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Universidade Federal de Juiz de Fora

Faculdade de Educação – Curso: História


Disciplina: Gênero, Sexualidade e Educação – EDU 331
2021.1 - Readaptada para o ERE
Professor: Dr. Roney Polato de Castro

Aluna: Maria Beatriz de S Thiago Ragon


Matrícula: 202011033

MEMÓRIAS, EXPERIÊNCIAS E SABERES


É difícil para mim me abrir e expor a minha intimidade, mas acredito que esse
deve ser um esforço feito para essa atividade. Acho que eu não seria verdadeira comigo
mesma e nem com a proposta se eu partisse de um causo abstrato qualquer e tentasse
seguir. Então, eu cresci numa família extremamente conservadora, daquelas que nós
meninas não podíamos usar short em eventos de família ou pijama pela casa. Além de
conservadora, extremamente religiosa, a mulher tendo sido designada por Deus a cumprir
alguns papéis no plano terreno, enquanto o homem a outros. Então, logo cedo me descobri
mulher. Não sei se foi já um pouco mais velha quando comecei a ter idade para sair com
amigos e só podia fazê-lo no caso de um dos meus primos estar presente, mesmo que
tivessem a mesma idade que eu, ou então quando me toquei de que sempre acumulei
muitas tarefas domésticas, desde a mais tenra idade, mas nunca tinha visto meu pai lavar
uma louça. Assim, algumas coisas foram sendo construídas dentro da minha cabeça e
demorei muito tempo para conseguir romper com certas imposições que eu mesma me
fazia por muitas vezes. Imposições que refletiam na maneira como eu me enxergava
intelectualmente, na maneira como eu enxergava (e ainda enxergo apesar de lutar muito
contra isso) o meu corpo, a maneira como eu me permitia me relacionar com as pessoas
e as coisas que eu me submetia pelo simples fato de precisar me submeter, ou era o que
eu pensava. E assim fui crescendo.

Em 2015 eu conheci quem um tempinho depois viria a ser meu namorado. O


Gabriel, que é meu companheiro de vida até hoje, foi primeiro menino com quem me
relacionei e fui crescendo junto. Quando hoje olho para trás e vejo algumas situações do
início do nosso relacionamento, eu percebo o quanto essa influência, que eu sempre tive
tanta certeza de que não existia, me afetava. Primeiro, no mais visível, a minha intimidade
com ele. O sexo sempre foi uma questão muito grande na minha família, não se falava
sobre isso e muito menos com as meninas. Sempre ouvi meus tios conversando com meus
primos, fazendo brincadeiras sobre o tema, mas nunca se conversava sobre isso de fato.
O máximo que acontecia eram menções sobre como a minha mãe e as irmãs dela haviam
casado virgens e que era assim que tinha que ser. O sexo é algo sagrado do casamento ou
está errado. Um primeiro confronto que tive com isso foi que, mesmo hoje, quase 6 anos
de namoro depois, o meu namorado não pode entrar no meu quarto na casa dos meus pais,
quando comecei a namorar então, isso era impensável. A maneira como isso refletiu no
meu relacionamento foi a impossibilidade de se falar sobre isso, eu simplesmente não
conseguia (e ainda tenho muita dificuldade) falar sobre nada relacionado ao sexo. Por um
lado, eu vejo hoje que sofri uma forte pressão do Gabriel para que isso acontecesse no
nosso relacionamento, já que ele já tinha uma vida sexual ativa e era algo natural para ele,
por outro lado, apesar de ser algo que eu queria também, eu não conseguia me permitir
viver isso. Esse sentimento de culpa, como se eu estivesse fazendo algo errado, continuou
comigo por muito tempo e seria uma mentira da minha parte dizer que ele sumiu. No
início eu chorava depois de fazer alguma coisa, como se tivesse cometido um crime, hoje
em dia eu ainda me pego pensando se eu realmente estou fazendo algo tão errado assim.

Num segundo momento, algo que sempre esteve presente no meu namoro foi uma
relação de submissão. Não porque o Gabriel me sujeitava ou impunha isso, mas porque
eu mesma fazia isso. Eu sempre renunciava a tudo, eu sempre aceitava tudo, eu sempre
desistia de insistir em discussões e tudo isso faz parte de um relacionamento, quando
mutuamente. Claro que depois de um tempo se tornou insustentável e eu comecei a
perceber como que eu não precisava renunciar a tudo, como eu podia colocar o que queria
como algo importante também, como que, se algo me incomodava, valia a pena ser
discutido então. A princípio isso gerou um grande desconforto no relacionamento,
simplesmente porque não era a dinâmica que havíamos nos acostumados, mas aos poucos
foi se tornando mais leve e bom para as duas partes, achando esse espaço de relevância
para os dois.

Esses são alguns dos confrontos mais claros que tive com a minha identidade de
gênero. Foi todo um processo para eu me entender enquanto mulher e entender o que isso
significava, mas, mais do que isso, o que eu queria que isso significasse na minha vida.
Infelizmente, ser mulher é resistir, é ser força. Infelizmente porque as vezes eu não quero
resistir, as vezes eu não quero ser forte, mas é preciso muita resiliência para ser mulher
num país em que o feminicídio cresceu 200% entre 2020 e 20211, um país onde 30
mulheres por hora sofrem violência física2, um país onde um estupro é registrado a cada
8 minutos3, um país que mata 1 mulher trans ou travesti a cada 2 dias4. É muito cruel você
ter que se preocupar com a roupa que vai sair de casa todos os dias, pensando se vale a
pena o desconforto de ser assediada por todo caminho. É muito cruel ensinarmos para as
nossas meninas que elas têm que se proteger e se “valorizar”, porque se não elas vão
“estar buscando ser violentadas”. Mas essa é a realidade que temos, o que não quer dizer
nos conformamos com isso, mas buscarmos usar das ferramentas que possuímos para
lutar contra isso. A educação, para mim, é a maior e a mais forte arma que possuímos na
luta contra o machismo, a misoginia e todo tipo de preconceito. Lutar para que cada dia
mais esses papéis de gênero construídos socialmente sejam abolidos, lutar para que a
violência diária de gênero seja combatida e não só quando ela termina com feminicídio.
Uma educação enquanto prática da liberdade de fato, comprometida com a emancipação
do sujeito, tem que ser comprometida, também, com a libertação das amarras do
patriarcado que se traduzem tanto na supressão das vozes femininas, mas na pressão
sofrida pelos homens de seguirem o padrão do “machão” que muitas vezes os coloca em
situações de continuarem reproduzindo certas violências para simplesmente serem
socialmente aceitos, mas que os fazem oprimirem a si mesmos para se encaixar no padrão.

Apesar de ainda querer falar muito mais sobre a minha experiência de gênero,
porque é um assunto que nunca se esgota, acho importante aproveitar o espaço para falar
sobre a minha sexualidade. Esse é conflito interno muito grande que ainda tenho e nunca
falei sobre isso com ninguém que não seja do meu círculo mais próximo de pessoas. Eu
sempre me questionei muito sobre a minha sexualidade. Quando digo sempre, é sempre
mesmo. Não sei dizer ao certo a idade, mas desde quando comecei a ver a possibilidade
de me relacionar com outras pessoas, eu comecei a me questionar também se queria me
relacionar com meninos. Eu já me sentia atraída por meninas também, mas isso era algo
tão errado e fora da normalidade, que eu nunca me permiti sequer pensar sobre isso.
Conforme fui ficando mais velha, isso passou a ser algo mais urgente, já que era um

1
https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/04/25/marco-registra-maior-numero-de-morte-de-
mulheres-e-feminicidios-de-2021-na-paraiba.ghtml
2
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/por-dia-729-casos-de-lesao-corporal-
dolosa-sao-enquadrados-na-lei-maria-da-penha/
3
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/1-estupro-a-cada-8-minutos-e-
registrado-no-brasil/
4
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/a-cada-2-dias-uma-travesti-ou-mulher-
trans-e-assassinada-no-pais/
sentimento cada vez mais presente. No entanto, eu comecei a namorar o Gabriel com 15
anos e estava num lugar de muito conforto porque tinha feito tudo “certo”, estava num
relacionamento hetero-cis-normativo conforme mandam os escritos. Era um lugar de
muito conforto, eu não precisava mais pensar sobre isso porque já estava encaixada dentro
do padrão e pronto.

Contudo, em 2018 passei para a faculdade, fui morar longe de casa e resolvi me
permitir pensar melhor sobre isso. Conversei com o meu namorado sobre, na época ele já
fazia faculdade e morava em Juiz de Fora enquanto eu fui estudar na UFRRJ em
Seropédica na Baixada Fluminense. Resolvemos então, juntos, que iriamos abrir nosso
relacionamento durante um tempo para que pudéssemos trabalhar essas questões dentro
de nós. O que sentíamos um pelo outro nunca foi posto em pauta, era muito claro, mas eu
precisava disso, muito mais do que ele com certeza, para me sentir bem comigo mesma.
Durante o tempo que passei lá eu conheci pessoas incríveis, me relacionei com pessoas
incríveis, que me ajudaram a entender que tudo bem eu estar num relacionamento
heteronormativo mesmo não me sentindo parte só dessa normatividade, tudo bem eu
abraçar mais essa camada da minha identidade, e, sobretudo, tudo bem eu me atrair por
qualquer pessoa que fosse. Desde então, eu me identifico como bissexual e tenho muito
orgulho disso. Eu nunca tive coragem de discutir isso com a minha família e nem acho
que vou ter um dia, principalmente porque é muito fácil para mim tendo em visto que
aparentemente atendo ao que sempre me foi ensinado. Eu e Gabriel queremos nos casar
num futuro próximo, claro que eu sei que isso não quer necessariamente dizer que o que
temos é para sempre (apesar de eu querer acreditar que sim), mas isso faz com que eu não
precise confrontar essas questões com a minha família, pelo menos por um tempo, já que
aparentemente eu não fujo a norma para eles. De certa forma isso me dói, porque nunca
me sinto verdadeiramente eu quando estou com meus pais, mas ao mesmo tempo, eu não
acho que vale a pena o conflito com pessoas que tenham as opiniões que eles têm e
querendo ainda manter uma relação com eles. Se quando eu contei para minha mãe que
não era mais virgem, mesmo estando numa relação heteronormativa já de longa data e ela
ainda assim disse que essa era uma das maiores decepções da vida dela e que ela tinha
falhado como mãe, que quando eu estava querendo sair ou ir à casa do meu namorado era
porque eu queria só ficar de “fodeção”, eu nem imagino o que ela poderia falar caso
contasse algo assim para ela. No momento, eu estou em paz com isso, principalmente
porque me descobrir bissexual me permitiu me sentir livre, sentir essa liberdade de ser
dentro de mim principalmente, apesar de isso não ser possível em todos os espaços.

Eu acredito que esses foram alguns dos maiores embates que já tive comigo a
respeito da minha identidade de gênero e da minha orientação sexual. Talvez as vezes me
pareça que tenha sido muito fácil, mas fazendo esse exercício de escrever o que senti e
sinto sobre essas questões, me fez confrontar muito do que estava dentro de mim e
perceber que preciso valorizar um pouco mais a minha trajetória para ser quem eu sou
hoje. Eu cansei de ser quem eu deveria ser, eu quero ser simplesmente só quem eu sou.
Eu quero me permitir amar, me permitir ser e me permitir viver como quero, sem medo
de existir. Tenho muito orgulho da mulher que me tornei e das dificuldades que consegui
superar para chegar até aqui, dificuldades do plano material mas principalmente no
mundo das ideias. Acho que eu preciso passar a levar mais isso em consideração e
reconhecer as vitórias que já tive, que apesar de pequenas perto do todo, foram enormes
para mim. Obrigada pela oportunidade do espaço para pensar e falar sobre essas coisas.
Essa disciplina tem me colocado num lugar de extremo desconforto que eu precisava
estar, que me permitiu olhar para dentro de mim e me entender um pouco mais, mas que
também tem me permitido enxergar todas as relações sociais e a maneira como nos
colocamos no mundo, de outra forma.

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