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DEZ ANOS DEPOIS,
PASSANDO A LIMPO O
PENSADOR DA
DESCONSTRUÇÃO
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A DESCONSTRUÇÃO
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DERRIDA E A LÍNGUA
DO OUTRO
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[ ENTREVISTA ]
PENSAR, TREMER,
DESCONSTRUIR
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ARTE E IMAGEM SOB
OS OLHARES DA
DESCONSTRUÇÃO
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AS CIÊNCIAS, A RAZÃO
E A DESCONSTRUÇÃO
Dez anos depois,
passando a limpo
o pensador da
desconstrução
Denis Dailleux/Agence Vu/Latinstock
CA R LA R O D R I GUE S
D
epois da morte do filósofo Jacques Derrida, em
2004, muitas homenagens ao seu pensamento,
à sua obra e à sua figura foram organizadas, es‑
critas, publicadas. Entre tantos reconhecimentos
– muitos deles não colhidos em vida – coube ao alemão Peter
Sloterdijk publicar Derrida, um egípcio. O problema da pirâ‑
mide judia (Estação Liberdade), livro em que a filosofia de
Derrida é articulada com sete outros grandes pensadores.
Logo nas primeiras linhas, Sloterdijk escreve que Derrida “foi
o Hegel do século 20”. Hegel não apenas como o nome próprio
de um grande filósofo alemão, mas indicação de culminância,
esgotamento e nada mais a ultrapassar.
Dez anos depois da morte de Derrida, seus Emmanuel Lévinas e retoma as perguntas:
herdeiros, comentadores e leitores estão ainda “Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas
diante da tarefa de levar adiante um pensamen‑ quem, nós?”. Ao trabalhar numa aproximação
to que carrega tanto as marcas do auge da filo‑ entre Derrida e o judaísmo, tanto a partir de
sofia do século 20 quanto de seu possível fim. sua articulação com Lévinas como a partir de
Aqui, que não se enganem os críticos. Trata‑se uma ligação com o filósofo judeu‑alemão
do fim de um certo tipo de filosofia, não da Walter Benjamin, Olgária acentua o quanto o
destruição da experiência filosófica, mas sobre‑ pensamento da desconstrução é crítico de um
tudo de sua possibilidade de renovação. ideal de origem que estaria implícito na vio‑
Este dossiê em torno da obra do filósofo lência desse “nós”.
franco‑argelino – que fez do seu lugar de mar‑ Desconstrução da origem, da linguagem
ginal à Europa uma questão filosófica para o “própria”, abertura à alteridade, pensamento
eurocentrismo e cujo judaísmo impulsionou que a partir da margem interroga a ideia de
sua crítica às origens gregas do pensamento centro: são heranças de um filósofo cuja aber‑
– começa com artigo de Rafael Haddock‑Lobo tura de pensamento foram perturbações da
no qual apresenta o pensamento da descons‑ ordem que marcaram sua abordagem descons‑
trução como “tentativa de empreender um trutiva, como lembra Alice Serra em artigo
sistema de pensamento sempre aberto, que sobre as ligações entre Derrida e arte. “O pen‑
nunca se enclausura em uma fórmula ou um samento desconstrutivo não visa puramente
método, e por essa razão necessita de uma ar‑ a uma inversão, a uma desordem, mas aponta
quitetura estratégica, para fugir da economia para as fraturas e incongruências já inerentes
conceitual tradicional da filosofia, que sempre ao que se apresenta de forma harmônica e so‑
levaria o pensamento de um filósofo a fechar lidificada”, escreve ela. Por esse caminho,
‑se em torno de seu próprio sistema”. Derrida faz da arte “um âmbito privilegiado”
Empreender um sistema de pensamento aber‑ que, pontua Alice, “assim como a alteridade,
to foi o gesto ético‑político com o qual Derrida apresenta essa peculiaridade de perturbar sis‑
confrontou a tradição filosófica e, sobretudo, temas de pensamento, deslocar lugares e hie‑
pares metafísicos que restavam intocados. rarquias, convocar a pensar o que não pode
É desses pares que fala a filósofa argentina ser apropriado pela filosofia”.
Mónica B. Cragnolini em sua entrevista con‑ Por fim, no confronto permanente com
cedida a Carla Rodrigues. Para Mónica, é o aquilo que não pode ser apropriado, Derrida
par humano/animal e todas as suas implica‑ encontra‑se com a ciência, suas pretensões de
ções ético‑políticas que ainda interpelam os objetividade, tema do artigo de Fernando
pesquisadores da obra de Derrida. “Trabalhar Fragozo. Aqui, estamos diante de um crítico
nesse ponto de injunção entre o humano e o da tradição de pensamento que entende o co‑
animal, no trato de pessoas, no que se trata os nhecimento racional como “um processo gra‑
viventes humanos como animais” é o que dativo que, aos poucos, caminharia na direção
Mónica considera tarefa. Como pensadora de uma totalização unificadora que seria capaz
latino‑americana, Mónica também observa a de explicar tudo o que existe: nós, a natureza,
importância, no continente, de ler um pensa‑ a realidade em geral”. É nesse ponto que se
dor das margens, com o qual se pode questio‑ pode voltar à comparação com Hegel. Ao des‑
nar o eurocentrismo e a história da violência construir qualquer pretensão de explicar tudo
colonial, que aqui se singulariza nas políticas o que existe, Derrida se inscreve na história
de dominação dos indígenas e dos negros. da filosofia do século 20 como o pensador que,
Seguindo no tema da dominação, o artigo ao mesmo tempo, nos põe diante de um esgo‑
de Olgária Mattos mostra como são borradas tamento – o conhecimento totalizante e ho‑
as fronteiras que pretendem separar o helenis‑ mogêneo sobre o que quer que seja – e do auge
mo do judaísmo. Para isso, ela remonta a um da exigência ético‑política de inventar novas
texto de Derrida sobre o filósofo judeu‑lituano formas de fazer filosofia.
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
A desconstrução
Mais do que uma teoria do conhecimento ou uma
filosofia da linguagem, sempre teve como sua
preocupação central uma postura ética e política
R A FA E L H A DDO CK‑L O B O
E
m 1989, em uma palestra de abertura para se referir a essa suposta “virada ética” de
de um grande Colóquio na Cardozo seu pensamento. Mas como poderia ser possí‑
Law School, famosa faculdade de vel aceitar tal ideia de uma “guinada ético
Direito nos EUA, o filósofo franco ‑política” se o próprio filósofo declarava que
‑argelino Jacques Derrida parecia apresentar seu trabalho foi desde sempre motivado por
a fala que se tornaria um de seus mais respei‑ questões éticas e políticas? Nesse sentido, o que
tados livros a fim de responder a alguns de temos que compreender, antes de qualquer
seus críticos, enumerando razões para se re‑ análise sobre a obra de Jacques Derrida, é co‑
conhecer que seu pensamento, que se conven‑ mo e por que a desconstrução configura desde
cionou desde a década de sessenta chamar de seu surgimento um gesto ético e político.
Desconstrução, mais do que uma teoria do Na referida palestra, que posteriormente foi
conhecimento ou uma filosofia da linguagem, publicada sob o título Força de lei: o fundamen‑
sempre teve como sua preocupação central to místico da alteridade, a afirmação de Derrida
uma postura ética e política. E, desde então, sobre o caráter originariamente ético e político
seu pensamento começa a se debruçar insis‑ da desconstrução pôde, na época, parecer radi‑
tentemente sobre temas como a hospitalidade, cal ou mesmo apenas estratégico, frente às crí‑
os imigrantes ilegais, a democracia, o direito, ticas que recebia sobre a impossibilidade de a
a soberania etc., fazendo inclusive com que desconstrução fornecer uma matriz de pensa‑
alguns de seus comentadores cunhassem o mento que ajudasse a pensar a ética e a política,
termo “segundo Derrida” ou “Derrida tardio” sobretudo depois da publicação em 1985
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do livro O discurso filosófico da modernidade,
de Jürgen Habermas, em que tal crítica aparece
explícita a Derrida. Contudo, nesse pequeno
livro, em duas ou três páginas, Derrida dedica
‑se a enumerar diversas razões que ajudam a
compreender tal gesto desconstrutivo em sua
mais íntima inclinação: a preocupação com a O ano de 1967 pode ser
alteridade. Desse modo, urge que, primeira‑
mente, se compreenda como tal preocupação considerado a grande estreia
com a alteridade já se apresenta em seus pri‑ do pensamento de Derrida
meiros trabalhos, sobretudo em sua maior obra
(Gramatologia), para que, em seguida, se possa
perceber como a chamada “virada” de seu pen‑
samento é muito menos uma mudança de ru‑
mo em seu pensamento, mas, mais propria‑
mente, um desdobramento de um movimento
que já vinha sendo feito.
O ano de 1967 pode ser considerado como
a grande estreia do pensamento de Derrida,
com a publicação consecutiva de três livros que
terão um grande impacto no panorama filosó‑ filosofia e a preocupação com a alteridade
fico da época: A voz e o fenômeno, Gramatologia conciliam‑se num mesmo gesto? A resposta
e A escritura e a diferença (os três disponíveis está presente desde a primeira tentativa de
em língua portuguesa). Essa tripla publicação, Derrida de apresentar o que seria um esboço
que faz com que os leitores nem ao menos sai‑ de um protossistema de seu pensamento. Isto
bam se há uma “obra primeira” ou original na que, na obra homônima, Derrida chama de
arquitetura do pensamento derridiano, marca “Gramatologia”, ou ciência do rastro, serve
a entrada em cena desse pensamento que se, como exemplo paradigmático para compre‑
desde o início, causa uma grande resistência na ender as motivações do filósofo franco
filosofia, começa por outro lado a ser muito ‑argelino. “Gramatologia” é a tentativa de
bem recebido por outras áreas de conhecimen‑ empreender um sistema de pensamento sem‑
to, sobretudo pela psicanálise e pelas letras. E pre aberto, que nunca se enclausura em uma
tal resistência da filosofia, que parece, aos olhos fórmula ou um método, e por essa razão ne‑
de Derrida, sobretudo sintomática, acontece cessita de uma arquitetura estratégica, para
justamente pois seu pensamento busca quebrar fugir da economia conceitual tradicional da
barreiras e ultrapassar as fronteiras que pare‑ filosofia, que sempre levaria o pensamento de
cem ter se estabelecido tão seguramente ao um filósofo a fechar‑se em torno de seu pró‑
longo da História da Filosofia. prio sistema. É por tal razão que, sabendo que
Mas o que seria, então, a Desconstrução? um sistema filosófico sempre se constrói a
E como essa tentativa de cruzar as margens da partir da formulação de conceitos próprios,
que funcionam como peças mestras nessa ar‑
quitetônica, Derrida, sem poder abrir mão
totalmente de conceitos, direciona suas forças
em cunhar o que viria a chamar de “indecidí‑
veis”, ou “quase‑conceitos”, ou seja, termos
que não carregam em si nenhuma definição
precisa, definitiva, mas que funcionam, numa
cadeia de remetimentos, do mesmo modo co‑
mo funcionariam os conceitos. Para ser mais
preciso: conceitos que não conceituam, que
não pretendem dar conta de um sentido ou
um significado fechado e que, por isso, inau‑
guram uma outra forma de relação entre as
palavras e as coisas.
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sua descoberta desvela a relação mais própria
e rigorosa com a realidade, criando, assim,
um sistema fechado e violento de pensamen‑
to, voltando‑se contra toda e qualquer possi‑
bilidade de pensamento diferente, excluindo
qualquer contradição e acreditando em sua
efetividade. E é assim que surge a ideia de A descontrução também
desconstrução, um gesto de pensamento que
pretende mostrar a violência autoritária de é uma construção
um sistema fechado que se apresenta como
única maneira de compreensão do real e não
se mostra, de maneira alguma, como mais
uma construção na História das Construções
(ou fábulas, como diria Nietzsche) que é a
História da Filosofia.
A questão que surge na estratégia da cons‑
trução de Gramatologia (pois, sim, a
Desconstrução também é uma construção,
mas que se sabe e se assume como tal), é a
seguinte: como, então, fugir a essa pretensão
de verdade violenta? A resposta, como se an‑ ficcional da literatura como o lugar mais pró‑
tecipou, consiste na ideia de apresentar atra‑ prio da enunciação filosófica e, com isso, afas‑
vés desses quase‑conceitos um sistema aberto, tando o risco de violência e exclusão que,
que, não se fechando em si mesmo, não pre‑ segundo Derrida, sempre se ancora por detrás
tenda dar conta do real, ou seja, não esgotar da pretensão de verdade.
as possibilidades de interpretação do real, A tarefa ético‑política da desconstrução,
pois sempre será possível que se conceba ou‑ então, seria a de desmontar certos discursos
tras e outras maneiras de o pensamento filosóficos, a fim de mostrar ou brancos, os es‑
relacionar‑se com a realidade. E, para isso, paços, ou lapsos, ou seja, uma infinitude de
esses indecidíveis, ou simulacros de conceitos, outros discursos que se escondem por detrás
habitam uma região bem estranha à filosofia, da pretensa unidade de um texto, acreditando
numa proximidade com a literatura que desde que há uma necessidade de se olhar tanto o
a década de sessenta causou estranhamento não‑dito como aquilo que está expressamente
aos filósofos mais conservadores. Enquanto a dito em um texto, pois aquilo que está excluído,
filosofia tradicionalmente constrói seu dis‑ recalcado, reprimido, violentado em um texto
curso tentando descrever as coisas enquanto constitui uma peça tão valiosa à análise filosó‑
elas mesmas, ou seja, em sua realidade mais fica como aquilo que se expressa positivamente.
autêntica, a desconstrução as descreve “como Fica patente, nesse gesto, para além da óbvia
se” elas se apresentassem dessa ou daquela herança que Derrida recebe de Nietzsche,
maneira, herdando e assumindo a estrutura quando vê a ficcionalidade das estruturas con‑
ceituais, uma herança da psicanálise, enxergan‑
do por detrás do discurso linear e lógico que a
filosofia pretende apresentar.
Filosofias marginais, como as de Nietzsche,
Blanchot, Bataille e Kierkegaard, literaturas co‑
mo as de Artaud, Jabès e Mallarmé e de uma
psicanálise de matriz freudiana (em seu íntimo
diálogo silencioso com Lacan), além de sua re‑
lação com a linguística de Saussure e a antropo‑
logia de Lévi‑Strauss, fazem da desconstrução
derridiana um gesto completamente estrangeiro
à filosofia, em que ela é obrigada a abandonar
seu lugar tradicional e seguro e direcionar‑se a
suas fronteiras, contaminando‑se assim por
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Derrida e a língua
do outro
A filosofia é a ciência primeira
O L GÁ R I A M AT O S
N
o ensaio “Violência e Metafísica”, dedicado a um debate
com o filósofo Emmanuel Lévinas, Derrida revisita Ulisses,
de Joyce, reavendo a questão: “Nós somos gregos? Nós so‑
mos judeus? Mas quem, nós? Somos primeiro judeus ou
primeiro gregos? Se para um “judeu grego” como Walter Benjamin, o
messianismo e, portanto, a ideia de “origem”, é um operador essencial,
Derrida é um “grego‑judeu” para quem a “origem” é objeto da descons‑
trução. Para Derrida, a Filosofia é a “ciência primeira”; para Benjamin,
a Teologia. Derrida desconstrói a noção de origem e, com ela, a ideia
de Nação, compreendendo‑a não a partir da política, mas a partir da
língua, na diferença (différance) entre Nação política e Nação cultural,
desconstrução que interroga a natureza da hierarquia política das
Nações e do poder de que seu prestígio é portador. A Desconstrução
não é a passagem da estabilidade – garantida pela ideia de centro – para
a “modernidade líquida”, mas a apreensão da flexibilidade e do descen‑
tramento. Eis porque a différance não se refere mais ao logos, mas a
forças que não se estabilizam em uma identidade.
A différance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung – de‑
formação e deslocamento, pois a “défiguration” diz respeito a uma incerta
territorialização. Diferença e diferenciação, presentes no diferir, no adia‑
mento, envolvem o tempo. É este o percurso derridiano em Fichus, dis‑
curso de recepção do prêmio Adorno em Frankfurt. Referindo‑se a um
sonho de Walter Benjamin, Derrida desenvolve uma segunda
Traumdeutung. Sono e vigília associam‑se em um “transe sonanbúlico”,
na partilha incerta entre o sonho e seus restos diurnos, entre a “inércia”
do sono e a atividade diurna, entre a consciência sonolenta e a vigília do
inconsciente que vela e vigia todos os estados da consciência desperta.
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A hospitalidade não pede ao outro traduzir-se
em nossas tradições e nossa língua
assediado por algo do passado, por rastros como tal, era uma e una. A multiplicidade das
obsessivos cuja arquiescritura são as ambiva‑ línguas foi, como para Benjamin, sua queda;
lências judaico‑egípcias de Moisés. já para Derrida, a língua anterior a Babel era
A “fantasmologia” diz respeito à não iden‑ já múltipla em si mesma. Diferenças que co‑
tidade de toda identidade, na qual não há o municam diferenças, a língua da origem é
retorno a uma especificidade anterior, mesmo Pentecostes avant‑la‑lettre, em que todos fa‑
que desejada, pois no mais profundo do que é lavam línguas diversas mas em que todos se
específico grava‑se a marca indelével do Outro. entendiam em uma espécie de “tradução
Quando Derrida afirma ter uma única língua simultânea”.
e que ela não é a sua mas de um Outro, dá se‑ Derrida, “grego judeu”, aproxima‑se do
quência, deslocando‑a, à interpretação de Freud mundo grego. Se, para este, a língua da
sobre a questão da identidade e da origem. Idade de Ouro era o grego, ela o era por ra‑
Nesta refiguração da língua encontra‑se o zões diversas do hebraico, pois Atenas pro‑
sentimento “perturbante”, a situação próxima curava na origem a différance, sua potência
à do pária, no paradoxo da impossível inclusão alucinatória e surreal, a diversidade dos
e da impossível exclusão. Derrida elabora a sentidos, enquanto Jerusalém encontrava na
condição daquele que está à margem, sem uma língua do Paraíso uma origem unitária e
referência a uma comunidade política. Na se‑ essencial. Do heteros ao allii, a língua, para
quência da Primeira Guerra Mundial, a queda Derrida, é mista, “contaminada”, híbrida.
do Império russo, do Império austro‑húngaro Se o “heteros” é o outro do “Um”, em si mes‑
e do otomano, bem como os reordenamentos mo inalterado, “allii” são os outros no
políticos do Leste europeu, as leis raciais sob Mesmo. Se Babel é condenação divina e per‑
o nazismo e a guerra civil espanhola dissemi‑ da da “língua universal”, agora disponível à
naram na Europa uma população de refugia‑ tradução, esta dá início à desconstrução da
dos como fenômeno de massa contínuo. O torre como língua universal e à violência:
apátrida e o refugiado, embora comportem “[Deus] dispersa a filiação genealógica. Ele
diferenças com respeito a pertencimentos le‑ rompe a linhagem. Impõe e interdita, simul‑
gais e simbólicos, dizem respeito, nos Estados taneamente, a tradução”, diz Derrida em
industrializados, a “residentes não estáveis” e “Torres de Babel”. Necessária e impossível,
não cidadãos, que não podem nem ser natu‑ a tradução diz impropriamente o próprio,
ralizados nem repatriados. Babel significando, justamente,“confusão”.
A relação ao Outro se realiza como “traço”, Para Derrida, o “marrano” sem melanco‑
como “rastro” do Outro em mim, como pre‑ lia, o desenraizamento originário encontra‑se
sentificação “espectral” ou “conciliação”, co‑ no interior das próprias línguas, as palavras
mo nas línguas. Nas Margens da filosofia trata contendo, como pharmakon, pelo menos duas
‑se da différance que “não é um processo de significações, solidária uma da outra ou das
“propriação” em nenhum sentido da palavra, outras, não admitindo qualquer divisão inter‑
pois, ao contrário da “propriação” heidegge‑ na ou externa, uma vez que só se conhece a
riana, não há “propriação” que não implique própria língua se nos relacionamos com ela
em si mesma a dimensão mais originária ain‑ como língua estrangeira. A ideia de “eleição”
da da “despropriação”. Por isso, para Derrida, e “origem” de uma língua acarreta os particu‑
a différance tem os sentidos de diferir, de ser a larismos da “eleição‑exclusão”.
raiz comum das oposições, de produzir opo‑ Ao analisar o pensamento de Lévinas,
sições e desdobramentos da diferença. Assim Derrida destaca um sentido peculiar da “elei‑
também nas línguas. ção” de Israel como estranhamento absoluto
No judaísmo, a língua do paraíso, a língua e exemplar de um povo sem terra de origem.
originária anterior a Babel, era o hebraico que, Entre a Grécia e Jerusalém, entre Ulisses e
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
Abraão a diferença é a que existe entre nostos ser outro, porque acolhe o apelo daquele que
e êxodos, duas formas de viagem e de partida. está “sem mundo”, aquele que não fala nossa
Se a primeira vive à luz do retorno a Ítaca, a língua. Deve ser recebido, não na lógica da
segunda aspira uma pátria onde não se nasceu razão de Estado e dos direitos humanos uni‑
e cada passo dado em sua direção não apro‑ versais, não por ser um homem como nós, mas
xima uma terra, não é uma casa que já per‑ porque ele traz consigo aquilo que nele não se
tencia: “a afirmação da verdade nômade”, reduz ao gênero e ao cálculo do necessário,
observa Maurice Blanchot, “distingue o juda‑ tampouco à lógica da doação e da gratidão: “o
ísmo do paganismo [...] O nomadismo é a convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento
resposta a uma relação para a qual a posse não passam [...] pelo dirigir‑se ao outro.” Mas, “o
basta. Este movimento nômade afirma‑se não que sempre está à espreita é o dilema entre a
como privação perene de uma sede, mas como hospitalidade incondicional que vai além do
um modo autêntico do habitar”. Assim, a direito, do dever e mesmo da política, por um
questão do que vem de fora e o que é de den‑ lado e, por outro, a hospitalidade circunscrita
tro é sempre algo que provém do estrangeiro, pelo direito e pelo dever”.
o portador da questão. A hospitalidade não pede ao outro
Neste horizonte, o estrangeiro é o “tercei‑ traduzir‑se em nossas tradições e nossa língua.
ro”, alguém que é sempre e apenas um intruso, Assim Derrida pode então dizer “eu só tenho
aquele que “chegou primeiro”, que “nos priva uma língua e ela não é a minha”, e ter iniciado
da segurança e faz advir o porvir”. Este “con‑ seu discurso em Frankfurt com as palavras:
vidado” ou “visitante inesperado” vem do fu‑ “eu peço desculpas, estou prestes a saudá‑los
turo, contrariando a noção segundo a qual o em minha língua. A língua será de resto meu
que nos acontece é determinado em relação ao tema: a língua do outro, a língua do hóspede,
passado: “acontecimento inesperado e impre‑ a língua do estrangeiro, até mesmo do imi‑
visível de quem chega, em qualquer momento, grante, do emigrado ou do exilado”. Nascido
adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, na Argélia, na periferia do Império francês,
sem ter sido convidado, sem avisar, sem hori‑ Derrida, judeu, perde, na França ocupada pe‑
zonte de espera”. los nazistas na Segunda Guerra, a cidadania
Apenas aquele que perdeu uma morada, francesa. Na condição de estrangeiro sem pá‑
que fez a experiência da “desolação”, da perda tria, Derrida se vê privado, assim, da língua
de todo pertencimento, pode oferecer a hospi‑ que não lhe pertence mais. Ao tê‑la como lín‑
talidade. Esta hospitalidade sem reivindica‑ gua estrangeira, pôde dizer amá‑la e conhecê
ções é o sentido da hospitalidade que não faz ‑la, pois só se conhece a própria língua quando
qualquer referência à soberania: “para uma tal a recebemos como língua estrangeira.
experiência [da hospitalidade], que se deixa Discursando em francês, na língua em que
atravessar por aquilo que chega e por quem encontrou hospitalidade, nessa língua do
chega, por aquilo que vem e por quem chega, Outro que é seu ethos, Derrida reconhece um
do outro por vir, uma certa renúncia incondi‑ “dom sem restituição, sem apropriação e sem
cional à soberania é solicitada a priori”. Esta jurisdição”. Ética hiperbólica, para além do
hospitalidade radical, absoluta, é, simultane‑ “para além”, para além da jurisdição e do di‑
amente, inviável e necessária, permite ao outro reito, é a política da amizade.
N ° 195 33
ENTREVISTA
Pensar, tremer,
desconstruir
A filósofa argentina Mónica B. Cragnolini
fala sobre a marca derridiana no
pensamento contemporâneo
CA R L A R O DR I GU E S
A
filósofa argentina Mónica B. Cragnolini propõe em relação
ao pensamento de Jacques Derrida uma ideia original: ao
associá‑lo à filosofia de Nietzsche, chama aos dois de “pen‑
sadores do tremor”. De fato, um dos pontos que une o fi‑
lósofo do martelo ao pensador da desconstrução é o abalo que, cada
um a seu modo, produziu no chamado “edifício conceitual da meta‑
física”, expressão sob a qual muitas vezes se pretende estabilizar dois
mil e quinhentos anos de história do pensamento grego‑ocidental.
Derrida foi um pensador que, no rastro das aberturas proporcionadas
por Nietzsche, teve o cuidado de perceber que essa história não é única
nem homogênea. Ao contrário, é marcada por idas e vindas, rupturas,
avanços e recuos. No entanto, se há algo em comum que subjaz no
percurso da metafísica é a sua fundamentação em um ideal de pre‑
sença – do sujeito, da consciência, do conteúdo, da coisa mesma.
Contra essa presença, o tremor percebido por Mónica foi um operador
para desestabilizar os pares opositivos que ainda estavam mais ou
menos intocados na segunda metade do século 20, quando o pensador
franco‑argelino começa sua trajetória filosófica na França. Hoje, pas‑
sados dez anos de sua morte, Mónica identifica ainda a necessidade
de os leitores de Derrida levarem adiante a tarefa de desconstruir o
par humano/animal e todas as suas consequências violentas, como
argumenta nesta entrevista.
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
Divulgação
designado ao outro em seu pensamento. “Resto”
é “o que impede a totalização”, o fecho dialético
na síntese. O resto não é o que “falta” de uma
totalidade, uma vez desconstruída e desmonta‑
da em suas capas conceituais, se não aquele que
impede que a totalidade se feche. A restância
indica também uma “resistência”: já nos primei‑
ros textos de Derrida aparecia a ideia de que o
texto “resiste” à tradução, porque está habitado
Muitos autores atribuem a Derrida um por um excesso indecidível. Um pensador do
momento limite da filosofia do século 20. resto é, basicamente, um pensador da alterida‑
Penso, por exemplo, em Patrice Maniglier, de, e creio que essa é a marca derridiana no
que considera a publicação de Gramatologia, pensamento contemporâneo. A isso soma‑se
em 1967, um “verdadeiro momento filosó‑ que, para Derrida, o animal é o “outro” (não
fico”, ou em Peter Sloterijk, que chama chega a sê‑lo para Lévinas, por exemplo, já que
Derrida de “o Hegel do século 20”. Você con‑ não tem rosto).
sidera o pensamento de Derrida um marco
filosófico? Por quê? Dez anos depois da morte de Derrida -
MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que Derrida é o que do meu ponto de vista deixa incompleta
grande herdeiro de uma ampla linha de pensa‑ a tarefa de pensar a democracia, na sua pro‑
mento aberta por Nietzsche, e que basicamente posição de democracia porvir - de que for‑
aponta para a desconstrução da ideia de subje‑ ma se pode pensar desafios políticos contem‑
tividade. Quando Nietzsche assinala “ele pensa” porâneos? Afinal, há como rebater a crítica
(Es denkt), começa aí o caminho para pensar mais frequente de que a desconstrução não
não apenas uma desconstrução da metafísica teria nada a dizer?
moderna, como também a possibilidade do MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que a democracia
acontecimento (quer dizer, do outro e “o” ou‑ porvir é a figura do político em Derrida, e
tro). Derrida se encontra nessa linha de pensa‑ apresenta‑se sempre de maneira oscilante co‑
mento, seguindo as possibilidades abertas pela mo “impossibilidade possível”. A democracia
filosofia pela noção de Ereignis (acontecimento) porvir é uma promessa, e o filósofo a pensou a
heideggeriana, e assumindo as críticas de partir da ideia de “messianidade sem messia‑
Maurice Blanchot e Emmanuel Lévinas sobre nismo”. A desconstrução mesma é “a experi‑
os restos de subjetividade na noção de Dasein. ência do impossível”, e isso está indicado no
Nesse sentido, o pensamento do “outro” me caráter aporético da desconstrução.
parece fundamental em Derrida, pensamento
que já nos primeiros textos se expressava em
termos de contaminação, a prótese de origem
etc. Interpreto Derrida como um “pensador do
resto”, e me parece que precisamente “resto”
(reste) é um termo que permite entender tanto
o modo de fazer filosofia como o lugar
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ENTREVISTA
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
N ° 195 37
Purchase, The Annenberg Foundation Gift, 1992
Vincent Van Gogh, Shoes, 1888
A L I CE S E R R A
D
errida menciona um evento autobiográfico que iria marcar
a abordagem desconstrutiva. Nos alpendres de sua casa,
em sua infância na Argélia, o pedreiro colocara um ladri‑
lho invertido ou deslocado. O menino Jacques Derrida
demorava‑se em olhar para esse ladrilho. A Desconstrução – comenta
o autor em “Rastro e arquivo, imagem e arte” – “consiste justamente
em colocar os ladrilhos do avesso, enfim, a perturbar uma ordem”. Ao
perturbar uma estrutura, o pensamento desconstrutivo não visa pu‑
ramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para as fraturas
e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma harmônica
e solidificada. A arte torna‑se assim um âmbito privilegiado para o
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
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da imagem, lugar em que estaria o órgão da
visão, mas onde a não‑visibilidade se inscre‑
ve. Esse modo de expressão remete ao proce‑
dimento desconstrutivo análogo, que res‑
guarda uma margem de invisibilidade ou de
ambiguidade em seus textos. A desconstru‑
ção nem apaga os aspectos obscuros e as in‑
congruências nem os traz a uma pretensa
clareza, mas deixa‑os ao lado ou nas entreli‑
nhas, como que perturbando o texto e tur‑
vando uma percepção nítida. Assim proce‑
dendo, a desconstrução aproxima‑se de uma
atuação própria à arte. Para Derrida, a arte,
como transposições de significados e formas assim como a alteridade, apresenta essa pe‑
ideais dados à consciência. Se Artaud não tra‑ culiaridade de perturbar sistemas de pensa‑
balha somente com a palavra que transporta mento, deslocar lugares e hierarquias, con‑
sentido, o livro que se pretende próximo a vocar a pensar o que não pode ser apropriado
Artaud traz para suas próprias páginas inscri‑ pela filosofia.
ções, remissões de Lena Bergstein a rasgos, Já um segundo plano de diferenciação diz
letras, queimas, rabiscos que se encontravam respeito, como mencionado, aos efeitos do pen‑
nos cadernos de Artaud. Ao lado ou abaixo samento desconstrutivo sobre a obra abordada:
dessas incisões e vazios, o texto de Derrida ao pretender preservar o espaço da arte, a
aparece como uma outra cena, esta alude a Desconstrução insiste em desprendê‑la de en‑
Artaud e suas inscrições, mas não de modo foques parciais e reducionistas, sejam estes de
descritivo ou analítico. E alude ainda a esse cunho historicista, psicologista ou outros,
outro olhar, o olhar da artista que descentra reconduzindo‑a a uma diversidade de remis‑
do texto o autor. Nessas cenas contíguas e re‑ sões de sentido. Esse aspecto se observa, por
missões implícitas, o diálogo é apenas possível exemplo, no texto de Derrida acerca da inter‑
com um outro que se cala, retira‑se do âmbito pretação de Heidegger sobre os sapatos pinta‑
da palavra, mas permanece ao lado e alhures dos por Van Gogh, publicado no livro A ver‑
do texto de Derrida. É como se, num lugar dade em pintura. Abrindo seu texto com a
ambiguamente situado no texto e à margem pergunta “Não há fantasmas nos quadros de
do texto, a singularidade da marca e a alteri‑ Van Gogh?”, conduz‑nos Derrida ao tema do
dade do artista se preservassem. espectro. O fantasma ou espectro ronda o vi‑
Outro exemplo de diferenciação inscrita sível e está presente a cada vez que se projetam
pela arte na obra de Derrida são os desenhos significados sobre imagens e percepções.
de cegos ou alusivos à cegueira, em seu livro Projeções fantasmáticas ou imaginárias estão
Memórias de cego: o autorretrato e outras ru‑ assim em toda interpretação sobre obras de
ínas, escrito para uma exposição no museu arte e não podem ser eliminadas. O perigo,
do Louvre. Ressalte‑se que foi Derrida quem para a desconstrução, é quando a interpretação
escolheu o tema para a exposição – a cegueira
– e quem fez a primeira seleção das imagens
que foram expostas e reproduzidas no livro.
Derrida aborda a cegueira como condição de
possibilidade daquilo que, na pintura e no
desenho, se dá a ver: “possibilidade do visível,
esta invisibilidade habitaria o visível”. Para
Derrida, não cabe ao pensamento trazer ao
visível aquilo que na imagem se conservou
obscuro. Como se vê no autorretrato de Henri
Fantin‑Latour que foi reproduzido na capa
do livro e longamente comentado por
Derrida, o lápis do artista deixou um dos
olhos apenas subentendido na parte obscura
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
Divulgação
obra. Nesse sentido, na desconstrução da in‑
terpretação sobre os chamados “sapatos de
camponeses” de Van Gogh, Derrida lembra,
dentre outros aspectos, que o quadro a que se
referia Heidegger não possuía título e remetia
a uma série de quadros em que Van Gogh pin‑
tou sapatos. Aludindo também metaforica‑
mente ao fato de que os cadarços daqueles
sapatos estavam desamarrados, Derrida indi‑
ca a insuficiência de se interpretá‑los segundo
uma tese sobre sua origem e seu pertencimen‑
to. Os sapatos poderiam ser tanto de campo‑
neses, como afirmou Heidegger, quanto sapa‑
tos do próprio Van Gogh quando de sua
estadia em Paris, como sustentou o historia‑
dor da arte Meyer Shapiro. Ambas as signifi‑
cações são possíveis, mas não desvelam a ver‑
dade da imagem, inclusive por não
considerarem suficientemente diversas outras
instâncias (materiais, políticas, econômicas
etc.) que interferiram na produção da obra e
em suas interpretações.
Nesse sentido, Derrida ressalta que seu li‑
vro A verdade em pintura não trata especifica‑
mente das pinceladas, formas e cores, mas
enfoca sobretudo o que se passa em torno da Henri Fantin-Latour, Self-portrait, 1859
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encontravam em outras especulações suas so‑
bre a escrita. Em contraponto à metafísica
clássica, que sempre teria privilegiado o sen‑
tido ideal e a linguagem falada em detrimento
da inscrição gráfica, Derrida pensa a lingua‑
gem como uma rede de traços diferenciais:
seja num texto literário ou filosófico, seja nu‑
ma tela ou gravura, o traço inscrito institui
diferenças, distingue‑se dos demais na medida
em que se delimita e se relaciona com os de‑
mais, de um modo singular a cada vez. O tra‑
ço inscrito não se subordina ao significado
ideal, à palavra falada, à imagem ideada, ele
não os representa. Ao poder se expressar de
um modo diferente em relação ao que se pre‑ consiste no deslocamento da dicotomia entre
tendia, ele contamina o sentido ideado, po‑ ergon (obra) e parergon (aquilo que circunda a
dendo surpreender o sujeito que supunha obra), sendo que a estética clássica teria privi‑
controlar os modos de expressão. legiado a obra e ofuscado o parergon. Para
Derrida induz‑nos assim a pensar que Derrida, ao contrário, importa resgatar no in‑
não existe uma verdade da arte, sobretudo, terior da obra as interferências do “fora” e do
que não existe “uma” verdade. Todavia, há “em torno”. Citem‑se, neste caso, as interferên‑
que se lembrar que seu livro que justamente cias provenientes da materialidade da obra e
se intitula A verdade em pintura também par‑ dos contextos, como é o caso dos suportes dos
te de uma citação de Paul Cézanne que afir‑ quadros, dos lugares de exposição e instalação,
ma: “Eu lhes devo a verdade em pintura e eu da crítica de arte, do mercado e das implicações
a lhes direi”. Ao refletir sobre os sentidos políticas da arte. A remissão ao parergon parece
dessa promessa de verdade, Derrida reprisa assim implicar a necessidade de uma análise
os sentidos de verdade que, em diferentes infinita da obra; todavia, Derrida aponta tam‑
momentos da tradição filosófica, pretende‑ bém os limites da análise, já que os vínculos e
ram circunscrever a arte – verdade enquanto remissões em cada obra não se compõem de
representação (de um objeto ou cena perce‑ elementos simples e não se deixam decompor
bida); enquanto adequação (a uma ideia ou de modo abstrato, o que se vê propriamente no
significado); enquanto manifestação (da ver‑ vínculo entre suporte e superfície.
dade). A partir de algumas desconstruções, Uma outra desconstrução atinge o privi‑
Derrida problematiza direta ou indiretamen‑ légio do monumental e das imagens suposta‑
te com tais noções de verdade. mente representativas, desconstrução que
A primeira dessas desconstruções é a já Derrida efetua não através de uma crítica
mencionada desconstrução das noções de per‑ direta, mas de anotações dedicadas ao frag‑
tencimento e de origem da arte, como se indi‑ mentário. Isso se vê em suas observações so‑
cou no exemplo dos sapatos de Van Gogh. Uma bre os desenhos de Valerio Adami, bem como
outra desconstrução, também já anunciada, em suas anotações dedicadas a uma série de
desenhos de Gérard Titus‑Carmel, ambos os
textos publicados em A verdade em pintura.
Como se observa no desenho de Benjamin
feito por Adami e reproduzido no livro, a fi‑
guração se quebra e se interrompe sob a in‑
terferência de outras cenas e da escrita que se
sobrepõe. Por sua vez, a série de cento e vinte
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
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As ciências, a razão
e a desconstrução
Afinal, como pensar a ciência?
F E R NA NDO F R A GO ZO
E
m geral, quando se fala de ciência, alguns qualificativos pare‑
cem se repetir sem que sejam propriamente questionados em
seu uso corrente ou seu sentido. Assim, correntemente ouvimos
falar de “verdade” científica, “descoberta” científica, de “avan‑
ço” ou de “progresso” da ciência. Em geral, não se questiona muito o que
podem significar “verdade”, “descoberta” ou “avanço” nesses casos; em
geral, a ciência é pensada como um processo de conhecimento que, em
seu progresso, descobre a verdade do mundo que nos cerca, e explica,
paulatinamente, a realidade que somos e na qual nos encontramos.
Mas será isso mesmo a ciência? A discussão é rica, diversificada e
extremamente viva entre os chamados filósofos da ciência. Mas não
apenas: pensadores dos mais diversos matizes, assim como cientistas
das mais diversas áreas, se debruçam e se debruçaram sobre a questão:
afinal, como pensar a ciência?
Jacques Derrida é sem dúvida um desses pensadores que buscou
responder à “questão ciência” com acuidade e amplitude, refletindo
sobre suas origens, premissas e história, num movimento de questio‑
namento que busca situar a ciência moderna no âmbito dessa herança
mais ampla que nos constitui e que se chama “Ocidente”. Não é evi‑
dentemente o único a fazê‑lo com essa envergadura, claro. Outros
grandes pensadores também propuseram – e propõem – respostas para
a “questão ciência”, e Derrida sabe, e o diz explicitamente, que é tribu‑
tário dos caminhos abertos por, dentre outros, Husserl e Heidegger,
que, antes dele, buscaram entender a ciência a partir de um profundo
questionamento da filosofia.
O que caracteriza Derrida, contudo, é o fato de aprofundar esses
caminhos abertos na direção de um questionamento próprio,
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
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Se essa idealização unificante e teleológica
mais geral do processo de conhecimento tende
a condicionar o questionamento científico, a
pré‑ordená‑lo numa direção específica, não é
menos verdade que há outros condicionantes,
controles e “teleologismos” mais específicos
nos processos de pesquisa que podem inibir
ou travar a possibilidade da “descoberta”. O
que Derrida tem em mente quando fala desses
“teleologismos” específicos, que podem inter‑
ferir no desenrolar de uma ciência particular,
é não apenas o perigo de a pesquisa científica
se ver perigosamente pautada e guiada por
todo tipo de poderes ou instituições políticas, hipóteses e procedimentos faz parte do modo
militares, religiosas, tecnológicas, econômicas de procedimento de toda ciência, o fato é que,
ou capitalísticas (e daí a importância das uni‑ para Derrida, só há “acontecimento” científi‑
versidades terem condições de realizarem seus co, só há “invenção” e “descoberta” ali onde
questionamentos sem condicionantes de qual‑ surge justamente, a partir das projeções espe‑
quer espécie), mas também pelas orientações radas, o inesperado, e a invenção técnico
que podem ser constituídas, internamente, no ‑científica apenas “encontra” o que ela busca
próprio seio de uma comunidade científica ali onde ela não é programada por uma estru‑
específica, em torno do que Thomas Kuhn tura de espera e antecipação que anula a des‑
denominou de “paradigma” e que correspon‑ coberta ao torná‑la possível e portanto previ‑
de, em linhas gerais, a um conjunto de concei‑ sível. A descoberta científica é, para Derrida,
tos, definições, procedimentos, práticas, ins‑ um acontecimento inesperado.
trumentos e técnicas que orientam uma Sem dúvida, o próprio movimento interno
configuração determinada de pesquisa e res‑ das ciências pode vir a fazer com que o “acon‑
tringem ou descartam outros modos de ques‑ tecimento” se dê, o imprevisível surja – a his‑
tionar ou mesmo de definir os objetos daquele tória ou as histórias das ciências nos contam
âmbito científico específico. certamente diversos casos dessas irrupções,
Ora, para Derrida, uma descoberta apenas dessas perplexidades que demandaram todo
é realmente uma descoberta quando foge dos um esforço de reconceitualização e elabora‑
padrões pré‑determinados e das projeções es‑ ção de hipóteses, na medida em que as “des‑
peradas e demanda, por parte dos pesquisa‑ cobertas” colocaram os conceitos e as pressu‑
dores, toda uma nova reflexão e reordenação posições anteriores em questão. Em
do conhecimento. Nesse sentido, ela é propria‑ Gramatologia, Derrida analisa dois desses
mente um “acontecimento”, algo que não pode casos mais detidamente, a saber, a linguística
ser entendido, respondido e avaliado a partir e a gramatologia (ciência da escrita), e se per‑
dos parâmetros até então adotados, algo ina‑ gunta se os conceitos e hipóteses que guiavam
propriável por parte dessas narrativas prévias. essas ciências não deveriam ser radicalmente
Se a adoção de um conjunto de conceitos, revistos diante das enormes descobertas que
realizaram – descobertas essas que deveriam
não apenas abalar essas pressuposições cien‑
tíficas mas também toda a conceitualidade
filosófica que herdamos e que Derrida
propõe‑se justamente a desconstruir.
Na verdade, Derrida se pergunta se não é
o caso de toda ciência, no seu próprio processo
de desenvolvimento, levar paulatinamente ao
questionamento das premissas conceituais e
hipotéticas que a constitui. O próprio movi‑
mento das ciências pode fazer com que o
“acontecimento” se dê – mas isso pode não ser
o caso justamente nas situações em que os
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DOSSIÊ JACQUES DERRIDA
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a questão da clonagem humana mobiliza, se‑
gundo Derrida, o melhor e o pior da razão, o
cálculo e o incalculável, os poderes e a impo‑
tência da razão diante das gigantescas per‑
guntas acerca da essência da vida, do nasci‑
mento e da morte, dos direitos da pessoa e do
Estado. Para Derrida, o debate atual acerca
da clonagem humana apresenta, em geral e
esquematicamente, dois campos que se de‑
frontam, sendo ambos marcados por pressu‑
posições fortes e não de todo explicitadas e
refletidas, que merecem ambas serem descon‑
truídas. Assim, de um lado os defensores da
clonagem, e principalmente da clonagem da vida, do corpo, e a própria definição de
terapêutica, que defendem a pesquisa sem “ser humano”.
limites, acenando para as possibilidades de Nesse sentido, diante da necessidade de
cura mais diversas, mesmo que o risco, por decidir entre essas posições, é preciso não
mais calculável que seja, possa abrir as portas apenas elaborar de modo profundo o ques‑
para o incalculável. De outro, aqueles que tionamento mas também e principalmente
protestam contra essas experiências, cha‑ separar de modo radical o processo de ques‑
mando a atenção para a singularidade do tionamento do processo de tomada de deci‑
humano, o direito de cada ser existir ao seu são. Isso porque, por mais que o questiona‑
modo, a dignidade da vida e o perigo de pro‑ mento se aprofunde, por mais que se conheça
gramação militar, industrial ou comercial da aquilo sobre o que se está pesquisando, há
vida humana. Ora, nesse caso, Derrida cha‑ sempre um desconhecimento radical que não
ma a atenção para o fato de que ambas as permite que uma decisão seja inteiramente
posições partem de conceitos e hipóteses que calculável e programável. A rigor, o que
precisam ser profundamente repensadas, o Derrida aponta é que, uma decisão enquanto
problema necessitando de uma outra radical tal, digna desse nome, é aquela que se dá
elaboração na medida que o que está de fato quando não pode ser programada nem ter
em jogo nas possibilidades abertas pela en‑ suas conseqüências inteiramente previstas.
genharia genética é a necessidade de repensar Uma decisão só é decisão quando ela tem de
o que somos e o que podemos ser, a questão decidir diante do que não se sabe, numa es‑
pécie de salto no escuro que, seja na direção
que for, engaja a responsabilidade e assume
o risco e o ônus. Se o saber é necessário, se o
cálculo é possível, ele o é até certo ponto –
quando não se sabe e um caminho tem de ser
escolhido, aí existe, para Derrida, a necessi‑
dade da decisão que engaja, direta e radical‑
mente, a responsabilidade. E, por isso, saber
e poder, questionamento e decisão devem
estar completamente separados.
E se o verdadeiro local de um problema da
razão hoje é certamente a técnica, com tudo o
que ela implica como advento impossível, im‑
previsível e radicalmente outro, é preciso, para
pensá‑la adequadamente, assim como para
pensar a razão e a ciência, realizar o que
Derrida chama de “descentramento” radical,
e que corresponde, de fato, a elaborar um pen‑
samento que não pode ser, ou não pode mais
ser, apenas, “um ato filosófico ou científico
enquanto tal”.
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