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Copyright © 2021 Liz Stein

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fotocópias ou qualquer outro tipo de cessão da mesma, sem prévia autorização do autor.

Lei nº 9.610, de 19.02.1998

Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais é uma mera
coincidência.

Edição: Liz Stein


Revisão: Letícia Dutra
Diagramação: Kindle Create
Design da Capa: Lunas Editorial
A terceira chance / Duologia “Amores em Manhattan”
—— Liz Stein.
Rio de Janeiro — RJ / Brasil
1 —— literatura brasileira;
Agradecimentos

São muitas as pessoas a quem agradecer por todo o apoio nesta conquista. Em primeiro lugar,
agradeço à minha filha por ser minha eterna motivação e fonte de inspiração para tudo que eu faço.
Agradeço especialmente ao meu marido, que mais uma vez não me decepcionou com sua parceria e
apoio incondicional. Ele não apenas leu o livro, mesmo sem gostar do gênero, como me ajudou em
uma série de decisões e demonstrou genuíno interesse pela minha escrita. Obrigada por tornar minha
vida melhor em tantos sentidos diferentes.
Preciso agradecer imensamente à Letícia Dutra, do @praxeliterária e @leitorabeta. Foi minha
leitora crítica, se tornou uma amiga e, graças a todos os seus feedbacks, esta história se tornou a
melhor versão dela mesma. Sem palavras para tudo que você fez e continua fazendo por mim. Outra
pessoa incrível que conheci nesta jornada foi autora e médica, como eu, Denise Medeiros. Conheci
Deni através da indicação de um livro dela que amei, O Grande Prêmio. Após um breve diálogo no
IG surgiu uma inesperada e deliciosa amizade, compartilhando as dores e delícias da escrita em
longas conversas pelo WhatsApp. Sem dúvidas ela tornou o processo muito mais leve e divertido.
Não poderia deixar de mencionar as autoras maravilhosas do Clube da Escrita que, ao longo
dos últimos meses, generosamente dividiram seus conhecimentos e me ajudaram demais a organizar
todas as etapas do processo de produção de um livro, desde a construção dos personagens até
estratégias de marketing. Karina Heid, Tatiana Mareto, Rebeka Prez, Sarah Summers, Narjara
Pedroso, Ligia Dantas, obrigada por todo altruísmo e leveza. Vocês são incríveis.
É surpreendente o tanto de pessoas especiais que cruzam nosso caminho quando começamos a
escrever histórias. Pessoas que leem o livro em suas versões mais cruas, mergulham de cabeça na
história de um autor desconhecido e ainda dão um inesperado e detalhado feedback, pelo simples
prazer de ajudar. Foi assim com muitas pessoas que conheci através do Instagram e gostaria de
destacar algumas delas pelas várias observações pertinentes e preciosas que fizeram, mencionando
pontos de melhoria na descrição de algumas cenas e encontrando pequenos erros de digitação que
passaram despercebidos. Minha sincera gratidão a Kamille Vitória, do @estantedoscliches, Lorena
Silria, do @opsqueroler, Marcia, do @resenhandobymarcia e Juliana Rendeiro, do @elas.resenham.
E acima de tudo, obrigada a você, que decidiu ler este livro. Nada é mais gratificante para um
autor do que ver sua obra tocando quem está do outro lado. Espero despertar em vocês as mesmas
emoções que senti ao escrever.

Liz Stein
Dedicatória

Dedico este livro a todos os profissionais que arriscam suas vidas para cuidar daqueles que
mais necessitam.
Claire

Nova Iorque, 6 de Novembro de 2012

O SOM RITMADO dos seus tênis se chocando com força contra o asfalto úmido e sua respiração
pesada eram os únicos sons que se ouviam naquela manhã gelada. Aquela cena refletia em grande
parte as características da mulher que a protagonizava. Determinação, quietude, resiliência. Ela não
era uma pessoa que buscava holofotes ou aprovação. Suas motivações jaziam numa outra camada,
bem abaixo da superfície. Motivações essas que a levaram ao projeto que estava prestes a
concretizar.
Enquanto corria ao redor do lago Reservoir no Central Park, mais uma vez Claire pensava
sobre o peso da decisão que havia tomado e, como vinha acontecendo com frequência nos últimos
dias, sentiu o familiar arrepio de excitação e medo percorrendo sua espinha.
Sabia que estava prestes a iniciar uma experiência que poderia mudar a forma como encarava
sua profissão e não duvidava de que dela fosse resultar também uma poderosa transformação
pessoal. Mesmo sem saber qual seria o desfecho, precisava disso, de uma transformação profunda.
Precisava sentir intensamente alguma coisa, algo que fosse além da satisfação tranquila que sua
rotina pacata e sua trajetória profissional bem sucedida lhe traziam. Pensar que poderia estar a
poucos passos disso catapultava sua ansiedade a patamares muito elevados e hoje ela havia atingido
o ápice.
Ela havia dormido muito mal naquela noite. Acordou diversas vezes assustada, enfiado a mão
embaixo de seu travesseiro em busca do celular para ver as horas e bufando exasperada ao ver que
ainda era madrugada. Sabia que se continuasse a despertar a cada hora, chegaria exausta à reunião
pela qual esperava há tanto tempo.
Na última destas vezes, às seis e quarenta e sete, por fim se dera por vencida. Depois de tentar
conciliar novamente o sono sem sucesso, se levantou e, sem acender nenhuma luz, foi descalça até a
cozinha do pequeno estúdio onde morava há 18 meses. Abriu a geladeira e se serviu de um copo de
leite puro e gelado, que sempre a ajudava a se acalmar. Caminhou com o copo na mão até o
confortável sofá na sala contígua à cozinha americana e recostou o corpo. Pela janela, viu o céu
mudando suas cores, anunciando que em breve o sol nasceria e daria oficialmente início à véspera de
um dos dias mais importantes dos últimos tempos.
Aos 29 anos, Claire poderia se considerar uma mulher bem sucedida na maior parte dos
aspectos de sua vida. Havia realizado o sonho de se tornar médica e concluído há dois anos a
residência em Anestesiologia. Graças à intensa dedicação e ao comprometimento ao longo de sua
formação acadêmica, havia se destacado brilhantemente. Logo após o término da residência, fora
convidada a integrar o quadro de médicos do Memorial Sloan Kettering, em Nova Iorque, e lá
trabalhava desde então. Eram longas e cansativas horas de trabalho, mas se sentia satisfeita em atuar
num dos melhores e mais conhecidos hospitais do mundo. Ainda assim, sentia como se algo faltasse
em sua trajetória profissional.
Há alguns meses, ouvira uma colega comentando sobre sua experiência numa missão do grupo
“Médicos sem Fronteiras” (MSF). Ela descrevera o trabalho que havia realizado em um país
africano, levando vacinas e atendimento médico a populações que viviam em extrema miséria, sem
qualquer acesso a serviços de saúde. Claire ouvira atentamente a respeito, fazendo diversas
perguntas e sentindo que algo era despertado dentro dela. Era um sentimento parecido com aquele
que inicialmente a impulsionou a buscar a faculdade de medicina após acompanhar, aos 12 anos, a
morte da avó por câncer e o cuidado impecável e humano oferecido pelo seu oncologista até seus
últimos momentos.
Claire se inscrevera pela internet e ao longo dos últimos meses passara por todas as etapas de
recrutamento e treinamento, sendo finalmente assinalada para uma missão de seis semanas na África
como anestesista. A guerra civil na Somália vinha trazendo enorme sofrimento à sua população e uma
nova missão estava sendo introduzida na capital Mogadíscio. Uma equipe já atuava na região e agora
seriam enviados dois novos médicos para auxiliar: um cirurgião e ela, como anestesista. Hoje era o
dia da reunião final de preparação para o embarque, que ocorreria amanhã.
Conseguir uma missão de curta duração foi uma grande sorte. De forma geral, as missões do
MSF tinham duração mínima de seis meses e era difícil conseguir uma licença tão longa para
médicos formalmente empregados em algum serviço. Apesar de estar disposta a buscar a realização
deste desejo, não era irresponsável e não jogaria tudo para o alto por algo que nem ela mesma sabia
se poderia levar adiante. Já ouvira dizer, e não era difícil deduzir, que muitos médicos cediam à
intensa pressão e a maior parte deles não conseguia ir além de sua primeira missão. Era impossível
saber de antemão como um profissional se sentiria neste tipo de atuação.
Não havia sido tão simples convencer a equipe do hospital sobre este trabalho. Poucos eram
capazes de compreender por que uma médica tão jovem e iniciando uma carreira promissora pararia
sua vida por seis semanas para servir em uma missão num local perigoso e com pouquíssimos
recursos. Graças a um grande poder de persuasão e uma dose de chantagem, havia convencido o
chefe do departamento a conceder uma extensão de duas semanas às férias agendadas para este
período.
Quando o momento tão esperado finalmente chegou, ela se encontrava ali, uma pilha de nervos
com olhos abertos cedo demais, tomando um copo de leite no sofá e assistindo ao sol nascer mesmo
tendo ainda pela frente quase três horas antes da reunião.
Sabendo que era inútil tentar voltar a dormir, se levantou, lavou o copo vazio e foi para o
quarto. Vestiu uma calça de ginástica, um top, uma blusa de manga comprida e colocou por cima um
casaco impermeável. Amarrou os cabelos claros que mal chegavam aos seus ombros num pequeno
rabo de cavalo e calçou os tênis de corrida. Pegou o celular, as chaves e a garrafinha de água e saiu
de seu prédio localizado na agradável Rua 74.
Sua residência ficava perto do hospital e, para ela, poder ir até seu trabalho a pé era sinônimo
de qualidade de vida. Recebia um bom salário, tinha graças a seus pais um generoso fundo bancário
para emergências e não era uma pessoa de gostos caros. Por isso, podia se dar ao luxo de arcar com
o custo exorbitante de um minúsculo, porém charmoso, estúdio no Upper East Side, em Manhattan.
Era início de novembro e a temperatura caía a cada semana. Sentiu o vento gelado no rosto e
iniciou a corrida em direção ao Central Park para se aquecer. Tinha o hábito de correr quase todas as
manhãs antes de ir para o hospital, o que a ajudava a manter a boa forma física que possuía e aliviar
o estresse
Correu pelas ruas vazias de Manhattan até chegar à entrada do Central Park pela Rua 72. Após
entrar no parque, seguiu na direção norte, como sempre fazia, passando pelos tão familiares
caminhos ladeados por árvores, ainda quase desertos naquele horário. Em geral, dava a volta no lago
Reservoir e depois fazia o caminho de volta, mantendo seu ritmo constante e não parando durante o
trajeto até retornar a seu apartamento.
Mas hoje, perdida em meio a estes pensamentos inquietantes, ao terminar de contornar o
majestoso lago ela decidiu fazer uma parada. Debruçou-se na grade, apreciando a beleza daquele
lugar que considerava quase místico. Permaneceu ali por alguns minutos, pensando na enormidade do
que estava prestes a fazer.
Abandonaria o conforto e a segurança de um país como os Estados Unidos, onde conseguia
praticar uma medicina de ponta e tinha todo e qualquer recurso à sua disposição, para se embrenhar
na África, assolada pela miséria e pelas guerras, colocando sua própria segurança em risco e
sabendo que os recursos disponíveis para ajudar aquela população seriam limitados e precários.
Mesmo estando plenamente ciente de todas as dificuldades, acreditava que nenhuma experiência
profissional seria tão gratificante quanto aquela.
Seu senso de justiça e preocupação com os menos favorecidos a acompanhavam desde a tenra
infância. De alguma forma, sentia que indivíduos nascidos em condições privilegiadas tinham uma
dívida com aqueles que lutavam diariamente pela simples sobrevivência, morrendo de fome, de sede,
de frio e de doenças que há muito tempo não passavam de mero inconveniente para quem tinha
acesso a sistemas de saúde estruturados. Via a possibilidade de atuar no MSF como uma pequena
retribuição a tudo que a vida havia tão generosamente lhe oferecido. Bebeu o último gole de água,
mais confiante que nunca na decisão que tinha tomado.
Reiniciou a corrida e reparou no olhar apreciativo de um homem que cruzou seu caminho numa
das alamedas arborizadas do parque. Era inegável que a genética havia sido generosa com ela. Tinha
um corpo pequeno, com curvas proporcionais, um rosto delicado de nariz arrebitado, lábios sensuais
e grandes olhos cor de mel que adquiriam um brilho dourado contra a luz, adornados por longos
cílios. Possuía uma beleza elegante e discreta que, aliada a sua postura confiante e sua inteligência,
fazia com que muitos homens se aventurassem a convidá-la para encontros.
Entretanto, na maior parte das vezes Claire delicadamente recusava, mantendo seu foco quase
exclusivamente em sua vida profissional. Teve alguns romances ao longo dos últimos anos, mas
nenhum deles foi interessante o suficiente para durar. Apesar de hoje ser uma mulher bonita e segura
que recusava convites e eventualmente partia corações, nem sempre havia sido assim. Em outra
época, já foi uma menina tímida e sem graça que teve seu coração esmagado, e essa lembrança até
hoje retornava em alguns momentos para assombrá-la.
Depois de percorrer o caminho de volta num ritmo bastante intenso, entrou em seu apartamento.
Deixou suas roupas sujas no cesto e tomou um longo banho. Abriu seu armário, composto por poucas
peças de boa qualidade e estilo discreto, e escolheu uma calça cinza, um suéter de cashmere rosa
claro que se ajustava ao seu corpo sem marcá-lo e sapatos de salto baixo. Aplicou uma leve
maquiagem que consistia em uma camada de rímel e um batom rosa claro e se olhou no espelho,
sorrindo satisfeita para seu reflexo. Passava exatamente a imagem que queria passar: a de uma
profissional séria e comprometida, prestes a embarcar na maior aventura de sua vida.
Desagradável Surpresa

CLAIRE CHEGOU AO escritório do MSF às 9h45min, com 15 minutos de antecedência. Foi


recebida pela gentil recepcionista, que a encaminhou a uma sala com divisórias de vidro fechadas
com persianas, pequena, porém confortável. Sentou-se e aguardou. Às 10h03min, um simpático
senhor adentrou a sala com um caloroso sorriso e olhos vivazes.
— Dra. Hart! É um prazer conhecê-la pessoalmente. — O homem apertou a mão dela
efusivamente. Ele devia estar na casa dos 60 anos, era calvo, alto e magro. — Sou o Dr. Edward
Brown e darei as instruções finais a você e ao cirurgião. — Ele fez uma pausa e olhou seu relógio de
pulso. — Que, por sinal, está um pouco atrasado.
Claire deu um sorriso gentil. Dr. Brown apertou o botão no interfone em cima da mesa para se
comunicar com a secretária.
— Linda, poderia fazer o favor de ligar para o Dr. Peter Templeton e descobrir se ele já está
chegando, para começarmos?
Ao ouvir o nome, ela gelou. Seus olhos se arregalaram e ela sentiu como se garras apertassem
seu estômago. A sala parecia ter encolhido alguns metros e ameaçava sufocá-la. Não podia ser. Era
só uma coincidência. Não era? Seu grande sonho não podia se transformar de uma hora para outra
num horrível pesadelo.
Naquele exato instante, a porta se abriu e um homem alto e musculoso, de cabelos escuros, lisos
e longos o suficiente para cobrir parcialmente sua nuca, testa e orelhas, uma barba cerrada em seu
rosto anguloso e olhos azuis divertidos adentrou a sala como um furacão. A calça jeans e a camisa
preta levemente desbotada, com mangas longas arregaçadas até a metade do antebraço, davam a ele
um ar bastante informal. Sim, ele estava um pouco diferente do garoto de dezoito anos que Claire
havia visto pela última vez treze anos atrás. Mas era inegavelmente ele, e toda a esperança que ela
tinha de que aquilo fosse apenas uma infeliz coincidência ruiu como um castelo de cartas. Baixou os
olhos para as próprias mãos sobre o colo, incapaz de encará-lo.
— Desculpem-me pelo atraso! — Ele exibia um largo sorriso.
Ainda sorridente, ele olhou para Claire, que mantinha a cabeça baixa. Peter não demonstrou
qualquer sinal de reconhecimento nem de surpresa com a falta de polidez dela, que não se deu ao
trabalho de cumprimentá-lo. Não era surpreendente que ele não a reconhecesse de primeira,
considerando o tanto que havia mudado desde sua adolescência e o fato de que ele não havia sequer
conseguido ver seu rosto de frente. Com o canto dos olhos, percebia que ele a encarava com uma
expressão que parecia ser de... Curiosidade? Interesse? Cruzou as pernas para o lado oposto, ficando
praticamente de costas para ele, completamente desconcertada pelo inesperado reencontro e
imaginando quanto tempo levaria até que ele descobrisse quem ela era.
— Bem, vamos direto ao ponto. — Dr. Brown se sentou atrás da mesa de madeira e convidou
Peter a se sentar ao lado de Claire, à sua frente. — Vocês já passaram por todo o treinamento e não
serei repetitivo. Entretanto, como ambos estão em sua primeira missão, eu devo lembrar a vocês que
esta experiência não será nada fácil. É muito importante que vocês trabalhem como um time, se
apoiando e protegendo um ao outro em todas as situações.
Claire sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Entre todas as pessoas no mundo, Peter seria a
última que escolheria para dividir qualquer experiência, especialmente uma tão intensa e assustadora
quanto aquela.
— Quanto a isso fique tranquilo, Dr. Brown. — respondeu Peter. — Sou um excelente parceiro
de trabalho e adoro trabalhar em equipe. — Ele se virou para ela com outro de seus sorrisos
devastadoramente charmosos, que já haviam feito suas pernas tremerem há mais de uma década.
Hoje, ele apenas lhe causava um profundo desconforto.
Manteve-se olhando para frente, sem retribuir o sorriso, e tudo que ele conseguia ver era seu
perfil parcialmente encoberto pelos cabelos loiros.
— Excelente, Dr. Templeton. — Dr. Brown também sorria, cativado pela simpatia de Peter.
Aparentemente todos estavam alegres e à vontade, exceto Claire. — Vocês embarcarão amanhã à
noite, quarta-feira, e chegarão a Mogadíscio na sexta-feira por volta da hora do almoço. Terão duas
conexões, sendo que na primeira pernoitarão em Doha, no Qatar. As passagens e voucher de
hospedagem já foram encaminhados por e-mail. Receberam?
— Eu recebi, Dr. Brown — respondeu Claire.
— Eu não chequei meu e-mail nos últimos dias, mas imagino que esteja tudo certo. Se houver
qualquer problema eu aviso a vocês. — Peter recostou o corpo na cadeira e cruzou as pernas,
parecendo bastante à vontade.
— Perfeito. Ao chegarem a Mogadíscio, uma equipe irá recepcioná-los no aeroporto e os levará
até a casa onde ficarão hospedados ao longo destas semanas. O restante do grupo no qual vocês
serão inseridos já está lá e poderá atualizá-los sobre a atual condição do local. Lembrem-se de que
existe uma guerra civil em andamento e por isso vocês deverão seguir estritamente todas as
recomendações de segurança que aprenderam em seu treinamento, assim como respeitar as regras
estabelecidas pelo time local. — Dr. Brown olhava alternadamente para os dois buscando sinais de
apreensão ou dúvidas.
Tanto Claire quanto Peter assentiram com a cabeça, sem demonstrar sinais de hesitação frente às
informações que já conheciam bem. Parecendo mais tranquilo com a reação dos médicos, Dr. Brown
discorreu sobre alguns outros detalhes da missão enquanto Linda servia café, que Claire
educadamente recusou. Peter olhou com curiosidade para ela. Uma anestesista que não bebia café?
Claire continuou com os olhos fixos em Edward Brown durante o restante da reunião, as costas
eretas, ouvindo atentamente suas instruções e tomando notas quando julgava necessário. Peter se
manteve recostado na cadeira, relaxado e prepotente como um felino, um sorriso no canto dos lábios.
Ele parecia tão à vontade que chegava a ser enervante.
Após aproximadamente uma hora, Dr. Brown suspirou e sorriu.
— Bem, era isso o que tínhamos para conversar hoje. O maior objetivo da reunião era alinhar
estes aspectos finais e nos colocar à disposição para dúvidas. Ah, e apresentá-los devidamente, é
claro.
Neste momento Peter olhou para Claire mantendo sua habitual expressão descontraída e se
dirigiu a ela:
— A propósito, ainda não nos apresentamos formalmente. Sou Peter Templeton, cirurgião geral
recém-contratado pelo Hospital Presbyterian. Mudei-me para Nova Iorque há pouco mais de uma
semana e iniciarei minhas atividades no hospital quando retornarmos da viagem. E você é...?
Claire hesitou por breves segundos, até que finalmente olhou para ele pela primeira vez naquele
dia. Encarou aquele rosto ao mesmo tempo familiar e completamente desconhecido e, sem sorrir,
respondeu de maneira fria:
— Sou Claire Hart, anestesista do Hospital Memorial Sloan Kettering.
Percebeu as mudanças na expressão de Peter. Num primeiro momento notou certo ar de confusão
quando olhou para ele, como se ela estivesse de alguma forma num lugar onde não deveria. Uma
jaguatirica no meio do oceano, um lenhador num baile de gala ou simplesmente seu passado
invadindo o presente. Essa expressão foi seguida por genuína surpresa quando disse seu nome e por
último vislumbrou algo que parecia... raiva? O sorriso dele se desmanchou completamente e ele
pareceu precisar de alguns segundos para se recompor. Ao se dirigir novamente a ela, seus olhos
eram frios e sua voz contida.
— Foi um prazer conhecê-la, Dra. Hart. — Ele se levantou subitamente sem olhar para ela, já se
dirigindo a Edward Brown e estendendo a ele sua mão. — Foi um grande prazer conhecê-lo, Dr.
Brown.
O homem foi pego de surpresa e se levantou também, apertando a mão de Peter, levemente
desconcertado pela súbita despedida. Peter Templeton caminhou até a porta da sala e saiu
silenciosamente, de forma bem diferente do alvoroço alegre com que entrou. Claire pareceu
despertar de um transe, levantando-se em seguida e se despedindo amavelmente de Edward Brown.
Seguiu até o toalete localizado na recepção, oferecendo um sorriso artificial à recepcionista ao
passar por ela. Após entrar no pequeno cômodo e trancar a porta, encostou as costas nela e respirou
fundo diversas vezes, controlando a vontade de chorar. Olhou-se no espelho e, ao invés do reflexo da
mulher segura de 29 anos que era agora, viu com clareza a imagem da ingênua menina de 16 anos
cujo coração havia sido brutalmente destruído pelo homem que há poucos minutos deixara aquela
sala.
De volta ao início

Jersey City, 1999

CLAIRE SEMPRE FOI uma menina sensível, inteligente e reservada. Tinha poucas e fiéis amigas
de infância, se dedicava profundamente aos estudos e tinha o melhor desempenho em sua turma. Sua
rotina consistia em ir à escola durante a semana, estudar em casa à noite e sair com as amigas nos
fins de semana, em geral para assistir a um filme no cinema ou apenas conversarem por horas a fio na
casa de alguma delas. Quando chegou à adolescência, Claire não deu qualquer trabalho a seus pais.
Não bebia, nunca experimentou drogas e se mantinha afastada dos grupos de jovens arruaceiros de
sua escola. Sua vida era calma e confortável, sentia-se segura e feliz.
Entretanto, a vida tranquila de Claire sofreu uma grande mudança quando a empresa onde seu
pai trabalhava o transferira da filial em Pittsburgh para que pudesse assumir um cargo de maior
importância na sede, localizada em Nova Iorque. Isso fizera com que sua pequena família, composta
por ela e seus pais, se mudasse da cidade de médio porte onde Claire fora criada para o estado de
New Jersey.
A fim de preservar um estilo de vida um pouco mais parecido com o que tinham no subúrbio de
Pittsburgh, ao invés de investir numa moradia em Nova Iorque eles compraram uma bela casa e se
instalaram na cidade vizinha de Jersey City, de onde seu pai se deslocava diariamente para o
trabalho em Nova Iorque com relativa facilidade. Mesmo com a tentativa de seus pais de não
modificarem muito seu estilo de vida, viu-se obrigada a sair da casa onde morava desde que nascera,
foi afastada de suas amigas em centenas de quilômetros e inserida numa escola que tinha o dobro do
tamanho da escola onde estudava anteriormente.
As primeiras semanas após a mudança foram bastante difíceis e sentira-se profundamente
solitária. Falava com as amigas ao telefone, mas com o tempo as ligações foram ficando mais
espaçadas e mais curtas. Já não era mais parte do dia a dia das amigas e isso foi fazendo com que a
relação se tornasse mais distante. A escola Ronald McNair, onde Claire passou a estudar, parecia a
ela grande demais, árida demais e nada amistosa. Apesar de ser uma das melhores escolas de ensino
médio do país, não conseguia sentir nada além de desânimo quando se dirigia diariamente para mais
um dia de aulas.
Como foi transferida perto do fim do ano letivo, os grupos já estavam formados. Não
conversava com seus colegas de turma, sentava-se sempre na primeira fileira para reduzir as chances
de interação e decidiu concentrar toda a sua energia nos estudos, obtendo excelentes notas desde o
primeiro mês de aulas. Nos intervalos, buscava algum local calmo para esconder-se sozinha com o
rosto enterrado em um livro, enquanto ouvia os outros jovens ao redor dela rindo alto e conversando
animadamente. Invejava tudo isso silenciosamente, enquanto tentava se convencer de que nada
daquilo era realmente importante.
Na terceira semana de aulas na escola nova, estava sentada ao ar livre no intervalo lendo um de
seus livros e comendo uma maçã. Percebeu a aproximação de uma menina de sua turma chamada
Margaret, mas não levantou os olhos do livro. Margaret era de alguma forma parecida com ela,
solitária e inteligente. Não parecia ter muita afinidade com outras meninas da turma. A diferença
principal entre elas era que Margaret tinha um constante ar atrevido e desafiador, que contrastava
com a seriedade de Claire. Tinha cabelos ruivos e a pele bem clara. Seus olhos eram verdes e
transmitiam simpatia.
— Posso me sentar aqui ao seu lado?
Claire levantou os olhos do livro, protegendo-os com a mão e franzindo o rosto por causa da
luminosidade, e olhou para a menina cujos cabelos pareciam incandescentes contra o sol forte.
Reparou que ela sorria com o canto dos lábios. Claire lhe devolveu um sorriso tímido e se moveu
levemente para o lado, abrindo espaço onde estava sentada.
— Claro. Fique à vontade.
As duas começaram a conversar e ali nasceu uma bonita amizade. Claire descobriu que
Margaret morava a poucas quadras de sua casa e elas começaram a ir e voltar juntas do colégio
todos os dias. Passavam algumas tardes uma na casa da outra, estudavam juntas para as provas e iam
ao cinema.
— Não gosto de nenhuma das meninas da turma — Margaret confidenciara, um dia. — São
todas muito imaturas, não têm nada na cabeça. Você é inteligente, por isso gosto da sua companhia.
Claire gostava cada vez mais da menina de cabelos ruivos e personalidade marcante. Elas eram
muito diferentes, mas gostavam de coisas parecidas e se completavam de uma forma especial.
O baile de formatura, evento esperado ansiosamente por todos os jovens do ensino médio,
ocorreria em pouco mais de dois meses e esse era o principal assunto na escola. Como calouras, elas
não haviam sido convidadas para o baile e invejavam um pouco as meninas de sua turma que
namoravam os meninos mais velhos e poderiam comparecer ao evento na companhia de seus
namorados.
Elas viam as meninas comentando sobre vestidos, maquiagem, sapatos e romances, e se perdiam
por alguns segundos naquele mundo mágico da adolescência. Sabendo que não faziam parte daquele
universo, rapidamente desviavam sua atenção a outro assunto, lidando razoavelmente bem com
aquele tipo de frustração. É mais fácil não sofrer tanto pela falta do que nunca se teve.

Num dia bastante quente mesmo para a época de verão, Claire foi até seu armário deixar o
material antes de ir para casa, como sempre fazia. Diferente dos outros dias, sua amiga Margaret não
estava a seu lado – havia faltado à aula por estar doente. Claire pretendia dar uma passada em sua
casa antes de ir para a própria residência, a fim de saber como a amiga estava passando. Ao fechar
seu locker, se deparou com um par de penetrantes olhos azuis observando-a e, por alguns segundos,
ficou com a respiração presa na garganta.
Peter Templeton era o típico bad boy que fazia todas as meninas suspirarem. Estava no último
ano, era alto, forte, tinha rebeldes cabelos lisos, escuros e um tanto longos e um olhar que parecia
constantemente desafiar. Diferentemente dos rapazes que se destacavam em esportes como futebol
americano ou basquete, Peter era lutador de wrestling e várias meninas compareciam aos seus
treinos, pelo simples prazer de vê-lo suado e com poucas roupas. Claire não era uma delas. Ele saía
com as garotas mais bonitas da escola e invariavelmente as dispensava depois de alguns poucos
encontros. Ainda assim, nenhuma delas era capaz de recusar um convite seu.
Agora ele estava ali, com a lateral do corpo encostada no armário, braços cruzados
evidenciando os bíceps musculosos, olhando para ela com um discreto sorriso no canto dos lábios e
Claire não tinha a menor ideia do motivo. Procurando não demonstrar seu desconforto e o frio na
barriga que a presença dele tão perto provocou, trancou seu locker e começou a se virar. Ele segurou
levemente seu braço, fazendo com que ela se arrepiasse na mesma hora, e perguntou:
— Você é Claire Hart, não é? Sou Peter Templeton. Acredito que ainda não tenhamos sido
apresentados.
Ela olhou em volta desconfiada, achando que aquilo era algum tipo de brincadeira. Apesar de
alguns olhares curiosos na direção do improvável casal, ninguém parecia estar efetivamente
prestando atenção aos dois. Perguntava-se o que Peter Templeton estava fazendo ali, conversando
com ela, e não conseguia pensar em absolutamente nenhuma resposta plausível.
Claire sabia que não era bonita. Seu rosto ainda era bastante infantil, era baixa, não tinha seios
proeminentes como algumas de suas colegas de turma nem curvas nos quadris. Por mais que tentasse
se alimentar bem e fazer alguns exercícios, continuava sendo magra demais. Seus cabelos eram lisos
e loiros e ela os usava longos, num corte reto repartido ao meio. Vestia-se de maneira pouco atraente,
quase sempre com jeans, um pouco largos demais para seu corpo na tentativa de esconder as pernas
finas, camisetas com estampas, também folgadas para disfarçar os seios pequenos, e tênis. Para
completar seu visual nada atraente, usava aparelho fixo nos dentes.
Felizmente, não sofria com acne nem tinha problemas de visão que demandassem o uso de
óculos, caso contrário preencheria todos os critérios para a personagem mais feia e sem graça de
qualquer filme adolescente.
Quem a visse, facilmente diria que se tratava de uma menina de 14 anos, e não de uma
adolescente de 16. Isso se devia em parte ao fato de que ela tinha menstruado muito tarde, com quase
15 anos. Sua mãe chegou a levá-la a um médico, que após alguns exames constatou que nada havia de
errado. Era necessário aguardar o tempo do corpo dela, que continuava atormentando-a com a sua
lentidão.
Por todos esses motivos, tinha convicção de que havia alguma coisa muito errada no fato do
galã da escola estar se dirigindo a ela. Libertou delicadamente seu braço do toque do rapaz,
murmurando um pedido de desculpas, e se afastou a passos largos. Peter não esperava por essa
reação e demorou alguns segundos para se recompor e decidir segui-la. Alcançou-a rapidamente,
segurando novamente seu cotovelo e dizendo num tom de voz um pouco mais alto:
— Ei, calma. Só queria conversar com você.
Claire parou no meio do corredor, percebendo que eles já começavam a atrair a atenção das
pessoas ao redor. Respirou fundo de olhos fechados, abrindo-os em seguida e encarando-o com uma
expressão neutra.
— Agora sim. — Ele pareceu relaxar e soltou seu braço, com um leve sorriso. — Imagino que
você esteja indo para casa. Estou com minha moto estacionada no pátio e tenho dois capacetes. Posso
te oferecer uma carona?
Claire abriu levemente os lábios, incapaz de conter a expressão de incredulidade. Essa história
parecia cada vez mais estranha e ela sentiu uma vontade incontrolável de fugir dali. Cedendo ao
impulso, foi exatamente o que fez. Disse um apressado “não, obrigada” e saiu dali rapidamente,
misturando-se à pequena multidão de alunos que deixavam a escola após o término do dia letivo.

— Você fez o quê?! — a voz levemente anasalada de Margaret parecia tão incrédula quanto seu
rosto inchado pelo forte resfriado. Estavam sentadas em seu quarto, num canto repleto de
confortáveis almofadas e com um disco do Backstreet Boys tocando ao fundo. Tomavam sorvete de
baunilha e Claire contava sobre o acontecimento inesperado de minutos atrás.
— O que você esperava que eu fizesse? Subisse na garupa da moto dele e saísse pelas ruas da
cidade?
— Isso teria sido muito mais emocionante do que o que você fez — Margaret respondeu com a
boca cheia de sorvete. Engolindo o doce gelado e apoiando a colher no pote, estreitou seus olhos: —
Ainda não acredito que você o dispensou assim. Não ficou ao menos curiosa para saber do que se
tratava? Não é possível, Claire.
Claire bufou e olhou pela janela. Ainda estava desconcertada com a situação e a amiga não
estava ajudando, fazendo-a se sentir a maior idiota do mundo por ter fugido de Peter Templeton como
um esquilo assustado.
— Margaret, nunca me senti tão perdida quanto naquele momento. Meu coração estava
disparado, minhas mãos suavam. Fiquei sem reação, tudo aquilo era muito estranho. Ele ali parado,
me olhando com aqueles olhos que pareciam me desafiar a... Sei lá, tive medo.
— Claire, escute bem. — Margaret assumiu seu ar professoral, semelhante ao que usava quando
ensinava a Claire literatura, sua matéria preferida. — Peter Templeton é... bem, ele é Peter
Templeton. Dez entre dez meninas dariam tudo por um encontro com ele. Quando ele se dirige a você
e te oferece uma carona para casa, há muitas coisas que você pode fazer. Só que nenhuma delas é
simplesmente sair correndo dali. Você entende isso?
Claire suspirou outra vez, dando de ombros e comendo mais uma colherada do sorvete. A
verdade é que estava curiosa. O simples pensamento de subir na garupa da moto de Peter e abraçar o
corpo musculoso enquanto o vento agitava seus cabelos fazia seus hormônios adolescentes entrarem
em ebulição e um calor surgir em partes latentes do seu corpo.
Aos 16 anos, sequer havia sido beijada, o que era absolutamente vergonhoso em sua concepção
adolescente de prioridades. Antes de dormir, na maior parte das noites imaginava que um dia um
rapaz gentil e atencioso perceberia sua presença, eles se tornariam amigos e então um lindo romance
se desenvolveria. E agora ali estava ela, imaginando o rosto enigmático de Peter Templeton e se
questionando o que diabos ele queria com ela.

Depois de mais algumas horas conversando com a amiga, onde ambas traçaram teorias
mirabolantes sobre o motivo por trás da abordagem de Peter, Claire se despediu e foi para a própria
casa. Os dois dias seguintes eram fim de semana e choveu. Margaret precisou ajudar a mãe a cuidar
das irmãs gêmeas recém-nascidas, já que seu pai havia viajado a trabalho, e Claire permaneceu em
casa, alternando entre tentar ler um livro ou estudar para as provas da semana seguinte e sonhar
acordada com um par de olhos azuis e lábios bem desenhados curvados em um sorriso debochado.
E agora?

Nova Iorque, 6 de Novembro de 2012

CLAIRE OLHOU-SE NOVAMENTE no espelho do pequeno lavabo, no escritório do MSF. Fazia


tempo que não recordava aquele período doloroso e, especialmente, fazia tempo que havia
determinado a si mesma que não mais se permitiria sofrer pela crueldade do que Peter havia feito
com ela. Com esse pensamento, esforçou-se para voltar ao presente e colocar de lado aquelas
lembranças perturbadoras.
A única coisa boa que restou daquele período foi Margaret O’Connor, que era sua amiga até
hoje. Ela havia cursado belas artes, era pintora e hoje também morava em Nova Iorque. Expunha suas
obras em galerias pequenas e trabalhava como vendedora em uma galeria conhecida. Assim como
Claire, Margaret também havia desabrochado. Se antes era quase tão magra quanto Claire, hoje
exibia músculos belamente esculpidos na academia de luta que frequentava, tinha lábios generosos e
seus lindos cabelos ruivos caíam numa cascata bem cuidada.
Ao contrário de Claire, que possuía uma beleza sóbria e discreta, Margaret havia se
transformado numa mulher de aparência estonteante e sabia usar isso muito bem a seu favor. Vestia-se
de forma a valorizar seu belo corpo, trocava de namorados como quem troca de sapatos e raramente
estava sozinha. Frequentava festas badaladas, nunca desistindo de tentar arrastar Claire junto com
ela, apesar do baixíssimo índice de sucesso. Mesmo com estilos de vida completamente diferentes, o
laço de cumplicidade e lealdade que as unia permanecia mais forte que nunca e jantavam juntas todas
as terças-feiras.
Hoje era terça-feira. Claire sentiu enorme alívio ao se lembrar disso e saiu do prédio na Rector
Street para o ar gelado, apreciando a baixa temperatura. Gostava de caminhar na rua em dias frios,
por isso decidiu ir a pé até o Battery Park, que não ficava muito distante dali. Dele se tinha uma das
melhores vistas da Estátua da Liberdade. Sentou-se em um dos bancos, lembrando-se de quando
haviam se mudado de Pittsburgh para Jersey City.
Desenvolvera com Nova Iorque, a cidade que havia demandado a presença de seu pai, uma
relação de amor e ódio. Ao mesmo tempo em que se ressentia em um nível irracional com a cidade
por julgá-la responsável pela mudança do lugar que tanto gostava, foi aos poucos se deixando
conquistar pela beleza, a atmosfera vibrante, a diversidade cultural e o charme de Nova Iorque.
Boston também a conquistou profundamente nos nove anos em que viveu lá, mas quando recebeu o
convite para voltar a Nova Iorque não pensou duas vezes. Considerava a Big Apple como seu lar e
estar ali lhe trazia paz.
Contudo, sentada agora de frente para um dos principais símbolos da cidade e deixando que
seus olhos se perdessem no céu que começava a assumir um tom mais cinzento conforme as horas
passavam, sentia tudo, menos paz. O inesperado reencontro com Peter, mesmo tantos anos depois, a
havia desestabilizado de uma maneira que não julgava mais possível. E saber que ele ainda exercia
esse poder sobre ela a deixava igualmente irritada e frustrada.
Seu estômago roncou e se deu conta de que passava do meio-dia. Estando acordada desde antes
de sete, considerou que deveria almoçar. Caminhou até um pequeno restaurante na Stone Street e
buscou uma mesa mais escondida. Rapidamente uma garçonete simpática se aproximou.
— Boa tarde. Posso ajudá-la?
Claire sorriu para a moça e fixou os olhos no cardápio.
— Sim, por favor. — Ela corria os olhos pelas opções de pratos. Olhou de volta para a
garçonete. — Vou querer um filé de peixe com salada.
— Pois não. Já trago para você. — A moça terminou de anotar o pedido em seu caderninho e se
afastou.
Vendo-se novamente sozinha, foi invadida pelas lembranças de um período específico de sua
adolescência. A imagem do Peter de 18 anos misturou-se à imagem do Peter de 31 e, com uma ponta
de raiva, admitiu para si mesma que ele estava ainda mais charmoso e bonito, se é que isso era
possível. Recordou que suas mãos não ostentavam uma aliança, mesmo que isso não significasse
muita coisa.
A chegada da garçonete interrompeu seus pensamentos.
— Aqui está. Ótimo apetite.
Claire agradeceu e saboreou sua refeição em silêncio, perdida em pensamentos angustiantes. Ao
final da refeição, balançou a cabeça para afastá-los, pediu a conta, pagou e deixou o restaurante.
Pegou o metrô e se dirigiu ao seu apartamento. Depois de trancar a porta e apoiar sua bolsa no
aparador, chutou os sapatos e foi para seu quarto. Revisou pela décima vez o conteúdo da mala de
viagem que deveria acomodar todo o necessário para as próximas seis semanas. Satisfeita com sua
capacidade de se ater ao básico, deu um sorriso.
De última hora, decidiu enfiar na mala um vestido simples de linho verde claro que combinava
com o tom mel de seus olhos e valorizava as discretas curvas de seu corpo. Sabia que o fazia por
causa de Peter, e isso novamente a irritou. A verdade é que por mais que seu maior desejo sempre
tenha sido o de deixá-lo enterrado no passado, onde ele não mais poderia magoá-la, agora que ele
estava ali seu segundo maior desejo era fazê-lo se arrepender amargamente pelo que tinha feito a ela.
E para atingir este objetivo, nada melhor do que esfregar no rosto dele o que tinha perdido.

Quando percebeu a entrada de Claire, Margaret acenou alegremente da mesa do charmoso resto
bar onde as duas se encontravam às terças-feiras. O pequeno estabelecimento tinha uma decoração
elegante e ao mesmo tempo aconchegante, realçada por uma iluminação estratégica e suave. A
deliciosa comida, os drinques variados e saborosos aliados à simpatia dos atendentes fizeram
rapidamente daquele lugar seu ponto de encontro fixo para o jantar semanal. Mesmo estando
localizado na Rua 29, não tão próximo assim da residência de nenhuma delas, não se importavam em
usar o metrô.
— A nossa mesa de sempre estava reservada — Margaret se desculpou, levantando e abraçando
rapidamente a amiga. — Já pedi nossos drinques.
— Tudo bem, essa mesa também é ótima. — Claire ofereceu um sorriso, mas Margaret
imediatamente reconheceu que havia algo de errado.
— O que houve? A reunião não foi boa?
— Sim e não. — Claire retirou o casaco e se sentou, sabendo que não poderia esconder algo
desta magnitude de sua melhor amiga. — Eu fui apresentada ao médico que vai viajar comigo.
— O cirurgião?
— Sim, o próprio.
— E ele é um babaca?
— É pior que isso. — Claire respirou fundo e disparou: — É Peter.
— Que Peter? — Margaret parecia confusa e era quase possível ver seu cérebro folheando seus
arquivos em busca de algum Peter médico que conhecesse. — Aquele grudento que ficou te ligando
por semanas depois que você o dispensou, após um único e desastroso encontro? Não, espera. Esse
não era ortopedista?
— Peter Templeton, Margaret. De Jersey.
O rosto da ruiva imediatamente empalideceu. Seus olhos assumiram um brilho de profundo
ódio, que parecia ser capaz de fuzilar qualquer criatura desprevenida que cruzasse sua frente. Ela se
inclinou para frente, comprimindo os lábios.
— Não posso acreditar que esse filho da puta reapareceu na sua vida depois de 13 anos. —
Nesse momento chegaram à mesa os drinques que Margaret havia pedido. Depois de tomar um longo
gole de sua Pina Colada, Margaret suspirou e olhou para a amiga. — Não sabia que ele tinha mesmo
estudado medicina.
— Nem eu. — Claire tomou um gole de seu gin tônica com laranja e canela. — Depois daquele
baile de formatura, nunca mais tive notícias dele. Você não pode calcular o tamanho do meu choque
naquela sala.
— Não posso mesmo. E ele te reconheceu?
— Num primeiro momento, não. Na verdade, pareceu inclusive inclinado a flertar comigo de
forma sutil. Mas ao final da reunião, quando finalmente olhei nos olhos dele e falei meu nome, ele
imediatamente me reconheceu.
— Claire, que situação horrível. — Margaret pediu a comida quando o garçom novamente se
aproximou. Aquilo era quase desnecessário e o garçom só se aproximava por cortesia, porque desde
que haviam descoberto aquele resto bar, há quase um ano, as duas repetiam o mesmo pedido todas as
semanas.
— Sim, é horrível. E sabe o que é mais inacreditável nisso tudo? Quando ele me reconheceu,
não demonstrou arrependimento ou indiferença. Ele parecia guardar raiva e mágoa de mim. De mim!
Depois de tudo que ele fez comigo. O que eu fiz a ele?
— Claire, ele é o sujeito mais infantil, cruel e egocêntrico que eu já conheci em toda a minha
vida. Faça-me um favor e não gaste um segundo sequer do seu tempo tentando encontrar justificativas
para qualquer coisa que ele fez ou fará. Certo?
— Sim, você tem toda razão. Mas ainda assim acho toda essa situação inacreditável e não
consigo parar de pensar nisso desde que coloquei os olhos nele de manhã.
— E é uma droga mesmo. — Margaret apoiou seu copo e segurou as mãos da amiga sobre a
mesa. — E agora? O que você pretende fazer? Essa viagem é seu sonho há meses.
— Como assim o que eu pretendo fazer? Por acaso eu tenho alguma opção nessa porcaria toda?
Terei que aturar a presença dele durante as próximas seis semanas. Tentarei interagir o mínimo
possível e me aterei a aspectos profissionais.
Margaret concordou e ambas se mantiveram em silêncio por alguns minutos, cada uma com seus
pensamentos sobre aquela situação nada agradável. Não muito tempo depois, a comida chegou e
ambas começaram a comer. Margaret tentou distrair a amiga durante o restante do jantar, perguntando
sobre como ela achava que seria o trabalho na Somália, sobre sua semana no hospital, contando
histórias engraçadas de sua vida pessoal, especialmente dos homens com quem saía. Valia qualquer
coisa para tentar remover do rosto de Claire a sombra trazida pelo reencontro com o maior crápula
em versão juvenil da história.
Despediram-se e Claire foi para casa. Ao deitar, teve medo de que os eventos do dia
atrapalhassem seu sono, mas acabou adormecendo rapidamente. Entretanto, seus sonhos acabaram
sendo assombrados por lembranças de um tempo distante, um tempo em que se permitia sentir.
O que você quer de mim?

Jersey City, 1999

NA SEMANA SEGUINTE, Claire não viu Peter Templeton nos primeiros dias, o que provocou
uma mistura de alívio e frustração. Se fosse sincera, admitiria que era muito mais frustração do que
alívio o que sentia. Na quinta-feira, ao se dirigir com a amiga para a saída da escola conversando de
maneira descontraída, Claire estacou e parou sua frase no meio ao se deparar com Peter recostado
sobre uma mureta com os braços cruzados, olhando fixamente para ela. Margaret seguiu a direção de
seu olhar e não conteve um sorrisinho. Ao perceber que as duas estavam paradas e olhando para ele,
lentamente Peter se aproximou, caminhando com a arrogância e a graça de uma pantera, sem deixar
de olhar nos olhos de Claire enquanto o fazia. Parou em frente às duas, em silêncio.
— Olá, Peter — Margaret cumprimentou.
— Olá. — Peter olhou rapidamente para a menina ruiva e voltou imediatamente seu olhar para
Claire. Ele claramente não sabia o nome de Margaret e não se importou em perguntar.
— Sou Margaret, amiga de Claire — ela se apresentou, sem parecer se importar com a
indelicadeza dele. — Acho que vocês têm assuntos a conversar, então eu já vou indo.
Sob o olhar traído e incrédulo de Claire, Margaret se afastou dando um tchauzinho com a mão,
um sorriso malicioso em seus lábios. Ao se ver sozinha com ele, Claire engoliu em seco e sustentou
seu olhar.
— Não vai fugir hoje? — O tom dele era de escárnio.
Ela levantou mais o queixo antes de responder:
— Não.
— Por quê?
— Porque eu quero saber o que você quer de mim.
Ele pareceu levemente surpreso com o tom desafiador na voz dela, mas não se abalou.
— Eu quero apenas conhecê-la melhor.
— Por quê?
— Preciso de um motivo?
— Sim, precisa. — Ela fez uma pausa como se refletisse sobre suas próximas palavras. Seu tom
foi um pouco menos defensivo quando prosseguiu: — Vamos ser sinceros aqui, ok? Eu não sou o tipo
de garota que você procura. Não tenho os atrativos necessários a alguém como você. Estou dois anos
atrás de você na escola, então certamente também não é algum tipo de ajuda acadêmica que está
buscando. Só quero que corte esse papo furado de querer me conhecer melhor e diga o que realmente
quer comigo.
Peter não parecia esperar por essa resposta. Depois de alguns segundos de surpresa, pensava
sobre o que dizer enquanto olhava para ela com uma expressão insondável. Claire estava a ponto de
virar as costas para ir embora quando finalmente ouviu a voz dele:
— Ok, serei sincero com você. A verdade é que estou cansado dessas meninas vazias com quem
tenho saído. Os assuntos são sempre os mesmos, elas não parecem se importar com nada que não seja
qual o novo lançamento da loja tal ou quem saiu com quem. Estou em busca de algo novo nesse
sentido. Você tem um tipo interessante de beleza e sei que é inteligente. Não pode dar uma chance
para vermos o que acontece a seguir?
Claire não conseguiu conter a expressão de absoluta incredulidade que tomou conta de seu
rosto. Apesar de totalmente inesperado, o argumento usado por ele parecia estranhamente fazer
sentido e despertou nela uma espécie desconhecida de orgulho. Então o cara mais popular da escola
estava dizendo que não apenas a considerava inteligente, mas via nela um tipo interessante de
beleza? Aquilo parecia quase bom demais para ser verdade. Mesmo ouvindo vários sinais de alarme
soando em sua cabeça, alertando-a que aquilo era estranho e improvável, a onda de prazer que a
invadiu foi inevitável. Percebendo a hesitação dela, Peter fez um leve carinho em sua bochecha,
fazendo com que um arrepio percorresse a espinha de Claire e os sinais de alerta parecessem cada
vez mais abafados.
— Ah, não seja tão desconfiada. Só quero que você aceite sair comigo hoje, apenas um cinema
e um lanche. Eu prometo deixá-la em casa cedo. O que me diz?
Ela hesitou por mais um momento, dominada pela sensação de frio na barriga totalmente
desconhecida e que a tirava de sua zona de conforto. Por fim, não conseguiu segurar um sorriso
tímido e suas bochechas rosaram ao dizer:
— Ok. Mas preciso estar em casa antes das dez.
— Fechado. Que tal você me passar seu endereço e eu te buscar às seis?
Ela assentiu, passando o endereço e se despedindo com um aceno depois de trocarem também
seus números de telefone. Claire foi caminhando para casa como se estivesse pisando em nuvens,
com um sorriso bobo no rosto e achando o tom do céu incrivelmente azul. Tudo parecia mais bonito e
brilhante naquela tarde quente de verão.

Claire ligou para Margaret para contar sobre a conversa e em menos de 20 minutos ela se
materializou à sua porta. Ambas conversaram aos sussurros no quarto de Claire e Margaret parecia
quase mais empolgada que ela. Claire foi pedir permissão à mãe para sair, já que aquele era
literalmente seu primeiro encontro com um rapaz. A mãe bombardeou-a com uma série interminável
de perguntas, e para muitas delas Claire sequer sabia a resposta. A verdade é que conhecia muito
pouco a respeito de Peter Templeton.
Mesmo preocupada, depois de ver a filha implorando e sua amiga engrossando o coro, ambas
reforçando o quanto aquele era um programa inocente, Jenna acabou concordando. Claire sabia que
não precisava se preocupar com Jason Hart, seu pai, nesse sentido. O foco principal de sua vida
sempre foi o trabalho e ele deixava todos os assuntos domésticos a cargo da esposa, inclusive os que
diziam respeito à única filha.
Claire e Margaret passaram as próximas horas no quarto de Claire tentando se decidir por uma
roupa. O armário da adolescente não oferecia muitas opções atraentes, e elas acabaram escolhendo
uma calça jeans, uma blusa preta que Margaret amarrou na altura da cintura de Claire “para dar um ar
mais sexy”, sapatilhas pretas e uma maquiagem leve.
Às seis a campainha tocou e Claire desceu para atender. Jenna foi até a porta, encarando o rapaz
que parecia forte demais, alto demais e adulto demais para sair com sua menina. Fez algumas
perguntas a Peter e no final reforçou a ordem de que Claire estivesse em casa antes das dez. O rapaz
se mostrou paciente e gentil com a mãe de Claire e ambos se despediram. A moto estava estacionada
em frente à casa e, ao chegarem até lá, Peter ofereceu a ela um capacete menor que o dele. Notando a
hesitação, ele sorriu e acomodou o capacete sobre sua cabeça, prendendo o fecho sob seu queixo e
roçando levemente a mão em seu pescoço ao fazê-lo. Depois de colocar o próprio capacete, subiu na
moto e ofereceu a mão a ela com um sorriso. Claire subiu na moto um tanto desajeitada e manteve seu
corpo tenso e ereto no banco.
— É melhor você me abraçar, se não quiser cair. — Olhando pra trás e lançando a ela um
sorriso sensual, completou: — Juro que não mordo.
Ela suspirou e passou seus braços delicados ao redor do corpo musculoso. Não sentia
borboletas em seu estômago. O que sentia agora se assemelhava muito mais a uma revoada de
pássaros raivosos se debatendo dentro dele. Seu coração estava aos pulos e a respiração acelerada.
Ele deu partida no motor e ambos seguiram pela noite de verão em direção ao cinema mais próximo.

— Gostou do filme? — Peter perguntou quando eles saíam da sala de cinema.


Claire ainda estava bastante nervosa, mas depois de assistir ao filme de suspense bem
elaborado, havia conseguido relaxar um pouco. Se não fosse a tensão provocada pela contínua
consciência da presença marcante do belo rapaz sentado ao seu lado na sala escura, poderia dizer
que havia sido um programa muito agradável.
— Sim, o filme tem um excelente enredo e uma ótima direção. Achei a atuação do protagonista
muito convincente também. — Mantinha a expressão séria enquanto caminhavam lado a lado em
direção a uma lanchonete localizada perto dali.
Ele a encarou parecendo divertido com o tipo de comentário que ela fez, mas não disse nada.
Ao chegarem ao restaurante, ele perguntou:
— O que você gosta de comer?
— Pode ser um cheeseburger com batatas fritas e um refrigerante, por favor.
— Ótimo. Vou pedir o mesmo.
Depois de fazerem os pedidos, ele demonstrou interesse sobre a vida dela.
— Me conte um pouco mais sobre você.
Claire fez uma pequena careta e deu de ombros.
— Não há muitas coisas interessantes a dizer. Nasci em Pittsburgh, morei na mesma casa a vida
toda e me mudei para cá há algumas semanas porque meu pai foi transferido.
— Está gostando de Jersey?
— Mais ou menos. Gostava mais de Pittsburgh. Talvez porque estivesse mais acostumada,
tivesse amigos lá.
— E a menina ruiva?
— Margaret? — Claire deu um sorriso. — Ela é a única coisa boa de Jersey até agora.
Peter olhou para ela sorrindo também.
— Ainda bem que você disse até agora. Isso significa que tenho uma chance de mostrar que
Jersey pode trazer outras pessoas interessantes para a sua vida.
Claire enrubesceu ao ouvir aquelas palavras e sentiu certo alívio com a chegada do garçom.
Enquanto comiam, conversaram por quase uma hora. Peter parecia genuinamente interessado em
saber sobre ela e Claire se sentia no céu com aquele encontro. Entretanto, nas vezes em que ela
tentava fazer alguma pergunta, ele se esquivava e mudava de assunto depois de dar respostas
superficiais.
— Me conte mais sobre você — Claire bebeu um gole de seu refrigerante. — Você sempre
morou em Jersey? Mora com sua família?
O rosto de Peter assumiu uma expressão mais sombria. Com um sorriso que não chegou aos seus
olhos, respondeu:
— Não. Sou do interior. — Sem dar a chance a ela de perguntar mais, ele emendou: — Moro
com minha mãe. Meu pai faleceu quando eu era criança e minha irmã mais velha mora no Canadá.
— Nossa, sinto muito pelo seu pai. — Claire ofereceu a ele um olhar carregado de empatia.
Peter parecia desconfortável com aquele assunto. Olhou para o relógio e exclamou, parecendo
aliviado com a chance de fugir de perguntas pessoais:
— São nove e quarenta! Preciso levá-la de volta.
Ela assentiu tentando disfarçar a expressão de desapontamento. Ele pagou a conta e ambos se
dirigiram novamente para a moto. Dessa vez, ela subiu com maior desenvoltura e imediatamente o
abraçou. Como estava às suas costas, não viu o sorriso de triunfo que se formou nos lábios de Peter
neste momento.
No caminho até sua casa, Claire se permitiu encostar a lateral de seu rosto nas costas de Peter,
sentindo o calor de seu corpo e o cheiro suave de couro que emanava da jaqueta. Naquele momento,
não conseguia se lembrar da última vez em que tinha se sentido tão feliz.

Chegando à porta de sua casa, ambos desceram da moto. Ela tirou o capacete e o entregou a ele,
que já havia retirado o próprio. Peter observou-a por alguns segundos e ela sentiu suas bochechas
corarem. Naquele momento havia mil coisas que queria dizer, mas tudo que seu cérebro conseguiu
organizar foi um agradecimento sem graça:
— Obrigada pela noite agradável. Eu me diverti bastante.
Ele sorriu e acariciou seu rosto. Por alguns segundos, Claire tremeu em expectativa, acreditando
que ele fosse beijá-la. Seu coração batia descompassado e teve a impressão de que pararia a
qualquer momento. Quando ele aproximou o rosto, fechou os olhos e aguardou. Sentiu-se vazia
quando percebeu que os lábios dele apenas tocaram brevemente sua bochecha e se afastaram.
Quando reabriu os olhos, encontrou nos dele uma expressão impenetrável.
— Até mais, garota. A gente se vê.
Ele virou as costas e voltou para sua moto. Claire teve que controlar as próprias lágrimas ao
acenar em despedida, vendo-o colocar o capacete e depois acelerar em alta velocidade pela rua
deserta. Então era isso. Havia acabado, ele não estava interessado. Não estava bonita o suficiente,
nem tinha conseguido estabelecer uma conversa interessante o suficiente durante o jantar. O sonho de
Cinderela havia terminado antes da meia noite, e sem sapatinhos de cristal para garantir o retorno do
príncipe.
Deu meia volta e entrou em casa, tentando manter uma expressão neutra para a mãe que a
aguardava. Jenna, carinhosa como sempre, começou a fazer perguntas entusiasmadas, mas Claire se
desvencilhou afirmando que estava cansada e precisava dormir, pois teria uma prova no dia seguinte.
Já sozinha no quarto, trocou a roupa por uma camisola com estampa de cachorros e deitou em sua
cama, permitindo que as lágrimas rolassem livremente em seu travesseiro.
A viagem

Nova Iorque, 7 de novembro de 2012

COMO SEU VOO sairia apenas à noite e já estava com tudo pronto, Claire pôde se dar ao luxo
de não colocar despertador. Após um início de noite com sonhos inquietantes e agitados, por fim
acabou evoluindo para um sono profundo e despertou às dez e meia, surpresa. Não conseguia lembrar
a última vez em que havia acordado tão tarde. Espreguiçou-se preguiçosamente, levantou da cama e
tomou apenas um copo de iogurte desnatado. Depois ligou para a mãe, para se despedir antes da
viagem.
Jenna ainda morava em Jersey, mas agora num simpático apartamento para o qual havia se
mudado após a morte de Jason, dois anos antes. As duas conversaram por trinta minutos e Claire
desligou, prometendo que avisaria quando chegasse à Somália. Tomou um banho, colocou uma roupa
quente e pouco tempo depois Margaret tocou o interfone. Ambas saíram para almoçar num bistrô
perto dali, sem tocar em nenhum momento no nome de Peter.
Depois do almoço, Margaret se despediu de Claire na porta do edifício com um abraço
apertado.
— Me prometa uma coisa. Não, me prometa duas coisas. — Os olhos verdes olhavam no fundo
dos olhos de Claire.
— Quantas você quiser. — Sorriu afetuosamente para a amiga.
— A primeira: ligue-me assim que colocar os pés na Somália. A segunda: tome muito cuidado e
não deixe nada te acontecer. Quero você de volta sã e salva.
— Prometido. — Cruzou os dedos na frente do coração.
Margaret parecia indecisa quanto a dizer mais alguma coisa. Claire a encorajou com um sorriso
e um suave soco de brincadeira em seu ombro:
— Desembucha, Margaret.
Após hesitar por alguns segundos, a amiga a abraçou mais uma vez e depois olhou para ela,
ainda segurando seus ombros.
— Você precisa me prometer mais uma coisa. — Suspirou. — Não importa o que aconteça, não
deixe aquele imbecil magoar você novamente.
— Quanto a isso você não precisa se preocupar. É mais provável que eu cometa homicídio
antes de permitir que algo assim aconteça mais uma vez.
Margaret balançou a cabeça em aprovação. Ambas se abraçaram pela última vez e Claire subiu
até seu estúdio.

Chegou ao aeroporto com três horas de antecedência. Tratando-se de um voo internacional de


longa distância, era sempre melhor pecar pelo excesso. Depois de despachar sua bagagem, caminhou
calmamente pelo aeroporto, sentou em uma confortável poltrona com um livro e aguardou. Nenhum
sinal de Peter nas proximidades do balcão da companhia aérea.
Quando faltava uma hora e meia para o horário agendado do voo, dirigiu-se ao setor de
embarque. A fila na segurança estava imensa e ela perdeu quase trinta minutos naquela área do
aeroporto. Checou seu portão mais uma vez no painel e se dirigiu a ele com tranquilidade. Ao chegar
ao portão correto, sentou-se e continuou a ler seu livro. Foi apenas após algum tempo que percebeu
que a região próxima ao portão estava cheia. Olhou ao redor, apreensiva com a possibilidade de vê-
lo a qualquer momento, mas ele não estava ali.
Num misto de curiosidade e inquietude, imaginou se alguma coisa havia acontecido. Teria ele
desistido da viagem depois de encontrá-la? Teria ela todo esse poder sobre ele? Ou talvez algum
acidente? Seus pensamentos foram interrompidos pelo chamado do comissário de bordo, convidando
todos os passageiros da primeira classe a se apresentarem para o embarque.
Como sua passagem era de classe econômica, ela aguardou pacientemente ser chamada.
Assumindo um dos primeiros lugares na fila, olhava em volta periodicamente para ver se identificava
o rosto conhecido entre os passageiros. Nada. Sorriu para a comissária de bordo que checava sua
passagem e seu passaporte e se dirigiu à aeronave, que ainda estava vazia na classe econômica.
Aos poucos, os passageiros foram ocupando seus lugares e a aeronave encheu. Claire estava
sentada do lado direito do avião, junto à janela, e o lugar a seu lado permanecia vazio.
Aparentemente, Peter não viria. Ela esperou pela sensação de alívio que sabia que a invadiria em
algum momento, mas por ora tudo que conseguia sentir era curiosidade e talvez uma pontinha de
decepção. Por que diabos ele tinha desistido?
Enquanto olhava pela janela, ouviu murmúrios de desculpas e uma figura alta, musculosa e
levemente descabelada adentrou o avião. Reconheceu-o no mesmo instante, mas ele demorou alguns
segundos para localizá-la, após checar o número do assento em seu bilhete. Depois de andar até o
assento, colocou a bolsa esportiva que usava como bagagem de mão no último espaço restante no
compartimento superior e o fechou, sentando-se pesadamente ao lado dela depois.
— Olá, Claire. — Ele cumprimentou enquanto se acomodava na poltrona e prendia o cinto de
segurança, sem olhar para ela.
— Olá, Peter. — Ela fingia se concentrar no livro que estava aberto em seu colo.
Não trocaram mais nenhuma palavra. Em poucos minutos o embarque foi finalizado, as portas se
fecharam e a aeronave se preparou para a decolagem. Claire já havia viajado de avião diversas
vezes, mas detestava o momento da decolagem e do pouso, e também quando o voo passava por
turbulências. Já tinha passado mal mais de uma vez e por isso sempre ficava apreensiva. Olhou pela
janela aberta enquanto o avião taxiava. Quando ele chegou à cabeceira da pista e acelerou as
turbinas, Claire agarrou com força os braços da poltrona e fechou os olhos. Peter notou seus dedos
pálidos pela força que fazia, mas não emitiu nenhum comentário. Limitou-se a encostar a cabeça para
trás e fechar os olhos, parecendo estar absolutamente relaxado.
Depois que o avião atingiu a altitude programada pelo piloto e desacelerou um pouco as
turbinas, ela se sentiu mais relaxada. Voltou a tentar se concentrar em seu livro, mas, quando
percebeu que já tinha lido o mesmo parágrafo quatro vezes e não conseguia entender o que estava
escrito, desistiu, fechando-o e guardando-o na bolsa que levava consigo. Tentou reclinar sua poltrona
e relaxar, mas estava tendo certa dificuldade com o dispositivo.
— Precisa de ajuda? — Peter ofereceu, sem nenhuma inclinação na voz.
— Não, obrigada. — Ela continuou, sem sucesso, tentando reclinar a poltrona.
Ele suspirou impaciente, passou um braço sobre o corpo dela, apertando o botão do outro lado,
e com a mão livre forçou o encosto para trás, fazendo-o reclinar sem qualquer dificuldade. Com o
movimento e a proximidade, foi inevitável para Claire sentir o cheiro do perfume que ele usava, que
não era o mesmo de 13 anos atrás. Era agora uma fragrância mais máscula e sensual, e os cabelos de
sua nuca arrepiaram sem permissão. Irritada por se lembrar do perfume dele depois de tantos anos e
por se sentir afetada por ele desta forma agora, resmungou um obrigada e virou de lado, dando-lhe as
costas.
O jantar foi servido uma hora depois e Claire decidiu aceitar uma taça de vinho. Peter também
pediu uma taça e antes de começar a comer fez um silencioso brinde na direção dela, que não foi
retribuído. Ele deu de ombros e ambos jantaram em silêncio. Depois que as bandejas foram
recolhidas e as luzes reduzidas, o silêncio reinava na aeronave.
Ela estava tensa e tinha a sensação de que todos os músculos de seu corpo estavam contraídos.
De olhos fechados, tentava sem sucesso normalizar seus batimentos cardíacos, que permaneciam
acelerados desde que Peter tinha colocado os pés naquele avião. Com um misto de surpresa e
irritação, ouviu o som compassado da respiração do homem sentado a seu lado e notou
imediatamente que, ao contrário dela, Peter não estava nem um pouco tenso e não tinha
experimentado nenhuma dificuldade para adormecer. A constatação apenas trouxe mais munição para
sua raiva, só que dessa vez a raiva era contra ela mesma.

Chegaram ao Qatar às cinco e meia da tarde, horário local, depois de um voo de onze horas.
Claire estava exausta, descabelada e com olheiras escuras que denunciavam a noite praticamente
insone. Peter tinha uma aparência descansada. Apenas os cabelos levemente desalinhados e um olhar
sonolento davam uma pista a respeito das longas horas de voo.
Ao saírem da aeronave, se encaminharam para a esteira de onde as malas seriam retiradas. A
mala de Peter foi uma das primeiras a ser colocada na esteira e, depois de retirá-la, ele esperou em
silêncio ao lado de Claire até que sua mala surgisse. Muito tempo depois, ela estava a ponto de ir ao
balcão da companhia para reclamar do extravio da mala quando a viu despontando na esteira.
Retirou-a e se encaminhou bufando para a saída, sem olhar para trás. Peter suspirou e seguiu-a para o
saguão.
Oryx Hotel

Doha, 8 de novembro de 2012

O HOTEL ORYX, onde eles ficariam hospedados, ficava ao lado do aeroporto. Era um hotel
elegante e possuía inclusive piscina. Chegaram em poucos minutos ao balcão para fazer o check-in.
— Boa noite. Em que posso ajudá-los?
— Boa noite. Tenho uma reserva para hoje em nome de Claire Hart,
— Sim, claro. São dois hóspedes? — o atendente perguntou enquanto digitava algo no
computador.
— Não, apenas um — ela respondeu, seca.
O atendente olhou para Peter com expressão interrogativa e ele esclareceu:
— Na verdade temos duas reservas. A outra está em nome de Peter Templeton.
— Ah, correto. Só um momento, por gentileza. — O barulho das teclas do computador
preencheu o ambiente. — Sim, está correto. Aqui estão seus cartões de acesso. Gostaria de informá-
los que o jantar no restaurante do hotel está incluído na diária.
Ambos pegaram seus cartões e agradeceram. Ao olhar o número dos quartos, Claire percebeu
que estavam em quartos contíguos e tentou não se sentir excessivamente perturbada com a
informação.
Encaminharam-se em silêncio para os elevadores e aguardaram lado a lado. Quando ficaram
sozinhos no pequeno elevador, Claire se sentiu mais tensa do que havia estado até então e não soube
sequer entender o motivo. Ao olhar de relance para Peter percebeu que ele mantinha os olhos
fechados.
Chegaram ao andar e se dirigiram aos quartos. Claire foi a primeira a destrancar sua porta e
entrou, empurrando a mala. Precisava urgentemente de um pouco de privacidade. Quando se virou
para fechar a porta, percebeu que Peter estava parado encarando-a. Deu um sorriso formal e
continuou empurrando a porta, mas Peter estendeu a mão e interrompeu seu movimento. Surpresa, ela
parou e esperou.
— Claire — ele começou e ela aguardou. Como ele não disse mais nada, ela encorajou com
uma leve impaciência:
— Sim?
Ele suspirou de olhos fechados, parecendo subitamente cansado. Após alguns segundos de
silêncio, ele olhou para ela e continuou:
— Sei que não será fácil para nenhum de nós. Eu jamais esperava que fosse você a estar comigo
nesta viagem e imagino que com você aconteça o mesmo. Nenhum de nós dois gostaria que fosse
assim, mas não temos qualquer escolha a esse respeito. — Ele fez uma pausa, aguardando algum
comentário por parte dela. A única coisa que recebeu foi um olhar frio, então deu de ombros e
prosseguiu: — Minha opinião é que o melhor a fazer neste caso é procurarmos ser amigáveis e
civilizados um com o outro. Tornará essa convivência indesejada mais suportável, pelo menos.
Claire olhou para ele e teve vontade de rir, tamanha sua incredulidade. Depois de afirmar que
considerava detestável a obrigação de conviver com ela durante as próximas semanas, sem
mencionar tudo pelo que ele a havia feito passar há 13 anos, ele esperava que ela relevasse seu
comportamento cruel do passado, a grosseria do presente e buscasse ser gentil e amigável, a fim de
tornar a viagem dele mais agradável. Sentiu tanta raiva naquele instante que seria capaz de agredi-lo
fisicamente. Em vez disso, deu um sorriso frio e respondeu:
— Não tenho a menor intenção de ser incivilizada com ninguém, não faz parte da minha
natureza. Entretanto, também não tenho qualquer inclinação para ser amigável com você. Nosso
contato ocorrerá estritamente nas ocasiões em que for inevitável. Serei respeitosa com você enquanto
profissional e espero o mesmo da sua parte. Nada além disso, Dr. Templeton. Tenha uma boa noite.
Fechou a porta do quarto sem esperar uma resposta e encostou as costas nela, com o coração
aos pulos. Era muita audácia da parte dele pedir isso! Alguns segundos depois, ela ouviu a porta do
quarto ao lado ser aberta e fechada. Claire cobriu o rosto com as mãos e arriou até o chão. Continuou
ouvindo através das paredes finas todos os ruídos no quarto ao lado enquanto Peter parecia estar
fazendo algo no banheiro e depois andando pelo quarto. Seriam longas semanas.

Depois de abrir a mala e hesitar por alguns minutos, Claire decidiu colocar um biquíni e dar um
mergulho na piscina do hotel antes do jantar. Tinha enfiado a roupa de banho na mala mesmo sabendo
que provavelmente não teria muitas oportunidades de usá-la na viagem de trabalho, mas ela pretendia
tentar dar ao menos um mergulho no Oceano Índico.
Colocou um vestido estampado por cima e seguiu as placas até a piscina coberta. Chegando lá,
se sentiu aliviada ao perceber que estava vazia. Despiu o vestido, deixando-o sobre uma cadeira, e
mergulhou, sendo abraçada pela água tépida da piscina.
Deixou-se flutuar por alguns minutos, com os olhos fechados, um sorriso em seu rosto e a mente
vazia.
Assustou-se ao sentir os fortes respingos e ondulações resultantes do mergulho de alguém.
Levantou-se para descobrir quem era o mal educado que havia mergulhado tão próximo a ela, mas
demorou alguns segundos para que o vulto que cruzou a piscina sob a água emergisse do lado oposto.
Peter passou as mãos pelos cabelos, sem se virar para ela, e apoiou os bíceps na borda da piscina.
Claire se sentia frustrada e sabia que seus breves momentos de relaxamento haviam chegado ao fim,
mas não daria e ele o gosto de saber disso.
Iniciou então um nado crawl até a outra borda, onde ele estava, fazendo o giro por baixo da água
ao lado dele e voltando para onde estivera antes. Repetiu essa volta na piscina por quatro vezes,
parando então para descansar. Saiu da piscina e deitou em uma das espreguiçadeiras, fechando os
olhos. Após cerca de quinze minutos, viu de longe o momento em que Peter saiu da piscina em um
único e ágil movimento. Quase engasgou com a própria saliva ao vê-lo apenas com a sunga preta.
Mesmo durante o breve relacionamento de ambos, ela sequer o havia visto sem camisa. Sabia
que tinha um corpo forte, mas não estava preparada para a quantidade de músculos bem definidos
sem qualquer exagero que havia ali. Seu primeiro pensamento foi o de que ele parecia um modelo de
roupas íntimas masculinas e o volume que preenchia sua sunga parecia bastante apropriado para esta
ocupação. Ela desviou o olhar, constrangida, quando percebeu que ele notava sua inspeção.
Claire viu as horas em seu celular e se levantou, se enxugando um pouco com a toalha antes de
enfiar pela cabeça o vestido de algodão. Ao erguer novamente o rosto, percebeu que agora era ela
quem era observada ostensivamente. Peter estava sentado em uma espreguiçadeira um pouco mais
distante e olhava para ela, as mãos cruzadas atrás da cabeça. A expressão nos olhos claros era
impossível de interpretar, mas, ao contrário dela, ele não desviou os olhos quando foi pego
observando-a. Sustentou o contato visual até que Claire interrompeu-o, desconfortável, dando-lhe as
costas e caminhando em direção ao próprio quarto.

Depois de tomar um banho bem quente para ajudar a relaxar o corpo tenso, Claire secou os
cabelos e escolheu uma roupa em sua mala. Optou por um short branco de linho e uma blusa azul de
tecido leve, sem mangas. Olhou as horas em seu celular. Oito e vinte. Calçou sandálias brancas e
desceu até o restaurante do hotel. Ao entrar, percebeu que Peter estava sentado em uma das mesas.
Seus cabelos ainda estavam úmidos e ele vestia uma camiseta preta e bermuda de sarja marfim. Ela
odiou reconhecer que ele era de longe o homem mais bonito que conhecia, com muita ou pouca
roupa.
Claire foi para o outro lado do restaurante e ocupou uma mesa, escolhendo propositalmente uma
cadeira de costas para a mesa de Peter. Olhou rapidamente o cardápio, optando por uma massa
acompanhada por uma pequena salada e uma coca zero. Enquanto aguardava sua refeição, Claire se
distraiu com o livro que estava tentando ler desde o aeroporto de Nova Iorque.
Seu prato foi servido e ela colocou o livro de lado. Comeu sem muito apetite e ao final da
refeição já estava tentando conter alguns bocejos. Viu quando Peter passou ao lado de sua mesa, em
direção ao saguão do hotel. Mesmo depois que terminou de comer e o garçom recolheu o prato,
Claire se obrigou a ficar ali por mais alguns minutos para não correr o risco de cruzar novamente
com Peter no caminho até seu quarto.
— Café, senhora? — o garçom ofereceu, solícito.
— Não, obrigada. — Claire lhe deu um sorriso polido.
Levantou-se, foi até seu quarto e fechou a porta aliviada ao perceber que não havia sinais dele
por ali. Escovou os dentes com os olhos quase se fechando, tirou a roupa e deitou na cama usando
apenas a calcinha, cansada demais para procurar pela camisola na mala. Os últimos dois dias haviam
drenado completamente a energia de Claire e ela adormeceu sem programar o despertador em seu
celular.
Nada é tão ruim que não possa piorar

Doha, 9 de novembro de 2012


CLAIRE ACORDOU ASSUSTADA com batidas fortes na porta de seu quarto. Tateou a parede
em busca de um interruptor e acendeu o abajur, sentindo fortes pontadas na cabeça enquanto tentava
levantar. Péssima hora para uma crise de enxaqueca. As batidas continuaram enquanto uma voz
masculina chamava impaciente pelo seu nome. Procurou pelo celular e viu as horas: cinco e meia.
Tentou lembrar onde estava e aos poucos foi se localizando. Caminhou cambaleando até a porta e já
ia abri-la quando se lembrou de que estava usando apenas a calcinha. Parou atrás da porta e
respondeu ao insistente chamado de forma hesitante:
— Sim?
— Claire, são cinco e meia. — A voz de Peter soava irritada.
— E daí?
— Abra essa porta, Claire — ele exigiu.
— Por quê? O que você quer?
— Você está pronta? Não estava ouvindo nenhum barulho no seu quarto e por isso decidi bater.
— Não estou entendendo o que você quer. — Ela franziu o rosto e comprimiu as têmporas com
a ponta dos dedos. A cabeça ameaçava explodir e não permitia que ela raciocinasse.
— Claire, nosso avião decola em pouco mais de uma hora e meia. Você vai perder o voo.
Ela sentiu seu corpo gelar. Exausta como estava ontem, tinha esquecido completamente de que o
voo deles sairia tão cedo e que obviamente ela precisaria colocar o despertador. Era inacreditável a
forma como ele a desestabilizara. Sentiu suas mãos tremerem e correu em direção ao banheiro,
gritando para ele:
— Estarei pronta em dez minutos. Não precisa me esperar.
Ela engoliu um analgésico, colocou pasta na escova e começou a escovar os dentes
furiosamente. Passou uma água no rosto, penteou os cabelos com os dedos e enfiou a mesma roupa
que havia usado durante o jantar na véspera. Colocou o biquíni ainda úmido num saco plástico, jogou
na mala e fechou-a, pegando a seguir seu celular e o carregador e enfiando com violência na bolsa.
Bateu a porta do quarto, correu até o elevador e apertou o botão mais vezes que o necessário,
batendo com o pé no chão pela demora. Na recepção, praticamente jogou o cartão do quarto em cima
do atendente, murmurando um pedido de desculpas e se justificando, dizendo que estava prestes a
perder o voo.
Correu até o aeroporto, despachou a mala agradecendo aos céus pela ausência de uma fila e
correu novamente, desta vez até o setor de embarque. Passou pela segurança rapidamente e procurou
pelo número do seu portão nos painéis do aeroporto enquanto corria. Ao chegar ao portão de
embarque, havia poucas pessoas ali. Não viu sinais de Peter.
Suada e descabelada, mostrou à comissária o passaporte e o cartão de embarque e foi a última a
embarcar na aeronave. Localizou seu assento e, enquanto caminhava até lá, percebeu que Peter a
observava com uma expressão neutra. Teve que passar por cima dele para conseguir se acomodar no
assento da janela e sentiu quando seu quadril roçou no peito dele. Sabendo que a própria aparência
estava um desastre, amaldiçoou Peter por parecer tão fresco e controlado, com seus cabelos úmidos
do banho, sua camiseta preta impecável e uma bermuda também preta.
Claire nunca cometia esse tipo de erro. Sempre se preparava para qualquer coisa com
antecedência, conferia tudo mais de uma vez e raramente era pega desprevenida. Os últimos dois
dias tinham drenado suas energias de tal forma que ela quase perdera seu voo para Jibuti, conexão
que permitiria que finalmente chegasse a Mogadíscio. Não tinha ideia de como teria solucionado esta
situação se tivesse realmente perdido o voo, sozinha e a milhares de quilômetros de casa. A verdade
era que devia essa a Peter.
Especialmente depois da conversa deles no corredor do hotel, ele não tinha qualquer obrigação
de verificar se ela estaria pronta a tempo. A ideia de dever qualquer coisa a ele era quase tão ruim
quanto a de perder o voo. Querendo acabar logo com aquilo, assim que o avião começou a taxiar ela
se dirigiu a ele:
— Peter — chamou, fazendo-o desviar os olhos do próprio telefone.
— Sim? — Ele não imprimiu qualquer inflexão à voz.
— Bem, hoje pela manhã eu estava realmente atrasada. — Ela não olhava para ele, era como se
conversasse com a poltrona à sua frente. — Esses últimos dias foram muito cansativos, eu não
consegui dormir bem no voo anterior. Não costumo ser assim, sou uma pessoa metódica, organizada e
responsável, e no meu trabalho...
— Claire — ele a interrompeu.
Desconcertada, ela parou de falar e olhou para ele com o canto dos olhos.
— Sim?
— Por que você está se justificando para mim? — Ele mantinha a expressão neutra.
Ela suspirou, irritada consigo mesma. A ideia não era essa. Ela queria apenas agradecer. Por
que era tão difícil?
— Eu não queria me justificar. Eu queria apenas... contextualizar. — Ele continuava olhando
para ela em silêncio, aguardando. — Bem, se não fosse por você eu teria perdido o voo. E eu só
queria — ela fez mais uma pausa, engolindo em seco antes de pronunciar as palavras difíceis — te
agradecer por isso.
Peter não moveu um músculo sequer ao ouvir o agradecimento. Depois de encará-la por um
breve momento, desviou os olhos novamente para seu celular e respondeu apenas:
— De nada, Claire.

O restante do voo de quase cinco horas transcorreu em completo silêncio. Exceto pelo momento
em que ela teve que pedir licença a ele para ir ao banheiro, não trocaram mais nenhuma palavra.
Claire chegou a pensar em levar o pequeno estojo de maquiagem até o banheiro e tentar melhorar sua
aparência, mas desistiu. Ela não queria que ele achasse que estava fazendo qualquer esforço para
impressioná-lo.
Chegaram ao aeroporto de Djibouti-Ambouli e foram direcionados a outro portão, de onde
sairia seu último voo, com duração de 2 horas. A última aeronave era bem menor que as outras e o
trajeto foi permeado por períodos de intensa turbulência. Na pior delas, a aproximadamente 30
minutos de Mogadíscio, Claire achou que fosse desmaiar. Ou vomitar. Ou os dois. Seu rosto estava
pálido, suas mãos estavam suadas e seus lábios tremiam. Ela controlava as lágrimas enquanto
agarrava-se à poltrona com os olhos fortemente fechados. Sentiu um toque leve em seu braço e ouviu
seu nome:
— Claire?
— Sim? — Ela não abriu os olhos.
— Turbulências não derrubam aviões — Peter tentou tranquilizá-la, num tom calmo.
— Eu sei. — Era mentira, ela não sabia. Mas não importava muito. A mistura de enxaqueca e
náusea naquele momento era pior que o medo de que o avião caísse. — Com frequência passo mal
em aviões, especialmente quando há turbulência — ela confessou.
— Há algo que eu possa fazer para ajudar?
— Acho que não.
Segundos depois, ela sentiu o conteúdo do seu estômago subindo para sua garganta. Percebendo
que ela estava prestes a vomitar, Peter agarrou o saco apropriado para este fim no bolso da poltrona
da frente e posicionou-o em frente ao rosto dela no exato momento em que o conteúdo líquido foi
arremessado pelo seu estômago. Uma parte foi para o saco, outra para os pés de Claire e o resto
ficou nas mãos de Peter. Quando os espasmos pararam, ela tentou sem sucesso limpar a boca com as
costas da mão, piorando ainda mais a situação.
Sem dizer nada, Peter se levantou, levando consigo o saco quase cheio, e ela recostou a cabeça
no banco com os olhos fechados. Como tudo aquilo poderia ficar pior? Ele retornou com as mãos
limpas e vários papéis toalha, alguns úmidos e outros secos. Sem forças sequer para abrir os olhos e
temendo que o enjoo piorasse, Claire permaneceu imóvel, recostada na cadeira de olhos fechados,
respirando fundo. A dor de cabeça que havia começado pela manhã a bombardeava com intensidade
total.
Sentiu quando Peter passou o papel toalha úmido sobre sua boca e seu queixo, seguido por um
papel seco. Ele repetiu o processo em sua mão e depois tirou as sandálias de seus pés, limpando-os
também. Claire não se sentia em condições de protestar e simplesmente deixou que ele cuidasse dela.
Ele se levantou mais uma vez e quando retornou trazia dois copos plásticos, um com água gelada e
outro vazio.
— Claire — ele chamou suavemente. — Você quer bochechar?
Sentindo o gosto amargo de bile na boca, ela concordou e bochechou com a água fresca,
cuspindo no copo vazio. Quando ela concluiu o processo, ele levantou pela terceira vez e ela o ouviu
se justificando para a comissária de bordo, pois o avião estava prestes a pousar e não era permitido
que ele estivesse circulando. Peter então prendeu seu cinto e poucos minutos depois o avião pousou.
Bem-vindos à Somália

Mogadíscio, 9 de novembro de 2012


PASSAVA UM POUCO das três da tarde quando chegaram a Mogadíscio. Ele se manteve ao lado
dela durante o percurso entre a aeronave e o setor de bagagens, escorando-a levemente. Chegando à
esteira correta, Peter sentou-a em um banco e foi buscar as malas. Ela afundou a cabeça entre as
mãos e se perguntou o que tinha feito para merecer todo aquele pesadelo. O aeroporto era pequeno e
estava cheio àquela hora do dia. O ar condicionado não dava conta do calor e o ambiente estava
abafado.
Quando Claire levantou a cabeça, viu Peter se aproximando com as malas de ambos. Levantou-
se e o seguiu levemente cambaleante até o saguão do aeroporto, onde um rapaz negro com um sorriso
caloroso os esperava segurando uma placa com seus nomes e o símbolo do MSF. Encaminharam-se
até ele.
— Olá, meu nome é Taban. Sejam muito bem-vindos à Somália — o rapaz se apresentou, num
inglês carregado de sotaque.
Peter o cumprimentou com um aperto de mão e Claire forçou um sorriso na direção do
simpático rapaz, que não devia ter mais de 20 anos.
— Vamos, vou levá-los até a casa.
Ele os encaminhou a um velho jipe, estacionado próximo à saída do aeroporto. Taban ajudou
Peter a guardar as malas na parte de trás do veículo aberto e se acomodou no banco do motorista.
Peter ajudou Claire a subir no banco traseiro e a surpreendeu quando se sentou ao seu lado, e não ao
lado de Taban no banco da frente. Sentiu a mão de Peter em seu punho, fazendo-a sentir uma
inesperada reviravolta no estômago. Inicialmente achou que era um gesto carinhoso, mas depois
percebeu que ele apenas verificava sua pulsação. Foi inevitável a onda de desapontamento que a
invadiu, fazendo-a suspirar impaciente. Irritar-se consigo mesma quando estava ao lado de Peter
estava se tornando um desagradável hábito.
Apesar do extremo mal estar físico, Claire se forçou a manter os olhos abertos durante o trajeto
do aeroporto até a casa onde viveriam pelas próximas seis semanas. Taban foi conversando com eles
durante o trajeto:
— Como vocês devem saber, Mogadíscio é a capital da Somália e sua maior cidade. Nossa
população é de pouco mais de 2 milhões de habitantes. Vocês gostam de história?
— Sim, muito. — Peter parecia genuinamente animado.
Claire apenas balançou a cabeça, o mal estar físico impedindo suas palavras.
— Ótimo. Nossa região já foi muito próspera. Éramos produtores de tecidos finos e por volta
do século catorze, a cidade era forte exportadora para o Egito e outras localidades no Oceano Índico.
Havia riqueza e abundância por aqui.
Claire ouvia o relato dele e reparava em seu entorno. Depois que saíram do estacionamento,
passaram por uma estrada esburacada de onde era possível avistar o mar à direita e inúmeras
construções extremamente precárias à esquerda. Muitas delas consistiam apenas em cabanas com
paredes improvisadas, construídas com pedaços de madeira e plástico presos uns aos outros de
maneira irregular. Pareciam se apoiar perigosamente umas contra as outras e formavam juntas um
bizarro oceano de cores, sujeira e desolação que se estendia além de onde a vista alcançava.
Ela via crianças correndo descalças, tentando perseguir os carros que passavam ou jogando
bola pelos campos de areia. Eram todas muito magras, com poucas peças de roupa cobrindo a pele
suja. Nuvens de poeira eram levantadas por qualquer coisa em movimento, fossem elas os carros ou
as próprias crianças brincando. Taban seguia com seu relato:
— Por volta do século dezenove, fomos invadidos pelo sultão de Zanzibar e depois a cidade foi
alugada à Itália, tornando-se em 1905 a capital da Somália Italiana. Após a primeira guerra mundial,
diversos colonos italianos se estabeleceram aqui e a cidade se desenvolveu na parte de comércio e
infraestrutura. Só obtivemos nossa independência em 1960.
Continuavam o trajeto por ruas ora mais largas, ora mais estreitas. Poucas eram as regiões pelas
quais passavam que possuíam algumas construções mais novas e em bom estado de conservação, a
maior parte delas comerciais. Ela via homens vestidos de maneira informal e mulheres envoltas em
burcas. As expressões faciais das pessoas que caminhavam pelas ruas variavam entre indiferentes e
sorridentes, o que Claire sentia quase como um tapa em seu rosto. Aquela realidade dura era tudo
que os habitantes de Mogadíscio conheciam e, apesar de tudo, muitos deles conseguiam parecer
quase felizes.
Mesmo nos trechos onde a miséria não gritava tão alto, as construções eram em sua maioria de
um único andar ou no máximo dois, linhas retas, paredes descascadas e algumas delas estavam
abandonadas. Em mais de um local, era possível ver as cicatrizes que a guerra havia deixado pela
cidade, representadas por diversas construções parcialmente destruídas, agora em ruínas. Alguns
trechos chegavam a se parecer com cidades fantasma. Apontando para as construções destruídas e
abandonadas, Taban dizia:
— O que vocês veem aqui é o resultado da guerra civil, que começou em 1990. A guerra desde
o início foi tão violenta que destruiu nossa agricultura, causando fome e destruição. Boa parte das
mortes dos milhares de somalis neste período foi por inanição.
Claire sentia um aperto no peito e seu estômago revirava. Uma coisa era ouvir aquilo através
dos jornais ou da TV, outra coisa era ver ao vivo aquela realidade. Peter deve ter percebido sua
reação, pois segurou sua mão e a apertou. Ela se sentiu confortada pelo gesto e lhe ofereceu um
sorriso vacilante em agradecimento.
Após aproximadamente 30 minutos, chegaram a Lido Beach, onde ficava a casa na qual se
hospedariam. Ao longo da praia era possível ver algumas construções mais novas, mas eram poucas.
A maior parte da orla era pouco povoada, ocupada por casebres e ruínas. Na areia da praia
empilhavam-se enormes quantidades de lixo. O mar era profundamente azul e predominantemente
calmo. O local possuía uma beleza natural impressionante, mas o estado deplorável em que a cidade
se encontrava fazia com que Claire só enxergasse desolação e abandono. Ela sentia como se tivesse
sido arrastada para uma realidade paralela, onde tudo parecia desconexo e perturbador.
Passava um pouco das quatro e meia da tarde quando Taban estacionou o jipe em frente a uma
casa simples de dois andares que já tinha visto dias melhores. Suas paredes, que um dia haviam sido
pintadas em um tom rosado, hoje se encontravam descascadas e com algumas infiltrações. No telhado
composto por telhas de amianto era possível ver que algumas delas estavam quebradas. Havia um
muro baixo e um pequeno portão velho de ferro que dava acesso a um caminho de concreto
esburacado. Através dele se alcançava a varanda na frente da casa.
O pequeno jardim frontal era composto por um solo arenoso e mato que crescia em alguns
pontos. Taban guiou-os animado até a porta de entrada, carregando a mala de Claire enquanto Peter
carregava sua própria. Ele falou algo em somali ao ser recepcionado por uma belíssima jovem na
porta da casa. Ela devia ter aproximadamente 18 anos, tinha a pele negra brilhante, olhos
amendoados e um sorriso tão largo quanto o de Taban. Mesmo envolta nas tradicionais vestes
muçulmanas, os tecidos eram coloridos e alegres. Após alguns poucos de minutos de conversa entre
os dois, Taban se virou e a apresentou em inglês:
— Essa é Calaso. Assim como eu, ela faz parte do time local e está responsável pelos cuidados
com a casa. Atualmente há seis pessoas morando aqui e vocês serão apresentados a todos.
— É um prazer conhecê-la, Calaso. — Peter se adiantou, estendendo a mão livre para a moça,
que retribuiu aumentando seu sorriso.
Claire ainda se sentia muito fraca, mas conseguiu estender sua mão e sorrir. Notou que a mão de
Calaso era um pouco áspera, mas também quente e acolhedora em seu aperto.
— É uma honra recebê-los aqui — ela começou. — Em nome do meu povo, gostaria de
agradecer sua presença e espero poder ajudá-los neste período.
Ela convidou-os a entrar na sala, composta por dois sofás posicionados em L com o estofado
floral bem gasto, uma mesa de centro de madeira antiga e um móvel onde se via uma televisão de
tubo. Ao fundo era possível identificar a sala de refeições com uma mesa de oito lugares, separada
da sala principal por uma meia parede. Algumas cortinas finas e parcialmente rasgadas cobriam as
quatro janelas da sala, duas frontais e duas laterais. Um preguiçoso ventilador de teto emitia um
ruído monótono.
— Sentem-se. — Ela indicou os sofás. Todos se sentaram e Calaso iniciou sua explicação —
Aqui na casa principal temos seis quartos. Eles estão ocupados pelos outros membros do time.
Temos uma pequena casa nos fundos do terreno, com dois quartos e um banheiro, que será usada por
vocês dois. As refeições serão feitas aqui na sala de refeições quando vocês não estiverem de
plantão no hospital. O café da manhã é servido às seis, o almoço ao meio-dia e o jantar às oito.
Ela fez uma pausa, aguardando por dúvidas ou comentários. Como todos permaneciam em
silêncio, ela continuou:
— Nos fundos da casa principal há uma pequena lavanderia onde vocês poderão lavar seus
itens de vestuário de uso pessoal. As roupas de cama e as toalhas são trocadas a cada duas semanas.
Tudo aqui é economizado, especialmente a água. Mesmo contando com saneamento básico na cidade,
a falta d’água é muito frequente e por isso fazemos adaptações. O banheiro de vocês tem uma tina
com água e pequenos baldes. Essa tina será abastecida diariamente, mas peço que economizem ao
máximo a água nela contida.
Claire pensou naquele momento em como as preocupações corriqueiras da maior parte dos
habitantes do hemisfério norte pareciam absolutamente inapropriadas e egocêntricas quando
comparadas ao tipo de dificuldades enfrentadas por aquele povo. Parecendo perceber a linha de
pensamentos dela, Calaso prosseguiu:
— Nossa vida aqui não é fácil. Precisamos lutar todos os dias pelas coisas mais simples e a
guerra já dizimou quase meio milhão de somalianos ao longo das últimas décadas — ela informou,
em tom solene. A seguir, olhou carinhosamente para eles com um sorriso. — Por isso somos tão
gratos por tê-los aqui.
Claire e Peter se entreolharam naquele momento, parecendo ter chegado simultaneamente à
conclusão de que era exatamente ali que eles deveriam estar. Assentiram com um movimento de
cabeça quase sincronizado.
— Também preciso dar algumas informações — Taban comentou. — Vocês estão na região que
em teoria é a mais segura da cidade, mas não significa que seja segura. Diariamente virei buscá-los e
os levarei ao Hospital Dayniile, que fica a quase uma hora daqui. Esse deslocamento é cansativo,
porém necessário, porque aquela região é muito precária e bastante insegura para hospedagem. No
fim do dia, os trarei de volta.
Ele fez uma pausa e inclinou seu corpo para frente, apoiando os cotovelos sobre os próprios
joelhos. Olhando alternadamente para os dois médicos, ele prosseguiu:
— É muito importante que vocês nunca se locomovam sozinhos. Vocês têm permissão para
caminhar até no máximo 100 metros de distância da casa, mas ainda assim sugiro que evitem fazê-lo.
Claire engoliu em seco, pensando no quanto tudo aquilo seria desafiador. Peter parecia também
ter ficado um pouco mais inquieto ao ouvir sobre as questões relativas à segurança. Percebendo o
clima pesado, Calaso se levantou dizendo:
— Ainda teremos muitas oportunidades de explicar sobre a rotina para vocês. Imagino que
estejam cansados e agora gostaria de levá-los aos seus quartos.
Claire e Peter se levantaram imediatamente, gratos pela sensibilidade de Calaso e sua
preocupação com o bem-estar deles.
— Nos próximos dois dias, sábado e domingo, vocês poderão descansar e se ambientar à nova
rotina. A partir de segunda-feira, vocês entrarão oficialmente na escala da equipe. Agora vamos. —
Calaso apontou para um corredor que dava nos fundos da casa e os conduziu por ele, passando pela
cozinha à sua direita e a sala de jantar à esquerda.
Ela abriu então uma porta que dava no quintal da casa, onde se via o mesmo terreno arenoso
com mato que compunha o jardim frontal. Aproximadamente 10 metros à frente era possível avistar
uma pequena construção térrea que seguia o mesmo estilo da casa principal.
Percorreram a curta distância até a casa secundária e, ao chegarem, Calaso abriu uma porta, que
dava acesso a um pequeno hall com outras três portas. A que ficava bem em frente escondia o
banheiro. As paredes eram de concreto e o piso era de uma cerâmica barata, rachada em alguns
locais. No fundo havia um espaço que deveria corresponder a um box sem cortinas ou divisórias de
vidro, onde estava a tina com água. Via-se ainda uma pequena pia e um vaso sanitário. Uma janela
tipo basculante com um dos vidros quebrado ficava dentro do box, virada para a praia localizada
imediatamente atrás da casa.
Depois de mostrá-lo, Calaso abriu em sequência as portas dos dois quartos, que ficavam um de
frente para o outro no pequeno hall. Ambos tinham uma cama de solteiro, um armário de duas portas
e uma escrivaninha com cadeira. Todos os móveis eram de madeira escura e escalavrada.
Ventiladores de teto, telas para mosquito e as mesmas cortinas vistas na sala completavam a
decoração. As paredes eram pintadas de branco e estavam manchadas pelo longo tempo sem uma
pintura. O piso de todos os cômodos, incluindo os da casa principal, era de lajotas vermelhas.
Claire e Peter agradeceram a hospitalidade, despediram-se de Calaso e Taban e se fecharam em
seus respectivos quartos. Quando finalmente se viu sozinha depois de mais de 30 horas de uma
viagem infernal, Claire desabou de bruços na cama, com o rosto entre as mãos. Tomada pela
exaustão, pelo medo e pela tristeza, ela chorou. Contrastando com a calmaria da praia a poucos
metros dela, seu interior era um mar revolto de pensamentos e sentimentos. E a presença de Peter só
tornava tudo ainda mais difícil.
A primeira chance

Jersey City, 1999


CLAIRE NÃO VIU Peter na escola no dia seguinte. Olhava periodicamente para seu telefone,
com a esperança de ver uma mensagem dele. Nada. Suspirou, irritada consigo mesma por continuar
pensando nele depois de ser educadamente dispensada. Margaret tinha perguntas intermináveis sobre
o encontro, às quais Claire não estava com qualquer vontade de responder. Tentou resumir o fiasco
que foi a noite da forma que pareceu imprimir o maior tom de dignidade que ela conseguiu fabricar.
Depois de perceber que a amiga não estava com o melhor dos humores, Margaret desistiu.
Claire dormiu cedo naquela sexta-feira, desejando apenas que a sensação horrível de dor de
cotovelo passasse logo. Era como se tivesse caído da cama na melhor parte do sonho, despertando e
descobrindo que nada daquilo era real. A sensação era péssima.
No sábado, decidiu fazer uma limpeza em seu guarda-roupa. Separou peças antigas, infantis
demais para sua atual faixa etária, e colocou numa sacola para doação. Fez o mesmo com bichinhos
de pelúcia e bonecas que ainda conservava. Enquanto o fazia, colocou para tocar o disco Jagged
little pill de Alanis Morissette e fechou a porta de seu quarto. No início da faixa You oughta know,
Claire aumentou consideravelmente o volume do aparelho. A voz de Alanis ultrapassava as barreiras
de seu quarto, gritando com raiva:

And I’m here


To remind you
Of the mess you left
When you went away
It’s not fair to deny me
Of the cross I bear
That you gave to me
You, you, you oughta know[1]

Jenna, que observava sorrateiramente os movimentos atípicos da filha naquela tarde, sorriu ao
ouvir a música. Pela primeira vez ela tinha um vislumbre do que era ter uma filha adolescente em
casa e tentava entender como deveria reagir às suas emoções. Oferecer privacidade lhe pareceu
acertadamente a melhor opção.
Às cinco da tarde, Claire estava cansada e não menos irritada do que antes. A tentativa de
eliminar de sua vida as coisas que a deixavam embaraçada e a faziam se sentir inadequada não havia
trazido a satisfação esperada. O resultado de seu dia de fúria foi um armário com ainda menos
opções de vestuário e prateleiras brancas vazias enfeitando um quarto rosa demais para uma garota
de 16 anos. Um cenário nada animador.
Decidiu tomar um longo banho, em que deixou a água cair livremente sobre seu corpo.
Terminado o banho, se enxugou e colocou uma roupa confortável. Ao pegar seu telefone enquanto
penteava os cabelos molhados, seu coração falhou uma batida ao perceber que havia uma chamada
perdida ali. E era de Peter. Com as mãos tremendo e o coração aos pulos, ligou de volta.
— Alô? — ele atendeu no segundo toque.
— Olá, Peter. Vi que você me ligou. — Odiou-se por perceber que sua voz tremia levemente.
— Olá, Claire! — ele respondeu num tom animado. — Como você está?
— Estou bem, e você?
— Bem, também. — Ficou mudo por alguns segundos. — Liguei porque gostaria de saber se
você tem compromisso para hoje à noite.
Claire colocou a mão sobre os lábios, abafando um sorriso extasiado. Ela respirou fundo,
procurando se acalmar. Ele queria sair de novo com ela. E num sábado!
— Ainda não tenho nada agendado, Peter. — Tentou soar sofisticada.
— Ótimo. Vamos sair para jantar, então? Posso te deixar em casa na volta antes das dez.
— Combinado. A que horas você passa aqui?
Ele demorou alguns segundos, provavelmente consultando as horas.
— São seis horas agora. Às sete está bom?
— Ótimo. Nos vemos às sete então.
E desligaram o telefone. Claire correu até a cozinha, onde a mãe preparava o jantar.
— Mãe.
— Sim? — Jenna não tirou os olhos da panela onde terminava de mexer um molho.
— Vou sair com Peter daqui a pouco. Tudo bem?
Jenna percebeu que a voz da filha traía certa ansiedade. Desligando o fogo, virou-se para ela:
— Peter? O mesmo rapaz com quem saiu há poucos dias? — perguntou para ganhar tempo, pois
já sabia a resposta.
— Sim. Ele passará aqui daqui a pouco. Preciso me vestir. Tudo bem? — O tom agora era ainda
mais ansioso.
Jenna suspirou. Tendo visto o rapaz antes, sentia-se dividida entre a necessidade de proteger sua
menina de uma possível decepção e o desejo de que ela experimentasse os sentimentos em sua
plenitude. Por fim, acabou assentindo com a cabeça.
— Tudo bem. Mas tenha juízo.
Claire abriu um largo sorriso e estalou um beijo na bochecha de Jenna. A seguir, subiu correndo
as escadas, foi até o próprio quarto e parou em frente a seu armário. Demorou mais de meia hora
analisando cada peça de roupa que havia restado ali. Por fim, segurou um vestido preto que havia
ganhado de presente de aniversário de sua madrinha e nunca tinha usado. Era um modelo simples,
com alças finas, decote fechado, cintura marcada e que ia até os joelhos. Claire nunca o tinha usado
por alguns motivos, sendo o mais importante o fato de que ele deixava à mostra suas pernas finas e
tornava óbvia a ausência de volume nos seios. Pegou no armário um sutiã sem alças, preencheu o
forro com um pouco de enchimento e ficou satisfeita com o efeito provocado no vestido. Ao menos
parecia um pouco mais adulta. Aplicou uma maquiagem leve e desceu as escadas. Seu pai e sua mãe
estavam na sala assistindo a um filme.
— Vai sair? — Jason perguntou, seco.
— Sim, com Peter.
— Quem é Peter?
— Um amigo — Claire respondeu de modo vago.
— Esteja de volta até as dez. — Seu pai voltou novamente os olhos para o filme.
— Estarei.
Nesse momento a campainha soou e Claire abriu a porta. Cumprimentou Peter com um sorriso
tímido e o apresentou a seu pai. Notou que o rapaz pareceu desconfortável na presença de seu pai,
mas ao mesmo tempo o olhava com intensidade. Jason lançou a Peter um olhar mal humorado,
resmungou um cumprimento e deu novamente as costas a ele. Os jovens então se despediram e foram
em direção à moto. Neste momento Claire se deu conta de que talvez não tivesse sido uma boa ideia
ir de vestido. Percebendo sua hesitação, Peter aconselhou:
— Coloque a parte da frente do vestido sob o seu corpo. Assim ele não vai voar quando a moto
andar.
Ela sorriu e fez o que ele sugeriu. Percebeu que suas pernas ficariam à mostra, mas não se
importou tanto com isso. Peter gostava dela o suficiente para convidá-la para um segundo encontro, e
nada na aparência dela o havia impedido. Depois de colocarem os capacetes, ela abraçou o corpo
forte que começava a parecer familiar e sorriu, em completo êxtase por estar ali novamente.

Ele a levou para jantar em um pequeno restaurante italiano. Sentaram em uma mesa de canto
com vista para o jardim e conversaram por quase duas horas. Mais uma vez, Peter se mostrava um
ótimo ouvinte e perguntava vários detalhes sobre a vida de Claire e sua família. Falavam também
sobre cinema, livros e a escola. Peter parecia supreendentemente bem informado sobre diversos
assuntos e a conversa fluía com naturalidade. Ao final da refeição, o garçom lhes ofereceu um café.
Peter aceitou e Claire recusou.
— Não gosta de café? — o rapaz perguntou.
— Detesto café. — Ela deu de ombros.
— Com o tempo isso muda — respondeu ele, enquanto a bebida fumegante era colocada à sua
frente.
— Acho bem difícil. — Ela fez uma pequena careta ao sentir o cheiro que emanava da xícara à
frente de Peter e ele riu, divertido.
Depois de pagarem a conta, subiram novamente na moto e Claire estava triste por perceber a
aproximação do fim da noite. Notou que ele fazia um caminho diferente e ficou curiosa, mas não
perguntou nada. Peter dirigiu pela parte mais alta da cidade, Jersey Heights, e estacionou a moto.
Levou Claire através do Riverview Fisk Park até um local de onde se tinha uma bela vista de Nova
Iorque do outro lado do rio Hudson.
Olhando em volta, ela entendeu que ali era um lugar para onde os casais iam quando queriam
privacidade para namorar. Seu coração imediatamente se acelerou e ela sentiu as mãos úmidas, mas
tentou não demonstrar. Ele a levou para perto da grade num mirante com vista de tirar o fôlego e a
abraçou por trás, apoiando o queixo sobre sua cabeça. Ela suspirou e sorriu, sentindo o coração
bater de forma desordenada e não conseguindo imaginar como poderia se sentir mais feliz do que
naquele momento.
— Esse é um dos meus lugares preferidos nesta cidade. — Ele acariciava de leve o braço dela.
— É lindo mesmo. — Foi tudo que ela conseguiu responder.
— Sabe, Claire, você foi uma grata surpresa para mim.
O coração dela falhou uma batida. Sem saber o que responder, ela continuou encarando o
horizonte.
— É uma garota inteligente, divertida. — Os dedos subiam e desciam pelo braço dela,
provocando arrepios. — Realmente fascinante.
Após alguns segundos de silêncio, ele a soltou e fez com que ficassem frente a frente. Claire
buscou nos olhos azuis alguma pista do que ele estava sentindo, mas sua expressão era mais uma vez
enigmática. Peter então segurou suavemente seu queixo, levantando seu rosto. Ela fechou os olhos e
esperou. Seu corpo inteiro parecia uma corda de violino esticada, prestes a arrebentar a qualquer
momento.
Os lábios dele tocaram os seus de maneira delicada. Ela sentia a maciez de seu lábio inferior
roçando úmido no dela e depois a ponta de sua língua quente tocando-o levemente, como se pedisse a
ela permissão para ir além. O coração de Claire parecia um pássaro desvairado querendo fugir de
sua gaiola. Sem saber ao certo o que fazer, entreabriu os próprios lábios, num convite para que a
língua dele penetrasse sua boca, trazendo sensações que sequer conseguiria descrever. Um gemido
escapou da garganta de Claire, o que fez com que Peter a puxasse para mais perto do próprio corpo
num abraço apertado, mantendo suas bocas unidas. Instintivamente ela recuou, mas ele a puxou de
volta e aprofundou o beijo, não permitindo que ela se afastasse. Rendendo-se ao momento, abraçou-o
pelo pescoço e se permitiu desfrutar de todas aquelas sensações desconhecidas e inebriantes. Suas
línguas se buscavam com paixão, alternando com movimentos lentos e sensuais dele sugando seu
lábio inferior e mordendo-o com gentileza antes de invadir sua boca novamente com a língua
molhada e quente. Claire se sentia tonta, como se estivesse em um enlouquecido carrossel de
emoções avassaladoras. Nem em seus melhores sonhos poderia imaginar que seu primeiro beijo
seria tão perfeito.

Depois de passarem quase uma hora ali, entre beijos, abraços, sorrisos e silêncio cúmplice,
Peter olhou o relógio e se assustou.
— Nossa, são cinco para as dez! O parque vai fechar e preciso deixá-la em casa.
A contragosto, Claire o acompanhou de volta ao local onde haviam estacionado, colocou o
capacete e subiu na moto. Viajaram pelas ruas vazias e chegaram à porta de sua casa às dez e dez.
Seu pai os aguardava na sala e ao ouvir o barulho do motor da moto, abriu a porta. A expressão em
seu rosto era dura.
— Vocês estão atrasados — informou, sem nem mesmo cumprimentá-los.
— Sim, Sr. Hart. Peço desculpas por isso.
Claire olhou para Peter e percebeu que, apesar do pedido de desculpas, ele não parecia
realmente estar se desculpando. Na verdade, sua expressão parecia ser de desafio. Os dois se
encararam por alguns segundos até que Jason quebrou o silêncio.
— Que esse atraso não se repita.
Peter encarou-o por mais alguns segundos, com sua habitual expressão indecifrável. Por fim
respondeu:
— Pode deixar, Sr. Hart. Consigo imaginar o quanto sua filha significa para o senhor.
Jason pareceu levemente confuso com a resposta, mas apenas murmurou algo incompreensível e
entrou em casa. Claire se voltou para Peter, que continuava olhando para a porta fechada da casa.
— Ei, não fique tão preocupado. Meu pai ladra, mas não morde. — Ela deu um sorriso, tentando
amenizar o clima que havia ficado subitamente tenso.
Ele então pareceu se dar conta de que ela ainda estava ali, se virando para ela e dando um
sorriso que não chegou aos seus olhos. Beijou levemente seus lábios e se despediu com um boa noite.
Depois de subir na moto, acelerou e sumiu rapidamente na noite silenciosa.
Apesar do fim de noite um tanto estranho, Claire estava feliz demais para se importar com
qualquer coisa. Subiu para seu quarto tentando disfarçar o sorriso que parecia colado em seus lábios.
Ela se despiu e decidiu que naquela noite dormiria apenas de calcinha. Seus pijamas estampados de
algodão eram uma afronta à mulher que ela se sentia naquele momento. Deitou a cabeça no
travesseiro relembrando cada beijo, cada carícia, suspirando pela noite que havia sido a melhor de
sua vida até então.

As semanas seguintes foram se sucedendo e uma nova rotina se estabeleceu na vida de Claire.
Além da escola e da companhia de sua amiga Margaret, Claire tinha agora também os encontros com
Peter. Eles se viam com frequência na escola, conversavam brevemente quando se esbarravam nos
intervalos e por vezes ele lhe dava carona na saída. Não se beijavam em público, mas ele não fazia
nenhuma questão de esconder que ambos tinham algum tipo de relação, o que provocava intensa
curiosidade nos outros alunos. Afinal, o que o bonitão do último ano estava fazendo conversando
com tanta frequência com a caloura geek?
Incentivada por Margaret, Claire tinha ido algumas vezes às compras nas últimas semanas. Após
adquirir algumas roupas mais modernas e interessantes, ela se sentia mais segura e feminina. Decidiu
fazer um corte diferente em seus cabelos e aceitou a sugestão do cabelereiro de acrescentar algumas
camadas. Pela primeira vez, ela se sentia quase bonita.
Os encontros com Peter se tornavam cada vez mais interessantes. Eles conversavam por horas a
fio, sobre vários assuntos, e perceberam ter muitas coisas em comum. Numa dessas conversas,
descobriram que ambos tinham o sonho de estudar medicina. Claire contou sobre como foi impactada
positivamente pela conduta do médico que cuidou de sua avó, e nesse dia notou uma expressão de
carinho e admiração no rosto de Peter que não se lembrava de ter visto antes.
Ele já conhecia cada detalhe da vida dela, sabia o nome de todas as suas amigas de infância, de
seus parentes próximos. Conhecia as preferências musicais de Claire e seus pratos preferidos. Ele
sabia até mesmo da paixão dela por borboletas, e o quanto Claire era fascinada pelo fato de que
aquela metamorfose fazia com que uma lagarta, aprisionada numa realidade cheia de limitações,
fosse capaz de conhecer a liberdade e poder voar.
Entretanto, o inverso não era verdadeiro. Ao responder às perguntas de Claire, Peter era sempre
lacônico. Claire pouco sabia sobre sua infância e sua família, exceto que ele tinha uma irmã mais
velha que morava no Canadá e que seu pai era falecido. Peter morava com a mãe, mas falava muito
pouco dela apesar das demonstrações de interesse por parte de Claire. O pouco que ela sabia dizia
respeito a algumas de suas preferências, mas nada que fosse muito além. Apesar de desejar que ele
se abrisse mais com ela, ela respeitava. Acreditava que era apenas uma questão de tempo até que
isso acontecesse.
A data do baile de formatura se aproximava e Claire estava muito ansiosa em relação a isso.
Acreditava que Peter fosse convidá-la, mas tinha medo de criar expectativas e se decepcionar. Num
dos inúmeros encontros que tiveram no mirante, ele a abraçava por trás quando trouxe o assunto:
— Claire, você sabe que o baile está se aproximando.
Ela ficou momentaneamente tensa em seus braços e ele percebeu. Tentando parecer casual, ela
respondeu:
— Sim, eu sei.
— Então... eu gostaria de saber se você quer ir comigo ao baile.
Ele sentiu o corpo dela imediatamente relaxar em seus braços. Ela se virou para ele com um
lindo sorriso:
— Claro que sim, Peter. Quero muito.
Ele beijou de leve seus lábios e a abraçou.
O grupo

Mogadíscio, 9 de novembro de 2012


ÀS SETE DA noite, Claire despertou do cochilo não planejado que se seguiu à crise de choro e
olhou confusa para o próprio telefone. Viu que em breve seria hora do jantar e decidiu que precisava
sair daquele estado de torpor. A dor de cabeça ainda a atormentava, mas ao menos a náusea havia
melhorado. Tomou mais um analgésico e desfez sua mala, acomodando as peças de roupa no armário.
Lembrou-se então de que não havia avisado a ninguém sobre sua chegada. Pegando seu celular, viu
que estava sem sinal e fez um lembrete mental de resolver isso mais tarde.
A seguir, pegou sua nécessaire e a toalha fina que estava cuidadosamente dobrada sobre a cama,
se dirigindo ao banheiro. Distraída, abriu a porta sem bater e não encontrou resistência. Ao entrar no
banheiro, soltou um grito surpreso e deixou cair no chão a toalha e a nécessaire ao se deparar com
um Peter completamente nu, tentando enxaguar o shampoo em seus cabelos usando um pequeno balde,
com os olhos fechados. Recolheu as coisas do chão enquanto murmurava um pedido de desculpas e
saiu rapidamente do banheiro, a imagem do impressionante corpo masculino grudada
irremediavelmente em sua cabeça — especialmente a perturbadora visão do volume que repousava
relaxado e majestoso entre suas pernas. Voltou para o próprio quarto com as mãos trêmulas e sentou
em sua cama, sem saber o que fazer a seguir.
Um pequeno espelho descascado na porta do armário refletia sua imagem. Seus cabelos estavam
mais embaraçados que um ninho de ratos desordeiros, com restos duros do que parecia ser vômito
grudados em algumas mechas. As bochechas estavam rosadas pelo calor e a pele brilhava em alguns
pontos devido ao suor. Profundas olheiras escuras estavam instaladas sob seus olhos. Sua blusa azul
estava completamente amarrotada e suja, assim como a bermuda branca, e ela conseguia perceber
que o próprio cheiro não estava nada agradável. Claire não conseguia se lembrar de alguma vez em
que tivesse se encontrado num estado tão deplorável.
Enquanto se compadecia da própria aparência, ouviu a porta do banheiro ser aberta e depois a
porta do quarto de Peter ser fechada. Sabendo que não tinha outra opção, pegou novamente os itens
para seu banho e rumou para o banheiro. O cheiro dos itens de higiene de Peter ainda podia ser
sentido no ambiente e Claire suspirou, frustrada com o quanto ainda se sentia vulnerável na presença
dele. Virou-se para trancar a porta e descobriu que o trinco estava quebrado. Dando de ombros, se
despiu e entrou no espaço do box.
Olhou para o pequeno balde azul que Peter havia usado minutos atrás, mergulhado na tina
d’água. Um pouco desajeitada, encheu-o e derramou sobre o próprio corpo, percebendo que a
temperatura da água não era tão fria quanto ela gostaria para aplacar o intenso calor que sentia. Aos
poucos, molhou o corpo e os cabelos, estendendo a mão para o shampoo e passando-o generosamente
sobre os fios. Enxaguou duas vezes com o balde e repetiu o processo com o condicionador. Por
último, passou o sabonete pelo corpo.
A imagem do corpo nu de Peter naquele mesmo espaço que ela agora ocupava não saía de sua
cabeça. Inconformada, ela notou ao se ensaboar que estava excitada e limpou todos os vestígios
daquilo, furiosa com seu próprio corpo por reagir a ele assim. Por último, ensaboou o rosto,
finalizando o banho com o enxágue de três baldes de água. Olhou para a tina, que agora estava abaixo
da metade. Sentiu-se envergonhada com a quantidade de água que havia gastado e prometeu a si
mesma tentar ser mais econômica nos próximos banhos.
Enxugou-se com a toalha áspera e se enrolou nela para sair do apertado banheiro. No momento
em que abriu a porta, Peter saía de seu quarto, já vestido e perfumado. Eles se entreolharam por
alguns segundos no estreito hall e Claire fugiu constrangida em direção ao próprio quarto.
— Vou esperá-la na casa principal para o jantar — Peter respondeu, educado.
— Ok — Claire se limitou a responder, fechando a porta.

Às cinco para as oito, Claire cruzou o pequeno quintal nos fundos da casa. Usava um vestido
leve de algodão em um tom rosa pálido com delicadas estampas florais e uma sandália bege sem
saltos. Havia feito uma maquiagem bem discreta, tentando disfarçar as olheiras e realçando
levemente seus olhos cor de mel com uma camada de rímel. Seus cabelos ainda estavam úmidos e
caíam soltos, mal encostando nos ombros delicados. Ela se sentia quase bem novamente.
Ao entrar pela porta dos fundos, ouviu barulho de panelas na cozinha e vozes na sala de jantar.
Seguiu em direção às vozes e encontrou a mesa de oito lugares quase totalmente ocupada, restando
apenas um lugar vazio à frente de Peter. Reparou nos rostos das pessoas sentadas ali, conversando
animadamente em inglês, e por alguns momentos ela quase esqueceu a sensação de medo e tristeza
que a acompanhavam desde que havia colocado os pés em solo africano. O clima na mesa era alegre
e acolhedor.
— Seja bem-vinda! — Um simpático senhor, na casa dos cinquenta anos, se levantou e dirigiu-
se a ela sorrindo. — Peter nos contou que você estava terminando de se arrumar.
Claire olhou na direção dele, que mantinha um brilho divertido no olhar. Sorriu para o homem e
se sentou na cadeira que ele indicava.
— Me chamo Martin Wouters e sou coordenador desta missão. Sou belga, médico emergencista
e trabalho no MSF desde 1998, predominantemente em missões na África. Vou apresentá-la agora aos
outros colegas do grupo. — Um a um, ele foi indicando as outras pessoas sentadas à mesa. — Esta é
Lucy Byrne, enfermeira e natural da Irlanda — A simpática senhora, também na casa dos 50 anos,
levemente acima do peso ideal e com cabelos aloirados presos num rabo de cavalo, sorriu gentil.
Dando continuidade às apresentações, Martin apontou para uma moça jovem, na casa dos 30
anos:
— Esta é Violette Artis, médica pediatra francesa. — Claire acenou com a cabeça para a moça,
que devolveu o aceno. Notou que ela tinha um belíssimo rosto, emoldurado por cabelos castanhos
repicados que não chegavam ao seu queixo, com uma franja moderna cobrindo em parte sua testa e
expressivos olhos cor de avelã. Mesmo sentada, era possível perceber que tinha um biotipo delicado
e estava em boa forma.
Claire teve então sua atenção desviada para o rapaz jovem, negro e forte sentado ao lado dela
quando Martin o apresentou:
— Este é Sander Simons, médico emergencista holandês. — Sander sorriu calorosamente para
ela, acenando com a mão num cumprimento simpático.
Faltavam apenas dois homens, ambos na faixa dos 40 anos. Um deles era inglês e foi
apresentado como William Taylor e o outro era australiano, Henry Smith. Claire foi informada de que
ambos faziam parte da equipe de apoio logístico, responsável pelos suprimentos necessários à
realização do trabalho nos hospitais. Isso incluía equipamentos, instrumentos cirúrgicos,
medicamentos e insumos descartáveis como máscaras, luvas, material para curativos e similares.
— Eu sou Claire Hart, médica anestesista de Nova Iorque e essa é minha primeira missão —
Claire se apresentou, olhando para cada um dos rostos à mesa enquanto falava. — É um grande
prazer conhecer todos vocês.
Neste momento, Calaso chegou à mesa trazendo o jantar, que consistia num peixe assado com
batatas. Enquanto todos apreciavam a refeição e conversavam ruidosamente, Claire notava que com
frequência Violette encontrava uma forma de tocar em Peter. Tocava em suas mãos ao pegar a tigela
com a comida, tocava em seu ombro ao fazer algum comentário ou simplesmente mantinha seu corpo
bem próximo ao dele. Claire percebia em si mesma os sinais indubitáveis de ciúme e suspirou
impotente perante esta constatação. Em determinado momento, depois que a salada de frutas havia
sido servida como sobremesa, Claire notou que Violette se inclinou na direção de Peter e falou algo
em seu ouvido, arrancando dele uma risada. Levantando-se da mesa, pediu licença a todos e se
dirigiu aos fundos da casa.
Entrando no quarto, bateu a porta com mais força que o necessário e deixou seu corpo cair de
costas na cama, sem se preocupar em acender as luzes. Era inacreditável que ainda pudesse sentir
ciúmes de Peter. Decidindo que não deixaria que aquilo tirasse sua paz, Claire tirou o vestido, pegou
um baby doll de jérsei azul marinho na gaveta e vestiu-o. Escovou os dentes na minúscula pia do
banheiro e voltou ao quarto. Ainda estava acordada quando ouviu uma leve batida na porta de seu
quarto. Levantou-se e andou até lá, abrindo-a. Peter estendeu a ela o celular.
— Você esqueceu na mesa do jantar — ele informou.
— Ah, obrigada. Ele não está funcionando aqui, terei que procurar um lugar com sinal.
— O meu está. Não muito bem, mas está. Quer usá-lo?
Claire hesitou por um momento, pensando que não queria mais uma dívida com Peter.
Entretanto, a preocupação que podia estar gerando em sua mãe e em Margaret falou mais alto e ela
aceitou. Discou primeiro o número da mãe. Ela atendeu no segundo toque.
— Alô?
— Oi, mãe. Sou eu.
— Oi, Claire! — A voz do outro lado da linha era alegre. — Como você está?
— Estou bem. Mas o sinal aqui não é muito bom. Ficarei incomunicável pelos próximos dias.
— Mas onde você está? — Jenna soava confusa.
— Em Mogadíscio. — Claire achou a pergunta estranha. — Na missão, lembra?
— Ah, claro. Devo ter esquecido. Mas que bom que você está bem!
— Mãe, está tudo bem? — Claire notava que a mãe vinha esquecendo algumas coisas
importantes ultimamente.
— Tudo ótimo, não se preocupe. Cuide-se, meu amor! E volte logo.
— Cuide-se também. Um beijo. — Claire se despediu e desligou o telefone.
Olhando para Peter, perguntou constrangida:
— Importa-se se eu fizer mais uma ligação rápida?
— Pode fazer.
Ela então discou o número de Margaret, que atendeu no quinto toque:
— Sim?
— Margaret, sou eu. Claire — À menção do nome, ela notou que Peter levantou as sobrancelhas
com ar de curiosidade. Será que ele se lembraria do nome de sua amiga de colégio tantos anos
depois? — Só liguei para avisar que está tudo bem, mas meu telefone está quase sem sinal aqui.
— Claire! Graças a Deus, mulher! Eu estava quase parindo um filho de tanta preocupação. —
Margaret falava num tom bem alto e Claire pôde perceber que Peter tentava conter um sorriso,
provavelmente ouvindo tudo. — Como foi o voo? Você passou mal? Conseguiu dormir? Como são as
coisas aí? É seguro? — Margaret a bombardeava com perguntas e Claire achou melhor encurtar a
ligação.
— Margaret, eu estou bem, apenas cansada. Não poderei falar muito agora, mas tentarei ligar
novamente antes do meu retorno, ok?
— Ok, mas me responda apenas uma pergunta: o filho da puta do Peter está aí com você? — Ela
disparou e Claire percebeu que os olhos de Peter se estreitavam.
Não adiantava tentar disfarçar, então Claire simplesmente respondeu:
— Sim, esse inclusive é o telefone dele. Preciso desligar, Margaret.
— O telefone dele?! — ela berrou do outro lado da linha. — Como assim? Claire, você não fez
uma grande besteira, fez? Você deixou esse cara te seduzir outra vez?
O tom de voz dela beirava a histeria. Desesperada para encerrar a ligação, Claire respondeu
simplesmente:
— Claro que não. Nos falamos depois. Um beijo.
E desligou, entregando o telefone para Peter com uma expressão desconcertada. Ela realmente
não esperava que a amiga fosse agir com tamanha falta de discrição e bom senso. Ele pegou o
telefone das mãos dela e pareceu querer dizer alguma coisa. Claire esperou, sustentando seu olhar da
forma mais firme que conseguiu, dada a situação embaraçosa. Então, Peter deu de ombros e disse
apenas:
— Boa noite, Claire. Espero que consiga descansar.
Ele entrou em seu quarto, fechando a seguir a porta a centímetros do rosto dela. Plantada em pé
no hall, Claire se perguntava de que maneira ele conseguira fazê-la sentir como se a infantil e
irracional em toda aquela história fosse ela.
Trégua

Mogadíscio, 10 de novembro de 2012


NO DIA SEGUINTE, um sábado de muito sol e um calor quase insuportável, Claire permaneceu
a maior parte do tempo sozinha. Exceto no horário das refeições, em que Claire encontrou parte da
equipe à mesa e interagiu com eles, ela buscou a privacidade de seu quarto. Ela pouco viu Peter e
agradeceu por isso. Precisava mesmo de um pouco de distância.
Ao entardecer, ela decidiu conhecer a praia. Nos fundos do terreno, bem ao lado da pequena
casa que eles dois ocupavam, havia um portão de metal enferrujado que dava direto na areia. Claire
destrancou-o por dentro e o prendeu com uma pedra para que não se fechasse e a prendesse do lado
de fora. Ela usava um short jeans, camiseta regata vermelha e chinelos. Caminhou um pouco pela
larga faixa de areia em direção ao mar, notando no caminho a grande quantidade de lixo que havia
ali. Ao chegar perto da água, tirou os chinelos e deixou que as ondas molhassem seus pés, sorrindo
como uma criança que vê o mar pela primeira vez. Depois voltou para a areia fofa e se sentou,
observando que a mudança de cores no céu anunciava o pôr-do-sol.
Claire assistia ao espetáculo da natureza abraçando os próprios joelhos, com o queixo apoiado
neles. Distraída olhando para o horizonte e relaxando com o barulho das ondas, demorou a perceber
a presença de Peter. Surpreendendo-a, ele silenciosamente se sentou a seu lado em uma posição
semelhante à dela, mas com as pernas mais relaxadas, os braços envolvendo os joelhos semiabertos
e as mãos presas pelo punho. Assim permaneceram por longos minutos, uma brisa suave amenizando
o calor local e agitando os cabelos de ambos. Em determinado momento, Peter perguntou casual:
— Já está recuperada? — Claire olhou para ele sem entender, fazendo-o completar: — Do
enjoo e da enxaqueca.
Claire se lembrou do dia pavoroso que havia vivenciado na véspera. O mal estar físico havia
sido tão intenso que ela sequer conseguia se lembrar das coisas em detalhes, mas algo havia ficado
marcado: a gentileza de Peter, ajudando-a o tempo todo. Ela ainda tinha todos os motivos do mundo
para odiá-lo e não pretendia perdoar tudo o que ele havia feito a ela, mas precisava admitir que se
ele não tivesse estado ali ela não teria conseguido chegar a Mogadíscio inteira.
— Sim — ela respondeu. — Obrigada pela ajuda de ontem — ela completou, com um tom que
não disfarçou certa contrariedade. Ainda assim, ela percebeu que havia ficado um pouco mais fácil
demonstrar gratidão a ele.
— Não perguntei para ouvir agradecimentos — ele rebateu. — Você estava passando realmente
muito mal. Fiquei com medo de ser algo mais grave e não termos recursos mínimos para atendê-la
aqui.
Ela pareceu surpresa ao ouvir sobre essa preocupação da parte dele, mas depois se convenceu
de que seria a preocupação natural de qualquer médico frente a uma pessoa doente. Isso explicava
inclusive por que ele havia verificado o pulso dela no jipe. Sorriu sem humor e disse:
— Estarei bem daqui para frente, não precisa se preocupar. — Sem pensar muito, ela olhou para
ele com os olhos semicerrados e um sorriso no canto dos lábios e acrescentou bem humorada: — Ao
menos até a próxima vez em que precisar entrar num avião.
Neste momento Peter olhou de volta para ela, retribuindo o leve sorriso. Era a primeira
interação dos dois em que não havia uma tensão quase palpável e Claire não gostou da resposta que
percebeu em seu próprio corpo. Ele tinha a barba de alguns dias, os cabelos cobriam parcialmente
sua nuca devido à falta de corte e a camiseta preta que ele usava deixava à mostra os bíceps
generosos. Sentiu seu coração se acelerar e, de maneira involuntária, fixou seus olhos nos lábios
masculinos bem desenhados. As lembranças dos beijos quentes trocados no mirante em Jersey a
invadiram sem aviso. A seguir veio um flash da imagem do monumental corpo nu de Peter e na
mesma hora ela sentiu que corava.
Levantou-se quase num pulo, limpando a areia do short e murmurando algo sobre tomar banho
antes do jantar. Ele também se levantou, seguindo-a até a casa em silêncio. Chegando lá, Claire se
dirigiu ao próprio quarto e separou os itens para o banho. Notou que o banheiro estava vazio e bateu
à porta de Peter:
— Importa-se se eu tomar banho primeiro? — perguntou contra a porta fechada. Ele a abriu e
olhou para ela com uma expressão entre divertida e atrevida.
— Depende. Você vai deixar as coisas em pé de igualdade?
— Não entendi o que você quis dizer — ela respondeu com uma expressão confusa. Sem se
abalar, ele cruzou os braços e recostou o ombro no batente.
— Ontem você não se deu ao trabalho de bater na porta e me viu completamente sem roupa. Me
parece justo que fiquemos em igualdade neste sentido. Prometo que não farei nada diferente do que
você fez, vou apenas observá-la. — Quando terminou de falar, Peter olhou-a de cima abaixo, com um
olhar audacioso que parecia atravessar suas roupas.
Claire enrubesceu violentamente, rosnou algo como “vá para o inferno” e entrou no banheiro
batendo a porta. Lembrando-se de que não havia tranca, não conseguiu tirar a própria roupa. Por
alguns minutos, ela apenas ficou parada em pé, com as mãos apoiadas na pia e os lábios contraídos
de raiva, olhando para seu reflexo furioso no espelho e pensando no que deveria fazer. Neste
momento, Peter parou do lado de fora da porta:
— Não precisa ficar aí parada, Claire. Eu estava apenas brincando com você — ele dizia como
se pudesse vê-la do lado de dentro do banheiro. — Pode tomar seu banho sossegada. Eu não
invadiria a privacidade de uma mulher sem um convite.
Sem se dar ao trabalho de responder a ele, ela tomou seu banho rapidamente, saindo como um
foguete para o quarto enrolada na toalha. Vestiu-se com uma saia florida que chegava aos seus
tornozelos e uma blusa branca de alças. Aplicou uma maquiagem leve e caminhou até a casa
principal.
Ali já se encontravam Lucy, Martin e Sander. Eles conversavam sobre um caso que haviam
atendido naquele dia no hospital, de um menino que havia caído do telhado de uma casa e estava
internado em observação, ainda sonolento. Eles se preocupavam que pudesse ter havido uma
hemorragia subdural, o que poderia colocar a vida do garoto em risco.
— Mas o que mostrou a tomografia? — Claire perguntou automaticamente e imediatamente se
deu conta do erro. Constrangida, ela emendou: — Vocês não têm um tomógrafo aqui, têm?
— Não — respondeu Martin — E mesmo que tivéssemos, não teríamos como drenar a
hemorragia caso houvesse uma. Não temos um neurocirurgião na equipe, nem os recursos mínimos
para uma neurocirurgia.
— E nesse caso, o que fazemos? — Claire sentiu uma pontada de angústia.
— Administramos medicamentos para reduzir a pressão intracraniana, se houver sinais de
hipertensão, analgésicos... e torcemos para que não evolua com maior gravidade.
Nesse momento Claire entendeu perfeitamente o que aconteceria caso a situação evoluísse com
maior gravidade. O menino iria morrer. Respirou fundo, lembrando a si mesma que quando decidiu ir
para lá sabia que se depararia com este tipo de situação. Precisava se acostumar a essa ideia
rapidamente, caso desejasse concluir suas seis semanas de missão preservando minimamente sua
saúde mental.
Os outros membros da equipe foram se juntando a eles na sala de estar e continuaram
conversando sobre outros pacientes até que Calaso chamou a todos para se sentarem à mesa. Claire
não deixou de notar que Violette novamente deu um jeito de se sentar ao lado de Peter, que lhe
dispensava bastante atenção. Mais uma vez Claire sentiu a pontada de ciúme, mas tentou abafá-la
conversando animadamente com Sander sobre uma missão anterior que o médico havia feito pelo
MSF.
Após o jantar Sander, Peter, Violette e Henry retornaram à sala de estar, dessa vez levando
consigo garrafas de cerveja long neck. Sander convidou Claire para se juntar a eles, mas ela
gentilmente recusou e, assim como Martin, Lucy e William, se recolheu em seu quarto. Depois de
tirar a roupa e colocar o pijama, Claire se deitou e pegou seu livro de mistério, que estava
começando a ficar mais interessante.
Ao se dar conta de que era quase meia noite, interrompeu a leitura e rumou para o banheiro para
escovar os dentes. Na noite silenciosa, escutou risadas que entravam pelo basculante do box e
pareciam vir da praia. Claire aguçou os ouvidos e ficou imóvel, conseguindo reconhecer após alguns
segundos as vozes de Peter e Violette. Os dois conversavam, mas era impossível entender o que
diziam. Em determinado momento se fez um longo silêncio e imediatamente Claire deduziu que
poderiam estar se beijando. Ela escovou os dentes furiosamente e foi para seu quarto em seguida,
ligando o ventilador de teto na velocidade máxima e colocando o travesseiro sobre a cabeça, na
tentativa de abafar qualquer ruído que pudesse vir mais tarde do quarto ao lado.
Durante o domingo, Claire pouco viu Peter. Ele não tomou o café da manhã, durante o almoço
eles mal conversaram e no jantar ele novamente não apareceu. Era o dia de plantão diurno de
Violette no hospital e Claire também não a viu. Procurou se ocupar com seus livros e escreveu
algumas páginas de um pequeno diário que se propôs a manter para registrar os momentos mais
marcantes daquela experiência. Descreveu o lugar, as pessoas, mas fez questão de não mencionar a
confusão de sentimentos provocada por Peter. Adormeceu com facilidade, apesar da ansiedade pela
primeira visita ao hospital que ocorreria no dia seguinte.
Dayniile Hospital

Mogadíscio, 12 de novembro de 2012


CLAIRE HAVIA LEVADO um pequeno despertador de pilha, já que não sabia como seu celular
funcionaria em Mogadíscio. Programou-o para as 05h30min e quando ele tocou, levantou da cama em
um pulo. Uma mistura de medo e excitação tomava conta dela em função do primeiro dia de trabalho.
Vestiu uma bermuda de sarja bege, uma camiseta branca sem mangas e um tênis branco. Já havia sido
informada de que no hospital fazia muito calor e eles deveriam, portanto, usar roupas leves para ir
trabalhar. Penteou os cabelos e prendeu-os num rabo de cavalo, se dirigindo em seguida ao banheiro
para escovar os dentes e lavar o rosto. Peter saía do banheiro naquele instante, e sorriu para ela com
uma expressão relaxada. Ela acenou de volta com a cabeça e entrou no toalete.
Encontraram o restante da equipe na mesa de café da manhã. Todos conversavam ruidosamente e
Claire preferiu permanecer em silêncio, apenas ouvindo as conversas e respondendo quando se
dirigiam a ela. Por volta de sete horas, Taban chegou para levá-los ao hospital. Além do motorista,
foram para o jipe Claire, Peter, Martin e Violette. Martin ocupou o banco da frente ao lado de Taban
e os outros três se espremeram no banco de trás. Peter foi sentado entre as duas mulheres e, durante a
maior parte do trajeto, Violette foi conversando com ele, contando sobre fatos ocorridos nas semanas
anteriores e rindo. Vez ou outra apoiava a mão na coxa de Peter para enfatizar algo que estivesse
dizendo. Ele parecia totalmente à vontade com ela e ambos ignoraram Claire durante todo o percurso
até o hospital.
Ela aproveitou a oportunidade para reparar no caminho. Inicialmente percorriam as ruas da
periferia da cidade, saindo de Lido Beach em direção à região mais central. Chegaram a uma estrada
mais larga, que percorreram por alguns quilômetros, com construções dos dois lados da rua.
Passaram em frente à Universidade Internacional da Somália, um prédio baixo e antigo, com paredes
pintadas de salmão e um pequeno jardim mal cuidado na frente. Apesar de as ruas ainda
apresentarem pouco movimento naquele horário, eles cruzaram com alguns grupos armados com
rifles, tanto andando a pé quanto em veículos semelhantes àquele que ocupavam. Claire sentiu um
arrepio percorrer sua espinha diante daquela visão.
Depois que deixaram o que parecia ser o centro de Mogadíscio, a paisagem foi se tornando
mais árida e as construções mais precárias. Em diversos pontos do caminho avistavam-se os
acampamentos, que consistiam em locais que abrigavam refugiados oriundos de outras regiões da
Somália ainda mais afetadas pela fome e os conflitos armados. A estrada era de terra, o lixo se
acumulava em alguns trechos de suas margens. Chovia pouco naquela época do ano e a sensação
térmica passava de 40 graus ao longo do dia. Mesmo às sete da manhã, e com o vento empoeirado
constante gerado pela movimentação do veículo, ela sentia o suor se formando em suas têmporas e na
região de contato entre a pele e o banco emborrachado do jipe.
Por um longo tempo, só se via o solo seco, árvores baixas e esparsas, com seus galhos
retorcidos e poucas folhas, e alguns animais da agropecuária, todos muito magros. Claire já havia
visto muitas fotos, mas nada a preparou para testemunhar tudo aquilo ao vivo. Olhando ao seu redor,
teve a sensação de que adentrava um cenário de filme futurista, desses em que o planeta havia sido
majoritariamente destruído e só restava uma vastidão crua e estéril.
Após quase uma hora sacolejando no jipe, chegaram ao portão de entrada do Hospital Dayniile.
Taban estacionou o carro e todos desceram. No terreno arenoso era possível ver algumas árvores,
que ofereciam ao menos um pouco de sombra, e tendas se erguiam na parte externa. Enquanto
passavam por elas, Claire percebeu que funcionavam como espaços de armazenagem de suprimentos
e também abrigavam pacientes, deitados em macas improvisadas próximas ao chão de terra. Um piso
de cimento irregular com cacos de mármore e cerâmica era visto nos caminhos de acesso das áreas
externas e também dentro do hospital. As paredes eram pintadas de branco e estavam bastante sujas,
especialmente junto ao chão. Telhas verdes completavam o visual pouco convidativo.
Mesmo sendo ainda muito cedo, havia várias pessoas ali. Claire lembrou que a religião
predominante na Somália era a muçulmana quando viu quase todas as mulheres presentes vestidas em
burcas coloridas, algumas delas com crianças no colo. Além das mulheres, homens vestidos com
calça e camisa sociais e funcionários do hospital usando os pijamas verdes ou azuis completavam o
cenário de pessoas circulando no local. O ambiente era confuso, barulhento e um odor forte de urina
misturado a alguma outra coisa que Claire não soube identificar era sentido em ondas.
Martin os encaminhou para o interior do hospital:
— Venham, vou mostrar-lhes o nosso hospital.
Mostrou a eles o centro cirúrgico, composto por uma única sala onde havia uma mesa cirúrgica,
um monitor e um respirador portáteis e carrinhos para armazenar os suprimentos. Claire reparou que
não havia ali um carrinho de anestesia, aparelho que trazia maior segurança ao procedimento, e
pensou no quão desafiador seria trabalhar naquelas condições. Depois se encaminharam para uma
parte ambulatorial onde quatro consultórios eram separados por biombos. Eles eram compostos cada
um por uma mesa, duas cadeiras e uma estreita maca de exames, todos de ferro pintados de branco.
Havia ainda algumas alas que correspondiam a enfermarias, com pacientes deitados lado a lado
em camas hospitalares antigas e macas, sobrando quase nenhum espaço para circulação. Alguns
pacientes tinham frascos de soro conectados aos braços e pendurados em suportes enferrujados.
Havia vários pacientes ali aguardando cirurgias. Ela e Peter receberam os prontuários dos três
pacientes a serem operados naquele dia.
A primeira era uma mulher de 22 anos com graves queimaduras em um terço de sua superfície
corporal, ocorridas após a explosão de uma bomba próxima a sua barraca no acampamento. Seu
marido e seu filho de dois anos haviam morrido na explosão, ficaram sabendo pelo enfermeiro. O
segundo era um homem de 62 anos diabético com uma grave infecção no pé. A terceira era uma
mulher de 48 anos com colecistite aguda, uma inflamação na vesícula provocada pelo acúmulo de
cálculos. Depois de ler os prontuários, Claire se encaminhou para a enfermaria onde os pacientes
estavam internados aguardando o atendimento. Contando com a ajuda do enfermeiro do time local
para tradução, ela fez uma breve anamnese de saúde com os três pacientes e examinou-os.
Às nove e meia, Claire se dirigiu ao pequeno vestiário compartilhado por todos os profissionais
do hospital e trocou suas roupas pelo pijama do centro cirúrgico. Analisou o material disponível
para realizar a anestesia dos pacientes e traçou uma estratégia para cada um deles, considerando os
poucos recursos que possuía. Encontrou com Peter dentro do centro cirúrgico, já vestido e usando
uma touca sobre os cabelos. Ao ver a entrada dela, ele pediu ao enfermeiro da equipe local que
trouxesse a primeira paciente.
Faduma adentrou o centro cirúrgico com olhos arregalados e lábios trêmulos. Mais uma vez
contando com o tradutor, Claire procurou acalmá-la, fazendo um carinho em sua mão e usando uma
voz suave:
— Calma, não permitirei que sinta dor. Estarei ao seu lado o tempo todo durante a cirurgia, não
precisa ter medo.
Enquanto arrumava seu próprio material, Peter olhava intensamente para Claire, observando-a
tentar acalmar a paciente com extrema paciência e doçura. A expressão no rosto sério dele não dava
qualquer pista a respeito dos seus pensamentos.
Claire puncionou um novo acesso venoso em Faduma e injetou uma dose de tiopental, que a fez
dormir em poucos minutos. Administrou uma dose baixa de vecurônio, realizou a intubação com
destreza e acoplou a paciente ao pequeno respirador portátil disponível na sala. Aprofundou a
anestesia com maior dose de tiopental e cetamina, que eram as medicações disponíveis. Observou
enquanto Peter trabalhava com o auxílio de um enfermeiro do time local, realizando o
desbridamento[2] das feridas. Algumas delas já apresentavam sinais de infecção, o que preocupava a
todos.
A cirurgia levou quase três horas e ao final Faduma estava coberta por diversos novos
curativos, limpos e secos. Claire conseguiu despertá-la sem dificuldade e orientou que ela avisasse
caso sentisse dor, deixando os analgésicos prescritos. Eles fizeram uma pequena pausa no estar
médico[3] improvisado. Foi trazida uma garrafa de café e Peter se serviu em um pequeno copo
plástico. Olhando para Claire, comentou:
— Então você continua sem gostar de café. Eu realmente achei que isso mudaria com o tempo.
O que surpreendeu Claire foi o fato de ele se lembrar de que há 13 anos ela havia dito que não
gostava.
— Continuo não gostando. Não consigo nem sentir o cheiro. — O tom dela era amigável e
repetiu a mesma careta que havia feito naquele pequeno restaurante italiano em Jersey. Peter riu
divertido, olhando para ela.
— Você fez um belo trabalho com essa anestesia — comentou ele, num tom respeitoso. — Vi
que os recursos eram bem limitados, mas a paciente passou por todo o procedimento bastante estável
e acordou sem sinais de dor. — Ele parecia realmente admirado.
— Você também fez um excelente trabalho — Claire admitiu. — Foi preciso, rápido e quase não
houve sangramento. Fiquei impressionada.
Os dois se olharam por alguns minutos. Percebendo que o clima começava a se tornar íntimo
demais, Claire levantou e se espreguiçou, sugerindo:
— Vamos chamar o próximo?

O restante do dia transcorreu sem maiores incidentes. Operaram o segundo paciente, que
infelizmente precisou sofrer uma amputação. A infecção em seu pé tinha atingido um grau tão
avançado que seria impossível preservá-lo. A cirurgia levou pouco mais de uma hora e eles pararam
então para almoçar, por volta de duas da tarde. Comeram no refeitório, junto com alguns
funcionários. Depois da refeição, retornaram ao centro cirúrgico para operar a última paciente do
dia. A situação era pior do que parecia, com muito pus na cavidade abdominal. O que era para ser
um procedimento simples acabou levando mais de duas horas. A paciente saiu relativamente bem,
mas inspirava cuidados.
Eram quase cinco da tarde e Claire se sentia mais cansada que depois de um plantão intenso de
24 horas numa emergência de Manhattan. Reuniram-se a Martin e Violette no pátio do hospital,
aguardando a chegada de Taban. Às cinco e quinze Taban surgiu com o jipe e todos se acomodaram,
mantendo os mesmos lugares ocupados no caminho de ida.
Dessa vez, o trajeto foi feito em silêncio. Todos pareciam cansados e estavam perdidos em seus
próprios pensamentos. Até mesmo Violette parecia mais reservada, se limitando a sorrir para Peter
esporadicamente. Chegaram à casa um pouco depois das seis e foram direto para seus quartos. Ao
chegarem ao hall, Peter ofereceu:
— Quer tomar banho primeiro? — Percebendo a hesitação de Claire diante da menção ao
banho, Peter completou: — Claire, eu peço desculpas pela brincadeira ontem. Nós somos colegas de
profissão e parceiros nessa missão, nada além disso. Tenho esse jeito brincalhão, gosto de tirar as
pessoas da zona de conforto e às vezes acabo não controlando o que digo. Mas nesse caso foi muito
inapropriado e gostaria que você apenas esquecesse aquilo. Não tenho nenhum interesse em você
além do profissional e nem tive a intenção de deixá-la constrangida.
Ela sabia que deveria estar aliviada pelo comentário, mas naquele momento tudo o que
conseguiu sentir foi uma mistura de frustração e orgulho ferido. Ele deixava muito claro mais uma
vez que ela não o atraía e que a brincadeira tinha acontecido apenas pelo mau hábito dele de gostar
de constranger as pessoas. Tentou não deixar transparecer seus sentimentos e deu um sorriso seguro.
— Ótimo, Peter. É bem melhor assim.
Ela então pegou no quarto o que precisava e se dirigiu ao banheiro para mais um dos banhos
pouco confortáveis com os quais começava a se acostumar.
Ciúmes

Mogadíscio, 25 de novembro de 2012


AOS POUCOS UMA rotina foi se estabelecendo. Claire entendeu que os outros profissionais
trabalhavam por escala, se revezando no hospital e nas campanhas realizadas nos acampamentos e
outros locais da cidade. Violette atendia as crianças na ala pediátrica, principalmente por cólera e
desnutrição, e participava da vacinação nos locais mais populosos. Lucy auxiliava Violette quando
necessário e supervisionava o trabalho dos enfermeiros locais treinados. Sander e Martin atendiam
no hospital, tanto os pacientes internados como as emergências, e também participavam de
campanhas em outros locais da cidade. Henry e William supervisionavam o estoque de suprimentos,
conversavam com as equipes para identificar as necessidades e faziam o trabalho de articulação com
as centrais de distribuição. Era nítido que o trabalho era organizado de forma muito otimizada e que
os recursos limitados eram aproveitados ao máximo.
Como Claire e Peter haviam sido trazidos com um propósito específico, o de tentar reduzir a
fila de pacientes que aguardavam por uma cirurgia, eles trabalhavam de segunda a sábado no hospital
Dayniile, maior unidade local do MSF. Operavam os pacientes eletivos e também algumas
emergências que eventualmente surgiam. Em alguns dias mais cheios, chegavam a fazer sete cirurgias
de pequeno a médio porte.
Operavam apendicites, colecistites, diverticulites, mas a parte mais dura era quando operavam
os feridos. A guerra era implacável e aos poucos destruía não apenas as construções, mas
principalmente as pessoas. Eram amputações traumáticas, lacerações extensas, queimaduras, pessoas
baleadas. Muitas vezes os pacientes eram crianças, e isso tornava o trabalho ainda mais difícil.
Alguns sobreviviam e recebiam alta, o que era muito comemorado por toda a equipe. Outros não
resistiam e eles tentavam ao menos aliviar a dor e o sofrimento, oferecendo alguma dignidade
àquelas pessoas, mesmo que fosse apenas em seus últimos momentos de vida.
Em geral chegavam em casa exaustos, tomavam banho, jantavam e iam dormir. A convivência
com os outros membros do time era leve e agradável e Claire começava a se afeiçoar a cada um
deles. Até mesmo Violette, que a enervava pelo comportamento atirado que mantinha com Peter,
havia ganhado o respeito e admiração dela pela maneira como cuidava dos pequenos pacientes. Seu
carinho e sua paciência com as crianças eram enternecedores. Ela e Peter pareciam cada vez mais à
vontade na presença um do outro e Claire percebia os olhares fascinados que Violette direcionava a
ele. Entretanto, precisava admitir que não havia presenciado nenhum comportamento impróprio por
parte de nenhum dos dois em público. Preferia não pensar no que faziam quando estavam longe dos
olhos do grupo.
Aos domingos, dia de folga de Claire e Peter, ela gostava de dar curtas caminhadas na praia,
onde por vezes tentava se exercitar um pouco, de conversar com os colegas na sala de estar da casa
principal ou de permanecer em seu quarto na companhia de um livro. Aproveitava também o dia livre
para lavar suas roupas e limpar o próprio quarto.
Depois do diálogo na porta do banheiro, Peter havia se mantido extremamente respeitoso com
Claire. Era gentil e solícito durante o trabalho, fazia questão de demonstrar o quanto a admirava
como anestesista, mas não havia feito mais qualquer comentário ou brincadeira num nível pessoal.
Passada a decepção inicial, Claire admitia que a situação era muito mais confortável e apropriada
desta maneira.
No terceiro domingo, depois de duas semanas de trabalho intenso no hospital, o dia amanheceu
com um sol intenso. O calor era quase insuportável, com a sensação térmica beirando os 45 graus.
Num impulso, no fim da tarde, Claire decidiu colocar um biquíni e dar um mergulho no mar. Saiu
pelo portão dos fundos e andou até a beira da água. Ali despiu a camiseta larga que havia vestido por
cima da roupa de banho e testou a temperatura da água. Estava gelada e, frente ao calor que
ameaçava sufocá-la, parecia o paraíso. Como o mar naquele dia parecia mais agitado, ela não quis
correr riscos e se manteve próxima a areia, abaixando o corpo quando as ondas vinham e deixando
que a cobrissem, se sentindo feliz como uma criança.
Permaneceu no mar por quase uma hora. Decidiu que já estava abusando e era mais prudente
retornar para casa, ainda que a praia estivesse quase deserta. Quando começou a fazer o caminho de
volta pela areia, depois de vestir a blusa e calçar os chinelos, reparou que Peter e Violette estavam
sentados na areia conversando, à direita da casa. Estavam tão entretidos que não notaram a presença
dela, que não estava assim tão próxima a eles. Quando estava quase chegando ao portão, não resistiu
a lançar mais um olhar na direção do casal e viu quando Violette pousou a mão na coxa de Peter, bem
próxima à parte mais íntima de sua anatomia, se aproximando para dizer algo em seu ouvido.
Perturbada, Claire cruzou o portão e foi diretamente para seu quarto. Sentou-se em sua cama e
comprimiu as têmporas com os dedos, perguntando-se como era possível que sentisse uma dor quase
física ao ver os dois juntos e imaginar o que mais estariam fazendo. Decidiu tomar um banho rápido,
apesar do medo do que poderia ouvir pela janela do banheiro. Mas, para seu alívio, tudo que
chegava aos seus ouvidos pelo basculante eram risadas altas ocasionais.
Quando terminou de se vestir, seu estômago fazia ruídos ameaçadores e ela decidiu jantar. Ao
chegar à mesa, cumprimentou a todos polidamente e desviou os olhos de Peter e Violette, que mais
uma vez se sentavam lado a lado. Pareciam ter vindo direto da praia. Comeu em silêncio, levemente
irritada pelas conversas animadas ao seu redor. Ao terminar de comer, pediu licença e se levantou.
Quando cruzava o quintal, ouviu a voz de Peter chamando-a. Virou-se e viu que ele caminhava em
sua direção. Sem nenhum ânimo para conversar, ela voltou a se encaminhar para o próprio quarto.
Em poucos passos ele a alcançou.
— Você está bem? — Havia uma leve sombra de preocupação em seu rosto.
— Estou ótima, apenas cansada. — Ela deu de ombros, sem parar de andar.
— Você não parecia bem durante o jantar. Gostaria de conversar?
Tendo chegado à porta da casa menor, Claire parou e se virou de frente para ele. Nas últimas
semanas o clima entre eles havia adquirido um tom de quase camaradagem, por isso não era
surpreendente que ele demonstrasse preocupação. Parecia algo apropriado, considerando que
passaram praticamente todas as horas de seu tempo acordado juntos nos últimos 15 dias e sua
sintonia profissional era excelente.
— Peter, estou apenas cansada. Teremos um longo dia pela frente amanhã. Não precisa se
preocupar comigo, ok? Estarei perfeitamente apta a realizar todos os procedimentos.
Parecendo um pouco confuso com as palavras dela, ele começou a argumentar:
— Mas eu não estava preocupado com... — Fez uma pausa, parecendo pensar melhor e desistir
do que ia dizer. — Deixe para lá. Se precisar de algo me avise. Boa noite.
Ela o viu entrar em seu quarto e fechar a porta. Suspirando, entrou em seu próprio quarto
experimentando mais uma vez a sensação desagradável de que estava agindo de modo infantil e
desproporcional.
Perdas e ganhos

Mogadíscio, 26 de novembro de 2012


QUANDO CHEGARAM AO hospital de Dayniile na manhã seguinte, foram imediatamente
encaminhados para o leito de Faduma. Claire havia se afeiçoado a ela. Visitava-a diariamente para
checar seu controle de dor e as duas conversavam por alguns minutos quando podiam contar com a
ajuda de um intérprete. Como nem sempre havia um disponível, Claire aprendeu a palavra xanuun,
que significava dor em somali, e conseguia ao menos saber sobre esse aspecto todos os dias.
Já haviam repetido o procedimento de desbridamento na semana anterior e o fariam novamente
hoje, mas ela não estava nada bem. O enfermeiro do time local os levou até ela, gesticulando e
falando nervosamente num inglês tão confuso que eles tinham dificuldade de compreender. Pelo que
foi possível decifrar, um dos ferimentos dela havia necrosado durante o final de semana e ela
apresentava sinais de sepse, uma infecção generalizada.
Ao chegarem até lá, viram que ela respirava com dificuldade, estava quase inconsciente e
sudoreica. Claire pediu que aumentassem a quantidade de soro e eles se prepararam no centro
cirúrgico. Ela foi levada para lá de maca e Claire realizou rapidamente o procedimento de intubação.
Peter desfez os curativos e identificou que a lesão da perna direita tinha um aspecto muito
preocupante. Lavou e desbridou o local, mas a infecção já tinha chegado até o osso.
Faduma instabilizou ainda mais e Claire a desacoplou do respirador portátil, começando a
ventilá-la com o ambu, dispositivo de assistência ventilatória manual. Viu desesperada quando o
monitor continuou a mostrar a queda progressiva da pressão e da frequência cardíaca, mesmo com o
soro que ela pedia ao auxiliar para apertar sob pressão para dentro de suas veias. Ali não havia CTI,
drogas para manter a pressão arterial ou outros recursos que pudessem salvar Faduma. Os batimentos
foram reduzindo até que o monitor exibisse apenas uma linha reta. Enquanto ventilava a paciente,
Claire ordenou:
— Peter, inicie a massagem cardíaca. Rápido! Não podemos perdê-la.
Ele o fez, mesmo sabendo que seria inútil. Enquanto apertava o ambu de maneira coordenada
com a massagem cardíaca, Claire repetia incessantemente:
— Por favor, não faça isso. Por favor! Volte, volte...
Reanimaram Faduma por quase 20 minutos, até que Peter parou com a massagem e olhou para
Claire com os olhos cheios de dor.
— Claire, chega. Ela se foi.
Lágrimas de impotência invadiram os olhos de Claire. Mesmo tendo assistido à morte de outros
pacientes na Somália, aquela moça tinha se tornado especial para ela. Os olhos que no início
refletiam apenas medo, com o passar do tempo começaram a expressar carinho e confiança. E Claire
sentia como se tivesse falhado com ela.
Ela puxou o tubo de sua boca, deixou de lado o ambu que havia usado para ventilar a paciente e
fez um breve carinho na testa de Faduma, numa silenciosa despedida. Com a ponta dos dedos, fechou
cuidadosamente os lindos olhos cor de ébano que nunca mais veriam a luz do dia e a seguir cobriu a
própria boca com as mãos para abafar um soluço. Saiu da sala do centro cirúrgico no momento em
que as lágrimas começaram a correr incontrolavelmente pelo seu rosto.
Peter a encontrou minutos depois no estar médico. Claire estava sentada com os cotovelos
apoiados sobre os joelhos e a cabeça baixa. Ele se sentou a seu lado e passou um braço sobre seus
ombros, em silêncio.
— Não quero ouvir que eu preciso me acostumar, que isso é normal neste tipo de trabalho e que
eu preciso ser forte — ela informou ríspida, levantando a cabeça e olhando para a parede em frente,
com um olhar vazio.
— Eu não ia dizer nada disso — ele rebateu, num tom de voz gentil. — Na verdade, eu não
pretendia dizer nada. Mas se tivesse que dizer alguma coisa, eu diria que só consigo imaginar o quão
difícil foi para você porque foi difícil pra caralho para mim também.
Ele raramente dizia palavrões. Ela olhou para o rosto dele e não estava preparada para o que
viu ali. Uma tristeza profunda nublava o rosto bonito, aliada a uma expressão de impotência e
desamparo que espelhava a dela própria. Como não esperava encontrar tanta empatia nele, tanto nas
palavras como nas atitudes, se entregou a um impulso e o abraçou. Ele retribuiu o abraço e eles
permaneceram assim por longos minutos, aproveitando o amparo que somente quem experimenta uma
dor de iguais proporções é capaz de oferecer ao outro.
Depois que conseguiram se recompor, Peter e Claire concluíram a agenda de procedimentos do
dia sem conversar muito. Ambos estavam perdidos nos próprios pensamentos e assimilavam como
podiam o evento do dia. No jantar, Peter contou sobre o ocorrido e eles receberam um comovente
apoio de todos que ali estavam. Não houve nenhuma atitude condescendente ou tentativa de
minimização. Apenas apoio incondicional e abraços calorosos.
Após o jantar, Violette surpreendeu Claire ao chamá-la para a sala de estar. Ainda que se
sentisse um pouco desconfortável na presença da pediatra, incapaz de deixar de pensar na relação
que ela aparentava estar estabelecendo com Peter, Claire assentiu e sentou-se ao seu lado no sofá.
Violette segurou suas mãos buscando transmitir conforto.
— Imagino que tenha sido muito difícil para você perder Faduma. Era nítido o quanto tinha se
afeiçoado a ela.
Claire apenas assentiu, olhando-a nos olhos e percebendo na outra um genuíno pesar.
— Foi sim. Não sei se algum dia conseguirei me acostumar.
Violette ofereceu-lhe um sorriso compreensivo.
— Eu te entendo. Trabalho em missões do MSF há 4 anos. Essa é minha terceira. E posso dizer
que até hoje não me acostumei. — Ela recostou, olhando para a janela com expressão pensativa. —
Sabe o que costuma me ajudar? Mesmo quando não consigo salvar a vida de uma criança, penso que
ao menos eu pude estar ali. Pude oferecer alguma dignidade a ela, e de alguma forma acolher sua
família. Deve ser muito triste morrer sozinho. Ou mesmo perder um filho sem ter alguém que possa te
abraçar enquanto você chora.
Claire refletia sobre aquelas palavras, encarando-a. Aquilo fazia sentido. Violette prosseguiu:
— Não sou de bancar a Poliana. Também não gosto de me vangloriar das coisas que eu faço.
Mas a verdade é que enquanto boa parte do mundo está imerso em seus problemas pessoais, vivendo
suas vidas sem perder o sono pensando nos mais vulneráveis, nós estamos aqui. Não somos melhores
que ninguém, mas estamos aqui. Mesmo sem poder fazer tudo que gostaríamos, eles sabem que
podem contar conosco.
Claire sentiu os olhos úmidos. Viver aquela experiência ao mesmo tempo tão gratificante e tão
devastadora era algo transformador. Ela só conseguia pensar no quanto era um privilégio poder estar
ali e participar de tudo aquilo, por maior que fosse seu sofrimento em alguns momentos.
— Você tem razão, Violette. — Sorriu para ela. — Obrigada por me mostrar isso.
Violette sorriu de volta.
— Você é uma ótima médica. Vejo a forma competente e carinhosa com que trata a todos. Os
pacientes têm muita sorte de estar sob seus cuidados. Nunca se esqueça de que no final, todos nós
ganhamos mais do que perdemos.
Depois de um abraço breve, Violette sorriu e se dirigiu ao próprio quarto. Por mais que ainda
se incomodasse com a forma como Violette se atirava na direção de Peter e eles pareciam cada vez
mais próximos, precisava admitir que a pediatra não estava fazendo nada de errado ao demonstrar
interesse por um homem solteiro e, acima de tudo, era uma ótima pessoa. Sorrindo sozinha e
balançando a cabeça, dirigiu-se ao próprio quarto para dormir.

A rotina de trabalho na Somália era ao mesmo tempo muito recompensadora, pois sentiam todos
os dias a gratidão daqueles que só tinham a eles com quem contar, e extremamente desafiadora. Era
desgastante não apenas do ponto de vista emocional, mas também físico. Longas horas de trabalho,
apenas um dia de descanso semanal, condições precárias para a prática médica, um clima
devastadoramente quente e um longo deslocamento diário por um caminho bastante desgastante eram
uma combinação bastante difícil de se enfrentar.
No final da quarta semana deles no hospital, haviam acabado de operar uma paciente com uma
enorme hérnia da parede abdominal e se preparavam para ir embora quando o enfermeiro local
adentrou o centro cirúrgico informando que havia chegado uma emergência. Jamilah era uma mulher
na casa dos 30 anos, bastante emagrecida, que estava em trabalho de parto. Apesar de que ali não era
uma unidade materno infantil, não haveria tempo para transferi-la. Após um exame rápido, Peter
identificou que o bebê estava no início do canal de parto, mas que sua cabeça era grande demais e
ele provavelmente estava entrando em sofrimento. Jamilah estava em trabalho de parto há quase 24
horas e os riscos eram enormes.
Violette estava atuando numa campanha de vacinação e não haveria tempo de esperá-la chegar
ao Hospital Dayniile para prestar assistência ao bebê. Claire rapidamente submeteu Jamilah a uma
raquianestesia, paralisando seu corpo abaixo da cintura para permitir a cesariana. Depois que a
paciente estava anestesiada, em movimentos rápidos Peter realizou a cirurgia, retirando de dentro do
útero de Jamilah uma menina.
A criança tinha os lábios e as extremidades roxos e estava com o corpinho inerte. Claire viu que
tinha batimentos cardíacos e realizou com movimentos precisos a aspiração das vias aéreas e a
secagem vigorosa do bebê, rezando para que fosse o suficiente. Não havia ali máscaras ou tubos do
tamanho apropriado caso o bebê precisasse ser ventilado.
Com os procedimentos básicos, a menina finalmente chorou e Claire sentiu as lágrimas de alívio
invadindo seus olhos. Cortou a parte proximal do cordão umbilical e enrolou-a numa manta para
mostrá-la à mãe. Jamilah chorava de felicidade e balbuciou mahadsanid, que Claire sabia que
significava “obrigada”. A mãe então se dirigiu ao enfermeiro do time local e fez uma pergunta a ele
em somali. Ele olhou para Claire e respondeu dizendo o nome da médica. Jamilah então disse mais
uma frase em somali, só que desta vez olhando para Claire, que a olhava de volta curiosa:
— Ela disse que a filha dela vai se chamar Claire — traduziu o enfermeiro, com um sorriso
largo.
Sem conseguir conter a emoção, Claire agradeceu em somali a Jamilah pelo maravilhoso
presente. Peter assistia a tudo aquilo com uma expressão emocionada, enquanto terminava a sutura.
Concluída a cirurgia, Jamilah e a filha foram levadas à enfermaria e Claire e Peter foram se
trocar. Assim que entrou no vestiário, Claire irrompeu numa crise de choro, ainda em pé, e foi
abraçada por Peter. Ele puxou seu rosto contra o peito e acariciou os cabelos dela, murmurando
palavras de conforto. Quando ela conseguiu se acalmar, olhou para ele e ambos estavam muito
conscientes da enormidade do que tinha acontecido. Aquela mãe e aquele bebê estavam fadados à
morte se eles não estivessem ali. Graças a eles, duas vidas vulneráveis haviam sido salvas.
— Você é uma pessoa maravilhosa, Claire. — Ele manteve uma expressão séria, acariciando o
rosto úmido dela, ambos muito próximos um do outro.
— Você também é — ela respondeu com sinceridade.
Eles permaneceram em pé, olhando nos olhos um do outro, transportados para outra dimensão.
Claire se sentia aprisionada naquele tom profundo de azul que transformava seu corpo em um
maremoto de sentimentos. Seu coração acelerou e a respiração ficou mais curta, escapando pelos
lábios entreabertos como se precisasse fugir sorrateiramente de seu peito. Peter desviou os olhos
para sua boca, a expressão no rosto másculo mudando gradualmente até transparecer algo indefinido
que fez com que Claire prendesse o ar, cada músculo seu retesado em expectativa.
Nesse momento, Peter segurou sua nuca e puxou seu rosto para perto do dele com uma urgência
quase violenta enquanto seu outro braço puxava o corpo dela pela cintura. Foi um beijo sôfrego,
faminto, retribuído com a mesma intensidade. Ambos pareciam precisar de algo que os fizesse
lembrar que estavam vivos. Claire sentia como se estivesse num turbilhão, o coração disparado, seu
corpo inteiro querendo se fundir ao dele quando, subitamente, Peter se afastou.
Atordoado, ele passou a mão pelos cabelos. Virou de costas e caminhou pelo vestiário sem
olhar para ela, parecendo extremamente desconcertado. Ela tocou os próprios lábios, levemente
inchados e sensíveis pela violência do contato. Parecendo arrependido, Peter se virou para ela e
começou:
— Claire, me desculpe. De verdade. Isso não deveria ter acontecido. Foi um impulso e...
— Peter, chega. Não precisa falar mais nada. — Ouvi-lo se desculpar e demonstrar
arrependimento por tê-la beijado doía quase como uma agressão física e ela não suportaria mais
nenhuma palavra. Preferindo ela mesma acabar com a chama recém-acesa em seu coração, concluiu:
— Nós dois agimos por impulso, tenho certeza de que foi a emoção do momento. Confundimos as
coisas e colocamos no meio a admiração que temos um pelo outro como profissionais. É claro que
não deveria ter acontecido e não vai acontecer mais. — Ela garantiu, tentando recolher os cacos de
sua dignidade.
Ele pareceu aliviado com a resposta dela e aquilo só fez o aperto em seu peito aumentar.
Imaginando como ela podia permitir que ele ainda a fizesse sentir-se assim, ela ignorava que esse
tipo de escolha não é comandada por bom senso ou instinto de preservação. Sentimentos assim
invadem, arrebatam e nocauteiam, queiramos ou não.
Trocaram de roupa e passaram para ver Jamilah e a bebê, que passavam bem. Taban os
aguardava no pátio, tendo sido informado do motivo do atraso deles. Passava das sete quando
chegaram em casa. Seguiram sua rotina de se encaminharem juntos para casa nos fundos do terreno,
mas dessa vez num silêncio profundamente constrangido. Durante o jantar, o restante do grupo os
parabenizava pelo sucesso no parto da menina e ambos recebiam as congratulações com sorrisos
discretos e poucas palavras. Claire notou que até mesmo Violette parecia mais contida em relação a
Peter. As coisas pareciam estar mudando mais rápido do que ela conseguia processar e Claire não
tinha ideia do que aconteceria a partir dali.
Depois do episódio do beijo no hospital, Peter passou a evitar Claire sempre que podia. Ela
mal o via fora do hospital e, mesmo durante o trabalho, o clima de amizade havia desaparecido. Ele
continuava sendo gentil e educado, mas se mantinha distante.
Era como se seu passado estivesse voltando para assombrá-la. Aquela rejeição a fez se lembrar
de outra, treze anos antes, que mudou para sempre sua vida.
Desilusão – Episódio 1

Jersey City, 1999


NO SÁBADO SEGUINTE, Peter a surpreendeu quando a buscou em casa com um carro antigo,
ao invés da moto. Sorria quando se aproximou dele, mas em seu rosto havia uma expressão
interrogativa.
— É da minha mãe. — Ele sorriu.
Claire deu de ombros, beijou-o levemente nos lábios e entrou no carro. No caminho, começou a
tocar no rádio In these arms, do Bon Jovi. Ela sorriu quando reconheceu a canção e comentou
distraída:
— Adoro essa música. É a minha preferida do Bon Jovi.
Peter sorriu de volta para ela e comentou casualmente:
— É uma boa música. Poderá ser a nossa música, pequena.
Nossa música. Claire corou levemente, ainda digerindo o fato de que agora ela e Peter
Templeton tinham a música deles. E ainda por cima Peter tinha usado o apelido carinhoso pelo qual
havia começado a chamá-la nos últimos encontros. Claire estava muito próxima do céu.

Eles foram à lanchonete que costumavam frequentar e depois da refeição Peter seguiu o já
familiar caminho até o parque onde ficava o mirante. Ao estacionarem o carro, ao invés de se
encaminharem ao canto isolado do mirante onde costumavam ficar, Peter a guiou ao banco de trás do
carro. Claire sentou no banco, se sentindo um pouco tensa por saber o que os casais costumavam
fazer nos bancos de trás dos carros.
Em todos os encontros desde aquele primeiro beijo, Peter havia se mostrado um perfeito
cavalheiro. Seus beijos eram intensos, ela acreditava ter visto em algumas ocasiões sinais da
excitação dele através do tecido da calça, mas ele não havia feito nada além de beijá-la e abraçá-la.
Ao mesmo tempo em que Claire queria mais, ela ainda não se sentia preparada. Já estava com quase
dezessete anos, sabia estar completamente apaixonada por Peter, mas ainda não se sentia pronta para
se entregar a ele.
Ele inicialmente apenas a abraçou, ajudando-a a relaxar. Conversaram um pouco, as costas dela
apoiadas contra o peito dele, seu quadril posicionado entre as pernas masculinas. Por algum motivo
que ela não conseguia compreender, ele parecia estar naquela noite tão pouco à vontade quanto ela, o
que não fazia nenhum sentido. Ele certamente tinha uma vasta experiência sexual e aquele tipo de
situação no banco de trás de um carro deveria ser tão comum para ele como era para ela tomar
sorvete.
Após um momento de silêncio, Peter começou a beijar lentamente o lóbulo de sua orelha,
descendo por seu pescoço e fazendo-a suspirar, excitada. A mão dele, que estava pousada sobre a
barriga de Claire, começou uma lenta subida em direção ao seu seio, acariciando a pele macia e alva
sob a blusa. O corpo de Claire retesou-se levemente, mas ele continuou beijando seu pescoço e ela
tinha dificuldade de raciocinar.
Quando a mão dele chegou ao seu sutiã, Claire estava entregue e nem sequer se lembrou do
enchimento que colocava todos os dias ali. Ao senti-lo pousar a mão em seu seio e puxar o sutiã para
baixo para tocá-lo, notou tarde demais que ele perceberia imediatamente que não era realmente seu
seio que ele estava tocando. Viu desesperada quando ele tirou a mão de debaixo de sua blusa
segurando o enchimento acolchoado. Claire tentou pensar em algo para dizer, mas seu cérebro
parecia ter sofrido uma pane. Ele soltou-a e ela se virou de frente para ele, com uma expressão de
pânico e vergonha. Para seu maior desespero, sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e então
baixou a cabeça.
— Ei — ele chamou, segurando seu queixo.
— Desculpe... — ela murmurou, mantendo a cabeça baixa e sentindo que a primeira lágrima
escapava de suas pálpebras fortemente cerradas.
— Não precisa se envergonhar, ok?
Ela se manteve em silêncio, com o rosto ardendo e uma vontade de sumir dali. Por que ela não
poderia simplesmente ter o corpo lindo e maduro que tantas meninas da sua idade tinham? Por que
ela tinha que ser magricela e sem graça, a ponto de precisar deste tipo de artifício para atrair um
homem?
O baile seria no dia seguinte e ela não sabia sequer como iria encará-lo depois daquilo.
Parecendo ler seus pensamentos, ele olhou com firmeza para ela, fazendo-a levantar o rosto e olhar
para ele:
— Vamos esquecer que isto aconteceu, está bem? O baile é amanhã. Vou buscá-la às oito.
Quero que você fique bem bonita e se sinta maravilhosa.
Ela assentiu, ainda muito constrangida. Ele entregou a ela o enchimento e ela se virou de costas
para ele a fim de recolocá-lo no lugar, naquele que era até então o momento mais embaraçoso de sua
vida.
Eles retornaram aos bancos dianteiros e ele dirigiu para a casa dela em silêncio. Em alguns
momentos, ele olhava para ela com um misto de pena e alguma outra coisa mais sombria que ela não
sabia identificar.
Ao se despedirem, o olhar dele se tornou frio ao perceber a presença de seu pai na porta da
casa. Ela saiu do carro reunindo toda a dignidade que conseguiu e entrou em casa. O dia seguinte
seria o grande dia e ela não permitiria que o evento de hoje nublasse sua felicidade.

O sábado foi um dia cheio. Pela manhã, Claire foi ao dentista. Como seu tratamento ortodôntico
estava em vias de ser concluído, ela havia conseguido convencer o profissional a remover seu
aparelho fixo poucas semanas antes do prazo previsto, para que pudesse comparecer sem ele ao
baile. Claire estava ansiosa para fazer esta surpresa a Peter.
Depois do almoço, foi ao cabelereiro onde fez uma hidratação e um belo penteado, além de
pintar as unhas. Ao chegar em casa, tomou um longo banho. Como já eram sete e quinze, Claire
colocou o vestido longo verde com um decote em V discreto, comprado numa das lojas mais caras da
cidade e ajustado para caber em seu corpo esguio. Completou o visual com sandálias douradas de
salto de tiras finas, brincos da mesma cor e uma discreta gargantilha. Sua amiga Margaret estava
encarregada de sua maquiagem, e fez um trabalho bastante razoável copiando instruções de um
tutorial numa revista.
As cinco para as oito Claire estava pronta. Olhou-se no espelho e se surpreendeu com o que viu.
A menina feia e sem graça que ela era tinha começado a desabrochar ao longo das últimas semanas e
chegava a seu ápice hoje. Ela ainda era baixa, mais magra do que gostaria, não tinha as curvas
sensuais esbanjadas por outras garotas. Mas seu olhar agora era diferente, sua expressão era
confiante, seu sorriso brilhava sem o aparelho, realçando seus belos lábios, e ela se sentia... bonita.
Sabia que devia a Peter muito desta transformação e mal podia esperar para aparecer assim ao lado
dele.
Claire se sentou na sala para aguardá-lo e seus pais elogiaram sua aparência. Jenna uniu as
mãos junto ao rosto, emocionada em ver como a filha estava diferente e bonita. Aquele rapaz estava
realmente fazendo muito bem a ela. Jason manteve sua expressão séria habitual, mas murmurou
palavras de apreciação. Margaret estava radiante pela amiga e esperava ansiosamente a chegada de
Peter sentada a seu lado. Ela não havia sido convidada por nenhum rapaz do último ano para o baile
e nenhuma garota teria a coragem de aparecer lá sozinha. Mas Margaret estava tão radiante por
Claire que parecia que era ela mesma a estar naquela posição privilegiada.
Às oito e meia, Claire começou a se preocupar. Tentou ligar para o celular dele, mas chamava e
ninguém atendia. Decidiu aguardar um pouco mais, a cada minuto que passava ficando mais ansiosa.
Coisas horríveis começaram a passar por sua cabeça. Ele poderia ter sofrido um acidente com a
moto ou o carro de sua mãe. Algo poderia ter acontecido a algum membro da família dele.
Às nove e meia ela tinha certeza de que algo muito grave estava acontecendo. Sem saber o
endereço dele ou contato de seus familiares e amigos, Claire decidiu ir ao único lugar onde
acreditava que poderia ter notícias dele: o baile de formatura. Margaret imediatamente se levantou
para acompanhá-la, sem sequer se dar ao trabalho de trocar a roupa que usava. Seus pais foram
contra, mas, pela primeira vez, ela os enfrentou. Pegou sua bolsa dourada e foi até a rua chamar um
táxi, com Margaret em seu encalço.
Ao chegar ao baile, Claire mal notava os rostos felizes e as risadas. Tentava reconhecer algum
rosto familiar, alguém que conhecesse Peter e pudesse lhe dar notícias dele. Estava tentando abrir
espaço na multidão quando sentiu Margaret puxando seu braço na direção oposta.
— Vamos embora, Claire. Agora. — Ela estava pálida.
— Não, Margaret. Preciso saber o que aconteceu com ele.
— Claire, por favor... — Margaret implorava, com os olhos marejados.
Então ela se virou e viu. Vestido em um smoking, Peter abraçava uma loira do último ano que
Claire conhecia de vista. Mesmo a certa distância, era possível notar que ele estava alcoolizado,
gesticulando e dançando de forma estranha na pista de dança. A loira ria e tocava os lábios dele com
os dedos. Ele olhou para ela, puxou seu rosto e a beijou ostensivamente, arrancando aplausos dos
amigos que os cercavam. Claire estava paralisada, sentia como se uma faca tivesse sido cravada em
seu peito. Seu estômago revirava como se fosse sair pela boca. Margaret tentava desesperadamente
tirá-la dali, mas Claire permaneceu por longos minutos imóvel, apenas observando a cena. Ouvia a
música Believe, da Cher, tocando em alto volume, mas era como se viesse de um lugar muito
distante.
Em dado momento, Peter olhou em sua direção. Ele pareceu demorar alguns segundos para
reconhecê-la e, quando o fez, permaneceu olhando fixamente para ela, com sua eterna expressão
impenetrável. Num impulso, Claire caminhou até ele com passos supreendentemente firmes. Ele
manteve o braço ao redor da loira, mas não tirou os olhos de Claire. Com um olhar que revelava a
devastação que ela sentia, Claire o encarou e perguntou simplesmente:
— Por quê?
Por um segundo, ela pensou ter visto um lampejo de tristeza e arrependimento no olhar
embaçado pela enorme quantidade de álcool ingerido, mas ele foi rapidamente substituído por uma
expressão feroz que ela nunca tinha visto.
— Por que o quê, Claire? — O tom era mais alto do que o necessário apesar da música
ambiente. Todos ao redor olhavam para eles, mas Claire sequer notava.
— Por que você fez isso comigo?
— Você quer mesmo saber? Vou te contar então. — Ele fez uma pausa para dar um longo gole na
bebida contida em um cantil prateado que guardava na parte interna de seu smoking. Limpando a
boca com a manga do blaser ele disparou: — Era uma aposta, Claire. Meus amigos duvidaram que
eu conseguiria comer uma virgem antes da noite do baile de formatura e esnobá-la no dia da festa.
Vasculhamos as turmas à procura de uma que fosse, sem qualquer sombra de dúvida, uma virgem e
você foi a eleita.
Ela olhava para ele com um misto de incredulidade, raiva e nojo. Percebendo o tipo de reação
que provocava nela, continuou:
— Foi muito fácil conquistar você. Derreteu-se por mim desde nosso primeiro encontro. Você
era uma menininha inocente, caindo de quatro como uma idiota. É patético que você tenha acreditado
no meu papo de que estava cansado de garotas fúteis e queria alguém como você. — Neste momento,
ele olhou para a loira voluptuosa que mantinha a seu lado como um troféu. — Quanta ingenuidade sua
acreditar que viria comigo ao baile. Você realmente acha que eu trocaria alguém como ela por uma
garota feia e sem graça como você? — Ele deu uma risada forçada, cruelmente acompanhada por
todos que observavam a cena.
Uma expressão de dor cruzou o rosto de Claire. Ela sentiu como se a faca que estava enterrada
em seu peito tivesse sido torcida e seus olhos a traíram, marejando. O fato não passou despercebido
a Peter e ela notou que neste momento uma sombra escureceu os olhos azuis. Ele virou na boca o
resto da bebida em seu cantil de uma só vez e continuou mordaz, enquanto Margaret mantinha
arregalados os olhos cheios de lágrimas, a mão cobrindo a própria boca. Seus soluços impotentes
ecoavam atrás de Claire:
— Só que nós não fomos até o final, não é, pequena Claire? Eu desisti da aposta, mesmo
sabendo que iria facilmente ganhá-la. E você sabe por quê? Porque simplesmente não valia a pena o
sacrifício. Ter que ficar beijando uma garota magricela de aparelho nos dentes por algumas semanas
foi o máximo que eu consegui suportar. Não tinha certeza sequer se eu conseguiria ficar duro vendo
você sem roupa, depois da amostra que tive. — Ele então se dirigiu à pequena plateia que os
assistia: — E olha que não costumo ter nenhum problema com essa parte! — completou, fazendo um
gesto vulgar de projetar o quadril para frente e levantar o antebraço na direção da própria virilha,
simulando uma ereção exagerada.
Gargalhadas e assobios ecoaram ao redor deles e a loira, sem cerimônia, fez um movimento
afirmativo com a cabeça e segurou com a mão a genitália de Peter por fora da calça, olhando para ele
provocante como se confirmasse o que ele acabara de dizer. Ele inclinou o quadril na direção dela,
simulando o movimento de um ato sexual. Aquilo parecia um filme de terror para Claire e, não
satisfeito, ele olhou para ela com crueldade e desprezo, apontando para seu corpo com um
movimento do queixo antes de complementar: — Mas a situação ali, meus amigos, é pior do que
vocês podem imaginar.
Mais risadas e piadas em relação a ela. Claire imediatamente se lembrou da situação com o
enchimento ocorrida na véspera e seu rosto queimou. Aquela era uma humilhação sem precedentes.
Ela agora usava cada resquício de autocontrole para não permitir que as lágrimas que queimavam
seus olhos corressem pelo seu rosto e os soluços escapassem. Sua garganta doía pelo esforço, mas
ela não daria a ele aquele último prazer. Percebendo que ela continuava imóvel e em silêncio, Peter
pareceu desconcertado. Ofereceu seu último ataque:
— Acabaram seus dias de conto de fadas. Agora você pode voltar ao seu insuportável e tedioso
mundo real, garota. Vá chorar no colo do papai. É melhor você ir embora e deixar as pessoas
interessantes se divertirem. — Ele puxou para mais perto de si a loira e beijou-a vulgarmente.
Após o beijo, ela se agarrou ao seu pescoço e encarou Claire com uma expressão vitoriosa.
Como ela continuava imóvel, Peter prosseguiu, parecendo estranhamente angustiado:
— O que você ainda está fazendo aqui, Claire? Caso você ainda não tenha entendido, eu te
dispensei. Você me perdeu. Quer que eu desenhe? — Risadas resultantes de excesso de bebida e
ausência de empatia continuavam explodindo ao redor dos dois, mas ela mal ouvia. Os sons
ambientes, a voz de Peter, tudo parecia distorcido e cercado por um crescente zumbido.
Claire respirou fundo e olhou bem dentro dos olhos dele por alguns segundos, ainda tentando
absorver a mais covarde e cruel desilusão de sua vida. Ela simplesmente não conseguia entender a
mistura de raiva, arrogância e o que pareceu a ela uma longínqua sombra de culpa que havia no rosto
dele. Sem desviar os olhos por um segundo sequer, lançou a ele um olhar de desprezo e disse:
— É impossível perder aquilo que nunca se teve, Peter. Sinto informar, mas quem perdeu
alguma coisa aqui foi você. Algo muito valioso e que você claramente nunca mereceu.
Ela não esperou por uma reação da parte dele. Simplesmente virou as costas e saiu, com toda a
dignidade que o momento lhe permitia, seguida por Margaret. Por esse motivo, ela não viu a
expressão mal disfarçada de dor no rosto de Peter, que precedeu uma risada artificial e o movimento
de puxar novamente a loira para um beijo.
Tiroteio

Mogadíscio, 16 de dezembro de 2012


FALTAVA UMA SEMANA para o término da missão e sentimentos mistos tomavam conta de
Claire. Ao mesmo tempo em que sentia saudades de casa, estava triste por ter que sair do lugar que
ela aprendera a amar, sabendo que provavelmente nunca mais veria as pessoas que conhecera ali. Ela
voltaria ao conforto e à segurança de Manhattan, mas aquelas pessoas continuariam ali, enfrentando
diariamente a fome, a miséria, a falta de assistência médica de qualidade e a violência da guerra.
Entretanto, não via a hora de reencontrar Margaret e sua mãe. Queria poder novamente desfrutar do
conforto de seu apartamento, dormir em sua própria cama e tomar um bom banho em seu chuveiro.
Ansiava por voltar a ter todos os recursos para exercer seu trabalho com alta eficiência, ainda que
sentisse uma pontada de culpa por tudo isso.
E o mais importante era que poderia manter distância de Peter. A situação entre os dois havia
chegado a um patamar quase insustentável. As lembranças do quanto ela havia sido magoada por ele
retornavam com força total, mas vinham misturadas a uma forte atração e um desejo perverso de
coisas impossíveis. As defesas que ela havia construído no período que se sucedeu à maior decepção
de sua vida estavam ameaçadas. Ela voltou a se perceber vulnerável e isso a apavorava.
A verdade é que, por mais difícil que tenha sido lidar com toda a dor e a humilhação que sofreu,
ela amadureceu mais naquele curto período de tempo do que na maior parte dos anos que tinha
vivido até ali. As decepções amorosas são capazes de abalar profundamente nossas estruturas, mas
também têm o singular poder de nos reerguer mais fortes. O problema é que muitas vezes essa força
vem de muralhas que construímos ao nosso redor, que não selecionam que tipo de sentimentos
mantém à distância. E o preço de viver na segurança dessa fortaleza pode ser bastante alto, como
Claire bem sabia.
Ela se lembrou de como cuidadosamente construiu suas defesas. Recordou seu retorno à escola
na semana seguinte ao baile, de cabeça erguida apesar dos olhares e comentários maldosos que
recebia. Lembrou-se de que não voltou a se esconder atrás de roupas largas e de que, por uma grande
ironia, pouco tempo depois do ocorrido seu corpo finalmente começou a se modificar. Seus seios
cresceram e assumiram um belo formato arredondado de tamanho médio, seu quadril alargou e,
mesmo ainda sendo magro, seu corpo ganhou curvas suaves que não passaram despercebidas aos
rapazes do colégio. Peter nunca soube de nada disso, pois foi aprovado em uma universidade na
Califórnia e se mudou logo após a formatura. Ela nunca mais o tinha visto desde o dia fatídico do
baile.
Durante o restante do ensino médio, Claire recebia frequentes convites para encontros, mas
recusava todos. Estava decidida a se concentrar nos estudos e buscar o único sonho que dependia
apenas dela mesma: sua profissão. Foi aprovada para cursar medicina em Harvard e se mudou para
Boston, onde viveu durante os anos de faculdade e residência. Neste período, teve alguns
relacionamentos breves, mas nunca houve entrega da parte dela.
Sua primeira experiência sexual foi com um colega de turma da faculdade com quem namorou
por poucos meses. Era um relacionamento confortável e previsível, mas Claire pôs um fim a ele
quando percebeu por parte de Ralph o desejo de ir além. No dia em que ele começou a falar sobre
casamento, Claire teve certeza de que precisava acabar com aquilo antes que ele acabasse muito
magoado. Ela não tinha nenhuma vontade de se casar com ele e sabia que jamais teria.
Depois dele, desfrutou de alguns relacionamentos casuais e esporádicos que nunca passavam de
alguns poucos encontros, sempre encerrados por ela. Peter havia conseguido arruinar sua capacidade
de se permitir sentir algo mais forte por alguém. Claire se corrigiu imediatamente: sentir algo mais
forte por alguém que não fosse ele, o que estava ficando cada vez mais claro dada a forma como ela
vinha reagindo durante a missão. Essa constatação só fazia com que ela tivesse mais vontade de fugir
para qualquer lugar onde ele não estivesse, apavorada com o que poderia acontecer a seguir.

Era domingo. Como quase tinha perdido a hora do jantar por causa de um cochilo à tarde, Claire
inverteu sua rotina e deixou para tomar seu banho depois. Por volta das nove horas, entrou no
banheiro com sua toalha e sua nécessaire, pensando que em breve poderia usar um chuveiro
novamente. Lavou o corpo e os cabelos, feliz com a observação de que já conseguia ser bem mais
econômica em relação à agua.
Quando estava terminando de se enxugar, ouviu um ruído ensurdecedor vindo da parte externa,
como uma explosão. Assustada, enrolou o corpo na toalha e se encolheu no chão do banheiro, com os
olhos arregalados e as mãos tremendo. Em seguida, começaram novos sons, que ela reconheceu como
sendo de tiros. Outras explosões se sucederam rapidamente, como num filme de guerra. Ela estava
em pânico, seu corpo inteiro tremia e seus batimentos cardíacos eram tão intensos que ela tinha a
impressão de que podiam ser ouvidos por qualquer pessoa que ficasse próxima a ela.
Nesse momento, Peter abriu a porta do banheiro vestindo apenas um short e localizou-a ali,
encolhida no chão em posição fetal. Aproximou-se dela e a puxou para o próprio quarto, fechando a
porta em seguida.
— O que está acontecendo? — A voz dela falhou pelo nervosismo.
— Não sei. Mas tenho certeza de que, com essa quantidade de tiros, coisa boa não é. — Ele
puxou-a para a cama, que ficava num canto do quarto.
Deitou-se com ela ali, abraçando-a, e Claire se sentiu mais segura. Estava comovida com a
iniciativa dele de procurar por ela para tentar protegê-la. Continuaram ouvindo os sons por mais
algum tempo, mas eles pareceram ficar gradualmente mais distantes até que cessaram. Foi só quando
começou a relaxar um pouco que Claire se deu conta de que estava usando apenas uma toalha fina e
curta ao redor do próprio corpo.
A luz suave da lua penetrava através das cortinas e ela pôde perceber que suas coxas estavam
completamente à mostra, encaixadas nas de Peter que ainda a abraçava por trás. Ela sentiu algo se
avolumando rígido contra seus quadris e seu próprio corpo respondendo imediatamente. Seus
mamilos se contraíram e ela percebeu que ficava molhada, o meio de suas pernas parecendo a ponto
de entrar em ebulição. Decidiu que aquela situação estava ficando constrangedora demais. Começou
a virar o corpo, na intenção de se levantar. Só que, ao fazer esse movimento, não conseguiu segurar a
toalha a tempo e um de seus seios acabou ficando à mostra, próximo ao rosto de Peter.
Mortificada, Claire se levantou de um salto, tentando desastradamente segurar a toalha que se
abriu ainda mais e revelou a maior parte de seu corpo, inclusive a região com pelos claros entre suas
pernas. Peter também parecia constrangido, apesar de não conseguir tirar os olhos do corpo dela. Ele
tentou se levantar para dizer alguma coisa, mas ao fazê-lo tornou óbvia sua volumosa ereção sob o
short de tecido fino e a situação ficou ainda pior.
Claire soltou um gemido angustiado e saiu do quarto de Peter tropeçando nos próprios pés.
Entrou em seu quarto, encostando as costas na porta após fechá-la com uma batida, o coração aos
saltos e a respiração acelerada. Podia ser uma reação masculina normal ao ver um corpo feminino
nu, mas era inegável que Peter tinha ficado sexualmente excitado por ela. A constatação fez com que
Claire sentisse um misto de prazer e medo, pois ela estava definitivamente muito mais suscetível a
ele do que gostaria. Como ainda seria capaz de enfrentar uma semana de convivência diária depois
disso?
E se...?

Mogadíscio, 17 de dezembro de 2012


NO DIA SEGUINTE, ao chegar à casa principal para o café, Claire foi surpreendida por uma
movimentação bem diferente da habitual. Malas estavam arrumadas na sala e as pessoas pareciam
bastante agitadas. Ela logo descobriu o motivo.
— Ontem à noite eclodiu um forte conflito em Mogadíscio, tenho certeza de que vocês ouviram
os sons de tiros e bombas. — Martin se dirigia a ela e a Peter, que havia acabado de entrar na sala.
— O MSF já deixou claro que a condição para manter nosso trabalho aqui é que os hospitais devem
ser zonas neutras, não podendo em nenhuma hipótese ser alvo de ataques de qualquer natureza.
Ele guardava algumas coisas dentro de uma caixa e continuou, olhando para baixo enquanto
trabalhava:
— Ainda assim, ontem o hospital de Dayniile foi atacado pelo grupo paramilitar. Dois
funcionários locais e seis pacientes foram feridos durante o ataque. Isso é inadmissível e eu estou
decretando a suspensão da nossa missão. Todos nós retornaremos para casa hoje, estamos desde a
madrugada providenciando a logística de transporte. — Ele fez uma breve pausa na arrumação.
Olhando para Peter e Claire, ele complementou: — O voo de vocês será o primeiro e parte em
poucas horas. Peço que arrumem suas coisas o quanto antes para que Taban possa levá-los ao
aeroporto.
Claire sentia um misto de choque, decepção e alívio. Peter permaneceu em silêncio e sua
expressão era dura. Ele parecia compreender mais rápido que ela o que aquilo significava: os
habitantes de Mogadíscio ficariam ainda mais abandonados à própria sorte. Não apenas eles dois
iriam embora, mas todos. Mesmo sendo algo devastador para a população local, era função do líder
de equipe garantir a segurança dos profissionais e ele estava certo em determinar a interrupção da
missão.
Ambos retornaram aos seus quartos após tomar o café rapidamente e arrumaram suas malas.
Depois que tudo havia sido guardado, Claire olhou em volta com tristeza e nostalgia, tentando
memorizar os detalhes do lugar que havia sido seu lar pelas últimas semanas. Mesmo com toda a
falta de conforto, pobreza e insegurança, havia ali uma beleza que ela não saberia explicar, e apesar
de tudo as lembranças que levaria seriam boas.
Claire e Peter se despediram calorosamente de cada um dos membros do time. O abraço que
Calaso lhe deu, com os olhos marejados, partiu o coração de Claire. O que seria daquelas pessoas?
Foram então levados ao aeroporto por um Taban taciturno e angustiado. Ao se despedirem dele
e agradecerem por tudo o que ele havia feito, ele desabafou:
— Eles não entendem. — Ele se referia aos guerrilheiros. — As pessoas não têm culpa, elas
não merecem isso. Essa é uma guerra sem vencedores, que só traz dor e sofrimento à Somália. Existe
muita gente boa no mundo, disposta a ajudar. Como vocês. Mas também existe muita gente ruim, que
cresce num ambiente adoecido e não consegue viver de outra forma que não seja através da
violência.
As sábias palavras de Taban calaram fundo em Claire e Peter.
— Eu deixo parte do meu coração aqui com vocês — respondeu Claire, emocionada. — Sei que
o que fizemos não foi muito e espero realmente um dia voltar para cá e fazer mais. Enquanto estiver
lá nos Estados Unidos, vivendo da forma privilegiada que vivemos, não esquecerei vocês e o que eu
vivi aqui. Pretendo me engajar cada vez mais nessa causa e buscar maneiras de ajudar o seu povo.
Lágrimas corriam pelo rosto de ambos, enquanto se olhavam de mãos dadas. Peter observava a
cena com um olhar desolado. Despediu-se de Taban com um abraço apertado e a recomendação de
que o rapaz se cuidasse, como se isso fosse algo possível de se pedir numa situação como aquela.
Eles então se dirigiram ao balcão da companhia aérea para despachar as bagagens. Foi uma
sorte terem conseguido um voo com tão pouca antecedência, mas levariam mais de 40 horas até
conseguir colocar os pés em Nova Iorque. Teriam novamente uma rápida conexão em Djibuti após
um voo de duas horas, e voariam então para Istambul. Lá permaneceriam por 20 horas, chegando
perto de 19h e saindo no dia seguinte às 15h20min.
Depois de entregarem suas malas, se dirigiram ao setor de embarque. Passaram pela segurança,
aguardaram em frente ao portão e às 09h40min já estavam dentro da aeronave. Peter notou a
apreensão de Claire, pois aquele era um avião bastante similar ao do voo de ida, onde Claire havia
vivido alguns dos piores momentos de sua vida.
— Ei — ele chamou, afagando sua mão. — Aquilo não vai se repetir, ok? Você estava cansada
de quase 30 horas de viagem, com uma crise de enxaqueca e sem se alimentar direito. A viagem de
volta não será tão ruim e teremos mais tempo em Istambul para nos refazer antes do último voo.
De alguma forma, as palavras de Peter fizeram sentido e conseguiram acalmá-la. O voo não foi
nem de longe tão ruim quanto o da ida e, no voo de cinco horas entre Djibuti e Istambul, ela
conseguiu inclusive dormir.

Chegaram a Istambul no horário previsto, por volta de 18h30min. O MSF havia reservado para
eles um hotel no próprio aeroporto, assim como haviam feito em Doha. Peter estava há um bom
tempo olhando o próprio celular, enquanto eles aguardavam as bagagens. Em determinado momento
ele se voltou para Claire, falando num tom que pareceu a ela algo entre indeciso e empolgado.
— Ficaremos quase 24 horas aqui. — Ele voltou a olhar para próprio telefone. — Esse hotel do
aeroporto fica a aproximadamente 40 minutos do centro da cidade. Não sei quanto a você, mas eu
não conheço Istambul.
— Eu também não conheço. — Ela estava curiosa para saber onde ele queria chegar.
— Pois é. Existem boas opções de hotel no centro da cidade. Poderíamos alugar um carro e
passar a noite lá. Teremos algum tempo para fazer um pouco de turismo antes do voo de amanhã. —
Depois de uma breve pausa, em que parecia tentar adivinhar os pensamentos dela, ele concluiu: —
Não sei quanto a você, mas eu estou precisando me refazer das intensas emoções que vivemos nas
últimas semanas. Já que ficaremos presos em Istambul até amanhã, pode ser uma boa ideia aproveitar
o tempo aqui e descomprimir um pouco. O que acha?
Milhares de pensamentos passaram pela cabeça de Claire em segundos. Claro que seria
adorável conhecer Istambul, mas seria uma ideia completamente idiota fazer isso na companhia de
Peter? Quando ele assumia aquela personalidade gentil e sedutora, o passado parecia ficar num lugar
distante demais para ser importante. E isso era extremamente perigoso.
E se ela acabasse cedendo? E se ele a magoasse novamente? Mas e se ela dissesse “não” e
passasse o resto da vida se arrependendo disso? O risco de se destruir de vez estava ali,
escancarado na sua frente, metendo o dedo em sua cara. Mas a esterilidade emocional que resulta do
excesso de segurança pode levar as pessoas a decidirem, de maneira acertada ou não, que sentir dor
é melhor que não sentir nada.
Olhando agora para ele à sua frente, sendo invadida pelo mesmo turbilhão de sensações
maravilhosas que ele a fez experimentar há 13 anos e recordando o vazio emocional que resumiu
todo o período depois disso, ela decidiu que precisava descobrir. Ela precisava voltar a sentir.
— Sempre tive vontade de conhecer Istambul. — Ela respirou fundo e sorriu.

Alugaram um carro sedan escolhido por Peter e saíram rumo ao centro da cidade, sem reservas
em hotel nenhum. Ambos riam ao comentar que caso não houvesse vagas, teriam que percorrer todo o
caminho de volta até o hotel do aeroporto ou se contentar em dormir num banco de praça.
Já era dezembro, e a temperatura era fria. Fazia em torno de 9 graus, e ambos se arrependeram
por não terem trocado suas roupas leves ainda no aeroporto. Rodaram pelo centro da cidade,
encantados com a arquitetura e com o charme excêntrico do lugar. Avistaram um simpático hotel,
extremamente bem localizado e com uma fachada discreta e elegante. Pararam próximo a ele e se
dirigiram à recepção rindo, numa corridinha por causa da temperatura gelada com a qual não estavam
mais acostumados. Um atendente moreno de bigode estava atrás do balcão e olhou curioso para o
casal, que se vestia de forma totalmente inapropriada para a época do ano.
— Pois não. Em que posso ajudá-los? — ele perguntou, em um inglês com sotaque carregado.
— Gostaríamos de saber se ainda têm vagas para esta noite. — Peter apoiou os braços no
balcão.
— Ah, sim. — O homem consultou o computador à sua frente. — Desejam uma suíte de casal?
— Não, duas suítes separadas — respondeu Peter, sem hesitação, provocando um ligeiro
desapontamento em Claire.
— Pois não — O recepcionista continuava procurando em seu sistema. — Tenho agora apenas
duas suítes disponíveis. Um estúdio e uma suíte com terraço.
— Vou querer os dois — Peter informou.
O recepcionista pegou as informações deles para o check-in e forneceu os cartões de acesso
dos quartos. Ambos voltaram ao carro para pegar as malas e então se dirigiram ao elevador. O hotel
havia sido recentemente reformado, mas conservava as características arquitetônicas originais. No
passado tinha abrigado um hammam, os tradicionais prédios de banhos turcos. Alguns elementos
foram mantidos após a reforma, como o piso de parquet e o pé direito alto, mas contava também com
mobiliário moderno e elegante, assim como todas as facilidades encontradas em hotéis de bom
padrão.
O estúdio ficava no segundo andar e a suíte com terraço no quinto. Quando o elevador parou no
segundo, Claire fez um movimento para sair do elevador. Peter a interrompeu.
— Espere. Você fica na suíte com terraço — ele ofereceu, gentil.
— De jeito nenhum. Tudo isso foi ideia sua e eu sequer paguei a minha parte ainda. Você fica na
suíte maior. — Ela sorriu e fez novamente menção de sair, mas Peter a impediu, decidido.
Ele colocou o cartão da outra suíte na mão dela e saiu do elevador olhando para trás apenas
para dizer:
— Nos vemos daqui a pouco.
A segunda chance

Istambul, 17 de dezembro de 2012


ERAM 20H E Claire sentia-se ansiosa como uma adolescente prestes a ter seu primeiro encontro.
Curiosamente no caso dela, a pessoa com quem teria o encontro essa noite era exatamente a mesma
de seu primeiro. Forçando-se a não se lembrar do passado e aproveitar aquela noite, ela colocou a
mala sobre um banco. O quarto e o banheiro eram espaçosos e o terraço tinha uma linda vista da
cidade. Tudo isso aliado à temperatura fresca, aos lençóis macios e cheirosos e à visão de um
chuveiro quente a fizeram quase chorar de emoção. Tomou um longo banho, deixando que a água
caísse livremente em suas costas por bastante tempo, decidindo que pelo menos hoje não se sentiria
culpada por isso.
Depois passou um creme hidratante no corpo para ajudar a amenizar os efeitos do clima
africano sobre sua pele, secou os cabelos, aplicou uma maquiagem um pouco mais caprichada que o
habitual, realçando seus olhos. Optou pelo vestido de linho verde que havia decidido trazer, mas
como estava frio, colocou por cima um casaco off white que ia até seus joelhos. Completou o visual
com uma meia calça cor de pele para ajudar a protegê-la do frio, sapatos scarpin em tom marfim e
um cachecol em tons de verde. Olhou-se no espelho depois de pronta, percebendo que o sol africano
havia bronzeado sua pele e deixado suas bochechas com um leve tom rosado, além de ter clareado
mais seus cabelos. Considerou que estava realmente bonita. Pouco tempo depois, o telefone do
quarto tocou e Claire atendeu, sabendo que só podia ser Peter.
— Sim? — respondeu animada.
— Pronta para se divertir? — Ele acompanhava sua empolgação.
— Prontíssima!
— Estou passando aí então.
Cinco minutos depois, Peter bateu à sua porta. Ele vestia uma calça preta, um suéter cinza claro
que parecia extremamente macio e levava nas mãos uma jaqueta de couro, que a fizeram imaginar se
ele ainda dirigia uma moto. Sorriu para ele e, depois de pegar uma pequena bolsa também marfim,
Claire acompanhou-o até o elevador. Despediram-se do recepcionista e saíram para o ar gelado da
noite de Istambul.

Peter havia pesquisado na internet e descoberto que um dos melhores restaurantes da cidade
estava localizado próximo ao hotel deles. Por ser uma segunda-feira, deram a sorte de conseguir uma
mesa vaga. Decidiram ir andando até lá. A região onde o hotel ficava era realmente privilegiada, a
pouco mais de 500 metros da Avenida Istikal. Caminharam pela bela avenida, por onde passavam
pedestres e bondes, admirando seus prédios históricos e a atmosfera vibrante do lugar.
O Mikla era um sofisticado restaurante com uma belíssima vista. Através de seus enormes
painéis de vidro, o visual da cidade iluminada era de tirar o fôlego. Optaram por um menu de preço
fixo com degustação de três pratos e ambos se encantaram com os sabores exóticos. Durante a
refeição, dividiram uma garrafa de vinho e conversaram como dois velhos amigos. Claire contou
sobre a experiência dos anos em Harvard, falou sobre como foi morar em Boston e sobre como sua
amizade com Margaret desde a época do colégio tinha apenas se fortalecido. Contou ainda sobre
como era trabalhar no Memorial Hospital e sobre sua rotina simples e confortável.
Repetindo um padrão do passado, Peter ouviu muito mais que falou. Fazia algumas perguntas
interessadas e escutava com atenção tudo que Claire dizia. Todas as vezes que ela tentava fazer
alguma pergunta sobre a vida dele, Peter respondia de forma superficial, desviando o assunto
novamente para ela. Em determinado momento, Claire estava contando sobre uma passagem de sua
infância em Pittsburgh e a expressão no rosto de Peter mudou. Ele se tornou subitamente taciturno e
seu olhar se desviou do dela. Percebendo a mudança, Claire perguntou:
— Tudo bem?
Ele pareceu demorar alguns segundos para retornar ao presente, como se estivesse longe dali.
Então sorriu e respondeu:
— Tudo bem. Vamos pedir a conta?
Peter fez questão de pagar pela cara refeição e eles voltaram para a noite cada vez mais fria de
Istambul. Depois de caminharem um pouco, passaram na porta de um pub e Peter parou, segurando o
braço dela.
— Ainda não são nem onze horas. Que tal nos divertirmos um pouco mais?
Claire sorriu animada e ambos entraram no pub. Pediram bebidas, Peter optou por um uísque e
Claire por um drinque à base de vodca. A música era alta e o ambiente animado. Ambos beberam e
conversaram distraidamente por mais de uma hora, comentando sobre as pessoas, sobre o lugar e
experiências anteriores de ambos em viagens. Descobriram mais uma coisa em comum: ambos
adoravam se aventurar em viagens do tipo “mochilão” por cidades históricas europeias. Claire
gargalhou até perder o fôlego com uma das histórias que ele contou, envolvendo uma situação
constrangedora que havia passado em Roma. Ela não conhecia essa faceta divertida de Peter e, a
cada hora que passavam juntos, ficava mais fascinada pelo homem que conhecia ao mesmo tempo tão
pouco e tão bem.
Sob o efeito do álcool que ingeria, não conseguia pensar de maneira racional. O passado estava
completamente inacessível naquele momento e tudo que ela sentia era uma incontrolável vontade de
beijá-lo novamente. Não era uma mulher atirada e não tinha a menor ideia de como agir sensualmente
sem se sentir uma perfeita idiota, então tentava demonstrar sua atração por ele tocando seu braço
casualmente em alguns momentos, sorrindo de forma convidativa e enviando a ele olhares que em sua
opinião poderiam ser classificados como provocantes. Mas apesar de ele se mostrar aberto e gentil
com ela, o máximo que obteve dele foram alguns olhares mais profundos. Ele ficava observando-a
em silêncio com um sorriso no canto dos lábios e os olhos levemente apertados, mas era totalmente
impossível decifrar seus pensamentos.
Passava um pouco de meia-noite quando saíram do pub. No caminho de volta ao hotel,
decidiram desviar a rota e caminhar junto à margem do Bosphorus River. Ao longe, era possível ver
a Bosphorus Bridge iluminada. A visão era encantadora e... romântica. Eles pararam por alguns
minutos junto à grade para apreciá-la.
Mesmo usando o casaco, Claire tremia levemente em função do frio. Peter notou e abraçou-a
por trás, apoiando o queixo sobre sua cabeça como fazia no mirante, em Jersey, num passado tão
distante que parecia estar em outra dimensão. Claire sentiu uma espécie de pontada no peito ao
recordar aquele que foi um dos períodos mais felizes e ao mesmo tempo mais dolorosos de sua vida.
Sabendo que estava novamente à mercê de seus sentimentos por ele, fechou os olhos e fez uma prece
silenciosa para que ele não a magoasse novamente. Permaneceram ali por alguns minutos, apreciando
a vista e o calor do corpo um do outro. Peter então a soltou e estendeu a mão para ela:
— Vamos?
Caminharam de mãos dadas até o hotel. Claire sentia um misto de excitação e medo, o coração
aos pulos. Ao chegarem, se encaminharam ao elevador e Claire aguardou, mal disfarçando a própria
ansiedade. Entreabriu os lábios e passou a língua sobre eles, que estavam ressecados pelo frio. Peter
observava este movimento com os olhos fixos em sua boca quando ouviram o alarme de chegada do
elevador. Entraram. O cubículo de metal parecia quente demais mesmo para um hotel com calefação
enquanto eles se olhavam em silêncio. O olhar dela não deixava dúvidas de que o queria, bastaria um
único movimento dele e ela seria sua. Depois de parecer hesitar por alguns segundos com o convite
mudo dela pairando no ar, Peter soltou um suspiro e apertou os dois botões no elevador, do segundo
e do quinto andar. Claire se sentiu gelar por dentro. Ao chegarem ao segundo andar, Peter saiu do
elevador, um ar levemente atormentado em seu rosto, e se despediu:
— Boa noite, Claire. Durma bem.
Virou-se então de costas e saiu em direção ao próprio quarto sem olhar para trás. Claire não
conseguiu controlar as lágrimas que se formaram em seus olhos, o que só a irritou ainda mais. Secou
os olhos furiosamente e, ao chegar ao seu andar, caminhou até o próprio quarto com passos duros.
Abriu e fechou a porta com força desnecessária, jogou longe os sapatos e se sentou na cama, ardendo
de raiva. Para ajudar a se controlar, começou a planejar o dia seguinte, pensando em todas as formas
através das quais poderia se mostrar completamente inacessível para Peter e como poderia fazê-lo
pagar pelo que havia feito, mesmo sem saber o que exatamente ele havia feito de errado dessa vez
além de não estar interessado nela.
Ainda fantasiando sobre formas horríveis de tortura, ouviu uma batida à porta. Confusa, abriu-a
sem nem mesmo perguntar quem era. A expressão torturada no rosto de Peter era algo novo, mas a fez
lembrar vagamente o dia do baile de formatura. Encarando-o com uma expressão fria e magoada que
nem tentou disfarçar, Claire perguntou secamente:
— O que você quer, Peter?
Ele apenas a encarou em silêncio por alguns segundos, seus olhos transmitindo uma mensagem
que ela era incapaz de compreender. Vencendo a distância entre os dois com um passo, ele segurou o
rosto dela com as duas mãos e respondeu simplesmente:
— Você. Que droga, Claire. Eu quero você.
Ele então a beijou com uma intensidade que a fez perder o equilíbrio e dar um passo
cambaleante para trás. Ela resistiu num primeiro momento, empurrando o peito dele decidida a
mandá-lo para o inferno com aqueles jogos incompreensíveis. Entretanto, a mistura do efeito do
álcool e do desejo, que ela a tanto custo vinha reprimindo nas últimas semanas, falaram mais alto e
ela simplesmente envolveu seu pescoço, aprofundando o beijo.
Peter a levantou pelo quadril, fazendo com que ela o enlaçasse pela cintura com suas pernas,
fechou a porta com o pé e a levou até a cama, sem parar de beijá-la. Colocou-a sentada na beira da
enorme cama king size e num movimento ágil retirou o suéter que usava, revelando o peito nu
salpicado de pelos curtos e o abdome definido. Claire se livrou do casaco e instintivamente tocou o
peito e o abdome dele com as mãos, seguidas pelos lábios, fazendo-o suspirar.
Num gesto atrevido, ela abriu o cinto, o botão e o zíper da calça dele, fazendo-o soltar um
gemido rouco. Ela não costumava ser desinibida assim, mas com ele aquilo parecia de alguma forma
natural. Percebeu o quanto ele estava excitado quando a única coisa que a separava dele era a cueca
preta de algodão macio, a poucos centímetros do seu rosto. O cheiro de amaciante do tecido
misturado ao cheiro de homem era inebriante. Num ímpeto de coragem e desejo, libertou seu membro
e surpreendeu-se com o tamanho. Além de grande era grosso, e estava duro como aço. Suspirando de
excitação, tocou-o com seus lábios úmidos, fazendo-o agarrar os cabelos dela e gemer alto.
Ela começou pela glande, percorrendo toda a circunferência com a ponta da língua molhada. Em
seguida começou a sugá-lo, enquanto massageava com a língua dentro da boca. Aprofundou mais a
sucção, sem conseguir colocar todo aquele volume para dentro mas indo até seu limite e voltando
depois a sugá-lo com ritmo, enquanto sua mão masturbava a base grossa.
Peter gemia e puxava os cabelos dela para trás, fazendo com suas mãos um rabo de cavalo
improvisado cheio de fios soltos. Após se deliciar por algum tempo com essa sensual exploração da
boca macia em seu pênis, Peter puxou a cabeça dela e disse, com a voz entrecortada:
— Preciso que você pare, ou isso vai terminar muito mais rápido do que eu gostaria.
Ela obedeceu com um sorriso nos lábios e, limpando a boca sensualmente, olhou para ele
satisfeita com seu poder recém-descoberto sobre ele. Ele então soltou-a e se livrou dos sapatos,
meias, calça e cueca, ficando completamente nu na sua frente com uma ereção tão impressionante que
daria inveja a qualquer moleque de 20 anos. Depois, levantou o vestido de Claire o suficiente para
encontrar o elástico de sua meia calça, que puxou lentamente pelos quadris, coxas e pernas, até
retirá-la completamente. Claire suspirava, seu olhar nublado pelo desejo. Peter então a colocou de
pé, puxou o zíper de seu vestido e deixou que ele caísse aos seus pés. Vendo-a apenas com a calcinha
branca de renda, já que o vestido não exigia o uso de um sutiã, ele suspirou profundamente e disse,
num tom extremamente reverente, passando a mão entre seus seios:
— Meu Deus, como você é linda.
Claire se sentia como se tivesse sido transportada sem escalas para o paraíso. Ainda de pé, ele
voltou a beijá-la, descendo depois com um rastro de sua boca quente pelo pescoço, enquanto
explorava seus seios com os dedos. Ele massageava e puxava levemente os mamilos, fazendo-a
quase desmaiar de prazer. Quando substituiu os dedos pelos lábios, lambendo e sugando, ela achava
que não mais conseguiria suportar. Ninguém nunca havia sugado seus seios assim, com tanta volúpia,
e a sensação era inebriante.
— Peter, não aguento mais...
Ele olhou para ela, passando a língua sobre seu mamilo, e respondeu com um sorriso sensual:
— Ah, Claire. Eu ainda nem comecei.
Ele então foi se abaixando mais, percorrendo com uma trilha de beijos seu abdome liso até
chegar à calcinha. Ajoelhando na frente dela, abriu um pouco suas pernas e afastou a calcinha para o
lado. Tocou-a suavemente com seus dedos e, ao perceber o quanto ela estava molhada, soltou um
gemido angustiado e levou sua boca até ela, sugando seu clitóris enquanto agarrava sua bunda com
força. Claire segurou os cabelos escuros dele com as duas mãos e sua cabeça pendeu para trás,
entreabrindo os lábios quando sentiu uma corrente elétrica percorrê-la. Começou a notar que as
pernas ficavam fracas.
Ele então a fez deitar o tronco na cama, mantendo suas pernas para fora e depois levantando-as.
Retirou a calcinha dela num movimento sensual e, com as mãos na parte interna de seus joelhos,
afastou suas coxas até o limite, deixando-a completamente exposta para ele. Parou por alguns
segundos para admirá-la com os olhos escuros de prazer e posicionou a cabeça entre suas pernas,
mantendo-as abertas com as mãos. Passou sua língua inteira por ela de uma vez só, desde seu ânus
até o clitóris, como se quisesse sentir todo o seu sabor. A parte mais áspera do dorso da língua e o
roçar de sua barba por fazer faziam com que todas as suas terminações nervosas se eriçassem.
Ele continuou com sua exploração, fazendo círculos na área sensível ao redor do ânus, depois
penetrando sua entrada com a língua inteira. Claire agarrava seus cabelos e gemia alto. Peter então
começou a sugá-la, sorvendo cada gota de prazer que escorria dela, enquanto continuava explorando
cada dobra com a ponta da língua. Claire chegou ao primeiro orgasmo em poucos minutos e ele
continuou, batendo em seu clitóris com movimentos ritmados da língua quente e úmida enquanto a
penetrava com um dedo, depois dois. Ela então gozou pela segunda vez, estremecendo violentamente
sob o toque da boca experiente de uma maneira que ela sequer imaginava ser possível.
Sem conseguir esperar mais, Peter a empurrou para o meio da cama e ficou sobre ela.
Parecendo se lembrar de algo importante, ele perguntou:
— Você está protegida? Eu... não tenho camisinhas aqui.
Ela assentiu com a cabeça. Mesmo usando anticoncepcional, nunca fizera sexo sem proteção
antes, mas ele mexia com ela de tal forma que derrubava suas defesas e nublava seu bom senso. Ele
então posicionou seus braços ao lado da cabeça dela e, em um movimento rápido e profundo, a
penetrou de uma só vez, como se tivesse perdido completamente o controle sobre si mesmo. Ela
soltou um grito de prazer e susto, que fez com que ele parasse e recuasse alguns centímetros, com
uma expressão preocupada. Percebendo que ele havia interpretado mal sua reação, Claire o puxou
pela nuca, colando sua testa na dele, e forçou-o inteiro para dentro dela usando suas pernas
enlaçadas nos quadris dele, implorando:
— Por favor... não pare.
Ele obedeceu imediatamente e começou a penetrá-la com movimentos cada vez mais intensos,
enquanto ela mexia os quadris sensualmente, deixando-o completamente descontrolado. O olhar no
rosto dele era feroz, como o de um predador. Claire sentiu que outro clímax se aproximava.
Escancarou suas pernas e fechou os olhos para saborear aquela sensação em sua plenitude. Ela gozou
intensamente, com um sorriso deliciado nos lábios. Ela se entregava a ele por inteiro. Frente à visão
do enorme prazer refletido no rosto dela e ao senti-la se apertar em torno de seu membro com força
conforme era dominada pelos espasmos do orgasmo, Peter não conseguiu se controlar. Também
chegou ao clímax, que durou vários segundos e fez com que Claire imaginasse que poderia morrer de
tanto prazer, sentindo-o pulsar com tamanha intensidade dentro dela.
Quando finalmente seu corpo relaxou, ele se deixou desabar ao lado dela, a respiração ofegante,
mantendo um braço sobre seu quadril e puxando-a levemente para mais perto de si. Naquele exato
instante, Claire só conseguiu pensar que nunca em sua vida havia se sentido tão plena e feliz.
Desilusão – Episódio 2

Istambul, 18 de dezembro de 2012


ELES ACABARAM ADORMECENDO nos braços um do outro. Por volta de sete e meia da
manhã, Claire despertou e percebeu que Peter estava acordado, olhando para ela na penumbra do
quarto. O céu ainda estava escuro, mas as primeiras luzes da manhã começavam a penetrar pelas
cortinas brancas de voil. Ainda sonolenta, ela sorriu, fez um carinho em seu rosto e beijou de leve
seus lábios.
Peter levantou em silêncio, completamente sem roupa, levando consigo o edredom branco e
oferecendo a mão para ela, num convite mudo. Curiosa, ela também se levantou da cama macia,
dando-lhe a mão, e ele abriu a porta do terraço, fazendo com que o corpo nu dela se arrepiasse com a
brisa gelada. Ele se posicionou atrás dela e envolveu a ambos com o edredom, conduzindo-a até a
grade. O chão estava muito frio, mas ela sentia seu corpo aquecido pelo corpo de Peter e pelo
edredom macio que os envolvia. Assistiram ao incomparável espetáculo do nascer do sol em
silêncio e Claire imaginou que não havia outro lugar no mundo em que preferisse estar naquele
momento.
Peter a enlaçava por trás, suas mãos a abraçando pela cintura. Em determinado momento, uma
delas subiu até seus seios, massageando um mamilo. A outra mão desceu até o meio de suas pernas
enquanto ele beijava seu pescoço. Claire sentiu que estava ficando excitada, seu corpo ia
respondendo ao toque dele numa velocidade assustadora. Percebendo que ela já estava
completamente molhada, ele continuou com aquela lenta exploração, introduzindo o dedo médio
dentro dela enquanto massageava seu clitóris com o polegar, levando-a à loucura. Depois de alguns
minutos, ela jogou a cabeça para trás contra o peito dele e começou a sentir que as pernas cediam
sob seu peso, à beira de um orgasmo.
Ele parou subitamente o que fazia, deixando-a momentaneamente confusa e frustrada, pegou-a no
colo e levou até a cama, deitando-a ali e observando seu corpo nu arrepiado de frio e de desejo com
um olhar faminto, a própria ereção completamente evidente. Voltou-se apenas para fechar a porta do
terraço e então se deitou ao lado dela. Ele reiniciou as carícias, que se tornavam cada vez mais
intensas, mas ainda assim ele a mantinha completamente sob seu controle.
Mais uma vez, Peter a fez gozar sob o toque experiente de sua boca e seus dedos, antes de
penetrá-la de maneira lenta e provocante, fazendo-a implorar por mais. Dessa vez o sexo teve outro
ritmo, Peter parecia não ter qualquer pressa de que aquele momento dos dois terminasse. Alternava
movimentos de maior intensidade com outros mais controlados, prolongando ao máximo a
experiência tão prazerosa. Claire sentia como se estivesse sob uma doce tortura e não queria que ela
chegasse ao fim.

Eram nove da manhã quando se deitaram novamente lado a lado, exaustos e saciados. Claire
nem mesmo sabia que era possível ter quatro orgasmos numa única relação sexual, sendo três deles
apenas com a penetração. Peter estendeu a mão para o telefone do quarto e discou o número do
restaurante do hotel, depois de consultá-lo no catálogo na mesa de cabeceira. Pediu um café da
manhã para dois e deu um rápido beijo nos lábios de Claire antes de se encaminhar ao banheiro para
uma ducha. Saiu minutos depois, seu corpo completamente nu ainda brilhando com algumas gotas de
água enquanto ele esfregava vigorosamente a toalha nos cabelos. Ela ficou deitada de lado, o tronco
parcialmente erguido e a cabeça apoiada em uma das mãos, enquanto o admirava. Ele vestiu o
roupão felpudo do hotel e, suspirando com leve desapontamento pela interrupção daquela visão
magnífica, ela foi tomar o próprio banho.
Quando saiu do banheiro, o café da manhã já havia sido servido. Imitando-o, ela vestiu o roupão
e se sentou à mesa. Degustaram o café preguiçosamente, num clima ameno, conversando de forma
casual sobre algumas situações marcantes vividas durante a viagem para a África. Em determinado
momento, o assunto acabou chegando a Violette e Claire não controlou a própria língua:
— Ela estava com sérias dificuldades em manter as mãos longe de você. — Ela mordeu uma
torrada, sem conseguir disfarçar o tom de ciúme em sua voz.
Peter riu, entre surpreso e divertido e, dando de ombros, respondeu:
— O que eu posso fazer se sou irresistível?
Ela atirou nele um guardanapo de pano, também rindo. Terminaram a refeição e se deitaram
novamente na cama, lado a lado. Eram dez e meia. Peter pegou seu telefone e começou a consultar
sites com dicas de passeios curtos em Istambul. Eles não tinham muitas horas até o momento do voo.
— Então, o que você gostaria de fazer? — Ele continuava olhando para a tela do celular,
ponderando as alternativas.
Olhando para o roupão quase aberto dele, que deixava à mostra boa parte do corpo que a havia
feito conhecer prazeres inimagináveis, ela sorriu de forma maliciosa e se aproximou, levando sua
mão ao peito dele e descendo devagar, desinibida. Desamarrou a faixa do roupão que já estava
frouxa e afastou o tecido, deixando todo o corpo masculino exposto.
Ele desviou os olhos do celular e direcionou-os ao rosto dela, surpreso, descendo depois o
olhar para acompanhar o caminho que as mãos dela faziam de maneira lenta e sensual. O corpo dele
começou imediatamente a responder ao toque suave da mão feminina, que chegava ao objetivo e
envolvia seu pênis já ereto de maneira firme, começando a provocá-lo com movimentos lentos de
subida e descida, lambuzando sua glande com o líquido incolor que saía de seu orifício. Ele soltou
um gemido rouco enquanto a ouvia responder:
— Isso. É isso que eu quero fazer. — Ela comprimiu os olhos, numa expressão de desafio. —
Mas desta vez quem dita as regras sou eu. — Ela então passou lentamente sua língua por toda a
extensão de seu membro, que a mão ainda segurava.
O celular foi parar no chão, enquanto quem sofria a deliciosa tortura dessa vez era ele.

Eles quase se atrasaram para o voo, arrumando tudo às pressas e decidindo almoçar no
aeroporto. Despacharam as bagagens e depois se dirigiram a um restaurante. Almoçaram
praticamente em silêncio e depois caminharam até o portão de embarque. Claire havia percebido
uma mudança expressiva em Peter nas últimas horas. Depois da terceira rodada de um sexo
espetacular, ele tinha passado de relaxado e sedutor a tenso e silencioso. Atribuiu isso à preocupação
com a possibilidade de perderem o voo, mas agora já estavam confortavelmente acomodados
esperando que o embarque fosse iniciado, mas ainda assim ele mantinha a expressão fechada e os
olhos fixos no telefone.
— Algum problema? — ela arriscou, desconfortável com o comportamento dele.
— Não, nenhum. — Ele levantou brevemente os olhos para ela e deu um sorriso educado, que
não chegou aos seus olhos. Dando de ombros, ela decidiu se distrair com um livro.
O voo de volta foi feito também em silêncio. Percebendo que ele não a tocava e sem saber como
deveria reagir, Claire procurou manter uma atitude neutra. O voo levou onze horas, mas pela
diferença de fuso horário, eles chegaram ao aeroporto JFK às 18:25h do mesmo dia. Retiraram suas
malas e se encaminharam ao saguão do aeroporto.
— Quer dividir um táxi? — ela perguntou. Era a primeira troca de palavras em várias horas e
ela se sentia cada vez mais incomodada com aquela situação.
— Claro — ele respondeu, com um tom distante.
Ambos deram seus endereços ao motorista. O dele era no caminho para o dela então, após
aproximadamente uma hora de um silêncio tão tenso que quase se podia parti-lo com as mãos, o
carro parou na porta do prédio de Peter. O motorista saiu do carro para pegar sua mala no porta-
malas e Peter olhou para Claire, parecendo refletir sobre o que deveria fazer. Ele então fez menção
de pegar a carteira e Claire o impediu:
— Deixe que eu pago o táxi. Ainda não te paguei o hotel e o jantar em Istambul.
— Esqueça isso — ele respondeu simplesmente, de forma indiferente.
Ela assentiu e permaneceu em silêncio, aguardando. Peter soltou então um rápido suspiro,
inclinou a cabeça e beijou-a no canto da boca, saindo do veículo. Já do lado de fora, pegou sua mala
com o motorista, agradeceu a ele e se encaminhou à portaria de seu prédio. Claire sabia que algo
muito estranho estava acontecendo ali, e não pôde conter a onda de angústia que a invadiu.

Depois de dois dias sem nenhuma notícia dele, ela decidiu ligar. Precisava esclarecer aquilo de
uma vez por todas. Não queria fazer uma tempestade num copo d’água e soar como uma histérica,
então foi cuidadosa com as palavras. Talvez houvesse outras preocupações em sua cabeça e eles
poderiam facilmente resolver aquele clima estranho com uma conversa honesta.
— Alô? — ele atendeu no sexto toque.
— Oi, Peter.
— Oi, Claire.
Silêncio.
— Liguei para saber como você está. — Ela procurou imprimir à voz uma mistura adequada de
simpatia e neutralidade.
— Eu estou bem. — Pausa. — E você?
— Estou bem, obrigada.
Eles pareciam dois desconhecidos conversando e não duas pessoas que, menos de 72 horas
antes, haviam passado quase um dia inteiro nos braços um do outro, compartilhando uma experiência
sexual alucinante. Decidida a resolver aquela situação, Claire continuou:
— Estou ligando também para saber se você gostaria de sair para jantar hoje. Conheço um
restaurante ótimo que...
— Claire — Peter a interrompeu.
— Sim?
— Acho que precisamos esclarecer uma coisa. — Ele respirou fundo do outro lado e sua voz
era fria como o ártico quando ele continuou: — Não sei que tipo de expectativas você criou, mas
aquilo que aconteceu em Istambul acabou ali. Nunca tive a intenção de que fosse mais do que o que
foi.
Apesar de esperar por isso, ela sentiu o baque quase físico. Sem aguardar por uma resposta
dela, Peter continuou:
— Você se tornou uma mulher atraente e o sexo foi bastante satisfatório, mas nunca te dei razões
para acreditar que iríamos além dali. Cada um de nós deve seguir seu caminho agora, sem mágoas ou
arrependimentos.
“Bastante satisfatório”? O que diabos era aquilo, uma porra de um memorando de desempenho?
Ela respirou fundo algumas vezes, controlando a raiva que sentia ferver dentro de si. Quando
acreditou que conseguiria falar com o tom neutro que desejava, ela calmamente respondeu:
— Peter, você é uma pessoa doente. Seu comportamento passa muito longe do de qualquer
pessoa normal. Vá procurar ajuda especializada. — Ela pensou melhor e se corrigiu: — Ou melhor,
vá para o inferno.
Desligou o telefone. Ela sentiu que naquele momento enterrava uma parte importante de sua
história e junto com ela alguns dos momentos mais excepcionais que ela já tinha vivido. Entretanto,
esses momentos estavam imersos em tanta crueldade e tanta dor, que o melhor que ela tinha a fazer
era deixar aquilo definitivamente para trás e recomeçar. Mais uma vez.
Apesar de tudo, ela não se arrependeu de sua decisão no aeroporto de Istambul. Ela sabia que
precisava tentar, já que naquele momento tudo parecia confuso e ela não tinha nenhuma certeza.
Agora as coisas estavam mais claras do que nunca e, se o que ela precisava era sentir alguma coisa,
as centenas de facas que pareciam estar sendo enterradas simultaneamente por todo o seu corpo
naquele instante estavam cumprindo bem este papel.
As pessoas não pedem nossa permissão para nos magoar, mas precisam dela para continuar
magoando. Claire não estava disposta a dar esse tipo de permissão a ninguém, portanto seus olhos
permaneceram secos e sua determinação inabalável. Ela agora seguiria outros caminhos, porque
Peter precisava definitivamente fazer parte do seu passado.
Outra vez você

Nova Iorque, 17 de dezembro de 2015


— ANDREW AFIRMOU QUE esse é satisfação garantida. — Margaret bebeu um gole de sua
Pina Colada, no restaurante onde ambas se encontravam semanalmente, agora há quatro anos.
Claire suspirou e olhou para a amiga, dando um sorriso paciente.
— Margaret, já te disse que não estou interessada em ter um encontro às escuras com o amigo
do seu casinho atual.
Margaret bufou ruidosamente.
— Não é que você não queira um encontro às escuras. Você não quer encontro nenhum! — O
tom dela era frustrado. Fechou os olhos e quando os reabriu tinha aquela expressão reprovadora-
carinhosa tão singular. — Claire, você prometeu que o deixaria para trás. Que se abriria a novos
relacionamentos, saudáveis desta vez. Mas já faz três anos e...
— Eu sei, Margaret. — Claire interrompeu. — Você não precisa me lembrar disso todo mês.
Mas a verdade é que eu estou bem assim. Tudo tem seu tempo.
— Isso é mentira. Você se afunda em trabalho, quase não se diverte e já deve ter teias de aranha
aí embaixo. Quando foi seu último encontro? Há seis meses? Quantos encontros você teve nos
últimos três anos? Cinco? — Margaret procurou se acalmar, respirando fundo. Quando voltou a falar,
seu tom era mais brando. — Você tem trinta e dois anos, Claire. Não setenta. É uma mulher linda,
divertida, inteligente... você precisa voltar a viver.
Claire riu, mais uma vez mudando de assunto e distraindo a amiga do ponto que tanto a
preocupava: o medo de que Claire jamais fosse superar o que havia acontecido entre ela e Peter e se
permitir viver um romance de verdade novamente. Mas a verdade é que, ao menos por enquanto,
Claire estava satisfeita mantendo sua vida como estava. Sabia que quando chegasse a hora, com a
pessoa certa, tudo aconteceria como tinha que ser. Era só uma questão de tempo. Ou pelo menos era
nisso que ela preferia acreditar.

No dia seguinte, Claire caminhava pelo corredor da administração do centro cirúrgico para
resolver uma questão relativa à data de suas próximas férias quando uma visão inesperada a fez
estacar no meio do caminho. O enfermeiro que vinha logo atrás se chocou contra ela. Desculpando-
se, Claire se afastou para o canto, dando passagem aos que andavam pelo corredor. A menos de dez
metros de distância, Peter conversava com o chefe da cirurgia geral. Despediram-se com um aperto
de mão, então Peter se virou para ir embora e a viu.
Ele parecia um pouco mais magro, mas mantinha os músculos visíveis sob a camiseta preta. A
barba por fazer e o cabelo longo eram exatamente os mesmos, ainda que o cabelo parecesse
ligeiramente mais comprido. Ela teve vontade de se encolher até desaparecer dentro do pijama do
centro cirúrgico, mas apenas virou o corpo e começou a caminhar na direção de onde tinha vindo.
— Claire!
Ela ouviu seu nome, mas não parou. Ele a alcançou no hall dos elevadores. Tinha uma expressão
contida, mas parecia genuinamente feliz em vê-la. Ele realmente só podia ser louco. Claire apertou o
botão do elevador repetidamente, como se isso pudesse fazê-lo chegar mais rápido.
— Não esperava encontrá-la hoje. – O tom de voz de Peter era amigável, contrastando com o
silêncio passivo-agressivo dela. — Na verdade, eu sabia que isso poderia acontecer, mas achei que
era pouco provável. — Ele fez mais uma pausa e, como ela continuou em silêncio olhando para a
porta fechada do elevador, prosseguiu em seu monólogo. — Dr. Roberts me convidou para uma
entrevista. Ele gostaria que eu viesse trabalhar aqui.
Claire o encarou com os lábios apertados e olhar fulminante. Ele percebeu o tamanho da fúria
que ela lhe direcionava e achou melhor completar, rapidamente:
— Mas eu disse não.
Ela mudou sua expressão para desconfiada, mas não disse nada e voltou a observar atentamente
um pequeno descascado na porta do elevador. Notando que a situação parecia estar sob controle,
Peter prosseguiu:
— A proposta era muito boa, mas eu jamais poderia fazer isso com você.
Nesse momento o elevador chegou e ambos entraram. Claire sequer sabia para onde estava
indo, só queria sair dali. Tocou então o andar da cafeteria e Peter permaneceu ao lado dela em
silêncio. Ao sair do elevador, ela percebeu que ele a seguia e virou-se para trás, furiosa:
— O que você quer aqui, Peter? Se já recusou a vaga, a saída é no térreo.
Ele sustentou por alguns segundos o olhar dela e depois olhou para baixo, aparentemente não
sabendo por onde começar. Finalmente acabou dizendo:
— Claire, você tem todos os motivos para agir assim. Eu na verdade não esperava nada muito
diferente. Essa reação inflamada mostra que de alguma forma eu ainda mexo tanto com você quanto
eu achei que mexeria, ainda que seja de uma maneira ruim.
Ela deu uma risada quase histérica, levando as mãos à boca e balançando a cabeça, incrédula
com o comentário prepotente dele. Não era possível que ele tivesse realmente dito aquilo. Ele deixou
os ombros arriarem um pouco e prosseguiu:
— Muitas coisas aconteceram nesses três anos desde que nos vimos pela última vez. Muitas
mesmo. Por diversas vezes eu pensei em te ligar para te dar uma satisfação sobre... bem, sobre tudo,
mas como sabia que você não reagiria bem, desisti. E agora estou aqui, na sua frente, e não posso
deixar de tentar te dizer tudo que eu gostaria que você soubesse.
Ela continuou em silêncio. Um sorriso sarcástico e um olhar de desprezo eram tudo que oferecia
a ele. O olhar dele parecia inseguro e angustiado, mas isso não a comoveu. Dando um sorriso triste,
ele continuou:
— Mesmo tendo sido dito em tom de escárnio e raiva, você me deu o melhor conselho que
poderia. Eu estava realmente doente e procurei ajuda profissional. Daqui a um mês faz três anos que
iniciei a terapia.
Ela pareceu apenas ligeiramente surpresa, mas rapidamente recompôs a expressão fria.
Sentindo-se encorajado, ele prosseguiu:
— Na verdade, eu primeiro segui seu outro conselho e conheci o inferno naquele período que se
seguiu à viagem. Foi provavelmente o pior mês da minha vida. — Ele riu sem humor. Ela continuava
muda, braços cruzados e um olhar glacial. Numa última tentativa, ele continuou: — Sei que não tenho
o direito de te pedir nada, absolutamente nada. Mas se você me der uma única chance de te contar
muitas coisas que você não sabe sobre o passado, acredito que isso poderá libertá-la também. E,
depois desse dia, eu prometo que sumo da sua vida e não te procuro nunca mais.
— Finalmente encontramos algo em que você é muito eficiente. — Ela olhava com escárnio
para ele e sua voz era cortante.
— Touché. — Ele exibiu um sorriso triste. — E então? Só um jantar, Claire. Eu juro.
Num misto de curiosidade e de vontade de se vingar dele de alguma forma que ela ainda não
sabia exatamente qual, Claire percebeu resignada que esse capítulo de sua vida não estava mesmo
superado, apenas adormecido. E se esse jantar pudesse representar uma chance de ajudar a virar
mais uma página dessa angustiante história sem fim, então talvez devesse aceitar. Ela fechou os olhos
e soltou um longo suspiro:
— Só um jantar, Peter. Nada mais que isso.
O rosto dele se iluminou num sorriso surpreso, e ele perguntou:
— Te busco às oito?
Ela confirmou e passou a ele seu endereço. Ele se despediu dela com um aceno e foi embora,
deixando-a em pé em frente à cafeteria. Claire decidiu que quem precisava de terapia com urgência
era ela, por ter aceitado se meter mais uma vez nessa interminável epopeia masoquista.
Perguntas e respostas

ÀS SETE E MEIA, Claire estava de banho tomado, parada em frente ao seu guarda-roupa,
inconformada por mais uma vez estar tentando se vestir para impressioná-lo. Por mais que tentasse se
convencer de que aquilo era apenas a cereja do bolo da vingança, onde mostraria como estava bem
sem ele, no fundo sabia que nunca deixaria de considerar importante obter sua apreciação.
— Burra, burra, burra — falava sozinha, separando um vestido preto de mangas compridas com
um discreto decote, uma meia calça preta, sapatos scarpin pretos e um sobretudo cinza, única
concessão à roupa inteiramente preta. A cor espelhava bem o estado de luto pela perda da sua
dignidade, que havia morrido de desgosto naquele mesmo dia quando ela aceitou o convite de Peter.
Usava os cabelos um pouco mais curtos agora, abaixo da linha do queixo, e seus grandes olhos cor
de mel estavam realçados por uma maquiagem elegante. Faltavam dois minutos para as oito quando o
interfone tocou.
Claire desceu e encontrou Peter à sua espera na rua. Um pouco de neve cobria o chão em alguns
locais. Ele vestia calças jeans escuras, um suéter cinza grafite e estava parado ao lado de um BMW
azul marinho. Ela andou até a porta do carona, que ele mantinha aberta para ela. Já dentro do carro,
Peter sorriu timidamente e informou:
— Decidi fazer uma pequena surpresa. Achei que seria libertador em muitos sentidos e espero
que você goste.
Ela o encarou desconfiada, mas não disse nada. Ele dirigia com agilidade pelo trânsito da
cidade e Claire percebeu depois de certo ponto que se dirigiam para Jersey. Sentindo algo se agitar
dentro dela, começou a dizer:
— Peter, eu realmente não acho que essa é uma boa id...
— Claire, por favor. Sei que não mereço, mas assim mesmo te peço: confie em mim.
Ela deu um suspiro resignado e passou a olhar para a paisagem pela janela. Apenas quando eles
chegaram à porta, Claire reconheceu o pequeno restaurante italiano onde Peter a havia levado no
início do relacionamento de ambos. Aquele havia sido seu segundo encontro e, no mesmo dia, ela
dera seu primeiro beijo. Desde então, aquele local se tornou inesquecível. O estabelecimento havia
sido reformado e agora tinha um aspecto mais sofisticado. Com uma expressão dura, ela informou:
— Eu realmente espero que você saiba o que está fazendo, porque para eu virar as costas e
deixá-lo plantado sozinho no meio do restaurante não preciso de muito.
Ele levantou as mãos em sinal de rendição.
— Espero mesmo que não tenhamos que chegar a isso.
Entraram e o garçom os acomodou em uma mesa reservada de canto, com vista para o jardim.
— Quer um vinho? — Peter olhava o cardápio.
— Melhor não. Quero estar bem sóbria para ouvir o que você tem a me dizer.
Ele concordou e pediu sucos de laranja para os dois. Quando se viram sozinhos, Claire recostou
na cadeira e cruzou os braços, dizendo num tom sarcástico:
— Sou toda ouvidos.
Decidido a não se deixar afetar pela agressividade dela, Peter começou seu discurso:
— Eu vou contar para você partes da minha história que são muito dolorosas, Claire. As partes
em que você esteve envolvida certamente são dolorosas para você também. Peço apenas que me ouça
e que, caso tenha alguma dúvida, me interrompa a qualquer momento.
Ela concordou com um leve aceno de cabeça.
— Bem, eu nunca te contei isso por motivos que você agora entenderá, mas eu também nasci em
Pittsburgh. — Ela arqueou levemente as sobrancelhas em resposta à informação. — Tenho uma irmã
10 anos mais velha, chamada Lauren, que mora há muitos anos no Canadá. — Claire se recordava
dessa parte. — Minha mãe faleceu há seis anos e meu pai faleceu quando eu tinha oito anos. — Ele
fez uma pausa nesse momento e bebeu um gole de seu suco. Olhando para uma dobra na toalha de
mesa, ele acrescentou: — Ele se matou enquanto eu estava na escola, com um tiro na cabeça.
A expressão beligerante de Claire suavizou ligeiramente diante daquela informação.
— Eu sinto muito, Peter — ela disse, sincera.
— Obrigado. Meu pai trabalhava numa empresa em Pittsburgh há mais de 10 anos. Minha mãe
não trabalhava fora, apenas fazia alguns doces para vender em seu tempo livre. Não éramos ricos,
mas não passávamos necessidade e nossa família era feliz. Meu pai sempre gostou de beber e às
vezes exagerava um pouco, mas foi apenas naquele último ano que ele começou a ter problemas reais
com a bebida. Andava chegando em casa com hálito de álcool e se atrasava para trabalhar. Dizia que
a culpa era do novo patrão, que havia assumido o cargo há pouco menos de um ano. Segundo meu
pai, ele era um babaca arrogante e estava transformando a vida dele num inferno. A situação pareceu
se agravar com o tempo e um dia ele simplesmente não voltou para casa. Chegou no dia seguinte,
arrastado por conhecidos, completamente embriagado. Minha mãe descobriu então que ele havia sido
demitido, por ter sido encontrado bebendo durante o expediente.
Claire ouvia a história com os olhos bem abertos, em expectativa. Peter continuou:
— Ele tentou conseguir emprego em outros lugares, mas a notícia havia se espalhado e nenhuma
empresa queria contratá-lo. A situação financeira começou a ficar mais difícil, mas aquilo ainda não
estava muito claro para mim, com apenas oito anos. Era dezembro e, num determinado dia, eu
cheguei da escola e encontrei meu pai no sofá, com uma cerveja na mão. Eu contei para ele animado
que um amigo meu da escola havia ganhado um boneco de super-herói, que soltava raios de mentira e
emitia sons. Na época, era um brinquedo bastante caro. Inocentemente, perguntei a ele se eu poderia
ganhar aquele boneco no Natal. Meu pai me deu um sorriso triste e respondeu carinhosamente
“vamos ver, meu filho”. Mesmo com todos aqueles problemas, ele nunca deixou de ser para nós um
pai carinhoso e dedicado. Ainda que estivesse enfrentando dificuldades, ele era meu exemplo de
vida, meu porto seguro.
Nesse momento, Claire percebeu que os olhos de Peter marejaram. Controlando as emoções, ele
continuou:
— No dia seguinte, quando eu cheguei da escola, havia um carro de polícia parado na porta da
minha casa. Eu ouvi os gritos desesperados da minha mãe dentro de casa e corri para lá. Um policial
me impediu, me abraçando e pedindo que eu não entrasse. O que aconteceu depois se tornou um
borrão. Eu indo para a casa de uma vizinha, os policiais me contando que meu pai havia tirado a
própria vida. Depois minha mãe me contando que ele havia deixado uma carta. Nela, ele dizia que
nos amava, mas que não podia mais viver sabendo que não poderia cuidar de nós. Que havia se
tornado um fardo e um motivo de vergonha para nossa família. Que nós estaríamos muito melhor sem
ele. — Nessa hora, uma lágrima correu pelo rosto de Peter e Claire sentiu seu coração se apertar. —
Durante muito tempo eu me culpei. Acreditei que o motivo de ele ter tirado a própria vida foi o fato
de eu ter pedido a ele um brinquedo caro, que ele não podia comprar. Desejei voltar no tempo para
poder dizer a ele que eu o amava e que não precisava de brinquedo nenhum, desde que ele estivesse
ali comigo. Que ele era meu verdadeiro super-herói.
Peter não conseguiu conter completamente um soluço, que saiu abafado. Algumas lágrimas
rolavam pelo seu rosto e Claire estendeu a mão, tentando secá-las enquanto controlava a própria
emoção.
— Meu Deus, Peter! Você era apenas um menino. Como poderia imaginar algo assim? — A voz
dela soava profundamente angustiada.
Ele conseguiu se recompor um pouco.
— Eu li a carta pouco tempo depois, sem que minha mãe soubesse. Além de tudo que eu já
sabia, lá ele também dizia que a culpa de tudo aquilo era do chefe dele, a pessoa que havia arruinado
sua vida. — Peter nesse momento olhou para Claire com uma expressão atormentada. — E descobri
que o nome do chefe dele era Jason Hart.
Feridas profundas demais

CLAIRE SENTIU COMO se tivesse levado um soco no estômago e o restaurante estivesse


girando ao seu redor. Afastando a mão de perto dele e fechando os olhos, ela murmurou:
— Meu Deus...
Peter procurou manter a voz controlada:
— Menos de um ano depois, eu me mudei para Jersey com minha mãe. Minha irmã fugiu com um
canadense quando engravidou, aos 19 anos, e foi morar com ele em Ottawa. Como a família da minha
mãe era de Jersey, viemos para cá.
Nesse momento, o garçom se aproximou e eles fizeram os pedidos. Claire apenas repetiu o
pedido dele, desnorteada demais para escolher algo no cardápio. Quando o garçom se afastou, Peter
continuou:
— Minha mãe morreu por dentro no dia em que meu pai se matou. Ela passou a tomar
medicações controladas e por vezes ficava mais de uma semana sem tomar banho, andando
catatônica pela casa e dormindo por longas horas. Sobrevivíamos graças a um auxílio do governo e
ajuda financeira de familiares. A irmã dela, minha tia Shirley, ajudava um pouco em casa, lavando
algumas roupas e deixando comida congelada. Mas desde muito cedo eu tive que aprender a me virar
sozinho para sobreviver.
Ainda atordoada, Claire fazia a imagem mental do Peter menino, quase abandonado à própria
sorte e se culpando pela morte do pai. A voz masculina estava carregada de pesar:
— Durante muito tempo, eu imaginei formas de me vingar do seu pai. Queria que ele pagasse
pela morte do meu pai, acreditando que de alguma forma isso poderia aplacar também meu próprio
sentimento de culpa. Só que eu não conseguia pensar em nenhuma forma de atingi-lo. Era uma sede
quase doentia de vingança.
Peter mantinha a cabeça baixa, em alguns momentos fazia silêncio como se estivesse perdido no
passado. Girando o copo de suco entre os dedos ele prosseguiu:
— Minha mãe se recuperou parcialmente com o passar dos anos. Ela nunca mais voltou a sorrir
de verdade, mas conseguiu voltar a ser ao menos funcional. Um dia ela chegou do mercado e eu a
ouvi conversando com minha tia, dizendo que soube por amigos de Pittsburgh que Jason Hart havia
sido transferido para Nova Iorque e que ele estava morando com a família em Jersey. Sem saber que
eu ouvia a conversa, disse que tinha descoberto inclusive que a filha dele estudaria na mesma escola
que eu. “Imagina se Peter descobre isso”, ela dizia para minha tia, sabendo da minha obsessão por
vingança. Eu estava no último ano do colégio e ali eu descobri que poderia finalmente colocar meu
plano em prática.
Ele olhou para Claire, parecendo envergonhado do que estava prestes a dizer:
— Passei a noite em claro pensando em todos os detalhes do meu plano. Fui até a secretaria da
escola no dia seguinte e pedi a listagem com o nome de todos os alunos, sob o pretexto de que eu e
outros alunos do último ano gostaríamos de organizar um piquenique de despedida. Olhei nome por
nome até que me deparei com o seu. Claire Hart. Não havia nenhum outro aluno com sobrenome Hart,
então eu sabia que só podia ser você. Com a informação em mãos, não foi difícil descobrir quem
você era. Eu te vi num dos intervalos, sentada sozinha com um livro, parecendo extremamente
vulnerável. Entendi que seria fácil acabar com você, já que eu não teria como atingir diretamente o
seu pai. E aquela vingança teria que ser boa o suficiente para mim.
Claire se encolheu um pouco diante das duras palavras dele, mas não disse nada. Aguardou que
ele continuasse. Nesse momento, o garçom chegou com os pratos, serviu-os e retirou-se. Claire se
forçava a engolir a comida, mas havia um bolo em sua garganta. Nenhum dos dois parecia estar em
condições de comer. Peter olhou para ela após engolir uma pequena porção de comida:
— A ideia se formou na minha cabeça com facilidade para justificar para meus amigos a
aproximação que eu faria de você. Inventei com eles uma aposta, onde seria eleita uma menina
virgem e eu teria que transar com ela e dispensá-la no dia do baile de formatura. Típica brincadeira
quase criminosa de moleques cruéis e inconsequentes e, considerando quem eu era na época, uma
mentira muito verossímil. Acho que cheguei a contar isso para você no baile.
— Sim, você me contou — Claire confirmou, a voz contida e os punhos cerrados.
— Pois é. O resto dessa parte da história você sabe em grande parte, mas...
— Eu não tinha culpa! — Claire explodiu, batendo com as mãos na mesa com força, lágrimas
invadindo seus olhos. Algumas pessoas olharam na direção deles. A voz dela era trêmula quando
continuou: — Eu era uma menina de 16 anos que tinha sido arrancada de tudo que me era familiar e
jogada numa selva de pessoas hostis. A única relação que eu tinha era com Margaret, todo o resto da
minha vida era um borrão solitário e infeliz. — Ela transbordava mágoa e raiva através das lágrimas,
que agora corriam soltas. — Você não tinha o direito de fazer isso comigo, Peter. Podia ter batido na
porta da minha casa, tirado satisfação com o meu pai, até dado um soco na cara dele se você
quisesse. Mas não tinha o direito de me machucar e de me humilhar daquela maneira.
Os olhos de Peter também ficaram úmidos novamente e sua expressão era desamparada.
— Eu sei disso, Claire. Hoje eu sei disso com tanta clareza que tudo que eu queria era poder
voltar no tempo e desfazer tudo aquilo.
— Não há como desfazer nada. Nada! — Ela estava transtornada. — Você me fez acreditar,
Peter. Acreditar que eu era bonita, que eu merecia ser amada e desejada por alguém. Por sua causa,
eu imaginei que poderia ser uma versão mais interessante e menos óbvia de mim mesma. Você me fez
acreditar que eu era especial para depois me humilhar em público, daquela maneira torpe. E com
isso me fez duvidar de mim, deixando uma cratera na minha vida emocional. Eu nunca mais consegui
confiar de novo em alguém e a culpa disso é sua e do seu comportamento vil.
A expressão dela era de repulsa e Peter baixou os olhos, envergonhado. Depois olhou para ela
com uma expressão profundamente triste.
— Existe uma parte daquela história que você nunca soube, Claire. — Puxando o ar com força
ele continuou: — Meu plano parecia perfeito. Eu conquistaria a menina tímida e sem graça e a faria
sofrer para atingir a pessoa que havia destruído a minha família. Só que quando eu comecei a te
conhecer, fui descobrindo que de sem graça você não tinha nada. Era uma garota inteligente,
divertida, carinhosa e extremamente doce. Seus olhos eram lindos, com um brilho dourado que eu
nunca vi igual, e seu rosto parecia o de uma boneca. E por mais que você não tivesse muitas curvas
naquela época, estar perto de você, beijando seus lábios macios e sentindo seu cheiro, me deixava
profundamente excitado. Por diversas vezes, eu simplesmente esquecia por que estava fazendo aquilo
e me permitia aproveitar os momentos maravilhosos que passava ao seu lado. Só que as sombras do
meu passado eram implacáveis e sempre davam um jeito de me lembrar dos motivos pelos quais eu
precisava te fazer sofrer.
Claire estava muda, olhando para ele com uma expressão indecifrável. Ele então admitiu:
— Naquela noite no carro, antes do baile, eu fui com a intenção de tirar sua virgindade. Seria a
última punhalada: tirar a virgindade da filha do inatingível Jason Hart e depois abandoná-la. Era o
golpe final perfeito. Por mais que a cada dia convivendo com você a ideia me parecesse mais errada,
a raiva que eu sentia e a necessidade de me vingar ainda eram fortes demais e não me deixavam
considerar nada diferente. Porém, quando eu vi o quão vulnerável você ficou naquela situação
embaraçosa do enchimento, eu simplesmente não consegui. Minha única vontade era abraçá-la e
dizer que você era linda, que eu a desejava exatamente do jeito que você era. Mas eu não podia
fraquejar, então apenas me afastei para concluir minha vingança no dia seguinte.
Peter bebeu um longo gole do suco antes de prosseguir:
— No dia do baile, eu estava muito nervoso. Mais de uma vez pensei em desistir de tudo, em
correr até sua casa, te contar toda a história, te implorar para que me perdoasse e dar um jeito para
que pudéssemos ficar juntos. Mas novamente as lembranças da minha infância, toda a dor, toda a
culpa e todo o abandono, me impediram. As minhas feridas emocionais foram avassaladoras e
deixaram cicatrizes profundas demais. Elas me moldaram em alguém sádico e cruel e só às custas de
muita terapia fui capaz de enxergar isso. Eu acreditava que poderia viver a vida toda sem me
importar com os sentimentos de ninguém, já que ninguém parecia ter se importado com os meus. De
alguma forma, eu fui abandonado pelo meu pai, pela minha irmã e pela minha mãe aos oito anos.
Desde cedo, eu aprendi coisas demais sobre mágoa e abandono e, ao longo de todos aqueles anos
que se seguiram, muito pouco sobre amor e cuidado.
Peter abaixou a cabeça, balançando-a como se lamentasse profundamente por tudo. Voltou a
falar sobre o baile:
— Mas mesmo com tudo isso, aquele dia não foi nada fácil. Tive que ingerir uma quantidade
monstruosa de álcool para tomar coragem e fazer o que eu fiz. Você estava linda e, quando te vi,
quase desmoronei. A cada olhar seu, a cada palavra que você dizia, eu morria um pouco por dentro.
A sensação de satisfação depois de tudo acabado simplesmente não veio e isso me fez começar a ter
raiva de você. Você tinha me sabotado. Você tinha me feito gostar demais de você e me tirado o
gostinho da vitória.
Ela olhava para ele, estupefata. Com uma voz aguda e alta demais, ela perguntou:
— Você achou que de alguma forma a culpa era minha?!
Ele balançou a cabeça em negativa, envergonhado.
— Eu estava muito doente, Claire.
— Sim, você estava. — Sua voz era fria e desprovida de emoção. — E sabe qual a maior ironia
desta história? Meu pai sequer soube de tudo isso. Eu não tive coragem de contar a ele ou à minha
mãe sobre o que você fez. A única pessoa com quem compartilhei foi Margaret.
Claire bebeu o último gole de seu suco e ficou olhando para o copo vazio por um longo
momento. Depois levantou seus olhos para Peter e o que havia ali era uma expressão devastada
quando ela continuou:
— Meu pai nunca foi próximo a mim, nunca foi carinhoso. Por muito tempo eu tentava chamar
sua atenção, fazê-lo se orgulhar de mim. Mas nunca recebi de volta nem uma pequena parte do que eu
sonhava em receber. Depois de um determinado momento, entendi que não deveria esperar nada dele.
— Ela deu um sorriso sem humor nenhum. — E não bastasse esse vazio que sempre houve na minha
vida em decorrência da incapacidade dele de me amar, eu agora descubro que o único homem que eu
amei foi incapaz de me amar de volta por causa de algo que meu pai supostamente fez. Existem
momentos em que as ironias com que a vida nos presenteia parecem especialmente cruéis.
O garçom chegou para oferecer a eles uma sobremesa, mas Claire educadamente recusou. Ela
estava completamente atordoada com tudo que estava ouvindo. Jamais poderia imaginar algo assim e
se sentia como se tivesse sido atropelada por um caminhão. Ambos mergulharam num silêncio
profundo, cada um processando tudo o que haviam acabado de conversar.
Riverview Park

PETER PAGOU A conta e ambos se dirigiram ao carro dele. Claire se manteve em silêncio
quando Peter começou a dirigir, até que percebeu que ele se encaminhava para o Riverview Park.
Desesperada, começou a protestar:
— Não, Peter! Isso é demais. Não faça isso, por favor.
Ele colocou a mão sobre a dela e pediu, com os olhos suplicantes:
— Claire, o mirante continua sendo o meu lugar favorito nessa cidade, mas eu nunca mais
consegui colocar os pés lá. Ainda há algumas coisas que eu preciso dizer a você, e gostaria muito de
poder fazer isso lá. Precisamos fazer as pazes com o passado para podermos seguir em frente. —
Vendo que ela hesitava, ele olhou para ela e pediu: — Por favor. Uma última vez.
Cansada, ela fechou os olhos e assentiu. Sequer se sentia em condições de protestar por mais
nada, toda a energia parecia ter se esvaído do seu corpo. Eles estacionaram o carro e pegaram os
casacos, caminhando a seguir até o mirante. Claire notou que quase nada havia mudado ali e,
enquanto andava pelos caminhos arborizados, quase podia enxergar o casal de adolescentes de mãos
dadas, rindo e se beijando de forma apaixonada em uma noite qualquer de verão. Dezesseis anos
depois, a vivacidade do verão havia sido substituída pela quietude do inverno e aquele casal de
antes já não existia mais. As pessoas que agora caminhavam por aquele parque eram apenas dois
adultos profundamente machucados, buscando desesperadamente algum alívio para sua dor.
Chegando lá, foram para o mesmo canto reservado onde tinham estado tantas vezes. Claire
sentiu um aperto de angústia no peito. Pararam ali e ficaram apenas olhando para o horizonte por
longos minutos, sem se tocar. Em determinado momento, Peter admitiu:
— Meus últimos anos, desde que fui para a faculdade, foram insanos. Eu devo ter saído com
mais de trezentas mulheres diferentes, mas raramente mais de uma vez com cada uma. Nenhuma delas
tinha a permissão de passar a noite comigo e eram expulsas da minha cama logo após o sexo. Eu fui
um verdadeiro canalha. — Ele olhou para as luzes de Nova Iorque ao fundo. — De vez em quando eu
tinha notícias de você por amigos que continuaram em Jersey. Eles me contavam que você havia se
tornado uma mulher bonita, mas que continuava tão reservada quanto antes. Vários deles tentaram
sair com você, sem sucesso. — Ele deu um breve sorriso — Por algum motivo aquilo me deixava
feliz. A ideia de você nos braços de outro homem me fazia muito mal, o que eu sei que é
absolutamente incoerente, e o fato de você ainda mexer comigo dessa forma me fazia ter ainda mais
raiva de você.
— Tudo isso é inacreditável — Claire murmurou, mexendo numa dobra de seu casaco e
balançando a cabeça baixa em negativa.
— O ódio que eu alimentava de você me ajudava a manter algum controle, porque se eu parasse
para analisar as coisas como realmente eram me daria conta da grande merda que era minha vida. —
Peter virou de frente para ela e retomou a recapitulação da história dos dois. — Bem, ainda há coisas
que preciso te contar. Quando eu te vi no escritório do MSF, depois de 13 anos sem te ver, não te
reconheci. Você estava muito diferente e sequer olhava para mim, mas eu já tinha discretamente
conferido seu corpo com o olhar acurado da experiência. Comecei imediatamente a fantasiar levá-la
para a cama, tentando imaginar como eu poderia fazer isso sem estragar minha reputação profissional
durante a viagem. A verdade é que me senti absurdamente atraído no instante em coloquei os olhos
em você.
Ela revirou os olhos, balançando a cabeça em negativa para disfarçar o leve e indesejado
prazer que aquelas palavras provocaram. Alheio às emoções dela, ele prosseguiu:
— Quando descobri quem você era, toda a minha raiva voltou à tona. E o fato de eu estar tão
atraído não ajudou em nada, pelo contrário. Só me fez ficar mais irritado. Ainda assim,
precisaríamos passar seis semanas juntos, então tentei ser racional e dar uma trégua. Mas você estava
irascível.
Claire recordou a cena no corredor do hotel em Doha. Peter sorriu levemente.
— Ver você de biquíni naquela piscina me tirou do sério. Eu jamais poderia imaginar que você,
além de tudo, ficaria com um corpo tão espetacular. — Percebeu que ela corou levemente com o
comentário. — Tive que permanecer por algum tempo na piscina pensando em outra coisa, caso
contrário eu passaria vergonha na frente dos funcionários do hotel.
O rubor nas bochechas dela se intensificou.
— Admito que também me senti atraída por você — ela confessou com a voz baixa, sem
entender por que dizia aquilo.
Voltou a olhar para as luzes da cidade e não percebeu que ele sorriu levemente diante daquele
comentário.
— Quando vi que você estava passando mal no avião, fiquei realmente preocupado. Eu não
estava preparado para o sentimento que tomou conta de mim, uma necessidade de cuidar de você e te
proteger. Eu me senti um idiota, tentando ajudar uma mulher que eu deveria odiar e que claramente
também me odiava e me queria muito longe dali.
— Você não foi um idiota. Você foi maravilhoso naquela situação — admitiu.
— E então vieram as semanas de convivência no hospital, que me mostraram que a menina com
tantas qualidades que eu havia conhecido tinha se transformado numa mulher ainda mais incrível. Eu
desenvolvi naquelas semanas uma admiração e um respeito por você que eu acho que nunca senti por
ninguém.
Claire se surpreendeu com o comentário e olhou para ele com os olhos atentos, em silêncio.
— E para piorar a situação, além da admiração como profissional e como pessoa, eu estava
completamente atormentado com a atração sexual que eu sentia. Tive que me controlar várias vezes
para não te agarrar em público e fazer amor com você na primeira superfície disponível.
Claire corou violentamente, mas não resistiu ao comentário:
— Você parecia estar conseguindo resolver bem sua frustração sexual com Violette.
Peter riu com vontade.
— Ah, pobre Violette. Quer que te conte sobre ela?
Claire queria, desesperadamente, mas não teve coragem de responder. Ele entendeu que valeria
a pena explicar melhor sobre aquela situação.
— Bem, vamos lá. Acho que ficou óbvio para todos que ela estava dando em cima de mim. Ela
não fazia muita questão de ser discreta, mas jamais chegou a ser inconveniente — ele admitiu. —
Numa das primeiras noites, nós fomos até a praia à noite.
Claire se lembrou das risadas ouvidas pela janela do banheiro. Ele se corrigiu:
— Na verdade, tudo começou na sala. Depois de algumas cervejas, ela estava bem desinibida.
Todos resolveram dormir e sobramos apenas nós. Ela sugeriu que nós fôssemos até a praia e, mesmo
cansado, eu aceitei. Ela era bonita e eu precisava tirar você da minha cabeça. Conversamos um
pouco e então ela literalmente me atacou. Me puxou para um beijo nada sutil, inclusive pegando
minha mão e colocando-a por dentro do decote do vestido folgado, dando total acesso aos seus seios
sem sutiã.
Claire deu um suspiro, não sabendo se desejava ouvir todos aqueles detalhes. Peter não
percebeu essa reação.
— Depois de alguns beijos, ela guiou minha mão para o meio de suas pernas. Quando afastei a
calcinha, percebi que ela estava muito excitada e sei que àquela altura eu deveria estar louco de
tesão por ela. Mas a seguir, quando ela enfiou a mão por dentro do meu short, nós dois tivemos uma
surpresa desagradável. — Claire pareceu não entender, então ele explicou melhor: Eu... não
consegui ficar excitado, mesmo com meus dedos tocando-a daquela forma.
Inominável tristeza

CLAIRE SUPREENDEU-SE COM a informação e abriu a boca com uma expressão chocada.
— Humilhante, eu sei. — Ele baixou a cabeça. — Nem eu sabia por que meu corpo não havia
conseguido responder, aquilo era totalmente atípico e embaraçoso. Ao notar isso, ela pareceu um
pouco decepcionada, mas disfarçou. Ainda assim, não havia clima para mais nada. Nós nos
despedimos e fomos para nossos quartos, cada um para o seu. Antes eu passei no banheiro para
escovar os dentes e senti seu cheiro lá. Me lembrei de você de biquíni na piscina do hotel e
ironicamente meu corpo respondeu na mesma hora, me deixando numa situação bastante incômoda.
— Ele deu um sorriso sem graça. — Digamos que você ocupou completamente meus pensamentos
enquanto eu me aliviava, e era em você que eu pensava quando gozei.
— Peter! — Claire exclamou, sem querer admitir que estava mais lisonjeada do que ofendida
pela surpreendente informação.
— Depois desse dia, ainda nos encontramos sozinhos na praia uma vez. Você estava tomando
banho de mar e eu não conseguia tirar os olhos de você. Violette percebeu e chegou a me perguntar o
que havia entre nós porque, segundo ela, eu parecia um bobo te olhando. Eu neguei com veemência e
passei a fazer um esforço para não olhar mais na sua direção. Ela mais uma vez tentou me beijar
depois que você foi embora e eu até tentei retribuir, mas eu simplesmente não estava com a cabeça
ali e ela finalmente desistiu de mim pelo resto da viagem. Acho que eu só conseguia pensar em você.
Peter sorriu levemente com aquela lembrança. Claire permanecia em silêncio, encostada na
grade e olhando para o vazio. A voz dele soou suave:
— No dia em que perdemos Faduma, eu senti que ninguém no mundo compartilhava aquele
sentimento além de nós dois. Isso me fez sentir mais próximo a você do que eu já me senti em relação
a qualquer outra pessoa. E no dia em que salvamos juntos Jamilah e seu bebê, eu não pude mais
conter o sentimento que eu tinha por você. Eu nunca tinha me sentido tão vivo quanto naquele dia, tão
útil, tão importante... e você era a única pessoa com quem eu queria partilhar tudo aquilo. Beijar
você de novo, depois de todos aqueles anos, me fez sentir coisas que eu sequer imaginava possíveis.
E isso me assustou pra caralho — ele admitiu.
— Você disse que tinha se arrependido — Claire lembrou, magoada.
— Claro que eu disse. Eu estava completamente perdido, não podia conceber a ideia de ficar
tão vulnerável assim por causa de alguém, especialmente alguém que eu ainda achava que deveria
odiar, mesmo que esse pensamento parecesse cada vez mais distante e sem sentido. Eu precisava
desesperadamente me afastar de você.
Claire se manteve em silêncio, compreendendo o quão complexo era tudo aquilo que ele aos
poucos revelava para ela.
— Fugi de você por causa disso. Eu não via a hora daquelas semanas acabarem, eu precisava
sair de perto de você. Até que aconteceu o tiroteio. Eu tinha ouvido seus ruídos no banheiro, sabia
que você estava lá, e a imagem de uma bala atravessando aquela janela e pegando em você me
enlouqueceu. Eu precisava te trazer para perto de mim, te proteger. Só não esperava que você fosse
estar praticamente nua. — Ele fez uma pausa, recordando a cena dos dois abraçados na cama dele.
— Eu tentei desesperadamente pensar em outra coisa, mas meu corpo tinha vontade própria e reagia
violentamente a você. A seguir você se levantou, seu seio ficou a centímetros da minha boca e acabei
vendo seu corpo quase inteiro. Aquilo me tirou do sério e eu achei que morreria de frustração sexual
quando você correu para o seu quarto. Caso você tivesse permanecido mais trinta segundos na minha
frente, eu teria te arrastado de volta para a cama e feito amor com você até o dia amanhecer.
Claire mais uma vez sentiu as bochechas esquentarem, numa mistura de vergonha e prazer pelas
palavras dele. Devido à baixa iluminação naquela parte do parque, Peter não notou sua
reação. Encarou-a brevemente, antes de se voltar novamente para o horizonte.
— Em Istambul, eu estava disposto a fazer com que pudéssemos terminar tudo aquilo como
amigos. Àquela altura, eu estava definitivamente convencido de que você era uma pessoa muito
especial e com quem eu não queria mais brigar, independentemente do que havia acontecido no
passado. Desde que eu pudesse manter minhas mãos longe de você, tudo estaria bem. Poderíamos
terminar aquela experiência num clima ameno e trocar cartões de Natal depois. — Ele riu,
tristemente. — Que grande ingênuo eu fui.
Ela recordou a última noite deles em Istambul e sentiu o coração acelerar ao saber que ele
falaria sobre isso.
— Quando nós voltávamos para o hotel depois do pub, eu me vi com dificuldade de lembrar os
motivos pelos quais nada deveria acontecer entre nós. Então eu vim entoando um mantra na minha
cabeça, “Essa é Claire Hart, essa é Claire Hart”. O passado já não parecia importante e meus
motivos mal me convenciam, mas eu sentia que se cedesse estaria perdido. Reuni todas as minhas
forças para me despedir de você no elevador e seguir para o meu quarto. Porém, ao chegar lá, eu
senti uma angústia tão grande ao pensar que não te veria mais depois do dia seguinte que
simplesmente parei de raciocinar e fui até o seu quarto sem ter a menor ideia do que eu ia dizer, sem
pensar no depois. Quando te vi ali na porta, descalça e com cara de choro, o único pensamento
coerente que eu tive foi o de que eu nunca tinha desejado tanto alguém em toda a minha vida. Eu
precisava desesperadamente ter você.
Claire sentiu os olhos ficarem levemente marejados diante da intensidade e a sinceridade do
sentimento que ele demonstrava.
— Fazer amor com você, Claire, foi a experiência mais sublime da minha vida. Cada segundo
que passamos juntos naquele quarto está guardado na minha memória para sempre. Seu gosto, seu
cheiro, seu toque, seu sorriso... Todas as vezes em que me sinto perdido ou desmotivado, é para lá
que eu vou em pensamento. Aquelas lembranças me fazem sentir vivo, como nenhuma outra é capaz
de fazer.
— Quando te liguei, você disse que o sexo havia sido “satisfatório” — ela acusou, incapaz de
esquecer as palavras dele naquela conversa.
— O que você queria que eu te dissesse? Que havia sido a melhor experiência da minha vida
com uma mulher e que eu estava completamente apaixonado por você? Que admitisse que você havia
rompido todas as defesas que eu cuidadosamente construí ao longo de décadas e que me fazia sentir
totalmente vulnerável?
— Você teria nos poupado tanto sofrimento se tivesse feito isso ao invés do que você fez... —
ela constatou, profundamente triste.
— Hoje eu sei disso. Naquela época eu só conseguia pensar que eu precisava urgentemente me
afastar de você e da ameaça que você representava à minha falsa sensação de controle e segurança
emocional. Se eu cedesse ali, teria que admitir que nada do que eu acreditava era real e que a
persona que eu havia criado para mim mesmo era uma fraude lastimável. Eu não tinha naquela época
nenhum recurso emocional para lidar com a catástrofe que seria descobrir o quão sem sentido e
patética era minha existência desde a morte do meu pai. Eu não saberia o que fazer, como sair
daquilo tudo. Então, eu simplesmente continuava vivendo da única maneira que eu tinha aprendido
desde muito cedo: sozinho, com raiva, me defendendo de tudo e impedindo o surgimento de qualquer
sentimento que me deixasse vulnerável. Era instinto de sobrevivência, Claire.
As lágrimas rolavam pelo rosto de Claire agora, e sua voz era desolada:
— Nós poderíamos ter vivido uma história linda. Tivemos duas chances para isso. Por que as
coisas não poderiam ter sido diferentes? Por que, Peter? — ela perguntava, mais para si mesma do
que para ele.
— Eu era uma pessoa atormentada pelo meu passado. Sendo bem sincero, eu ainda sou, Claire.
Cheio de sentimentos mal resolvidos e cicatrizes. Eu precisei chegar ao fundo do poço depois de ter
afastado você pela segunda vez para perceber isso. — Ele fez uma pausa, recordando o período logo
após a viagem. — Eu não tenho mais família, há anos não falo com minha irmã. Meus amigos se
resumem a companheiros de bebedeira no fim de semana. Quando voltamos da África, eu me afundei
no trabalho e na bebida. No dia do Natal, eu estava tão mal, bebendo sozinho em casa e
amaldiçoando a vida, que quase entrei em coma. Quando comecei a perceber que esse
comportamento estava interferindo no meu trabalho e que eu poderia colocar pessoas em risco,
busquei ajuda.
Ela o encarava, desnorteada, sem saber o que pensar de tudo aquilo. No olhar que ele lhe
devolvia, tudo que enxergava era sinceridade e uma profunda vulnerabilidade. Peter assumiu um tom
mais firme:
— Há dois anos e onze meses estou em terapia. Consigo controlar a bebida com facilidade e
nunca bebo quando estou sozinho. Não há propósito em fazê-lo, já que percebi que beber não faz com
que nada fique melhor, pelo contrário. Hoje eu consigo entender com mais clareza tudo o que
aconteceu e, acima de tudo, consigo perdoar. Perdoei meu pai por ter nos abandonado, ele devia
estar vivendo o inferno para ter feito o que fez. Perdoei minha mãe por não ter sido forte o suficiente,
por ela mesma e por mim. Perdoei minha irmã, ela estava tão perdida quanto eu. Perdoei até mesmo
o seu pai, porque na verdade a culpa do suicídio do meu pai não foi dele. Ele poderia ser um chefe
ruim, mas as pessoas precisam assumir a responsabilidade sobre os problemas e agir, ao invés de
jogar a culpa de seu fracasso nos outros — ele fez uma pausa, olhando para ela com olhar profundo.
— O mais importante foi que eu consegui perdoar o Peter de oito anos, hoje sei que ele não teve
culpa de nada do que aconteceu. — Ele fez um carinho no rosto banhado em lágrimas dela e
completou: — E obrigado por estar aqui comigo hoje, permitindo que eu te conte tudo isso. É um
passo fundamental para que um dia eu possa ser capaz de me perdoar pelo que eu causei a você.
Talvez assim eu tenha uma chance real de encontrar minha paz.
Claire abraçou-o, soluçando. Ela sentia por tudo que Peter havia perdido, mas também pelo que
ela havia perdido. As coisas poderiam ter sido muito diferentes. Ele a abraçou de volta com força,
permitindo que o calor dela o aquecesse por alguns minutos. Ela então se afastou, enxugando o rosto
e dizendo:
— Por mais uma ironia do destino, no dia 18 de dezembro, há exatamente três anos, você me
virou as costas depois de romper minhas defesas, deixando um profundo vazio no gigantesco espaço
que você usurpou do meu coração. E aquela não foi sequer a primeira vez que eu me permiti me
apaixonar para depois ser esmagada por você.
Ela ficou com o olhar perdido, lembrando o inferno que havia vivido por causa dele – duas
vezes – e sabendo que o desastre que era sua vida amorosa se devia em grande parte a isso.
Balançando tristemente a cabeça, continuou:
— Tudo que você me disse hoje ao menos explica seu comportamento, mas não muda o fato de
que você já me fez sofrer demais, Peter. Não estou preparada para passar por tudo isso outra vez.
Ele entreabriu levemente os lábios e levantou as sobrancelhas, numa expressão surpresa.
Balançando a cabeça em negativa, segurou-a pelos ombros, fazendo-a encarar seus olhos que
transbordavam de carinho e preocupação:
— Claire, eu não esperava que uma reaproximação entre nós fosse resultar disso. De verdade.
Nem eu mesmo tenho certeza de que estaria pronto para algo assim. Sei que tenho um longo caminho
pela frente na terapia e, honestamente, ainda não tenho ideia do que resultará de tudo isso. Eu
descobri que preciso deixar o passado para trás, mas de uma forma madura e bem resolvida. Entendi
também que eu mereço a chance de encontrar minha própria felicidade. — Ele olhou para o
horizonte, percebendo que alguns flocos de neve começavam a cair. Com um tom triste e resignado,
ele concluiu: — Nunca fui tão feliz quanto nos momentos em que estive ao seu lado, mas o que eu
sinto por você é profundo demais para que eu queira correr o risco de magoá-la novamente. Por isso
não estou te pedindo nem te oferecendo absolutamente nada aqui. O simples fato de fazê-la saber que
nada disso nunca foi culpa sua e que você é uma pessoa maravilhosa, que merece ser amada sem
reservas, é o suficiente para mim.
Ela assentiu com um movimento de cabeça, profundamente triste e cansada.
— Está nevando. É melhor voltarmos — ela observou.
Voltaram para o carro e ele seguiu o caminho para a casa dela. Todo o percurso foi feito em
silêncio e, ao se despedirem, Claire disse:
— Eu não te odeio mais. De verdade. Não consigo sequer imaginar o inferno que você viveu
esses anos todos. — Notou que ele sorriu, mas o sorriso era melancólico. — Vou torcer para que
você fique bem. E se precisar de alguma coisa, conte comigo.
— Obrigado, Claire. Isso significa muito para mim, assim como essa noite significou.
Deu nele um último abraço rápido e saiu do carro, entrando em seu prédio. Ao chegar em casa,
desabou no sofá com as mãos no rosto pensando em como diabos conseguiria que sua vida voltasse a
fazer algum sentido depois daquela noite.
Natal

Nova Iorque, 20 de dezembro de 2015


— EM RESUMO, FOI isso. — Claire mordeu uma fatia da pizza que ela e Margaret haviam
pedido pelo telefone.
Estavam sentadas no sofá da médica, dois dias depois do encontro entre ela e Peter, comendo
fatias de pizza em guardanapos de papel. Claire estava com os joelhos dobrados junto ao peito.
Margaret se sentava de pernas cruzadas e seu rosto, sempre tão expressivo, havia adquirido uma
máscara de incredulidade conforme a história ia sendo contada.
Claire desviou os olhos para a neve que caía lá fora. Ao que tudo indicava, o Natal que
ocorreria em apenas quatro dias seria desses de cartão postal. Dezembro era o mês favorito dela por
vários motivos. Um deles era porque estar num apartamento confortável e aquecido vendo a neve
caindo através da janela era para ela uma das sensações de maior aconchego que existia. Outro era o
fato de que a atmosfera que se instalava próxima ao Natal, algo quase mágico, representava para ela
uma chance de fugir dos problemas. Era como se estivesse vivendo num filme de comédia romântica
onde tudo dava certo no final, exceto pelo fato de que, para ela, romance e finais felizes eram bem
mais complicados do que se podia imaginar.
— Eu não sei o que dizer. — Margaret obrigou-a a voltar para a realidade quando falou. — Eu
jamais poderia imaginar que ele possuía uma coleção tão invejável de motivos para ser um babaca.
— Pois é. — Claire deu de ombros, mordendo novamente a pizza.
— E o que você pretende fazer? — Margaret insistia em fazer essa pergunta nos momentos em
que não havia o que se fazer. As coisas eram como eram.
— Não há nada o que se fazer — Claire respondeu, ainda mastigando. A seguir engoliu e
prosseguiu com a voz mais clara: — Ele explicou os motivos dele, eu entendi. Ponto final.
Margaret encarou-a, estreitando os olhos.
— O homem por quem você é perdidamente apaixonada há 16 anos, por mais que não ouse
admitir, fez uma verdadeira declaração de amor para você há dois dias. Isso não mexeu com você
nem um pouquinho?
— Ah, Margaret. — Suspirou. — Claro que mexeu comigo. Ele me disse tudo que eu sempre
sonhei em ouvir dele, só que com mais de uma década e dois corações partidos de atraso. Até eu já
me cansei dessa história, uma montanha-russa emocional que parece nunca ter fim. Eu preciso me
desvencilhar disso e buscar uma relação saudável com alguém.
— Eu entendo como você se sente. Você sabe que nunca fui uma defensora de Peter, muito pelo
contrário. Sempre te estimulei a buscar outra relação, porque nunca achei que ele seria capaz de te
fazer feliz como você merece. — Segurou a mão da amiga com um olhar terno e um sorriso
compreensivo. — Mas eu sei o quanto é raro sentir por alguém o que você sente por ele. Eu mesma
até hoje nunca encontrei ninguém que me fizesse sentir assim, e olha que já tive uma boa cota de
relacionamentos. Não que eu esteja procurando, mas acho que esse tipo de sentimento nós não
procuramos. Somos encontrados por ele se estamos minimamente abertos a isso.
Claire a encarava de volta, seus olhos cor de mel exibindo uma miríade de dúvidas. Margaret
continuou:
— Não estou dizendo que vai dar certo, nem que ele nunca mais te fará sofrer. Mas ao menos
algo de novo aconteceu. Ele se permitiu se abrir com você, compartilhou contigo os momentos mais
dolorosos da vida dele e fez questão de deixar claro que em nenhum momento você fez nada para
merecer o que ele fez com você. Por tudo que você contou, acho que uma transformação real
aconteceu ali. E o fato de ele estar fazendo terapia há três anos e saber que precisa continuar nela,
porque ainda tem um caminho a percorrer, é um excelente sinal. Pela primeira vez, eu vejo a história
de vocês de forma diferente. Realmente diferente.
Claire jogou a cabeça para trás no sofá e fechou os olhos. Como tudo aquilo era complicado.
Margaret escorregou para mais perto dela ao dizer carinhosamente:
— Se você tivesse superado Peter e estivesse seguindo sua vida, independentemente de estar
com outra pessoa ou não, eu jamais diria o que estou dizendo. Mas a verdade é que você está presa
nesse passado tanto quanto ele e, se não pagar para ver como as coisas seriam diante dessas
mudanças todas, nunca será livre para viver sua vida de maneira plena. O fantasma do “e se” vai te
assombrar para sempre.
Um suspiro escapou do peito de Claire, amando e odiando Margaret por conseguir colocar em
palavras aquilo que ela mesma relutava tanto em admitir.
— Vá devagar, Claire. Saia com ele como amiga apenas. Permita-se conhecer um pouco mais de
quem ele realmente é agora, sem disfarces ou subterfúgios. Você pode se desencantar e partir livre,
leve e solta para outra ou então...
— Ou então... — Claire olhou para ela.
— Ou então finalmente viver essa relação como ela sempre mereceu ser vivida.
Voltando o olhar para a janela e deixando a cabeça viajar pelas possibilidades, Claire bebeu um
gole de seu refrigerante zero.

O dia seguinte era um sábado e o tempo feio lá fora não era muito animador. Depois de almoçar
o conteúdo nada convidativo de uma embalagem de comida congelada, Claire ficou sentada no sofá
olhando fixamente para seu telefone. Armando-se de coragem, ligou para Peter.
— Alô?
— Oi, Peter.
— Claire? — Ele parecia genuinamente surpreso com a ligação dela. — Como você está?
— Muito bem. E você?
— Bem, obrigado. — Silêncio. — Há algo que queira falar comigo?
— Na verdade sim. Você está livre hoje à noite? Prefiro conversar pessoalmente.
— Não, mas poderei ficar — ele respondeu, rapidamente. — O que você gostaria de fazer?
— Podemos sair para comer. — Foi inevitável imaginar se o encontro que ele tinha era com
uma mulher. Ficou secretamente feliz por perceber que ele trocava qualquer que fosse seu
compromisso por um encontro com ela.
— Me parece ótimo. Te busco às oito?
— Combinado.

O restaurante era pequeno e aconchegante, localizado próximo ao apartamento de Claire. Como


a neve tinha dado uma trégua, eles foram a pé. Depois de se acomodarem numa mesa e pedirem um
vinho, Peter aguardou que ela começasse a falar, apoiando os braços sobre a mesa e olhando para
ela. Sob a suave iluminação do restaurante, ele parecia ainda mais bonito.
— Peter, eu queria te dizer que tudo bem se você quiser aceitar o convite para trabalhar no
Memorial. — Ela começou, surpreendendo-o. — Você já perdeu coisas demais, e não quero me
sentir responsável por essa.
Ele deu-lhe um sorriso caloroso e buscou sua mão.
— Como você consegue ser assim? Tão generosa? Nem sei o que te responder.
Ela deu de ombros, bebendo um gole de seu vinho.
— Acho que podemos tentar ser amigos. Se você quiser — acrescentou rapidamente, tentando
soar casual.
— Eu certamente gostaria disso. — Ele capturou-a naquele olhar profundo.
Conversaram durante quase duas horas no jantar, procurando manter um tom leve e divertido ao
selecionarem os assuntos. A exceção para isso foi o momento em que Claire contou a ele sobre o
diagnóstico de Alzheimer que Jenna havia recebido pouco tempo depois que voltaram da viagem
para a África.
— Os esquecimentos dela foram se tornando mais frequentes e perigosos. Ela deixava com
frequência a porta da casa aberta, saía na rua de camisola. Uma vez deixou uma chaleira no fogo e foi
dormir. Por sorte eu cheguei para visita-la e evitei um incêndio. Decidi procurar um médico e o
diagnóstico veio. — Claire baixou a cabeça e mexeu no guardanapo. — Foi bem difícil. Ainda é, na
verdade.
— Nossa, Claire. — Ele segurou suas mãos. — Sinto muito em saber. De verdade. Sempre
achei sua mãe uma pessoa muito doce.
— Ela é. — Claire sorriu com tristeza. Balançando levemente a cabeça, ela mudou de assunto.
— Agora vamos falar sobre coisas mais alegres.
Acabaram rememorando episódios curiosos da viagem para a África e riram com algumas
lembranças. Ela contou que ainda manteve contato com Martin e Sander por e-mail depois de seu
retorno a Nova Iorque. Martin agora coordenava uma missão na Serra Leoa e tentou convencer Claire
a se juntar a eles, mas seria impossível para ela se ausentar do trabalho naquele momento. Contou
então sobre as diversas campanhas que havia feito nesses três anos, conseguindo doações para o
MSF e também enviando uma soma considerável em dinheiro para uma ONG que fazia um belo
trabalho com crianças órfãs na Somália. O MSF havia suspendido suas atividades no país em função
do assassinato de dois de seus membros na sede administrativa em Mogadíscio e da piora da
situação de segurança no país, o que havia deixado Claire arrasada. Ela confidenciou que pretendia
retornar um dia, para ficar mais tempo, assim que a situação melhorasse. Peter ouvia, admirado.
— E você, teve notícias de alguém? — Ela colocou na boca a última colherada de sua
sobremesa.
— Além de Violette, eu não reencontrei com mais ninguém — ele respondeu, distraído.
Ela sentiu a pontada de ciúme. Percebendo a mudança em sua expressão, Peter explicou:
— Violette manteve contato comigo por mensagens durante os meses após nosso retorno. Em
julho de 2013, ela disse que viria passar dez dias de férias nos Estados Unidos com três amigas.
Ficariam dois dias em Nova Iorque e o restante do tempo na Califórnia. — Ele olhava para o próprio
prato vazio. — Depois ela admitiu que só incluiu Nova Iorque no roteiro por minha causa. Nós nos
encontramos num bar e acabamos ficando juntos naquela noite. Levei-a para meu apartamento e...
— Eu não preciso ouvir esses detalhes. — A voz era contida, mas expressava seu desconforto.
— Desculpe. Não estou conseguindo chegar onde eu pretendia. — Olhou para ela. — O que
estou tentando dizer é que sim, acabei transando com ela. Mas assim que acabou, tudo que eu queria
era vê-la longe dali. Ela percebeu, foi embora magoada e depois disso nunca mais nos falamos. Foi
uma situação bastante constrangedora, que infelizmente representou uma constante nos últimos anos
da minha vida. Não me orgulho nem um pouco disso.
Claire não sabia se sentia raiva daquele relato ou alívio por saber que Violette não tinha sido
afinal alguém especial para ele. Que inferno, ela ainda se importava. Muito.
Sem perceber o que se passava na cabeça dela, Peter concluiu:
— A verdade é que a única pessoa com quem eu tive vontade de dormir abraçado em toda a
minha vida foi você.
Ela fechou os olhos ao ouvir aquelas palavras. Ao reabri-los, sua voz soou cansada.
— Peter, acho melhor pedirmos a conta. Está ficando tarde.
Percebendo que tinha ido longe demais, ele se limitou a assentir. Depois de pagar, saíram do
restaurante e foram caminhando pelas ruas geladas. Ambos mantinham as mãos nos bolsos dos
casacos e seus cotovelos eventualmente se esbarravam. Disposta a amenizar o clima, Claire
comentou:
— Faltam quatro dias para o Natal. Pelo visto, nesse ano teremos uma noite branca.
Peter assentiu em silêncio, dando um sorriso gentil. Lembrando-se do que ele havia dito sobre o
Natal de três anos antes, ela perguntou:
— E você, passará o dia 25 com quem?
— Sozinho. — Percebendo que ela se lembrava de seu relato sobre o Natal de 2012,
rapidamente completou: — Mas não pretendo beber nenhuma gota de álcool. Como nos dois últimos
anos, assistirei a filmes antigos na televisão e dormirei cedo.
Aquela cena descrita pareceu a Claire insuportavelmente solitária. Num impulso, ela convidou:
— Eu passarei essa data com minha mãe em Jersey. Seremos apenas eu, ela e minha tia Angela.
Não sei se faz algum sentido para você, mas, se quiser se juntar a nós, será muito bem-
vindo. Percebendo a sinceridade do convite, Peter sorriu.
— Eu adoraria.
A terceira chance

Jersey City, 25 de dezembro de 2015


— O ALMOÇO ESTAVA delicioso, tia. Obrigada. — Claire beijou a face de Angela ao retirar os
pratos da mesa.
— Obrigada, meu amor.
— Por que estamos celebrando? — Jenna perguntou pela segunda vez naquele dia.
Claire ouviu a pergunta e elevou a voz na cozinha:
— Hoje é Natal, mãe. — Voltando à sala, deu-lhe um beijo e afagou seu rosto, sorrindo. — Mas
não faz diferença. Não deveríamos precisar de motivos para celebrar a vida.
Peter observava emocionado o carinho e a paciência de Claire com a mãe.
— Nossa, já passa das três da tarde! Vamos abrir os presentes — Angela soou animada,
especialmente depois de quatro taças de vinho.
A tarde estava sendo extremamente agradável e Peter mal viu o tempo passar. Parecia muito à
vontade na casa de Jenna e da irmã. Angela era separada, seu único filho morava na Austrália e o
rapaz não tinha nenhuma intenção de se casar ou ter filhos. Assim, Jenna e Claire haviam se tornado o
centro da vida dela nos últimos anos e havia se mudado para a casa da irmã para cuidar dela com
maior facilidade.
Encaminharam-se para junto da árvore de Natal e Jenna foi a primeira. Angela havia
providenciado presentes para que ela desse a todos e ajudou-a a separá-los. Entregou à filha uma
linda bolsa tipo carteira, que foi bastante apreciada. Para a irmã ela deu uma blusa e, para a surpresa
de Peter, estendeu a ele uma sacola decorada, após Angela sussurrar em seu ouvido que era um
presente para o rapaz.
— Me desculpe pela simplicidade, mas faz pouquíssimo tempo que Claire me avisou que você
viria. — Angela sorriu.
— Imagine. Eu que agradeço sua gentileza.
Peter abriu a embalagem e encontrou um vinho italiano. Deu em Jenna um abraço de
agradecimento, que foi calorosamente retribuído pela idosa. Angela veio a seguir e deu livros para
todos. Para a irmã um belíssimo livro para colorir, recomendado para pacientes com demência, para
Claire um romance de mistério e para Peter um livro sobre a história do automobilismo.
Timidamente, ela acrescentou:
— Não sei se é do seu agrado, se quiser pode trocar.
Peter estava genuinamente comovido com as demonstrações de afeto que recebia da pequena
família de Claire.
— Não será preciso. Eu adorei o livro — ele disse, com absoluta sinceridade.
Foi então a vez de Claire. Para a mãe, ela deu um jogo de encaixe de peças, que ajudava a
manter a concentração e acalmar. Jenna agradeceu efusivamente, ela vinha se interessando cada vez
mais por esses jogos ultimamente. Para a tia, Claire deu um conjunto de lençóis de algodão egípcio.
Foi igualmente bem recebido. Por último, estendeu a Peter um embrulho de uma loja cara de
Manhattan. Ele abriu a embalagem e encontrou um lindo suéter de cashmere preto.
— Sei que você adora preto — ela comentou, casualmente. Ele sorriu para ela, agradecendo.
Por último, foi a vez de Peter. Sem ter ideia do que comprar para a mãe e a tia de Claire, ele
optou por duas echarpes de uma elegante loja na quinta avenida. Ambas adoraram os presentes. Ele
se virou então para Claire e entregou-lhe uma sacola com o símbolo de uma famosa joalheria. Ela
abriu a sacola e encontrou uma caixa retangular de veludo preto, fina e comprida. Dentro dela havia
uma delicada gargantilha de ouro branco com um pingente de borboleta. Em letras miúdas, atrás do
pingente ela viu gravada a palavra “Liberdade”. Claire sentiu os olhos marejarem e abraçou-o,
controlando as lágrimas.
Uma hora depois, os jovens se despediram e Peter iniciou o trajeto até o apartamento de Claire,
para deixá-la em casa. Após alguns minutos de silêncio, Claire perguntou:
— Foi uma coincidência ou você se lembrou?
— Das borboletas? — Peter perguntou, sorrindo enquanto olhava para o trânsito à sua frente. —
Do quanto você era fascinada por elas e pelo seu poder de transformação? De como elas podiam
voar livres após essa metamorfose, depois de passarem parte de sua existência na forma de lagartas,
presas a um corpo que se arrastava pelos caminhos sem nunca parecer chegar onde desejava? É claro
que eu lembro. Lembro o nome das suas amigas de infância, Claire. Todas elas. Lembro-me de tudo
que algum dia você já me disse e que seja importante para você. — Ele olhou rapidamente para ela e
voltou a se concentrar no caminho. — E além de todas essas lembranças, reparei na nossa viagem
que você tem uma pequena borboleta tatuada próxima ao pescoço. Deduzi então que continua
gostando delas. — Peter fez uma pausa apoiando as duas mãos sobre o volante e voltando os olhos
para ela novamente num semáforo fechado. — De alguma forma, eu espero que isso que aconteceu
nesses últimos dias seja a sua transformação. Meu maior desejo neste momento é que você seja livre
o suficiente para poder ser plenamente feliz.
Claire olhava pela janela, em silêncio. Após algum tempo, pararam na porta do prédio dela.
Peter iniciou a despedida:
— Muito obrigado pelo convite. De coração. Foi o melhor Natal que eu tive em muito tempo.
Na verdade, desde os oito anos.
Ela fechou os olhos, suspirou e depois olhou para ele:
— Você quer subir?
Peter permaneceu por alguns segundos apenas olhando para ela, tentando decifrar algo em sua
expressão. Por fim ele disse:
— Você não precisa fazer isso.
— Sei que não preciso.
Um novo silêncio se seguiu, até que Peter o quebrasse:
— Você tem certeza?
— Não. — Seus olhos traíam o medo e a expectativa que tomavam conta dela.
Sem dizer nada, Peter engatou a marcha e dirigiu até um estacionamento 24h num quarteirão
próximo. Desceram do carro e caminharam em silêncio até o apartamento dela, cada um perdido em
seus próprios medos e incertezas. O céu havia mudado de cor, assumindo a bela mistura de tons
alaranjados e azulados do fim de tarde. O pôr-do-sol no inverno acontecia antes da cinco da tarde,
tornando as noites longas e frias.
Chegando ao pequeno estúdio, tiraram os casacos e Claire acendeu uma iluminação suave.
Dirigiu-se à lareira elétrica que ficava em frente ao sofá, junto à janela, e acendeu-a também. As
chamas artificiais tinham uma aparência extremamente real e o equipamento aquecia com rapidez e
facilidade o pequeno ambiente.
Ela tirou os sapatos de salto, ficando então bem mais baixa que ele. Peter se aproximou e
levantou suavemente seu queixo. Viu que ela mordia o lábio inferior, com uma expressão insegura.
Ele soltou-o delicadamente com o polegar, fazendo com que o dedo deslizasse por sua boca. Ela
fechou os olhos e suspirou.
Peter então aproximou o rosto do dela e beijou-a com suavidade. Sem conseguir resistir mais,
Claire o puxou pelo pescoço com as duas mãos aprofundando o beijo, e sua intensidade foi
imediatamente correspondida por Peter. Ele a fez descer até sentar no tapete macio que ficava em
frente à lareira. Os olhos dele brilhavam de desejo e algo mais, um sentimento que antes ela não
conseguia perceber claramente ali.
Ele retirou as próprias roupas, restando apenas a cueca. Claire puxou pela cabeça o vestido e se
livrou da meia calça. Peter ficou por alguns segundos apenas admirando-a, como se não pudesse
acreditar que aquilo estava realmente acontecendo. Ele então abaixou a alça do sutiã de renda preta e
cobriu seu seio com a boca, puxando seus cabelos para trás pela nuca. Claire gemia extasiada com o
toque dele, a boca parcialmente aberta e os olhos fechados.
Ele soltou seu sutiã, libertando seus seios, e repetiu o processo no outro mamilo, mordiscando e
passando a ponta de sua língua sobre ele. Claire desceu com sua mão pelo abdome definido dele até
chegar onde queria. Ajudou-o a libertar-se da cueca e começou a tocá-lo de maneira provocante,
estimulando seu membro com movimentos ritmados e ouvindo dele um gemido rouco.
Num gesto atrevido, ela fez com que ele se deitasse de costas no chão e ela ficasse por cima em
posição invertida, mantendo-se apoiada nos próprios joelhos e braços, o rosto em direção ao quadril
de Peter e seu próprio quadril muito perto do rosto dele. Ela então envolveu seu membro com a boca,
sugando de maneira provocante e percorrendo sua extensão com a língua. Peter gemeu alto e puxou o
quadril dela em direção à própria boca com um dos braços, afastando com a mão livre a calcinha
para o lado e devolvendo a ela o mesmo prazer com sucções e movimentos ritmados da língua em
seu clitóris.
Claire gozou em poucos minutos, enquanto ainda o torturava com sua boca. Ele então inverteu as
posições, colocando-a sob seu corpo. Tirou sua calcinha e se acomodou sobre ela, prendendo-a com
seu olhar. Claire abriu as pernas num convite silencioso e ele fechou os olhos, à beira de perder o
controle. Buscando prolongar aqueles minutos de intenso prazer, ele primeiro começou a beijar seu
rosto, sua boca, seu pescoço e então, sem conseguir mais esperar por esse momento, ele a penetrou
devagar, apenas a glande, olhando diretamente dentro de seus olhos.
Era como se ele pedisse a permissão dela para invadir não apenas seu corpo, mas seu coração e
sua alma. Seu olhar mostrava que ele estava ali por inteiro, que ele era dela e que queria saber se ela
seria dele também. Claire sentiu o coração disparar ao perceber a enormidade do que ele lhe dizia,
mesmo que de sua boca não tivesse saído nenhuma palavra. Precisando desesperadamente senti-lo
dentro de si, preenchendo-a por inteiro, abraçou seu quadril com as próprias pernas, fazendo-o
penetrá-la até que seus corpos tivessem se fundido em um. Algo dentro dele pareceu se transformar e
ele a beijou com sofreguidão, enquanto acelerava os movimentos levando-os juntos a um orgasmo
indescritível.

Depois que se deitaram lado a lado, cansados e satisfeitos, Peter pegou seu celular e colocou
para tocar In These Arms, do Bon Jovi. Sem abrir os olhos, Claire ergueu as sobrancelhas com um
sorriso surpreso. Ele realmente se lembrava de tudo. Peter se virou de lado, apoiou a cabeça em um
braço erguido pelo cotovelo e ficou admirando o corpo nu de Claire, iluminado pela luz suave da
lareira. Ela mantinha os olhos fechados e um sorriso deliciado no rosto.
— Você é a mulher mais incrível e mais deliciosa que eu já conheci em toda a minha vida.
Ela então olhou para ele, rindo.
— É sério — ele continuou. — Nada do que eu vivi com qualquer outra mulher sequer chega
aos pés. Nunca vou me cansar de fazer amor com você.
O rosto dela ficou mais sério, enquanto olhava para ele. Fazendo um carinho em seu rosto, ela
disse:
— Não quero promessas. Não quero fazê-las nem ouvi-las de você. Quero dar uma chance a
nós, quero poder viver um dia de cada vez e ver como será. Acho que nós dois passamos por muita
coisa, hoje somos pessoas diferentes e que sentem algo realmente especial uma pela outra. Por ora,
isso basta para mim.
Peter abraçou-a, acomodando a cabeça dela em seu peito e ela o abraçou de volta, uma parte de
seu corpo sobre o dele. A música do Bon Jovi continuava tocando ao fundo.

Baby I want you


Like the roses want the rain
You know I need you
Like the poets need the pain
And I would give anything
My blood, my love, my life
If you were in these arms tonight[4]

Ele fazia carinho em suas costas.


— Sabe, por muitos anos eu não conseguia sequer ouvir essa música. Pensar em você era algo
que me fazia muito mal. — Ele sorriu tristemente antes de continuar. — Depois que comecei a fazer
terapia, passei a ouvi-la eventualmente. E em todas as vezes eu pensava que, assim como na letra,
daria qualquer coisa para ter você em meus braços mais uma vez. Só que acreditei que esse era um
sonho impossível. Que eu tinha te perdido de vez.
Ouvindo isso e olhando para as chamas da lareira elétrica, ela admitiu:
— Desde que nos conhecemos, você mexeu demais comigo. Com você, sentimentos como
desejo, ansiedade, expectativa, medo e dor afloravam constantemente, chegando a níveis quase
insuportáveis. Depois da rasteira que eu levei, decidi que precisava me proteger. Eu não queria
sentir aquilo tudo de novo, passar por tudo aquilo.
Ele fazia carinho nos cabelos loiros e ouvia com total atenção. Ela prosseguiu:
— Uma vida em que não nos permitimos sentir pode parecer segura, mas ela é apenas vazia.
Não quero mais viver assim, Peter. Decidi que de agora em diante eu me permitirei conjugar o verbo
sentir novamente. — Ela passava os dedos pelo peito dele. — E ninguém mais que você é capaz de
me oferecer isso.
Ele levantou com delicadeza o queixo dela, para que pudesse olhar em seus olhos antes de
dizer:
— A sua oferta de viver um dia de cada vez e ver aonde isso vai nos levar é mais do que eu
sequer imaginei ser possível. Não sei se mereço essa segunda chance, mas sei que farei de tudo para
que nós dois sejamos felizes. Existe mesmo algo muito especial entre nós e você errou feio quando
disse que o único homem que amou foi incapaz de amá-la de volta. — Ele puxou-a para mais perto
de si e passou os dedos com doçura por sua face. — Não gosto de rótulos e nunca aprendi a ser um
cara romântico, mas estou disposto a tentar. Hoje eu enxergo com clareza que o que sinto por você se
encaixa em qualquer descrição possível para a palavra amor. Eu te amo, Claire. E isso faz muito
mais tempo do que você imagina.
Ela sentiu seus olhos marejarem ao ouvir as palavras pelas quais passou 16 anos esperando.
— Também te amo. Tudo isso ainda é muito difícil para mim, mas o sentimento é inegável. Para
ser honesta, eu te amo desde que descobri que sou uma pessoa melhor quando estou com você. — Um
suave sorriso iluminou seu rosto. — Só espero que o que sentimos um pelo outro seja o suficiente, ao
menos por enquanto.
Ele beijou seus lábios com suavidade, ambos mantendo suas testas coladas e seus olhos
fechados quando as bocas se afastaram. Claire então deitou novamente o rosto no peito forte. Assim
permaneceram por um longo tempo, digerindo a decisão que haviam acabado de tomar. Eles
finalmente dariam àquela relação a chance de ser vivida da forma como ela sempre mereceu.
Em determinado momento, Claire chamou-o, ainda encostada em seu peito:
— Peter?
— Hum?
— Não é a segunda. É a terceira.
— Terceira o quê?
— Chance. Essa é a terceira chance.
Ele sorriu contra os cabelos dela.
— Verdade.
Ela levantou um pouco o corpo e o encarou determinada.
— Não estrague tudo. Não vai haver a quarta.
Ele puxou a cabeça dela novamente contra o peito, beijando seus cabelos e abraçando-a com
força.
— Não será preciso, pequena.
Ele fechou os olhos. As pernas deles estavam entrelaçadas e a lareira aquecia o pequeno
ambiente enquanto a neve caía lá fora. Claire puxou uma manta macia que estava no sofá e cobriu a
ambos com ela, se aconchegando mais a ele. Peter finalmente estava em casa e faria tudo que
estivesse ao seu alcance para nunca mais precisar partir.
Epílogo

Nova Iorque, 25 de dezembro de 2019


— CLAIRE, VAMOS! — PETER chamou, na porta de casa. — Já estamos atrasados.
Claire desceu as escadas com certa dificuldade, equilibrando o peso da barriga. Estar grávida de
quase nove meses e descer a escada com uma criança de dois anos no colo era uma tarefa que exigia
concentração. Ao perceber que ela trazia Aisha no colo, Peter largou as sacolas no chão, apoiou a
torta na mesinha e correu até ela:
— Já falei para você não fazer isso, pequena. — Ele tirou a criança dos seus braços e beijou a
bochechinha redonda cor de chocolate ao acomodá-la no colo. — Vai acabar caindo com ela.
Claire sorriu para ele, pensando em quantas vezes ele repetia a mesma coisa e ela continuava
fazendo. Como era possível resistir aos bracinhos roliços que se estendiam para ela no alto da
escada, pedindo colo para descer?
Com Aisha em um dos braços, Peter usou a mão livre para pegar a sacola com os presentes de
Natal. Claire vestiu o casaco na menina e depois o próprio casaco, percebendo que a barriga ficava
para fora. Pegou a torta, fechou a porta da casa e ambos se encaminharam para o carro. Uma neve
fina caía, deixando o cenário branco da noite de Natal ainda mais mágico.
Eles haviam se organizado para almoçar com Jenna e Angela, mas Peter estava de sobreaviso
no hospital e uma cirurgia de urgência havia surgido no fim da manhã. Com isso precisaram ajustar
os planos e decidiram jantar com a família de Claire para comemorar a data.
Assim que entraram no carro, o celular de Claire tocou. Vendo quem era, atendeu com um
sorriso.
— Oi, Margaret.
— Feliz Natal, minha amiga querida! — A voz dela era carinhosa e animada.
— Para você também. — Ela alargou o sorriso. — Essa animação toda é por causa do Natal?
Margaret deu uma gargalhada antes de dizer:
— Chega a ser irritante o quanto você me conhece.
— Então pode tratar de me contar.
— Pelo telefone? De jeito nenhum. Terça-feira eu vou até sua casa e te conto pessoalmente.
— Ah, Margaret! — Claire se remexeu no assento tentando acomodar a barriga. — Você sabe
que odeio que me deixem curiosa assim.
— Passo no sábado então. E não se fala mais nisso! Aproveite seu Natal, mande um beijo para
Peter e Aisha e outro especial para sua mãe.
Claire desligou o telefone com um sorriso nos lábios.
— Margaret tem alguma novidade? — Peter desviou os olhos da estrada por alguns segundos
para olhar para a esposa.
— Sim. E eu acho que sei o que é.
Eles dirigiram pelas ruas de Jersey até o apartamento da mãe de Claire. A doença de Jenna
havia piorado bastante nos últimos quatro anos. Ela já não andava mais, se alimentava com
dificuldade, raramente reconhecia as pessoas e nos últimos meses quase não falava. Pela dificuldade
de locomoção, retirá-la de casa era um desafio. Eles preferiam então se deslocar até o apartamento
que ela ocupava e esse já era o quinto Natal que passavam lá, mesmo tendo adquirido uma
confortável casa com jardim em outro bairro de Jersey há três anos.
Cuidadoras profissionais se revezam no cuidado com Jenna em tempo integral. Sua irmã havia
atingido um nível de elevada sobrecarga morando com ela e cuidando sozinha de suas necessidades.
Por isso, ela e Claire concluíram que seria melhor se Angela se mudasse para um apartamento no
mesmo prédio, a fim de estar próxima, mas conseguindo manter momentos de descanso e
privacidade. Ela a visitava duas vezes por dia e Claire, se dividindo entre seu trabalho, os cuidados
com a casa e a filha, no mínimo duas a três vezes por semana.
Depois de estacionar o carro, Claire retirou Aisha da cadeirinha enquanto Peter pegava a sacola
com os presentes e a torta no banco de trás. Deram uma ligeira corrida até a entrada do prédio, visto
que a neve se tornava mais forte. Aisha estendia as mãozinhas olhando para o céu, sempre fascinada
com este espetáculo da natureza. Claire sorriu e abraçou a filha, aspirando o cheiro delicioso
enquanto beijava ruidosamente seu pescoço e arrancava dela uma gargalhada de cócegas. Em poucos
minutos já adentravam o apartamento, onde o fogo crepitava na lareira e mantas coloridas cobriam os
sofás acolchoados. Era uma típica casa de avó e Claire sentia profundamente o fato de que a filha
dela nunca poderia ter com sua mãe o tipo de relação de avó e neta que ela sempre sonhou. Claire
tinha certeza de que Jenna seria uma avó maravilhosa se ainda pudesse ser ela mesma.
A demência era uma doença extremamente cruel. Diferente das que debilitam o corpo, a
demência não debilita apenas a mente, ela descolore a alma. Uma pessoa que não é mais capaz de
reconhecer aqueles a quem ama e recordar os eventos que a fazem ser quem é perde sua essência. E
nada pode ser mais cruel que perder-se de si mesmo. Claire tantas vezes se perguntou por que aquilo
tinha acontecido justamente com sua mãe, uma pessoa tão boa e cheia de vida. Mas para
determinadas perguntas simplesmente não existe resposta.
Balançando levemente a cabeça e espantando aqueles pensamentos tristes, Claire se abaixou
para colocar a filha no chão. A menina imediatamente correu até a cadeira de rodas onde Jenna
estava sentada, com a cabeça pendendo para a direita e para frente, as costas curvadas. Seu olhar
estava perdido em algum lugar inacessível para os que a rodeavam. Ignorando tudo isso, Aisha
encostou a cabecinha em seu joelho e abraçou a perna de Jenna, dizendo:
— Vovó.
Jenna não esboçou nenhuma reação. Aisha agora olhava para ela, em expectativa. O coração de
Claire se apertou. Antes Jenna ainda conseguia responder, mesmo que não lembrasse quem era a
menina. Mas nos últimos meses a situação havia piorado bastante e agora ela pouco falava.
Percebendo o que acontecia na sala, Angela veio da cozinha enxugando as mãos num pano de
pratos e chamando por Aisha:
—Meu amor! Vem aqui dar um beijo na vovó!
A menina deu um gritinho alegre e correu até Angela, que a pegou no colo e a encheu de beijos.
Por mais que Jenna não pudesse mais estar ali como Claire gostaria, Angela estava cada vez mais
presente e era uma maravilhosa avó de coração. Claire só podia ser muito grata por isso e retribuía
intensamente o amor e a dedicação de Angela.
— Oi, tia. — Claire a abraçou e deu um beijo em sua bochecha. — O cheiro está maravilhoso!
— Ela inspirou profundamente o aroma de comida caseira que vinha da cozinha.
Claire foi até a cadeira de rodas e deu um beijo estalado na bochecha inerte de Jenna. Peter fez
o mesmo e depois se aproximou e deu um beijo na testa de Angela. Olhando em volta, ele perguntou:
— Onde esta Sandra? — Ele se referia à cuidadora de Jenna, que estava escalada para aquela
noite.
— Eu a dispensei. — Angela caminhou com Aisha no colo até a sala, onde estava a cadeira de
rodas de Jenna. — Ela passará o Natal com a família e amanhã de manhã estará de volta. Passarei
essa noite com a minha irmã. — Colocando Aisha no chão, Angela deu um beijo no rosto de Jenna.
Mais uma vez, nenhuma reação.
Todos então começaram a arrumar a ceia. Os pratos e talheres já estavam na mesa singelamente
decorada com motivos natalinos e um vinho os aguardava. Peter abriu a garrafa e serviu três taças.
Claire ajudou a tia a trazer os pratos e Peter empurrou a cadeira de rodas de Jenna até que ela
pudesse se sentar à mesa com eles. Claire se sentou ao lado da mãe e a alimentava com uma sopa
liquidificada enquanto todos saboreavam o simples, porém delicioso jantar preparado por Angela.
Enquanto levava as colheres até a boca da idosa, limpando os cantos com um guardanapo de
pano, Claire pensava que os filhos se tornam de fato os pais de seus pais quando eles envelhecem.
Ao invés de enxergar isso como um fardo, ela via como uma oportunidade de devolver todo o amor e
cuidado que havia recebido da mãe ao longo de toda a sua vida.
Depois de comerem como sobremesa uma deliciosa torta de maçãs preparada por Peter, todos
foram para a sala de estar, em volta da lareira. Trocaram presentes, rindo das tentativas de adivinhar
o que havia nas embalagens. Quando a troca de lembranças foi finalizada, Aisha começou a
resmungar de sono. Já havia passado muito da hora dela de dormir. Claire se levantou do sofá com
ela no colo, posicionando-a na lateral de seu corpo com a cabecinha recostada em seu ombro e
começou a cantar para ela a mesma música que sua mãe cantava na hora de dormir quando Claire
tinha a mesma idade:

Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo


I love you
Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo
I love you
I love you in the…[5]

Nesse momento, Claire ouviu um som baixinho vindo da cadeira de rodas ao seu lado. Surpresa,
ela percebeu que Jenna entoava o restante da canção, com uma voz que mal passava de um balbucio:
I love you in the morning
And in the afternoon[6]

Com os olhos marejados, Claire se abaixou com dificuldade ao lado da mãe, ainda com a filha
em seus braços, e ambas continuaram a canção juntas:

I love you in the evening


And underneath the moon
Oh, Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo,
I love you…[7]

Com as lágrimas correndo por seu rosto, Claire fez um carinho no rosto de Jenna:
— Obrigada por estar aqui comigo mais uma vez. Eu te amo, mãe.
Jenna olhou para ela. Pela primeira vez em muito tempo, parecia estar realmente ali. Com uma
sombra de sorriso, balbuciou:
— Te amo.
Aquele era o melhor presente de Natal que ela poderia desejar.

Já passava de meia-noite quando dirigiram de volta para casa. Claire pegou a criança
adormecida nos braços, entrou em casa e ia subir as escadas com ela no colo quando Peter a segurou
pelo ombro. Seu olhar sério parecia dizer “eu já te pedi para não fazer isso”, mas então de seus
lábios escapou um leve sorriso que colocava por terra a tentativa dele de ser severo. Pegando a
menina no colo, ele subiu a escada para colocar nela um pijama e deitá-la no berço.
Claire aproveitou para levar o recipiente da torta até a cozinha e guardar o que havia sobrado
na geladeira. Bebeu um copo de leite puro e gelado, pensando no quanto sua vida havia mudado nos
últimos quatro anos, desde aquela noite de Natal em 2015.
Ela e Peter haviam decidido dar mais uma chance àquele relacionamento e aquilo havia se
mostrado a melhor decisão da vida dos dois. Aos poucos, Claire foi relaxando ao perceber que ele
estava realmente diferente e que ela agora conseguia ler o que se passava em seu coração ao olhar no
fundo de seus olhos. Aquela máscara de impenetrabilidade não estava mais ali. Depois de seis meses
namorando decidiram morar juntos e descobriram, após quatro meses morando no pequeno estúdio
de Claire, que ele era pequeno demais para dois. Sem condições de arcar com o custo de uma
moradia mais ampla em Manhattan, optaram por comprar uma casa em Jersey, próxima ao Riverview
Fisk Park. Mesmo sem a grandiosidade e a beleza do Central Park, ele estava repleto de lembranças
de tempos felizes que não tinham preço.
Jersey como um todo não tinha a atmosfera vibrante e cosmopolita de Nova Iorque. Entretanto,
apreciava o sossego de um domingo preguiçoso nas chaises em seu jardim, que conseguia avistar
neste momento através da janela da cozinha, e o quanto ela e Peter haviam conseguido transformar
aquela casa num lar. Os estofados eram coloridos em tons aconchegantes, havia tapetes felpudos
espalhados pelos cômodos e diversos porta-retratos enfeitavam as paredes e aparadores, retratando
momentos especiais daqueles últimos quatro anos juntos. Caminhando pela sala iluminada apenas
pelos postes da rua, parou em frente a um porta-retratos que mostrava o casal sorridente, com roupas
leves, em Lido Beach.
Nos últimos anos a situação na Somália havia melhorado um pouco, o que permitiu ao MSF
retomar suas atividades no país. Peter e Claire haviam decidido no início de 2017 se inscreverem em
outra missão em Mogadíscio. Foi difícil conseguirem uma forma de ir juntos, conciliando as
necessidades da missão e suas próprias agendas no hospital, mas depois de alguns meses de
tentativas incessantes acabou dando certo. Embarcaram em agosto e ficaram no país africano por três
meses. Foi como viajar no tempo. Durante aquela viagem, recordaram muitas coisas vividas por eles
na primeira vez em que estiveram lá e puderam fazer as pazes com mais alguns de seus fantasmas.
Passando para a foto seguinte, Claire se deparou com ela mesma segurando Aisha no colo, na
época com três meses. Eles conheceram a garotinha na sua penúltima semana em Mogadíscio, quando
visitaram um projeto que cuidava de crianças órfãs, oriundas predominantemente de campos de
refugiados. Aisha era um bebê extremamente magro, fruto de meses de desnutrição e cuidado
escasso. Inexplicavelmente, Claire se sentiu atraída por ela no instante em que adentrou o berçário e
pediu para segurá-la no colo. Quando seus olhos se encontraram, enxergou nos olhos negros da
menina vulnerabilidade, doçura e o que lhe pareceu uma súplica muda. Era como se a garotinha
soubesse que não sobreviveria muito tempo se continuasse ali. Peter a acompanhava e registrou a
cena com seu celular, capturando a troca de olhares naquela foto que hoje enfeitava o aparador sobre
sua lareira.
Naquela mesma noite, depois de fazerem amor intensamente, Claire estava deitada sobre o peito
de Peter quando falou:
— Lembra quando eu te disse que eu não tinha certeza se queria ser mãe?
— Sim, claro que eu me lembro. Eu te disse que também não tenho certeza se quero ser pai.
Mexendo nos pelos curtos que cobriam o peito dele, ela havia confessado:
— Pois é. Eu senti algo diferente quando segurei aquela criança no colo. — Olhou para ele. —
Era como se eu estivesse segurando em meus braços minha própria filha. Uma conexão que não
consigo explicar.
— Percebi pelo seu rosto que você havia sentido algo especial. Já cuidamos de muitas pessoas
em situação de vulnerabilidade e vejo o carinho com que você sempre tratou todas elas, mas sua
troca de olhares com a menina foi mais do que isso.
— É por isso que eu te amo. — Claire beijou-o. — Porque você me conhece tão bem.
— Eu te conheço tão bem que sei que está com alguma outra ideia a esse respeito. Não foi um
comentário casual, foi? — Peter puxou seu queixo para cima para olhá-la bem no fundo dos olhos.
Não tinha sido. Pelas próximas três horas, eles conversaram sobre a ideia que começava a
brotar no coração de Claire: adotar aquela menina. Falaram sobre incerteza, medo e renúncias.
Falaram também sobre amor e sobre entrega, sobre mudanças e sobre compromisso. Era uma decisão
grande demais e que precisava ser analisada com cuidado.
Os dias foram passando e visitaram a menina mais quatro vezes. Peter também a segurou no
colo e Claire percebeu que as dúvidas deles iam aos poucos se transformando em certeza e
determinação. Ambos queriam dar aquele passo e levar para casa a menina que já começavam a
sentir como filha. Fizeram contato com autoridades locais, contataram especialistas em adoção
internacional e foi com um aperto no peito que embarcaram de volta sem a criança.
Já nos Estados Unidos, Claire fazia contato semanalmente com o projeto social que a abrigava e
recebia fotos da menina. Graças a um intenso investimento de tempo e dinheiro durante oito meses,
finalmente receberam a permissão para adotar Aisha. Prepararam sua casa para recebê-la,
adquiriram o enxoval e embarcaram de volta a Mogadíscio. Quando a seguraram nos braços
novamente depois da dolorosa e longa separação, ambos choraram. A menina, então com onze meses,
os estranhou e chorou também, esticando os bracinhos para a voluntária que cuidava dela com maior
frequência. Três dias depois, levavam a filha para casa.
Os primeiros meses foram difíceis, o que foi previsto por eles mas não naquela intensidade.
Aisha chorava muito, tinha alguns problemas de saúde e não parecia feliz ali. Claire se perguntava à
noite, chorando no peito de Peter na penumbra do quarto, se haviam feito a coisa certa. Peter a
abraçava e dizia:
— Ela só precisa entender que a amamos e que não vamos abandoná-la. Uma vez que ela
entenda isso, tudo ficará bem.
E assim foi. Com o passar do tempo, a menina passou a chorar menos e demonstrar afeto por
eles em pequenos gestos. Na primeira vez em que Aisha a chamou de “mamãe”, Claire chorou até
soluçar, abraçada à menina. Finalmente conseguia desfrutar da maternidade em sua plenitude.
Quando Aisha estava com um ano e meio e as coisas finalmente começavam a entrar nos eixos,
Claire percebeu que sua menstruação estava atrasada. Havia mudado o método anticoncepcional e
atribuiu a isso o atraso. Entretanto, no dia em sentiu uma náusea tão grande ao acordar que teve que ir
para o banheiro vomitar, suspeitou que fosse mais do que isso.
Fez o teste de farmácia à noite e deu a notícia a Peter quando estavam deitados para dormir.
Nunca haviam conversado sobre ter um segundo filho, Aisha já os consumia demais. Portanto, ao dar
a notícia, sentia-se profundamente insegura quanto à reação dele. Ao ouvir que ela estava grávida,
Peter arregalou os olhos e um sorriso brilhante tomou conta de seu rosto. Abraçou-a, rindo e
beijando seu rosto, sua boca e depois seu ventre plano. Sem saber que isso era possível, ela o amou
ainda mais.
Perdida em recordações do passado, mal ouviu quando ele a chamou. Peter estava em pé no
primeiro degrau da escada, vestindo apenas a calça do pijama. O peito musculoso e o abdome
definido que até hoje a faziam suspirar estavam à mostra e o cabelo rebelde estava úmido do banho.
Não havia mais borboletas voando em seu estômago quando olhava para ele. O que havia agora era a
paz de um amor correspondido, mas não deixava de se sentir atraída mesmo com as dificuldades que
o formato atual de seu corpo impunha.
Deixando o copo vazio sobre o aparador, caminhou até ele e subiram a escada de mãos dadas.
Já no quarto, Peter ajudou-a a despir a roupa e colocar uma camisola folgada, que acomodava bem a
barriga. Já deitados abraçados sob as cobertas, Peter a acariciou, primeiro nos seios sobre o tecido
da camisola e depois descendo até seu quadril. Mesmo cansada, Claire se excitou com aquelas
carícias. Suspirou e se entregou a ele num sexo tranquilo, cuidadoso e cheio de prazer.
Às cinco horas da manhã, foi despertada por uma cólica forte. Achando que tinha sido algo que
havia comido, tentou voltar a dormir, mas pouco tempo depois veio outra e mais outra.
Reconhecendo os sinais do trabalho de parto, acordou Peter. Ambos ficaram contando o intervalo
entre as contrações, até que às onze da manhã decidiram que era hora de ir ao hospital. Deixaram
Aisha na casa de Angela e se dirigiram ao Presbyterian, hospital onde Peter havia trabalhado.

Depois de mais seis horas de trabalho de parto, nasceu Bradley, um lindo menino com
bochechinhas rosadas e rostinho angelical. Quando foi colocado em seus braços, Claire o segurou
com o rosto banhado em lágrimas e uma expressão embevecida. Peter abraçava a mulher pelos
ombros e tocava gentilmente o rostinho do menino, espelhando em seu próprio rosto as lágrimas e a
devoção. A família agora estava completa e eles criariam seus filhos da melhor maneira possível,
cercados de muito amor.
A relação de Peter e Claire havia começado pelos motivos errados. Por muito tempo, foi
maculada por sentimentos deletérios como raiva, mágoa e culpa, impedindo que florescesse como
deveria. Porém, quando há amor suficiente de ambos os lados, podem existir também perdão e
recomeços. Afinal, algumas histórias merecem muito mais que uma única chance.

Fim
Posfácio

Diversos cenários e fatos descritos neste livro foram baseados em pesquisas para se aproximar
da realidade, mas alguns foram adaptados para melhor adequação ao enredo.
A África é um continente riquíssimo em belezas naturais e diversidade cultural. Contrariando o
estigma de extrema pobreza frequentemente atribuído ao continente como um todo, alguns países,
como Egito e África do Sul, possuem um PIB per capita semelhante ao do Brasil. Mas o estigma da
miséria não existe sem motivo. A Etiópia tem um PIB per capita em torno de 10 vezes menor e a
Somália 20 vezes menor que a África do Sul, no mesmo continente. Algumas regiões seguem sendo
até hoje brutalmente assoladas pela míseria e pela violência. Nos dias atuais, há mais de 20 conflitos
que ainda perduram, eliminando milhões de vidas e trazendo fome e terror à população africana.
A Somália, como retratado no livro, tem sido massacrada pela guerra civil desde o final da
década de 1980 e mais de meio milhão de pessoas foram mortas no país em decorrência da guerra. O
MSF (Médecins Sans Frontières ou, em português, Médicos sem Fronteiras) atua no país desde
1991, auxiliando no combate à desnutrição, fornecendo água potável e itens de necessidade básica e
oferecendo tratamento médico à população.
Em 2011, duas profissionais do MSF foram sequestradas enquanto prestavam assistência a
refugiados somalis no Quênia. Elas foram mantidas como reféns pelo grupo armado e libertadas
apenas dois anos depois. Em 2012, o Hospital de Dayniile realmente sofreu um bombardeio.
Felizmente, ninguém ficou ferido, mas a equipe precisou permanecer abrigada numa das alas do
hospital em decorrência do ataque.
Em 2013, após 22 anos de atuação no país, as atividades do MSF foram interrompidas em
função de intolerável situação de violência e desrespeito à atuação das equipes de auxílio
humanitário por parte de militares e civis no país. As atividades na Somália permaneceram
suspensas até 2017, quando novos projetos do MSF voltaram a ser organizados por lá.
O MSF atua em mais de 70 países, tendo realizado em 2019 mais de 10 milhões de
atendimentos ambulatoriais, mais de 100 mil cirurgias, assistido mais de 300 mil partos e internado
mais de 800 mil pacientes em todo o mundo. Mais de 90% da arrecadação do MSF vem de doadores
individuais, assim como você e eu. Para se tornar um doador, basta acessar o site
http://www.msf.org.com
Duologia Amores em Manhattan

A Terceira Chance inicialmente seria um livro único. O que eu não esperava era que, ao criar a
personagem de Margaret, o resultado ficaria tão extraordinário. Ela é um furacão em forma de
mulher: linda, independente, intensa, com um humor ácido, segura de si e extremamente leal. Tem os
homens facilmente aos seus pés, entretanto seu coração não é nada fácil de ser conquistado, como
vocês puderam perceber ao longo deste primeiro livro. Margaret nunca viveu um grande amor,
simplesmente porque não acredita em relacionamentos duradouros como caminho para a felicidade.
Descobri ao terminar de escrever A Terceira Chance que não poderia deixar a história de uma
personagem tão especial em aberto. Ela é do tipo que nos conquista e leva a nós, românticas
incorrigíveis, a torcer para que viva um romance arrebatador e tenha um final feliz. Assim nasceu o
livro 300 Dias Com Você que, junto com A Terceira Chance, compõe a duologia Amores em
Manhattan.
Ficou interessado em descobrir quem chegará à vida de Margaret para abalar suas convicções e
fazê-la descobrir muito sobre si mesma e sobre o amor? E de quebra ainda saber mais sobre como
estarão Peter e Claire no futuro?
Então me acompanhe no Instagram para ter a acesso a todas as novidades sobre o livro 300
Dias Com Você, uma história capaz de arrebatar até o mais cético dos corações.

Um beijo e até breve.

@autora.lizstein
Legendas

[1] Tradução
E eu estou aqui
Para te lembrar
Da bagunça que você deixou
Quando você foi embora
Não é justo me negar
Da cruz que carrego
Que você me deu
Você, você, você deve saber

[2] Desbridamento: Método de extração de corpos estranhos e tecidos desvitalizados ou necróticos cujo objetivo é a limpeza,
proporcionando as condições ideais para a cicatrização.

[3] Estar médico: Local onde os médicos podem ficar para descansar por determinados períodos durante um plantão ou entre
cirurgias.

[4] Tradução:
Amor eu quero você
Como as rosas querem a chuva
Você sabe que eu preciso de você
Como os poetas precisam da dor
E eu daria qualquer coisa
Meu sangue, meu amor, minha vida
Se você estivesse nestes braços hoje à noite

[5] Tradução
Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo
Eu amo Você
Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo
Eu amo Você
Eu te amo de...

[6] Tradução
Eu te amo de manhã
E a tarde

[7] Tradução
Eu te amo a noite
E debaixo da lua
Oh, Skidamarink a dink a dink, skidamarink a doo,
Eu amo você…

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