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27/09/2023, 20:51 O que dá corpo ao analista?

- Correio APPOA

Temática
O que dá corpo ao analista?

Luciano Mattuella

O meu intuito neste texto é o de compartilhar duas breves situações clínicas e, com sorte, produzir algumas considerações
teóricas. A ideia não é a de entrar em detalhes sobre os casos clínicos, mas sim provocar a reflexão sobre a pergunta que é o
título do meu trabalho: o que dá corpo ao analista? O primeiro recorte diz respeito a um rapaz que, na última sessão antes de
mudar-se para Berlim, à porta do meu consultório, anuncia: “Sei que é contra o protocolo, mas eu vou te dar um abraço”. E me
abraça, visivelmente emocionado. O segundo recorte é bastante semelhante: uma jovem, às vésperas de embarcar para uma
estadia de estudos no Rio de Janeiro, também à porta do meu consultório, me pergunta: “Posso te dar um abraço?”. E, antes de
ouvir minha resposta, me abraça.

Para mim, não está tanto em questão o dar ou não um abraço, mas sim o modo como os pacientes me dirigem a palavra: no
primeiro caso, percebe-se a referência a um suposto “protocolo" do trabalho psicanalítico, como se o contato corporal fosse algo
da ordem da transgressão. No segundo, por sua vez, o corpo do analista é algo que apenas pode ser tocado sob declarada
permissão. Acredito ser interessante que estas duas cenas clínicas se dão sob uma condição semelhante: a de uma -
aparentemente - última sessão, ou seja, um momento de distanciamento e de ultrapassagem de um fronteira, por assim dizer.

Estas duas situações clínicas me fazem questão porque justamente há alguns meses venho me dedicando ao estudo sobre o
corpo do psicanalista. Quero dizer, então, que este texto tem a marca da especulação, é um efeito de um trabalho de pesquisa
em ato. Uma tarefa, diga-se de passagem, que tenho percebido ser nada fácil, especialmente devido à escassez de material já
produzido sobre o assunto. Tenho minhas hipóteses sobre o porquê desta carência de escritos: a principal delas é de tomar esta
resistência pela via sintomática, pois quando falamos sobre o corpo do psicanalista, estamos tematizando algo de muito íntimo -
de nosso íntimo - e, também, de algo da intimidade de nossa clínica cotidiana. Intimidade, íntimo... intimidador: o deslizamento de
sentido parece pertinente. Afinal, é como se ao fazer este conceito - corpo do psicanalista - operar teoricamente acabássemos
por interpretar o íntimo do psicanalista, como se fosse revelado algo de estranho-familiar: algo que nos é tão próprio que, quando
surge, nos parece estrangeiro, parece não nos pertencer - mas que nos intimida e nos convoca a uma tomada de posição. Surge-
me, de forma talvez mais associativa do que propriamente metódica, o relato de Freud de quando deu-se conta do reflexo de seu
corpo no trem:

Viajava só, no vagão de leitos de um trem, quando, numa brusca mudança da velocidade, abriu-se a porta que dava para o toalete vizinho e apareceu-

me um velho senhor de pijamas e gorro de viagem. Imaginei que tivesse errado a direção, ao deixar o gabinete que ficava entre dois compartimentos, e

entrasse por engano no meu compartimento, e ergui-me para explicar-lhe isso, mas logo reconheci, perplexo, que o intruso era a minha própria imagem,

refletida no espelho da porta de comunicação. (FREUD, 1919, p. 307)

A perplexidade de Freud parece-me fazer eco até hoje nos psicanalistas quando se trata da presença do próprio corpo na
situação clínica - pelo menos senti-me partilhando desta perplexidade quando vi a imagem de meu corpo refletida no discurso
daqueles dois pacientes de que falei há pouco. Ora, se há estranhamento é porque há reconhecimento de algo importante. Mas a
perplexidade, por mais que possa ser uma primeira forma de contato com algo, é da ordem da paralisia. Creio que avançamos na
teoria na medida em que não permanecemos perplexos frente aos estranhamentos da clínica, mas nos aventuramos a encará-los
com um olhar curioso. Quero compartilhar um pouco desta curiosidade com vocês.

Eu gostaria de tentar avançar um pouco sobre a temática do corpo do psicanalista na especificidade do contexto transferencial.
Afinal, acredito que uma das condições para que ocorra uma análise é justamente que ali haja um psicanalista de corpo presente,
ou seja, servindo como suporte para a cena transferencial. Que o corpo do analista esteja em cena, esta é uma indicação
sugerida pelo próprio Freud ao final do seu artigo “A Dinâmica da Transferência” quando diz que "afinal é impossível liquidar
alguém in absentia ou in effigie.” (FREUD, 1912, p. 146). Ou seja, é preciso que o analista esteja presente “em corpo”, mas - e
aqui há algo que acredito essencial - se trata de uma presença não-positivada. A cena transferencial se sustenta enquanto o
corpo do psicanalista está ali enquanto ausência - fato que me parece ficar bem explicitado nos dois recortes clínicos de que falei:
é apenas na condição de um suposto final de tratamento que os dois pacientes colocam em questão o meu corpo.

Assim, parece-me impossível que o paciente consiga elaborar suas questões sem que possa contar com o corpo do psicanalista
como suporte para encarnar um determinado papel na cena da narrativa fantasística que dá contornos para o seu sofrimento. Se
a neurose de transferência é, como Freud propõe, esta neurose artificial que se engendra do enlace da palavra do paciente com
a presença não-positivada do analista, então logo podemos perceber que há algo do analista que se decanta na transferência,
em outros termos, o analista está também ele lançado no jogo transferencial. Sobre a questão da “presença do analista”, como
sabemos, há muito o que se estudar em Lacan, mas a minha intenção aqui é manter-me ocupado apenas com o texto freudiano.

https://appoa.org.br/correio/edicao/242/o_que_da_corpo_ao_analista/175 1/3
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Interessa-me também que, seguindo à letra a teoria de Freud, o corpo do psicanalista está atravessado por uma inflexão
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bastante específica. Diz Freud que os fenômenos de transferência “nos prestam o inestimável serviço de tornar atuais e
manifestos os impulsos amorosos ocultos e esquecidos” (FREUD, 1912, p. 146) - percebemos aí, portanto, que o corpo do
analista acaba sendo animado por esta temporalidade que é tão específica do nosso trabalho: no presente, é o suporte que
sustenta a cena transferencial e dá as condições para que uma análise tenha lugar; mas é também um ponto de fuga que habita,
pela via da ficção, o passado narrativo do paciente. Esta talvez seja, arrisco-me a dizer, a dimensão estética do corpo do
psicanalista: é ele mesmo parte central da construção das ficções que auxiliam o sujeito a tomar lugar no mundo. O paradoxo que
nos propõe Freud parece ser o seguinte: o psicanalista está presente em transferência justamente enquanto ele, como indivíduo,
está ausente. Uma presença de sua ausência - um vazio. Enquanto se mantém a cena transferencial, o analista não está ali
como um corpo que se positiva, mas sim como um corpo que se propõe suporte para a atualização das fantasias do analisando.
Um suporte necessário, afinal, ao envolver o corpo do analista com suas ficções, o analisando atualiza (no sentido estrito de
trazer ao ato) a realidade psíquica.

Sabemos que há toda uma forma de entender a Psicanálise que acredita que o bom encaminhamento de um tratamento passe
por tornar o analisando consciente da situação transferencial imaginária e do lugar em que toma o analista; como se o paciente
tivesse melhor domínio sobre o seu padecimento à medida em que se tornasse consciente de seus conflitos. A transferência,
neste sentido, seria mais um elemento a ser interpretado pelo psicanalista - e não a condição da própria interpretação. Não é
desta forma que penso a eficácia do nosso trabalho. Acredito que foi justamente este modo de entender o tratamento que
fortaleceu a ideia de que o psicanalista nada precisa saber do seu corpo, uma vez que haveria a suposição de que, ao interpretar
a cena transferencial, o analista, para usar uma expressão popular, tiraria o seu corpo fora.

Penso, entretanto, que pagamos com o nosso corpo durante um atendimento, não só o corpo revestido pela fantasia, mas o
corpo enquanto suporte para uma escuta: nos cansamos, sentimos sono, dores, preguiça, entusiasmo… Freud fala deste
desgaste do corpo do analista enlaçado no circuito pulsional, como podemos ver na passagem em que comenta sobre o uso do
divã:

Eu mantenho o conselho de fazer o paciente deitar sobre um divã, enquanto o analista fica sentado atrás dele, fora de sua vista. Esse arranjo (…)

merece ser mantido por razões diversas. De imediato por um motivo pessoal, que outros talvez partilhem comigo. Eu não consigo ser olhado por outras

pessoas durante oito horas (ou mais) diariamente. (FREUD, 1913, p. 178)

Minha hipótese é de que se o analista se nega ao desgaste de seu corpo, se interpreta a sua presença na transferência, acaba
por colocar-se fora da cena, na posição de um suposto observador privilegiado e onisciente - cai fora da cena como um resto que
imaginariamente esgotaria a cena transferencial em uma interpretação de ordem sugestiva. Mas como bem sabemos, a
interpretação que se dá pela via da sugestão tem como horizonte o silêncio da subjetividade; em outras palavras, a sugestão, ao
antecipar violentamente um sentido, obtura o lugar de fala, sendo mais útil para aliviar a angústia do analista do que para levar
adiante a fala do paciente. É uma presentificação positivada do psicanalista. Tudo isso não impede, entretanto, que em vários
momentos o corpo do psicanalista acabe, sim, positivando-se em transferência: a questão é pensarmos o que podemos fazer a
partir daí. A relação entre positivação do analista e silêncio é sugerida por Freud, como vemos na seguinte passagem: "(...)
quando as associações livres de um paciente falham, a interrupção pode ser eliminada com a garantia de que no momento ele se
acha sob o domínio de um pensamento ligado à pessoa do médico ou a algo que lhe diz respeito." (FREUD, 1912, p. 137)

Para Freud, portanto, uma das situações que provocam uma interrupção no discurso do paciente é precisamente o momento em
que, porventura, o analista se presentifica de modo positivado; ou, do modo que eu entendo, é naquele momento em que em seu
discurso o paciente encontra-se com algo do irrepresentável, situação em que a palavra coloca-se em suspensão, aguardando
seu lançamento no discurso. Momento do decurso da fala em que o corpo do analista não se encontra recoberto pela fantasia
inconsciente que o paciente propõe - em que positiva-se como, nas palavra de Freud, “pessoa do médico". Parece-me que este é
um ponto muito delicado de um tratamento, na medida em que o analista, acredito, acaba aí por sustentar em seu corpo este
irrepresentável que o paciente encontra em sua fala, como o umbigo do sonho. É como se a palavra que fica aí em suspenso - a
“associação seguinte”, como diz Freud - demarcasse as bordas da cena fantasística, tornando perceptível a evidência do analista
em sua presença corpórea. Não recobrir esta presença com uma sugestão parece-me dizer da possibilidade de um analista de
suportar o desgaste do seu corpo no contexto transferencial - e isso implica emprestar seu corpo como suporte para a cena da
realidade psíquica.

De certa forma, então, é no corpo do analista presentificado que se interrompe - para depois relançar-se - a malha discursiva do
paciente. É neste momento em que algo para-além da fantasia é apontado: o pulsional inelutável que está na origem da
experiência de fala. O corpo do analista, penso, como demarcando este lugar de fronteira entre o somático e a palavra, como nos
lembra Freud sobre a pulsão:

(…) então nos aparece a ‘pulsão' como um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do

interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida de exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal.

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(FREUD, 2013, p. 25)


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Em outras palavras, o corpo do analista opera a todo momento na transferência, por vezes mesmo encarnando o irrepresentável
que está sempre suposto no discurso. Assim entendo também o silêncio do analista: não como o silêncio daquele que não tem
nada a dizer, daquele que caiu fora da cena (como resto), mas, ao contrário, como o silêncio daquele que tem muito a escutar,
que convida à associação e à responsabilidade pela posição subjetiva. O silêncio do analista, assim, encarna o silêncio do
pulsional; mas quando o analista silencia, ele não faz silêncio como quem cala uma fala, mas ele se faz silêncio, convidando, com
o necessário suporte do seu corpo, o paciente a enunciar as palavras que lhe dão um lugar no mundo. Ao fazer-se silêncio
(diferente de fazer silêncio), não precipitando-se em tirar o corpo fora, o analista coloca em jogo a pergunta pelo desejo.

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). in. Obras Completas - Volume 10. Observações psicanalíticas sobre um
caso de paranoia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

_____________. “O Inquietante” (1919), in. Obras Completas - Volume 14: História de uma neurose infantil (“O Homem dos
Lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo, Companhia das Letras, 2010, pp. 328-376.

_____________. As pulsões e seus destinos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

_____________. O início do tratamento (1913). in.Obras Completas - Volume 10. Observações psicanalíticas sobre um caso de
paranoia relatado em autobiografia (“O Caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

Associação Psicanalítica de Porto Alegre


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