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Diário de Campo

13/02/2023 22:22

13/02/2023:

Hoje fui ao complexo comunitário vida plena, com o intuito de conhecer o território e se familiarizar com o mesmo, a
visita nos levou a cada anexo presente no bairro do pau da lima, e ao fim fizemos a leitura do prontuário de uma
família por dupla. Após a leitura do histórico da família, fizemos um planejamento para a próxima visita domiciliar.

No entanto, o que mais me mobilizou não foram as instalações nem o ambiente no qual passarei as próximas nove
semanas, mas sim o acesso ao lugar de uma forma geral. Transitei pelo território dentro de um carro, e vi algumas das
ladeiras mais íngremes que já vi em minha vida, pensei muito na população que não tem a possibilidade de chegar em
casa com um carro, e na população com dificuldade de mobilidade, como pessoas idosas, cadeirantes, pessoas que já
tem alguma forma de dificuldade de transitar por um terreno plano.

23/02/2023:

Hoje fizemos o planejamento e esboço do projeto de atuação em grupo. Falamos muito sobre conceitos teóricos e em
determinado momento estava sugerindo realizar uma cartilha de informação para os pais das crianças que frequentarão
o grupo para que os mesmos compreendessem a importância de nosso trabalho lá, e foi questionado pela professora se
isso seria inclusivo com a população que estaríamos atendendo devido à baixa escolaridade presente na comunidade, e
esse foi mais um momento em que meu privilegio foi posto à minha frente, pensei na inocência que tive ao pensar que
algo tão comum e dado como garantia a educação formal suficiente para ler uma cartilha.

27/02/2023

Hoje fizemos o primeiro atendimento domiciliar do internato. Foi super interessante e curioso estar no espaço de uma
outra família a qual eu nunca tinha visto e que ao mesmo tempo tinha tantas informações sobre, algo que me pegou de
surpresa foi me ver na posição de agente de saúde. Fiquei muito atento também em relação ao acesso à casa da família
em que estávamos fazendo o atendimento, muita ladeira e muita escada com uma condição menos que ideal para
pessoas com questões de mobilidade e idosos, algo que me pôs para pensar foi em relação a um ocorrido que não tive
como não comparar com a minha realidade, na qual devido a um desentendimento entre vizinhos houve ameaça de tiro
e violência por questões que eu consideraria como algo de uma importância tão baixa, que na comunidade onde vivo
(um condomínio particular murado e com cerca elétrica) seria abordada de uma maneira muito mais tranquila.

6/3/23
Hoje fizemos o atendimento com outra família, a família de dona Carmelita. Dona Carmelita vive com Silvanei e Helio,
seu filho e marido respectivamente. O casal apresenta DM generalizada e diabetes, Helio é diagnosticado com
esquizofrenia e existe um contexto de violência doméstica na família. Quando chegamos na residência, Dona Carmelita
não havia chegado, apesar de ela ter feito o agendamento, e acabamos fazendo o atendimento diretamente com Seu
Helio. Eu estava pessoalmente esperando ter como abordar Seu Helio pessoalmente, e como ele havia previamente
estabelecido que tem preferência no atendimento por homens, fiz grande parte da entrevista sozinho. Fiquei muito
intrigado pela história de vida de seu Helio, falou com agente sobre seu primeiro internamento e como se deu sua
primeira crise, percebi uma ligação interessante entre a experiência da primeira crise e sonhos recorrentes que afetam
sua qualidade de sono. Quando percebi essa possível ligação me senti como um psicólogo pela primeira vez, e foi uma
sensação muito estranha, mas ao mesmo tempo boa, acredito que essa sensação seja um muito importante, mas
perigosa ao mesmo tempo, principalmente para estudantes e recém formados, por entrar em contato com o narcisismo
do estudante, e estou fazendo o meu melhor para não deixar isso entrar na minha habilitação para acompanhar essa
família

9/3/23
Hoje fizemos a distribuição dos panfletos e cartilhas para a divulgação do grupo de apoio a crianças, passamos por vários
dos anexos do complexo e vimos e falamos com varias pessoas diferentes para fazer a divulgação, teve um senhor que
falou que ia levar os 14 netos dele para fazer parte do grupo. Achei isso muito legal e adorei a forma como ele falou isso.

13/3/23
Hoje revistamos a família de Carmelita, e dessa vez, seu Hélio não estava sozinho, dona Carmelita também estava por la,
e estávamos acompanhados da professora Jessica Plácido. Algo que prestei muita atenção foi a diferença do timbre e da
altura em que seu Helio falava com a professora e comigo, demonstrando um machismo muito explícito, isso também
ficou visível na maneira em que se impunha sobre sua esposa, ele descreveu violências que estavam em seu dia a dia, e
a violentou silenciando a mesma, gritando e fazendo criticas sem nenhum cuidado para que sejam críticas construtivas
que façam algum efeito de mudança e que não desgaste a relação que a meu ver estava se segurando mais por
necessidade dos envolvidos, não por um afeto com o outro. Isso especificamente me lembrou muito a minha família,
talvez por conta de eu me manter vinculado a eles por necessidades minhas.
Tenho sentido também que as supervisões tem sido muito superficial, que nos momentos em quais necessitamos falar
sobre como cada aspecto atingiu agente as pessoas deslocam o foco que naquele momento deveria ser para elas se
cuidarem e cuidarem para não haver a sobreposição de seus processos sobre o processo do paciente.

20/3/2023
Hoje fizemos o atendimento de costume com a família das últimas semanas, e algo que me deixou mobilizado foi em
relação ao espaço que tenho de privacidade morando no lugar que moro, a líder da família que visitamos se sentia
desconfortável de falar sobre oque lhe afligia por medo de seu esposo a escutar, isso me deixou muito mobilizado e
tentei levar esse atendimento para um lugar mais neutro e me encontrei no lugar de impotência do agente de saúde,
olhei nos olhos da impossibilidade de mudança do Setting terapêutico de atendimento domiciliar.

23/3/2023

Hoje tivemos o grupo de crianças para brincar e realizar dinâmicas que explorassem o desenvolvimento cognitivo e
social dos integrantes do grupo. Primeira vez que eu participei em conjunto com os integrantes. Foi sensacional, amo
trabalhar com crianças, fico muito intrigado pela curiosidade delas e pela maneira única que cada um tem de brincar,
me remeteu à época em que estava estagiando na Escola Lua Nova e me relembrou o quanto que eu aprecio poder
trabalhar com esse público.

27/3/2023
Hoje tornamos a voltar à família que estamos atendendo, e algo que me fez pensar muito foi o questionamento aberto
pela professora sobre se seria viável voltar à família na próxima semana, e nessa discussão eu advoguei que mesmo que
não houvesse efetivamente a realização das metas estabelecidas previamente por parte do que tange o
comprometimento da família ao que esta sendo discutido durante o atendimento, é necessário que haja o
comprometimento e adaptação por parte dos agentes de saúde, principalmente em uma população na qual o mais
perto que terão de um atendimento psicológico é o atendimento domiciliar. E que temos que fazer o possível para que
haja um progresso. Isso (em minha opinião) se faz especialmente difícil por conta da alta rotatividade do staff de
estagiários na unidade.

10/04/2023
Hoje foi último atendimento domiciliar. Tivemos um atendimento muito difícil por conta e de o marido da família ter
comparecido, esse caso era o mesmo que estávamos acompanhando desde o início, e em boa parte dos atendimentos, a
unica pessoa que comparecia era a esposa. Neste atendimento tive que lidar com a impotência do ser psicólogo, e a
potência de um homem impotente. Vimos um homem demonstrar seu machismo na forma explícita em que ele
impossibilitava o espaço para existência e validade dos sentimentos de sua esposa, que fazia todo para ele, e que
inclusive estava o mantendo vivo. Me perguntei se esse ódio era por ela, pelo simples fato de ela ser mulher, ou se era
por ele mesmo, por ele só estar vivo por conta dela, continuando sua existência sofrida, ou até se era puro ódio. De
qualquer maneira me deparei com a castração, em diversos momentos, com a importância de colocar aquela mulher em
meu carro e a tirar de la, com a incerteza de se ela continuaria a viver depois daquele dia, se meu trabalho tinha valido
de algo, ou se só tinha trazido sofrimento. Fui bombardeado por essas perguntas e por esses sentimentos, e não tinha
nada que eu pudesse fazer, somente ser um observador na história, um ser oculto que buscava compreender oque
aconteceria, aconteceu e oque estava acontecendo, alguém que estava munido de palavras, protegido por teorias e
tendo o não saber como chão vazio de uma queda infinita que sustentava o meu ser.

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