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TEXTUALIDADE

AULA 2

Prof. Jeferson Ferro


CONVERSA INICIAL

Olá, nesta aula vamos tratar da vida social da língua. Vamos abordar a
noção de norma culta e refletir sobre como a língua portuguesa que falamos e
escrevemos incorpora variações de diversas naturezas, e assim se organiza
como uma construção social. Os temas que discutiremos são:

1. A norma culta
2. O preconceito linguístico
3. A variação linguística
4. Fala e escrita
5. A ortografia

CONTEXTUALIZANDO

Será que você fala e escreve o “português correto”? Em geral, nós


brasileiros achamos que não sabemos falar nem escrever português direito, não
é? Na década de 1980, Legião Urbana cantava uma música que dizia assim: “eu
canto em português errado. Acho que o imperfeito não participa do passado.
Troco as pessoas, troco os pronomes”1. Pois é, esse trauma é antigo.
Mas, na verdade, o que é esse tal de “português correto”, onde ele pode
ser encontrado? Na linguística, temos duas expressões mais comuns para se
referir a ele: norma culta ou norma padrão da língua portuguesa. Se você acha
que ela está nos dicionários e nos romances de Machado de Assis, vamos
descobrir que essa história é um pouco mais complexa – e interessante.
Nesta aula, iremos, portanto, investigar o que é a norma culta do
português. Buscaremos entender como ela é uma manifestação social da nossa
língua, que traz consigo muito mais do que o vocabulário e as regras gramaticais.

TEMA 1 – A NORMA CULTA

O português sério, correto, sem erros de concordância ou de pronúncia,


com todos os “erres” e “esses”. O português que as pessoas mais velhas e com
maior nível educacional falam e escrevem, aquele que está na gramática. Enfim,

1
“Meninos e meninas”, álbum As quatro estações. Composição: Eduardo Dutra Villa Lobos/Marcelo
Augusto Bonfa/Renato Manfredini Junior.

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o português dos professores e doutores, das pessoas “cultas”, como a própria
expressão já diz. Essa é a norma culta, certo?
Dessa percepção de que existe uma forma pura e elevada da língua
portuguesa, dominada apenas pela elite cultural do país e que supõe o
conhecimento de todas as regras gramaticais, bem como o seu cumprimento
rígido, é que deriva o mito de que “não sabemos português”. Afinal de contas,
por tais parâmetros, saber português corretamente significaria falar assim como
o ex-presidente Michel Temer: “se perceber que houve equívoco na condução
do governo, reverei essa posição, consertá-lo-ei” – lembra da mesóclise?
Trata-se, na verdade, de uma concepção bastante equivocada do que é
a língua, como explica Marcos Bagno, renomado linguista brasileiro:

Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma


gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa
parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos
no Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua difícil”:
porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam
nada para nós. [...] Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua.
Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa
conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras
básicas de funcionamento dela. (Bagno, 2004, p. 35)

Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que “não


sabem português” ou que “português é muito difícil” é porque esta
disciplina fascinante foi transformada numa “ciência esotérica”, numa
“doutrina cabalística” que somente alguns “iluminados” (os gramáticos
tradicionalistas!) conseguem dominar completamente. (Bagno, 2004,
p. 38)

Essa concepção conservadora, e enganosa, que considera a língua pelo


viés da gramática normativa é o que faz com que a absoluta maioria dos
brasileiros – com exceção talvez dos ministros do STF – sintam-se eternos
fracassados na disciplina de “português”. Afinal, quem emprega o trinômio
ênclise-próclise-mesóclise com segurança inabalável? Quem acerta todas as
colocações pronominais, conjugações e regências verbais? Quem nunca
escorrega numa crase ou numa vírgula?
Tal percepção de que o brasileiro não sabe português fica evidente
quando atentamos para a forma como a mídia e os próprios professores de
língua frequentemente abordam a questão. Basta olhar para os títulos de tantos
livros e artigos populares: Não erre mais, Os 100 erros mais comuns, Escreva
certo. Há uma cultura fortemente enraizada no Brasil que vê a língua pela
perspectiva do erro, da correção, da “burrice coletiva”, como se fosse um pecado
descumprir uma regra da gramática normativa, muitas vezes conferindo aos usos

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da língua uma conotação moral. Esse comportamento se baseia na concepção
normativa da língua, ou seja, é como se existissem regras inquestionáveis
(lógicas ou morais) que regem o funcionamento da língua – “tem que ser assim”.
Do ponto de vista da linguística, a ciência que estuda a língua, trata-se de uma
concepção totalmente equivocada.
É preciso desfazer alguns mitos para que possamos entender o que é, de
fato, a língua. O primeiro ponto é que não existe uma forma perfeita ou ideal de
expressão da língua. Ela é um organismo vivo, em constante mutação, e que
comporta diversas manifestações distintas. A língua é como a moda, não existe
um único jeito de se vestir “corretamente”, tudo depende da ocasião. Os
parâmetros do bom e do ruim estão por aí, mas estão sempre em disputa, ou
seja, não manifestam verdades intocáveis, e por isso mudam com frequência.

Figuras 1, 2 e 3 – Certo ou errado? Assim como na moda, na língua coexistem


diversas formas de expressão, todas válidas

Créditos: Hemail/Shutterstock; Anna Demianenko/Shutterstock; Cosmin Coita/Shutterstock.

Na língua e na moda, há diferentes níveis de formalidade, e seu emprego


estará sujeito aos contextos comunicativos particulares. Isso é verdade também
para o que chamamos de norma culta, que sofre variações. Por isso, não se trata
apenas de uma questão de estrutura linguística (o vocabulário, os pronomes, a
conjugação verbal etc.), a norma culta reflete os usos da língua em um
determinado contexto social. Em linhas gerais, podemos dizer que a norma culta
do português brasileiro é uma variante da língua empregada pelas pessoas que
moram nas grandes cidades, que possuem escolaridade de nível superior e têm

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entre 30 e 50 anos de idade, em situações formais de uso. Percebe como se
trata de um recorte social?
Se ela é norma, é porque existem regras a serem obedecidas, como se
fossem leis, certo? Sim, mas essas regras podem sofrer variações de acordo
com o contexto comunicativo e serão alteradas ao longo do tempo – as regras
da língua são, em grande medida, convenções, e não fatos da natureza. Se ela
é culta, é porque representa uma posição superior na escala de conhecimento
dentro da sociedade? Sim, entendemos que a norma culta é a variante de
prestígio na sociedade, ou seja, aquele jeito de falar das pessoas que têm
posição social de destaque. Se fosse possível colocá-la em uma caixinha,
diríamos que a norma culta é o português que os apresentadores de telejornal
falam. Além disso, é o português que aparece escrito na vasta maioria dos
jornais e revistas que circulam pelo país.
É fato que o domínio da norma culta é uma habilidade fundamental para
o sucesso acadêmico e profissional. Isso quer dizer que é preciso, sim, estudar
a língua, expandir o vocabulário, corrigir os erros de concordância e pontuação
em nossos textos. No entanto, isso não deve nos impedir de olhar para a língua
sob a perspectiva do seu uso, sem julgamentos morais, reconhecendo que ela é
um organismo vivo, em constante transformação, assim como os demais
aspectos da vida em sociedade. Tal postura também nos permite entender como
os diferentes usos da língua são manifestações da cultura e identidade do povo,
e a agir com menos preconceito – tema que exploramos a seguir.

Saiba mais

Leia o artigo “A mesóclise de Temer é um instrumento de exclusão - Falar


difícil não é falar bem”, de Rodrigo Ratier. O autor discute a ideia de que a
linguagem jurídica funciona como uma barreira que impede à população o
acesso a seus direitos. Você concorda? Disponível em:
<https://novaescola.org.br/conteudo/5026/a-mesoclise-de-temer-e-um-
instrumento-de-exclusao>. Acesso em: 25 mai. 2020.

TEMA 2 – O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Como sabemos, o Brasil é um país culturalmente muito diverso que sofre


com uma enorme desigualdade social. O sistema público de educação brasileiro,
na média, não atinge seus objetivos mínimos: formar cidadãos capazes de

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dominar a norma culta em situações de leitura e produção de textos, conhecer
os fundamentos da ciência e da história de seu país e do mundo, de modo a
compreender e interpretar a realidade com autonomia. Isto, em linhas gerais, é
o que chamamos de letramento: a capacidade de ler e interpretar o mundo a
partir de textos de diversos gêneros e formatos.
Na concepção da pedagogia, o letramento é muito maior do que a mera
alfabetização – que pode ser entendida como a simples habilidade de
reconhecer letras e palavras, tornando uma pessoa capaz de pronunciar as
palavras dos textos que ela lê. No entanto, é mais comum o emprego da palavra
alfabetismo para se referir ao conhecimento linguístico das pessoas. O Instituto
Paulo Montenegro pesquisa desde o começo deste século a capacidade da
população brasileira de ler e interpretar textos, e produz um índice chamado de
Indicador de Alfabetismo Funcional, com os seguintes resultados:

Tabela 1 – Indicador de analfabetismo funcional

Nível 2003 2007 2011 2015 2018


Analfabeto 12% 09% 06% 04% 08%
Rudimentar 26% 25% 21% 23% 22%
Elementar 30% 32% 37% 42% 34%
Intermediário 21% 21% 25% 23% 25%
Proficiente 12% 13% 11% 8% 12%

Fonte: INAF, 2018.

São consideradas funcionalmente alfabetizadas as pessoas que estão


nos níveis elementar, intermediário e proficiente – o que, de acordo com os
dados de 2018, representa cerca de 70% da população adulta de nosso país. No
entanto, o objetivo maior do sistema de educação é fazer com que todos os
estudantes que concluem o ensino médio cheguem ao nível proficiente que, em
linhas gerais, quer dizer:

Classificadas neste nível estão as pessoas cujas habilidades não mais


impõem restrições para compreender e interpretar textos em situações
usuais: leem textos de maior complexidade, analisando e relacionando
suas partes, comparam e avaliam informações e distinguem fato de
opinião. Quanto à matemática, interpretam tabelas e gráficos com mais
de duas variáveis, compreendendo elementos como escala,
tendências e projeções. (Inaf, 2018)

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Infelizmente, o brasileiro não é um povo alfabetizado em nível proficiente
(apenas 12% da população), e boa parte da culpa se deve ao privilégio que é
tradicionalmente dado à gramática normativa como objeto de aprendizagem –
ninguém melhora sua capacidade de leitura e produção de texto a partir do
estudo da gramática, mas sim por meio de práticas significativas nestas duas
habilidades. Para dar um exemplo, o linguista Carlos Alberto Faraco comenta
que “a diferença entre ‘este’ e ‘esse’ já deixou de existir há mais de trinta anos
no Brasil” (Faraco, [S.d.]), e, no entanto, isso ainda é cobrado nos bancos
escolares.
Se a língua é um organismo social, em sua essência, isto significa que ela
também será uma manifestação da organização social em que vivem seus
falantes. Como Rodrigo Ratier argumenta em seu artigo (Debate), a língua pode
ser usada como um instrumento de dominação e exclusão, protegendo os
“iniciados” – sejam eles economistas, médicos ou advogados – do julgamento
crítico do povo com baixa escolaridade. Isso significa que a identidade linguística
de uma grande parcela da população brasileira é também um reflexo da sua
exclusão social: as pessoas que não dominam a norma culta terão maior
dificuldade de ocupar posições de poder e mesmo de exercer sua cidadania.
Assim, o pobre, que “não fala direito” e “que não sabe ler”, não tem voz na
sociedade, e sequer é capaz de entender as decisões que são tomadas em seu
nome.
O preconceito linguístico, por sua vez, é fruto de uma visão muito estreita
da língua, que acredita que há uma forma linguística superior às demais, o que
implica inferir que as pessoas que não dominam esta forma são menos
inteligentes ou capazes. Assim, pessoas que falam o português caipira, ou ainda
o português da periferia das grandes cidades, são vítimas da exclusão social
também pelo viés linguístico – já que são consideradas menos inteligentes.
Se a pessoa diz “Cráudia” ou “nóis foi lá”, isso seria uma prova de seu
baixo coeficiente intelectual? Na verdade, é apenas uma indicação de que esta
pessoa tem baixa escolaridade, ou então não vive num ambiente em que o uso
da norma culta da língua é frequente. Do ponto de vista da linguística, esse tipo
de linguagem não é pior no sentido qualitativo, lógico ou intelectual, mas apenas
uma forma de se comunicar que reflete a realidade e as relações sociais de seus
falantes, assim como todas as outras. É sobre isso que falaremos a seguir.

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Saiba mais

Assista à reportagem “O Tamanho da Língua” (6 min), que fala sobre a


língua portuguesa em diversos cantos do mundo, em especial sob o ponto de
vista de povos que foram colonizados pelos portugueses. Disponível em:
<http://arte.folha.uol.com.br/especiais/2018/o-tamanho-da-lingua/#/slide5>.
Acesso em: 25 mai. 2020.

TEMA 3 – A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

Como vimos, a língua não é uma coisa só, mas um conjunto diverso de
variantes. No Brasil, há uma clara divisão sociolinguística na sociedade: de um
lado, a elite urbana, que teve acesso à educação formal e à cultura letrada e que,
portanto, tem domínio da norma culta; de outro as classes mais humildes, tanto
do interior quanto dos subúrbios das grandes cidades, que não tiveram esse
mesmo acesso à educação e para quem, muitas vezes, a norma culta é quase
uma língua estrangeira. Como a sociedade valoriza a variante culta da língua,
as pessoas que não a dominam estão sujeitas a manifestações de preconceito
e exclusão.
Falar ou mesmo escrever numa variante menos “culta” da língua
portuguesa, no entanto, não deve ser confundido com menor capacidade
intelectual. Uma das formas de variação da língua é a variação social, ou seja,
uma manifestação que engloba características típicas de um determinado grupo
social. Veja os exemplos abaixo:

1. O cara chegou pra trabalhar às 2 da manhã no Centro do Rio e se


deparou com

O MAIOR ARRASTÃO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

que só poderia acontecer, claro,

no Rio de Janeiro.

E não num bairro distante. Ermo. Casa do Caralho. Puta que Pariu.
Não. No Centro. Centrão. Do lado da Central do Brasil, de onde sai os
trem pra cidade toda, onde tem metrô, onde Fernanda Montenegro fez
aquele filme de mesmo nome que deveria ter ganho o Oscar, onde tem
prédios comerciais com empresas que pagam caro pra ter uma sala
naquela região, é o Centro, né?(França, 2017.)

2. Ali, naquele dia, me liguei que Jorge era o único cara que podia dar
jeito nas diferenças que existem no Rio. Nem Jesus conseguia. Jesus
é muito zona sul para o Rio. Muito Vila Madalena. Muito vegano.
Muito Los Hermanos. O Rio precisa de um sujeito que frequenta

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todos os buraco quente. Vai na esculhambação, vai na cerimônia.
Conhece o santo e o pecador. (França, 2020)

Esses dois trechos fazem parte de textos de autoria de Anderson França,


escritor que se identifica como morador de uma comunidade carioca. O primeiro
deles foi publicado em seu perfil do Facebook, e o segundo no jornal Folha de
São Paulo, onde passou a escrever regularmente no início de 2020. É possível
perceber que a linguagem mais coloquial, caracterizada pelas frases curtas e
pelo vocabulário repleto de gírias e expressões da oralidade, reproduzindo
inclusive o ritmo da fala, domina o primeiro texto, mas não está distante do
segundo, publicado no jornal de maior circulação no país. Em ambos
identificamos erros de concordância: “de onde sai os trem” e “todos os buraco
quente”.
A escrita de Anderson certamente não seria considerada pelos gramáticos
tradicionais como um bom exemplo de norma culta da língua portuguesa, mas
antes como uma variante coloquial. Isso é um problema? Claro que não. Esses
“erros” fazem parte da identidade linguística do texto, da sua construção
enquanto reprodução da fala da comunidade com a qual Anderson se identifica.
Seu texto é muito rico e bem elaborado, o que demonstra elevado domínio da
linguagem escrita e refinada capacidade de expressão verbal, apesar de o autor
não escrever seguindo parâmetros gramaticais tradicionais.
Outra forma de variação é a geracional, ou seja, a que separa diferentes
gerações de falantes. Você já reparou como seus pais e avós falam de um jeito
diferente de você? Essas diferenças são mais facilmente percebidas na escolha
das palavras – os pais não usam as gírias dos filhos, certo? –, mas também
aparecem em certas construções da língua, como conjugações verbais, uso de
pronomes etc.
Numa escala de tempo maior, podemos pensar na variação histórica, que
é aquela que separa diferentes momentos ao longo da vida de um povo e sua
língua. A história da língua é muitas vezes marcada por atos oficiais, como
decretos ou reformas ortográficas que redefinem seus parâmetros. Observe o
trecho reproduzido abaixo:

Conta uma revista ingleza:

O director de um dos grandes amarzens de Londres, desses em que,


segundo a formula, se pode entrar nu’ e sahir em automovel, vestido
dos pés á cabeça e com um charuto na boca, em um desses armazens
o director-proprietario entra em uma sala onde o publico não é admitido
e vé um rapaz de vinte e poucos annos encostado a um monte de

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caixotes, com as mãos na algibeira, assobiando uma canção em voga.
(Illustração Paranaense, 1927)

Apesar do estranhamento com a grafia de diversas palavras, neste texto


que não chega a ter nem 100 anos de idade (o que é pouco, em se tratando de
história), podemos entendê-lo perfeitamente, certo? Podemos também notar
certos usos de expressões que já não são mais comuns, como “mãos na
algibeira”, “assobiando uma canção em voga”, além do emprego da palavra
armazém para se referir a algo que parece ser uma grande loja de
departamentos.
Ao longo da história, as línguas mudam, inevitavelmente. Entre outros
efeitos dessa evolução histórica, o que hoje nos parece algo muito coloquial –
palavras como susse, ou ainda a forma vc – pode se tornar a variante padrão da
língua no futuro. Mas não é só a forma de se escrever as palavras que muda.
Conjugações verbais também, por exemplo: “tu foi ao mercado?”, como diria um
gaúcho hoje, um século atrás seria “tu foste ao mercado?”. Essa variação
histórica da língua é outro aspecto que está ligado à ideia do preconceito
linguístico, conforme explica o linguista Sírio Possenti:

Todo mundo sabe que as línguas mudam. Claro que é mais fácil aceitar
uma mudança antiga do que uma que ocorra diante de nossos olhos.
Ninguém reclama de a palavra ‘muliere’ ter se tornado a palavra
‘mulher’, de a palavra ‘ecclesia’ ter mudado para ‘igreja’, mas achamos
o fim da picada a hipótese de a palavra ‘mulher’ mudar para ‘muié’, ou
de a palavra ‘classe’ mudar para ‘crasse’. Fomos educados para
considerar que, nesses casos, se trata de decadência, de piora da
língua, de puro relaxo do povo. Essa atitude funciona em relação a
muitos campos, como o dos costumes. (Possenti, 2000)

Falar de variação linguística implica, portanto, falar também de


conservadorismo e preconceito como hábitos sociais. A língua é um campo onde
se expressam diversas disputas da sociedade, de natureza social, cultural e
também política. Por isso Possenti compara as atitudes reativas à mudança na
língua com aquelas que vemos em relação aos costumes sociais.
Aquilo que entendemos como estereótipos regionais também se
manifesta na língua. Trata-se da forma de variação mais óbvia, a regional. Nas
várias regiões do Brasil, falamos de jeitos diferentes, seja pela entonação e
sotaque, seja pela escolha de palavras, seja pelas construções gramaticais.
Assim, em Curitiba dizemos você, em Porto Alegre, tu. No Sul do Brasil comemos
aipim e no Nordeste, macaxeira. E por aí vai.

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A seguir trataremos das diferenças entre a língua falada e a escrita, e de
como diversas questões sociais da língua se manifestam nestes dois registros.

Leitura obrigatória

Na biblioteca virtual, leia o capítulo 1, “Variações linguísticas e sua


importância para o falante nativo”, do livro: LÉON, C. B. Comunicação e
expressão. Curitiba: Intersaberes, 2013.

TEMA 4 – FALA E ESCRITA

A escrita é uma tecnologia, uma invenção do ser humano. E aqui já temos


uma primeira distinção entre estes dois registros da língua: enquanto a fala é
natural, a escrita é artificial. Isso significa dizer que todos os seres humanos,
salvo casos especiais, aprendem a falar a língua de sua comunidade
naturalmente. Mas para aprender a ler e escrever, é necessário um processo de
ensino que demanda tempo e instrução técnica.
No entanto, isso não significa que as formas oral e escrita estejam
apartadas. Pelo contrário, a escrita é, em sua origem, um exercício de
reprodução da fala por meio de sinais gráficos. O nosso alfabeto, inclusive, é
uma tentativa de reproduzir os sons da fala – por isso ele é chamado de escrita
fonética, e seus grafemas, as letras, representam os sons da língua,
diferentemente das formas pictóricas de escrita, como a escrita chinesa.
Mas você já percebeu que essa representação dos sons é muito
imperfeita, não é? Pois temos diversos casos em que um mesmo som pode ser
produzido por diferentes letras, como o som /z/ em casa, exato, azar. De fato, as
letras do alfabeto são representações aproximadas dos sons da língua – elas
fazem só o necessário para garantir o entendimento, ou seja, para que possamos
distinguir as palavras umas das outras. Essa imperfeição se explica por diversos
fatores, entre eles o desenvolvimento histórico da língua e as variações
regionais, que alteram muito a pronúncia dos falantes. Se a escrita tentasse
reproduzir como cada grupo de pessoas pronuncia as palavras, seria uma
confusão tremenda. Mas essa imperfeição também nos aponta para outra
distinção fundamental estre os registros oral e escrito: a fala tende à variação, a
escrita tende à uniformidade.
Sua idade, sua escolaridade, a cidade onde você nasceu e até mesmo o
seu gênero se manifestam na forma como você fala. A escrita também apresenta

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variações e diferentes níveis de formalidade, mas ela precisa ser uniforme para
que a comunicação entre falantes das mais diversas regiões e formações
culturais possam se comunicar sem maiores dificuldades. Além disso, na escrita
se faz o registro das leis, das normas e demais regramentos da sociedade,
documentos que permanecem no tempo e que dizem respeito a um vasto
conjunto de pessoas, e por isso não podem soar como manifestações de um
determinado grupo regional apenas. Assim, podemos entender que a língua
escrita guarda um sentido de coletividade, enquanto que a fala é a manifestação
da individualidade. Mas lembre-se: isso só vale num sentido geral, pois é
perfeitamente possível manifestar a individualidade na escrita, como faz
Anderson França, por exemplo.
A fala é a expressão do aqui e agora, seu meio de propagação é o ar e
sua medida é a duração temporal. Já a escrita pode ter vida eterna – o que se
tornou bastante comum na era digital – e precisa de um suporte físico para existir
(papel ou tela, os mais comuns). A fala está no tempo, a escrita está no espaço
físico.
Enquanto na fala é a entonação e o ritmo que fazem a organização da
língua, na escrita há uma série de marcas gráficas e sinais de pontuação que
realizam este trabalho. No texto que está reproduzido abaixo retiramos todos
esses sinais e marcas que só existem na escrita. Você conseguiria lê-lo?

niguem acertou as seis dezenas da mega sena do concurso 2254 no


sorteio desta quarta feira 22 que ocorreu no espaço loterias caixa em
são paulo sp o premio para o próximo concurso que sera no sabado 25
esta estimado em 36 milhoes de reais as seis dezenas sorteadas foram
04 09 24 44 47 e 56 houve 55 apostas que acertaram a quina e cada
uma ganhara um premio de 31,7 mil reais os vencedores da quadra
foram 3561 e cada jogo levara 700,52 reais

Como se trata de um texto meramente informativo, de baixa


complexidade, você provavelmente seria capaz de extrair dele todas as
informações, certo? Mesmo assim, é possível perceber quanta coisa precisa ser
acrescentada à simples transcrição da fala para que ela se torne, de fato,
linguagem escrita. Todo esse rico universo de sinais gráficos, essenciais ao bom
funcionamento da linguagem escrita, demorou séculos para ser desenvolvido
pelas sociedades humanas. E é justamente apropriar-se deste conhecimento
prático o desafio central do processo de aprendizagem da escrita. Confira abaixo
o mesmo texto, reproduzido no seu formato original:

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Ninguém acertou as seis dezenas da Mega-Sena do concurso 2.254
no sorteio desta quarta-feira (22) que ocorreu no Espaço Loterias Caixa
em São Paulo (SP). O prêmio para o próximo concurso, que será no
sábado (25), está estimado em R$ 36 milhões.

Na publicidade, acrescentam-se ainda outros aspectos de natureza


gráfica à escrita, como as cores e a tipografia, pois a palavra se torna também
parte de uma imagem.
Fala e escrita são, portanto, dois registros distintos da língua, mas que
vivem numa relação de interdependência. A fala, inclusive, é o espaço da
mudança por excelência, ela é mais dinâmica e usufrui de maior liberdade, por
isso está sempre na frente da escrita do ponto de vista da evolução da língua.
Para encerrar, falaremos da ortografia, um aspecto em que a tensão entre
a fala e a escrita se manifesta de forma evidente.

TEMA 5 – A ORTOGRAFIA

A ortografia é o conjunto das regras que definem a forma escrita das


palavras de uma língua. O prefixo orto significa correto, e grafia significa escrita.
Assim, trata-se da escrita correta das palavras, do vocabulário da língua,
conforme está registrado nos dicionários.
A maneira de escrever as palavras muda com o tempo, de modo que a
ortografia sofre os efeitos da evolução da língua. Observe o texto abaixo:

Texto que descreve a chegada da Princesa Leopoldina, esposa do


Príncipe Dom Pedro I, ao Rio de Janeiro em 1817, escrito pelo Padre
Luis Gonçalves dos Santos, que teria presenciado a festa:

Por entre mil vivas e applausos, descerão do coche Suas Magestades


e o Serenissimo Senhor Principe Real, que immediatamente deo o
braço para descer sua Augusta Esposa. Apearam-se dos seus
respectivos coches o Serenissimo Senhor Infante D. Miguel e as
Serenissimas Senhoras Princezas e Infantas. Assim entrou El-Rei
Nosso Senhor, com toda Real Família, para dentro da Egreja. (Setúbal,
2008)

Talvez você tenha tido alguma dificuldade com o vocabulário, e


certamente se surpreendeu com a escrita das palavras, mas é bem provável que
tenha entendido tudo o que o texto quer dizer. O padre Luis Gonçalves dos
Santos foi um cronista do império português no Brasil e era, naturalmente, um
homem letrado. Então, por que é que ele escreve tantas palavras “erradas”?
Obviamente porque na época em que escreveu esta era a ortografia comum.
Olhando para essa evolução histórica, podemos perceber que a ortografia
é resultado de um conjunto de convenções arbitrárias, ou seja, se escrevemos
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princeza ou princesa, egreja ou igreja, é porque isso foi uma escolha feita pelas
“autoridades da língua” – em nosso país, a Academia Brasileira de Letras.
Há duas ciências diretamente envolvidas com o estudo da origem e
evolução das palavras, tanto no aspecto de sua forma escrita quanto da
pronúncia e do significado: a etimologia, focada na origem das palavras, e a
filologia, que estuda o desenvolvimento histórico das línguas – são, de fato,
ciências muito próximas uma da outra. Os filólogos e os entomólogos, quando
envolvidos com as reformas ortográficas que redefinem a escrita das palavras,
levam em consideração dois aspectos: a história da palavra (sua etimologia), e
a pronúncia mais comum na sociedade (sua fonética). A partir disso, procuram
definir a ortografia dentro de uma lógica interna da língua, encontrando padrões
que possam caracterizar comportamentos generalizáveis.
Essa lógica interna, porém, às vezes nos leva a cometer erros. Por
exemplo: melância. Afinal de contas, escrevemos distância, importância,
relevância etc., de forma que, automaticamente, colocamos o acento circunflexo
na palavra melancia, não é? Neste caso, o acento seria incompatível com a
pronúncia da palavra. Como não há uma relação lógica estrita entre a pronúncia
e a grafia das palavras, há uma série de casos que nos deixam em dúvida. Os
mais comuns envolvem: ch / x, g / j, s / z, ç / ss, e / i.
O último acordo ortográfico da língua portuguesa foi finalizado em 1990,
e entrou em vigor em 2009. Seu objetivo foi o de unificar a ortografia da língua
portuguesa para todos os países lusófonos – uma comunidade de oito países e
cerca de 300 milhões de falantes. No Brasil a nova ortografia foi bem aceita, mas
em Portugal houve resistência. Dentre as principais mudanças, podemos
destacar: 1. Acentuação das palavras – exclusão definitiva do trema
(freqüentemente > frequentemente), mudança nos ditongos (idéia, andróide >
ideia, adroide) etc.; 2. Hífens – (microondas > micro-ondas; ultra-som >
ultrassom) etc.
Erros de ortografia são bastante estigmatizados em nossa sociedade, pois
são um dos sinais mais evidentes de baixa escolaridade formal. No entanto,
devemos nos lembrar de que as “regras ortográficas” estão longe de representar
uma lógica consistente, sendo antes fruto de convenções arbitrárias.

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Saiba mais

Confira um guia rápido do novo acordo ortográfico. Disponível em:


<https://www.portugues.com.br/gramatica/guia-rapido-novo-acordo-
ortografico.html>. Acesso em: 25 mai. 2020.

TROCANDO IDEIAS

Variação geracional: preste atenção na forma como seus pais ou avós


falam e identifique construções, expressões, gírias etc. que eles usam, mas que
você jamais usaria. Compartilhe sua descoberta com os colegas no fórum. Se
você já é avô, inverta o processo: observe a linguagem usada por seus netos.

NA PRÁTICA

Reescrita: abaixo você encontra a narrativa completa da qual mostramos


o trecho inicial no item 3. Sua tarefa é reescrever esse texto, como se o fato
tivesse acontecido nos dias de hoje. Isso significa que não basta atualizar a
ortografia, mas também o cenário, as expressões etc. Em 2020, numa loja de
departamentos, será que o rapaz folgado estaria “encostado a um monte de
caixotes assobiando uma música em voga”?

Conta uma revista ingleza:

O director de um dos grandes amarzens de Londers, desses em que,


segundo a formula, se pode entrar nu’ e sahir em automovel, vestido
dos pés á cabeça e com um charuto na boca, em um desses armazens
o director-proprietario entra em usa sala onde o publico não é admitido
e vé um rapaz de vinte e poucos annos encostado a um monte de
caixotes, com as mãos na algibeira, assobiando uma canção em voga.

O director fita-o severamente e pergunta-lhe:

- Quanto ganha você por semana?

- Uma libra.

- Pois aqui tem uma libra de ordenado. Está despedido, pode retirar-se
immediatamente.

O rapaz embolsou o dinheiro e sahiu sem perda de um instante.

- Há quanto tempo estava esse vadio a serviço de nossa casa?,


perguntou o director ao chefe da secção, que acudira solicitamente.

- Este rapaz nunca esteve a nosso serviço. É empregado de um


importador e veiu trazer-me um aviso de embarque. (Illustração
Paranaense, 1927)

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FINALIZANDO

Ao longo desta aula, tratamos de diversos aspectos que dizem respeito à


vida social da língua. Começamos discutindo a noção de português correto, que
nos leva ao conceito de norma culta, um termo da linguística para se referir à
variante de maior prestígio na língua.
Procuramos demonstrar que não existe uma forma pura e inquestionável
da língua, pois ela é um organismo vivo, que manifesta diversos aspectos da
vida social, e que está em constante mutação. Além disso, não é razoável supor
que uma determinada variante da língua seja melhor, em termos qualitativos, do
que as outras – isso é uma manifestação de preconceito.
Por fim, abordamos as relações entre fala e escrita e a questão da
ortografia. Saber que a forma de se escrever as palavras é uma escolha arbitrária
em grande medida, ainda que guarde certa lógica histórica e fonética, pode nos
libertar do estigma de “não saber português”. Lembre-se: sim, você sabe
português, e o fato de que precisa ainda aprender muitas coisas sobre os usos
da língua não desmente isso.

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REFERÊNCIAS

BAGNO, M. Preconceito linguístico – o que é, como se faz. São Paulo: Loyola,


2004.

INAF. Inaf 2018. IPM.ORG. 2018. Disponível em: <https://ipm.org.br/relatorios>.


Acesso em: 25 mai. 2020.

FARACO, C. Português do Brasil: a construção da norma culta e as práticas


de ensino. [s. d.]. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=CUKfzAeGNrE>. Acesso em: 25 mai. 2020.

FRANÇA, A. 2017. Disponível em:


<https://www.facebook.com/DinhoEscritor/posts/632146643662802/%20-
%2024/05/2017>. Acesso em: 25 mai. 2020.

_____. O dia de São Jorge vai ser uma chance para o dragão. Folha de S.
Paulo. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/anderson-
franca/2020/04/em-2020-o-dia-de-sao-jorge-vai-ser-uma-chance-para-o-
dragao.shtml>. Acesso em: 25 mai. 2020.

LÉON, C. B. Comunicação e expressão. Curitiba: Intersaberes, 2013.

POSSENTI, S. Mal comportadas línguas. Curitiba: Criar, 2000

SETÚBAL, P. 1808-1834 – As maluquices do Imperador. São Paulo: Geração,


2008.

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