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DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO

(DECHFE)

Aula A Mímesis Platônica


Disciplina Tópicos Especiais - Filosofia e Elementos da Arte
Autor Fábio César da Silva

O primeiro pensador conhecido que usou um termo semelhante à concepção atual de Arte foi
Platão (c.427-347 a.C.), especificamente sobre seus comentários acerca da mímesis (μίμησις). A palavra grega
mímesis pode ser traduzida por imitação e, na época da Grécia Clássica, tudo que se caracterizava como
imitação da realidade era dita como mímesis, como a poesia, o teatro, a pintura, a escultura, a literatura etc.
Na obra de Platão denominada de A República, esse assunto é abordado de forma no mínimo polêmica,
pois nela se encontra uma das passagens mais controversas da história da filosofia da arte ocidental, a
saber, a expulsão da poesia da cidade ideal:

- Seja dito isto, portanto, para nos justificar, já que voltamos a tratar a poesia, por a
termos banido de nossa cidade, visto ser ela o que é: a razão no-lo prescrevia. E
digamos-lhe ainda, a fim de que ela não nos acuse de dureza e rusticidade, pois é antiga
a dissidência entre a filosofia e a poesia (PLATÃO, 607b).

De fato, essa alegação de Platão nos leva a questionar o motivo pelo qual ele se posicionou de
maneira tão radical em relação à mímesis. Para entendermos esse motivo, devemos aprofundarmos mais
no pensamento desse filósofo, a fim de compreendermos melhor sua justificativa para banir a poesia da
cidade ideal. Talvez uma das chaves interpretativas para isso se encontra nessa mesma obra, A República,
especificamente quando Platão explica sua teoria do conhecimento denominada de teoria das formas.
Embora os estudiosos considerem Parmênides (c.515-c.445 a.C.) anteriormente como o inaugurador da
metafísica, Platão com a formulação da teoria das formas pode ser dito como o primeiro pensador a tratar

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de maneira mais sistemática sobre a metafísica. No entanto, antes de explicar essa teoria, atentemos para
o fato de que alguns comentadores fazem uso da denominação “teoria das ideias” e não de “teoria das
formas”. Em nosso entender isto deve ser evitado, porque o uso do termo “ideia” em vez de “forma”
pode significar erroneamente que as formas são entidades psicológicas localizadas nas mentes. Na verdade,
embora imateriais e ajustadas pelas mentes, as formas não estão propriamente localizadas nas mentes, ou
seja, as formas são entidades independentes, e que não estão exatamente localizadas no tempo e no espaço.
De certo modo, as formas são entidades metafísicas e não psicológicas. Conforme Lesley Brown salienta:

O título “teoria das Idéias de Platão” (com freqüência utilizado como alternativa a
“teoria das Formas”) deve ser evitado. Embora sejam imateriais, as Formas de Platão
não são idéias no sentido que ficou famoso na filosofia dos séculos XVII e XVIII, nem
é a teoria idealista no sentido de Berkeley. Diversamente das idéias berkeleyanas, as
Formas não dependem, para sua existência, das mentes, nem mesmo da mente divina,
embora alguns pensadores posteriores (chamados de “neoplatônicos”) tenham
desenvolvido a teoria nessa direção. Porém, como veremos, embora as Formas sejam
decididamente entidades não-dependentes da mente, ambas, Forma e mente, ajustam-
se de uma maneira peculiar uma à outra (BROWN, 2007, p. 648).

Retomando, então, a explicação da teoria das formas, para Platão, o conhecimento se divide em dois
âmbitos cognitivos denominados de mundo sensível e de mundo inteligível, tendo neles os seus respectivos
objetos e modos de conhecimento dispostos de maneira hierárquica em relação aos níveis de
cognoscibilidade. Assim, no mundo sensível estão os objetos e os modos de conhecimento inferiores em
termos de cognoscibilidade correspondentes à primeira e à segunda etapas do conhecimento. A primeira
etapa é dada pelos objetos imagens (eíkones), cuja apreensão é feita por meio do modo de conhecimento
da imaginação ou dos simulacros (eikasía). A segunda etapa é dada pelos objetos coisas vivas e coisas visíveis
(zóa), cuja apreensão é feita por meio dos modos de conhecimento da crença (pístis) e da opinião (doxá).
No mundo inteligível, por sua vez, estão os objetos e os modos de conhecimento superiores em termos de
cognoscibilidade correspondentes à terceira e à quarta etapas do conhecimento. A terceira etapa é dada
pelos objetos chamados objetos matemáticos (tá mathéma), cuja apreensão é feita por meio do modo de
conhecimento denominado de raciocínio dedutivo (diánoia). A quarta etapa é dada pelos objetos formas (eîdos),
cuja apreensão é dada pelo modo de conhecimento denominado de intuição intelectual (nóesis). Nessa teoria
do conhecimento, a quarta etapa dada pelos objetos formas que são apreendidos pelo modo de
conhecimento intuição intelectual corresponde à Verdade e ao Bem, caracterizando-se, assim, como o ápice
do conhecimento. As outras etapas não correspondem propriamente à Verdade e ao Bem e suas respectivas
distâncias em relação à Verdade e ao Bem são medidas pelo critério de participação (méthexis) que cada tipo
de objeto possui em relação às formas. Com efeito, quanto mais distante das formas menos participação
delas o objeto terá e, por sua vez, quanto mais próxima das formas mais participação delas o objeto terá.
Ilustradamente, a teoria das formas de Platão poderia ser representada da seguinte maneira:

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OS OBJETOS DO CONHECIMENTO OS MODOS DO CONHECIMENTO

Formas, Ideias (Eîdos) Intuição Intelectual (Epistéme/Nóesis)


Mundo
Inteligível Objetos Matemáticos (Tá Mathéma) Raciocínio Dedutivo (Diánoia)

Coisas Vivas e Coisas Visíveis (Zóa) Crença (Pístis) e Opinião (Doxá)


Mundo
Sensível Imagens (Eíkones) “Imaginação”; Simulacro (Eikasía)

Se observarmos bem a teoria das formas de Platão, podemos entender a razão pela qual a poesia
deve ser banida da cidade ideal, pois ela como mímesis corresponde aos objetos imagens que são
apreendidos pelo modo de conhecimento imaginação cuja localização está em uma etapa do conhecimento
a três níveis abaixo dos objetos formas que são apreendidos pelo modo de conhecimento intuição intelectual
que, por sua vez, corresponde à Verdade e ao Bem. Ora, se Platão declara em A República que a vida em
comunidade na cidade ideal deve ser baseada metafisicamente pela Verdade e pelo Bem, logo a
compreensão cognitiva ilusória da realidade feita pela mímesis deve ser evitada no convívio comunal. Nota-
se aqui o grau metafísico de tal pensamento, pois o conhecimento verdadeiro é a própria realidade
localizada no mundo inteligível cujo ápice são as formas que se distinguem da realidade ilusória localizada no
mundo sensível. Para Platão, não há uma distinção entre o âmbito estético aos âmbitos da moralidade e da
política, sendo que o modo pelo qual o sujeito percebe o objeto está relacionado ao modo pelo qual o
sujeito é, e conhecer é um processo de ascese à Verdade e ao Bem. Desse modo, o desconhecimento da
Verdade e do Bem é um tipo de ignorância no qual o sujeito está imerso pelo fato de ele não os conhecer
por não ter acesso a ambos. Aqui se pode notar que há uma associação entre conhecimento cognitivo e
a moral na teoria do conhecimento de Platão.
Sob essa perspectiva, a poesia estaria em uma etapa na qual se ignoram a Verdade e o Bem. Desse
modo, a heteronomia da arte de Platão se caracteriza tanto pela vinculação da mímesis ao âmbito da
epistemologia quanto ao âmbito da moralidade. Para Platão, não há uma distinção entre o âmbito estético
ao da moralidade e da política. Na verdade, a kalokagathia platônica não se limita a vinculação do Belo ao
Bem, à moralidade, tendo em vista que a apreensão do Bem se estabelece por um processo de
cognoscibilidade, ou seja, a ação moral é uma questão também epistemológica.
Fundamentalmente, essa é a justificativa de Platão para banir a poesia da cidade ideal e esclarecer
isso é uma tarefa importante de exegese do pensamento do filósofo em termos estéticos. Todavia, o
trabalho interpretativo sobre esse assunto não cessa por aí, pois esse posicionamento de Platão diante da
mímesis não é absoluto e nem inequívoco, fazendo com que deva ser interpretativamente esclarecido de
maneira mais detalhada. A primeira questão que deve ser esclarecida é o uso semântico do termo mímesis.
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Em A República, Platão analisa a maneira pela qual a poesia é divulgada e a distingue em dois tipos, a
saber, a poesia pela “imitação” (μίμησις) e a poesia pelo “relato simples” (άπλῄ διῄγησις). A “imitação” é
o discurso poético feito em primeira pessoa, no qual há uma identificação do narrador com o personagem.
O “relato simples” é o discurso poético em terceira pessoa, no qual, por sua vez, não há uma identificação
do narrador com o personagem. Ora, essa distinção semântica da poesia feita por Platão produz uma
ambiguidade conceitual que enfraquece os argumentos dele sobre a mímesis, pois não parece claro ao leitor
que a maneira pela qual a poesia é divulgada a transforma ora em imitação ora em relato simples. Logo,
em dadas circunstâncias, a poesia não seria estritamente imitação, consequentemente, em dadas
circunstâncias poderia não haver necessidades de bani-las da cidade ideal.
A segunda questão que deve ser esclarecida é que em alguns momentos Platão alega em A
República que a poesia pode ser usada com finalidade de trazer benefícios à vida política da cidade ideal.
Desse modo, distinguir as nuances dos argumentos de Platão sobre a mímesis com o objetivo de identificar
os critérios de exclusão da poesia da cidade ideal parece ser um importante trabalho interpretativo que
levanta discussões fundamentais. Exemplos disso são as várias alusões de que a mímesis no Livro III de
A República, com o sentido de mentira, imitação, no caso, também de poesia, poderia ser usada em alguns
casos como um tipo de “nobre mentira” (PLATÃO, 414c):

[1] - Mas, para nós, ficaríamos com um poeta e um narrador de histórias mais austero e
menos aprazível, tendo em conta a sua utilidade, a fim de que ele imite para nós a fala
do homem de bem e se exprima segundo aqueles modelos que de início regulamos,
quando tentávamos educar os militares (PLATÃO, 398a).
...
[2] - Mas é que, realmente, deve ter-se em alto apreço a verdade. Se, de fato, dissemos
bem há pouco, se na realidade, a mentira é inútil aos deuses, mas útil aos homens sob a
forma de remédio, é evidente que tal remédio se deve dar aos médicos, mas os
particulares não devem tocar-lhe. […] - Portanto, se a alguém compete mentir, é aos
chefes da cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para benefício da cidade;
todas as restantes pessoas não devem provar deste recurso (PLATÃO, 389b).
...
[3] - Devemos mas é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a
seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como
os habitantes de um lugar saudável, [...], os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de
harmonia com a razão formosa? [...] - Não é então por este motivo, ó Gláucon, que a
educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na
alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela
perfeita, se se tiver sido educado? (PLATÃO, 401d).

Outra questão, por sinal, controversa, que também dever ser mencionada seria o fato de o próprio
Platão expressar sua filosofia por meio da mímesis com o uso de alegorias e de diálogos. Sem dúvida, isso
pode enfraquecer os argumentos de Platão sobre a mímesis pela razão de se caracterizar em uma
contradição performática um tanto quanto suspeita. Um leitor atento poderia suspeitar da consistência
teórica da teoria das formas porque nela a mímesis é considerada ilusória e de baixa cognoscibilidade e Platão
a expõe pela maneira mimética. A suspeita se estabeleceria pelo seguinte fato: de que maneira podemos
apreender o pensamento de Platão por meio do nível mais baixo de cognoscibilidade que seria a mímesis?
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Como aponta Jeanne-Marie Gagnebin, vários comentadores afirmam que a filosofia de Platão é
fundamentalmente mimética pela razão do critério da méthexis que hierarquiza os objetos do
conhecimento em relação às formas. Com isso, deve-se distinguir os tipos de mímesis no seu pensamento,
isto é, aqueles que produzem conhecimento verdadeiro e aqueles que produzem ilusão:

Como vários comentadores ressaltaram, a própria filosofia de Platão repousa


profundamente sobre uma concepção mimética do pensamento: trata-se, para o
filósofo, de sempre traduzir e reproduzir o paradigma ideal. Há portanto em Platão um
gesto mimético originário que ele deve distinguir a qualquer preço da atividade mimética
artística ilusória. No diálogo Sofista, ele diferenciará entre várias formas de μίμησις: uma
filosófica, que representa autenticamente as essências, e as outras, produtoras de
simulacros, que devem ser combatidas e rejeitadas (1969, 235 c). (GAGNEBIN, 1993,
p. 69).

Enfim, indubitavelmente, essas questões interpretativas apontadas acima são imprescindíveis para
um estudo mais profundo do pensamento de Platão em termos estéticos. Imprescindíveis tanto do ponto
de vista da exegese, no sentido de esclarecer as opiniões de Platão no que se refere à Arte, quanto do
ponto de vista da história das ideias estéticas, no sentido de apreender razoavelmente os modos de
pensamento do passado a fim de compreendermos o presente como processo de atualização cultural.

Referências:

BROWN, Lesley. Platão e Aristóteles. In: NICHOLAS, B. & TSUI-JAMES, E. P. (Org.) Compêndio de
Filosofia. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 647-664.

GAGNEBIN, Janne-Marie. Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamin. São Paulo:


Perspectiva, 1993.

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Editora Calouste
Gulbenkian, 1993.

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