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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

PSICOLOGIA

PEDRO VICTOR NUNES BASTOS

A arte e o sonho: semelhanças interpretativas sob o prisma analítico.


Compreensão da interpretação dos sonhos e análise da arte psicanalítica e um contraponto à
psicanálise por meio da psicologia de Carl G. Jung.

BELO HORIZONTE
2023
PEDRO VICTOR NUNES BASTOS

A arte e o sonho: semelhanças interpretativas sob o prisma analítico: compreensão da


interpretação dos sonhos e análise da arte psicanalítica e um contraponto à psicanálise por
meio da psicologia de Carl G. Jung.

Monografia apresentada ao curso de psicologia da


Universidade Federal de Minas Gerais como
avaliação para a disciplina de Psicanálise II.
Monitor: Isabella Diniz
Orientador: Gilson de Paulo Moreira

BELO HORIZONTE

2023
O sonho para Freud seria como um véu que esconde um significado ainda maior que
ele mesmo, e que é por meio do trabalho do sonho que mecanismos de censura transformam
aquilo que a psique não deseja tornar claro à consciência em conteúdo manifesto, de modo a
deixar para os bastidores, ou quarto dos fundos, a repercussão psíquica do conteúdo latente do
sonho: “um novo material psíquico se insere entre o conteúdo do sonho e os resultados de
nossa observação: o conteúdo latente do sonho ou pensamentos oníricos, obtidos por meio de
nosso procedimento.” (A Interpretação dos Sonhos; cap. VI , O Trabalho do Sonho). O sonhar
seria não uma maneira de processar e revisar o material da vida diurna, mas um processo que
se aproveita dessa roupagem para a realização de desejos. Muitas vezes esse mecanismo é
evidente, como por exemplo no sonhar que se come um banquete farto quando durante o dia
foi-se privado o consumo de alimentos de alto teor calórico por causa de uma determinada
dieta, todavia, em outros casos, como nos sonhos de angústia, essa realização de desejo não é
tão clara assim.

Como, aparentemente, pouco há na obra de Freud a respeito da arte e do fazer artístico,


ou na medida em que em toda a minha ignorância e limitação não pude encontrar textos mais
úteis à proposta em questão, tenho como objetivo conciliar alguns dos seus escritos a respeito
da relação obra-autor, com a sua própria teoria a respeito da interpretação do sonho, visto que
citações como a que seguem abaixo corroboram a ideia de que o próprio fazer artístico ou
profissional é incentivado por elementos inconscientes e podem, também, ser interpretados:
''Consideramos como provável que essa pulsão muito forte já agia na mais remota infância da
pessoa e que sua dominação foi estabelecida por meio de impressões da vida infantil e, por
isso, aceitamos que ele recorreu às forças pulsionais sexuais originárias, para fortalecê-las, de
tal modo apenas posteriormente, ele pôde representar um fragmento da vida sexual. Uma tal
pessoa poderia então, por exemplo, pesquisar com a mesma dedicação apaixonada com a qual
uma outra pessoa provê seu amor e poderia pesquisar em vez de amar” (Uma Lembrança de
Infância de Leonardo Da Vinci, 1910).

Além disso, o texto pretende utilizar as ideias de Carl G. Jung para tecer comentários
e críticas a respeito da análise dos sonhos psicanalítica e sua forma de compreensão da arte,
uma vez que, para Jung, “um pouco de crônica escandalosa representa muitas vezes a pitada
de sal de uma biografia, mas, em demasia, transforma-se numa indiscrição pouco limpa, uma
catástrofe do bom gosto sob o manto da ciência”. Deste modo, inopinadamente, o interesse é
desviado da obra de arte e se perde numa embrulhada labiríntica e enredada de pressupostos
psíquicos, tornando-se então o poeta um caso clínico — eventualmente mais um dos tantos
exemplos da psychopathia sexualis. Com isto, a psicanálise da obra de arte se afastou de seu
próprio objetivo e desviou a discussão para um campo humano genérico, nada específico para
o artista e, sobretudo para sua arte, de muito pouca importância. (O Espírito na Arte e na
Ciência, OC 15). É do meu interesse utilizar a perspectiva de Jung sobre a arte relacionando-a
com sua teoria da análise de sonhos para contrapor à perspectiva de Freud nos mesmos temas,
pois parece a mim que há relativa semelhança na estrutura interna da obra de cada autor no
que toca a temática da interpretação dos sonhos e análise da arte.

Comentário da monitora: O tema está bem explicitado a partir da ideia de uma


contraposição teórica entre Psicologia Analítica e Psicanálise. O uso de textos sobre sonhos
em ambas as abordagens corrobora para estabelecer um contraponto diferencial entre o
sonho e a arte. Seria interessante adicionar essa noção de que são campos de estudo
diferentes, mas que servem a um mesmo propósito.

A analogia teatral cabe bem para explicar a posição do sonho para Freud: no palco
surgem os artistas encenando a peça de forma que transmitem uma ou outra coisa para o
telespectador, assim como no sonho o conteúdo manifesto aparece no palco da mente do
sonhador, todavia é uma peça complicada e de difícil compreensão, pois os artistas utilizam
de uma linguagem pouco compreensível e recheada de entraves que dificulta o entendimento
do telespectador. Melhor seria observar os bastidores da peça, ou aquilo que se revela por
detrás das cortinas, desse modo, aquilo que não era nítido passa a ser passível de
entendimento, porque não é como se os artistas não quisessem que a obra surtisse efeito em
que vê, é que a obra descoberta diz muito sobre o telespectador e, não raramente, ele não está
preparado para entrar em contato direto com o conteúdo, de forma tal que os artistas precisam
elaborar as cenas para satisfazer os desejos daquele que assiste, de maneira obscura, para que
o espetáculo continue sendo assistido.

Dizendo de outra forma, para Freud, o sonho é a realização dos desejos do sonhador,
que pode aparecer escancaradamente, como é o caso de sonhos que satisfazem necessidades
básicas, como o sonho de que se está fazendo uma refeição deliciosa em um banquete ou
sorvendo-se de água, no entanto, existem outros em que a satisfação dos desejos não é clara,
ou em que coisas horrorosas e nem um pouco desejáveis ocorrem, o que produziu críticas à
teoria dos sonhos de Freud. Todavia, essas críticas já foram muito bem respondidas pelo
próprio vienense, os sonhos possuem um mecanismo de censura que utiliza de imagens
associadas para a construção de suas cenas, visando a realização dos desejos inconscientes do
sujeito (A Interpretação dos Sonhos; cap. VI , O Trabalho do Sonho), podendo ser aversivos à
consciência, por causa desse trabalho do sonho eles se tornam muito difíceis de serem
destrinchados à primeira vista, sendo necessária uma análise e interpretação do sonho.
Todas as outras tentativas até hoje feitas para resolver os problemas do
sonho partiam diretamente do seu conteúdo manifesto dado na memória
e se esforçavam para obter deste a interpretação, ou, quando não
tentavam uma interpretação, buscavam formar um juízo sobre o sonho a
partir de seu conteúdo. Somos os únicos a considerar algo diverso; para
nós, um novo material psíquico se insere entre o conteúdo do sonho e os
resultados de nossa observação: o conteúdo latente do sonho ou
pensamentos oníricos, obtidos por meio de nosso procedimento. É com
base nestes, e não no conteúdo manifesto do sonho, que desenvolvemos
a solução do sonho. Por isso deparamos com uma nova tarefa, que antes
não havia: pesquisar as relações entre o conteúdo manifesto do sonho e
os pensamentos latentes e investigar os processos pelos quais estes se
transformaram naqueles. Freud (1900).
A Interpretação dos Sonhos de Freud é um livro elementar para compreender a
psicanálise, e ouso dizer que pode ser utilizado como uma síntese dos pensamentos de Freud,
pois condensa vários dos pilares em que a psicanálise está sustentada. O funcionamento do
inconsciente em outras atividades que não o sonho, não é tão distinto daquilo que já foi dito, a
censura dos pensamentos inconscientes, o recalque e a repressão libidinal são formas que o
aparelho psíquico possui de se arranjar, de maneira que sua estrutura exerce grande influência
sobre como os sujeitos se manifestam no mundo. Nesse viés, não são somente os sonhos que
revelam desejos reprimidos e conteúdos do inconsciente, na mesma medida não são os únicos
que guardam segredos, mas também a obra de arte, que pode ser lida enquanto objeto
produzido por meio da sublimação da libido reprimida, de forma que muitas vezes a obra é
resultado da expressão de desejos inconscientes do sujeito.

Um bom exemplo para o que foi dito acima é a ilustração da forma como Freud
enxerga o fazer artístico de Leonardo Da Vinci, procurando na infância do pintor
renascentistas elementos que possam explicar suas produções. Sua análise da obra de arte age,
semelhantemente, como sua análise dos sonhos, que foca em associações que podem ser feitas
com a vida do sujeito, que pretendem revelar o real significado encoberto.

A devoção quase que religiosa de Leonardo à pesquisa pode ser explicada por meio de
um recalcamento sexual infantil que, durante a fase da pesquisa sexual infantil, em que a
criança passa a se questionar a respeito de onde surgem os bebês e qual a sua origem,
duvidam das fabulas que os adultos contam à cerca dos bebês, rejeitando tanto a cegonha
quanto a semente, empenham-se em desbravar esse conhecimento e tomam noção do tema da
sexualidade, todavia, como seus próprios corpos são incompletos no que toca a esfera sexual
deixam sua pesquisa de lado. No caso de Leonardo, a libido se afasta do destino do recalque,
pois ela se sublima pelo ímpeto de saber, tornando-se nítida enquanto recalque para a
poderosa pulsão de pesquisa. Dessa forma, a pesquisa substitui o fazer sexual, e como
consequência da diferenciação dos processos psíquicos subjacentes, a ligação com o
complexo original da pesquisa sexual infantil é suprimida, de modo que a pulsão se torna
livre, servindo ao interesse intelectual. (Freud, 1910).

De outra perspectiva, para Carl G. Jung a análise do sonho deve ater-se ao objeto, isto
é, ao sonho de fato, e não proceder por linhas ziguezagueantes, por meio da associação livre.
A interpretação deveria assemelhar-se mais a um movimento de circunvolução sobre o tema
do que a um afastamento contínuo do objeto por linhas, que em seu conjunto são sinuosas
(Vida Simbólica, vol XVIII/1). Assim, tal como foi compreendida a concordância teórica
interna na obra de Freud entre sonho e arte, é possível observar a mesma semelhança entre os
dois assuntos no autor suíço, de forma que não é somente nas tentativas de se compreender o
sonho que o movimento circular acerca do tema deve ocorrer, mas também na interpretação
da arte, haja vista que os fenômenos inconscientes para Jung, assim como para o vienense,
também não deixam de atuar sobre essa produção.

Se o objetivo é o exame da obra de arte é preferível que ela seja mais levada em
consideração do que o sujeito que a produziu, do contrário, que seja o objetivo inicial o ponto
a ser alterado e não a metodologia da análise, pois se o que se quer é descobrir as nuances e
idiossincrasias do artista o melhor é que o exame seja sobre ele, e não sobre sua arte. Haja
vista que a investigação do condicionamento prévio a que as pessoas estão sujeitas em geral,
no que toca a obra de arte, é supérflua. O condicionamento prévio só interessa enquanto
auxiliar a melhor compreensão do sentido. A causalidade pessoal tem tanto ou tão pouco a ver
com a obra de arte, quanto o solo tem a ver com a planta que dele nasce (O Espírito na Arte e
na Ciência, vol XV, pg. 46). A vida pessoal do sujeito tem grande relevância na sua produção
artística e na sua vida onírica, mas a postulação de que somente com ela é possível extrair a
compreensão de todos os elementos que tocam a arte e o sonho é um tanto quanto arbitrária,
pois trata desses dois temas como se fossem propriamente seres humanos, e não algo que é
suprapessoal. É uma coisa e não uma personalidade, nesse sentido, não pode ser julgada por
um critério pessoal, a obra de arte verdadeira possui um sentido especial no fato de se livrar
das estreitezas e dificuldades inescapáveis de tudo o que seja pessoal (O Espírito na Arte e na
Ciência, vol. XV, pg. 46).

Caso fosse possível atribuir a todo fenômeno artístico causalidades inquestionáveis


sobre a criação artística, tudo aquilo que se encontra no campo da discussão da arte seria
resumido a um apêndice da psicologia, e nada além disso. Há possibilidade de se explicar a
totalidade dos processos psíquicos conscientes por meio da causalidade, todavia, o momento
criador, em que as raízes se aprofundam na imensidão do inconsciente, permanecerá
eternamente obscuro para o conhecimento humano. É por meio das suas manifestações e
expressões que podemos descrevê-lo ou pressenti-lo, mas nunca será possível enquadrá-lo em
limites estreitos (O Espirito na Arte e na Ciência, vol XV).

Além disso, a ideia de que a arte ou o sonho esconde um significado que é incialmente
obscuro abre grandes margens para a instalação de fantasias e ficções que são próprias do
intérprete, podendo contaminar o objeto. Em se tratando da prática clínica algo semelhante
acontece frequentemente durante os atendimentos, o analista estando tão absorto em suas
próprias ficções do caso ou sendo tão dogmático com relação aos preconceitos teóricos que
ele tem, não enxerga aquilo que está logo embaixo do seu nariz, mas prefere executar uma
série de violências ao objeto no ímpeto de assegurar-se, e mais do que isso, impor a falsa
certeza de que suas presunções teóricas estão certas. De modo que o sujeito individual é
negado perante grandes generalizações.

Uma teoria, porém, que se limitasse estritamente a essa


perspectiva seria de pouca valia para o autoconhecimento, já que este
trata do conhecimento de fatos individuais. Quanto mais uma teoria
pretende validade universal, menor a sua possibilidade de aplicação a
uma conjuntura de fatos individuais. Toda teoria que se baseia na
experiência é, necessariamente, estatística; ela estipula uma média ideal,
que elimina todas as exceções, em cada extremidade da escala, em cima
e embaixo, substituindo-as por um valor médio abstrato. Este valor
figura na teoria como um fato fundamental e incontestável mesmo
quando não ocorre sequer uma vez na realidade. (Presente e futuro, vol
X/1).
Por mais que a citação acima caiba melhor à terapia cognitivo comportamental, ela
pode ser muito útil para tecer uma crítica a psicanálise na medida em que nela também
existem valores médios abstratos, por mais que não quantificados numericamente. A questão
é que existem pressupostos que não são necessariamente verdadeiros em todos os casos, eles
são úteis e possuem grande valor explicativo, o grande problema é sua universalização, pois a
experiência humana é extremamente multifacetada e colorida de diferentes cores, de modo
que a individualidade do sujeito, obra ou sonho são pontos essenciais a serem levados em
conta. O que parece não acontecer, mas frequentemente ocorre é a negação do objeto, quando
as elaborações teóricas que permitiram a resolução de uma situação específica, sendo ela uma
interpretação artísitca ou um prognóstico clínico, são abstraídas e empregadas em outros
casos que pouco ou nada tem a ver com o anterior. Não é atoa que o método junguiano para
interpretações em geral tem sido não pressupor nada e sim aceitar os fatos. Qualquer coisa
pode ser um substituto para qualquer coisa tratando-se de interpretações arbitrárias; deve-se
tomar cuidado com preconceitos em favor da substituição, como foi dito por Jung no
Seminário sobre análise de sonhos de 1930.
Referências:

(1900) A Interpretação dos Sonhos. Vol. IV Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud
edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

XI – (4) LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DA SUA INFÂNCIA


(1910) 1919 2ª ed.

JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2018c, vol. XV

JUNG, C. G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2017c, vol. XVIII/1

JUNG, C. G. Presente e futuro. Petrópolis: Vozes, 2017e, vol. X/1

JUNG, C. G. Seminários sobre análise de sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014

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