do que acontece na neurose obsessiva em que o sujeito
pensa demais, o sofrimento é muito localizado no pensamento e na histeria é diferente, na
histeria o sofrimento tende a se apresentar no plano físico, então é importante no caso de
histeria preste atenção nesses sintomas físicos como uma dor de cabeça, crise de falta de ar,
tosse etc.
Na sequência, Freud relata o evento que motivou o pai levar Dora novamente ao médico: o
ataque de perda de consciência que a moça teve numa discussão com ele, evento que foi
procedido da descoberta da “carta de despedida” em que Dora relatava sua intenção de se
matar.
Esse sintoma que serviu para o pai de Dora como gota d’agua, e esse evento do desmaio foi
precedido da descoberta da carta de despedida que Dora escreveu, deixou na sua escrivaninha
e nessa carta Dora dizia pros pais que ela estaria abandonado a vida porque a vida tinha se
tornado insuportável para ela. Freud diz que para o pai, ele entendia que embora Dora
dissesse que tinha intenção de suicidar ele não levava muito a sério, mas depois que ela
desmaia ele se dá conta de que ela está mal.

Quando Freud comenta com Dora sobre a carta ela fica surpresa pois não imaginou que o pai
tivesse lido, como se ela não tivesse a intenção que os pais descobrissem mas o próprio Freud
faz questão de dizer no texto que ela manifestou surpresa consciente mas na verdade ela
deixou a carta de tal maneira que os pais pudessem pegar, no fundo ela queria
inconscientemente que os pais vissem a carta.

Partindo para a exposição do desenvolvimento da doença de Dora, Freud comenta que sua
experiência clínica tem lhe mostrado que sua teoria sobre a histeria está correta: em todo
paciente histérico seria possível detectar 3 condições básicas: “o trauma psíquico, o conflito
dos afetos e [...] a comoção na esfera sexual”.
Ele diz “eu escrevi em 1895 com Breuer o livro estudo sobre histeria, e nesse livro defendo a
tese de que em todo caso de histeria podemos encontrar três condições básicas: trauma,
conflito de afetos e comoção na esfera sexual, essas três condições estão sempre presentes no
caso de histeria”.

O que Freud está chamando de trauma psíquico? Trauma do ponto de vista psicanalítico não é
qualquer situação trágica, do ponto de vista da psicanalise, trauma pode ser uma situação
bastante singela até. O trauma que supostamente teria dado origem ao quadro histérico mais
acentuado de Dora teria sido uma mera proposta amorosa feita por Sr. K a ela. Pra ser um
trauma não precisa ser uma tragédia, para ser traumática uma experiência tem que
simplesmente exceder a capacidade do psiquismo de dar conta dela, ou seja, é como se viesse
uma torrente de água em cima de um estabelecimento que não está preparado pra receber
aquela torrente de água. A experiência tem uma carga energética superior a capacidade do
sujeito de dar conta dela, nesse caso essa experiência pode ser qualificada como traumática.

Em todo caso de histeria existe um trauma que é o desencadeador dos sintomas histéricos.
Conflito dos afetos expressa a divisão caraterística na nossa subjetividade mas no caso da
histeria aparece de uma forma mais intensa, ex: de um lado uma pessoa quer uma experiência
sexual x mas por outra ela não quer porque esse desejo entra em choque com seu eu ideial.

Comoção da esfera sexual Freud vai entender que é uma constante na histeria, Freud entende
que em todo caso de histeria há uma espécie de rejeição que a histérica faz com relação à
sexualidade, há uma aversão ao sexual.

O próprio pai de Dora ajudou Freud a identificar o evento traumático que teria levado Dora
ter “abatimento, irritabilidade e ideias suicidas”. Seria a suposta fantasia de ter sido
assediada pelo Sr. K e o desejo obstinado de que o pai rompesse relações com o casal.

Perspicaz, Freud coloca sob suspeita essa explicação do pai porque em outro momento ele
havia atribuído o comportamento atípico de Dora às excentricidades da mãe.
Além disso, Freud decide não tomar de imediato a fala do pai como a verdade sobre o caso,
pois precisava ouvir também “o outro lado”, ou seja, a versão da própria paciente.

Em seguida, Freud já dá mostras de acreditar na versão de Dora ao dizer que a “experiência”


de ter sido assediada pelo Sr. poderia ser tomada como o trauma psíquico que, do ponto de
vista teórico, seria uma condição prévia necessária para o advento da histeria

Todavia, considerando que, no quadro clínico, estão presentes sintomas que já haviam
surgido antes do trauma e que vinham desde a infância, Freud considera necessário
investigar o que, no passado, pode ter exercido um “efeito análogo ao de um trauma”.

Dora, então, conta a Freud que já havia sido assediada pelo Sr. K quando tinha 14 anos. O
homem lhe agarrara e lhe roubara um beijo em sua loja comercial. A jovem sentiu uma
“violenta repugnância” e não contara isso para ninguém até então.

Chama a atenção de Freud o fato de Dora alegar ter sentido um forte nojo ao invés de “uma
nítida sensação de excitação sexual” que, do ponto de vista do médico, seria a reação
normal para uma “mocinha virgem de quatorze anos”.

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