Você está na página 1de 11

A PROXIMIDADE DO ENCONTRO

O acompanhamento terapêutico e os impasses da experiência


clínica

Alexandre de Souza Piné

Este texto é baseado na apresentação realizada para a disciplina Fundamentos da Clínica do


Acompanhamento Terapêutico ocorrida no dia 18 de novembro de 2009.

I - INTRODUÇÃO

Após alguns anos realizando acompanhamentos terapêuticos, tenho constatado o


quanto essa experiência clínica tem sido decisiva em minha formação, influenciado o modo
como me aproprio das leituras e exerço a prática da psicanálise.

A proposta do trabalho é apresentar a singularidade de um caso clínico em


acompanhamento terapêutico, para então, reconhecendo algumas particularidades dessa
experiência, trazer interrogações à prática clínica psicanalítica.

II - O CASO CLÍNICO

1 - O encontro

Ao Daniel faltava um corpo, faltava uma memória, poderia mesmo dizer, faltava
dignidade. Não me esqueço do primeiro contato, da primeira imagem que dele obtive. O nosso
primeiro encontro aconteceu em seu apartamento e lá, fui recebido e informado de que ele
me aguardava em seu quarto. Mesmo sem tê-lo visto, já era possível sentir a sua presença na
porta de entrada e, cada vez mais, à medida que me dirigia ao seu quarto pela intensidade de
um cheiro muito forte e ruim que me tomava. Eu me detenho à percepção porque, muitas
vezes, é o que temos de mais importante. Quando entrei em seu quarto, a visão não foi mais
confortante. Por mais que seu sorriso, sempre cativante, estivesse ali presente, foi impossível
não ficar chocado com a visão daquele corpo sobre a cama. Ele parecia muito vulnerável,
parecia despedaçado. Faltava a ele uma das pernas, amputada um ano antes, e a outra
também estava paralisada, engessada após uma fratura recente. Eu, então, aproximei-me para
cumprimentá-lo e pude perceber que também tinha dificuldades em me estender seu braço.

Foi assim que eu encontrei Daniel. Ainda que já soubesse das suas condições por meio
da psicóloga que o atendia, nada se compara ao nosso primeiro contato, nada podia antecipar
sua cama poluída por papéis, livros, comida, sujeira, escova de dente, tintas, pincéis, urina,

1
dinheiro e o que mais se possa imaginar, e na qual ele permanecia aprisionado a maior parte
do seu tempo.

2 - Um pouco mais sobre ele

Quando a mim encaminhado, Daniel estava em tratamento com outros profissionais,


entre eles uma psicóloga, uma fisioterapeuta, um psiquiatra, um neurologista, um ortopedista,
além das pessoas que o auxiliavam cotidianamente em sua casa.

Daniel, hoje, tem 65 anos. A história de suas sequelas nasceu das inúmeras torturas
que sofreu como preso político na ditadura, quando ainda era um jovem estudante
universitário. Além da tortura, ele permaneceu por mais cinco anos em detenção. Como
conseqüência desse período, hoje ele sofre de uma gravíssima perda óssea, causa das fraturas,
além da perda de sentidos como olfato e paladar e, nos últimos anos, tem sofrido seguidas
crises nervosas que não apresentam um diagnóstico conclusivo.

Além do quadro orgânico, havia dúvidas sobre o diagnóstico psicológico de Daniel. No


encaminhamento, havia o relato de que seu comportamento era considerado, muitas vezes,
inadequado, com ocorrências de falas estranhas, possivelmente delirantes e, também, um
comprometimento de memória que sugeria a hipótese de demência ou psicose.

Um homem sem memória

Daniel era um homem sem “memória”. Foram necessárias muitas sessões para que ele
não esquecesse meu nome, minha formação, a universidade na qual estudara e minha origem
(se eu era mesmo de São Paulo) – perguntas que ele sempre repetia em um esforço para saber
aquilo que não conseguia ou não podia reter sobre mim. Ao mesmo tempo, era comum ele
contar, repetidas vezes, as mesmas histórias do seu passado. Nessas horas, eu não interrompia
o seu esquecimento e entrava no jogo para saber o que era aquilo. Seria um limite, um
comprometimento orgânico, ou se algo mais poderia estar em ação?

Passado/Presente/Futuro – delírios ou perdas?

As falas que me trazia eram em sua maioria lembranças – sempre boas lembranças.
Eram os momentos da infância e da juventude no Rio de Janeiro, o período da escola, da
faculdade. Ele tinha um especial prazer em falar do seu envolvimento com os movimentos
estudantis, da sua liderança no grêmio da faculdade, da sua participação na política e da sua
amizade com pessoas que foram e ainda hoje estão no cenário político. Seu pai também era
muito lembrado. Enfim, em nossos encontros, o que fazíamos era lembrar os bons momentos e
as conquistas de seu passado.

No entanto, em sua fala não havia presente, nem lembranças recentes. Possivelmente
estavam esquecidas como as nossas conversas das sessões anteriores. Seria esta uma
constatação de uma incapacidade, de uma possível perda de memória?

2
As lacunas do presente, Daniel claramente preenchia falando de projetos futuros, mas
estes não eram quaisquer planos. Ele me contava ser tradutor e que estava traduzindo alguns
livros do francês para o português. Um desses trabalhos era, simplesmente, a tradução da
TORÁ – o texto central do judaísmo. Nessa tradução, ele também transformava o texto original
francês, que estava em prosa, em versos heptassílabos, um trabalho interminável que vinha
realizando há 10 anos. Os outros projetos eram o desejo de expor seus quadros em grandes
museus, a sua vontade de voltar à política, de fazer mestrado ou, simplesmente, de montar um
novo negócio. Sem dúvida, o projeto mais ‘ousado’, o qual sempre comentava, era a vontade
de criar um paraíso fiscal para o MERCOSUL em Ilhabela.

Essas idéias davam força à suposição de um quadro psíquico muito adoecido, mas
psicose, como supunha a equipe?

3 – A Entrada

O primeiro testemunho

Nos primeiros encontros, ficávamos todo o tempo em seu quarto. Ele deitado, e eu
sentado, esperando que me dissesse alguma coisa. Pela imobilidade daquilo que me trazia – a
imobilidade estava em todo lugar –, aos poucos, as suas falas foram diminuindo, ao mesmo
tempo em que era crescente a sua impaciência, o seu desconforto com a minha presença.
Algumas vezes, apenas poucos minutos de conversa já era o bastante para que ele me pedisse
o término da sessão. Eu acabava insistindo para que falasse um pouco mais e ele aceitava,
prolongando o nosso encontro. Foi quando, na sessão em que completávamos dois meses de
atendimento, ele me disse: ‘Acho melhor pararmos! Não quero mais que você venha!’.

O que ele estava me dizendo? Seria o fim do tratamento? Havia cometido algum erro?
Teríamos avançado demais ou caminhado muito pouco?

Esses são momentos preciosos do tratamento. É justamente quando algo paralisa ou


alguma novidade vem à tona – e, necessariamente, somos convocados a nos movimentar,
ainda que não saibamos em qual direção – que temos a chance de estar muito próximos do
paciente, ainda que uma decisão errada ou a omissão de um gesto possa trazer as piores
conseqüências.

Após um tempo, que não sei se longo ou breve, afinal eu havia sido pego de ‘surpresa’,
eu me dei conta do óbvio. Era insuportável a sua condição. Como ele poderia falar do
insuportável estando tão próximo daquele lugar! Diante do ‘Acho melhor pararmos! Não
quero mais que você venha!’ eu respondi ‘Você precisa sair daqui!’

Eu fui certeiro em minha intervenção. Sair dali significava deixar aquela imobilidade,
aquela sujeira, deixar a sua nova prisão e, talvez, a antiga também. Imediatamente, ele me
perguntou: ‘Você consegue este telefone para mim?’ – era de um órgão da prefeitura que
estava oferecendo trabalho para deficientes. Eu respondi que sim, que o traria no próximo

3
encontro. Então, encontramo-nos novamente, e nesse dia, ocupamos a sala de sua casa, e no
encontro seguinte, fomos à rua fazer um passeio.

Algo novo foi estabelecido entre nós e isso só foi possível por estar tão próximo e
reconhecer aquilo que para ele era insuportável. Antes desse momento, havíamos nos
apresentado, combinado a freqüência e a duração dos acompanhamentos, os valores, ou seja,
criamos um contrato que delimitou o formato dos encontros. No entanto, essas cláusulas se
mostraram frágeis demais para promover ou sustentar o que se apresentava ali. Para além do
contrato, a intervenção estabeleceu o contato necessário para dar ‘início’ ao processo de cura 1.

4 - Direção do Tratamento

Lembrar para esquecer

A partir desse momento, começamos a realizar saídas. Primeiro andávamos nas ruas
próximas a sua casa. Em seguida, surgiu a idéia de irmos a outros espaços da cidade como
parques, cinema e exposições de arte. Vale ressaltar que, circular pela cidade, ainda que para
ele fosse um ganho imediato, nunca foi o propósito do acompanhamento, mas sua condição.
Foram os elementos e os contornos oferecidos por esses espaços que possibilitaram a Daniel
aproximar-se de questões, de sentimentos, de passagens, de memórias e de marcas que de
outra forma não poderiam ser tocadas.

A utilização de elementos da realidade no tratamento é uma das características dos


acompanhamentos. Quando os pacientes apresentam estados de grave adoecimento, em que
se encontram impossibilitados de abrigar ou ter o mínimo acesso às suas experiências e afetos,
o uso de elementos concretos da realidade a compor o setting é um recurso que favorece
comunicações e estabelece laços que o dispositivo clínico tradicional não conseguiria
promover.

Um dos momentos em que este recurso acabou sendo muito importante nos
atendimento foi no período em que nossos passeios se resumiam às idas ao cinema. As
escolhas dos filmes sempre variavam, sendo que a maioria dos títulos eram sugeridos por mim.
Então, certo dia, Daniel me disse que estava interessado em assistir a um filme nacional que
acabara de ser lançado. O filme era sobre a ditadura. Aquele era um pedido valioso. Eu sabia
da importância que teria para Daniel e para o tratamento. Antes desse momento, Daniel pouco
falava sobre o período da prisão e das torturas. Mesmo quando eu insistia, ele se contentava
em lembrar as amizades e os bons momentos que tivera na prisão. Era impossível para ele
avançar esse ponto, silenciado há mais de 30 anos.

Daniel não saiu inteiro daquela prisão, e a sua história posterior é a história de uma
“errância”. Foram inúmeros projetos. Ele trabalhou alguns anos como sociólogo, como
1
A cura tem duas acepções fortemente interligadas. A cura como fim ou objetivo do trabalho terapêutico
(cure) e a cura que designa o próprio tratamento ou processo terapêutico (guérrison).

4
cenógrafo e iluminador, fundou um grupo de dança, ajudou a montar um sindicato para artes,
participou de movimentos políticos, inserido-se em grupos e partidos, foi candidato a vereador,
a deputado, trabalhou como assessor na câmara, mas foi na arte, particularmente a pintura,
que ele investiu a maior parte do seu tempo. Ainda assim, como todos os outros projetos, ele
não teve êxito ou não pôde dar continuidade.

Por que esta história? Como um jovem tão ativo, engajado em movimentos, em lutas,
em vitórias, teria tal destino?

O trauma é um conceito central para a psicanálise. Marca do excesso, seja da presença


seja da ausência excessiva, o trauma significa a impossibilidade da experiência. Diante da
exposição excessiva à experiência, o organismo se defende, afasta-se, desinvestindo a realidade
e, como compensação, reinvestindo-a narcisicamente. Não por acaso, sobreviver à tortura e à
prisão, sobreviver à sua cama (à nova prisão) só foi possível graças à ilusão de seus projetos, à
fuga de uma realidade insuportável.

‘Re-viver’ aqueles anos através do cinema foi o meio que encontramos para nos
aproximarmos do trauma, do impossível. Lembro-me do filme – Batismo de Sangue – um filme
duro, violento demais para mim. Eu fiquei chocado e temeroso com o efeito que poderia
causar em Daniel. No entanto, ali, ele não estava só, mas acompanhado do testemunho
daquilo que um dia sofrera. A partir da presença silenciosa do acompanhante – silenciosa, mas
presente –, o testemunho daquela ficção permitiu que as lembranças pudessem falar.

“O indizível só pode ser não dito e lembrar pode ser uma forma de esquecer as coisas”
afirmam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p.10). Infelizmente Daniel até então nunca pudera
‘lembrar’ o que experimentara naqueles tempos e, por isso, o trauma se presentificou por
tanto tempo. Viver exige que experiências como essas sejam esquecidas.

Voltar ao Presente

Além do cinema, nossos passeios permitiram que ele reencontrasse outros lugares
importantes de sua vida como museus e exposições de arte, peças de teatro, companhias de
dança, entre outros. Nestas andanças, estar com ele muitas vezes significava oferecer meu
corpo e meus sentidos para seu uso, como ocorreu em uma exposição, quando ofereci meu
tato e a minha percepção, para que ele pudesse encontrar objetos que seu corpo e sua
curiosidade não podiam alcançar. Nessa conjunção, eu realmente vivi com encanto o seu
mundo, as suas estórias e, também, os seus sonhos. Eu me arrisco a dizer que por um tempo
nós sonhamos juntos e neste ‘tatear a realidade’, o presente se fez presente. Daniel começou a
pintar, voltou a trabalhar em suas traduções, resgatou projetos antigos, como peças de teatro,
letras de música – uma delas gravada por uma conhecida cantora – e reencontrou um trabalho
de tradução praticamente concluído, mas que havia ‘perdido’ em sua bagunça. Parecia que ele
voltava a habitar a realidade.

5
Essa conclusão logo se mostrou um erro. Rapidamente, a realidade fez-se dura demais
para o que ele pretendia alcançar. A sua tentativa de pintar logo se transformou em uma
obsessiva e descuidada produção. Ele passava dias, noites e madrugadas produzindo pilhas de
cartões com a intenção de vendê-los. No entanto, em razão da pressa, da dificuldade motora e,
principalmente, de não conseguir reconhecer a precariedade do que estava produzindo, os
cartões acabavam ficando tortos, amassados, sujos e sem nenhuma beleza. Certamente,
ninguém pôde aceitá-los.

Diante da sua fragilidade, da sua impotência, eu não agi, eu não consegui fazer nada.
Mesmo não sendo consciente, eu temia que ele não pudesse sobreviver.

Após os cartões, surgiram novos fracassos: concursos de arte, tentativas frustradas de


oferecer as suas peças a algum grupo teatral, os vários livros que tentava traduzir
simultaneamente, mas que não conseguia dar continuidade. Além disso, havia momentos em
que ele voltava a ter as idéias ‘ambiciosas’, o que gerava ainda mais frustração, como nas
diversas vezes em que procurou a Pinacoteca ou o Instituto Tomie Otake para expor seus
quadros.

Mesmo com tantos fracassos, Daniel conseguiu dar um passo. Ele conseguiu retomar e
finalizar o trabalho de tradução que, por anos, havia esquecido. Pagou a uma editora, a qual fez
um bonito livro e, numa sexta-feira, fez o seu lançamento na bienal do livro. Diante dos
exemplares, ele deu autógrafos, reviu alguns amigos que foram prestigiá-lo, mas, por algum
motivo, não parecia satisfeito. Imaginei que ele, talvez, estivesse desapontado pelas poucas
pessoas que compareceram, mas não conversamos sobre isso naquele dia.

No atendimento seguinte, eu estava ansioso para novidades. Eu, realmente, não fazia
idéia de como ele teria vivido a experiência da bienal e, por conseguinte, o que significaria a
concretização de seu projeto. A minha resposta foi encontrá-lo desacordado no horário da
sessão, tendo um princípio de crise nervosa. Corri desesperado pela cidade até deixá-lo em um
pronto-socorro onde permaneceu por três dias. No início tive medo que não sobrevivesse e
depois, o receio de que fosse um AVC, o qual lhe somaria novas seqüelas, mas aparentemente
ele voltou como se nada tivesse acontecido. O diagnóstico: convulsão sem convulsão. Esta
havia sido a sua quarta crise, a segunda e mais séria crise desde que o acompanhava.

O que havia acontecido? Por que esta crise justamente no momento de sua conquista?

5 – O COLAPSO

Ele sobreviveu à crise, mas nós já não éramos os mesmos. Por alguma razão, não
sobrevivemos a tudo aquilo. Ele, eu e a equipe. Nessa época, uma psiquiatra, duas
fisioterapeutas e uma acupunturista já haviam deixado o tratamento. A psicóloga que o atendia
6
também estava desanimada e eu extremamente extenuado. Por mais que falássemos disto nas
poucas reuniões de equipe, não conseguíamos reverter o quadro. O efeito imediato nos
atendimentos foi uma paralisia que durou cerca de um ano. Inicialmente, diminuímos o
número de sessões semanais de duas para uma. Por fim, passamos burocraticamente a apenas
assistir filmes e, raramente, outras atividades. Eram encontros silenciosos, sonolentos, em que
os raros momentos de vivacidade limitavam-se as conversas geradas a partir dos filmes que
havíamos assistido.

Por fim, esgotado e não conseguindo pensar, comecei a faltar. As primeiras faltas eram
ocasionais, depois começaram a ocorrer com maior freqüência, até o momento em que faltava
sem mesmo avisá-lo. Daniel, no começo, incomodava-se e me ligava perguntando o que havia
acontecido, mas depois fingia que nada estava acontecendo.

No meu limite, fui ao atendimento determinado a interromper o tratamento e essa foi


a primeira coisa que disse a ele. Ele, que estava de cabeça baixa, acenou afirmativamente
indicando concordar com a idéia, mas sua expressão suscitava muita pena. Eu continuei,
dizendo que estava com a minha agenda lotada, que tinha novos compromissos, falei do meu
cansaço – ele me escutando, acenando afirmativamente e cabisbaixo –, até o momento em
que pude lhe dizer que aquilo não era tudo, que na verdade EU NÃO SUPORTAVA MAIS A SUA
PRESENÇA. Nesse momento ele se levantou e me olhou profundamente, não com raiva, mas
com uma vivacidade que há muito eu não encontrava. Aquilo me chamou a atenção. Eu
prossegui dizendo que tinha muitos motivos, muitas desculpas para não atendê-lo, mas seria
falso se não falasse o que realmente estava sentindo. Eu sabia que com aquelas palavras duras
eu o respeitava. Muito diferente das muitas pessoas desaparecidas. Tudo isso eu comuniquei a
ele.

Depois de me ouvir, ele perguntou-me por que eu sentia aquilo. Respondi que
precisava pensar e, realmente, eu ainda não entendia o que estava sentindo, o que estava
vivendo na nossa relação. Despedimo-nos e combinamos continuar a conversa na próxima
semana.

No entanto, nas duas semanas seguintes eu voltei a faltar. Foram mais duas semanas
em que permaneci ruminando uma angústia que não compreendia e que me paralisava.
Somente na terceira semana, eu pude encontrá-lo. Reproduzirei partes dessa sessão em que
precisei falar muito mais do que ele.

‘Daniel, você me perguntou no último encontro por que eu estava pensando em deixar o
tratamento? Daniel eu me sinto muito cansado, sobrecarregado, porque você coloca tudo em
minhas costas. E por quê? Porque você sempre se coloca no papel de vítima e, por isso, todos
ficam reféns dos seus pedidos, da sua vontade, das suas idéias, da sua impotência’.

7
‘Uma vez você já foi vítima. Você realmente foi vítima de uma violência quando ainda era
jovem, quando estava cheio de planos, de sonhos e acabou sendo torturado e preso. Isso
realmente aconteceu. O problema é que você tem passado a vida toda se vitimizando,
reclamando de injustiças que o mundo, que o destino ainda dirige a você’.

Daniel: ‘Eu entendo, mas o que posso fazer?’

‘Você se queixa que os projetos não dão certo, que o mundo está contra você, que o hospital te
prejudicou. Você quer indenização do hospital, do Estado. Daniel, você passou toda a sua vida
clamando por justiça, clamando por reparação, mas para defender essa sua causa, você
acabou condenado ao papel de vítima’.

Daniel: ‘Eu entendi, mas o que faço?’

‘Seja humilde e se aceite, ao invés de ter sonhos fabulosos, ao invés de sonhar com uma
exposição na Pinacoteca, ao invés de achar que com uma simples conversa com um curador vai
resultar em uma exposição no Tomie Otake. É claro que não vai dar certo. Para conseguir isso
as pessoas trabalham muito e, ainda assim, poucas têm sucesso. Não se trata de sorte ou azar
ou destino, mas de trabalho. Mas será que é disso que se trata? Será que o teu fracasso é por
você não ser realmente dedicado ou por que você está sempre procurando a confirmação de
que o mundo é sempre injusto com você?’

...

‘Eu me lembro de quando fomos a um restaurante, muito bonito, e você pediu um dos pratos.
Se não me engano era uma deliciosa picanha. Eu estava ali, ao seu lado, acompanhando-o.
Então, você colocava pedaços de carne na boca, chupava esses pedaços e, em seguida, você
jogava-os no chão. Pedaço a pedaço você chupava e jogava no chão. Você tem idéia da
violência que fazia comigo e com todos os que estavam assistindo aquela cena? Aquilo foi tão
chocante para mim que eu não consegui fazer nada. Eu fiquei completamente paralisado
enquanto você violentava-me’.

‘Você não é um deficiente, nem um imbecil! Você não faz isso na sua casa e sabe que as
pessoas não fazem isso. Você, que ali parecia um coitado, na verdade, era um tirano que
obrigava todos a serem seus reféns. Você parecia repetir uma cena da tortura, e você a repete
o tempo todo. E nessa cena, eu era a vítima. Eu gostaria de ter tido forças para me levantar
daquela mesa, mas não consegui. Eu gostaria de ter interrompido aquela cena, como faço
agora, mas eu não podia naquele momento, eu tinha que sofrer tudo isto, em silêncio e por
todo esse tempo, para compreender o que você me dizia’.

‘O pior é que não é só isso. O pior é que, ao abusar das pessoas, você permite que elas façam o
mesmo com você. Não só pela sua fragilidade, mas pelo ódio que provoca, elas te
desrespeitam, te enganam, te exploram, te roubam...’

Daniel: ‘Eu não sei disso não!’

8
‘Claro que sabe. Eu sei que você está vendo’. Cito a ele várias situações de seu cotidiano.

Daniel: ‘O que eu devo fazer?’

‘Talvez pensar, reconhecer algo no que digo já é um grande passo. Neste passo eu não posso te
acompanhar, não como te acompanhava antes. Eu preciso estar em outro lugar para que a
gente possa sobreviver’.

Esse encontro levou a uma nova transformação no tratamento. Inicialmente, ele ficou
deprimido e calado, abandonando as atividades que ainda realizava. Nas suas poucas palavras,
ele repetia que queria morrer e destruir tudo o que estava fazendo. Ele também sugeriu
interrompermos o tratamento, mas continuamos e aos poucos ele foi melhorando. Ao final,
ambos havíamos mudado de lugar. No momento, eu o encontro uma vez por semana, porém
não temos saído de sua casa. Curiosamente, voltamos ao início, mas de um modo bastante
diferente. Agora, ele tem conseguido falar, sobretudo, da sua solidão e do desejo de enfrentar
seus problemas, saindo de casa e encontrando uma moradia que permita a convivência com
outras pessoas. Nessa caminhada, existe a presença de um novo acompanhante, que com
muito fôlego e sensibilidade, tem construído, lá fora, essa mudança com Daniel.

Daniel já faz novos planos – ‘na moradia eu poderia dar aulas de francês, de pintura e,
talvez, natação!’. Por enquanto, os passos ‘possíveis’ em sua realidade.

III – CONCLUSÃO

O caso clínico

O relato de um caso clínico é sempre uma construção parcial de todo o processo, já


que é praticamente impossível retratar a penumbra na qual permanecemos a maior parte do
tempo. Por outro lado, existe a ‘memória’ dos atendimentos e esta se faz por meio de uma
seqüência de momentos em que algo emerge e a comunicação com o paciente se estabelece e
se realiza – tempos de compreender e de concluir 2.

No caso clínico apresentado, podemos destacar, pelo menos, três desses momentos. O
primeiro, ocorrido nos primeiros meses dos acompanhamentos e que teve desenlace a partir
de uma intervenção. O segundo, que ocupou um longo período do tratamento e foi marcado
pela redução nos sintomas do paciente. Por fim, o terceiro momento, ocorrido ao longo do
último ano e que, também, culminou em uma intervenção.

Em vez de falar a respeito do que representou cada um desses momentos para o


processo em questão ou dos seus efeitos para a economia psíquica do paciente, gostaria de
refletir sobre o lugar ocupado pelo acompanhante, que foi condição fundamental para o
avanço do tratamento.

2
Lacan explora os tempos de estruturação do sujeito no artigo ‘O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada’ que está presente no Escritos. (LACAN, 1998, pág. 197).
9
Quando comecei o acompanhamento, o paciente encontrava-se muito adoecido. A
‘ausência’ de memória e suas falas delirantes limitavam, ou mesmo impediam o nosso contato.
Foi somente com o pedido pelo fim do tratamento, que sua voz ganhou matizes de um pedido
de ajuda. A minha resposta ‘Você precisa sair daqui!’ – uma interpretação oriunda da inversão
da sua própria mensagem, que me pedia para ir embora –, colocou em cena algo do paciente
que até então era vivido como nosso limite.

O que importa destacar é que a intervenção só foi possível porque a experiência do


acompanhamento – experiência vivida no cotidiano, na casa, no leito do paciente – permitiu
que eu me aproximasse e testemunhasse as condições extremamente precárias em que ele
vivia. Ainda, diante do insuportável, havia a presença fundamental do meu corpo, palco de
afetos e instrumento capaz de dar voz a uma verdade a qual o paciente era incapaz de
reconhecer e aproximar-se. É ‘Você (quem) precisa sair daqui!’ tornou inédita uma verdade
que antes era impossível de ser habitada.

Do mesmo modo, no segundo momento do tratamento, quando o paciente obteve


expressiva mudança, reconstituindo o passado traumático e resgatando antigos projetos, foram
as condições oferecidas pelo acompanhamento, que tornaram o processo menos ameaçador e
suportável. Primeiramente, pela presença, ora silenciosa ora expressiva, do acompanhante e,
também, pelo contato gradual com a realidade da cidade, da cultura, do humano, registros dos
quais havia se isolado por muitos anos.

Por fim, mais familiar, mas não menos silenciosa e mortífera, a vivência transferencial
ao longo do último ano pôde reproduzir, em diversas versões, a cena traumática do período da
tortura. A paralisia estabelecida nos encontros desse período se tornou palco de um jogo
obscuro e perverso em que nos alternávamos, ora ocupando a posição de abusado, ora a de
abusador. Como no episódio ocorrido do restaurante – em que ele me ultrajava, lançando
pedaços de carne pelo chão – foi por meio da violência sentida em minha impotência, que eu
pude identificar a dinâmica da transferência em nossa relação.

O reposicionamento dentro da cena transferencial na última sessão, somente ocorreu


quando pude reconhecer o quanto eu estava tomado pela angústia e mortificado na relação.
Em um arroubo de palavras duras e ruidosas, em que pude resgatar situações e sensações que
nos tomaram nos últimos meses, meu gesto (ato) permitiu que rompêssemos a paralisia que
nos tomava, permitindo que ocupássemos novos lugares na relação. Certamente, o efeito
produzido não aconteceu pela força das verdades que ali foram ditas, mas por ter conseguido
evidenciar a verdade das forças (afetivas) experimentadas em nosso encontro.

Impasses da clínica

Retomando a proposta deste trabalho, o caso clínico revelou como o corpo do


acompanhante terapêutico tornou-se instrumento fundamental para o avanço do tratamento.
Não podemos desconsiderar que o atendimento foi realizado com um paciente muito adoecido
e, por esta razão, exigiu a presença, muitas vezes corporal, do acompanhante. No entanto, é
importante reconhecer que a ‘vivência’ de afetos daquele que acompanha, explicitada neste
caso clínico, é algo que ocorre em qualquer encontro analítico. Gostaria de chamar a atenção
em relação à problemática do corpo e dos afetos na clínica do acompanhamento terapêutico e
10
na experiência psicanalítica. Sem esquecer as recomendações e os alertas da psicanálise sobre
o risco dos analistas considerarem-se detentores de um saber que o paciente não possui – o
que já gerou muitos abusos e enganos na clínica, – não podemos deixar de reconhecer que,
tanto o acompanhante quanto o analista, ‘sentem’ nas sessões, e essa proximidade no
encontro, como uma das dimensões do enquadre, é extremamente valiosa para condução do
tratamento. Cabe a nós pensarmos o que fazer com isso!

IV – BIBLIOGRAFIA

LACAN, J. (1998). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: _____ Escritos. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor.

NESTROVSKI, A; SELIGMANN-SILVA, M (orgs). Catástrofe e representação. Editora Escuta Ltda.


2000. Rio de Janeiro

Alexandre de Souza Piné

Psicanalista, acompanhante terapêutico, coordenador da instituição O Clube e membro do


grupo HabitAT.

11

Você também pode gostar