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O conceito de Transferência

De um modo geral, este termo transferência implica sempre uma ideia de


deslocamento, transporte, de substituição de um lugar para outro, sem que esta
operação afete a integridade do objeto.

Segundo Elizabeth Roudinesco (1998), este conceito foi introduzido por Freud e S.
Ferenczi entre 1900 e 1909 para designar um processo constitutivo do tratamento
psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a
objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do
analista, colocado na posição desse diversos objetos. Todas as correntes em
psicanálise consideram a transferência essencial para o processo psicanalítico.
Entretanto, conforme as Escolas as divergências são múltiplas: quanto ao seu lugar no
tratamento, seu manejo pelo analista e o momento e os meios de sua dissolução.

A inovação freudiana consistiu em reconhecer nesse fenômeno um componente


essencial da psicanálise, a ponto, deste novo método se distinguir de todas as outras
psicoterapias por empregar a transferência como instrumento da cura no processo de
tratamento.

Desde Estudos sobre a Histeria, com o relato de Breuer no famoso caso Anna O. , já
podemos observar a função deste conceito quando observamos a relação entre
médico e paciente. Porém nos textos: Estudos sobre a Histeria e A Interpretação dos
Sonhos, apreende-se o conceito de transferência sob o prisma de um deslocamento de
investimento no nível das representações psíquicas, mais do que como um
componente da relação terapêutica. Historicamente, a noção de transferência assumiu
toda sua significação com o abandono da hipnose, da sugestão e da catarse pela
Psicanálise.

É apenas em 1905, com o relato do caso Dora, que podemos considerar a descoberta
deste conceito central em Psicanálise. Esta seria a primeira experiência, negativa, de
Freud com a materialidade da transferência. Ele atestou, a contragosto, que o analista
de fato desempenha um papel na transferência do analisando. Ao se recusar a ser
objeto de arroubo amoroso de sua paciente, Freud opôs uma resistência que em
contrapartida, desencadeou uma transferência negativa por parte dela. Alguns anos
depois ele qualificaria este fenômeno de contratransferência.

Já em 1912, no artigo A Dinâmica da Transferência, Freud dedica-se pela primeira vez,


a escrever sobre este conceito, enfatizando sua importância técnica para o tratamento
psicanalítico. Onde distingue duas formas de transferência, uma positiva caracterizada
por sentimentos ternos e amorosos e outra negativa, caracterizada por sentimentos
hostis e agressivos. Mas é somente em 1914, com a publicação de Recordar, Repetir e
Elaborar é que encontramos neste artigo técnico, algo fundamental para
compreendermos a questão técnica da transferência em Psicanálise. Vemos aqui que
alguns pacientes tem a capacidade de lembrar o passado e de comunicar verbalmente
tais experiências. Enquanto que outras lembranças aparentemente esquecidas
reaparecem sob a forma de comportamentos e se reproduzem em atos na relação com
o analista.

Esta “coação à repetição” está ligada à transferência e à resistência. Pensando na


repetição como algo que está ligada á resistência, maior será sua intensidade quanto
maior for a resistência, e mais a perpetração em atos insistirá em substituir a
lembrança pelo que chamamos de atuação. Por isso o psicanalista deverá tratar a
doença não como um acontecimento do passado, do qual o paciente não se lembra,
mas como uma força em ação atualmente, antes de conseguir ligá-la conscientemente
ao passado. Vemos que a intensidade da repetição é proporcional à qualidade afetiva
da transferência, pois quando esta é positiva o paciente tende a se lembrar, enquanto
que quando a transferência é negativa a tendência à repetição em ato se acentua.

Sobre esta questão gostaria de trazer uma breve vivência clínica.

João está em análise há 1 ano e 6 meses com a frequência de 4 sessões semanais.


Buscou análise afirmando que precisava se conhecer e queria melhorar, pois a queixa
da esposa, filhos e família era comum: afirmavam que ele era muito “pesado”,
controlador, dominador. Durante nossos contatos inicias João tem um jeito arrogante
e impõe que análise para ele só funcionaria se fosse de 4 a 5 sessões semanais. E
esclarece que no momento, por dificuldades financeiras, não pode pagar o valor da
sessão. Por este motivo procurou Serviço de Orientação e Encaminhamento do Núcleo
de Psicanálise e gostaria de ser atendido pelo valor fixo estipulado por este Convênio.
Mesmo explicando que no momento eu não teria vaga para receber novos pacientes
por este Convênio, e propondo outro valor, João insiste que as coisas estão difíceis
financeiramente e que só poderia me pagar o valor possível para ele. Percebo seu jeito
autoritário e que as coisas precisam ficar a seu modo. Se não for assim, nada feito.

Aceito iniciar trabalho de análise e proponho que voltaremos a conversar sobre


reajuste após seis meses. Durante esses seis primeiros meses João vem cinco vezes na
semana e paga o valor das sessões de acordo com valor que é possível pra ele.
Durante este tempo o contato com ele era difícil, eu começara a sentir todo o seu
“peso”. Sentia-me controlada pelo seu modo arrogante de ser, ele se relacionava
comigo com certo desdém. Por vezes sentia que ele não retornaria na próxima sessão.
Mas na sessão seguinte lá estava ele, pontualmente. Quando precisava faltar não
concordava em pagar as sessões e ele ainda exigia que eu tivesse horário para
reposição. Mesmo com tantas exigências e imposições, fui conversando e colocando as
regras de que precisava para realizar meu trabalho. Eu revivia através da transferência-
contratransferência todo o “peso” do seu modo de ser. Mas sentia também que
precisava conter esta situação até compreender porque ele precisa se apresentar
deste modo dominador em suas relações.

No final do semestre, dias antes de nossas férias João falta em duas sessões sem
avisar. Achei melhor aguardar seu contato. Ele liga durante as férias pedindo um
horário, explico por telefone que retornaria das férias na próxima semana e que o
aguardava no seu horário.

Ele aparece de um modo diferente. Parece que este é o nosso primeiro encontro, pois
entra e me cumprimenta com aperto de mão. Conta que durante as férias os filhos
descobriram mensagens estranhas no celular de sua esposa. Os filhos tentam
conversar com a mãe e ela acaba revelando que estava tendo um caso. Os meninos
tentam manter segredo, pois não querem magoar o pai. Mas João percebe que está
acontecendo algo diferente na relação entre sua esposa e seus filhos, quando então
descobre que sua esposa estava tendo um caso com um rapaz tão jovem quanto seu
filho mais velho. Durante seu relato e considerando seu modo de se relacionar, fiquei
com medo de qual teria sido sua reação quando descobriu a traição da esposa. Pensei
que ele teria sido agressivo ou expulsado ela de casa. Porém, João reagiu de maneira
calma e manteve controle. Dizia que não podia tomar nenhuma atitude precipitada.

A partir da descoberta da traição, João se apresentava em seus relacionamentos de


um modo diferente. Revelava sua insegurança e o medo que sempre teve de perder
seu casamento e a família. O que ele mais temia, aconteceu. Porém, vivia desconfiado.
Queria manter seu casamento e sua esposa sob seu controle, o que ficava cada vez
mais difícil.

Certo dia João avisa que não viria na sessão do dia seguinte, pois teria uma viagem de
negócios. Como combinado, sabia que a sessão seria cobrada e que mesmo ele não
vindo eu estaria lá no seu horário. No dia seguinte, acabei me atrasando para chegar
até meu consultório, mas lembrei que João estaria viajando. Cheguei cerca de 10
minutos atrasada. Quando desci do elevador senti um cheiro forte de cigarro antes de
abrir a porta da minha sala. Fiquei com a sensação que alguém tinha estado ali
minutos antes de minha chegada. Assim que entrei, toca o meu celular. Quando vou
atender vejo que é o número de João. Eu digo alô e escuto a voz dele, furioso,
perguntando onde eu estava. Respondo sem pensar: “Eu? Eu estou aqui”. Ele afirma
que esteve em minha sala e encontrou minha porta trancada, que eu não estava lá.
Digo novamente: “Eu estou aqui”, e ele responde autoritário “então não saia daí
porque eu estou chegando”. Após alguns minutos escuto João chegar, abro a porta e
ele entra furioso. Esta foi uma sessão muito difícil, pois João coloca toda sua
agressividade, desconfiança e raiva para fora. Sente e fala comigo como se eu o tivesse
traído. Só então percebo que ele falava comigo como se estivesse falando com sua
esposa.
Esta foi uma sessão delicada, mas fundamental em nossa relação. A partir deste
encontro-desencontro toda sua dor, mágoa, desamparo puderam aparecer. E assim
através da transferência estes sentimentos puderam ganhar sentido e forma em
palavras para enfim serem instrumentos de nosso trabalho em análise.

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