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CAPA E PROJETO GRÁFICO; Teima Custódio

REVISÃO: Karina Mota

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

G771
Gramáticas contemporâneas do português : com a palavra, os autores
/ Evaniido Bechara ... [et. al.] ; organização Maria Helena de Moura Neves,
Vânia Cristina Casseb-Galvão; Marli Quadros Leite; Francisco Roberto Platão
Savioli. - 1 . ed. - São Paulo: Parábola Editorial, 2014,
160 p.;23 cm.

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-7934-086-4

1. Lingua portuguesa - Gramática. I. Bechara, Evaniido, 1928-. II. Neves,


Maria Helena de Moura. III. Galvão, Vânia Cristina Casseb, 1965-. ÍV. Leite,
Marli Quadros. V. Savioli, Francisco Roberto.

14-09803 CDD: 469.5


CDU: 8n.l34.3'36

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ISBN: 978-85-7934-086-4

© do texto: Maria Helena de Moura Neves & Vânia Cristina Casseb-Galvão, 2014.
©daedição: Paráboia Editorial, São Paulo,abril de2014.
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^ora quem se foz uma gramático?


• Evaniido òechora

Resenhando o Compêndio da gramática portuguesa, de Vergueiro e Per-


tence, saído em Lisboa em 1861, Machado de Assis assim começa os seus
comentários: "Sempre achei que uma gramática é uma coisa muito séria.
Uma boa gramática é u m alto serviço a uma lingua e a u m pais. Se essa
língua é a nossa, e o país este em que vivemos, o serviço cresce ainda e a
empresa torna-se mais difícil" (Machado de Assis, 1953: 21).
Iremos levar aqui em consideração dois entendimentos diferentes do
que vem a ser uma gramática. O termo gramática é polissêmico; e entre
outras aplicações que deixaremos de lado, só nos vamos ater ao que mais
de perto se aplica ao tema desta mesa-redonda. São dois os conceitos que
nos interessam no momento:
(a) gramática descritiva, disciplina cientifica, que tem por objetivo regis-
trar e descrever u m sistema linguistico em todos os seus aspectos (e
em todas as suas variedades), sem pretender recomendar u m modelo
exemplar;
(b) gramática normativa ou prescritiva, que, por seu turno, tem por finalida- Há a esse respeito algumas considerações, que se fazem aqui ne-
de didática recomendar u m modelo de língua, assinalando as cons- cessárias. Antes de tudo, a gramática normativa depende da linguistica
truções "corretas" e rejeitando as "incorretas", ou não recomendadas sincrônica, ou gramática descritiva, em suma, para não ser caprichosa
pela tradição culta. e contraproducente. Regras de direito que não assentam na realidade
Isto significa, em outras palavras, que a primeira disciplina mostra social, depreendida pelo estudo sociológico puro, caem no vazio e são ou
"como a língua funciona", e a segunda, "como a lingua deve funcionar", inoperantes ou negativas até. Só é altamente nociva u m a higiene que não
segundo os tipos de sua exemplaridade idiomática. f^oin assenta em verdades biológicas. ,
A boa orientação linguistica assinala esta dupla finalidade das dis- Não se compreende uma situação inversa. Depois, mesmo quando
ciplinas, sem sobre elas emitir juízo de valor, mas recomendando cuida- convém a correção de u m procedimento linguistico (porque marca desfa-
dosamente que não se misturem suas tarefas, sob pena de perturbar a voravelmente o individuo do ponto de vista da sua posição social, ou por-
validade e as análises de tão importantes atividades nos seus âmbitos de que prejudica a clareza e a eficiência da sua capacidade de comunicação,
ação. Extremamente pertinentes são as considerações de Mattoso Câmara ou porque cria u m cisma perturbador n u m uso mais geral adotado), é pre-
jr., que introduziu no Brasil e em Portugal os postulados da linguistica ciso saber a causa profunda desse procedimento, para poder combatê-lo
estrutural: "Vimos que a gramática greco-latina era normativa e se podia na gramática normativa. Finalmente, a norma não pode ser uniforme e
definir como 'a arte do falar e escrever corretamente'". rígida. Ela é elástica e contingente, de acordo com cada situação social es-
Será que essa gramática deve ser abandonada, como sustentam alguns pecifica. O professor não fala em casa como na aula e muito menos numa
linguistas, especialmente norte-americanos? [...] A resposta que parece cer- conferência. O deputado não fala na rua, ao se encontrar com u m amigo,
ta é que há em tal atitude uma confusão entre duas disciplinas correlatas, como falaria numa sessão da Câmara. E assim por diante.
mas independentes. A gramática descritiva, tal como a vimos encarando, Quando o linguista sincrônico se insurge contra o gramático nor-
faz parte da linguistica pura. Ora, como toda ciência pura e desinteressada, mativo ou o professor de lingua, é em regra porque este e aquele decla-
a linguistica tem a seu lado uma disciplina normativa, que faz parte do que radamente desobedecem a esses três preceitos. Impõem as suas regras
podemos chamar a linguistica aplicada a u m f i m de comportamento social. praxistas como sendo linguistica. Corrigem ás cegas, sem tocar no ponto
Há assim, por exemplo, os preceitos práticos da higiene, que é independen- nevrálgico do procedimento linguistico que querem corrigir e com isso
te da biologia. A o lado da sociologia, há o direito, que prescreve regras de só criam confusão e distúrbio. Partem do principio insustentável de que
conduta social nas relações entre os membros de uma sociedade. a norma tem de ser sempre a mesma e fixam u m padrão social altamente
A lingua tem de ser ensinada na escola, e, como anota o linguista formalizado como sendo o que convém sempre dizer.
francês Ernest Tonnelat (1927: 167), o ensino escolar "tem de assentar O remédio é o professor de lingua e os homens em geral aprende-
necessariamente numa regulamentação imperativa". rem os princípios gerais da linguistica. Para isso, a melhor solução parece
Assim, a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante ser fornecer-lhes uma gramática descritiva desinteressada de preocupa-
da gramática descritiva. Mas é u m lugar á parte, imposto por injunções de ções normativas.
ordem prática dentro da sociedade. É u m erro profundamente perturba- Há apenas uma observação final a fazer. Se a lingua é variável no
dor misturar as duas disciplinas, e pior ainda, fazer linguistica sincrônica espaço e na hierarquia social, ou ainda num mesmo individuo, conforme a
com preocupações normativas. situação social em que se acha, a gramática descritiva pode escolher o seu
campo de observação. Se ela tem em vista, indiretamente, o ensino esco- Se juntarmos a preciosa lição de Mattoso Câmara ãs considerações
lar, a escolha está de certo modo predeterminada. A descrição não tomará do linguista italiano, é fácil concluirmos que, para fins de elaboração de
por base, evidentemente, uma modalidade popular ou remotamente regio- uma gramática com objetivo do ensino escolar, esta terá de apoiar-se na
nal. Muito menos vai assentar n u m uso elaborado e sofisticado, como, por realidade que lhe apresenta a lingua comum escrita, sedimentada não só
exemplo, a lingua da literatura. Partirá do uso falado e escrito considerado pela lingua literária, mas ainda pela lingua padrão a serviço dos textos
"culto", ou melhor, dito, "adequado às condições 'formais' de intercâmbio técnicos e científicos. Para lembrar outra vez a lição de Pagliaro, o patri-
linguistico no sentido inglês do adjetivo" (Mattoso Câmara Jr., 1970: 5-6). mônio da lingua comum i'»'^:'-'-^'^'^^''^^i^p

O linguista francês Victor Henry, em livro saido em 1896, chamou- .ru- A. •,;,-T-/-'.:^ r r s r t u - s . . . . . . -,.• .

-nos a atenção para a dicotomia lingua transmitida e lingua adquirida; a ,( ,, é, na verdade, um esquema no qual encontram lugar todas as con-
,,; cordâncias substanciais que se verificam nas variedades dialetaís, e
transmitida é aquela primeira que recebemos do meio social e familiar
esse esquema assume por vezes uma consistência tão forte que leva o
em que nascemos e nos desenvolvemos, assentada no dialeto regional,
linguista a ver neste o representante de uma verdadeira fase comum
com seu sotaque particular, seu vocabulário e expressões peculiares, sua
(Pagliaro, 1967: 140).
morfologia e sintaxe locais, tudo apreendido por tradição oral. Como disse
José de Alencar no Pós-escrito do romance Diva, em 1865, é a "linguagem Desde sempre a gramática normativa, pejorativamente acoimada de
cediça e comum, que se fala diariamente e basta para a rápida permuta "tradicional", toma por modelo e fundamento de sua norma de correção
d£is ideias". Já a lingua adquirida é aquela que nos vem pela necessidade o testemunho daqueles escritores que se pautam pela tradição dos fatos
cultural e social quando, concomitantemente ou não, penetramos n u m da linguagem veiculados pela lingua comum, especialmente os mais pró-
estrato mais largo da vida nacional, usuários que passamos a ser da lin- ximos dos usuários a quem vai servir.
gua comum, marca e alicerce da unidade nacional. Enquanto a lingua Embora vista como atividade "desprovida de toda visão cientifica
transmitida recolhe e reflete a variedade de cada modalidade local, ora e desinteressada da própria lingua", como sentenciou o genial linguista
próxima, ora fortemente diferenciada, a lingua comum anula, na medida Ferdinand de Saussure, nunca ele a deixou de considerar u m componente
do possível, essas diferenças em favor de uma modalidade mais uniforme das disciplinas linguisticas. Oriunda da especulação filosófica greco-lati-
e sujeita a u m equilíbrio instável. Antonino Pagliaro, linguista italiano e na, com as tentativas de aperfeiçoamento mais modernamente pelos es-
dos melhores do nosso tempo, assim se manifesta sobre a natureza do tudiosos franceses, ingleses e alemães, a gramática dita tradicional, sem
papel excepcional de que goza a lingua comum: perder o objetivo central da sua natureza pedagógica, jamais se confinou
a u m canto para pacientemente receber toda sorte de impropérios e es-
A existência de uma língua comum, capaz de se elevar acima de to-
vaziamento da área exitosa da linguistica cientifica. Continuando a sua
das as particularidades dialetaís, é indício certo de que surgiu aquela
rotina de mestre-escola, esforçava-se, todavia, por não desprezar, antes
• consciência unitária, aquele sentimento e desejo de participar num
destino comum que, de um povo, faz uma nação. Pode afirmar-se aproveitar-se dela, o embasamento metodológico em que a linguistica ge-
com absoluta certeza que, quando um povo atingiu uma unidade lin- ral e a linguistica descritiva apoiavam e aperfeiçoavam seus conceitos e
guística própria por um ato de adesão ã forma expressiva de maior modelos teóricos. Isto porque tinha consciência de que o sucesso e vali-
•„:; prestigio, atingiu também o espirito de sua unidade nacional (Paglia- dade de seus ensinamentos dependiam muito mais de u m aprofundado
ro, 1967: 136). conhecimento da natureza complexa da linguagem do que dos principios
da lógica herdada dos antigos, não porque a língua não fosse lógica, mas (al menos entre los que ensenan gramática) um acuerdo tácito sobre
porque sua lógica nem sempre coincide com aquela com que costumamos la importância que tíene el hecho de que los estudiantes que se aden-
trabalhar. Assim é que, a partir, principalmente do século XIX, começou ;, ... tran en cualquíer modelo gramatical orientado teoricamente lo hagan
a gramática normativa a operacionalizar novos conceitos e distinções que con el bagaje que proporciona la gramática descríptiva clásíca y, más
concretamente, el estúdio detallado de lo que llamamos, de manera
a ciência ia pondo em prática, e mais de perto diziam*-respeito às suas
talvez excesívamente simplificada, "gramática tradicional". Frente a lo
atividades. Hoje, com seus novos modelos que muitos dos seus fervorosos
que algunas veces se díce, las teorias gramaticales más modernas no
inimigos ou detratores ainda chamam de "gramática tradicional", esta
consideran equivocado ese enorme corpus de doctrina, sino más bien
disciplina está longe de lembrar as feições que apresentava no passado.
'• todo lo contrário. Lo consideran imprescindihle, y a la vez, y sin que
Sem receio de exagerar, podemos dizer que algumas gramáticas b exista contradicción, insuficiente. Aun a pesar de serio, si se prefiere
normativas modernas nada ou pouco se mostram caprichosas ou contra- vedo desde la investigación gramatical más moderna, ese bagaje es
producentes quando comparadas com o rigor das modernas gramáticas relativamente satisfactório desde el punto de vista de las necesidades
descritivas. Em parte, a renovação da gramática dita tradicional se deve de los alumnos de bachillerato y de los cursos universitários más bási-
ao fato de algumas delas terem sido elaboradas por bons linguistas. cos. Más aún, constituye el fundamento sobre el que más tarde podrá
Também cabe aqui acrescentar que bons linguistas souberam apre- asentarse cualquier aproximación teórica, especialmente si se desea
que este asentamiento sea sólido, y no se confundan y se entremez-
ciar os méritos e qualidades da gramática tradicional. Citamos dois que
clen los câmbios meramente terminológicos con los verdaderamente
gozam de muito prestígio nacional e internacional. Maria Helena de Mou-
conceptuales (Bosque,]995: 9).
ra Neves, na introdução de seu erudito A vertente grega da gramática tra-
dicional, declara:
Minha Moderna gramática portuguesa nasceu sob a égide do movimento
renovador dessa "gramática tradicional". Recebi o convite em 1960 da
A gramática tradicional constitui uma exposição de fatos que tem
sido examinada sempre como obra acabada, sem consideração para Companhia Editora Nacional, de São Paulo, para atualizar a nova edição
o que tenha representado de esforço de pensamento. Citá-la apenas da Gramática expositiva — curso superior, de Eduardo Carlos Pereira (1885-
como dogmática, normativa, especulativa, não científica, significa não -1923) que, publicada em 1907, chegara à sua 114° edição em 1958. A o
compreender o processo de sua instituição (Neves, 1987: 15). completar a tarefa da parte de Fonética, no início de 1960, convenceu-se a
direção da referida Editora de que estava diante de uma nova obra, uma
Não menos ilustre é o linguista espanhol Ignacio Bosque, académico
vez que eram tantas as inovações introduzidas na Fonética, acrescida de
ponente desta preciosa Nueva gramática de la lengua espanola, em dois volu-
uma nova disciplina —, a Fonologia. Encomendou-me uma nova obra que,
mes, n u m total de 3.885 páginas, só dedicada à morfologia e à sintaxe
com o título de Moderna gramática portuguesa, sairia em 1° edição em 1961,
(Bosque, 2009), que, em Repaso de sintaxis tradicional: ejercicios de autocom-
reeditada até nossos dias, sempre enriquecida com a contribuição dos
probación (Bosque,1995), diz:
melhores linguistas teóricos e descritivistas nacionais e internacionais,
dentre os quais merecem especial referência, M . Said A l i , Gili Gaya, Mat-
Existen grandes diferencias teóricas entre los gramáticos actuales que
trabajan en los distintos marcos que ofrece la linguistica moderna. toso Câmara, além da melhor tradição da gramaticografia luso-brasilei-
Lógicamente, también existen entre los que investigam sobre la sin- ra, tendo à frente Epifânio Dias, Mário Barreto, Antenor Nascentes, José
taxis dei espanol. Sin embargo, es fácil entrever entre estos últimos Oiticica. Trouxe a obra já nessa fase tratamento mais aprofundado nos
domínios da morfologia e da sintaxe. Depois de quase quarenta anos de O que de todo se torna inadmissível, atendendo-se a que a dialetação
experiência docente e da proveitosa leitura de novos linguistas teóricos e brasileira não é suficientemente caracterizada e intensa de todo que
torne possível a revolta contra a língua pura e vernácula [...].
descritivistas, do porte de Eugénio Coseriu, Antonino Pagliaro, Hercula-
no de Carvalho e Alarcos Llorach, mais foram aprofundados conceitos e A emancipação do dialeto brasileiro se não é de todo inexequível, é
seguramente, pelo menos, prematura. A lingua clássica não constitui
mais largamente se beneficiaram aspectos da morfologia e da sintaxe, da
óbice de espécie alguma para os brasileiros, a não ser a exigência,
semântica e da estilística. E como toda obra em elaboração, continuará
que se dá em todas as línguas literárias, de meditada cultura (Ribeiro,
aberta a melhoramentos renovadores e correções necessárias.
' • 1897: 63-64).
Em todos os períodos da elaboração da gramática normativa de to-
das as línguas de cultura com o córpus que sempre lhe serviu de referên- E m nota de rodapé: "Até hoje tem sempre predominado o elemento
cia, apoio e modelo, foi o que se assentava na língua padrão e exemplar. clássico, com as devidas concessões aos que querem e desejam a licença
Não perdeu a oportunidade de nos lembrar desta referência o primeiro de falar sem gramática".
gramático do nosso idioma, Fernão de Oliveira, em 1536, quando afir- Já antes de João Ribeiro, de quem não se pode dizer que tenha sido u m
mou que a língua padrão "há de ser a mais acostumada entre os melhores puritano devoto da metrópole portuguesa. Machado de Assis, com a admi-
dela'; e os melhores da língua são os que mais leram e v i r a m e viveram rável clarividência sobre questões de vernaculidade, toca na mesma tecla
contribuindo mais entre primores, sisudos e assentados, e não amigos de antes de João Ribeiro, em artigo de 1873, intitulado Instinto de nacionalidade:
muita mudança" (Oliveira, 1954: 38).
De tempos em tempos, o peso da norma-padrão é contestado por Entre os muitos méritos dos nossos livros nem sempre figura o da
pureza da linguagem. Não é raro ver intercalados em bom estilo os
várias razões. Entre estas está a motivação da consciência nacional de
solecismos da linguagem comum, defeito grave, a que se junta o da
encarecer a variedade regional em detrimento da língua comum padrão.
excessiva influência da língua francesa. Este ponto o objeto de diver-
Entre nós, tal iniciativa aparece na proposta do desembargador Antônio
gência entre os nossos escritores. Divergência, digo, porque se alguns
Joaquim de Macedo Soares, no prólogo do Dicionário brasileiro da lingua caem naqueles defeitos por ignorância ou preguiça, outros porque
portuguesa, de 1889: "Já é tempo dos brasileiros escreverem como se fala os adotam por princípio, ou antes, por uma exageração de principios
no Brasil, e não como se escreve em Portugal". Por mais bem intenciona- (grifo meu). .
da que seja a iniciativa posta em prática por escritores inábeis, o exagero
pode prejudicar o projeto. E bem provável que, para combater tais exces- E acertando o passo com a consentânea lição dos melhores linguistas

sos, João Ribeiro, na 2° edição do seu Dicionário gramatical, saído em 1897, e a melhor politica do idioma, adianta:

no verbete brasileirismo, tenha alertado os incautos:


Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e
as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no sé-
E a expressão que damos a toda casta de divergências notadas entre
culo de quinhentos é um erro igual ao de se afirmar que sua transpor-
a linguagem portuguesa vernácula e a falada geralmente no Brasil.
ii, í tação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito
[...] Que esse dialeto, porém, tenha foros de lingua literária e culta, é
n iv: a influência do povo é decisiva. Há, portanto, certos modos de dizer,
fií locuções novas, que da força entram no domínio do estilo e ganham
1. Esta referência aos "melhores" corresponde ao vir bónus dicendi peritus de que nos fala Quin-
tiliano no início da obra que o imortalizou, Institutio oratória.
ii b direito de cidade. Mas se isto é um fato incontestável e se é verdadeiro
o princípio que dele se deduz, não me parece aceitável a opinião que linguistico, que sempre utilizaram e utilizam a norma-padrão, falando ou
admite todas as alterações da linguagem, ainda aquelas que destroem escrevendo nosso idioma. Também tais ideias não invadiram os cursos de
as leis da sintaxe e a essencial pureza do idioma. A influência popular formação de professores de línguas estrangeiras, os quais se esforçam por
tem um limite, e o escritor não está obrigado a receber e dar curso
ensinar a linguagem das pessoas cultas dos respectivos países. O combate
a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr.
ao preconceito entrou em órgãos do Ministério da Educação, como com-
Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte da influência a
provam declarações inseridas nos Parâmetros Curriculares Nacionais, da
este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a
razão (Machado de Assis, 1953: 147). Secretaria de Educação Fundamental do MEC em que se lia:
Assim, por exemplo, professores e gramáticos puristas continuam a
Em 1921, João Ribeiro lança livro intitulado A língua nacional, com exigir que se escreva (e até que se fale no Brasil):
vista, segundo suas palavras, a investigar a "curiosidade dos amadores
e estudiosos do idioma português na América". Desconhecemos o que O livro de que eu gosto não estava na biblioteca.
a obra provocou naqueles que pretendiam a emancipação da variedade Vocês vão assistir a um filme maravilhoso, . '
americana da lingua-mãe europeia, mas na 2° edição, em 1933, o fato é O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno,
que logo aplaca o desejo desses revolucionários, afirmando que não era Eles se vão lavar/Vão lavar-se naquela pia,

seu propósito
quando já se fixou na fala e já se estendeu à escrita, independentemente de
a defesa nem a apologia intencional de solecismos, de barbaridades e classe social ou grau de formalidade de situação discursiva, o emprego de:
defeitos indesculpáveis. Era muito mais erguido e alevantado o meu
propósito. Tratava-se da independência do nosso pensamento e de sua O livro que eu gosto não estava na biblioteca.
imediata expressão (Ribeiro, 1933: 16). Vocês vão assistir um filme maravilhoso,
O garoto que eu conheci ontem o pai é meu aluno,
Coincidia, assim, o nosso filólogo com o propósito de José de Alen- Eles vão se lavar na pia.
car, sobre quem se costuma ouvir, sem razão nem propósito, ter sido o
iniciador e promotor de uma "lingua brasileira". Mais recentemente nos Contra tal modo de ensinar, insurge-se, entre outros, Eugénio Cose-
chegou, em geral por via da sociolinguística, a lição correta de que são vá- riu, excepcional teórico moderno:
lidas e merecem ser estudadas todas as variedades diastráticas da lingua
Na linguística atual considera-se com frequência só a lingua falada
histórica, ao lado das variedades diatópicas e diafásicas. A seguir, dado o
"primária" (espontânea ou "usual") como "natural" e livre, ao tempo
privilegiamento, natural pelos seus objetivos pedagógicos, da lingua co-
que a lingua exemplar (ou "lingua padrão") e a forma literária desta se
m u m culta, começou entre nós u m exaltado privilegiamento da varie-
consideram como "artificiais" e "impostas". Por conseguinte, conside-
dade popular, sob a alegação de que se procurava combater o chamado
ra-se também só a gramática descritiva "objetivista" como realmente
"preconceito linguistico". O movimento ganhou corpo e adeptos, penetrou cientifica e a gramática normativa como expressão sem fundamento
na universidade e nos cursos de formação de professores de lingua por- cientifico duma atitude antiliberal e dogmática. Trata-se de erros e
tuguesa. Curioso é atentar para o fato de que a tendência iconoclasta confusões teóricas que procedem da concepção positivista vulgar da
não atingiu o modo de falar e escrever dos defensores do preconceito linguagem e da linguistica. Na realidade e, portanto, na boa teoria, a
língua literária representa no grau mais alto a dimensão deôntica (o
* ' "dever ser") da língua; e a gramática normativa é a manifestação me-
talinguística explícita desta dimensão (Coseriu, 2000: 79).

E conclui: ^

. , , !v. Q "]j]3gj-aiismo" linguistico é, no fundo, um falso liberalismo; não pro-


move a liberdade, mas sim o "arbítrio". E não é, como alguns pensam
j ;- • c ' (ou dizem sem pensar), uma atitude "progressista", "tolerante" e "de-
mocrática", mas sim uma atitude reacionária e profundamente antide-
: . mocrática, já que ignora a dimensão deôntica da linguagem (ignora e
despreza a aspiração a falar "melhor" e "como os melhores", aspiração
genuina de todo falante consciente do seu ser histórico) e aceita taci-
tamente a exclusão dos falantes de modalidades não exemplares da
cultura maior da nação. , , „ , , ^

Em suma, parafraseando uma sentença de Ortega: "Muito pior do que


as normas rigorosas é a ausência de normas, que é a barbárie" (ibid.: 82).
Elabora-se uma gramática para preparar o usuário da lingua a, atra-
vés dela, aperfeiçoar sua educação linguistica que, nas palavras do escri-
tor espanhol Pedro Salinas, lhe permite

despertarle la sensibilidad para su idioma, abrirle los ojos a las poten-


cialidades que lleva dentro, persuadiéndole, por el estúdio ejemplar,
de que será más hombre y mejor hombre si usa con mayor exactitud
y finura ese prodigioso instrumento de expresar su ser y convivir con
sus prójimos (Salinas, 1961: 57).

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