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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Instituto Multidisciplinar – Nova Iguaçu


Departamento de Letras
Língua portuguesa padrão

MONTEIRO, JOSÉ LEMOS. Noções de sociolinguística. Fortaleza: Projeto Editorial, 1997.

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Norma e Prescrição Linguística

Maria Helena de Moura Neves

O temo norma tem duas significações básicas, quando o campo é o da linguagem.

Na primeira, entende-se norma como a modalidade linguística "normal", "comum". Em


princípio essa modalidade seria estabelecida pela frequência de uso, e, se se contempla,
realmente, o uso linguístico, essa visão, sem fazer valoração, reparte a noção de norma
por estratos sociais (variação de uso diastrática), por períodos de tempo (variação de
uso diacrônica) por regiões (variação de uso diatópica). A ressalva é que pode tratar-se
de uma língua idealizada como "normal", "comum", e, então, a noção é de uma única
modalidade, aquela concebida e tida como usual, como "média dos falares", abstraindo-
se, por aí, a frequência e a modalidade de uso.

Na segunda significação, o termo norma é entendido como o uso regrado, como a


modalidade "sabida" por alguns, mas não por outros. Também neste caso, se se
contempla a real inserção de tal modalidade "padrão" no uso linguístico, a noção de
norma se reparte diastrática, diacrônica e diatopicamente, entretanto com juízo de
valor sobre as modalidades, em cada zona de variação: umas são mais prestigiadas que
outras. De outro lado, se há uma – e apenas uma – modalidade estabelecida como
representação de um padrão desejável, a concepção é ainda mais arbitrária, e sempre
se sustenta por autoridade.

Nas duas concepções insere-se a norma na sociedade. Na primeira, o que está em


questão é o uso, e, então, a relação com a sociedade aponta para a aglutinação social.
Na segunda, trata-se de bom-uso, e a relação com a sociedade aponta para a
discriminação, criando-se, por aí, estigmas e exclusões. É crucial a diferença.

No domínio interno da organização linguística, outras noções se oferecem a reflexão -


por exemplo, a pureza, a vernaculidade, ou mesmo, o logicismo, na língua - mas
qualquer uma dessas noções só se liga a norma prescritivista por via de uma relação
com parâmetros sociais, aí incluída a autoridade de usuários considerados os sábios da
língua (especificamente, os gramáticos). Com efeito, não haveria qualidades internas ao
sistema da língua capazes de responder pela fidelidade do uso linguístico a padrões
considerados puros ou elevados (purismo), ou pela fidelidade da organização da língua
à organização do pensamento (logicismo).

Na compreensão da necessária relação entre propriedades linguísticas e parâmetros


sociais fica implicado que ela se faz em duas direções: na direção da língua para a
realidade social e na direção desta para a língua. Assim, de um lado, é possível
entender-se que a língua (especialmente se tida como monolítica) pode sustentar a
identidade de uma sociedade e frear sua fragmentação, mas, por outro lado, pode-se
entender que a diversidade social há de configurar uma língua não monolítica, a serviço
da diversidade, sem se estabelecer uma relação necessária com fragmentação. Já
observei, em um artigo, que, afinal, já em 1935 Firth desmanchava o mito da existência
de uma língua monolítica e homogênea.

Foi à escola, como espaço institucional privilegiado de parametrização social, que


tradicionalmente se confiou o papel de guardiã da norma regrada e valorizada, daquele
bom-uso que tem o poder de qualificar o usuário para a obtenção de passaportes
sociais, e, portanto, para o trânsito ascendente nos diversos estratos. Foi por aí que se
perpetuou, na educação escolar, aquele esquema medieval de associação de modelo de

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uso com autoridade e com urbanidade, ligando-se sempre bom-uso linguístico a fixidez
de parâmetros, e corrupção linguística a alteração e mudança.

Obviamente o bom-uso se fixou na modalidade escrita, entendendo-se a linguagem


falada como território que, por menor, podia abrigar todas as tolerâncias e
"transgressões", como se língua falada não tivesse norma, quase como se não tivesse
gramática. Criou-se, na escola, um tal abismo entre as duas modalidades que, no
fundo, instituiu-se que a fala (em princípio, a modalidade do aluno) é imperfeita por
natureza, e que língua escrita (em princípio, a modalidade do professor) é a meta a ser
atingida, como se não houvesse modalidade-padrão também na fala e como se o
conhecimento de um padrão prestigiado, na língua falada, não fosse também desejável.

A marcada imprecisão que se observa no equacionamento das relações entre fala e


escrita nas escolas talvez possa ser apontada como um dos maiores fatores dos maus
resultados do ensino de língua materna, tanto no que se refere ao desempenho
eficiente quanto no que se refere à adequação da linguagem aos padrões socialmente
valorizados. Ignora-se a diferente natureza das duas modalidades, ignorância que parte
da diferença básica entre a coautoria que caracteriza a produção falada típica - a
conversação - e a responsabilidade pessoal e individual do texto escrito. Obviamente,
essa é a primeira fonte da menor pressão prescritivista sobre a língua falada: tal
pressão se liga, fortemente, às características propriamente linguísticas da produção
escrita, e não se dá apenas por motivação social, embora esta seja obviamente
relevante, especialmente porque o texto escrito tem perenidade, o que o deixa sob
constante observação.

Ora, não há como não ver que, na produção escrita, diferentemente do que ocorre na
produção oral, ficam muito evidentes as marcas - e a ausência de marcas - de
concordância, de regência, de flexão, etc., e, assim, ficam testemunhadas as quebras
sintáticas, Numa conversação, que é uma construção coparticipativa, a completude
sintática nem é esperada, e, muitas vezes, nem mesmo é desejável, já que repetições,
digressões, inserções, correções e, mesmo, hesitações, que, em princípio, truncariam,
atropelariam e subverteriam orações, constituem valiosos recursos para encadeamento
temático da sequência, para relevo de segmentos, afinal, para condução do fluxo de
informação. Além disso, o texto escrito traz, ao menos virtualmente, um fechamento
semântico que vem na direção do autor para o leitor, configurado pela intenção do
produtor do texto, por mais que este tenha a consciência ¾ e a esperança ¾ de que o
leitor seja o construtor final do sentido daquilo que ele "diz", e, por aí, "interaja" com
ele, seja o seu "interlocutor", para que a finalidade maior da criação do texto se
cumpra.

Apesar de a língua escrita ser o território em que mais se evidencia a obediência, ou


não, a modelos prestigiados de uso, pode-se afirmar que em qualquer modalidade de
língua se constituem normas que emergem naturalmente da média dos usos nas
diferentes situações. A mesma teoria que mostrou que variação e mudança são
propriedades constitutivas da linguagem, e que, portanto, existem diferentes e
legítimos modos de uso da língua em diferentes lugares, em diferentes tempos e em
diferentes situações, mostra, também, que a funcionalidade desses diferentes usos, e,
portanto, a sua adequação, inclui a existência de normas, inclusive de uma norma-
padrão, socioculturalmente definida e valorizada.

A grande questão ainda mal compreendida, e não apenas na visão leiga, é o


estabelecimento da fonte de legitimação do prestígio de determinados padrões, isto é, a
fixação de quais sejam as razões pelas quais uma determinada construção é, ou não,
abonada pelas lições normativas.

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Assim, por exemplo, muitas vezes se aponta como modelar um uso porque ele é
corrente em escritores "clássicos" da língua, correndo-se o risco de propor lições que
ignoram o princípio básico de variabilidade e evolução das línguas. Na verdade, esse
modo de estabelecimento de padrões é insustentável. Observe-se que as obras
prescritivistas atuais recomendam a regência indireta para o verbo obedecer (com
complemento iniciado pela preposição a), que não é, entretanto, a regência usada por
clássicos (não se esqueça que [sic] Vieira escreveu "Quem ama obedecerá e guardará
meus preceitos" e que Vieira e Euclides da Cunha escreveram "obedecê-los").

Outras vezes, sem apelar para a autoridade da antiguidade (uetustas), considera-se


prestigiado um uso porque ele ocorre em alguns grandes escritores (urbanitas),
reconhecendo-se, aparentemente, o princípio básico de variabilidade das línguas, mas
ainda permanecendo-se no erro de vencer essa ignorância apenas quanto à
variabilidade no tempo. De qualquer modo, haverá, ainda, a enfrentar a dificuldade de
estabelecer as exatas fronteiras de "legitimidade" e prestígio, já que se encontrarão
outros bons escritores que não adotam os mesmos parâmetros.

O simples reconhecimento dessa dificuldade – e a consequente relativização do valor


propriamente linguístico de uma norma prescritivista – já seria um grande avanço, e a
própria proposição da norma de prestígio já se formularia mais como uma orientação
para adequação sociocultural de uso do que como uma receita de "legitimidade" e de
"pureza" linguística de determinadas construções. Essas construções, na verdade, em
geral se erigiram em modelo porque socioculturalmente representam o uso de uma elite
intelectual do momento, e não porque são as "legítimas" e "puras" construções da
língua portuguesa, qualidades difíceis de verificar, na quase totalidade dos casos. Não
esqueçamos que, dentro de (centenas de) anos, com certeza não serão as mesmas as
prescrições, e que, por exemplo, uma preposição que hoje se diz ser exigida no
complemento de um verbo, sob pena de cometimento de pecado mortal, pode ser o
diabo da vez dentro de algum tempo! Ou vice-versa.

Maria Helena de Moura Neves é linguista e professora da Unesp de Araraquara (SP).

Retirado de <http://www.comciencia.br/reportagens/linguagem/ling12.htm>, com


correção ortográfica. Texto atualizado no endereço eletrônico em 10/08/2001.

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