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Os erros de Hans-Hermann Hoppe

I – Quem é Hans-Hermann Hoppe


Hoppe é visto por muitos como o maior nome do chamado austrolibertarianismo, que
mescla o pensamento libertário com o da Escola Austríaca de Economia devido aos seus
insights, análises econômicas e políticas e, por fim, a sua grande ideia notável: a ética
argumentativa. Hoppe é visto por muitos outros libertários como uma das mentes mais
brilhantes do mundo (não é exagero, realmente pensam assim), seu pensamento é
abrangente e acaba aplicando os seus métodos em diversas áreas do conhecimento
humano, como sociologia, antropologia e história. Hoppe é, para muitos libertários, o
grande inovador da filosofia por sua ética argumentativa. Porém, Hoppe não é tudo isso
que dizem. Após uma profunda análise e estudo, encontramos erros lógicos, erros
metodológicos, comentários culturalmente pueris. Um bom exemplo foi ele ter chamado
Goethe de “o europeu do milênio” 1, ignorando pensadores do quilate de Santo Tomás
de Aquino, por exemplo.
No ramo histórico, o que lemos não é nada muito diferente do que podemos
esperar de um pensador de influência iluminista. Em um dos seus artigos mais
conhecidos, Hoppe procura explicar a origem da propriedade privada e da família usando
um prisma totalmente evolucionista 2 . Muitas poderão objetar uma análise cristã
remontando a Adão e Eva como lemos no Gênesis. No entanto, este não é o nosso foco,
pois uma explicação cristã que refute um texto de análise evolucionista precisa de
trabalho bem mais elaborado e que não cabe aqui no momento. Portanto, saltemos
diretamente ao seu grande cavalo de batalha de Hoppe: a ética argumentativa.

II – Um princípio praxeológico
A ética argumentativa é basicamente o argumento de que, pelo fato de a pessoa ter
capacidade argumentar, isso a faz proprietária do seu corpo. Hoppe, assim, cria um
silogismo do qual, segundo ele, não pode ser negado pelo objetor sob a pena de cair
numa “contradição performática”. Assim escreve Hoppe 3:
A fim de reconhecê-las, necessário apenas chamar a atenção para três fatos relacionados.
Primeiro que a argumentação não é somente uma questão cognitiva, mas também prática.
Segundo, que a argumentação, como uma forma de ação, inclui o uso do recurso escasso do
corpo de alguém. E terceiro, que a argumentação é uma forma de interação livre de conflito. Não no
sentido de que há sempre concordância sobre o que foi dito, mas no sentido de que uma
vez que a argumentação está em desenvolvimento é sempre possível concordar pelo

1 HANS-HERMANN HOPPE; “The Politics of Johann Wolfgang Goethe”, Mises Institute, 2012.
<https://mises.org/library/politics-johann-wolfgang-goethe>.
2 HANS-HERMANN HOPPE; “A origem da propriedade privada e da família”, Mises Brasil, 2017.

<https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1037>.
3 HANS-HERMANN HOPPE; Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo; Instituto Ludwig Mises Brasil,

2013, pp. 128-129.


menos com o fato de que há uma discordância sobre a validade do que foi dito. [grifos
meus]

Destaquei propositalmente esses dois pontos para demonstrar duas coisas: (1) o fato do
Hoppe considerar o corpo humano um recurso escasso e (2) dizer que a argumentação é
uma forma interação livre de conflito. A razão é que, segundo Hoppe e todos os
austrolibertários, não há possiblidade de conflito em interações verbais porque palavras
não violam propriedade4 de ninguém. Ele enfatiza isso numa nota de rodapé na mesma
página5:
Deve ser observado aqui que só porque existe a escassez há mesmo um problema de
formulação de leis morais (1); à medida em que os bens são superabundantes (bens “livres”)
nenhum conflito sobre o uso dos bens é possível e nenhuma ação-coordenação é necessária (2).
Consequentemente, deduz-se que qualquer ética corretamente concebida deve ser formulada como
uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria de atribuição dos direitos de controle
exclusivo dos meios escassos (3). Porque só assim se torna possível evitar o conflito que, de outra
forma, seria inescapável e insolúvel. Infelizmente, os filósofos morais, em sua ignorância generalizada
sobre economia, dificilmente veriam isso com clareza suficiente (4). [grifos e números entre
parênteses meus]

Deduz-se até aqui que interações verbais são “livres de conflitos” e que, pela citação
acima: (1) todos os problemas morais existem devido à escassez (segundo Hoppe, nosso
corpo é um recurso escasso); (2) se não existisse escassez, não haveria conflito; (3) toda
ética deve ser formulada a partir da teoria da propriedade privada; (4) “filósofos morais” (ou
eticistas) não viram a ideia luminosa de Hoppe e que, por isso, tem gente que crê no
socialismo.
Para não ser injusto com Hoppe, observemos a sua teoria desde o princípio.
Antes de mais nada, é de deixar claro que a ética argumentativa de Hoppe tem raiz
praxeológica: isto é, deriva da praxeologia (ou praxiologia). O que é exatamente a
praxeologia? É, nas palavras de Ludwig von Mises, a “ciência da ação humana”6. Para
Mises, o homem essencialmente é homem agente, isto é, homo agens, não apenas homo
sapiens 7 . Isso leva a conclusões desastrosas que culminarão na doutrina libertária de


4 O conceito ou definição de propriedade usado aqui será esse, que é bem aceitável pela Igreja, pois mostra
que o uso da propriedade também se desdobra para a sociedade, uma vez que a propriedade é antes de
tudo um arranjo social: «Propriedade é um termo usado para um arranjo social em que o controle da terra e da riqueza
obtida da terra, incluindo, portanto, todos os meios de produção, é conferido a alguma pessoa ou corporação. Assim, podemos
dizer de um prédio, incluindo a terra sobre a qual ele se encontra, que este é “propriedade” de tal ou qual cidadão, ou família,
ou colégio, ou do Estado, significando que aqueles que “detêm” tal propriedade estão garantidos por lei do direito de usá-la ou
abster-se de usá-la. Propriedade privada é a riqueza (incluindo os meios de produção) que pode, pelos arranjos da sociedade,
estar sob controle de pessoas ou corporações outras que não são os órgãos políticos dos quais estas pessoas ou corporações são,
em outros aspectos, membros». HILAIRE BELLOC; O Estado Servil, Seção I.
5 HANS-HERMANN HOPPE; op.cit., p. 129, nota 128.
6 LUDWIG VON MISES; Ação Humana, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, Parte I.
7 LUDWIG VON MISES; libd., p. 38.
Rothbard, que pretende que os pais podem deixar seus filhos morrerem de fome8. Trecho
do contexto:
Aplicando nossa teoria ao relacionamento entre pais e filhos, o que já foi dito significa
que os pais não têm o direito de agredir seus filhos, mas também que os pais não
deveriam ter a obrigação legal de alimentar, de vestir ou de educar seus filhos, já que
estas obrigações acarretariam em ações positivas compelidas aos pais, privando-os de
seus direitos. Os pais, portanto, não podem assassinar ou mutilar seu filho, e a lei
adequadamente proíbe um pai de fazer isso. Mas os pais deveriam ter o direito legal de
não alimentar o filho, i.e., de deixá-lo morrer. A lei, portanto, não pode compelir
justamente os pais a alimentar um filho ou a sustentar sua vida.

Lembrando que Hoppe nunca apresentou nenhuma objeção a esse trecho. Apenas
comentou brevemente dizendo que Rothbard manteve essa opinião sempre e que numa
sociedade libertária, abortistas e quem toma esse tipo de atitude poderiam ser boicotados9.
Justificativas para defender essa opinião não faltam na praxeologia, como o próprio Mises
escreve:
O homem é um ser que vive submetido a essas condições. É não apenas homo sapiens,
mas também homo agens. Seres humanos que, por nascimento ou por defeitos adquiridos,
são irremediavelmente incapazes de qualquer ação (no estrito senso do termo e não
apenas no senso legal), praticamente não são humanos10. [grifos meus]

Isto é, para Mises, quem não é agente, nem gente é, ou é menos que humano. Ainda,
Mises também rejeita a ideia de um fim último. Ele escreve que «[a] felicidade só pode
ser alcançada pela completa extinção da consciência, da vontade e da vida. A única
maneira de alcançar a glória e a salvação é tornar-se perfeitamente passivo, indiferente,
inerte como as plantas. O bem supremo é o abandono do pensamento e da ação»11.
Obviamente a conclusão disso é o ateísmo.

III – Da ética argumentativa em si mesma


Podemos resumir a doutrina hoppeana do seguinte modo:

1. O homem age quando está insatisfeito com a sua atual situação, do


contrário, não agiria;
2. O homem, ao agir, usa de recursos escassos, dos quais inclui-se o seu
próprio corpo;
3. O homem, ao argumentar com outrem, demonstra ao interlocutor que é
dono de seu corpo, isto é, que tem autopropriedade;


8 MURRAY ROTHBARD; A ética da liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 163..
9 Cf. HANS-HERMANN HOPPE; introdução ao MURRAY ROTHBARD; A ética da liberdade, pp. 44-46.
10 LUDWIG VON MISES; op.cit.
11 LUDWIG VON MISES; libd., p. 54.
A consequência lógica, segundo Hoppe, é que, como o homem é dono do seu corpo, ele
não pode ser coagido de nenhuma maneira porque implica violação de propriedade; logo,
ele deve ser livre para agir desde que não viole a propriedade de outrem. Mas falta algo
importante, a sua validade universal. Nesse caso, como se demonstra? Segundo Hoppe,
«a norma contida na argumentação é que todo mundo tem o direito de controle exclusivo sobre o seu
próprio corpo como seu instrumento de ação e cognição»12 e que
[q]ualquer pessoa que tentasse contestar o direito de propriedade sobre o seu próprio
corpo ficaria preso numa contradição, à medida em que argumentar dessa forma e
reivindicar seu próprio argumento como sendo verdadeiro já seria implicitamente aceitar
essa norma como sendo válida13.

O problema da argumentação acima é explícito. Para Hoppe, além de todos os problemas


morais se reduzirem a problemas econômicos, para ele todos os problemas morais
também podem ser resolvidos com a sua “ética da argumentação”. Qualquer pessoa
minimamente honesta intelectualmente percebe, ainda que com insegurança, as
inconsistências lógicas implicadas.
Quando Hoppe diz que «a norma contida na argumentação é que todo mundo tem o direito
de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo» e que, logo, podemos justificar a doutrina
libertária para uma sociedade, ele está dizendo que a razão particular pode legislar sobre
os outros, o que é absurdo mesmo se tratando de propriedade privada. Como diria a boa
Filosofia14:
[...] sendo a lei regra e medida, ela depende do que é o princípio dos atos humanos. Ora,
como a razão é o princípio desses atos, também nela há algum primeiro princípio, que
o é de tudo o mais. Por onde e necessariamente a este há de a lei pertencer, principal e
maximamente. Ora, o primeiro princípio, na ordem das operações, à qual pertence a
razão prática, é o fim último. E sendo o fim último da vida humana a felicidade ou
beatitude, [...] há de por força a lei dizer respeito, em máximo grau, à ordem da beatitude.
– Demais, a parte ordenando-se para o todo, como o imperfeito para o perfeito; e sendo
cada homem parte da comunidade perfeita, necessária e propriamente, há de a lei dizer
respeito à ordem para a felicidade comum [...] em qualquer gênero, o que é principal é
princípio de tudo o mais que a esse gênero pertence, e que é considerado em
dependência dele. Assim, o fogo, quente por excelência, é a causa do calor dos corpos
mistos, considerados quentes na medida em que participam do fogo. Por onde e
necessariamente a lei sendo por excelência relativa ao bem comum, nenhuma outra
ordem, relativa a uma obra particular, terá natureza de lei, senão enquanto se ordena ao
bem comum. Logo, a este bem se ordena toda lei.


12 HANS-HERMANN HOPPE; op.cit., p. 129.
13 HANS-HERMANN HOPPE; libd.
14 SANTO TOMÁS DE AQUINO; S.Th. I-II, q. 90, a. 2, resp. E ainda: «A lei, própria, primária e

principalmente, diz respeito à ordem para o bem comum. Ora, ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de
quem governa em lugar dele. E, portanto, legislar pertence a todo o povo ou a uma pessoa pública, que o rege. Pois, sempre,
ordenar para um fim pertence a quem esse fim é próprio». SANTO TOMÁS DE AQUINO; op.cit., q. 90, a. 1, resp.
– Estas mesmas citações serão usadas novamente com as devidas explicações.
Tomemos como exemplo, as crianças. As crianças são dependentes de seus pais em geral.
Segundo essa ética, o que Rothbard propõe, é aceitável porque justamente obrigar seus
pais a alimentarem implicaria na violação do “direito de controle exclusivo” sobre os seus
corpos. E outra: a ética argumentativa nada diz sobre a responsabilidade social das
pessoas. Para combater a podridão moral dos dias de hoje, por exemplo, Hoppe propõe:
Os libertários devem se distinguir dos outros praticando (bem como defendendo) a
forma mais extrema de intolerância e de discriminação contra os igualitaristas, os
democratas, os socialistas, os comunistas, os multiculturalistas e os ambientalistas; contra
os maus costumes, a má conduta, a incompetência, a grosseria, a vulgaridade e a
obscenidade. Assim como os verdadeiros conservadores — que terão de se desvencilhar
do falso conservadorismo social(ista) dos buchananistas e dos neoconservadores —, os
verdadeiros libertários devem visível e ostensivamente se dissociar dos falsos,
igualitaristas e impostores libertários de esquerda contramulticulturalistas e anti-
autoridade 15.

Para Hoppe, existem dois tipos de libertários, os autênticos, segundo ele, são
“culturalmente conservadores”, como Rothbard teria sido (Não deixo de me surpreender
com tal afirmação de que Rothbard teria sido um “conservador cultural”. Rothbard
sempre defendeu pautas que atentam o bom senso como a liberação de drogas, do aborto,
criticou quem combateu a pornografia e defendeu um conceito de liberdade de expressão
que atenta o bom senso). Para ele, os falsos libertários teriam sido aqueles que o Rothbard
chamava de “libertários modais”16. Há um problema aqui: Hoppe privatiza totalmente o
conceito de conservador e libertário, tal como os protestantes privatizaram a fé.
Basicamente, ele quis dizer que libertário pode (ou deve) ser conservador, mas o
conservadorismo segundo Hoppe (tal como segundo Patrick Buchanan e os
neoconservadores) é um conservadorismo vazio, é mero nome a quem podemos atribuir
o significado que convier. Vale lembrar que Hoppe, como se mostra em todos os seus
escritos, é antes um kantista/humeano, isto é, segue a epistemologia de Kant e Hume –
e não raro mostra uma influência claramente nominalista, que provavelmente decorre do
dos pensadores em que se baseia. Não apenas isso: há católicos que creem que a visão de
Hoppe é de alguma forma compatível com o catolicismo. Hoppe, ao longo de sua obra
mais famosa (Democracia – o deus que falhou) critica com toda razão o estado moderno e a
democracia liberal, assim como toda a podridão moral que existe hoje e atribui,
corretamente, a esse modelo. Todavia, quando defende a sua doutrina, evoca novamente
os nomes dos responsáveis pelo advento do estado moderno. Como lemos a seguir17:


15 HANS-HERMANN HOPPE; Democracia – o deus que falhou, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014, p.
255.
16 MURRAY ROTHBARD; “Why Paleo”, em RothbardRockwell Report, 1, n. 2 (maio de 1990): 4-5, apud

HANS-HERMANN HOPPE; op.cit., pp. 243-244.


17 HANS-HERMANN HOPPE; op.cit., p. 236. Também lê-se adiante: «todos os direitos humanos são direitos de

propriedade, e todas as violações de direitos humanos são violações de direitos de propriedade» (p. 236-237). Em suma:
toda ética humana gira em torno de um princípio econômico.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer algumas expressões terminológicas. O termo
“libertarianismo”, como empregado aqui, é um fenômeno do século XX — ou, mais
precisamente, um fenômeno pós-Segunda Guerra Mundial — que possui raízes
intelectuais tanto no liberalismo clássico (dos séculos XVIII e XIX) quanto na filosofia
do direito natural (a qual é ainda mais antiga). Trata-se de um produto do racionalismo
moderno (iluminismo). Culminando na obra de Murray N. Rothbard, a qual é o
nascedouro do movimento libertário moderno (em especial, a sua ética da liberdade), o
libertarianismo é um sistema racional de ética (de direito). Trabalhando dentro da
tradição da filosofia política clássica — de Hobbes, Grotius, Pufendorf, Locke e Spencer
— e empregando o mesmo antigo aparato lógico e as mesmas antigas ferramentas
analíticas (conceituais), o libertarianismo (o rothbardianismo) é um código legal
(jurídico) sistemático, obtido por meio da dedução lógica de um único princípio, cuja
validade (e é isso que faz com que ele seja um princípio — i.e., um axioma ético — e
com que o código legal libertário seja uma teoria da justiça axiomático-dedutiva) não
pode ser contestada sem que se caia em contradições lógicas/práticas (praxeológicas) ou
performativas (i.e., sem que se afirme implicitamente o que se nega explicitamente). Esse
axioma é o antigo princípio da apropriação original: A propriedade de recursos escassos
— o direito de exercer um controle exclusivo sobre recursos escassos (propriedade
privada) — é adquirida através de um ato de apropriação original (por meio do qual
recursos são retirados de um estado de natureza e transformados para um estado de
civilização). Se isso não fosse assim, ninguém jamais poderia começar a agir (fazer ou
propor qualquer coisa); portanto, qualquer outro princípio é praxeologicamente
impossível (e argumentativamente indefensável).

Vê-se aqui diversos problemas: Hoppe reconhece que o libertarianismo é um produto do


racionalismo moderno. O mesmo racionalismo que deu origem à Revolução Francesa,
que foi essencialmente estatista e que deu origem ao estado moderno, apartando a
autoridade política da Igreja. Hoppe cita depois uma série de nomes deploráveis, como
“parte da filosofia política clássica”, como Hobbes (pai do estatismo moderno para quem
“o homem é o lobo do homem”) e Locke (empirista radical do iluminismo escocês, que
fundamentou o país mais perverso da história moderna, os Estados Unidos da América;
fundados por uma tradição liberal, maçônica e protestante) para descrever só dois; e para
completar, exalta a já citada praxeologia.
Hoppe, como se vê, procura sempre levar os conservadores ao libertarianismo.
Hoppe insiste no seu nominalismo. Podemos concluir nessa situação que18:
Não é difícil reconhecer que a visão conservadora e a visão libertária da sociedade são
perfeitamente compatíveis (congruentes). Com certeza, os seus métodos são
nitidamente diferentes. Uma corrente é (ou parece ser) empirista, sociológica e descritiva,
ao passo que a outra corrente é racionalista, filosófica, lógica e construtivista. Não
obstante essa diferença, ambas concordam em um aspecto fundamental. Os
conservadores estão convencidos de que o “natural” e o “normal” é antigo e
generalizado (e assim podem ser discernidos em todos os tempos e em todos os lugares).
Do mesmo modo, os libertários estão convencidos de que os princípios da justiça são
eterna e universalmente válidos (e, portanto, devem ter sido essencialmente conhecidos
pela humanidade desde os seus primórdios). Ou seja, a ética libertária não é nova nem
revolucionária; ela é antiga e conservadora. Até mesmo os indivíduos primitivos e as

18 HANS-HERMANN HOPPE; libd., p. 239.
crianças são capazes de compreender a validade do princípio da apropriação original, e
a maioria das pessoas normalmente costuma reconhecê-lo como uma realidade
indiscutível.

Hoppe acredita que «os libertários estão convencidos de que os princípios da justiça são eterna e
universalmente válidos». No entanto, como já se disse, Hoppe não deixa claro exatamente o que é
conservadorismo e nem deixa claro o que é libertarianismo; limita-se a defini-la como,
resumidamente, uma doutrina ética racionalista. Porém, nada disso mostra que o
libertarianismo deve ser conservador ou não. Para Hoppe, conservadorismo e
libertarianismo são palavras que podem ser usadas ao mero capricho.
Por fim, Hoppe cai naquele erro de Descartes 19, fazer a sua filosofia, que nem de
longe é a boa Filosofia (que é a aristotélico-tomista), ter como princípio o “eu”: «Cogito,
ergo sum»; «Penso, logo existo». A filosofia de Hoppe parte do “eu” e não da realidade em si;
uma doutrina focada num nível de abstração absurdo (bem típico do idealismo alemão).

IV – O “conservadorismo” de Hoppe
Hoppe, por assim dizer, ainda conquista muita gente — conservadores, inclusive. O seu
jeito “reacionário” parece encantar. Porém, a sua proposta não resiste a uma análise
realista mais fundamentada. A ética argumentativa parte dessa falha. Fora que não se
pode afirmar a existência do que ele chama de autopropriedade, pois atenta contra o
hilemorfismo, a doutrina que diz as substâncias são compostas de matéria e forma. No
caso dos seres humanos, corpo e alma, ou intelecto, inteligência, espírito, mente, etc.
Como quiserem entender. O corpo não pode ser propriedade do homem, pois é parte
do seu ser. O homem não tem corpo, mas sim é um composto de corpo e alma. Só
podemos dizer “meu corpo” secundum quid, mas não simpliciter, isto é, não de forma
absoluta. Se for assim, Hoppe teria de concordar com as feministas radicais quando estas
bradam “meu corpo, minhas regras”. Elas estão convictas de que a suposta propriedade
de seus corpos justifica o aborto (que ele próprio nunca condenou) e o atentado ao pudor.
Isso não significa que o corpo das pessoas seja propriedade do estado, mas sim que
existem limites para o seu uso pelo próprio bem da preservação da sociedade humana.
Se as pessoas vivessem segundo tais perspectivas, voltaríamos à barbárie e não, ao
contrário do que Hoppe pensa, a uma sociedade conservadora. A premissa hoppeana
poderia ter certa razão na Idade Média, onde simplesmente não existia estado como
temos hoje, como ele próprio reconhece e sobre isso ainda Hoppe escreve: «Embora
nitidamente mais estratificadas e aristocráticas do que a América colonial, as assim denominadas
sociedades feudais da Europa medieval também eram, em geral, ordens sociais sem estado. O estado,
conforme a terminologia geralmente aceita, é definido como um monopolista territorial compulsório da lei
e da ordem (como um supremo tomador de decisões) [obviamente essa definição é inapropriada
para a definição de estado, pois um conceito mais adequado seria “sociedade
politicamente organizada”. A sociedade feudal é “organicamente organizada”, pois ela
surgiu naturalmente após a queda do Império Romano. A definição que Hoppe usa aqui

19 Cf. RENÉ DESCARTES; Discurso do Método, Parte IV, 1.
é baseada numa definição similar à que Franz Oppenheimer usa em seu Der Staat, ou O
Estado, onde diz que o estado é quem monopoliza os meios políticos para obter riqueza,
isto é, pela violência]. Os senhores feudais e os reis, em geral, não preenchem os requisitos constitutivos
de um estado: eles só podiam “tributar” com o consentimento dos tributados, e todo homem livre era tão
soberano (supremo tomador de decisões) em sua própria terra quanto o rei feudal o era em sua respectiva
propriedade». 20.
Todavia, ainda que a sociedade medieval seja “semi-anárquico”, com leis privadas
e um mercado sem nenhuma regulação, dentre outras coisas que de alguma forma lembra
a sociedade libertária como descrita por Hoppe e Rothbard, a realidade social da época
era totalmente diferente do que se viu após a Revolução Francesa. A começar que a
população era quase que totalmente católica e depois que o poder eclesiástico era
reconhecido como acima do poder temporal ou político. E por essas razões, as
comunidades eram bem mais orgânicas. Apenas um néscio em história medieval como o
são Hoppe e Rothbard para querer comparar realidades tão díspares e ainda usar uma
ordem verdadeiramente natural para comprovar seus princípios de raízes liberais21.
Como Hoppe possui uma visão evolucionista e mecanicista da antropologia,
sociologia e história, crê que o anarcocapitalismo (ou ordem social libertária ou ordem
natural, segundo ele) é a nossa condição natural, e isso é falso, obviamente. Se Hoppe,
como ele próprio diz, reconhece a existência de “elites naturais”22. Ora, essas mesmas
elites foram instituídas por Deus, como diz São Paulo: «Cada qual seja submisso às autoridades
constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por
Deus» (Rm 13, 1). Isso não é uma particularidade do Novo Testamento; essas autoridades
aparecem desde o Antigo Testamento e são perfeitamente explicáveis.
Essas autoridades existem porque sempre tem um grupo que reconhece alguém
como mais sábio, conhecedor, virtuoso, etc., e que acaba sendo escolhido para liderar
alguma comunidade. Isso é próprio do homem por ele ser um animal político. Não
reconhecer isso, é como reconhecer que cada homem é seu legislador; e quando alguém
como Hoppe quer criar uma nova ética, no fundo, ele quer reformular toda a lei natural
e as bases da lei humana. A ética não pode ser criada, mas sim descoberta ou conhecida
pelo homem; e Deus já revelou pelos profetas e hagiógrafos e por Ele próprio na pessoa
de Jesus Cristo. Os santos doutores usaram a filosofia grega apenas para esclarecer o que
aos gentios pareceu obscuro apenas com a revelação. Qualquer coisa fora disso deve ser
rejeitada. E, por isso, devemos rejeitar a ética argumentativa de Hoppe.
A conclusão que chegamos é essa: ou você é católico ou é um seguidor da
doutrina de Hoppe. Claro que podemos reconhecer as suas qualidades. Seria injusto,
depois de tantas críticas, dizer que ele não tem nenhuma. Mas os seus erros acabam
obscurecendo o que há de bom nele.

20 HANS-HERMANN HOPPE; op.cit., p. 307.
21 Cf: RÉGINE PERNOUD; Luz sobre a Idade Média; e JACQUES LE GOFF; O Homem Medieval.
22 «[A] origem endógena da monarquia (em oposição à origem exógena, por meio da conquista) só pode ser compreendida no

contexto de uma ordem prévia das elites naturais. O pequeno — porém decisivo — passo na transição para o governo
monárquico — i.e., o “pecado original” — consistiu precisamente na monopolização da função de juiz e pacificador».
HANS-HERMANN HOPPE; libd. p. 104.
Hoppe tem algumas das melhores críticas à democracia moderna que
conhecemos, ainda que algumas, como de praxe por parte dele e dos austrolibertários em
geral, sejam economicistas. Hoppe também mostra uma interessante visão da história
política recente do mundo e da origem da degradação moral do ocidente por parte do
estado. Mas trata de temas importantíssimos, como o aborto e o laicismo, com muita
leviandade. O que é fruto da sua metodologia praxeológica. Infelizmente, ele tem erros
até nos seus acertos, o que não quer dizer que deixam de ser acertos.

V – O que é, como é e o fim da Ética


Apontado os erros, cabe, então, uma refutação cabal para a doutrina de Hans-Hermann
Hoppe.
Em primeiro lugar, devemos apontar definitivamente os erros da praxeologia e
definir o que é realmente a Ética. Ética, etimologicamente, significa a ciência do ethos
(ἔθος), que significa “costumes”, “hábitos”. O fim da Ética é estudar os costumes e
hábitos para saber como agir e se comportar de forma conveniente em sociedade. É a
ciência do agere, ou agir.
A Ética é uma das três ciências práticas, como as são as Econômicas e a Política.
Ciências práticas distinguem das especulativas, que são um fim em si mesmas, que
buscam superar uma ignorância sobre algo, ainda que possam ser usadas para aplicar em
alguma arte (tal como a arte da Medicina se serve da Fisiologia, por exemplo; e a arte da
Engenharia se serve das Matemáticas e Física). As ciências práticas, em suma, estudam o
agir humano, são concernentes aos atos humanos. O que diferencia a Ética da Política e
das Econômicas é a sua finalidade e todas elas devem estar guiadas pela virtude da
Prudência, «que é a razão reta dos atos» 23. Com efeito, «chamam-se propriamente ações humanas só
aquelas de que o homem é senhor»24 e que esse tipo de ação o é pela razão e pela vontade.
Essa verdade obviamente tem consequências.
Isso significa o seguinte: se o homem age racionalmente, ele deverá agir em
virtude de um fim. Esse fim deverá ser necessariamente o fim último. O problema é que,
devido à corrupção moral e intelectual dos tempos modernos, poucos creem no fim
último e acabam vivendo de satisfazer as concupiscências. Todavia, mesmo que seja um
fim último errado, mesmo esses descrentes depravados acabam vendo ali um fim último,
mas veremos mais adiante como esse pensamento é estulto e, porém, outra questão ainda
deverá perdurar: se o homem age em virtude a um fim último, como deverá chegar lá?
Vivendo retamente em virtude a esse fim e não impedir que outros busquem esse mesmo
fim. Se todos os homens são homens e se são todos racionais, é evidente que o fim último
deverá ser o mesmo para todos e, por essa razão, o modo correto de agir também deverá
ser o mesmo. Donde resulta, então, a necessidade da Ética para estudar os modos de agir
que convenham ao homem. Deste modo podemos dizer que a Ética é a ciência do
autogoverno; as Econômicas, do governo dos bens domésticos; e Política, do governo

23 TOMÁS DE AQUINO; S.Th. I-II, q. 58, a. 4, resp.
24 TOMÁS DE AQUINO; libd., q. 1, a. 1, resp.
da pólis. As Ciências Econômicas aqui têm pouco a ver com o termo entendido
modernamente. Claro que na visão de Santo Tomás e de Aristóteles, a economia do
governo doméstico acaba se desdobrando para a pólis, a sociedade; pois o homem, como
é entendido, é um animal político. Todavia, com o advento do liberalismo e, posterior e
consequentemente, do marxismo, entendeu-se que a noção de economia deveria ser
invertida. O que obviamente é falso e explica o surgimento de inúmeros regimes tirânicos
ao longo dos séculos XVIII, XIX, XX, e mesmo no atual século XXI.

VI – Do fim último: Tomás contra Mises


Agora convém fazer mais uma pergunta: o fim último existe? Sabemos que o homem age
tendo em vista um fim. Aqui podemos ver uma diferença gritante com a boa Filosofia
com a praxeologia. Segundo Mises:
Algumas filosofias aconselham o homem a buscar como objetivo final de sua conduta a
renúncia completa a qualquer ação. Encaram a vida como um mal, cheia de dor,
sofrimento e angústia, e apoditicamente negam que qualquer esforço humano possa
tomá-la tolerável. A felicidade só pode ser alcançada pela completa extinção da consciência, da vontade
e da vida. A única maneira de alcançar a glória e a salvação é tornar-se perfeitamente
passivo, indiferente, inerte como as plantas. O bem supremo é o abandono do pensamento e da
ação25.

Não é preciso pensar muito o quão esse pensamento é totalmente não apenas
antirreligioso (e consequentemente anticristão), mas também irracionalista (logo partindo
de Mises, que é tão crítico do irracionalismo...). Segundo, Santo Tomás, «ninguém se esforça
para fazer algo, exceto pelo fato que se estima que chegaria a algo, como ao seu último término»26. Mises
assim sugere que a vida do homem é uma busca pelo conforto, saindo de uma condição
de desconforto que só termina com a morte. Ora, se remove o fim último, exclui também
o porquê de todo agir. Se, porventura, o homem age somente em busca de conforto, mas
não tendo em vista o bem, o homo agens misesiano não possuem o conhecimento da
natureza do bem. Não é necessário colocar mais referências do que as que foram
colocadas, o fato é esse: segundo Mises, todo homem é um agente e um agente racional
que meramente busca sair de uma situação de desconforto ou descontentamento para
buscar uma situação de conforto e contentamento. Ponto. O significa que ele nos reduz
às condições de animais brutos, que vivem a lei do “foge da dor e busca o prazer”. Nada
diferente do que propõem os pensadores da Escola de Frankfurt. E é certo que o homem
sempre busca o bem27, pois se assim não fosse, ele próprio não abriria mão do conforto,
mesmo que isso durasse a vida toda ou mesmo lhe custasse esta. Lembrando que para
Mises, a vida dedicada a Deus é uma submissão à desutilidade do trabalho. Segundo ele,

25 LUDWIG VON MISES; op.cit., p. 54.
26 TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles, l. II, lição 4, 3.
27 O bem, no caso, é o que todos desejam e buscam, mesmo que de forma errada. O bem é verdadeiro

quando apetece a forma, isto é, leva-o a alcançar o seu fim. Cf ARISTÓTELES; Ética a Nicômaco I, c. 1,
1094.
trabalhos como os dos esportistas, filósofos e religiosos, são trabalhos “introvertidos”,
isto é, desinteressados, que satisfazem o indivíduo sem ser exatamente uma fonte de lucro.
Segundo o economista ainda, somente o trabalho introvertido «é feito porque o que satisfaz
ao indivíduo é a própria desutilidade do trabalho, não o seu produto». O que significa que, para o
economista austríaco, o trabalho de um sacerdote o satisfaz pela própria “desutilidade”.
Inclusive, para Mises o trabalho dos religiosos não tem nada a acrescentar para economia,
pois «[s]e a teoria que orienta sua conduta é ou não correta e se suas expectativas se materializarão ou
não, são fatos irrelevantes para a qualificação cataláctica [relativo à cataláxia, que é uma teoria
econômica derivada da praxeologia cujo fim é compreender a formação dos preços, isto
é, não tem a necessidade de ser tratada nesse espaço por ora] do seu modo de agir»28.
Portanto, conclui-se que todo agente racional necessariamente age para buscar o
bem como fim e não como mero conforto e sensação de satisfação, o que nos colocaria
no nível dos brutos. Isso refuta tanto o ateísmo (ou agnosticismo, mas o ateísmo é bem
evidente nas palavras do próprio Mises, como se lê em Ação Humana) misesiano, que
diz que Deus, para criar, teria de ser movido pela necessidade 29 ; como também o
voluntarismo de Duns Scot e Guilherme de Ockham30, que sugere que Deus criou o
mundo movido pela sua vontade (isto é, “porque quis”). Deus criou e governa o mundo
porque isso é um bem. Logo, Deus só age pelo bem.

VII – Uma resposta tomista à ética argumentativa


A ideia de reduzir toda a ciência ética em conceptualismos discursivos e assim também a
um abstracionismo absurdo, como já dito, típico do idealismo alemão, não é nova. Antes
de Hoppe aparecer com essa ideia, outros dois alemães também o fizeram: Karl-Otto
Apel e Jurgen Habermas. O segundo, que foi orientador de Hoppe, continuou o trabalho
do primeiro. Apel formulou a Teoria da Ação Comunicativa e o segundo a Ética do
discurso. Ambos buscaram, acredite, fugir do relativismo ético da modernidade e
resolveram formular uma teoria ética baseada no discurso em que, de forma
grosseiramente resumida por mim, implica em dizer que qualquer pessoa que ingresse
um discurso deve necessariamente reconhecer que um discurso racional pressupõe
normas universalmente aceitas.
Voltemos a Hoppe. Hoppe desenvolveu uma ética que, a exemplo de Apel e
Habermas, também se baseia no discurso e crê que, assim como a dupla alemã, que os

28 Cf. LUDWIG VON MISES; op.cit., pp. 671-677.
29 «Os filósofos e teólogos escolásticos, e também os teístas e deístas do iluminismo, conceberam um ser absoluto e perfeito,

eterno, onisciente e onipotente e que, apesar disso, planejava e agia, objetivava atingir fins e empregava meios para atingir esses
fins [..] A própria ideia de perfeição absoluta é, sob todos os aspectos, autocontraditória. O estado de perfeição absoluta só
pode ser concebido como algo completo, final e não sujeito a qualquer mudança». LUDWIG VON MISES; op.cit., pp.
99-100. A isso Santo Tomás responde: «[...] como, dentre as coisas feitas, chamamos perfeita à que passa da potência
para o ato, essa palavra — perfeito — foi empregada para significar tudo aquilo a que não falta o ser atual, quer o tenha
por ser feito, quer não». Isto é, Deus, por ser ato puro, necessariamente deve ser perfeitíssimo. TOMÁS DE
AQUINO; S.Th. I, q. 4, a. 1, ad. 1.
30 Para saber mais sobre os sutis e grotescos erros de Duns Scot e Guilherme de Ockham: DANIEL C.

SCHERER; A Raiz Antitomista da Modernismo Filosófica, Edições Santo Tomás, 2018, pp. 145-164.
seus pressupostos possam também desdobrar-se do indivíduo para a sociedade. O leitor
deve se lembrar da praxeologia, que nos diz que a ação humana busca, por meio de
recursos escassos atingir um fim, que é sair de um estágio de descontentamento ou
desconforto para o contrário. Pois bem, segundo a ética argumentativa, o corpo é um
recurso escasso, visto que não dá para estar em dois lugares e fazer três ou quatro coisas
ao mesmo tempo. O que também limita o nosso tempo. Então, temos essas duas
realidades da ética argumentativa: (1) o indivíduo tem apenas um corpo, que o usa para
agir tendo em vista um fim, que é, segundo a praxeologia, sair do desconforto e/ou do
descontentamento; (2) o indivíduo tem exclusivo domínio sobre esse corpo e o utiliza
para se comunicar com outrem; (3) ao comunicar algo, o indivíduo estará usando esse
corpo e, portanto, fazendo uso exclusivo desse recurso, demonstrando assim, que é
proprietário deste.
O leitor deverá se perguntar (ou não, caso seja hoppeano) como isso se
desdobrará para a sociedade. Hoppe diz que reconhecendo que o indivíduo tem
propriedade sobre o seu corpo, o interlocutor deverá reconhecer também para não cair
no paradoxo performático. E disso se desenvolverão todas as leis morais. Praticamente
tudo, de um peteleco na orelha a uma tortura seguida de morte, passando por roubos,
invasões, vandalismo, etc., será em última instância uma violação de propriedade privada.
Não pode agredir a pessoa porque viola a autopropriedade dela (propriedade sobre seu
corpo) e não se pode roubar um bem dela porque, pelo fato desse bem ter sido adquirido
com um trabalho do qual foi feito pelo seu corpo, é uma extensão de sua autopropriedade.
Salvo em casos de bens doados. Nesse caso, há um consentimento da parte do doador
em doar um fruto de seu trabalho a outrem, que consentiu em receber. Em suma, tudo
se resume em autopropriedade.
Olhando assim, parece irrefutável mesmo. Afinal, se negar a autopropriedade,
não apenas nego que posso fazer o que quiser com o meu corpo, como também entrarei
em paradoxo performático. Afinal, não o estou usando agora mesmo os meus dedos para
digitar esse presente texto? Pois bem, toda essa abstração de Hoppe cai por terra pelo
seguinte motivo: a redução de toda a ciência Ética a um monismo sobre autopropriedade
é simplesmente inaceitável. Deve-se recapitular que como o ato próprio do homem é
racional e ordenado pela Prudência, a Ética deve compreender quais atos podem ser
aceitos ou não, e os que podem ser aceitos são os que usam de meios justos para atingir
um fim, que necessariamente é o bem. O que significa dizer que, como necessariamente
o homem deve buscar um fim último, este fim último deve ser igual a todos e que só
pode ser alcançado por um bem comum, e esse bem comum necessariamente deve estar
acima do suposto direito à autopropriedade. Aqui remete a duas questões chaves: (1) se
isso justifica a cobrança de impostos por parte da autoridade política e (2) se justifica a
defesa de regimes autoritários como a vertentes socialistas (social-democracia, nazismo e
fascismo) e comunistas (bolchevismo, maoísmo e castrismo). As respostas são,
respectivamente, sim e não. Sim, para o primeiro porque se as leis devem estar ordenadas
ao bem comum, que é o mesmo para todos, os serviços de jurisdição devem ser
necessariamente públicos e não privados. Porém, convém deixar claro que isso não
justifica o Leviatã Hobbesiano, isto é, os regimes autoritários, (aqui se responde quanto
ao segundo) que temos hoje em quase todos os países do mundo, pois, se os impostos
devem servir tão somente para preservação do bem comum, qualquer coisa fora disso
deverá ser repugnada como uma tirania. Nesse caso, com relação ao estado moderno, o
imposto é roubo e dos mais escandalosos, mas isso ainda não justifica a defesa de uma
posição anárquica. Seria como preferir a morte a estar doente, o que não faria o menor
sentido. Ora, isso também pressupõe que as leis deverão estar ordenadas à lei natural, o
que significa também que o direito à propriedade privada deve ser preservado, desde que
o seu uso não implique a violação desta lei. Ou seja, não cabe aqui uma defesa ao
socialismo e comunismo. Apenas reconhecer que nem todo ato humano fica no homem,
mas há também os atos que se desdobram para o âmbito social, como o comércio ou
atos visíveis ao público, etc. Isso significa dizer que as leis não devem estar
fundamentadas nesse direito sob pena de submeter-se aos caprichos do proprietário, pois
lembrando que o homem é um animal político e que essa ética argumentativa, somente
faria sentido basicamente entre hipotéticos ermitões, mas mesmo estes teriam de ser
educados em sociedade antes de se tornarem ermitões.
Vamos, por conseguinte, imaginar o seguinte cenário: suponhamos que há uma
vila de maioria cristã onde um dos moradores, cuja renda é fora dessa vila, e que resolva
instalar em sua propriedade um outdoor com conteúdo pornográfico. Parece uma ideia
ridícula, mas é sabido que um leitor “libertário modal” poderá dizer que “é propriedade
dele e não está violando a propriedade de ninguém”; por sua vez, o leitor hoppeano dirá:
“ele está no seu direito”; já os moradores cristãos poderão repugnar isso com boicote ao
seu trabalho, fazer campanha contra ele, etc.. Mas nada disso importa agora. O fato é que
ele já o fez e até que esse conteúdo seja retirado, esse homem já perverteu e escandalizou
diversos moradores que, respeitando essa ética argumentativa e as leis de propriedade
privada, não impediram que isso acontecesse. E ainda podemos ir mais longe: uma ética
baseada na argumentação é ineficiente contra a pornografia, pedofilia, aborto, drogas e
trabalho infantil. E nada diz sobre abusos da liberdade de expressão. Hoppe ressalva que
numa ordem natural libertária não há liberdade irrestrita de expressão, pois esta limitar-
se-ia à propriedade da pessoa. Mas não resolve problemas de imputação de crimes e
difamação. O leitor que for seguidor do mau caráter Walter Block poderá objetar, mas o
fato é que se o libertário defende tanto o direito à propriedade, consequentemente terá
de defender também a limitação da liberdade de expressão em prol desse direito à
propriedade porque a própria imputação de crime implica uma violação injusta desse
direito. Se João acusa falsamente Pedro de um crime, Pedro terá sua propriedade violada,
seja pela polícia, seja por justiceiros populares. Logo, é necessário que pessoas como
Pedro sejam protegidas por leis que protejam a sua integridade quanto a isso e, assim,
João deverá ser punido como um criminoso. A ética argumentativa nada diz sobre casos
assim.
Sobre o aborto, tampouco. Hoppe limita-se a dizer que isso deve ser tratado em
família, mas, como podemos ver, o mesmo se aplica à pornografia e à pedofilia. Hoppe
nunca apresentou soluções para esses problemas baseadas em sua ética 31 . Hoppe
escreve32:
O estabelecimento de um governo — de um monopólio judicial — não apenas significa
que jurisdições anteriormente separadas (como, por exemplo, os distritos étnica ou
racialmente segregados) são integradas à força; ele implica, ao mesmo tempo, que
jurisdições anteriormente integradas de maneira completa (como, por exemplo, as
famílias e os seus lares familiares) são coercitivamente deterioradas ou até mesmo
dissolvidas. Ao invés de os assuntos intrafamiliares — incluindo, por exemplo, temas
como o aborto — serem considerados questões a serem julgadas e arbitradas no seio
das famílias exclusivamente pelos seus chefes ou pelos seus membros, uma vez que um
monopólio judicial tenha sido estabelecido, os seus agentes — o governo — também se
tornam os juízes e os árbitros de última instância em todos os assuntos relacionados
com a família, esforçando-se, naturalmente, para expandir esse poder.

O que significa dizer que para Hoppe, o assassinato de crianças no ventre de suas mães
é um assunto a ser julgado e arbitrado em família. O que significa dizer que para o filósofo
e economista alemão orientado por Habermas, aborto não é um problema de ordem
moral tão importante. Afinal, nascituros não têm capacidade de argumentar.
Sobre a pedofilia, isso parece ser discutido amplamente no meio libertário. O que
não é problema para o cristão, pois temos a castidade como uma ordem divina e requisito
para se alcançar a salvação eterna, pois também é um meio de amar o próximo e não
tratar uma pessoa como objeto. Somente esse pensamento já deveria tornar evidente que
não podemos sequer desejar sexualmente uma criança. Isso é parte da Ética por
antonomásia, que é a cristã. Porém, a ética argumentativa — que não se mostra ética
coisíssima nenhuma —, não apenas não apresenta solução para isso, como também pode
ser usada para justificar. Como? Bastaria uma criança na idade da razão consentir
verbalmente com o ato sexual. O mesmo se deve à pornografia, que é legal em quase
todo mundo, mas que não deveria ser, e sua proibição deveria ser justificada da mesma
forma que se justifica a proibição das drogas (nesse caso, refiro-me aos narcóticos
mesmo), cujo tema deve ser tratado em outro espaço.
Pois bem, qual é a resposta tomista a tudo isso? As quatro leis: eterna, natural,
humana e divina. A eterna é a lei pela qual Deus criou o mundo e o rege pela sua
Providência33; a lei natural, que é a participação da lei eterna na criatura racional enquanto
imagem e semelhança de Deus, com a sindérese, hábito da razão prática pelo qual se


31 Muito pelo contrário. Baseado em sua pseudoética, ele escreve: «Essa “propriedade” do próprio corpo significa
o direito de alguém para convidar (ou concordar com) outra pessoa a fazer algo com o respectivo corpo: meu direito de fazer
com o meu corpo tudo o que eu quiser, o que inclui o direito de pedir e de deixar que alguém use o meu corpo, ame-o, examine-
o, injete nele medicamentos ou drogas, altere sua aparência física e até mesmo agrida, danifique ou mate-o, se isso for o que
eu gostar e concordar. Relações interpessoais desse tipo são e serão chamadas de trocas contratuais. Elas são caracterizadas
pelo fato de que um acordo sobre o uso dos recursos escassos é obtido, acordo este baseado no respeito mútuo e no reconhecimento
de cada um e de todos os parceiros de troca sobre o domínio do controle exclusivo de seus respectivos corpos» HANS-
HERMANN HOPPE; Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, p. 25.
32 HANS-HERMANN HOPPE; Democracia – o deus que falhou, p. 218.
33 TOMÁS DE AQUINO; S.Th. I-II, q. 91, a. 1, resp.
distingue o bem e o mal 34 ; a lei humana ou positiva são as disposições particulares
descobertas pela razão humana para aplicar a lei natural35; e, por fim, a lei divina, que é
também uma lei positiva, como a humana, mas com a diferença de que, além de vir
diretamente de Deus, quase que como uma extensão da lei natural, visa induzir à
observância da lei antiga e da lei nova, nos Antigo e Novo Testamento36.
Alguém poderá objetar se perguntando por que a lei humana não poderia ser
promulgada de forma particular, como numa sociedade libertária. A isto já foi respondido
anteriormente, mas não custa responder de novo: primeiro, porque, segundo Santo
Tomás, «[a] lei é uma regra e medida dos atos, pela qual somos levados à ação ou dela impedidos. [...]
a regra e a medida dos atos humanos é a razão, pois é deles o princípio primeiro. [...] Ora, o que, em
cada gênero, constitui o princípio é a medida e a regra desse gênero. Tal a unidade, no gênero dos números,
e o primeiro movimento, no dos movimentos. Donde se conclui que a lei é algo de pertencente à razão»37.
Depois,
[...] sendo a lei regra e medida, ela depende do que é o princípio dos atos humanos. Ora,
como a razão é o princípio desses atos, também nela há algum primeiro princípio, que
o é de tudo o mais. Por onde e necessariamente a este há de a lei pertencer, principal e
maximamente. Ora, o primeiro princípio, na ordem das operações, à qual pertence a
razão prática, é o fim último. E sendo o fim último da vida humana a felicidade ou
beatitude, [...] há de por força a lei dizer respeito, em máximo grau, à ordem da
beatitude38.

E, por fim:
A lei, própria, primária e principalmente, diz respeito à ordem para o bem comum. Ora,
ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de quem governa em lugar
dele. E, portanto, legislar pertence a todo o povo ou a uma pessoa pública, que o rege.
Pois, sempre, ordenar para um fim pertence a quem esse fim é próprio39.

Santo Tomás responde inclusive a quem sugere que, por exemplo, um pai de família
poderia promulgar leis em sua casa. Santo Tomás escreve:
Como o homem faz parte da casa, assim, esta, da cidade, que é uma comunidade perfeita,
segundo Aristóteles. Por onde, assim como o bem de um homem não é o fim último,
mas se ordena ao bem comum; assim, o bem de uma casa se ordena ao de toda a cidade,
que é uma comunidade perfeita. Portanto, quem governa uma família pode sem dúvida
estabelecer certas ordens ou estatutos, mas que propriamente não constituem leis40.


34 TOMÁS DE AQUINO; libd., a. 2, resp.
35 TOMÁS DE AQUINO; libd., a. 3, resp.
36 TOMÁS DE AQUINO; libd., a. 4, resp., e a. 5, resp.
37 TOMÁS DE AQUINO; libd., q. 90, a. 1, resp.
38 TOMÁS DE AQUINO; libd., q. 90, a. 2, resp.
39 TOMÁS DE AQUINO; libd., q. 90, a. 3, resp.
40 TOMÁS DE AQUINO; libd., ad. 3.
Em suma, Santo Tomás pareceu previr o surgimento da teoria libertária, e talvez o tenha
previsto dentro de sua sabedoria singular. Mas eis aqui o esquema que o Aquinate fez:
(1) existe a lei natural, como demonstrado, que é a nossa participação da lei eterna; (2)
existe a lei humana, que deve estar ordenada à lei natural; e, por fim, (3) como a lei
humana deve estar ordenada à lei natural e ter como fim o bem comum, ela não pode ser
promulgada por particulares. Assim sendo, não há como existir tribunais privados, etc.,
para julgar atos que se configuram em violações da lei natural, como matar e roubar, por
exemplo. E muito menos promulgar leis baseando-se numa ética fundada na
argumentação.
Se ainda assim, depois de tudo o que foi escrito, o leitor estiver convicto da
suposta irrefutabilidade da ética argumentativa, isso já deverá ser ou um problema de
inteligência ou de honestidade intelectual. Pois, ainda que alguém julgue que o que foi
escrito aqui não refutou a ética argumentativa, pode-se ao menos dizer que foi
demonstrado que ela não é irrefutável por diversas brechas apontadas. Ademais, o
próprio fato dela basear-se num princípio que lembra muito a filosofia de Descartes —
que cria que toda a sua filosofia deve começar do “eu” como se depois pudesse
desdobrar-se para o restante da realidade —, assim Hoppe cria que do “eu”,
argumentando, pode-se elaborar toda uma ética da qual uma realidade inteira poderia
aderir. Filósofos como Apel, Habermas e hoje Hoppe pensam assim. Creem na sua
magnanimidade, que as suas ideias revolucionarão o mundo. Santo Tomás fez isso? Não,
Santo Tomás subiu em ombros de gigantes para escrever o seu trabalho. E subindo
nesses ombros, ele chegou a Deus e se entregou a Ele. Tomás escreveu o seu trabalho
pensando em Deus. Hoppe escreveu o seu trabalho pensando em si. Isso faz toda
diferença quando comparamos um escrito baseado na verdade e outro na mentira.

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