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IDEOLOGIA

Marilena Chauí

Todas as pessoas são ávidas de comunicação. Seres humanos relacionam-se com


determinados modos de agir e, sejam ou bons ou ruins ou mesmo quase indiferentes, há
uma tendência inata a reproduzir as primeiras formas de agir (hábitos-ações), bem como
os primeiros modos argumentativos (hábitos-discursos) para expressar nossa suposta
intenção ou mesmo explicação do universo sócio-cultural-econômico e natural. É como
se os hábitos legitimassem, fossem os critérios para a reprodução social da ação e para
a produção social da comunicação.
Meu propósito é investigar, perscrutar as mais sutis nuances de exploração,
escamoteamento e instrumentalidade intersubjetiva, tendo como foco a linguagem.
Como acessório, interpretarei também certas práticas que retroalimentam, ou mesmo
são origens da manutenção dum status quo... mesmo que este seja injusto, tendencioso e
desagregador dos atores sociais numa dada comunidade.
A maioria de nós pensamos ou predicamos que as coisas são assim e devem
continuar inalteradas; sendo os valores que sustentam tais práxis nem sequer são
mencionados. Pelo contrário, a própria omissão – ou sistemática ou não – já é indício de
ideologia, de evitamento, de resistência psíquica. Seria o mesmo evitamento que ocorre
no discurso popular: “Política, futebol e religião não se discutem!” Será que é por que
as ‘defesas’ argumentativas têm como critério a utilização do sentimentalismo de grupo,
ou seja, de interesses de determinadas classes, partidos, (partes) e, por isso mesmo, é
vantajoso (para eles) a separação? A vantagem da multiplicidade que não se comunica
e, portanto, não problematiza questões de alto interesse social, justamente por que o
argumento de “não se discutir” substitui a frase “não problematizar, não investigar
nossas bases unilaterais que intentam em perenizar a separação, a relativização de
nossos pressupostos e, com isso, a intenção dum critério circular que se alimenta de um
conteúdo qualquer, sem a pretensão de buscar as causas, as motivações, tanto dos
valores, como dos meios empregados (geralmente discursos) para mantê-los
reproduzindo nossos interesses”?
Se, lá no fundo, a adesão às partes, já é, por princípio, uma negação dum critério
comum de validação, de verdade e legitimação, então, o conteúdo é universalizado
quando deveria aparecer como relativo (em relação) aos nossos mesquinhos propósitos
separativistas. Ora, se meu discurso é falacioso – ao defender o interesse de ‘meu’ grupo
–, e não admito a análise do mesmo; temos aqui, então, o sinal de que a recusa à
dialética é um sintoma de manutenção de um conteúdo em detrimento de suas
implicações éticas. É uma forma reativa de defesa sistemática de fecharmo-nos numa
bolha, num escudo hermético contra a construção de tal conteúdo. A revelação da
construção, ou no dizer de Raymond Boudon: A origem das idéias aceitas, pertimitir-
nos-á a desconstrução (quando falaciosa ou por interesses injustos) do conteúdo como
absoluto, reintegrando-lo num devir histórico e classista, desembocando na relatividade
e quase arbitrariedade do mesmo.
Quaisquer conteúdos apologizados com a defesa maníaca de “impossibilitados
de serem discutidos” refletem a hipocrisia dos defensores, bem como da
instrumentalidade teórica, com sua eficácia retórica, para angariar adeptos, ou mesmo o
conformismo de tal fato social, ato social ou mesmo argumento vigente.
Karl Marx e Frederich Engels citam que os ideólogos invertem a realidade...
ocultam, por exemplo: o roubo de quem detém os meios de produção devido ao salário
não pago ao empregado, justamente a causa de enriquecimento dos que detém os meios
produtivos. Se, semanticamente, o ocultar tem a função de impedir a revolta do produtor
para com o detentor, então, substituir o roubo, o enriquecimento nas costas do
trabalhador, por um genuíno modo capitalista, divinizado pelos meios de comunicação e
assujeitado pelo trabalhador porque muitas vezes é o único meio de ganhar a vida para
aqueles que não têm um pedaço de terra para subsistirem. Para o produtor (Trabalhador
= Produtor), reafirmar o ‘direito’ do detentor é um meio de evitar atritos com, talvez, o
único meio atual de ganhar a vida, assegurando, assim, pelo menos um evitar atritos e
conflitos para o grande pai (Burguês = Detentor). Marilena explica tal tema:

(...) já não possuem seu próprio meio de produção, como o lavrador


que trabalha sua própria terra; livres e donos de si mesmos (...). O
regime capital pressupõe a separação entre o trabalhador e a
propriedade das condições de realização de seu trabalho (...).
(...) o lado livre e espiritual do trabalho é o burguês, que determina os
fins, enquanto o lado mecânico e corpóreo do trabalho é o trabalhador,
simples meio para fins que lhe são estranhos. De um lado, a liberdade.
De outro, a “necessidade”, isto é, o autômato. (CHAUÍ, 2004: 17 e
18).

Se o burguês determina fins também é detentor dos meios técnicos1 de produção,


o trabalhador é a pessoa instrumentalizada por e para o lucro do burguês. O trabalhador
é quem produz, produz algo que não decide sobre os meios de produção, nem o modo
de execução. Daí a noção de alienação, ou seja, de estranhamento, uma vez que a
decisão sobre meios e modos é determinantes, necessários para a realização no trabalho.
Como escreveu Erich Fromm, o conformismo autômato é a condição de
receptividade do indivíduo, de maneira acrítica. Já para Engels, Marx, a práxis
produtiva é suficiente para determinar as idéias2. Entretanto, para Bourdieu e Althusser,
as condições, os mecanismos de reprodução3 (seja práxis, seja discurso) do estado atual
de organização social, funções e práticas são tão importantes quanto a determinação
aparentemente unilateral da superestrutura sobre a infra-estrutura.

1
Instrumentos, maquinário, espaço social da profissão etc.
2
Explicação que confere à Super-estrurura como efeito, epifenômeno da Infra-estrutura
(causa). Para tais pensadores, esta é sustentáculo da produção, do resultado daquela.
3
Se Bourdieu intervém com a noção de Hábitus; Althusser, por sua vez, com a de Aparelho
Ideológico, enquanto instituição social encarregada de disseminar, ou melhor, inculcar, idéias e
sentimentos, seja na arquitetura do local, sejam no conteúdo revivido sobre outras formas, mas
mantendo o mesmo critério de reprodutividade do status quo.
Quando pensadores investigaram as ideologias4, ao afirmarem o poder de
colocar a causa como efeito5, ou mesmo, o enriquecimento “lícito” do salário não pago
como “direito” do detentor6, apontaram a má-fé, ou seja, a intenção hipócrita daquele
que sabe que há uma falta de correspondência entre discurso/fato (inversão causal) e
entre discurso/interesse (ocultamento volitivo).
Para alguns críticos, os mesmos autores são acusados de que nem sempre ocorre
inversão da realidade. Ora, quando Marx e Engels postularam tal recurso argumentativo
que visa inverter, em nenhum momento escreveram que a inversão é o único resultado,
a única implicação da assim chamada ideologia. Interpretar um aspecto, como o único já
é uma distorção... distorção essa, que não necessariamente seja da realidade enquanto
fato, mas do significado dum significante, a saber: o ocultamento impede-nos de ver a
transição histórico-social do roubo implícito no ‘direito’ do capitalista. A inversão da
realidade (fato) tem um análogo no discurso: a conversão semântico-predicativa é
omitida!
Vejamos a contribuição de nossa primeira pensadora escolhida como uma das
principais contribuidoras para a investigação ideológica:

Nossa tarefa, aqui, será desfazer a suposição de que a ideologia é um


ideário qualquer ou qualquer conjunto encadeado de idéias e, ao
contrário, mostrar que a ideologia é um ideário histórico, social e
político de ocultar a realidade, e que esse ocultamento é uma forma de
assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a
dominação política. (CHAUÍ, 2004: 07).

A professora Marilena Chauí salienta o aspecto de omissão, sendo que tal oculta
a realidade. O que entendo por realidade, por essa palavra polissêmica, é no sentido de
fatos. Porém, os fatos são todos apresentados, dotados de sentido, de significados. Se as
ideologias são discursos, então faz-se mister inserirmos no bojo do significado de
realidade (enquanto fatos sociais vividos), em fatos sociais discursados. Assim como
vimos acima que nem todas as ideologias não são necessariamente inversoras e
ocultadoras, de modo análogo ocorre com a especificação da realidade ocultada, a saber:

Nem toda realidade factual, seja como organização sócio-pólitica-cultural, sofre os


aspectos de ocultamento; porém, há a possibilidade do ocultamento semântico, uma vez que é o
fato social discursado o modo característico das ideologias.

Nem toda realidade factual, seja como organização sócio-pólitico-cultural, sofre


os aspectos de ocultamento; porém, há a possibilidade do ocultamento semântico, uma vez
que é o fato social discursado o modo característico das ideologias.

4
Denominadas de Fraseologias, ou mesmo filosofia especulativa pelos mesmos autores na
obra intitulada: A Ideologia Alemã.
5
Literalmente inversão.
6
Literalmente ocultamento.
Se por um lado, o discurso pode ocultar a intenção do agente por substituição
semântica, como aquela que vimos do roubo e injustiça travestida de “direito”; por
outro, pode ocultar o significado original por um derivado próximo para ocultar o
desvio de tema ou foco. Há práticas que reforçam o aspecto ideológico – apesar de não
serem idéias, mas atos – pela incorrespondência entre comunicação e ação, entre ou
discurso que afirma e prática que nega, ou discurso que nega e prática que afirma.

(...) A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos


produtos do humano e a redução do humano ao nível da práxis
utilitária. (KOSIK, 1976: 19).

Tal negar e afirmar de práticas carece dum estudo aprofundado de como podem
significar a não-correspondência por uma interpretação que leve em conta o contexto a
que ou o ato, ou conjunto de atos está submetido e dependente.

Um dos fatos fundamentais da ideologia consiste, justamente, em


tornar as idéias como independentes da realidade histórica e social,
quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias
elaboradas e a capacidade ou não que elas possuem para explicar a
realidade que as provocou. (CHAUÍ, 2004: 13).

A suposta independência da realidade histórica, ou seja, via filológica, é o que


acontece quando no discurso social sobre Democracia. Em Atenas, a participação versa
sobre a escolha pelo voto das leis, ou seja, a decisão que incide sobre a constituição
legislativa. No Brasil atual, o significado de Democracia ateniense (original) é
substituído por outro objeto de eleição: não mais as leis, mas o representante. Daí o
sábio termo Democracia representacional, em detrimento da Democracia participativa.
Afinal, o que implica trocarmos o objeto de nossa decisão? Implica na mudança de foco,
na qual o tema participação restringe-se a eleger um representante, sendo que na
Democracia original, a escolha incide sobre as leis. Nestas, nossa decisão é uma
avaliação das implicações de ou afirmarmos ou negarmos uma determinada lei, por seus
efeitos, conseqüências. Tal postura organizacional de Atenas propiciou uma limitação
maior por parte do representante, bem como simultaneamente, uma responsabilidade
maior pelos cidadãos votantes. Atualmente, eximimo-nos de participação política, uma
vez que da decisão legal, os cidadãos estão apartados de tal voto.
A interpretação ou juízo de valor numa avaliação isolada é típico de
reducionismo teórico. Tal epíteto é mais um dos recursos ideológicos amplamente
utilizados, em seu caráter unilateral:

(...) Como o homem percebe os objetos isolados? Como únicos e


absolutamente isolados? Êle os percebe sempre no horizonte de um
determinado todo, na maioria das vezes não expresso e não percebido
explicitamente. (KOSIK, 1976: 25).

Digno de nota é a utilização do significante democracia como “pedra de toque”,


como algo mágico7 com efeitos de “palavra de ordem”.

Uma linguagem consiste num vocabulário e numa sintaxe, ou seja,


num conjunto de palavras dotadas dum significado e de regras para a
formação de proposições; tais regras indicam como se podem formar
proposições com palavras de diversas espécies. (...). como ‘princípio’
e ‘deus’, também a maioria dos demais termos especificamente
metafísicos não tem significado, como por exemplo, ‘Ideia’, ‘o
Absoluto’, ‘o Incondicionado’, ‘Infinito’, ‘o ser do ente’, o ‘não-ente’,
‘coisa em si’, ‘Espírito Absoluto’, ‘Espírito Objetivo’, etc. No caso
dessas expressões, [...] o metafísico diz que não se podem aduzir
condições empíricas de verdade. [...] As chamadas proposições
metafísicas que incluem tais palavras não tem qualquer sentido, nada
querem dizer, são apenas pseudoproposições. (CARNAP, 1983: 44).

Assim como há termos carregados de conotações quando querem se referir a


seres ou fenômenos externos, tais são impróprios pelo simples fato de não serem
denotativos, por apenas exporem estados internos, afetivos... O problema reside no
desejo de explicar algo externo por termos, categorias internas... daí o aspecto delirante
do pensamento mágico e do pensamento mítico: neles, não há a discriminação entre
externo e interno, conseqüentemente, entre objetivo e subjetivo, entre sensorial e
fantasioso8. Daí a equivalência entre tais termos e democracia, liberdade, direito,
progresso tecnológico... A diferença entre estes e aquele é que são menos delirantes,
pois estes apelam somente pela condensação semântica dos termos, e não pela
construção fantástica de conteúdos. A própria vagueza semântica e imprecisão do
significado são indícios, sinais de que o usuário de tais termos age de má-fé, pois o
convencimento que se dá por aqui não é por análise, mas por efeito poético das
palavras.
Apesar do termo metafísica9 comportar uma miríade de nuances semânticas,
veremos também seu aspecto heurístico, formador de articulações e categorias
explicativas. Por enquanto, estamos – Com Carnap – a considerar o aspecto pejorativo,
pernicioso do que se entende por metafísica.

(...). Que numa linguagem comum seja possível criar


formações lingüísticas sem sentido, sem ferir as regras da gramática, é
um sinal de que a sintaxe gramatical, do ponto de vista lógico, é

7
Gilbert Ryle, como um dos representantes da escola de Filosofia da Linguagem Ordinária
de Oxford, postulou as expressões ou categorias sistematicamente enganadoras, pelo seu viés
semântico inadequado para explicar um fenômeno denotativo.
8
Aqui cabe a clássica distinção proposta por Freud: princípio de realidade e princípio de prazer.
Em nosso estudo, tais termos inadequados e conotativos são gerados pelo desejo e não pelos critérios
metódicos do conhecimento.
9
Para Carnap, as expressões metafísicas são palavras absurdas mesmo quando santificadas
pela tradição e sustentadas com sentimentos. Conseqüentemente, a metafísica não passa de uma
especulação subjetiva, afirmações baseadas no sentimento, poesia, “teologia”; em suma, nenhum
conhecimento científico.
insuficiente. Se a sintaxe gramatical correspondesse exatamente á
sintaxe lógica, então não poderia surgir uma pseudofrase. Ora, sendo
as frases metafísicas pseudofrases, então elas não poderiam surgir
numa linguagem logicamente correta. A metafísica tem, portanto, sua
origem na falta de convenções suficientes para impedir o que não leva
a um conhecimento verdadeiro. Daí a enorme importância na tarefa de
construir uma sintaxe lógica. (OLIVEIRA, 2006: 77).

A função que cabe na utilização de tal termo (por ex.: democracia) é a massagem
egóica de uma “grande conquista social”: o poder do voto! Estúpido é quem aceita isso,
pois o “poder” é o conformismo de aceitarmos apenas a representação como
participação momentânea da subida ao pódio duma pessoa, e não da participação ativa
das tomadas de decisões sócio-administrativas da cidade em questão.
No tocante ao tema realidade social de Marilena Chauí, no texto supracitado,
temos a indicação da suposta independência dos pensamentos em face da peculiar
organização social da qual os pensamentos são erigidos. As categorias, significados e
também o alcance e permissão de articulações novas de pensamentos e idéias são
determinados – pelos menos em sua maior parte – pelo estrato social, e não pelo “gênio”
individual abstraído, ou seja, separado da arcada cultural, como querem comentadores
que defendem a independência quase absoluta do indivíduo em relação à sociedade.
Tomo como critério para discriminação se um determinado discurso é
ideológico, se e na medida em que os aspectos e fatores que estão em jogo numa
determinada avaliação e estudo, forem tomados como únicos determinantes. Nem é
somente 1) a práxis que modela e influencia a teoria, pois a teoria também modela e
condiciona a práxis; nem é só 2) a teoria que modela e influencia a práxis, pois a práxis
também condiciona a teoria.
Exemplo do 1º caso: a destituição semântica do termo democracia, na qual um
conceito enviesado e restringido de seu campo semântico furta-nos, ou pelo menos
dificulta-nos a possibilidade de pensarmos o problema da participação, de sua
qualidade, e não apenas em acertar o Candidato melhor.
Exemplo do 2º caso: a sujeição do trabalhador frente ao detentor dos meios de
produção é tal que o ideário, ou o inventário das justificativas dos mesmos
trabalhadores/produtores (como também dos burgueses/detentores) serão uma
racionalização10, um efeito, um produto das condições sensoriais e sociais. Se os
discursos diferem, mudam constantemente; os motivos são idênticos e estáticos.
Considero tais racionalizações como variações sobre o mesmo tema. Daí a idéia
de homologia entre música e discurso, ou mesmo entre infra-estrutura e superestrutura.
É como se organização mental fosse um imenso repertório de engendramento, de

10
Termo técnico utilizado na Psicanálise que designa um meio argumentativo que tenta
justificar uma dada condição ou aceitação ou postura. Os meios empregados são falazes e reproduzem a
falta de responsabilidade, ou pelo menos, tentam convencer-nos de que a pessoa teve um bom motivo
para agir assim, que não teve escolha: todo e qualquer discurso que se exima da responsabilidade
própria, colocando outro agente como causa ou responsável. Sigmund Freud cunhou esse conceito
como um dos mecanismos do aparelho psíquico; bem como Marcuse e Habermas utilizaram-no como,
respectivamente, na idéia de Razão Instrumental e Deformação Sistemática Comunicativa.
construções de idéias “diferentes” sob o mesmo princípio de regência, sob o mesmo
critério/intenção = desviar a causa própria para uma causa alheia = utilizar pretextos
acidentais quando os essenciais são evitados = reafirmar em palavras a sujeição no
trabalho manual. Funcionalmente, é um meio eficaz de diminuir nosso quinhão de
responsabilidade no porquê aceitamos e movimentamos tal engrenagem social.
A racionalização cumpre um vetor psíquico: o desejo de diminuir a ansiedade
duma situação conflitante, simplesmente “desaparecendo”, ocultando os conflitos, tais
quais os problemas são evitados no simples discurso do populacho: “Política, religião e
futebol não se discutem”. Se a função é psíquica, os meios são sociais. Se o desejo é
psíquico, a roupagem é social. Se a operatividade da construção argumentativa é
psíquica; os conteúdos de que se valem é social. Se conflito é sentido individualmente;
as condições para a resposta do mesmo são coletivas.
Em suma: se a resposta à ansiedade é individual, o estímulo ao conflito é
cultural.
Vimos que o 1º caso reporta-se do conceito para o ato. No 2º caso, é do ato para
as idéias. No fundo, o que difere em cada fenômeno, não é no exclusivismo da
determinação, mas no grau em que um fenômeno racionalizante é ou mais do conceito
para a sujeição, ou da sujeição, das práticas para as justificativas. Não é na
absolutização da direção das causas, mas na relatividade das mesmas. Não é na
unilateralidade da direção das causas, entre práticas e idéias, mas na interação, na
dialética constante entre o que considero uma: influência mútua entre infra e super
estrutura.
Máxima de minha Tese:

A racionalização está para o indivíduo assim como a ideologia está para a sociedade.
O que o discurso individual tem é homólogo ao discurso social em voga. Se os sonhos são
construções individuais, as racionalizações também o são... enquanto produções heterogêneas
de comunicação. Se os mitos são construções coletivas, as ideologias também o são... enquanto
reproduções homogêneas de comunicação. A situação externa é cenário, contexto e conteúdo a
ser manipulado pelo discurso individual (racionalização); a situação interna é ator, texto e
forma a manipular em variantes argumentativas sob a mesma defesa (tema ideológico) da
configuração sócio-econômico-cultural.

Elementos e atributos da Ideologia: Cabe às relações sociais serem implícitas em seus meios e
explícitas em seus fins. Ex.: no caso do exemplo da ideologia da “Democracia” = ser
implícito na fala (significado aludido) atribuindo um valor (significado induzido por
interpretação textual)

Significado induzido: desmedido à participação representativa para sobrepor-se e


substituir e ocultar o valor da participação nas tomadas de decisões sócio-econômico-
administrativas. Eficácia: destituir semanticamente para substituir e ocultar o
original. Ocultar a problematização do tema que somente os comandantes merecem
decisão, aos comandados o prêmio de consolação de voto representativo enaltecido
seu valor de maneira egóica o que é diminuído o valor da participação ativa.
Resultado: Não reconheço a desigualdade, logo não problematizo, logo não a penso!

Obs.: A condição de Democracia ativa passou, ou seja, é passado, pelo qual os


indivíduos estão apartados, separados, dissociados diacronicamente uma vez que é
necessária a possibilidade de acesso, um trabalho histórico-filológico para a
restituição semântica e as devidas implicações dessa retomada na possível mudança
do quadro atual com a participação ativa dos indivíduos.

Elementos e atributos da Racionalização: Cabe ao indivíduo ser explícito nos meios e


implícito nos fins. Ex.: no caso do exemplo da racionalização de “Política, religião e
futebol não se discutem” sendo explícito na fala (significante), justificando a tomada
de postura, ocultando como pano de fundo o propósito de renunciar à
responsabilidade de nossos atos (significado deduzido por interpretação contextual).

Significado deduzido: gerar argumentos sob o critério de resistência de reconhecer o


conflito e evitar a conseqüente problematização do mesmo. Eficácia: instituir um
provérbio (tido como) absoluto para resistir e renunciar ao quinhão de
responsabilidade social do indivíduo.
Resultado: Evitar e resistir à possibilidade de reconhecimento de nosso conformismo,
produção/reprodução prática e também no discurso “legitimador”. seja a produção
como mímesis (critério operativo) dos meios, seja a reprodução como mímesis
(critério operativo) da finalidade.

Obs.: De algum modo, tal conformismo e situação está presente nas consciências dos
indivíduos, sendo que tal memória, tal informação pode a qualquer momento vazar,
emergir para o consciente. Portanto, o discurso racionalizante mantém separado,
apartado, numa palavra: dissociado do consciente. Tal condição é atual e estamos
apartados, dissociados sincronicamente.

Todo o respeito portanto, aos bons espíritos que acaso habitem esses
historiadores da moral! Mas infelizmente é certo que lhes falta o
próprio espírito histórico, que foram abandonados precisamente pelos
bons espíritos da história! Todos eles pensam, como é velho costume
entre filósofos, de maneira essencialmente a-histórica; quanto a isso
não há dúvida. (Nietzsche, 2007: 18).

A invenção de causas e os fins são bons exemplos do oportunismo inumano uma


vez instalado o a-historicismo no discurso social em voga da mentalidade ou axiomas
capitalistas ou dogmáticos.

Na medida em que as forças reais, que explicam o processo de


surgimento de um acontecimento, permanecem ignoradas ou
escondidas, o historiador-ideólogo inventa causas e finalidades que
acabam convertendo a história numa entidade autônoma que possui
seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os
homens como seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da
realidade histórica e diante da idéias de história. (CHAUÍ, 2004: 77).

Postulo isso na base de que agimos de uma maneira, com determinados


resultados por tais ações e negamos (não a ação), mas os resultados, as implicações
dela, para que continuemos “felizes” e descompromissados de mudar, de agir
diferente. Só discursa diferente quem já tem coragem, propósito de agir diferente!
Em suma: ambos, racionalização e ideologia, cada qual com suas peculiaridades,
são motivados pelos mesmos critérios: Resistimos (ou historicamente como faz a
Ideologia), ou (ou psiquicamente como o faz a Racionalização).

(...) entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma


recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o
papel desempenhado pelo recalcamento, e isso pode ser demonstrado
não só nos neuróticos, mas também (de modo qualitativamente
idêntico) nas pessoas normais. (FREUD, 2006: 280 e 281 Vol. III).

(...) Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como
crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais
rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência,
no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação
psíquica”) (...). (Nietzsche, 2007: 47).

Para esquecermos precisamos de critérios operativos que definam regras gerais na


construção argumentativa. Se no primeiro esquecemo-nos de olhar para dados históricos
afastados por cronologia pelos quais não passamos; no segundo, evitamos rememorar
dados pelos quais passamos.

(...) a facilidade com que uma dada impressão é despertada na


memória depende (...) da atitude favorável ou desfavorável de um
dado fator psíquico que se recusa a reproduzir qualquer coisa que
possa liberar desprazer, ou que possa subseqüentemente levar a
liberação de desprazer. (FREUD, 2006: 281 Vol. III).

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência;


permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de
órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um
pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar
para o novo (...) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse,
espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da
etiqueta (...). (Nietzsche, 2007: 47).
A comodidade psíquica ou melhor, a atitude proposital de esquecer para não
entrar em contato com determinado conteúdo, ou ainda, por sabermos que os efeitos de
tal enfrentamento serão conflituosos, gerarão desconforto e uma certa dose de
desintegração egóica. A vontade negadora de alguma parte histórica (pessoal ou
coletiva) é uma intenção ou função desempenhada por tal mecanismo do aparelho
psíquico humano.

Assim, a função da memória, que gostamos de encarar como um


arquivo aberto a qualquer um que sinta curiosidade, fica desse modo
sujeita a restrições por uma tendência da vontade, exatamente como
qualquer parte de nossa atividade dirigida para o mundo externo.
(FREUD, 2006: 281 Vol. III).

A resistência como fenômeno de defesa (ainda que inadequada). Se a tomada de


consciência diacrônica permite estabelecer novas bases causais e com ela a decorrente
reposicionamento existencial face ao meio social, então a rememoração é condição
necessária de cura do estado de compulsão de esquecimento ou indiferença. A
substituição da negação pelos conteúdos reprimidos, resistidos ou evitados. A
reassociação do conteúdo dissociado do plano consciente:

Metade do segredo da amnésia histérica é desvendado ao dizermos


que as pessoas histéricas não sabem o que não querem saber; e o
tratamento psicanalítico, que esforça por preencher tais lacunas da
memória no decorrer de seu trabalho, leva-nos à descoberta de que a
tarefa de resgatar essas lembranças perdidas enfrenta certa resistência
que tem de ser contrabalançada por um trabalho proporcional a sua
magnitude. (FREUD, 2006: 281 Vol. III).

(...) O resultado do conflito, em vez da imagem mnêmica que seria


justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi até certo
ponto associativamente deslocada da primeira. (FREUD, 2006: 290
Vol. III).

Para sintetizar, predico o conflito interno sentido como mola propulsora para se
evitar as situações pelos quais desencadeam-se tal conflito. A supressão do conteúdo
ameaçador da paz intra-psíquica para regiões ocultas do plano consciente, como que
uma barreira (o esquecimento) para zelar pela comodidade do indivíduo; e a troca do
conteúdo histórico por outro, mas não aleatoriamente, mas, de algum modo correlato,
próximo.

(...). O processo que aqui vemos em ação – conflito, recalcamento e


substituição envolvendo uma conciliação o retoma em todos os
sintomas psiconeuróticos e nos fornece a chave para compreendermos
sua formação. Portanto, não deixa de ter importância que possamos
mostrar o mesmo processo em ação na vida mental de indivíduos
normais. (FREUD, 2006: 291 Vol. III).

Mudemos um pouco de tema. A importância que damos aos objetos e situações


serão defendidos, justificados e enfocados mediante ao tipo, à espécie de interesse que
temos em relação aos mesmos. Longe de insinuar que a comunicação é um vale tudo
que se pauta nas metas e prioridades de nossas ações, enfocarei que os diferentes
objetivos e prioridades salientam ou mesmo restringem o campo de concepção sobre um
determinado objeto, tema ou situação.

(...) costumamos dizer que uma montanha é real porque é uma coisa.
No entanto, o simples fato de que essa “coisa” possui um nome, que a
chamamos “montanha”, indica que ela é, pelo menos, uma “coisa-
para-nós”, isto é, algo que possui um sentido em nossa experiência.
(CHAUÍ, 2004: 20).

O ponto em questão aqui são as especificações, os predicados que a palavra


montanha adquire. É óbvio que no aspecto descritivo11 da montanha pode ter um
consenso, ou seja, uma definição necessária (e não contingente), que atinge aspectos
essenciais12 e não acidentais. Além do aspecto denotativo há ainda mais dois: o
conotativo13 e o prático-utilitário.
O prático-utilitário refere-se a todos as intenções que podemos ter em relação a
alguma coisa. Os desejos, ou seja, as visadas a que os objetos estão sujeitos são
atributos dum campo significativo que nem é descritivo-ontológico (resposta sensorial
dum indivíduo) nem qualitativo-modal (resposta emocional/estilístico dum indivíduo).
Tanto a finalidade quando produzimos algo, como o uso que faremos de tal produto
correspondem a este terceiro caráter do campo semântico a que um objeto pode estar
relacionado.
Vejamos a oportuna explicação da professora Marilena Chauí:

Suponhamos que pertencemos a uma sociedade cuja religião é


politeísta e cujos deuses são imaginados com formas e sentimentos
humanos, embora superiores aos homens, e que nossa exprime essa

11
Conhecido tecnicamente como denotação. Ela corresponde ou a uma definição do fenômeno
sensorial, ou a do fenômeno conceitual. Esta última é a definição que temos de uma idéia como: beleza,
justiça, arte, ciência etc. Se aquela descreve objetos, substantivos; esta descreve substantivos abstratos.
12
Apesar da gama de significados místicos que já adornaram este termo, utilizo-o aqui como
aquilo que é fundamental – enquanto descrição – para que uma coisa seja o que é... daí seu caráter de
necessidade semântica como ontologia. A separação entre essencial e acidental é uma das grandes
conquistas epistêmicas e, como veremos, uma importante arma contra o discurso ideológico.
13
Corresponde a uma definição do fenômeno subjetivo, ou seja, das idéias de qualidades,
sentimentos: adjetivos e advérbios de modo. É uma resposta do sujeito, seja em sentimento, seja no
modo como se executa uma ação (o estilo, referente ao como agimos). Tal aspecto é subjetivo se e na
medida em que a definição é uma projeção tanto daquilo que sentimos, como da maneira como
fazemos algo. Ambos podem ser projetados nos objetos. Discriminar o conotativo do denotativo é outra
façanha científico-filosófico altamente eficaz nos argumentos falaciosos... inclusive de cunho religioso e
político.
superioridade divina fazendo com que os deuses sejam habitantes dos
altos lugares. A montanha já não é uma coisa: é a morada dos deuses.
(CHAUÍ, 2004: 20).

Com esse exemplo, infiro que tal predicado em relação à montanha é


conotativo, pois é fruto da imaginação humana o aspecto de ‘morada dos deuses’, pois
nada há sensorialmente que possamos afirmar isso... mesmo a morada dos demônios ou
quaisquer ‘entes’ gerados pela fantasia. A montanha não é somente uma coisa, é
também, para o grupo social em questão o lar dum panteão mítico específico. Caso o
predicado fosse: elevação em relação ao plano, formado em sua maior parte por
rochas, ou mesmo produto da erupção de um vulcão, de cujo magma esfriou e formou a
montanha, teríamos um exemplo nitidamente denotativo, uma vez que os predicados
são traduções em símbolos (morfemas, palavras) da experiência sensorial como um
todo. Falta agora um significado prático-utilitário.

Suponhamos, agora, que somos uma empresa capitalista que pretende


explorar minério de ferro e que descobrimos uma grande jazida numa
montanha. Como empresários compramos a montanha, que, portanto,
não é uma coisa, mas propriedade privada. (...) Ora, sendo propriedade
privada capitalista, só existe como tal como lugar de trabalho. Assim,
a montanha não é coisa, mas relação econômica e, portanto, relação
social. A montanha, agora, é matéria-prima num conjunto de forças
produtivas, dentre as quais se destaca o trabalhador, para quem a
montanha é lugar de trabalho. (CHAUÍ, 2004: 20).

Este é um ótimo exemplo de significado prático-utilitário. E, mesmo na visão, ou


melhor, na visada capitalista, a montanha é lucro para o empresário, trabalho para
empregado e matéria-prima para ambos. Ora, no aspecto denotativo, apesar das
definições diferirem quanto ao grau de profundidade do conhecimento da montanha, o
que difere no aspecto prático-utilitário é a posição dos agentes! Posição? Sim, a posição
social numa hierarquia vigente num grupo social específico, sendo a diferença – ainda
que simultânea – imputada ao papel social cumprido pelo ator social.
No exemplo anterior, referi-me ao aspecto conotativo como projeção do
imaginário e a conseqüente reverência das pessoas em face da montanha (como morada
dos deuses). Aqui temos dois aspectos: as imagens geradas pela fantasia (causa do
atributo morada), e seu desdobramento, sua implicação, seu efeito: reverência,
valoração perante a montanha. Ainda que a magia e a religião tenham em comum o
caráter mágico que antecede os sentimentos de valor, temor, terror, reverência..., é
contingente, ou seja, é acidental, pois o essencial na conotação é a qualidade que do
sujeito, sua resposta emocional/valorativa atribuída ao objeto. Então, para remediar a
explicação insuficiente de minha parte, selecionei um exemplo apenas deste último
caractere: o aspecto emocional. Tal é explícito nas artes, pois o artista trabalha seus
sentimentos e associações através da matéria-prima ou aspectos do mesmo. A diferença
entre o encantamento mágico-religioso e arte é de tipo e não de grau.
Se naquela temos uma reação emocional/valorativa alimentada, causada pelo
fruto da imaginação; na arte temos a manipulação dum objeto ou fenômeno para
promover um desenvolvimento da sensibilidade, da subjetividade, em sua
preponderância afetiva, ou seja, maior que a cognitiva. Atentemos então para o exemplo
artístico que elabora o sensível com vistas (visada, intenção) para dentro, para sua
natureza subjetiva que anseia por ser estimulada, ser desenvolvida ou atualizada:

Suponhamos, agora, que somos pintores. Para nós, a montanha é


forma, cor, volume, linhas, profundidade – não é uma coisa, mas um
campo de visibilidade. (CHAUÍ, 2004: 20).

O tipo de visada do artista-pintor para com a montanha é de fruição estética, ou


seja, de deleite, de jogo de formas, cores, brilho, contraste (luz e sombra), resultando
numa apreciação14, numa síntese, numa configuração específica. Tal exemplo é mais
adequado, pois aqui está em jogo o que está diante de nós, sensivelmente, e não
imaginariamente. Nesse aspecto, o mágico-religioso e arte têm em comum o
encantamento valorativo15; porém, reside a distinção entre eles ou na utilização do
imaginário como substituto sensível (religião e magia), ou na utilização do próprio
sensível (arte), seja natural, no caso da montanha, seja cultural, o quadro pintado como
modelo e produto inspirado pela montanha.
Agora que discriminamos os aspectos conotativos, voltemos uma vez mais nosso
foco para o prático-utilitário. Concluímos que o campo semântico guarda os três
aspectos: o descritivo (ciência e filosofia), o conotativo (religião e magia) e o prático-
utilitário (finalidade, uso, emprego, instrumentalidade). Marilena Chauí chama de
campo significativo a todos esses predicados. Mas afinal o que o autor deste texto
deseja afirmar? Se o estudo é Ideologia, o que tem a ver a semântica, ou mesmo seu
campo? Haverá uma conexão entre ideologia e significados em sua tríplice divisão
específicas? Voltemos à Filósofa em sua síntese explicativa:

O que dissemos sobre a montanha, podemos também dizer a respeito


de todos os entes reais. São formas de nossas relações com a natureza
mediadas por nossas relações sócias, são seres culturais, campo de
significações variadas no tempo e no espaço, dependentes de nossa
sociedade, de nossa classe social, de nossa posição na divisão social
do trabalho, dos investimentos simbólicos16 que cada cultura imprime
a si mesma através das coisas e dos homens. (CHAUÍ, 2004: 21).

14
Tecnicamente chamada de fruição. Corresponde ao fluir dos sentimentos perante o estímulo
perceptivo das mais variadas formas; à resposta sentimental, estética, subjetiva oriunda da natureza
sensível, mas que a ultrapassa.
15
Defino tal expressão como um exagero na resposta de cunho afetivo. Em suma, uma hiper-
valoração: uma Hipérbole Axiomática.
16
Utilizarei como sinônimo a expressão: visada sígnica. Qual o motivo? Visada como intento,
como meta, propósito direcionados; sígnico, de signo, pois símbolo, na semiótica, refere-se apenas ás
palavras, enquanto signos são mais amplos por conterem em seu bojo semântico a tríplice discriminação
promovida por Charles Sanders Peirce: Símbolo, Ícone e Índice.
Tomei a liberdade de colocar em negritos dois conceitos centrais: cultural como
produção humana, ultrapassando o dado imediato (não mediado por símbolos) e
posição como uma espécie de sintaxe da organização social, tendo como resultante as
diferenças propositais (visadas), sistematicamente dispostas e manipuladas, seja nos
papéis sociais vigentes, seja no ideário, nos discursos ‘legitimadores’ de tal status.
A conexão entre semântica e ideologia, entre sentido e discurso, entre posição
social e “justificação” encontra seu elo na unidade entre predicados e objetos, entre
indivíduo significador e objeto significado, entre a diversidade de intenções, investidas
e as implicações de tais práxis. Se na práxis há o momento de determinação, na direção
da atividade (sensorial) para pensamento, das práticas para as idéias, então, o que
podemos entender por ontologia é mais restrito, pois está no âmbito denotativo; sendo
que os dados culturais, as visadas sígnicas remetem-nos a um grau de complexidade que
ultrapassa em muito o simplismo de definições de senso-comum. Estudarmos e
investigarmos o fenômeno ideológico, requer uma semiose, ou seja, uma
interdisciplinaridade, como instrumento, com suas categorias explicativas. Sejam nos
domínios religiosos ou político-econômicos, a ênfase proposta por mim é considerarmos
todo e quaisquer expressões culturais17 como objetos de estudos, como um dentre os
demais fatores a configurarem causas, motivos e possibilidades de mudança do quadro
atual.
Como Habermas, atribuo um alto juízo de valor para a ação comunicativa, uma
vez que a simples “coisa” não está mais sozinha: está envolta, submersa, rodeada e
adornada com significados, com sentidos alheios à sua natureza, a saber: a conotações
(as duas explicadas) e as prático-utilitárias (investidas ou visadas). Se o universo sígnico
é o conteúdo maior que o denotativo, então faz-se mister explorarmos todos os
elementos que compõem causas (diretas e indiretas) do pensar, sentir e agir humanos.
Se os estudo das resistências são fusões de discursos internos e externos –
respectivamente psíquicos e sociais – então racionalização e ideologia são dois
momentos do mesmo processo, dois momentos da mesma unidade entre práxis e
discurso, entre desigualdade social e posição social, entre eficácia mágica na religião e
eficácia social no discurso institucional da ordem vigente (ambos utilizam recursos do
sentido, da valoração e legitimação dum intento de poder estatal, midiático, cultural...).
Vimos o quanto é importante o conhecimento da história, das sucessões dos
fatos como construtores semânticos, como origem e transformação como diacronia do
sentido atribuído à uma idéia ou prática. Com isso evitaremos cair na redução de
sentido18 advinda do discurso social (ideologia), visando delimitar, restringir o que
podemos pensar sobre algo que foi substituído em significado e valor. Também salientei
a observância do discurso individual (racionalização), visando através da variação
discursiva manter o mesmo intento19 de desviar o olhar da análise, o foco de nossas

17
Portanto sígnicas.
18
A destituição semântica explicada na página 05 deste livro.
19
Neste caso, o desejo de diminuir a ansiedade gerada pela culpa de nossa contribuição do
status quo. O problema aqui é pelo modo inadequado em que tal defesa psíquica se atém. As
implicações de tal movimentação são a ‘justificação’ ou ‘legitimação’ da imobilidade social
transformadora.
atitudes, de nos eximir de responsabilidade de nossos atos que podem retro-alimentar a
cadeia ideológica de dominação e desigualdade de oportunidades. Por este motivo
toquei na questão da resistência, pela repressão do conteúdo mnêmico daquilo que
fazemos. Aqui também há um evitamento duma história, só que pessoal. Aqui, a
sincronia do sentido que se pretende ocultar, reprimir.
Se na ideologia prevalece a interdição alheia à história, em seu âmbito coletivo –
na racionalização prevalece a auto-interdição – história, em seu âmbito individual.
Outro ponto importante: a questão do essencial e acidental. Qual a conexão de ambos
para nossa investigação? Se Marx e Engels afirmaram como um dos recursos
ideológicos a inversão entre causa e efeito, quando afirmaram que os ideólogos e
filósofos especulativos põem o mundo de cabeça para baixo, afirmo que substituir o
essencial pelo acidental é outro recurso no critérius operandis ideológico-
racionalizador!
Tomar a montanha num único aspecto significador é incorrer em unilateralidade
explicativa, seja ela econômico, religiosa, científica ou filosófica. Justifico a inserção da
tríplice divisão semântica, principalmente a prático-utilitária, como o leque de
variedades discursivas, associado a cada interesse vigente. O aspecto acidental pode ser
tomada como essencial, como único, como absoluto, quando na verdade, na maioria das
vezes é múltiplo, relativo (em relação a) e, portanto acidental.
Se o essencial numa definição deve guardar o essencial, seu fundamento, com
natureza necessária; o acidental, por sua vez, deve guardar em seu bojo na definição a
natureza contingente. Como tal, são os interesses de grupo de toda utilidade, uso este
que pertence tão somente aos indivíduos. O aspecto artístico dificilmente é instrumental,
porque tem um fim em si mesmo. Ora, aquilo que é fim em si mesmo é valorizado pelo
processo. Por outro lado, aquilo que é um instrumento – um meio para adquirir um fim
– é valorizado pelo resultado final, pelo produto. Se no primeiro há a fruição no e pelo
fazer, no segundo há a satisfação somente em seu efeito final.
É notório, caras leitoras e leitores, o caráter ético da semântica e da
comunicação? As implicações éticas pertinentes tanto às práticas (e seu contexto) como
aos argumentos (e seus textos, sejam eles intralingüísticos ou extralingüísticos)? Nossos
axiomas são mantidos tanto por práticas como por ações comunicativas! Por isso o
primado do sentido, ou melhor, dos sentidos possíveis, tanto atuais como potenciais,
tanto os vigentes como os por vir. Uma práxis revolucionária não impõe um único modo
de manifestação, pois se o fizer será ideológico, seja pela unilateralidade, dos momentos
como unidade, seja pelo conteúdo veiculado que merece análise e crítica, antes de
utilizado.

A história é práxis (como vimos, práxis significa um modo de agir no


qual o agente, sua ação e o produto de sua ação são termos
intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros, não sendo
possível separá-los). (CHAUÍ, 2004: 23).

A avaliação humana só é completa quando o ser-histórico como identidade


coletiva, e o ser-histórico na psicobiografia como identidade pessoal tiverem acessos.
Tal acesso é condição necessária, mas muitas vezes insuficiente. É por isso que
oferece-nos os critérios que toda e qualquer ideologia pode ter, variando apenas de
conteúdo, mas não de intenção, de interesse, e variando bem menos de recursos
operativos, tais como: inversão causal, unilateralidade, destituição semântica,
substituição da essência pelo acidente, a ocultação da intenção de maneira sistemática
como um modo de despistar os indivíduos com a suposta e hipócrita neutralidade justo
modo de seleção de pessoas...
Como quero caminhar junto com minhas leitoras e leitores, exponho apenas
estes, que já foram explicados e levemente aprofundados. E os demais? Por questão
didática, aparecerão mediante a análise das citações, suas implicações e as possíveis
conexões entre disciplinas afins das Ciências Humanas em geral. Vimos também, para
avançarmos um pouco mais, que a distorção, inversão, substituição e mesmo exclusão
(abstração) são meios, operações realizáveis com conseqüências ideológicas.
Quando estudamos a questão, ou melhor, ao problematizarmos a suposta
unilateralidade causal, ou seja, na determinação unidirecional ou entre Ação e
Pensamento ou entre ideias e práticas, foi com o propósito de – e de propósito! –
perscrutarmos os diversos fatores engendradores, geradores de subterfúgios20 com
finalidade de meios, de instrumentalidade argumentativa21.
Agora, retornemos ao tópico histórico, pois ele é fundamental para a articulação
do pensamento, pra a construção de nosso senso identidário, seja mais individual dos
conteúdos reprimidos, seja mais coletivo dos conteúdos não vivenciados por nós, mas
que fazem-se presentes em seus efeitos: econômicos, institucionais, intersubjetivos...

É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para


compreender os conteúdos e as causas dos pensamentos e das ações
dos homens e por que eles agem e pensam de maneiras determinadas,
sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou de
transformá-las. (...), de compreender a própria origem das relações
sociais e de suas diferenças temporais, em uma palavra, de encará-las
como processos históricos. (CHAUÍ, 2004: 22).

Espera aí! “Encará-las”? Será que nossa Filósofa sugere a resistência de nossa
parte, em admitirmos os dados culturais como processo? E assim substituirmos a idéia
rígida de coisa? De dado cultural que é visto como natural e, por isso, “impossível” de
ser transformado? Se ter Consciência é estarmos cientes das relações22, então as
relações sociais vigentes – como tudo o que é cultural – foram construídas, montadas,

20
Ou tecnicamente chamado por Engels e Marx de ESCAMOTEAÇÃO.
21
Tecnicamente Falácias na Lógica; Estilística na Gramática; Razão Instrumental por Herbert
Marcuse; no âmbito individual Racionalização por Freud; Fraseologia por Engels e Marx;
Pseudoproposições por Rudolf Carnap; e, finalmente, por Comunicação Sistematicamente Elaborada
de Encobrimento Telésico na Gnosiologia desenvolvida por Clayton Carrasco Ruiz.
22
Consciências das relações é um termo vago. Contudo, as associações ocorrem por
internalização, por articulação do pensamento de um contexto específico. Se falta-nos relacionar algo,
então nosso entendimento será lacunar, justamente porque faltaram elementos que compuseram
(história coletiva) e que compõem (história individual).
num percurso longo e que atualmente ressoa como efeitos, como uma dada organização
social, com uma específica estrutura sócio-econômico-cultural, com tendências a
explorarmos alguns temas e aspectos e a negligenciarmos outros, a valorarmos
conteúdos singulares e não critérios operativos como respeito à lógica, à semântica, à
sintaxe, às inferências, ao que pode ser hipótese, ao que é necessário...
Todas essas questões refletem diretamente em nosso psiquismo, em nossos
hábitos, em nossas explicações das concepções de mundo e da hierarquia de valores
atual. Quando comparamos nossa situação com as precedentes, o primeiro sentimento é
de espanto. Espanto pela construção disso tudo. Que o estado atual foi configurado
assim por determinados interesses e será reconfigurado por outros interesses (caso
tenhamos coragem e iniciativa para assumirmos a responsabilidade da mudança).
Vimos com Carnap, aquelas palavras carregadas de vagueza semântica ou
mesmo polissêmicas. Um bom exemplo retirado da antropologia: “A colonização é
necessário para levar o progresso para povos não civilizados, atrasados...” Quem já não
ouviu ou leu que as colonizações tiveram durante décadas a justificativa de que somente
assim levaríamos o progresso para os assim chamados povos primitivos. Reparastes que
coloquei o “o” em negrito e itálico? Mas por que fiz isso? Explicar-vos-ei:

Assim como a justiça, como substantivo abstrato, quando precedido pelo artigo
‘a’ pode ser imaginado como algo independente, como algo que tem vida própria;
também o progresso recebe sentido similar: se eu usasse um progresso, entenderíamos
que há um progresso específico dentre outros... bem, como chamar alguém de “uma boa
pessoa em relação a turma”, é estratosfericamente diferente de chamarmos de “ele é o
bom da turma”. Qual a diferença?

1º caso: a pessoa é boa dentre as demais, ou seja, além dela pode haver outras.

2º caso: “ele é o bom da turma” denota um aspecto conotativo, pejorativo. Ora, ele é o
melhor da turma, ou o único bom dentre eles, pois anteceder o substantivo abstrato bom
com uma artigo “o”, faz com que mude o significado.

Entretanto, qual o problema disso? Na Grécia antiga, temos a Diké, Deusa da


Justiça. Interessantemente ela só aparece numa sociedade dotada de Instituição Jurídica.
Analogamente temos Hefaistos, Deus da forja. Curiosamente esse Deus aparece no
momento de domínio técnico da metalurgia, ou seja, da manipulação de metais
derretidos para a confecção duma diversidade de utensílios: espada, escudo, facas,
panelas, etc.
Ok. E daí? Ora, é possível falarmos de Deusa da justiça antes do
desenvolvimento legislativo, punitivo e ajuizador? É possível falarmos de Deus da
Forja antes do domínio técnico da conhecida Idade dos Metais? Não! Mas, para uma
consciência mítica, tal crítica, tal condição de abstração não é pensada.. e até evitada.
Para que nossa imaginação23 construa Deusas e Deuses, é necessário partir
dalgum conteúdo conhecido. No período histórico mais rural, tivemos muitos mais
divindades animais. No período mais urbano, prevalece as divindades antropomórficas.
Isso é uma coincidência? Somente uma pessoa ingênua e dogmática não notaria a
conexão, ou seja, a associação entre sacralização da justiça pelo ‘ente’ Diké, e a
sacralização dos metais na vida cotidiana pelo ‘ente’ Hefaistos!
Ah... a geração de mitos não sai dum vazio! Sim, ela provém da vida vivida,
para ser alterada, hipostaseada, separada, abstraída da realidade sensível como uma
espécie de ser independente. Ora, o que faremos com tais entes, seu rosto, sua altura,
não sabemos, há uma liberdade de composição para a fantasia humana. Contudo, tal
liberdade é limitada, pois ninguém consegue gerar um ente com um nome, uma alegoria
que ainda não existe. Tanto justiça como forja, enquanto nomes foram paridos pelas
práticas sociais: uma pelo julgamento oficial duma pessoa considerada culpada, de
delito... outra, pela fornalhas com mais de 500ºC que aquece o metal em ponto de fusão,
que é usado numa fôrma para dar a forma que desejarmos, projetarmos.
E para tudo isso, somente um grau de complexidade social, de forças produtivas,
agricultura e cultura o suficiente para a dedicação para tais fins.
Voltemos agora a Carnap. Há termos que o simples empregos denotam uma
certa má-fé, uma crendice ou pensamento mágico-religioso ou ‘metafísico’. São eles:
alma, espírito, absoluto... Ora, mas o que tem a ver o termo progresso?
Fora usado como pretexto para dominar, saquear, estuprar e terem mão de obra
escrava barata. Sem falar no extrativismo predatório. Quando tais colonizadores
prometeram progresso, eles cometeram uma elipse24. Não afirmam, mas fica
subentendido que o progresso por eles profetizados é tecnológico.
Tais colonizadores nunca tocaram na questão de qualidade de vida, de saúde, de
dedicação de atividades artísticas para o desenvolvimento da sensibilidade.. ah, somente
para eles, pois para os escravos colonizados somente trabalho! Na promessa de
progresso tecnológico, oferecem produtos, utensílios, só que os que trabalham ganham
abaixo do valor que deveriam comprar. Outra coisa, a justificativa de progresso não
conta com progresso, melhoria na qualidade intersubjetiva, ou seja, das relações sociais.
Pelo contrário, a produção capitalista aliena o indivíduo e alimenta a concorrência e
competição. Mas como ocultaram o tipo de progresso, então só vale o tecnológico:
“foda-se os demais”, pois como capitalismo predatório, o valor é o lucro e não o ser
humano.
Atenção! O emprego do artigo “o” que antecede progresso confere a este um
caráter de unicidade, de único, de absoluto. Se tivesse o exemplo: um progresso,
automaticamente sentiríamos o significado de que pode haver mais de uma espécie de
progresso. Contudo, se sutilmente (para não comunicar ardilosamente) construo um
sintagma = o progresso, confiro ao progresso não especificado, um status de

23
Literalmente: imagens em ação, a ação de gerar imagens através dum substrato, dum
modelo.
24
Tecnicamente conhecido como uma pressuposição que não é mencionada, mas ocultada. Um
progresso pode ser: cognitivo, afetivo, de técnica etc.. Falta uma especificação de qual progresso eles se
referem. No nosso caso estudado é: progresso tecnológico. Unicamente tecnológico!
exclusividade, análogo ao que ocorre com a Democracia, quando na transparência
deveria haver uma democracia... uma entre outras e não a única!
Nossa, o que um simples artigo pode estimular um sentido definido, com
propósito definido e feito propositalmente de propósito, para impedir o ouvinte ou leitor
de pensar as especificações, pois oferecem uma expressão que, ela própria delimita o
que podemos pensar: apenas um sentido, apenas um aspecto possível.
Mais a frente veremos a distorção e a abstração como próprios do mecanismo
operativo, do recurso ideológico no discurso. Se no pensamento mítico separamos algo
que é conteúdo social e se destaca do mesmo para ser trabalhado pela fantasia coletiva a
que chamamos de mito; de maneira análoga, procedemos assim ao emitirmos “o
progresso” destituindo de humanidade grupos sociais menos desenvolvidos
tecnologicamente, mas não necessariamente menos desenvolvidos nas relações
humanas! Aqui fica uma mensagem subliminar: Povos menos desenvolvidos merecem
ser explorados! Quem detém mais força de ataque tecnológico não respeita o espaço
alheio, pois o que vale é a força!
Olha só quanta responsabilidade temos ao simples acatar da frase pseudo-
justificativa! A distorção não é apenas a inversão causal, é também a elipse e seus
efeitos. Elipse como causa da ocultação, da especificação, e o artigo que precede uma
construção que fornece o sentido de univocidade, de absolutismo. Progresso é sempre
bom? O das relações humanas, intersubjetiva, artística sim! Mas qual será o juízo de
valor para o progresso dos colonizadores? Sem a análise lingüística ficaria mais difícil
situarmos onde está o problema, onde está o abuso na comunicação, bem como
demonstrar a intencionalidade do agente. Uma interpretação do telos25, só é possível,
quando diversos fatores explícitos (como o artigo e a elipse), associam-se com fatores
implícitos (o significado unívoco, absoluto e omissivo da intenção).
É omissivo por progresso ser bom, ser um lugar comum, ser significado como
bom em si mesmo, isoladamente, o que uma análise do conteúdo promove outro juízo
de valor: a vantagem e desvantagem não está no progresso geral, mas no progresso
específico, donde também conta a maneira, o modo como é executado, a quantidade etc.
Não apenas os fins devem ser melhores, mas os meios também. Algo que não ocorreu e
não ocorre na colonização. Vimos então que a utilização do artigo que antecede um
adjetivo ou substantivo abstrato é um ranço, ou melhor, uma herança mítica de
explicação. O objetivo de tal construção é o impacto, a aceitação automática pela
confusão (com fusão / presença de fusão) daquilo que necessariamente seria bom se
fosse melhoria da qualidade das relações humanas, mas que contingentemente seria bom
no caso de um progresso específico como a tecnologia.
Se Engels e Marx ouvissem tal argumento, denominá-los-iam de
escamoteação26!
Também as relações familiares, pensamentos e divisão social em classes são
outros fatores condicionados pelo meio cultural e condicionantes do mesmo, pois como
vimos no conceito de práxis, são momentos dum processo, sendo uma interdependência

25
Palavra de origem grega: meta, finalidade, intenção, propósito, interesse.
26
Ou seja, simultaneamente omissão e pretexto, subterfúgio.
das partes em relação ao todo. O próprio tratamento isolado da questão já é um indício
ideológico... Nisso temos abundantes exemplos em teorias “científicas” que dividem o
processo e exclusivisam um ou outro fator como causa necessária, quando na verdade a
causa é múltipla (não unitária) e ainda sujeita a uma hierarquia no grau de
determinações.

O exemplo dos colonizadores e seu discurso pseudo-legitimador têm raízes


noutros fatores que ainda não mencionei. Dou a palavra à professora Marilena:

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de


instituições determinadas, os homens produzem idéias ou
representações pelas quais procuram explicar e compreender sua
própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o
sobrenatural. (CHAUÍ, 2004: 23).

Ideias, representações... seriam elas independentes da arcada social? A própria


pergunta se é ou o pensamento que afeta e determina as ações, ou as ações que afetam e
determinam os pensamentos já seria uma pergunta de cunho ideológico, uma vez que os
dois momentos são recíprocos, dialéticos.
Assim como para desmascararmos os interesses subliminares que estão latentes
no discurso é necessário um aprofundamento do pensamento para trazer à tona os
interesses e mecanismos operativos ideológicos, ou seja, vamos do conceito para o
interesse e mecanismos argumentativos; há também o movimento na direção oposta: é
necessário o conhecimento histórico (nas duas acepções explicadas!) para as causas
determinantes do que pensamos e agimos. É notório da Sociologia do Conhecimento o
apelo ao estudo da configuração sócio-econômico-cultural para o vislumbre causal-
determinístico27 de tal situação para as mentalidades.

A principal tese da Sociologia do Conhecimento é que existem modos


de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente
enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais. Realmente, é
verdade que só o indivíduo é capaz de pensar. Não há entidade
metafísica alguma tal como uma mente de grupo que pense acima das
cabeças dos indivíduos, ou cujas idéias o indivíduo meramente
reproduza. Não obstante, seria falso daí deduzir que todas as idéias e
sentimentos que motivam o indivíduo tenham origem apenas nêle, e
que possam ser adequadamente explicados tomando-se unicamente
por base sua experiência de vida. (MANNHEIM, 1972: 30).

(...) O estudo das crenças que foram consideradas objetivamente


fundamentadas, relativas a verdades eternas e universais, fornece os
elementos de uma nova ciência que recebeu o nome de sociologia do
conhecimento. (PERELMAN, 1997: 272).

27
Ou pelo menos condicionante.
Apesar da sistematização de Karl Mannheim e Max Scheler, há autores que
tributam a Marx e Engels um primeiro impulso e desenvolvimento da Sociologia do
Conhecimento, bem como da Psicologia Social, ambas as disciplinas afins e
interdisciplinares... próprio de pensadores e pensadores que não se mutilam na análise e
uso de categorias explicativas, como seria de se esperar numa sociedade na qual a
divisão social do trabalho manual e teórico é um imperativo, muito mais que numa
necessidade de síntese.

O hegelianismo, ao insistir no caráter dialético do saber, permitiu


esclarecer o desenvolvimento imanente do conhecimento e o
condicionamento histórico das ideais, mas foi sobretudo apenas depois
de Marx que foi concedida uma atenção crescente à influência do fator
social sobre a determinação do pensamento.
A sociologia do conhecimento pode ser definida como “a ciência da
determinação do saber e do conhecer pela existência social”.
(PERELMAN, 1997: 293 e 294).

Na medida em que o intelectual, para Mannheim, deve libertar-se das


perspectivas particulares de seu grupo, ele esforçar-se-á por ter
exigências de objetividade que transcendem as limitações deste
último. (PERELMAN, 1997: 300).

O mecanismo da distorção enquanto inversão é explanado pelo jovem Sociólogo


e Filósofo da Escola de Frankfurt, na Alemanha:

(...), intencionalmente, a abordagem da Sociologia do Conhecimento


não parte do indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do
filósofo, prosseguir então diretamente até às alturas abstratas do
“pensamento em si” 28. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento
busca compreender o pensamento no contexto concreto de uma
situação histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o
pensamento individualmente diferenciado. (MANNHEIM, 1972: 31).

(...) A própria idéia de razão, concebida no pensamento clássico como


relativa a estruturas invariáveis, independentes de qualquer
desenvolvimento histórico e social, não passa de uma abstração: a
única razão real, concreta, é uma razão encarnada. (PERELMAN,
1997: 272).

Pensamento em contexto é idéia situada, condicionada, com as devidas:


categorias explicativas, interesses de grupo, prioridades, desejos e concepção de mundo.

28
Expressão sinônima de “pensamento puro”. Ah, a nota de rodapé é minha.
Assim, quem pensa não são os homens em geral, nem tampouco
indivíduos isolados, mas os homens em certos grupos que tenham
desenvolvido um estilo de pensamento particular em uma interminável
série de respostas a certas situações típicas características de sua
posição comum. (...) O indivíduo se encontra em uma situação
herdada, com padrões de pensamento a ela apropriados, tentando
reelaborar os modos de reação herdados, ou substituindo-os por
outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desafios
surgidos das variações e mudanças em sua situação. (MANNHEIM,
1972: 31).

O postulado dessa nova disciplina, segundo os próprios termos de


Maquet, é de que “o conhecimento humano não é determinado
unicamente, nem por seu objeto, nem por antecedentes lógicos. O
postulado indispensável nesse sentido é que, se não se houvesse
reconhecido, (...), certa permeabilidade do conhecimento aos fatores
extra cognitivos, ninguém teria tido a idéia de torná-los objeto de um
estudo particular”. (PERELMAN, 1997: 293).

Ora, ora, ora... olha aí a nossa posição novamente.. posição essa conferindo
conteúdos, tendências, metas, olhares, valores... todos eles: comuns ao grupo em
questão.

(...) na nossa opinião seria um erro considerar a realidade, a realidade


social, como uma corrente unitária. Se dentro da história das idéias é
um procedimento muito indiferenciado tomar as épocas como
unidade, é um erro igualmente grande conceber a realidade subjacente
ao processo ideológico como uma unidade homogênea. (...); na nossa
própria sociedade, a estratificação pode ser melhor descrita como
estratificação de classe. E a dinâmica global da sociedade é uma
resultante de todos os impulsos parciais emanados desses estratos. A
primeira tarefa, então, será descobrir se há uma correlação entre as
posições intelectuais vistas em imanência e as correntes sociais
(posições sociais). A descoberta dessa correlação é a primeira tarefa
específica da Sociologia do Conhecimento. (MANNHEIM, 1972:
70).

O olhar da nossa filósofa é similar:

(...) Em Sociedade divididas em classes (e também em castas), nas


quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações
ou essas idéias e representações serão produzidas e difundidas pela
classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico,
social e político. (CHAUÍ, 2004: 23).
As condições de produção são garantidas se e na medida em que a reprodução
estiver a cargo não apenas da classe dominante, mas de seus subordinados. Esta é a tese
de Louis Althusser com seu Aparelhos Ideológicos de Estado29, na qual os próprios
agentes encarregam-se de reproduzirem o ideário Estatal, reforçando assim a
manutenção do status quo através de práticas e discursos de classes não dirigentes mas
ou tão ou mais eficazes quando comparados aos agentes ideológicos primários.

(...) Não se confrontam os objetos do mundo a partir de níveis


abstratos de uma mente contemplativa em si, nem tampouco o fazem
exclusivamente enquanto seres solitários. Pelo contrário, agem com ou
contra os outros, em grupos diversamente organizados, e, enquanto
agem, pensam com ou contra os outros. (...) A direção dessa vontade
da atividade coletiva de transformar ou manter é que produz o fio
orientador para a emergência de seus problemas, seus conceitos e suas
formas de pensamento. (MANNHEIM, 1972: 31 e 32).

Entre a tradição, a reforma e a revolução estão muito mais o interesse grupal do


que a investigação e tomada de decisão do indivíduo. Apesar disso, a capacidade de
solucionar problemas, colocar as questões, problematizar e agir, dependem mais
daquela individualidade que gradativamente toma certo grau de independência para
auto-afirmar-se. Simultaneamente, se o desenvolvimento humano: motor, afetivo e
intelectivo dependem de nosso filiação e proveito dum grupo específico que supra as
motivações, cuidado e treino sociabilizador, será no mesmo seio social que desagarrar-
nos-emos do mesmo para ultrapassarmos os hábitos de práticas e pensamentos
ideológicos, com o intuito de atingirmos a atualização do potencial humano. Entretanto,
para isso é necessário compreendermos e estudarmos nossa situação no meio social, o
que requer tanto motivação, valores, como também um íntimo conhecimento dos
mecanismos operativos discursivos e das implicações das práxis se e na medida em que
correspondem às promessas e anseios de desenvolvimento igualitário, ou pelo menos
próximo disso.
Quanto aos mecanismos comentei alguns. Agora no que tange às funções,
voltemos a palavra à Marilena Chauí:

Por esse motivo, essas idéias e representações tenderão a esconder dos


homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a
origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação
política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia.
Por seu intermédio, os dominantes legitimam as condições sociais de
exploração e dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e
justas. (CHAUÍ, 2004: 23 e 24).

29
Em momento mais oportuno, explorarei tal autor e as implicações comunicativas da
reprodução ideológica.
Ocultar, distorcer e abstrair (separar) são os meios de que se vale aquele que
discursa ideologicamente; sendo a substituição da exploração, domínio e
enriquecimento como algo justo, de direito e verdadeiras, os fins. Nosso estudo
vislumbrou o engrandecimento da democracia eletiva em detrimento da participativa.
Enriquecer axiomaticamente a democracia eletiva é um subterfúgio para que a
exploração e não participação nas leis e tomadas de decisões sócio-administrativas
estejam nas mãos dum pequeno grupo... com seus mesquinhos interesses e contrários ao
bem comum da população, para o qual a política foi planejada por Aristótelois como um
meio de auxiliar e não de enriquecer às custas de outros.
Ocultamento das causas que separam pessoas em litotes classistas. Separar as
pessoas em grupos econômicos encontra sua eficácia – ou instrumentalidade – na
exploração de um grupo menor pelo maior. Se uma contradição lógica versa pela
validade do jogo das premissas; a contrariedade, por sua vez, versa pela
correspondência entre pensamento e sensorialidade30. Veremos agora a possível
associação entre ocultamento das causas histórico-sociais formadoras das classes e a
respectiva contrariedade como conflito de existenciais (conflito de interesses e práticas
sociais sistematicamente desiguais) promovidos pela separação em classes econômicas:

(...) como as contradições sociais permanecem ocultas (são as


contradições entre as relações de produção ou entre forças produtivas
e as relações sociais), parece que a contradição real é aquela entre as
idéias e o mundo. (CHAUÍ, 2004: 63).

Da contrariedade das classes resulta a consciência não apenas invertida, mas


com um predicado deslocado: ao invés da percepção inteligível das diferenças e suas
intenções injustas porque exploradoras e destituidoras, temos a qualificação da falta de
correspondência entre pensamentos e sensorialidade, entre idéias e mundo cultural.
Atribuir a incorrespondência entre pensamento e meio social, somos estimulados a
“mudar” as idéias para que haja a harmonia entre elas e a realidade social; quando,
depois dum exame mais sério, é a configuração do meio social, com suas categorias e
práticas na qual está o cerne, o núcleo do problema e, se e somente se, voltarmos nosso
foco para ela é que uma transformação do que configura tudo isso e não da
transformação dos pensamentos em relação à configuração. Como repetirei diversas
vezes, além da não problematização dos problemas, temos a mudança de foco do
problema promovido tanto pelas práticas causadoras de cisão classista como também
dos discursos justificadores a orientarem a direção oposta: assim, dissimulamos na e
pela intenção de mudar/adequar os pensamentos, o foco necessário que incidiria para a
configuração social: seja transformada em seu modelo atual, seja não participando de
suas práticas configuradoras, seja denunciando através do discurso com argumentos
causais/determinantes31 e causais/intencionais das práticas e discursos ideológicos.

30
A este par antitético, Marilena utiliza os significantes: idéias e realidade (ou mundo).
31
Aquilo que determina é causa necessária (fundamento ou essência) e não afecção
contingente (acidental).
Seria o nosso assentimento tão forte a tais idéias, a tais explicações que
impossibilitassem nossa transformação?

(...) Talvez precisamente quando se tornem visíveis a dependência


oculta do pensamento à existência do grupo e seu enraizamento na
ação, é que seja realmente possível, pela primeira vez, obter-se um
novo modo de controle sobre fatores do pensamento anteriormente
incontrolados. (MANNHEIM, 1972: 32 e 33).

Tal esforço não tornará o pensamento intelectual completamente


independente das condições sociais, mas lhe permitirá superar todas as
oposições particulares que conhece: propor-se-á exprimir-se ao seu
auditório numa linguagem que não desprezará objeção que possa
provir de cada canto do horizonte político ou social presente em sua
consciência. (PERELMAN, 1997: 300).

Analogamente, a idéia de controle do pensamento encontra similaridade na vida


psíquica, quando um conteúdo é reprimido, com o intuito de defesa do ego. Quanto a
isso temos a ideia de que o conhecimento de causas é necessário para evitarmos ações
automáticas dos pensamentos: sejam eles mais desejos, afetos, sejam mais conceitos.
NO 1º caso, temos a Psicanálise; no segundo, a Sociologia. Em ambos temos a
resistência como fator de permanência do discurso ideológico, bem como dos possíveis
conflitos internos. Na contradição externa – porque intersubjetiva – instala-se o conflito
interno – porque intrapsíquica:

(...) o fato é que esses pacientes nunca repetem tais histórias


espontaneamente, nem jamais apresentam ao médico, repetidamente,
no curso do tratamento, a recordação completa de uma cena desse
gênero. Só se consegue despertar o vestígio psíquico de um evento
sexual precoce sob a mais vigorosa pressão da técnica analítica e
vencendo uma enorme resistência. (...).
O evento precoce deixa uma marca indelével na história clínica, sendo
nela representado por uma profusão de sintomas e traços especiais
(...). (FREUD, Vol. III - 2006: 152).

É este o momento fecundo em que se anuncia a possibilidade da cura


pela supressão do conflito e da linguagem enganosa que arrastava o
sujeito para a alienação do imaginário. A transição do imaginário não
simbolizado ao imaginário integrado à sua configuração simbólica
entrega de novo ao sujeito a possibilidade de situar-se no seu discurso
e de engrená-lo no processo intersubjetivo. (NOGUEIRA, 1978: 78).

Dissertar sobre Ìcone e Símbolo e o emprego de cada princípio de regência!


Dissertar sobre Paleossímbolos de Habermas e as implicações da
iconicidade no plano do conteúdo. Aí relacioná-los-ei à 2º tópica de Freud para
explicar porque o Ego também é parciamente inconsciente, pelo viés de categorias
semióticas.
Mas se a cura, ou melhor, o auxílio à patologia psíquica é a lembrança, por que
então a lembrança é esquecida? O esquecimento cumpre uma função: diminuir o
conflito, pouco importando se é interna e/ou externo. Se o motivo detectado através do
sintoma, poderíamos pensar então que o motivo que nós temos para mitigar a situação
social – ainda que nos cause mal-estar, raiva, indignação – empregamos o recurso da
racionalização para não enfrentarmos a situação da origem do conflito, a saber: a
contradição social, sua desigualdade e exploração sutis.

(...) – o método da psicanálise, com o propósito de tornar consciente o


que era então inconsciente. (...) não são as experiências em si que
agem de modo traumático, mas antes sua revivescência como
lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual.
(...), o menino sofrera abuso por parte de alguém do sexo feminino, de
modo que sua libido fora prematuramente despertada, e então, passado
alguns anos, cometera um ato de agressão sexual contra sua irmã, com
quem repetiu precisamente os mesmos procedimentos a que ele
próprio fora submetido. (FREUD, Vol. III - 2006: 164 e 165).

Ora, comentei há pouco que – paradoxalmente – a condição de humanização,


sociabilização é na vida coletiva. Também afirmei que a superação dos fatores
condicionantes perniciosos também se dá na condição intersubjetiva. Na psicanálise, a
superação dum trauma de infância, por exemplo, ocorre na e através a recordação do
trauma originador do conflito. Se internamente o enfrentamento do conteúdo ou
reprimido ou recalcado é condição necessária para a superação, é exatamente no
enfrentamento que o conflito aumenta e ganha repercussão consciente. Homologamente,
na intersubjetiva, ou seja, nas relações entre sujeitos, a racionalização é uma defesa
(imprópria, inadequada, mas uma defesa) contra a manifestação de tensão em relação a
pessoas da classe dominante ou representantes. A tensão, também é necessária, pois o
trazer à tona, enfrentarmos a contradição e abuso social, ainda que cause mal-estar.
0
Quando nos dispomos a forma uma opinião sobre a causação de um
estado patológico como a histeria, começamos por adotar o método de
investigação anamnésica; interrogamos o paciente ou aqueles que o
cercam, a fim de descobrir a quais influências danosas ele próprios
atribuem seu adoecimento e o desenvolvimento de sintomas
neuróticos. O que descobrimos (...) é falseado por todos os fatores que
comumente ocultam de um paciente o conhecimento de seu próprio
estado – por sua falta de compreensão científica das influências
etiológicas, pela falácia (...), e por sua relutância em pensar, ou
mencionar certas perturbações traumáticas. (FREUD, Vol. III -
2006: 189).
Em ambos os casos, enfrentar é condição necessária, tanto quanto a lembrança
encobrida. Se a racionalização é uma defesa do indivíduo e que o mantém cativo nas
mãos da classe dominante – ou mesmo agentes de outra classe que defendam
argumentativamente a posição dominante – a ideologia são as máximas gerais emitidas,
primeiramente, pela classe dominante e, posteriormente, reproduzidas.

Doutra parte são bem conhecidas as resistências que estes


astuciosamente opõem a todo processo de libertação. O discurso posto
por eles em marcha caracteriza-se pela deslocação de sentido que
lhes permite permanecer desconhecidos em si mesmos. A sua
realização se opera sempre sob uma forma disfarçada em que
deslocamentos e condensações estão presentes em todos os planos. É
bem por isso que o próprio inconsciente, donde eles brotam, pode
definir-se em termos de linguagem cujas funções principais são
exercidas pela metáfora e pela metonímia. (NOGUEIRA, 1978: 78).

Dissertarei sobre os mecanismos psíquicos inerentes ao Inc. e ao Cons.


Diferenciando-os pela primazia da simbolicidade nos dois planos de Hjelmslev.

2) Dissertarei sobre metaf. E meton. Comparando com Jakobson.

De qualquer modo, tais hábitos, assim como nas neuroses, são predicados por
mim como um sintoma. E, como tal, passível de ser interpretado, numa hermenêutica,
ou seja, numa reconstrução da situação de conflito perante o acesso a conteúdos
sistematicamente ou separados, ou reprimidos, ou dissuadidos. A cura é para o
indivíduo o que a transformação é para a sociedade. Ambos são superações individuais
com repercussões coletivas. Ambos são enfrentamento a partir da inserção histórica que
o desencadeou tais sintomas, com a devida sensibilização do indivíduo: para a
reconceituação32 e ação.

(...) Somente aquele que mergulha e mesmo sem, no entanto, destruir


quaisquer elementos de significado e de valor pessoais tem condições
de encontrar respostas para as questões que implicam significado.
(MANNHEIM, 1972: 45).

Se a historização é condição necessária; a sensibilização e disposição no


enfrentamento é condição suficiente. Antes, é necessário a recontextualização dos
conteúdos, com as devidas passagens = articulações do pensamento. Tais movimentos,
interromperão a cadeia incontrolável das justificativas no plano do agir comunicativo
(condição de sustentação status quo), bem como, uma vez dominados, controlados tais
impulsos reativos33, tais maneiras inadequadas de lidar com conflitos cederão a um

32
Como potencial de ressignificação. Vimos o grau de importância contra as ideologias.
33
Tecnicamente conhecidos como formação reativa, sintomática e de caráter involuntário.
novo impulso34: pela indignação, tanto de nós, por sentirmos na pele o quanto somos
responsáveis pela reprodução dos meios de produção dominantes; como também, pela
indignação dos representantes (de maneira pessoal) e pelos atos e argumentos em
conformidade com eles (de maneira impessoal).
Mas além da ação individual Engels e Marx postularam a importância da
organização coletiva, como condição necessária para surtir efeitos mais significativos na
organização social que se deseja transformar.

(...) o processo pelo qual se tornam conscientes as motivações


coletivas inconscientes não pode operar em todas as épocas, mas
apenas em uma situação bastante específica. Esta situação pode ser
sociològicamente determinada. (MANNHEIM, 1972: 33 e 34).

Toda a sociologia do conhecimento, pelo fato de propor-se a estudar o


condicionamento do conhecimento por elementos da realidade social,
é levada, (...), a distinguir, entre os conhecimentos, alguns que
escapam a esse condicionamento ou que lhe sofrem efeitos de modo
reduzidos. (...), edifica-se uma classificação dos conhecimentos
fundamentada essencialmente na idéia que se faz de sua ou maior ou
menor independência com relação às condições sociais de sua
elaboração. (PERELMAN, 1997: 303).

Mas qual determinação deve receber a sociedade para que hajam condições
transformadoras mínimas?

(...) A direção dessa vontade da atividade coletiva de transformar ou


manter é que produz o fio orientador para a emergência de seus
problemas, seus conceitos e suas formas de pensamento.
(...) Talvez precisamente quando se tornem visíveis a dependência
oculta do pensamento à existência do grupo e seu enraizamento na
ação, é que seja realmente possível, pela primeira vez, obter-se um
novo modo de controle sobre os fatores do pensamento anteriormente
incontrolados. (MANNHEIM, 1972: 32 e 33).

A sociologia do conhecimento, tanto a de Mannheim como a de


Sorokin, pretendem aumentar nossas exigências referentes à
objetividade de nosso saber. Mannheim e Sorokin põem no mesmo
plano todas as perspectivas particulares por eles estudadas e se
empenham em nos fornecer uma visão da realidade que, por
transcender essas perspectivas, seria mais global, mais sintética,
portanto mais objetiva. (...), mas uma objetividade que depende dos
pontos de vista considerados subjetivos, que ela supera, situa e
explica. (PERELMAN, 1997: 300 e 301).

34
Desta vez, não mais presos aos mecanismos defensivos involuntários, mas conscientes,
voluntariamente pensados, calculados, na escolha dos meios para atingirmos fins de transformação
social.
Numa palavra, uma revolta axiomática35, o que permite a mudança de ação, seja
em qual for o âmbito da investida: comunicativa ou práxis. Proponho aqui o primado da
sensibilidade como resultante numa perlaboração valorativa, com sua conseqüente
motivação e transformação. Voltemos ao aspecto funcional da ideologia:

(...). Por seu intermédio, os dominantes legitimam as condições sociais


de exploração e dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e
justas. (...) uma ideologia não possui um poder absoluto que não possa
ser quebrado e destruído. Quando uma classe social compreende sua
própria realidade, pode organizar-se para quebrar uma ideologia e
transformar a sociedade. (CHAUÍ, 2004: 23 e 24).

A ruptura sustentatória ideológica tem um preço. O primeiro deles chama-se


engajamento. Como tudo na vida requer persistência, estudo e disciplina, construir
conhecimento pressupõe disposição a abertura, para agir e mudarmos. Meu propósito é
idêntico ao da filósofa Marilena Chauí, ainda que eu explore uma fenomenologia da
ideologia sob categorias diferentes, porém, sob o mesmo campo valorativo de
reconstrução histórica da situação atual, para a desconstrução da mesma sob
perspectivas interdisciplinares. Portanto, tomo suas palavras como minhas:

Nossa tarefa será, pois, compreender por que a ideologia é possível:


qual sua origem, quais seus fins, quais seus mecanismos e quais seus
efeitos históricos, isto é, sociais, econômicos, políticos e culturais.
(CHAUÍ, 2004: 24).

Após tal explicitação de nosso propósito, avaliaremos o conceito de alienação –


em Hegel e Marx, respectivamente – para associarmos aos conceitos de oposição e
contradição. Trago à baila dessa discussão uma possível contribuição da Lingüística,
com o fenômeno chamado de Litotes36.

Hegel mostra que o exterior e o interior são duas faces do Espírito, são
dos momentos da vida do e trabalho do Espírito. Essas duas faces
aparecem separadas, mas essa separação foi produzida pelo próprio
Espírito, ao exteriorizar-se nas obras e ao interiorizar-se
compreendendo sua produção. (CHAUÍ, 2004: 42).

O intelecto como analítico porque separa para melhor conhecer os elementos


constitutivos dum dado fenômeno, para sintetizá-los, numa visão de conjunto das
relações das partes com o todo. Nada há que no mecanismo explicativo nos

35
Sintetizando: INSURREIÇÃO.
36
Explicitá-lo-ei na medida em que discorrer sobre oposição e contradição. A leitora e leitor
sentirão a eficácia explicativa dele, no tocante ao processo, a uma fenomenologia da categoria de
relação e seu caráter ou contingente ou necessário, com as discriminações entre percepção sensorial e
papel social.
impossibilite de predicarmos a necessidade dos momentos que foram separados
artificialmente e como artifício compreensivo/didático. Nossa Filósofa invoca o
significante momento. Muito já se discutiu em torno da clássica separação daquilo que
está unido. John Locke e David Hume explicaram o caráter composicional do ser
humano: seja para produzir imagens (por exemplo, cavalo + ave = cavalo alado),
juntando o que está separado37; seja por separar aquilo que está unido38. Quanto a esse
aspecto entre pedaços e momentos vejamos o que um pensador interpretando a Teoria
das Partes e do Todo (autoria de Edmund Husserl) tem a nos oferecer:

Totalidades podem ser analisadas em dois tipos de partes:


pedaços e momentos. Pedaços são partes que podem subsistir e ser
presentadas até separadas do todo; eles podem ser destacados dos seus
todos. Pedaços também podem ser chamados partes independentes.
(...) Assim, quando separados, os pedaços tornam-se todos em si
mesmos e não são mais partes. Os pedaços, então, são partes que
podem vir a serem todos.
Momentos são partes que não podem subsistir ou ser
presentados separados do todo ao qual pertencem, eles não podem ser
destacados. Os momentos são partes não-independentes. [...] Um
ramo pode ser cortado da árvore, mas o tom não pode ser separado e
um som e uma visão não pode desprender-se do olho. Os momentos
não podem ser, exceto quando misturados com outros momentos. Os
momentos são o tipo de parte que não pode se tornar um todo.
(SOKOLOWSKI, 2004: 32).

Se Pedaços estão suscetíveis de serem juntados para formarem, para


constituírem uma totalidade, um conjunto, o mesmo não ocorre com os Momentos. Mas
por quê? Porque um corte numa unidade qualquer, como uma árvore, a parte separada
estará independente do conjunto a que foi separada. Pedaços referem-se à divisão
espacial duma determinada unidade. Ora, e o que podemos entender por momentos?
São eles também recortes, mas não de algo espacial, não de objetos como
unidades, mas de algo em movimento, a saber: a divisão de um Processo! Dividir uma
ocorrência como a digestão, só caberá como algo de cunho didático, para explicar a
ação e interação de diversos órgãos, cada qual com sua respectiva atuação, com sua
funcionalidade. Investiguemos a visão, por exemplo. Se tomo a imagem formada na
retina, posso perguntar: “Ora, a visão depende ou do sujeito ou do objeto?” Bem, como
momentos de um processo, duma assim chamada dialética sensorial, tanto a fonte
emissora das ondas vibratórias (provenientes do objeto), como a fonte transformadora
da onda vibratória em formato, intensidade luminosa e cor depende da recepção dos
olhos e da conseqüente produção, ou seja, da resultante da mesma com produto acabado
37
Tal mecanismo operativo é conhecido como Abstração que separa algo originalmente coeso.
38
Já, na Composição, temos a fusão de elementos de partes, pedaços, como a asa duma ave no
dorso de um cavalo, gerando assim o “ser mítico” Pégasus. Tal composto adquire caráter híbrido. Por
quê? Porque é artificial, ou seja, da imaginação ou fantasia... não é uma apreensão sensorial, de fora
para dentro = percepção sensorial; mas, todavia, uma produção, de dentro para fora = composição
imaginária.
= visão do “objeto”. Se no processo visual há dependência tanto do estímulo do objeto,
como da resposta do sujeito, cabe perguntarmo-nos se a visão como fenômeno total, na
qual integram-se todos os momentos de estímulo e resposta, de emissor e receptor para
temos como produto, um conteúdo sensorial, tal pergunta, ou seja, em qual deles ou o
sujeito ou o objeto enquanto determinantes é incoerente. Não só incoerente, como
falaciosa.
Assim como vimos Carnap explicar sobre as proposições carentes de sentido
(denotativo), aqui temos uma pergunta, uma pseudo-proposição, ou melhor, uma
pseudo-problematização, uma pergunta ingênua e ignorante. Ora, se os fenômenos
forma, cor e intensidade luminosa são ações de múltiplos aspectos das ondas vibratórias
e dos órgãos da visão, então ambos os fatores são necessários. Perguntar qual dos dois é
reduzir em unilateralidade do fator (quando na verdade são dois). Uma pessoa atenta,
não proferiria um discurso ideológico desse, uma vez que se ambos são necessários, não
há como fazê-los ser contingentes, uma vez que são interdependentes. Há uma interação
entre fontes emissoras/estimulantes e fontes receptoras/responsivas. O corte que
podemos operar é apenas o para destacar o que compete a cada um: suas características
e peculiaridades inerentes. Nada há nessa divisão explicativa que legitime ou demonstre
o predicado independentes, ou mesmo como únicos determinantes.

Dissertar e comentar a relação, em primeiro momento problemática, entre


noções advindas da Fenomenologia e do Marxismo.

Edmund Husserl ao explorar e explicar o fenômeno ideativo, ou seja, das


categorias pedaço e momento, como divisão espacial39 e temporal40, sendo que a
importância dos momentos residem nos predicados: dependência, interação, relação,
produção concomitante e necessidade. Quando ou dois ou mais fatores participam dum
determinado processo, dum determinado fenômeno, todos serão necessários, o que
equivale afirmar que nenhum será contingente. Ou seja, todos serão essenciais na
produção do dado fenômeno em questão e nenhum deles será acidental. Somente uma
falta de conhecimento dessas categorias, bem como a intenção de partidarismo e não
de totalidade – como as famosas brigas de objetivismo x subjetivismo, empirismo x
racionalismo, psicologia x sociologia etc. Na verdade, no fundo, há má-fé, partidarismo,
ismos que desejam ser essenciais, fazendo do outro aspecto acidental, quando ambos
são essenciais e, por isso, guardam o predicado de necessidade, de interdependência
para a constituição dum dado fenômeno. A captação da cor é sempre num espaço.. não
podemos apreender cor sem ter uma dimensão, uma extensão; assim como não podemos
apreender sons sem a noção de velocidade, ou seja, de medida de movimento.
Ficou mais explícito agora a conexão entre teoria do conhecimento e ideologia?
A conexão entre os conceitos de essencial e acidental e também necessidade e

39
Espacial porque segmentação duma unidade (objeto) visualizada com um parâmetro
sensorial de extensão = divisão na contigüidade.
40
Temporal porque segmentação dum evento, dum movimento, dum processo pelo qual um
fenômeno é resultado. Tal divisão da unidade (evento, movimento) visualizada com um parâmetro
sensorial de velocidade = divisão na simultaneidade.
contingência? A substituição de um pelo outro, bem como a unilateralidade que decorre
de tal juízo de valor, acarreta a hipo-valorização de um com a simultânea hiper-
valorização de outro. Nesse contexto, estamos tanto numa análise cognitiva,
gnosiológica quanto axiológica, uma vez que o desejo de separar, de segregar as
pessoas em grupos sociais, em classes de partidos, jogam-nos uns contra os outros numa
disputa na qual nós mesmos promovemos a divisão (social e cognitiva): não é natural,
mas cultural! Portanto, se é cultural é passível de ser transformada; se é adquirida é
passível de ser reconstruída em bases axiológicas, levando em conta ou como objeto de
estudo: tanto os argumentos/práticas como os valores que o regem:

E a justificação, que utilizará regras metodológicas e até conduzirá


eventualmente a considerações de ordem epistemológica, inserirá
estas no âmbito mais geral de uma teoria da argumentação. Assim é
que toda filosofia que se quer racionalista e que não pretende limitar o
racional ao evidente deverá, em sua teoria do conhecimento, para
tornar possível uma tentativa qualquer de justificação racional,
elaborar as normas e fornecer critérios de uma argumentação
convincente. Uma teoria geral da argumentação nos parece, pois,
dever constituir uma condição prévia para qualquer axiologia da ação
e do pensamento. (PERELMAN, 1997: 174 e 175).

Como podemos compreender a produção do nosso meio de vida (o trabalho), se


separamos o processo de realização, ou seja, se separamos a satisfação da atividade
como algo independente de nossa profissão? Como compreendermos a separação entre
trabalho manual e teórico, bem como a escolha dos meios de produção quando fomos
condicionados a separar trabalho e prazer (satisfação, desenvolvimento na atividade),
sendo que a realização humana depende da liberdade dos meios de produção e também
da totalidade da produção e não apenas um fragmento deste?
Na totalidade da produção, o resultado que é o produto tem a nossa marca!
Reconhecemos nosso trabalho e labor, bem como o interesse em nos projetarmos em
nossa criação, se e na medida em que a qualidade da produção (tanto na escolha de
meios como na totalidade da produção) ocorre. A separação entre escolha, promove a
sujeição do trabalho para o enriquecimento e acúmulo de riqueza de outro (que não
trabalha, mas decide); também promove a estranheza do produto (pelo qual participo
fragmentariamente em sua produção). Tanto a exteriorização quanto a interiorização são
momentos necessários do processo de desenvolvimento humano. Logo, só podem ser
separados por abstração indevida (e de má-fé). Logo, a realização humana depende da
interação entre afinidades da atividade, a escolha de meios, a participação de fins que
encontram em si mesmo a satisfação... ainda que o sustento, o dinheiro seja necessário
para a subsistência, é o trabalho com labor, com interesse apaixonante que nos realiza,
sendo secundário o reconhecimento monetário.
Somos o que fazemos, e o que sentimos depende disso. Se agimos
fragmentariamente, tal repercutirá em nosso psiquismo. Se, fragmentamos os momentos
de nossa realização e trabalho, também agiremos assim com os outros. Há aqui uma
simultaneidade, ou seja, uma retroalimentação dos dois momentos do processo total: ao
agirmos assim, perpetuamos os meios coletivas de exploração e desapropriação dos
meios de produção; ao pensarmos assim, perpetuamos as condições individuais de auto-
sujeição (com as ideologias com argumentos comuns, sociais) e a sujeição alheia (com
as racionalizações com argumentos idiossincráticos, mas que versam sobre o mesmo
tem, motivo = intenção).
Como parte de nosso exame dos argumentos, está a associação do contexto da
fala ou texto, ou seja, duma pragmática, considerando implicações tanto dos
argumentos, como das práticas.

Pode-se situar esse tópico sugerindo-se que ideologia é mais uma


questão de “discurso” que de “linguagem”. Isto diz respeito aos usos
efetivos da linguagem entre determinados sujeitos humanos para a
produção de efeitos específicos. Não se pode decidir se um enunciado
é ideológico ou não examinando-o isoladamente de seu contexto
discursivo, assim como não se pode decidir (...) se um fragmento de
escrita é uma obra de arte literária. A ideologia tem mais a ver com a
questão de quem está falando o quê, com quem e com que finalidade
do que com as propriedades lingüísticas inerentes de um
pronunciamento. (...). O fato então é que o mesmo fragmento de
linguagem pode ser ideológico em um contexto e não em outro; a
ideologia é uma função da relação de uma elocução com seu contexto
social. (EAGLETON, 1997: 22).

(...) a obra fundamental da compreensão lingüística há de ser


compreendida como a construção cooperativa de sentido. O telos da
linguagem é o entendimento com os outros, que faz possível a
constituição de um nós, isto é, o âmbito da intersubjetivamente
lingüisticamente mediada, como um mundo de sentido e validade
compartilhados. A comunicação lingüística é o processo de mediação
pela qual se constituem, ao mesmo tempo, a subjetividade do sujeito e
o sentido do mundo. (REGENALDO - APEL, 2002: 62).

Entendamos por função de relação a proposição que somente se define em


relação a um contexto. Qualquer subversão comunicativa quanto ao acordo de sentido41
ou de validade42 necessita duma correspondência ou adequação entre a intenção
destituidora ou usurpadora e o aspecto pelo qual será objeto de tais intentos. Fora deste
objetos-aspectos não se configurará uma ideologia no sentido forte do termo, pois
configurar pressupõe uma formação definida e, como tal, alcança seus propósitos em
relação ao aspecto almejado ou visado, capaz de levar á cabo os efeitos (destituidores ou
usurpadores).

41
Referente ao termo unitário.
42
Referente à oração ou elocução.
O homem faz o mundo aportar ao sentido pelo seu comportamento.
(...). O que significa, em outras palavras, que ele é essencialmente
linguagem. (...) O sentido proferido na palavra não recobre nem pode
assumir toda a extensão do sentido estabelecido pelo
comportamento. (NOGUEIRA, 1978: 53).

A linguagem é o lugar habitual do encontro humano. É a interpelação


que estabelece no seio da realidade onde existimos, uma comunicação
de intenções. (...).
Se falamos para significar a nós mesmos, esta significação passa pelo
reconhecimento do outro. E eis instituída a dialética viva que investe o
que sou e o que faço. A sua ruptura engendra a impossibilidade de um
falar autenticamente humano. É o que acontece com o discurso do
psicótico. (NOGUEIRA, 1978: 54 e 55).

Vimos com Nogueira que o comportamento, as atitudes, os gestos são sinais


passíveis de serem interpretados. É fácil admitirmos que a extensão do sentido do
comportamento excede a comunicação pela fala.

Conforme Apel, “A aceitação mesma do chamado por Weber –


compreender racional-teleológico não pode ser reduzido a uma
explicação causal dos motivos, já que supõe que é inevitável uma
valoração crítica do comportamento humano”. (REGENALDO -
APEL, 2002: 144).

As leitoras e leitores talvez se perguntem: Para que finalidade avaliaríamos um


dado comportamento humano? A usurpação ou abuso nas relações intersubjetivas
ocorrem mais pelas práticas, sendo que a destituição é eminentemente pelo discurso.
Sendo assim, aos examinarmos uma prática, comparamos como e por quais argumentos
um sujeito médio avaliá-lo-ia, para depois avaliarmos as conseqüências diretas e
implicações indiretas. No primeiro momento, temos o juízo de valor do senso comum;
no segundo temos uma dupla consideração metódica: 1) as conseqüências diretas e os
juízos de regras de justiça para com tal prática; 2) as implicações de caráter indireto,
como contexto para avaliarmos sob a referência ou modelo do senso-comum e das
regras de justiça. Ambos oferecem-nos juízos sobre atitudes humanas contextualizadas
axiomaticamente pelo consenso popular do que grupo que pertencemos, bem como a
comparação por valores da regra da justiça.
Outro método eficaz seria após tais procedimentos, o diálogo com a pessoa em
questão depois de executar suas práticas, para relacionarmos suas justificações (se as
tiver) com os efeitos diretos e indiretos das práticas, mais os juízos comuns e
elaborados.

Os nossos comportamentos instituem significações transcendentes


relativamente ao organismo, mas imanentes ao comportamento
considerado em si mesmo. (...) Como transcendência ela é movimento
na direção das coisas para revelá-las e revelar-se. (NOGUEIRA,
1978: 53).

Há um sentido em curso anterior à reflexão, que se realiza em mim


antes que eu o pense e formule. Em outros termos: a consciência não é
o único centro do sentido. (...) O que se há de concluir daqui? Que
uma verdadeira filosofia da subjetividade só pode ser erigida sobre a
base de uma filosofia de comportamento? (NOGUEIRA, 1978: 126).

Ora, porque revelá-las? Porque ao explicar seu processo, apontar uma


propriedade ou prever alguma reação natural regular, expomos, oferecemos uma versão
de conhecimento sobre nosso entorno natural. O mesmo vale para o meio social, com a
diferença de que as ações humanas não são apenas causas (como as da natureza), mas
são intenções, motivos (pelo aspecto cultural) vontades passíveis de serem
interpretadas, de serem valoradas, julgadas.
Ora, porque revelar-se? Porque se e na medida em que explicamos significamos
nosso entorno (natural/cultural) expressamos nossa subjetividade, nossos valores, nossa
idiossincrasia. Agora, em ambos os casos nossa visão de mundo e nossa síntese
axiomática sobre o mesmo pode ser um fator de esconderijo (mecanismos de fuga do
ego), de ocultamento (omissão sistemática de si) ou dissimulação (substituição da
intenção original por uma persona socialmente aceita, ou pelo menos aceita na medida
em que o fingimento vende uma imagem de si, uma síntese identidária adversa do que
ele sente).

Uma forma tradicional de crítica à ideologia admite que todas as


práticas sociais são reais, mas que as crenças utilizadas para justificá-
las são falsas ou ilusórias. Mas segundo Zizek essa oposição pode ser
invertida. Pois se a ideologia é ilusão, então é uma ilusão que estrutura
nossas práticas sociais; e dessa maneira a “falsidade” está naquilo que
fazemos, não necessariamente naquilo que dizemos. (...) Em outras
palavras, a ideologia não é apenas uma questão a respeito daquilo que
penso acerca de uma situação; ela está de algum modo inscrita nessa
mesma situação. (EAGLETON, 1997: 47).

Se as práticas, se os comportamentos revelam algo de nós, de nossos anseios e


propósitos é porque de algum modo as intenções podem ser inferidas, deduzidas de
critérios interpretativos: tanto dos discursos, das práticas, como destas em relação
aquelas. Ser interpretável uma ação é visá-la interpretativamente como índice. Nesse
ínterim, os juízos de valores sobre as ações vêem através dos índices ou sinais, indícios
indiretamente associados a quem as pratica.

Uma ciência crítica da sociedade que conceba seu objeto (...) como
sujeito virtual da ciência não pode renunciar a valorar os fins mesmos
das ações humanas. (...). O caso mesmo da compreensão racional-
teleológica põe manifesto o fato de que é impossível reconhecer a
ação humana como ação sem efetuar valoração alguma.
(REGENALDO - APEL, 2002: 144).

De nada adianta lembrar a mim mesmo que sou contra o racismo


quando me sento em um banco no parque onde se lê “só para
brancos”; ao sentar-se nele, apoiei e perpetuei a ideologia racista. A
ideologia, por assim dizer, está no banco, não em minha cabeça.
(EAGLETON, 1997: 47).

(...) é impossível transformar qualquer evidência empírica em estatuto


de conhecimento sem a mediação dos signos da linguagem, logo, sem
a mediação da intersubjetividade interpretadora, de modo que são
indispensáveis e fundamentais critérios de verdade não referidos à
evidência empírica, como, por exemplo, o critério da “... coerência,
que na possível formação do consenso na comunidade de
interpretadores tem que ser mediada pela interpretação de evidências
empíricas”. (REGENALDO - APEL, 2002: 1466).

Ideologia como significado não está no banco. Ainda que a inscrição esteja no
banco, o que está no banco é o significante prescrito por alguém. No processo de
decodificação, atribuímos ao sinal uma mensagem. Noutros termos semióticos,
associamos ao significante um significado, a saber: a distinção social étnica para ou
sentar ou não naquele banco. Numa interpretação da práxis de um branco sentar no
banco, equivale a aceitarmos a prescrição da distinção étnica. Numa rede implicativa, o
ato de sentar após lermos a inscrição denota no mínimo nossa permissão para a
distinção, pois do contrário, caso neguemos tal distinção preconceituosa, negaremos
também a agir – ainda que a confirmação de nosso aval seja indireta e pela ação – pois a
recusa da ação é negação da prescrição distintora e, simultaneamente, a afirmação do
axioma do trato igualitário. Noutro aspecto, podemos interpretar tal negação de
sentarmos naquele banco como uma manutenção, ou melhor, aplicação do princípio de
coerência entre práxis e discurso, ou melhor, entre práxis e valor. O conceito de
aplicação do critério valorativo será nuclear para entendermos quando uma ação terá
desdobramento ou ético ou anti-social.
Se na lógica (no tocante aos argumentos) é reservada às conclusões que não
advém de maneira necessária das premissas pelas quais elas se baseiam o qualitativo de
contradição; na filosofia da ação (no que tange as práticas), elas se baseiam numa rede
implicativa dos efeitos internos (aceitação) e externos (permissão). A ideologia é uma
relação quaternária entre: agente, a prática, e o significado deste em relação ao contexto,
que em nosso caso é tanto o texto, como o contexto das diferenças étnicas serem
predicadas como diferenças éticas. Se sentarmos, nossa ação aceitará a prescrição
prática que garantirá a manutenção do preconceito, bem como nossa ação repercutirá na
permissão de tais preceitos elegerem práticas étnico-distintivas-desmerecedoras, o que
em meu termo equivale à destituição.
Definir, pois o humano pelo comportamento, quer dizer defini-lo pela
revelação do sentido que institui pela sua própria aparição no seio do
real. Familiar das coisas, o seu comportamento faz surgir nelas, pelo
simples fato de visá-las, um sentido. Este ato expressivo e constitutivo
do sentido é também constitutivo do seu próprio ser (...).
Definir o sujeito humano pelo comportamento equivale, do nosso
ângulo de consideração, abandonar os privilégios da consciência em
cujo centro o pensamento acostumara-se a colocá-la. (...). O
intercâmbio primitivo do humano com o mundo faz despontar o
sentido anteriormente à conceptualização e ao ato judicativo, pois
comportamento humano é significativo por si mesmo, pelo próprio
fato de ser comportamento de um ser que se define como lúmen
naturale. (NOGUEIRA, 1978: 124).

Vejamos o que Apel e Eagleton tem a nos comunicar sobre a contradição que
não advém duma proposição, mas que provém da relação quaternária do agente, da ação
expressada e da decorrente significação adquirida no contexto social de distinção étnica
estabelecida.

Para Apel, por conseguinte, sob a base dos trabalhos de Austin e de


Searle se esclareceu que se alguém formulasse explicitamente as
orações, não somente em seu conteúdo proposicional, mas também, no
sentido de seu aspecto performativo, então se poderia comprovar que
todo o tipo de orações contém uma dupla estrutura performativo-
proposicional. (REGENALDO - APEL, 2002: 233).

Primeiro, estabelece-se uma disparidade entre o que a sociedade faz e


o que ela diz; depois, essa contradição performativa é racionalizada;
em seguida, a racionalização torna-se ironicamente consciente; e, por
fim, essa auto-ironia passa a servir a propósitos ideológicos. (...).
Em todo caso, é importante não subestimar o âmbito em que as
pessoas podem não se sentir irônicas quanto a suas contradições
performativas. O mundo dos grandes negócios está repleto com a
retórica da confiança, mas pesquisas revelam que esse princípio quase
nunca é posto em prática. Na verdade, a última coisa que os humanos
de negócio fazem é depositar confiança em seus clientes ou uns nos
outros. (EAGLETON, 1997: 46 e 47).

O critério avaliativo quando ocorre uma contradição entre práxis e discurso, ou


mesmo entre uma ação que não se sustenta ao notarmos que o critério motivador da
ação não se aplica43 em casos similares.

43
Ou seja, um desdobramento da regra de justiça. Dissertarei sobre a aplicação dos critérios
gerais em casos similares como atestado de ética e, simultaneamente, de conhecimento. O critério
comum é um axioma para o consenso metódico, de verdade e de significado. Na ausência dele haverá
um critério conteudístico, situacional, o que inferirá necessariamente em contradição performativa
indireta.
Através do discurso enganamos os outros e a nós mesmos com a pretensão – ou
consciente ou inconsciente – para que no plano axiomático, haja uma unilateralidade e
inversão... inversão e destituição de valores, de predicados empregados de maneira
sistemática para a sujeição própria e alheia (no plano psíquico) e também da
organização social, institucional e práticas e que reforçam tais intentos conformistas e
alienantes. Ora, espera aí, alienantes? O que é alienação? Como ela é provocada? Quais
as condições de sua produção e reprodução? O que é atingido em nossa exteriorização e
interiorização por ela?

Ora, quando a interiorização não ocorre, isto é, quando o Sujeito não


se reconhece como produtor das obras e como Sujeito da história, mas
torna as obras e a história como forças estranhas, exteriores, alheias a
ele e que o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como
alienação (palavra derivada do pronome latino alienus, que quer
dizer: o outro de si mesmo, um outro que si mesmo). Essa é a
impossibilidade de o sujeito histórico identificar-se com sua obra,
tomando-a como um poder separado dele, ameaçador e estranho, outro
que não ele mesmo. (CHAUÍ, 2004: 42).

Notória é a dívida de Marx e Engels para com Hegel quando a este


conceito. Alteridade distônica, estranhamento, ameaça, perda de controle e,
principalmente dissociação. O que é um poder ameaçador? Devido à dissociação pela
falta de interiorização – este que corresponde à internalização do produto final em si
mesmo – haverá uma espécie de conflito (também interno), no qual os indivíduos
manifestam uma força que os domina, força essa que se impõe de fora para dentro. Pelo
aspecto social isto é notório; porém, como ocorre algo similar no aspecto psíquico?
Explico: o trabalho fragmentado influi em nossa concepção de eu, em nosso senso
identidário.

A praxis de que se trata neste contexto é històricamente determinada e


unilateral, é a praxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão
do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de
posições sociais sobre ela se ergue. Nesta práxis se forma tanto o
determinado ambiente material do indivíduo histórico, quanto a
atmosfera espiritual em que a aparência superficial da realidade é
fixada como o mundo da pretensa intimidade, da confiança, da
familiaridade em que o homem se move “naturalmente” e com que
tem de se avir na vida cotidiana. (KOSIK,1976: 11).

Mas qual o motivo de se naturalizar o que é cultural? Simples: naturalizando os


aspectos culturais, predicamos-lhes atributos de caráter natural, a saber: a necessidade
ou regularidade dos fenômenos naturais. Como fenômeno sócio/econômico/cultural,
toda a decisão e atividade são selecionadas por arbítrio e desejo humanos. Se predico a
tais atos humanos a impessoalidade dos objetos naturais fixados, dados e prontos,
restrinjo e oblitero o alcance da reflexão se e na medida em que aceitamos tais
significados como essenciais, como definições necessárias aos fenômenos culturais44.
Nossa identidade fragmenta-se se e na medida em que a práxis é destituída de
escolhas como início, meio e fim duma atividade direcionada pelo trabalhador. Em
segundo lugar, a escolha do como fazer (meios de produção alheio) infere que o
trabalhador está destituído do direito de escolher os meios (maquinário, objeto e ação),
uma vez que tal é decidido por uma pessoa muitas vezes invisível, que o trabalhador
nem conhece.
A dissociação da vontade – seja pela não escolha de meios e também pela não
escolha da completude do produto – incorre tanto numa dissociação histórica do
indivíduo como agente de construções (históricas), bem como a devida construção de
sua personalidade está obliterada pela não desenvolvimento de sua própria vontade: seja
pelo viés de decisão do como e o que fazer, seja pelo viés da decisão de produzir a obra
de maneira integral. A tal dissociação volitiva e expressiva encontro um homólogo na
linguagem: as justificações quando racionalizações é um recurso de defesa que visa
isentar-nos da responsabilidade de nossas práticas e valores. Tal estudo é foco da
disciplina denominada Retórica45:

As técnicas utilizadas para dissociar o ato e a pessoa – dissociação


sempre limitada e sempre precária –, que visam refrear a interação,
serão interessantes objetos de estudo. (PERELMAN, 1997: 76).

Quando se refere a um agente, a justificação consiste, de fato, na


justificação de sua conduta. Ela pode também, é verdade, visar a
dissociar, ou inteira ou parcialmente, o agente do ato, provando que
essa conduta não lhe é imputável ou que ele não é responsável por ela,
em vista das circunstâncias particulares; mas então se trata antes de
desculpa do que de justificação. (PERELMAN, 1997: 168).

A consciência individual está atrelada à situação de classe a que pertence, e


como tal, depende da discriminação dos condicionantes, das causas sociais e práticas,
para a devida apreciação e problematização teórico-investigativa. A a-historicidade, ou
melhor a ação ideal (ideação) que substitui a ação efetiva (práxis) é uma formação
reativa executada por fracos (oprimidos) e panfletada por fortes (opressores).

Hoje o alcance do tempo, com o pensamento histórico, com o


evolucionismo, com as filosofias da ação, tornou-se eminente.
(PERELMAN, 1997: 389).
44
Curiosidade didática: no âmbito político, naturalizamos a organização sócio-cultural e, com
isso, todas suas implicações; no âmbito religioso, culturalizamos a ordem natural, com os recursos
anímicos e antropormóficos. Neste preenchemos de seres humanos imaginários e invisíveis a ordem da
natureza; naqueles, perenizamos a ordem social vigente pela metáfora de naturalização, obviedade,
necessidade, imperativos e de fixidez. Ambos os recursos operativos são falaciosos. Chauí os designa
tecnicamente de equívocos predicativos em sua obra: Introdução à História da Filosofia, Vol I.
45
Concebida por Chaïm Perelman como Filosofia da Argumentação. Tal disciplina toma como
foco os argumentos quase-lógicos, ou ainda sob a denominação de Douglas N. Walton: Lógica Informal.
(...) A força e a superioridade da verdadeira consciência prática de
classe residem exatamente na capacidade de perceber, por detrás dos
sintomas dissociadores do processo econômico, sua unidade como
evolução do conjunto da sociedade. (LUKÁCS, 1966: 48).

Encontramo-nos no limiar entre conhecimento e intencionalidade dos agentes


socais. Há um reforço discursivo para a dominação econômica capitalista: chamamos-
lha de ideologia. Uma indiscriminação dos fatores determinantes históricos e classistas
é base para a manutenção do regime dos Detentores. Por isso enfocamos a relação
mútua entre teorias e práticas, idéias e ações como momentos na unidade global do
processo econômico: alienação nas práticas com suas dissociações causais e ideologia
com seus sutis ardis argumentativos apaziguadores.

(...) Como essa dominação não é somente exercida por uma minoria,
mas no interesse de uma minoria, uma condição inelutável da
manutenção do regime burguês é que as outras classes se iludam,
permanecendo com uma consciência de classe confusa. (Que se pense
na doutrina do Estado como estando “acima” das oposições de classes,
na justiça “imparcial”, etc.). (LUKÁCS, 1966: 39).

À fragmentação do trabalho, teremos a conseqüente fragmentação da


personalidade = esquizofrenia. À destituição da escolha dos meios e objetos, teremos a
conseqüente destituição do sujeito como passivo: tanto historicamente, quanto sua
identidade. O desenvolvimento subjetivo ocorre na condição de escolha e integralidade.
A insatisfação manifesta-se de maneira oculta, de modo calado... quase que por
sintomas. Se a ação é obnubilada pela organização social e seus agentes, então há
formações reativas, há formações de compromisso psíquico: a racionalização. Ela, como
defesa individual, é uma auto-explicação de nossa posição subalterna. Para tanto
valemo-nos do discurso que nos exime da responsabilidade de nos encontrarmos em tal
estado, em situação precária: se na falta de revolta contra os agentes da destituição dos
meios de trabalho, do enriquecimento pelas costas de outro, e também da fragmentação
da ação na produção, nossa ‘única’ alternativa está na auto-justificação pela
racionalização: esta que é uma variação sobre o mesmo tema... o tema ideológico, de
cunho predominantemente coletivo, social.
Qual é o sintoma? O sentimento de vazio. A insatisfação sem nome... ainda que
sob a justificativa de que: “a vida é assim mesmo”. Tudo me leva a interpretar de todo
esse quadro que a alternativa neurótica de auto-engano é promovido pela
racionalização46, de q eu a reação pelo discurso substitui a ação pela práxis. A
impossibilidade de problematizar, de admitirmos, de confessarmos que somos escravos
dum condicionamento psico-social e que ainda defendamos a posição dos dominantes

46
Tendemos a racionalizar quando somos indagamos ou provocados quanto ao nosso quinhão
de responsabilidade pela situação, tanto nossa como geral. Também reagimos assim quando refletimos
sobre nossa vida e tocamos de algum modo o cerne do problema.
gera-nos um grau de desconforto tal que um conflito interno instala-se... instala-se como
ansiedade difusa, vaga, mas intensa e provocadora.
Citar sobre sintomas! Freud.

O poder conferido a outro nada mais é que efeito, epifenômeno do controle


impessoal da ideologia (como prática e teoria), como também a ação compulsiva e
também impessoal das racionalizações. É como se tivéssemos medo de quebrarmos essa
cadeia, pois no geral só temos iniciativa para algo, para superar uma dificuldade quando
somos incitados por um grupo... do contrário vale mais a doença do que a cura, pois esta
tem um preço: a supressão das identificações reativas no plano do discurso quanto à
organização econômico-social bem como a insurreição pela revolta, quando do
reconhecimento dos agentes opressores e de nosso grau de sujeição.. ainda que calados,
ainda que apenas reproduzindo a produção ideológica da forma trabalho e do discurso
auto-justificador. A ameaça é o próprio sentimento de controle impessoal, alheio e
invisível (salvo nos casos de ações explícitas de dominação). A destituição da escolha
dos meios acarreta um rebaixamento do potencial volitivo: seja para nosso
desenvolvimento, seja para a reflexão e mudança (práxis) que carece de energia e
disposição. Para isso, somente um ego mais forte que reconhece-se em suas obras, seja
por identificação das escolhas de planos e metas e meios, como também pelo trabalho
integral operado no produto final. Um castração volitiva é o resultado da não escolha
dos meios. Uma restrição no desenvolvimento subjetivo implicará numa auto-estima
baixa. Um fragmentação na ação, com sua inerente mecanicidade formará um ser
deformado, cindido, separado de seu desenvolvimento, de sua satisfação da práxis.
A cisão da vontade é sinônimo de cisão na personalidade. Se os conteúdos
históricos são banidos da consciência, tais voltarão como ameaças internas de
alheamento, de impotência para mudarmos o quadro opressor – simultaneamente
externo e interno. A internalização da castração volitiva destitui-nos como seres dotados
de direito à terra, ao desenvolvimento autônomo, gerando assim uma dependência
àqueles que detêm os meios de produção para nossa subsistência. A externalização da
repetição aliena-nos da capacidade de desenvolvimento pela interrupção do dinamismo
da ação integral (esta que foi compartimentada mecanicamente). Um espécie de O
Grande Outro, tal os Titãs gregos – representados iconicamente47 - com sua força cega
e impessoal. O medo de emancipação por não queremos pagar o preço da libertação,
impedirá no plano social, do estudo e da historização causal do status quo dominante.
Já, no plano psíquico, dissociar-nos-á de nosso controle consciente, para ser operado
pelo princípio de regência inconsciente, com a devida manipulação discursiva do tema
internalizado da classe dominante. Seja na reprodução de discursos comuns
(ideológicos), seja na construção de “novos”, o intento é apartar, impedir que
determinadas associações, ideias e conceitos alcancem o plano consciente, gerando uma
mudança do quadro. Tal mudança é simultaneamente social e psíquica, pois a
historização como causa, anima as forças egóicas para um redirecionamento de nossa
atitude intersubjetiva e intrasubjetiva. Se esta é uma transformação por associação do

47
Por imagens.
conteúdo dissociado (seja volição, seja identificação e auto-estima, seja dos conceitos
manipulados pelo próprio indivíduo, a saber: que o dominante vale mais e, portanto tem
o direito de explorar-nos); aquela é uma transformação por associação do conteúdo
dissociado (seja pelo processo histórico que engendrou a situação atual, seja pelo
reconhecimento dos agentes sociais e seus motivos/intenções).
Voltemos às noções de destituição semântica, ou mesmo inversão de valores
(axiomática). Antes disso a citação da sinopse do livro da Filósofa em questão:

Ideologia: um mascaramento da realidade social que permite a


legitimação da exploração e da dominação. Por intermédio dela,
tomamos o falso pelo verdadeiro, o injusto por justo. (...). (CHAUÍ,
2004: Sinopse).

Vimos a questão48 da ocultação. Tal é quase sinônima de mascaramento, com a


diferença de que: se na ocultação há, inicialmente, apenas omissão de algo dado, dum
fenômeno qualquer; no mascaramento, por sua vez, há a sugestão da intenção da
ocultação, da instrumentalidade da omissão. Já, em relação a injusto e justo, o conceito
de contradição desmerece uma classe para, simultaneamente afirmar a outra. Ou seja,
uma nega o atributo ou qualidade para afirmá-lo no outro. A idéia de “dois pesos, duas
medidas”, característica de todo fenômeno humano como injusto, estabelece critérios
distintos (discrimina, em seu sentido pejorativo), quando deveria ser um critério
comum. A pseudo-legitimação das diferenças de posições no cenário social, estabelece
um critério depreciativo (hipo-axiomático) para a classe subjugada, como também um
critério apreciativo (hiper-axiomática) para a classe subjugadora.

Estamos pois, diante do que se convencionou chamar de homem livre


moderno. Notamos, porém, que esse “homem” é de dois tipos
diferentes de homens: há o burguês, proprietário privado dos meios de
produção ou das condições do trabalho, e há o trabalhador, despojado
desses meios e dessas condições, “liberado” da servidão, mas também
despojado dos meios de trabalhar livremente, só podendo trabalhar
como assalariado. (...), é preciso distinguir duas faces do trabalho,
embora tidas como igualmente dignas: de um lado, o trabalho como
expressão duma vontade livre e dotada de fins próprios (isto é. O
trabalho visto pelo burguês), e, de outro lado, o trabalho como relação
da máquina corporal com as máquinas sem vida, isto é, com as coisas
naturais e fabricadas (isto é, o trabalho realizado pelo trabalhador).
(CHAUÍ, 2004: 18 e 19).

Aqui explicar-vos-ei a unilateralidade semântica aplicada ao conceito de


trabalho, bem como à inversão axiomática operada para dissimular a injustiça das
práticas e justificativas. Vale a metáfora da montanha em situação de paralaxe
predicativo-intencional (intencional, porque não descritiva, denotativa, mas
predominantemente conotativa). A mecanicidade do trabalho estabelece uma homologia
48
Problemática.
interna, uma representação psíquica de natureza equivalente: se o caráter mecânico do
trabalho (de sua atividade) é a repetição compulsiva, quase involuntária e autônoma, a
reação psíquica também será (tenderá) à repetição fora de controle, daí seu caráter
intrusivo49, como também o caráter compulsivo, repetitivo, quase paranóide.

(...). Ora, essas duas faces do trabalho também estarão divididas em


duas figuras diferentes: o lado livre e espiritual do trabalho é o
burguês, que determina os fins, enquanto o lado mecânico e corpóreo
do trabalho é o trabalhador, simples meio para fins que lhe são
estranhos. De um lado a liberdade. De outro a “necessidade”, isto é, o
autômato. (CHAUÍ, 2004: 19).

Quando não há possibilidade de escolha nem alternativa, não


exercemos a nossa liberdade. A deliberação é que distingue o homem
do autômato. Esta deliberação incide sobre o que é essencialmente a
obra do homem, sobre os valores e as normas por ele criados, e que a
discussão permite promover. (PERELMAN, 1997: 90).

Necessidade como dever, dever este naturalizado, ou seja, necessário, quando na


verdade é cultural e não natural, carregando assim o caráter contingencial50. Autômato:
o conformismo reflete-se tanto na reprodução de discursos com o mesmo critério
defensivo do status quo dominante e vigente, como também na práxis, na produção de
bens e, conseqüentemente, na reprodução dos mecanismos produtivos e suas
implicações de sujeição e racionalização dos mesmos.

Vemos, novamente como idéias que parecem resultar do puro esforço


intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros
conceitos nascidos da observação científica e da especulação
metafísica, sem qualquer laço de dependência às condições sociais e
históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais. Com
tais idéias pretende-se explicar a realidade, sem se perceber que são
elas que precisam ser explicadas pela realidade social e histórica.
(CHAUÍ, 2004: 19).

Se a uma separação voluntária por parte dos dominantes, há uma separação


involuntária por parte dos dominados. Se há um interesse explícito e objetivo da classe
dominante, há um interesse implícito e vago da classe dominada. A explicação
dominante é diretiva; já, a subjugada é defensiva. Embora haja uma reciprocidade entre
social e psíquico, entre práticas e ideias, Chauí, Marx e Engels enfocam a determinação
do plano ideal pelo plano da práxis. Compreendo o momento em que isso foi afirmado,

49
Compreendo por tal termo quando conteúdos acessam o plano consciente de maneira
intrusiva, compulsiva, involuntária. Tal intrusividade é a causa do fenômeno de estranhamento de tal
conteúdo que nos pertence, mas que é separado, dissociado volitivamente, daí parecer um outro agente
em nós, dominando-nos coercitivamente. Tal estado é retroalimentado pelo não reconhecimento de tal
produto psíquico como nosso, como um conteúdo nosso!
50
Antônimo de necessário: arbitrário ou contingente.
mas afirmamos que só ocorre a determinação do social para o mental será tão ideológico
(pela sua unilateralidade) quanto afirmarmos que somente os conceitos é que
influenciam as práticas. Na verdade, ambos os momentos são processos que configuram
um fenômeno maior, a saber: a interação perene entre sujeito e objeto, entre indivíduo e
sociedade, entre demanda social e demanda psíquica, entre realidade social e histórica e
a idéias que fomentamos e defendemos. Vimos que os conceitos distorcidos
sistematicamente entre a confusão das categorias: natural/cultural, causa/efeito,
necessário/contingente, essencial/acidental, são ótimos critérios operativos para
enganarmos a nós mesmos e aos outros. Se for verdade a determinação do social para a
mentalidade, sê-lo-á também, do mental para a realidade social e práticas51.

(...) como veremos, Marx não separa a produção das idéias e as


condições sociais e históricas nas quais são produzidas (tal separação,
aliás, é o que caracteriza a ideologia). (CHAUÍ, 2004: 34).

O próprio tomar partido, ou seja, separar aquilo que está coeso em sua natureza
fenomênica é um recurso pernicioso e litigioso do discurso. Assim como não cabe a
pergunta ou isto ou aquilo – como vimos na explanação da teoria das partes e o todo;
também não cabe a declaração ou valoração unilateral de um dos dois momentos do
processo de ideologia e alienação, pois tanto o discurso como a práxis são
reciprocamente determinantes e, portanto, simultaneamente determinados.
As abstrações voluntárias com fins de dominação e ocultamento acarretam num
drama humano: inventamos a separação para evitarmos que conteúdos históricos (mais
sincrônicos ou diacrônicos) sejam acessados. Tal movimento anti-dialético é uma
redução conteudística as causas (intenções) da situação atual.

A ignorância do método de explicitação dialética (fundada sobre a


concepção da realidade como totalidade concreta) conduz à subsunção
do concreto sob o abstrato, ou à omissão dos termos intermediários e à
construção de abstrações forçadas. (KOSIK,1976: 32).

Além de omitir, ocultar há outra intervenção abusiva: a distorção histórica.

(...) teremos de analisar a história dos homens, pois quase toda a


ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a
uma abstração completa dela. (...). (CHAUÍ, 2004: 36).

Bem, como escrevi consideravelmente sobre os mecanismos de distorções, quero


ressaltar o primado do discurso como instrumento ideológico por excelência. Pois se no
plano do discurso admitirmos problemas e causas, então alguma coisa poderá ser feita,

51
O próprio tomar partido, ou seja, separar aquilo que está coeso em sua natureza fenomênica
é um recurso pernicioso e litigioso do discurso. Assim como não cabe a pergunta ou isto ou aquilo –
como vimos na explanação da teoria das partes e o todo; também não cabe a declaração ou valoração
unilateral de um dos dois momentos do processo de ideologia e alienação, pois tanto o discurso como a
práxis são reciprocamente determinantes e, portanto, simultaneamente determinados.
transformada. Se os pensadores elegeram o primado da ação, foi através do
convencimento duma análise minuciosa, sagaz e sutil... com todos os recursos
categoriais explicativos, próprios que são do plano do discurso e não da práxis. Agora
de nada adiantaria a capacidade abstrativa e investigativa sem aquele axioma da
mudança, da participação como agentes transformadores, que fazem história e não
apenas a recebemos pronta, acabada. O aspecto motivacional é condição necessária e
insuficiente, pois depende da conscientização, da reflexão dos ardis sutis dos
argumentos falazes. Por sua vez, o aspecto consciencial, categorial é condição
necessária, mas sozinha, insuficiente também, uma vez que depende da motivação, da
volição e auto-estima para negarmos as regras sociais e seu cenário que engendram a
exploração sistemática, seja na práxis, seja na teoria.
Denomino de insurreição a revolução tanto axiomática como aplicativa. Aquela
é antecedente; a volição quando suficiente é conseqüente, aplicativa. Aplicação sem
conteúdo é vontade sem referência; valores sem aplicação são pessoas doentes e
medrosas, discurso que aparenta valor e não aplica é hipocrisia. Ah, lembremos: abstrair
um conteúdo, ou seja, tornámo-lo independente52, como se tivesse vida própria é um
dos fatores da natureza ameaçadora que discutimos há pouco. Quando vivificamos por
separação, um determinado atributo predicamos uma qualidade que o conteúdo
separado não tem. Mas como pode isso? Simples: por conotação, atribuímos
indevidamente o efeito que temos das ideias pelas causas. Uma espécie de metonímia da
ordem causal. Alteramos, invertemos a sucessão do processo: admitimos o poder das
ideias como causa quando é resultado (quando condicionadas pelas ações), epifenômeno
dum quadro maior que o engendrou, a saber: as relações de produção econômica, por
exemplo.
Quando afirmo: a sociedade é muito forte, poderosa... não afirmo algo que
pertence a ela, a um grupo de indivíduos. Mas sim, afirmo nas entrelinhas, o grau de
suscetibilidade que posso ter em relação ao que a maioria pensa, deseja e espera de
mim. Quando afirmo: Ah, a sociedade me obrigou... É mentira! Eu, em minha pequenez
e auto-estima baixa, coloco um Grande Outro imaginário como causador daquilo que foi
eu que fiz, a saber: aceitar um comando, um conteúdo coletivo adentrar meu campo
mental no plano consciente e fazer dele como se fosse o meu! A fusão volitiva entre o
estrato social e o individual é um fenômeno em que a responsabilidade é nossa! Nós
somos os geradores de tal fenômeno. E mais, em nossa indulgência, não reconhecemos
como produto nosso, e este passa a operar, mecanicamente, compulsoriamente,
freneticamente, como algo estranho, um outro em nós, e que a cada dia ganha mais
força, se e na medida em que dissocio tal conteúdo do plano consciente para o
inconsciente operar, manipular... A negação do produto com seu produtor é outro
fenômeno psico-social de grande alcance ideológico.
Meu método é simples: a interação da análise formal, ou seja, dos critérios
operativos presentes em todo o ser humano e os conteúdos que são ou expurgados ou
acolhidos, ou dissociados ou associados ao plano consciente de considerações, de

52
Terei o prazer de explicar o mecanismo operativo da hipóstase, tão usado pelos adeptos de
instituições “religiosas”, míticas e políticas (partidárias).
articulações de pensamento e investigações. Durante séculos, diversos pensadores53 e
cientistas afirmaram o primado das estruturas (critérios operativos e invariantes) em
detrimento da análise dos conteúdos. Assim fizeram com o significante em detrimento
do significado, assim fizeram da psicologia de laboratório, sob o pretexto de que uma
interpretação por introspecção seria “não científico”. Mas para muitos não avisar os
propósitos da escolha faz parte do ocultamento do mesmo mantido às custas de relegar
como não merecedor de atenção ou estudo aquilo que rege qualquer teoria ou ação: o
aspecto axiomático (valores em causa).

A adaptação do pensamento à nova situação será obra de um homem


que houver refletido nas diferentes possibilidades que se apresentam e
houver escolhido com conhecimento de causa e com plena
responsabilidade. Eis os sentido que se deve dar ao princípio de
responsabilidade, que faz da decisão avisada do pesquisador o
elemento determinante na elaboração de um sistema de pensamento.
Citando Gosenth, “uma dialética” e a filosofia regressiva é uma
dialética – “nem é automática nem arbitrária”; é conquistada por uma
mente consciente de sua participação no real e de sua capital liberdade
de julgamento. (PERELMAN, 1997: 142).

Tal é o exemplo clássico e pernicioso dos argumentos que receiam pela análise
conteudística, seja do inconsciente para Lévi-Strauss, seja do significado para Lacan,
seja da semântica para Bloomfield, seja para a subjetividade e idiossincrasia para
Watson; seja para admissão do aspecto psíquico do Social em Comte, seja da
interpretação intencional em todos os ‘cientistas’ que defendem a cientificidade sobre a
rubrica da denotação, quando a conotação é própria das Ciências Humanas, no universo
semiótico-intencional, bem como a fenomenologia como descrição processual dum
fenômeno qualquer.

(...) A verdade do sistema fechado não será mais averiguada por uma
hermenêutica a partir da significação revelada, mas deverá apreender
as relações e inter-relações entre signos no interior da estrutura
delimitada, e do jogo que ela define entre signos.
Desse entrelaçamento das relações, esvaziam-se tanto a contingência
histórica quanto o livre jogo da iniciativa. (...).
No momento em que as ciências humanas parecem fascinadas pelo
modelo cibernético, a variável humana, em seus componentes
psicológicos e históricos, torna-se inconsistente e deve ceder o lugar a
um método rigoroso que se quer eficaz como aquele em uso nas
ciências exatas. O sistema fechado que se impõe pagará um alto preço
por sua colocação à distância do mundo real. Entretanto, terá uma
extraordinária eficácia pela abertura do campo do saber que vai
prognosticar. (DOSSE, Vol I - 2007: 460).

53
Lévi-Strauss na Antropologia, Bloomfield na Lingüística, Lacan na Psicanálise, Comte na
Sociologia, Watson na Psicologia.
Mas tal escolha, ainda que omitida e resistida (como sintoma por negar
examinar seus próprios valores ou pressupostos metológicos) carece de revisão caso
algum elemento novo apareça e não se encaixe em seus moldes. Necessário será – se a
explicação quiser avançar – um exame de conteúdo, ou seja, dos valores primeiros da
teoria ou de seu método.

(...) O que lhe influencia a decisão, bem como a dos outros, são
argumentos cujo valor ele próprio deve avaliar. Quando for preciso
adaptar seu sistema a fatos novos que suscitam um conflito em seu
pensamento, o pesquisador deverá inventar modificações possíveis de
suas concepções e escolher aquela que lhe parecer mais idônea. Aliás,
terá de justificar essa escolha e mostrar as razões por que lhe pareceu
preferível, se desejar obter a adesão de seus pares. (PERELMAN,
1997: 143).

Antes de averiguarmos o posicionamento singular de alguns pensadores


estruturalistas, está prévia sobre o Estruturalismo garante uma apreciação sobre os
fatores reducionistas – e, portanto, ideológicos – como também os fatores vantajosos de
tal método54 aplicado para entendermos o ser humano em sua operatividade inerente à
sua própria natureza. O campo semântico, ou melhor, todo o processo de significado da
agente humanos é repelido conscientemente da esfera investigativa por diversos
filósofos e cientistas, sendo o estruturalismo mais um método reconhecidamente assim.

O novo método visa, pois, depurar a estrutura de todo o conteúdo


semântico significativo, retirar dela todo o conteúdo semântico: “Uma
estrutura é um conjunto operacional de significação indefinida,
agrupando elementos em qualquer número, cujo conteúdo não se
especifica, e relações, em número finito, cuja natureza não se
especifica, mas cuja função e certos resultados se definem quanto aos
elementos. A análise estrutural situa-se acima do sentido, ao contrário
da análise simbólica que seria esmagada por este (...)”. (DOSSE, Vol
I - 2007: 138).

As descrições positivistas da realidade são fenomenologicamente


falsas, porque seus adeptos – como naturalistas e psicólogos – são
cegos diante do fato de que o pretendido “significado” é específico,
sui generis, incapaz de se dissolver em atos psíquicos. São cegos para
o fato de que a percepção e o conhecimento dos objetos significativos
envolvem, como tal, interpretação e entendimento; de que os
problemas surgidos nesta conexão não podem ser resolvidos pelo
monismo científico; e, finalmente, de que seu naturalismo os impede
de ver, de maneira correta, as relações entre a realidade e o
significado. (MANNHEIM, 1974: 34).

54
Análise Estrutural acima descrita..
A imagem fisicalista do positivismo empobreceu o mundo humano e
no seu absoluto exclusivismo deformou a realidade: reduziu o mundo
real a uma única dimensão, e sob um aspecto, à dimensão da extensão
e das relações quantitativas. (KOSIK, 1976: 24).

Simultaneamente à questão semântica que, valora assim abandona também como


objeto de estudo a intencionalidade, pois nas Ciências do Comportamento o significado
remetem-nos ou direta ou indiretamente á intencionalidade dos agentes prático-
comunicativos. Outro fator em destaque é o reducionismo explicativo unilateral:

Não só determinar o sentido das noções, mas também a intenção de


quem fala, a significação e o alcance de que diz – tudo isso são
problemas fundamentais da retórica com que a lógica formal, baseada
na univocidade, não tem de se preocupar. (PERELMAN, 1997: 81).

(...) Além do mundo físico existe ainda um outro mundo, igualmente


legítimo – por exemplo o mundo artístico, o mundo biológico, e assim
por diante –, o que significa que a realidade não se exaure na imagem
física do mundo. O fisicalismo positivista é responsável pelo equívoco
de ter considerado uma certa imagem da realidade como a realidade
mesma, e um determinado modo de apropriação da realidade como o
único autêntico. (KOSIK, 1976: 25).

Especificamente Lévi-Strauss e Bloomfield – respectivamente antropólogo e


lingüista – são acusados55 de reducionismo criteriológico em seus métodos, uma vez
que neles nega-se a dimensão de sentido humano ou significado como uma região
“enigmática” que por tal delicadeza interpretativa ou dificuldade de acesso e critérios
interpretativos para inferirmos tais significados merecem esquecimento, repúdio,
negligência ou dissociados56 do campo do saber como objetos de estudos
permanentemente relegados ou ao misticismo ou àqueles devotados estudiosos que
“carecem” de fundamentação “científica”.

(...) a própria tese da objetividade das ciências não valorativas já


pressupõe a validade intersubjetiva das normas morais.
(REGENALDO - APEL, 2002: 192).

(...) podemos destruir o pré-juízo ou pré-conceito da subjetividade


irracional de todas as normas morais e, após ter feito isso, deixar o
caminho aberto para a tentativa de descobrir o princípio fundamental
da ética na era da ciência. (REGENALDO - APEL, 2002: 193).

55
Incluo-me dentre eles!
56
Especificamente dissociação axiomática.
(...) é possível esclarecer que as normas éticas fundamentais
pressupostas pela ciência não constituem meros imperativos
hipotéticos, pois elas proporcionam, inclusive, uma resposta à
pergunta se a ciência deve ser. (REGENALDO - APEL, 2002: 194).

Na própria exigência de objetividade das ciências implicitamente há a eleição e


aplicação do valor de objetividade no sentindo de extirparmos das explicações
quaisquer desvarios ou fantasias. Nisso reside o valor de não inventarmos (pelo desejo)
aquilo que desejamos descobrir. Neste aspecto, o desejo de conhecer deve suplantar
quaisquer intromissões da outra parte desejante que almeja atingir status epistêmicos no
mero epíteto da imaginação dogmática (mais inventada do que descoberta). É valoroso
que ajamos assim, evitando alguns aspectos subjetivos que podem interferir no
resultado ou nas causas explicativas. Agora, se confundirmos este aspecto subjetivo do
desejo imaginário com o desejo epistêmico – que se dobra a regras inferenciais de de
derivação explicativa – cometeremos a falácia da generalização apressada, em
tomarmos um dos aspectos subjetivos com todo subjetivo. O aspecto subjetivo que
devemos reter e assumir – ao menos nas ciências exatas – é a deliberação por normas e
métodos condizentes com nossos respectivos objetos de estudo: atermo-nos ao
experimento e a regras predicativas – indutivas e dedutivas, por exemplo – na
construção de teoremas ou sistemas explicativos, o que garante uma construção não
dogmática. Toda valoração é subjetiva porque trata de valores, de axiomas a serem
aplicados e respeitados em determinadas circunstâncias; mas não necessariamente
dogmática como o apelo à fantasia pelas explicações míticas de “entidades” invisíveis
supostamente responsáveis por alguns fenômenos naturais.
Seria o significado (afeto-valorativo) uma dimensão inócua de estudo?

(...) o Behaviorismo sustenta que o comportamento humano é


totalmente explicável (= previsível) a partir das situações em que se
apresenta, independentemente de qualquer fator “interno”. Bloomfield
conclui daí que a fala também deve ser explicada por suas condições
externas de surgimento: denominado essa tese de MECANISMO, ele
opõe ao MENTALISMO, inadmissível a seus olhos, segundo o qual a
fala deve explicar-se como efeito dos pensamentos (intenções,
crenças, sentimentos) do sujeito falante. (...) Bloomfield exige que nos
contentemos por ora em descrevê-la (daí um descritivismo, oposto
tanto ao historicismo dos neogramáticos quanto ao funcionalismo. (...)
que evite toda alusão aos sentidos das palavras pronunciadas.
(DUCROT/TODOROV, 2007: 42).

Bloomfield (...) fez mais do que qualquer outro estudioso para tornar a
lingüística uma disciplina autônoma e científica (no sentido que ele
próprio atribuía ao vocábulo “científico”). (...) não hesitou em
restringir as suas discussões, deixando de considerar aspectos da
linguagem que, acreditava ele, não podiam ainda, ser tratados com
precisão e rigor suficientes. (LYONS, 1976: 30).
Considerava Bloomfield que a análise do significado era o ponto fraco
“do estudo da linguagem” e que assim continuaria “até que o
conhecimento humano avançasse” para muito além de seu estado
atual. (...). por quase trinta anos após a publicação do seu livro, o
estudo do significado foi inteiramente posto de parte pela escola
bloomfieldiana, que freqüentemente o considerava alheio à lingüística
propriamente dita.
As de ordem semântica limitavam-se estritamente à tarefa de
identificar as unidades da fonologia e sintaxe e de modo algum diziam
respeito à especificação de regras ou princípios disciplinadores de
suas permissíveis combinações. Essa parte da gramática devia
constituir um estudo puramente formal, independentemente da
semântica. (LYONS, 1976: 33 e 34).

Seria a afetividade humana uma região sombria a ser temida ou evitada? Seriam
os valores indignos de serem inseridos ao programa da análise estrutural? Indignos de
inserção à fenomenologia ou à semiose, estes que explicitam os processos sutis
necessários ao entendimento dum dado fenômeno? Seria o evitamento de tais tópicos
semânticos uma forma reativa de medo ao nos depararmos com um aspecto humano
mais complexo e vital para a felicidade e entendimento humano? Vejamos mais um
pouco do preconceito estruturalista:

O inconsciente lévi-straussiano é estranho, portanto, aos afetos, ao


conteúdo, à historicidade do indivíduo. Reencontra-se o predomínio
concedido à invariante sobre as variações, à forma sobre o conteúdo,
ao significante sobre o significado próprio do paradigma estrutural.
(DOSSE, Vol I - 2007: 166).

(...) Este afastamento do conteúdo, do afeto, Lévi-Strauss (...) critica o


recurso da psicanálise à afetividade, às emoções, às pulsões que
correspondem ao nível mais obscuro do ser humano e impróprio para
explicações de natureza científica. Lévi-Strauss justifica a distinção
entre esses dois planos ao explicar que o intelecto só pode analisar o
que depende de uma natureza semelhante, uma abordagem que exclui,
portanto, o afeto. (DOSSE, Vol I - 2007: 167).

(...) sou apresentado quase sempre como um cientista inumano: “Eu


estou irritado por me ver rotulado nos fichários universitários como
um mecanicista sem alma, somente prestável parar meter os homens
em fórmula”. (DOSSE, Vol I - 2007: 186).

Temos aqui um pressuposto interessante. Strauss parte da premissa valorativa de


que só podemos conhecer um determinado aspecto humano que seja compatível à
própria dimensão investiga do órgão ou instrumento em questão, a razão. O intelecto
humano – para estudar quaisquer fenômenos – precisa de critérios metódicos para
aplicar na formação de teorias, na derivação de inferências válidas à partir das premissas
de partida. Nesse contexto, o Estruturalismo repete a vicissitude do Positivismo, como
oportunamente reconhece Habermas:

(...) psicologicamente, o cultivo de uma auto-suficiência teórica e,


epistemologicamente, a separação entre conhecimento e interesses. No
nível lógico, isso corresponde a uma distinção entre asserções
descritivas e normativas; vinculando no plano gramatical a separação
entre conteúdos meramente emotivos e cognitivos. (HABERMAS,
1980: 302 e 303).

Estes investigadores talvez nunca se perguntaram se podemos aplicar métodos


permanentes, invariantes, a objetos de natureza variada, distinta. Qual seria a reação
deles se impuséssemos à força critérios e métodos explicativos das Ciências Humanas
ou Ciências do Comportamento para o âmbito natural? Seja sentimentos, seja vontade,
seriam inadequados para aplicarmos tais categorias no estudo da Física, ou mesmo
nalguns aspectos da Biologia. Assim como seria absurdo categorias e premissas de tal
teor para objetos naturais, sendo este abordado por predicados culturais; também sê-lo-
ia absurdo aplicarmos o método quantitativo (matemático) para prever, inferir ou
explicar os motivos ou os significados de práticas e discursos. Tal seria um
reducionismo metódico por um lado e, uma inadequação categorial e axiomática por
outro.

Essa limitação do papel de nossa razão, que descarta a priori


qualquer possibilidade de razão prática, não era evidente a ponto de
dispensar qualquer justificação. Aliás, Hume não se contenta em
recorrer à evidência para apresentar uma concepção da razão tão
revolucionária, pois se esforça por justificá-la racionalmente. Ora,
insista-se neste ponto, toda justificação se reporta à prática, pois
concerne essencialmente a uma ação ou a uma disposição para agir:
justifica-se uma escolha, uma decisão, uma pretensão. Isto é verdade
mesmo quando, aparentemente, a justificação se aplica a um agente ou
a uma proposição. (PERELMAN, 1997: 168).

O que denomino dissociação, com seus efeitos patológicos afeto-cognitivos,


Habermas chama de desvincular, incidindo-o sobre o processo redutor apresentado
como purificador para um conhecimento depurado de afetos indesejáveis:

(...) O processo de purificação dos elementos afetivos e emocionais


presentes na práxis humana sempre instável e movida por interesses é
reduzido a uma contemplação desinteressada, significando
evidentemente emancipação. Desvincular o conhecimento do interesse
não depura a teoria do subjetivismo, reduz o sujeito a um processo de
purificação estática das paixões. (HABERMAS, 1980: 304).
Seja o Estruturalismo, seja o Positivismo, ambos destituem a natureza humana
reduzindo-a ao aspecto natural. O cultural, assim, é sistematicamente, estrategicamente
negado: seja a negação como objeto de estudo, seja a negação como aspecto (afetivo-
semântico).
A própria afirmação de que a razão só pode investigar algo semelhante parte do
pressuposto de que cognição e afeto são distintos e isolados. Recusam-se a admitir que
não são partes como pedaços; mas sim, são momentos de um processo. Ainda que não
estudado, o axioma do “intelecto apartado da afetividade” ou da “razão que é ‘contrário
à emoção’”, ou mesmo o plano dos valores são abstrações, separações forçadas que
resultam do preconceito e do medo de investigarmos uma dimensão humana vital. Os
pressupostos de “intelecto puro” esconde e mascara que partem dum axioma57, a saber:
o valor de que o entendimento é averso e contrário ao sentimento; de que a
operatividade humana está isenta de valores que regem o estudo e são anteriores às
derivações inferenciais pelas quais partem. Os princípios “científicos” são negações
voluntárias de destituição, de reducionismo humano à esfera da máquina: a qualidade é
sacrificada em prol da quantificação, da fórmula e, portanto, levianamente dissociada da
investigação.
Quando estudamos qualquer fenômeno estamos motivados pelo axioma do
Conhecimento.

Dizia-se a Henrique IV “Teu desejo, Henrique, gerou tal pensamento”,


uns pouco anos antes de Bacon escrever “A compreensão humana não
é apenas luz, ela está impregnada de vontade e de sentimento; daí
derivam as ciências que se poderiam chamar ‘ciências como se
gostaria’”. E Nietzsche tinha deixado uma série de aforismos sobre os
modos pelos quais as “necessidades” determinam as “perspectivas”
segundo as quais interpretamos o mundo, de forma que mesmo as
percepções sensoriais se permeiam de juízos de valor. (MANNHEIM,
1974: 34).

(...) O objetivismo não será vencido pela força da theoría renovada


como pensava ilusoriamente Husserl; porém, pela demonstração da
conexão entre conhecimento e interesse. (...) Esta filosofia mantém-se
como uma área específica em relação à ciência, longe do alcance da
consciência coletiva, e sobrevive na autocompreensão positivista da
ciência como herdeira de uma tradição da qual separou-se
criticamente. (HABERMAS, 1980: 312).

Ainda que para mim seja questionável se Husserl equivocou-se por considerar a
teoria (ou a força argumentativa da mesma), refutarei parcialmente a declaração de
Habermas: Se todo argumento demonstrativo alicerça-se em argumentos (teoria
enquanto sistema explicativo que contêm diversos argumentos), então como
demonstrarmos sem o recurso simbólico da explicação? Se podemos inferimos a

57
Ainda que esta esteja subentendido, implícito.
intenção pelos axiomas não raro implícitos, como fazê-lo sem a teoria? Como não li em
detalhes a vasta obra de Habermas, limito-me a lançar perguntas para refletirmos sobre
e se a posição de Husserl é ilusória... talvez a seja pelo método empregado ou critério,
mas não pelo instrumento teórico, este que é necessário para qualquer tese: inclusive
para demonstrarmos a conexão entre interesse e conhecimento, na perspectiva de como
o segundo é determinado pelo primeiro. De qualquer modo Mannheim e Habermas são
solidários quanto o conhecimento: – seja o juízo de valor sobre a percepção, seja o
intenção ou valores sobre o conhecimento – a determinação e antecedência valorativo-
intencional sobre o conhecimento ou juízos.
Quando afirmamos sentimentalismo que promovem dogmas explicativos,
separamos o desejo humano de que influi na distorção do fenômeno, na imaginação que
constrói o conteúdo sem se valer de métodos adequados. Ao fazermos isso, tendo o
axioma da imaginação ou fantasia como critério de conhecimento, ao invés de
descobrirmos (por construção ou composição, derivada de critérios epistêmicos)
projetamos o conteúdo que desejamos conhecer (construção ou composição, derivada
de critérios desejantes). Não é o desejo ou o axioma que são ruins, mas especificamente
o desejo de dar o conteúdo ao invés de derivá-lo de critérios de inferências. Fazer dos
valores ou do desejo, responsáveis pelas fantasias explicativas, é não discriminar entre
desejo epistêmico (normativo e, portanto, um tipo axiomático aplicativo) de desejo
fantasístico (projetivo de conteúdo e, portanto um tipo axiomático projetivo).

(...) todas as vezes que ocorrem incompatibilidades e que desejamos


não evitar que elas ocorram, e sim resolvê-las, seremos levados a
dissociar noções de modo que se modifiquem o sentido e o alcance
das regras que lhes concernem. Distinguiremos a realidade da
aparência e aplicaremos o qualificativo real à parte da noção que
desejamos manter o campo de aplicação da regra e o qualificativo
aparente (ou um de seus sinônimos, como ilusório, factício, nominal
pseudo) à parte à qual a regra anterior não mais se aplicaria.
(PERELMAN, 1997: 174).

Nesse aspecto, o argumento de que o axioma ou o desejo deve ser erradicado da


investigação é uma falácia de Elipse58. Tal expediente constrói-se por significar
somente o aspecto do desejo que projeta o conteúdo com todo o desejo. Assim, ocorre
uma fusão injustificada de desejo fantasístico que projeta – literalmente inventa – o
conteúdo, daquele desejo (cognitivo ou epistêmico) que aplica regras ou normas para a
derivação de premissas e teorias. Essa fusão de significados transforma todo o desejo
em motivo de distorção, fantasia ou invenção de conteúdo pela imaginação, quando

58
Este recurso estilístico cumpre a três finalidades: 1) omite o significante que especificaria o
aspecto (significado) pelo qual a acepção do termo está sendo empregada; 2) faculta a fusão dos dois
aspectos no mesmo significante; 3) desvia a atenção do intérprete ao tomar a parte ou aspecto
rejeitado como o todo, operando assim na falácia da generalização apressada da Lógica, tomando os
resultados da parte como inerente ao todo (em relação ao significado que desloca-se na parte
rechaçada para a outra parte que aceito como digna como por exemplo a afetividade fantasística na
arte, mas não na ciência).
apenas um aspecto, o aspecto de desejo fantasístico e auto centrado em sua imaginação
idiossincrática é que merece ser separado, evitado como critério gnoseológico, ou seja
de produção de conhecimento. O axioma científico filosófico de evitarmos tal
subjetividade idiossincrática por objetividade metodológica também é um valor,
também está aí o desejo humano que o impele e motiva a conhecer, mas somente a
conhecer, descobrir e não a imaginar o conteúdo, não a projetar o desejo no fenômeno
de maneira conteudística.
Uma coisa é o desejo de conhecer e de sermos imparciais, evitando o desejo de
influirmos conteudisticamente no fenômeno; outra coisa diametralmente oposta é o
desejo de ser parcial e partimos do desejo de imaginarmos o conteúdo ao nosso bel
prazer. Um aplica critérios para conhecermos; o outro projeta conteúdos – oriundos de
si mesmo – como se fossem inerente ao fenômeno ou objeto estudado. Somente
genuinamente entendemos quando estamos sensíveis para discriminarmos, dissociarmos
noções em seus aspectos possíveis.

(...) O mais das vezes o critério dessa dissociação será teleológico, no


sentido de que a regra que se deseja modificar será tornada relativa
com relação a um fim em que ela sempre deveria ter realizado:
constatar-se-á que, em certos casos, a conformidade à regra não
constitui um meio eficaz para realizar o fim em questão e que, nessa
ocorrência, a regra deveria ser desqualificada, que convém deixar de
lhe atribuir o valor que se lhe concedia independentemente de suas
conseqüências. Nessas circunstâncias aparecem, melhor do que nunca,
a ligação íntima que existe entre uma decisão e nossos juízos de
valor, e a maneira pela qual estruturamos o real de acordo com este
último. (PERELMAN, 1997: 174).

Ao afirmar que o intelecto ou razão só pode conhecer algo similar, opera-se aqui
uma indistinção entre instrumento que analisa e peculiaridade do objeto. Intelecto é
diferente de percepção sensorial, mas valemo-nos amplamente dela para que nossas
operações mentais construa conhecimento como: psicologia da percepção,
fenomenologia da percepção, física, astronomia etc. Ao tomarmos o sentimentos e
afetos não necessariamente estamos empregando o critério de desejo que projeta, mas
podemos utilizar o critério de desejo que explica ou descobre o objeto estudado. Este
último também é um axioma: o critério epistêmico aplicativo-normativo para validar
nossas derivações inferenciais e distingue-se do critério afetivo projetivo-conteudístico.
Entretanto, nem todo critério afetivo é projetante, pois é um axioma – e, portanto, um
valor – empregarmos o critério epistêmico para conhecer, assim como nos restringirmos
ao critério afetivo projetante ao âmbito artístico: desejo, filmes, teatro, música... na qual
a criatividade que gera conteúdos é desejada, solicitada e adequado quando e por fins
artísticos.
Confundir o domínio artístico com o científico-filosófico é tão imaturo quanto
confundir o desejo projetante conteudístico do desejo analítico formal. Este é fruto do
desejo de conhecer; aquele é fruto do desejo de construir e projetarmos tal qual como
numa ficção. Assim como há o aspecto pernicioso do sentimento – determinando com
sua composição do conteúdo imaginado, há também o aspecto salutar do sentimento: a
sensibilidade cooperativa de erigir regras ou normas como critérios comuns para
inferências válidas na construção explicativo-teorético.
Por que escrevi sobre isso? Por que refuto o reducionismo teórico de que o
argumento do critério de similaridade da razão é uma falácia? Respondo-vos
solenemente:

Porque toda atividade humana rege-se por valores... ainda que implícitos.

Porque toda investigação guarda em seu bojo ou atividade, um desejo, mas não
necessariamente deturpador ou fantasístico em relação à produção de conhecimento.

Porque com a comparação da razão estudando a percepção já é uma exemplo de que o


intelecto ou entendimento entende as relações sensoriais e as explica.

Porque a razão pode estudar o comportamento humano e o sentimento sem se deixar


levar pelo desejo fantasístico, bastando para isso manter-se atento para a operatividade
composicional do psiquismo humano, valendo-se – quando em esfera epistêmica – do
desejo cognitivo ou epistêmico como motivador e formulador dos critérios
gnosiológicos, guardando a atividade ficcional para práticas lúdico-artísticas.

Porque o desejo humano não é pernicioso é si-mesmo, isoladamente, mas somente


quando estes dois desejos distintos invadem por inadequação de seus resultados –
juntamente com os propósitos mesquinhos – ou o emocionalismo na área do
conhecimento ou o racionalismo na área da arte. Ambas as invasões são confusões
quanto ao gênero de desejo e sua relação com o
objeto, ou mesmo da função que cabe a cada uma destes desde que em seu respectivo
campo de atuação.

(...) nos fechamos numa concepção formalista da prova dedutiva, se


insistimos no caráter arbitrário do sistema axiomático elaborado (...).
É preciso, para que o aparelho dedutivo cumpra sua função, que se
interpretem axiomas e regras operatórias, que se conceda a essas
interpretações um valor suficiente para que a falta de concordância
entre os resultados do cálculo e das medidas obrigue a efetuar certas
retificações. (PERELMAN, 1997: 81).

O absurdo reside na intromissão epistêmica no âmbito da fantasia, e desta no


âmbito epistêmico. Somente em relação ao campo ou área refuto suas atividades, mas
jamais cada uma em sua área solicitada como adequada para seus fins próprios:
Conhecimento por normas desejadas e aplicadas, Criatividade por conteúdos desejados
e projetados.
Voltemos ao aspecto redutor do pensamento científico:
O positivismo, meramente uma filosofia da não-filosofia (...) é uma
escola essencialmente iludida, não só porque hipostasia um conceito
particular do empirismo, como porque defende que o conhecimento
humano pode ser completo sem a metafísica e a ontologia. (...) uma
doutrina que hipostasia certos métodos paradigmáticos, e as esferas de
realidade a eles correspondentes como “absolutamente” válidas, se
torna desse modo, ela própria uma metafísica – não obstante
particularmente limitada. (MANNHEIM, 1974: 32 e 33).

Surgiram filósofos antimetafíscos, ou seja, opostos a qualquer


filosofia primeira, aqueles que, comumente, na história da filosofia,
são denominados relativistas e cépticos. (...) Essas razões supunham
igualmente a validade de princípios primeiros e incondicionais, que
tinham o mal suplementar de não serem expressos. Daí resulta que
todo o antiabsolutismo, todo antidogmatismo, para ser levado a sério,
deveria empenhar-se em por em evidência as afirmações metafísicas
que estavam na base da crítica. Ora, semelhante oposição de princípio
a qualquer filosofia primeira, se não quer sucumbir por efeito de sua
própria crítica, só pode consistir numa filosofia regressiva.
(PERELMAN, 1997: 139).

Bem, já vimos o quão ameaçador pode ser um revisamento axiomático dum


sistema explicativo com o qual não participamos. Qual o risco? O risco de aplicarmos
tal exame aos nossos próprios axiomas fundantes!

A filosofia regressiva se opõe ao estatuto concedido pelas filosofias


primeiras a ser necessário, à verdade primeira e ao valor absoluto.
Enquanto, para estas, a aquisição de um ponto de partida assim,
irrefragável, constitui uma iluminação, que lhes possibilita fundar toda
a seqüência das deduções subseqüentes, para a filosofia regressiva este
será apenas um limite provisório para as suas investigações, limite que
é um marco, mas não uma luz. O valor desses princípios não é
determinado por alguma evidência, por alguma intuição privilegiada,
mas pelas conseqüências que dele se podem tirar que nada mais são
senão os fatos que servem de ponto de partida concreto para toda
pesquisa filosófica. (PERELMAN, 1997: 139 e 140).

Vimos alguns dos efeitos da dissociação afeto-congnitiva operada tanto pelo


Positivismo como também pelo Estruturalismo. Citei sobre a falácia do Colonizador a
invadir, saquear e escravizar os povos subjugados a seu domínio: “Levaremos o
progresso (sendo na intenção = progresso a qualquer custo!) para os povos não
civilizados”. Quando mentimos ao ocultar nosso interesse, vontade, caímos no recurso
funcional da “justificação formal” para nossa ação antecipadamente reconhecida como
anti-social ou pelo menos desmerecedora dum grupo social nalgum nível ou aspecto. A
esse ocultamento intencional denomino de Justificação Dissimuladora-telésico para fins
de reconhecimento coletivo como motivo legítimo fundador da ação:
(...) De fato, conquanto as técnicas da justificação possam
efetivamente variar, trata-se, em ambos os casos, de justificar um
comportamento, uma conduta ou uma pretensão. Se tal ponto é aceito,
se a justificação concerne á prática, para que a própria idéia de
justificação racional não seja um contra-senso, é indispensável alargar
a nossa concepção da razão, de modo se possa compreender como ela
serve para outra coisa além de descobrir a verdade e o erro. Nada tão
eficaz para chegar a um resultado satisfatório, como uma análise
prévia do contexto em que ocorre a justificação de métodos utilizados
para isso. (PERELMAN, 1997: 81).

Mas por que analisarmos contexto? Explico-vos: porque somente nas


implicações extralingüísticas a que o texto está submetido, como complementaridade
semântica e também pragmática, como critérios interpretativos da intenção do agente
obtidos pela derivação dos mesmos critérios em casos singulares e similares. Sendo
assim, a recusa, por exemplo, da dimensão axiomática nos sistemas dedutivos das
teorias infere uma rejeição do compromisso valorativo para qualquer princípio,
relegando-o com a justificativa duma: intuição, atividade auto-evidente ou mesmo como
algo reducionista quanto ao aspecto pernicioso dos afetos (como já vimos). Retomemos
também a questão do método das ciências naturais frente às ciências humanas ou do
comportamento:

A descrição ou a reprodução estão ligadas a critérios. A escolha


desses critérios exige um nível crítico, uma superação crítica por
mediação de argumentos, dados que não podem ser deduzidos
logicamente nem demonstrados empiricamente. Decisões
metodológicas no nível dos princípios, como distinções básicas, (...)
possuem a peculiar característica de não serem arbitrárias ou cogentes.
(HABERMAS, 1980: 308).

Comentei também da função ou intento de nos eximirmo-nos da


responsabilidade duma determinada atitude pelo expediente da racionalização, não
atingindo uma legitimação, mas empregando um pretexto dissimulador entre o agente e
ato, evitando aquele de ser imputado pelas implicações deste: o ato isolado está sujeito
numa articulação valorativa duma comunidade práxica.

Quando se refere a um agente, a justificação consiste, de fato, na


justificação de sua conduta. Ela pode também, é verdade, visar a
dissociar, ou inteira ou parcialmente, o agente do ato, provando que
essa conduta não lhe é um imputável ou que ele não é responsável por
ela, em vista de circunstâncias particulares; mas então se trata antes de
desculpa do que de justificação. (PERELMAN, 1997: 168).
O esquema é simples: ou destituo o caráter salutar os afetos ou valores (quando
refletidos pelas implicações) que servem como critérios cognitivos epistêmicos, como
se todos os campos afeto-valorativo atrapalhassem o conhecimento e assim me eximo
da responsabilidade de reavaliar meus pressupostos teóricos; ou, afirmo como condição
operativa auto-evidente, ou inata ou indiscutível (como inerente a todo axioma) pois
aceitar a reavaliação dos valores em causa poderá abrir margem para alguém me acusar
de inflexível ou dogmático ou mesmo insensível por não aplicarmos uma revisão em
nossos próprios valores.
Em suma, ambos os recursos são meios (funcionam) para o mesmo intento:
afastar qualquer possibilidade de considerar os axiomas como ponderáveis, relegando-
os ao cárcere do enigmático e obscuro59, como objetos de estudo, e dispensar a reflexão;
e, também, não reconhecer que sobre os próprios pressupostos ou princípios estão
presentes em toda teoria, ainda que de modo implícito.

(...) embora a justificação de uma conduta vise a livrá-la de toda


reprovação e de toda censura, a não deixar sujeita ao impacto de uma
condenação fundamentada, não podemos esquecer que a justificação
também pode concernir a uma atitude, a uma disposição a crer, a uma
pretensão a saber. (PERELMAN, 1997: 174).

Vejamos Habermas – assim como em Freud sobre o significado latente dos


sonhos – no mesmo tópico da justificação, acrescentando a categoria psicanalítica do
explícito e implícito, respectivamente quanto ao significante e o significado. Ao
significante como plano da expressão do discurso oficial; ao significado como plano do
conteúdo do discurso oficioso ou intencional60:

Conforme nossa experiência cotidiana o demonstra, as idéias servem


muitas vezes como esquemas justificativos de ações, sem ter em conta
os dados de realidade, seus móveis reais. No nível individual, este
processo chama-se racionalização; no nível da ação coletiva,
denomina-se ideologia. Nos dois casos o conteúdo manifesto das
proposições é falsificado por outro conteúdo latente refletindo os
interesses de uma consciência aparentemente autônoma.
(HABERMAS, 1980: 308).

(...) O sonho realiza um desejo que é como uma idéia, um pensamento


dotado de uma significação latente que importa elaborar. (...).
A interpretação do sonho envolve, por conseguinte, o movimento do
manifesto àquilo que nele se vela. E isto porque o desejo se oculta e se

59
Como o fez Lévi-Strauss.
60
A possibilidade da interpretação telésica guarda diversas relações para com a Filosofia da
Linguagem Ordinária com o estudo das Performances da fala ministrado por Austin e Searle, com a
diferença de que meu enfoque é para os discursos velados, dissimulados: não-expressos, mas passíveis
de compreensão intencional, seja pela eloqüência (RETÓRICA), seja pelas figuras de linguagem
(ESTILÍSTICA), seja pelas falácias de cunho (LÓGICO-RETÓRICOS), seja pelas implicações contextuais e
práticas (PRAGMÁTICA).
dissimula no sonho, tornando-se então necessário o trabalho de
substituição dos disfarces com que se mascara pela transparência do
sentido. Assim a interpretação se manifesta como “a resposta da
lucidez da astúcia”. A lucidez do sentido contra a astúcia do desejo.
(NOGUEIRA, 1978: 45).

Chamo de cientificismo à recusa sistemática da filosofia regressiva em face da


afirmação da filosofia progressiva. Sendo profundamente explicativo, Perelman afirma:

A luta dos sistemas metafísicos do passado mostra-nos que os mais


violentos ataques contra “a metafísica” quase sempre foram praticados
por outros metafísicos que não podiam admitir “o critério capital” ou a
“intuição evidente” dos adversários, sem aceitar, ao mesmo tempo, as
proposições fundamentais do sistema deles. (PERELMAN, 1997:
133).
Quando “uma filosofia aberta” se opõe à metafísica, não é da mesma
maneira que uma filosofia primeira em luta contra outra filosofia
primeira, mas como uma metafísica que toma o sentido inverso de
toda filosofia primeira. Darei a esta filosofia o nome de filosofia
regressiva. A análise das características próprias de toda a filosofia
primeira e a descrição da filosofia regressiva não farão compreender
melhor está última (...).
Mas as duas formas de filosofar diferem na apreciação do estatuto
ontológico, epistemológico ou axiológico de seus pontos de partida.
As filosofias primeiras os consideram fundamentalmente primeiros, e
seu esforço tende a encontrar um critério de necessidade, de evidência
ou de imediação que justifique, no absoluto, a verdade primeira posta
na base do sistema. A filosofia regressiva considera seus axiomas,
seus critérios e suas regras, resultantes de uma situação de fato, e
confere-lhes uma validade mensurada pelos fatos que permitiriam pô-
los à prova. (PERELMAN, 1997: 134).

É próprio da consideração axiológica incidir sobre categorias (ontologia) e


regras de derivação (epistemologia), com a finalidade de hierarquizar os valores perante
um exame do grau de importância dos pressupostos de qualquer teoria.
Assim como qualquer um que não se “beneficie” diretamente da condição social
de restrição de direitos e imposição de deveres unilaterais para com as mulheres dos
países árabes valorará tais práticas como injusto; no geral, somente aquelas pessoas que
não detém privilégios e não ordena aquilo que não faria podem tomar distância
apreciativa a ponto de não defenderem tais práticas injustas. De maneira similar, cortas
os lábios vaginais nalguns países africanos quando o pênis ou parte dele não é cortado...
Como passar indiferentes para um questão de injustiça institucionalizada e que ainda é
defendida argumentativamente? Quais argumentos empregariam as regras inferenciais
ou quando não segue a regra de justiça de eqüidade nas oportunidades, bens (artefatos),
bens (signos-culturais)?
Minha tese: há uma correlação estrutural – que anseio por explicitar o processo
de determinação ou condicionamento – entre práticas injustas e argumentos falazes,
sendo impossível empregarmos expedientes justos, com critérios além de explícitos, que
também sejam comuns (acordo normativo para regras; acordo de sentido para conceitos)
quando desejarmos justificar práticas injustas. Há contudo, ainda que provemos,
demonstremos os recursos utilizados e quais são ou válidos ou não ou mesmo
parcialmente válidos para algum aspecto, poderá haver resistência dos agentes, pelo
simples fato de que (atentar para que está em negrito):

(...) Há uma diferença entre estar equivocado e estar iludido: se


alguém ergue um pepino e informa seu número de telefone, podemos
concluir que ele cometeu um equívoco, mas se passa noites a fio
conversando animadamente no pepino, nossas conclusões seriam bem
outras. (...). Um homem pode reconhecer a justiça da causa feminina
mas recusar-se a abrir mão de seu privilégio masculino. É insensato,
em outras palavras, supor que os grupos dominantes são sempre
vítimas de sua própria propaganda: há a condição, denominada por
Peter Sloterdijk “falsa consciência esclarecida”, que vive valores
falsos mas que, ironicamente, é consciente de fazê-lo, e, portanto, não
pode ser considerada mistificada, no sentido tradicional do termo.
(EAGLETON, 1994: 37).

Ainda que expliquemos os motivos pelos quais os motivos ou valores escolhidos


repercutem em injustiça, instrumentalidade ou destituição, haverão pessoas para fazer a
mesma coisa. Infelizmente, por mais que uma explicação minuciosa, profunda e
convincente gere conhecimento de causas e efeitos para os agentes, estes, porém,
poderão manter sua práxis, pois a introjeção de valores não se ensina, apenas se espera.
É análogo ao apresentarmos duas premissas que deveriam inferir algo como necessário
e a pessoa não infere. Se aquilo que nos compete não for feito, nada há a fazer para
ensinar valores ou aplicá-los em situações pertinentes ao efeito desejado, pois somente
na condição necessária e suficiente de compreensão – abertura – introjeção –
transformação – aplicação será garantido o resultado transformador... o contrário,
pararemos na compreensão sem a vivermos.

Dizer que o enunciado é ideológico significa, portanto, afirmar que


está carregado de um motivo ulterior estreitamente relacionado com e
legitimação de certos interesses em uma luta de poder. (EAGLETON,
1994: 37).

(...) quando o falante efetivamente argumenta para obter o


reconhecimento de sua pretensão de poder, reconheceu, também,
implicitamente, através a intenção do convencimento de sua própria
argumentação, que o uso da linguagem abertamente estratégico é
basicamente <parasitário> em relação ao <uso orientado ao
entendimento>, pois ao argumentar, colocou-se na posição de
interlocutor em relação ao reconhecimento de pretensões de validade,
embora a questão da validade – por exemplo, da pretensão à verdade,
ou da pretensão à correção normativa – esteja, neste caso, restringida
pela superioridade fática da posição de poder do falante.
(REGENALDO - APEL, 2002: 273).

Há uma homologia entre ações injustas e a quebra do código de aplicação de


critérios gerais para casos singulares e similares. É como se houvesse, ainda que nos
restringíssemos às regras inferenciais apenas da lógica, alguma espécie sutil de
correlação intencional no plano moral: assim como há a quebra de contrato no plano
prático daquilo que se espera duma pessoa justa (transparência, coerência, sensibilidade
e cooperação global), esperamos também o respeito às aplicações de critérios
epistêmicos, categoriais, predicativos, sintáticos, semânticos e, também, um exame
pragmático discurso e seus valores explícitos e implícitos auferidos por uma
interpretação intencional daquele que ou segue ou não as normas regulativas de
construção de conhecimento por derivações (epistêmicas), às normas regulativas de
coerência atributiva por explicações (categorias e predicados = ontologia), às normas
regulativas de axiomas pela grau de importância sistêmico que um valor implica
(quando estes ou inferem ou não a regra de justiça = axiologia).

Enquanto fundamental, numa filosofia regressiva, é relativo aos fatos


que o filósofo sistematizou e é considerado apenas um fato, talvez
mais importante do que os outros, mas sempre contingente, nas
filosofias primeiras o pensador se baseia numa instituição ou numa
evidência, portanto num fato psicológico, para afirmar a validade
universal, incondicional e mesmo absoluto, concedida ao conteúdo
dessa intuição ou dessa evidência. É, justamente, essa superação das
condições concretas de verificação que, na linguagem habitual, é
considerada metafísica, no sentido pejorativo da palavra.
(PERELMAN, 1997: 135).

(...) a solução do problema da verdade e da fundamentação última,


logo, da prima philosophia “... não se dogmatiza – como ocorria com
o paradigma metafísico – uma premissa evidente de inferências
lógicas” e nem tampouco se incorre na ingenuidade de um
presumidamente pré-lingüístico e pré-comunicativo dar-se do “eu
penso” como no paradigma da filosofia transcendental clássica – no
sentido de uma evidência independente da interpretação.
(REGENALDO-APEL, 2002: 170).

Lembrai-vos de meu comentário sobre os aspectos abusivos e legítimos daquilo


que se convencionou denominarmos de “metafísica”? Aqui está um ótimo exemplo de
abuso, ao tratar como necessário (peculiar das conclusões necessárias das premissas)
aquilo que é contingente (peculiar dos princípios ou pressupostos = axiomas; escolhidos
as nem sempre confessos de tal escolha). A inversão a que Perelman explica
compreende a substituição da categoria contingente dos valores pelos quais partimos
com a categoria de necessidade. É similar ao recurso ideológico de universalizar o
setorial ou naturalizar (perenizar) o natural (transitório):
A axiologia e seus métodos comparativos e apreciativos de grau de importância
numa dada situação que originou tais valores, re-hierarquizará, bem como excluirá
axiomas que ferirem a regra de justiça. Aquilo que vale para a inferência lógica das
premissas já aceitas não vale para os axiomas fundantes. Assim como a contingência
dos valores não é arbitraria, mas coerente com a intenção de burlar algum critério para
legitimar práticas abusivo/destituições61.

Ela resulta de um raciocínio por analogia que tende a fundamentar as


proposições fundamentais da mesma maneira que se provam as
proposições derivadas, ou seja, vinculando-as a algo que lhes é
anterior, que já não é outra proposição, mas uma intuição ou
evidência, à qual se confere, dadas as necessidades da causa, o valor
de um critério absoluto. A filosofia regressiva, em contrapartida,
considerará essas proposições fundamentais como solidárias, no
interior do sistema, com as conseqüências delas decorrentes.
(PERELMAN, 1997: 134).

Dissertar!!!

Há determinadas categorias explicativas que são relacionais62. Por exemplo,


quando afirmamos algo ou como quente ou como frio, pressupomos uma espécie de
média proporcional entre os dias quando, na comparação com tal modelo médio,
possamos predicar a diferença térmica de algo em relação a alguma coisa. Na ausência
de algum objeto térmico como padrão (um termômetro por exemplo) podemos tomar a
nós mesmos como critério para compararmos a temperatura. Também podemos utilizar
a temperatura ambiente como critério. Quando dizemos chegou o frio, afirmamos de
maneira implícita que a temperatura média abaixou. Então, o predicado frio e quente
não são por si mesmos mas em relação a outro, em comparação a outro, outro como
padrão. Para quem vive com a média 35ºC, experimentar uma perda de calor para 23ºC
será frio. Porém, para quem vive com a média de 15º C, os “23º C” será sentido como
quente.

Toda a categoria de relação gera predicados relativos e dependentes dum contexto


comparativo, padrão. Quando afirmamos que somos pobres, ainda que não explícito,
61
Este binômio é necessário, ou seja, faz parte daqueles que integram os pares de oposição do
litotes classista, na qual ambos se definem pela razão inversa do outro pólo: é a metáfora explicativa da
balança na qual para uma subir a outra necessariamente desce. É um fenômeno análogo para a
polarização axiomática.
62
Vimos explicitamente isso ao eu explicar sobre a aplicação de um tipo desejo e suas
conseqüências ou salutares ou perniciosas no tocante aos efeitos produzidos e, por estes, às inferências
que explicitam a intencionalidade do agente que argumenta ou pratica em contradição com esse
princípio de adequação metódico em relação ao objeto de estudo em questão.
será sempre em comparação com um outro como modelo. Logo, dependendo com quem
nos comparamos, podemos ser considerados ou pobres ou ricos. O curioso é que nisso
não há contradição, pois ainda que seja ao mesmo tempo, não será sob o mesmo
aspecto63. Algo não é ou barato ou caro com denotação, descrição. É um juízo de valor!
Então, há uma elipse aqui: o predicado barato e caro não são atributos denotativos, mas
relacionais! Algo é sempre ou mais barato ou mais caro! E mais, em relação a algum
modelo comparativo64.
Na gramática Portuguesa, quando expressamos: “Fulano é mais alto que
Ciclano” utilizamos uma expressão explícita em seu significado, pois é expresso a
comparação, sua relatividade (enquanto em relação a). Por sua vez, a seguinte
construção frasal: “Fulano é maior que ciclano”, temos aqui uma elipse, ou seja, o
ocultamento da comparação, sugerindo para nossa interpretação que o atributo maior e
menor pertencem ao objeto, quando na verdade é fruto duma comparação. NO 1º caso,
uma expressão analítica; no 2º, uma sintética. 1º) Ela é mais alta. 2º) Ela é altíssima. A
analítica expõe a característica relacional, enquanto que a sintética a oculta. A primeira
denomina-se grau relativo analítico; a segunda, grau absoluto sintético. Quando afirmei
algo como caro, ainda que não expresso, está ‘embutido’ no significado de caro que
algo só pode ser considerado caro em relação a um outro valor mais baixo. Logo, tais
categorias relacionais são interdependentes, sendo tal atributo sinônimo de
dependência mútua65.
Citar a teoria do conceito de valor em Saussure!

Entretanto, o que aconteceria se encontrássemos determinados adjetivos de


cunho sociais? Se o discurso ou argumento utilizasse duma elipse? Duma construção
sintética, ao invés de analítica? Bem, se para a percepção sensorial tal fenômeno
lingüística imbrica e implica o fenômeno de pensamento vago, confuso, então é de se
esperar que algo pior ocorra nas categorias socais... principalmente aquelas que nos
enquadram em classes econômicas. Voltemos à Filósofa:

Numa relação de contradição, portanto, os termos que se negam um ao


outro só existem nessa negação. Assim, o escravo é o não-senhor e o
senhor é o não escravo, e só haverá escravo onde houver senhor, e só
haverá senhor onde houver escravo. (...)
O que é um senhor? Um não-escravo.
O que é um escravo? Um não-senhor.
(...).

63
Um dos axiomas da Lógica é: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto. Se algo for sucessivo, poderá ser diferente. Se algo for simultâneo mas sob outro aspecto,
poderá ser diferente também. O princípio de não-contradição é para os casos em que é
simultaneamente e sob o mesmo aspecto. Aí sim, afirmar e negar algo seriam descartado e interpretado
como mal-intencionado, uma vez que é impossível a sua ocorrência.
64
Assim também com: alto/baixo, pequeno/grande, jovem/velho, e todos os demais adjetivos
quando comparativos.
65
Ou também dependência recíproca, qualidade relacional.
Ambos só existem como relação. Mas onde está a contradição?
(CHAUÍ, 2004: 39).

Como pode um termo “escravo” ser definido pela simples negação de seu
antônimo “senhor”? Tais categorias sociais além de serem relacionais66, são litotes67.
Ora, expus minimamente este conceito. Agora aprofundá-lo-ei para que investigamos as
implicações dum litote para o pensamento, seja para a categoria sensorial, seja para a
social. Se nós afirmarmos: “isto não é azul” não haverá o fenômeno litote, pois algo
pode não ser azul e ser contingentemente qualquer outra cor. Nada decorre
necessariamente que não ser azul será alguma cor em específico. Mas por quê? Porque
apesar de cores serem qualidades, são sensoriais, e com tais há uma diversidade de
graus de cores. Para que haja um litotes é necessário que haja apenas dois termos. Ora,
há muitas cores e elas são sensoriais. Mas nos graus comparativos como alto/baixo,
quente/frio, maior/menor. todos eles não são sensoriais, mas categorias de relação.
Apesar de serem dois, ou seja, de serem binômios, há entre eles outra peculiaridade que
os exclui de serem litotes: eles admitem graus!
Um litote não admite grau. Ele é absoluto, categórico. Ex.: fora/dentro. Se
afirmarmos: “ela não está fora”, equivale – necessariamente – semanticamente a “ela
está dentro”. O mesmo ocorre com o binômio: presente/ausente. “Ela está ausente”
equivale – necessariamente – a “Ela não está presente”. Olha só o quanto importa-nos a
discriminação necessária e contingente! Ah, “não ser necessário” é “ser contingente”, e
“não ser contingente” equivale a “ser necessário”. Interessantíssimo isso heim!
A única condição pensável de alguém não estar dentro é estando fora. A única
condição possível de alguém não estar ausente é estando presente!

Um dos aspectos fundamentais do conceito de classes é que estas não


existem isoladas, mas sòmente como parte de um sistema de classes.
As classes só existem em relação umas com as outras. O que define e
distingue as classes sociais são as relações específicas que se
estabelecem entre elas. (BERTELLLI Org. - STAVENHAGEN,
1966: 133).

Todavia qual a conexão disso com nosso estudo psico-social da ideologia e


racionalização? Explico-vos: os termos senhor/escravo68 classificam-se funcionalmente
na condição de Litote. Vejamos o esquema abaixo.

Para ser Litotes:

1) Tem que ser adjetivo, pois assim as qualidades podem inferir a necessidade
de seu oposto.

66
Ser relacional é quando o significado do termo depender duma comparação!
67
Um Litote é um modo de afirmação pela negação de seu contrário. OU seja, negar um
adjetivo implica em afirmar necessariamente seu antônimo.
68
Hegel e Nietzsche utilizaram sistematicamente este binômio: Hegel na Dialética senhor-
escravo; Nietzsche na moral dos senhores e escravos.
2) Tem que ser binômio, pois ou mais do que isso só haverá contingência na
inferência; ou menos não haverá relação, uma vez que esta é plural.
3) Tem que ser absolutos, ou seja, não podem admitir graus.
4) Tem que ser necessário, o que se garante com os adjetivos/binômios.
5) Nestas condições a negação de um será uma implicação necessária da
afirmação de seu antônimo, semanticamente falando.

Então qual é a implicação de tais termos, ou melhor, de tais significados para


nosso estudo? Lembrai-vos da definição de valor de Saussure? Então, um senhor é
significado não por um atributo afirmativo seu, por sua ação ou predicado isolado, mas
na dependência de outro! O mesmo ocorre com o escravo: não é uma condição inerente
duma pessoa ser escrava, nem ser senhor, mas se e na medida em que há uma
contradição social: abuso de um lado, subserviência de outro.

Essas posições diferenciais, que permitem, segundo a formulação de


Lênin, que uma classe social se aproprie do trabalho de outra,
determinam que os interesses objetivos das classes não apenas sejam
distintos, mas contrários e opostos. Portanto, as relações fundamentais
que se estabelecem entre as classes são relações de oposição.
(BERTELLLI Org. - STAVENHAGEN, 1966: 133).

A investigação semântica dos litotes não sociais está aqui: assim como lá são
definidos pela negação de oposto, o escravo e senhor são definidos – e com isso seu
senso identidário – por oposição direta: não pelo que são, pois ambos são humanos. Ah,
já sei, pelo papel social desigual assumido ou explícita ou implicitamente!

(...) a escolha da esfera social como um sistema de referência foi pela


primeira vez realizada por uma “ciência oposicional” e, então, tornou-
se, gradualmente, mais ou menos uma posse comum de todos os
campos. (BERTELLLI Org. - MANNHEIM, 1966: 27).

Mas o que é um papel social? Ou melhor, a que gênero de funções coletivas


desempenhadas pelos indivíduos numa sociedade capitalista estão submetidos? Além do
exposto pelo fenômeno do litotes classista, tal manifestação carece dum cenário social
propício para a distinção entre os indivíduos: seja pela posição econômico, seja pela
posição – ou status – a que o cargo de comando69 adquiriu por construção dirigente e,
tacitamente aceito pelos reprodutores abaixo dele. Porém, para que seja aceito, tanto o
oportunismo como o conformismo são valores internalizados, significados identificados
pelos atores e atrizes sociais. Para o oportunismo – como atitude anti-social – o
interesse próprio ou de grupo dissociado, ou seja, disjunção da integração do outro
como um possível nós, é significado como um meio mesquinho e não como finalidade
de desenvolvimento mútuo [(gregário, a partir do(s) outro(s)].

69
Não qualquer comando, mas especificamente das seguintes características: comando
hierárquico destituidor.
(...). Uma vez familiarizados com a concepção de que as ideologias
dos nossos oponentes constituem, afinal de contas, a função de suas
posições no mundo, não podemos deixar de concluir que nossas idéias
são, também, funções de uma posição social. (BERTELLLI Org. -
MANNHEIM, 1966: 27).

A origem de todo o oportunismo está em partir dos efeitos e não das


causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não da coisa; está em
ver no interêsse particular e na sua satisfação não um meio de
educação tendo em vista a luta final, cuja saída depende da medida em
que a consciência psicológica se aproxime da consciência adjudicada,
mas algo de precioso em si ou, pelo menos, algo que, por si próprio,
aproximar-se-ia do alvo. (BERTELLLI Org. - LUKÁCS, 1966: 48).

Onde está o conteúdo ideológico quando tal significado é introjetado70 pelos


atores e atrizes sociais? Nada melhor que Marilena Chauí para socorrer-nos:

(...) Que é verdadeiramente um senhor? Aquele que sobrevive graças


ao trabalho do escravo, portanto um senhor é aquele cujo ser depende
da ação de um outro que é sua negação. Que é verdadeiramente um
escravo? Aquele que julga o senhor como único ser humano existente
e vê a si mesmo como não-humano porque é não-senhor. Assim, o
senhor vive graças ao não-senhor e o escravo vive para o seu senhor e
não para si mesmo. Somente quando um senhor afirma que o escravo
não é homem, mas um instrumento de trabalho, e somente quando o
escravo afirma sua não-humanidade, dizendo que só o senhor é
homem, temos contradição. (CHAUÍ, 2004: 39).

A contradição social das classes desiguais (em direitos71 e em significados72)


difere da contradição lógica. Nesta, temos o axioma do princípio de identidade que
reclama por respeito da afirmação ou proposição (coerência semântica). Naquela, temos
a identidade destituída e sobreposta. Se na contradição lógica temos mentira, engano e
falácia; na contradição social (relações que se travam = intersubjetividade) temos a
desapropriação: dos meios, da terra, da identidade, do desenvolvimento subjetivo não
alcançado e sua conseqüente não realização e introjeção por e pelo produto, da
atualização da potência, da volição decadente pela baixa-estima decorrente da
insuficiente visibilidade social!

70
Chauí utiliza os termos externalização e internalização. Utilizo um similar de categoria
explicativa psicanalítica: Introjeção e Extrojeção. Por enquanto, para fins de nosso contexto, utilizarei
somente introjeção.
71
Em direitos porque institui-se aqui o critério ideológico (injusto): “dois pesos, duas medidas”.
72
Em significados porque destitui semanticamente o escravo (trabalhador) e institui
semanticamente o senhor (burguês capitalista). O primeiro implica em hipo-axiomatia; o segundo em
hiper-axiomatia. O primeiro pressupõe sua identidade com auto-estima pela oposição (e não mérito
positivo, afirmativo); o segundo pressupõe sua identidade com baixa-estima pela oposição (negação de
si por afirmação alheia, não por mérito, mas por negação de si pela afirmação do outro).
Toda a alteração semântica pode ser por acréscimo ou por decréscimo. Quando
por acréscimo, não necessariamente haverá substituição. Quando diminui algo
simplesmente por retirar um de seus aspectos ou partes, não substituo. Entretanto,
quando desejo alterar o significado dum conceito com fins hipo-axiomáticos, então
poderá haver simultaneamente ou retirada e substituição, ou apenas retirada. Como
somos críticos, postulamos e vivemos73 o axioma da interação74. A reciprocidade causal
entre práxis e discurso, ou mais especificamente, entre ontologia e semântica, confere-
nos um instrumental analítico para investigarmos as relações entre ser e conceito, entre
o que podemos ser e a ideia que fazemos de nós mesmos. Mas, se a ideia é resultado do
que fazemos e das relações que travamos e, também, dos discursos que
retroalimentamos – sejam mais ideológicos ou racionalizações – para justificar aos
outros nossas práxis e conformismos, bem como para convencer os demais que deve ser
assim, então neste reforço mútuo, o conceito como efeito da práxis e o conceito como
causa da práxis devem ser admitidos tanto quanto a práxis como efeito do conceito e a
práxis como causa do conceito.
Todo o conceito é uma definição. Como tal, vale-se de predicados que, em seu
conjunto, em sua reunião, informam-nos dos aspectos necessários e contingentes,
essenciais e acidentais do “ser” que se define como tal. Em nosso atual estudo, o objeto
é a categoria social (senhor/escravo, burguês/trabalhador).
O momento da atividade confere os conteúdos necessários para associarmos, no
momento da construção de Significado, ou seja, no momento de definirmos o que é
trabalho e o que é trabalhador; o que é patrão ou empresário e o que é depender de
alguém pra nosso sustento. Como hábitos conceituais, temos a tendência a fixarmos
uma definição sem nos valermos, sem a devida articulação e relação de que “trabalho” e
“trabalhador” são determinações, num primeiro momento, das relações que se travam
no seio de um grupo específico. A práxis fornecerá o conteúdo75 (ainda que implícito)
para nosso psiquismo operar, associar e construir conceitos. Este será o momento da
construção semântica que definirão de maneira fetichista, unilateral, não-relacional.
No momento da aceitação acrítica do construído semântica, ou seja, do
significado pronto e acabado acatado pelo sujeito, haverá uma determinação lógica
através de inferências necessárias na qual a premissa maior, ou seja, as premissas que
não foram refletidas são manipuladas como estáticas, como naturais, como dogmas.
Toda premissa pela qual partimos uma construção explicativa, inferencial revelar-se-á
dogmática se a Premissa Prima76 for tida, considerada como revelada, como dado

73
Em nosso contexto de sentido, em nossa pragmática, o sentido de viver implica
necessariamente o de aplicar o critério que se postula.
74
Determinação mútua.
75
Como sinônimo de constructo ou substrato pelo qual a operatividade como: as associações,
predicações e inferências são possíveis.
76
Expressão utilizada por este autor como a premissa mais geral e não questionada em sua
formação, gênese e processo. O famigerado axioma pelo qual partem as construções explicativas, pelo
qual elas se formam por derivação das implicações do axioma primeiro, numa rede de implicações
deduzíveis.
indubitável, como conteúdo indiscutível, não-problematizado em sua gênese77, em suas
implicações, em suas condições intersubjetivas e axiomas da organização social vigente.

Poderíamos chamar de filosofia primeira qualquer metafísica


que determina os primeiros princípios, os fundamentos do ser
(ontologia), do conhecimento (epistemologia) ou da ação (axiologia) e
se empenha em provar que eles constituem uma condição de qualquer
problemática filosófica, que são princípios absolutamente primeiros.
(...). Um princípio é primeiro quando vem antes de todos os outros
numa ordem temporal, lógica, epistemológica ou ontológica, mas
insiste-se nesse caráter apenas para determina-lhe a primazia ou o
primado axiológico. O que é primeiro, fundamental, o que precede ou
supõe todo o resto, é considerado principal, primeiro na ordem de
importância.
(...) Daí a importância a toda a metafísica desse gênero, do critério
capital ou da instância legítima, cuja determinação fornecerá a rocha
sobre a qual poder-se-á construir uma filosofia progressiva.
(PERELMAN, 1997: 133).

Para diversas pessoas o termo metafísico recebe apenas a interpretação


pejorativa de descrédito teórico, seja pelos métodos, pelas categorias explicativas
empregadas ou mesmo pelos predicados inadequados. Contudo, se mantivermos um
exame multifocal em detrimento do unilateral, reconheceremos também os méritos das
disciplinas inclusas no que se convencional denominar de metafísica. Reservarei para
momento didático mais oportuno uma explicação concernente à repulsa do positivismo
e do neopositivismo, bem com da Filosofia Analítica da Linguagem quanto às
explicações “metafísicas” como inválidas, mentirosas ou pelo menos inadequadas sob
algum aspecto.
Por enquanto, atendo-me apenas a seu aspecto heurístico, sistematizador e
investigativo de áreas gnoseológicas correlatas, a postura metafísica é também aquela
que com os estudos das Categorias78 pela ontologia; das Regras Inferenciais79 (caráter
dedutivo dentre outros para) da (Epistemologia e da Lógica) é, também, da Filosofia da
Ação80 (Axiologia).

77
Como processo originador.
78
Nas obras Nicolai Hartmann e Edmund Albrecht Husserl.
79
Dedução, indução e hipótese-dedutiva são uma delas; porém há mais operações possíveis
pelas implicações das categorias e predicados empregados (Chauí e Clayton), bem como das minuciosas
operações teoréticas mais complexas da Filosofia da Ciência. A meu ver, todas são redutíveis a algumas
regras de critérios, sendo os casos mais complexos uma combinação dos critérios elementares. Para tal,
preciso sistematizar uma Gnosiologia que valha tanto para inferências após aceita uma premissa, como
também para os critérios interpretativos de justiça quando tais são infringidos... por mais que se
predique popularmente que os valores são múltiplos, sua hierarquia, quando cooperativa e não
competitiva ou destituidora é uma, pois mantém a coerência da eqüidade dentre outras.
80
Se a preocupação formal ou lógica responde por regras sintático-derivativas de conclusões; a
preocupação informal ou quase-lógica responde por regras semântico-pragmáticas. Se temos critérios
para distinguir e nos guiar para a verdade dos enunciados, predicados e asserções sobre o mundo,
então, o estudo do significado em seu processo e em seu emprego são os segundos momentos do
Respectivamente elas respondem: O que é? Como conheço? O que devemos
fazer?
Enfocando a Axiologia, na qual a Ética é uma sub-disciplina sua, ela preocupa-
se com a reavaliação dos valores. Para toda iniciativa ou atitude, os valores precedem
tanto a teorização, a escolha do método, a escolha do objeto e os meios para atingirmos
determinados fins deliberados.
Como noção de verdade, seja em vista de comprovação ou referência empírica,
seja para com aplicações de normas epistêmicas, considero a correspondência a um
denominador comum de verdade. Toda analogia, toda comparação pressupõe uma regra
a aplicar com modelo. Se inferirmos ou validade ou invalidade de uma explicação ou
inferência é porque de algum modo elas ou correspondem a algum preceito (regra)
Aplicado e, quando não, é porque – de maneiras diversas – burlamos, parcialmente
utilizamos ou mesmo substituímos outro critério a aplicar.
Como modelo, detém caráter geral para ser aplicado em casos singulares; sendo
a mentira, a invalidade ou incoerência alguns adjetivos, axiomas que interpretamos uma
dada atitude teorético-explicativa concernente a uma inobservância, a um desrespeito
para com tais critérios. De modo análogo, interpretamos como ou justo ou injusto ou
mesmo parcialmente justo, alguma prática que infrinja a assim denominada regra de
justiça, esta que pressupõe: partilha, eqüidade: de bens sensoriais, bens signos-culturais
e de oportunidades de aquisição e participação cultural-econômico-social.
Por que reavaliarmos a Premissa Prima? Porque ela pode ser salutar para uma
determinado aspecto e pernicioso ou insuficiente em outro. Com a Filosofia Regressiva,
esta que pergunta pelos pressupostos, pela primazia dos valores fundantes ou
fundacionais, obtemos uma hierarquia de valores por parte daquele que defende uma
determinada Premissa Prima, para ser dialetizada com outras propostas valorativas, ou
seja, por outras hierarquias axiomáticas, por outras configurações. A regra de justiça é
um valor a ser aplicado, a ser vivido e defendido e mesmo imposto em casos em que
incorramos nalgum valor que ou dissimule (racionalização e ideologia), ou seja,
unilateral (típico caso das Ciências Naturais) ou seja parcial ou tendencioso (legislação
práticas destituidoras da identidade humana).
Com os contributos da Estilística (Figuras de Linguagem) e a Retórica (Teoria
da Argumentação dos recursos empregados e do exame axiomático), associados à
Psicanálise (conteúdo manifesto e conteúdo latente, por exemplo), erigirei uma Ciência
da Interpretação com o propósito de explicitarmos os critérios a definirem
conhecimento, validade e verdade juntamente com o significado tanto textual como
intencional. Explicitar aqui é a palavra chave para compreendermos o ocultamento
intencional e valores implícitos, bem como a dissimulação ou pretensão de verdade e
coerência por discursos que utilizam falácias argumentativas. Uma vez que conhecemos

processo maior de síntese possível da compreensão e construção de conhecimento. A unilateralidade do


toda cognição, seja qual for é indício de ideologia, de falsidade de algum âmbito e, como tal deve ser
introjetado em minha Ciência da Interpretação (sentido/intenção). Toda ação humana provém do ponto
inicial de valoração fundante e serve como critério; logo, os valores podem ser índices ou de aprovação
ética ou de rejeição. A correção, prevenção e discriminação fazem parte do conflito de interesses ou
valores em primeira instância!
os recursos falaciosos e as regras inferenciais (legitimação a conhecimento), basta-nos a
investigação dos valores ou pressupostos, evidenciando sua ética (licitação do valor,
seja das práticas, seja dos critérios discursivos).

(...) Essa argumentação não será coerciva, pois não pode deixar de
recorrer à regra de justiça que desempenha, na argumentação, o papel
reservado às regras de inferência na dedução formal. Ora, essa regra
depende de nosso modo de avaliar a similitude das premissas e dos
esquemas argumentativos. Pois, (...) a força e a relevância dos
argumentos objetados depende de nosso modo de avaliar a similitude
com argumentos cuja força o interlocutor reconheceu pela sua própria
adesão anteriormente manifestada. (PERELMAN, 1997: 204).

Mas a que similitude ele se refere? Qual o critério da adesão? Qual a condição
necessária e suficiente para que o critério seja internalizado?

Resposta da 1º pergunta: à verossimilhança que um determinado critério epistêmico


deve ser empregado num caso singular. Ex.: Quando algo vale para um ou para um
grupo e não para outras pessoas, estando em circunstâncias meritórias regulares, então
todos interpretarão, predicarão tal ato ou decisão como injusto. Outro ex.: quando o
agente comunicativo aplica o seu critério (quando falaz) num caso singular e não aplica
noutro caso similar, é porque a falsidade ideológica, ou seja, se em casos singulares
similares não aplico o mesmo critério é porque a enviesamento e não universalidade81
na ação.

Resposta da 2º pergunta: a eficácia de nos colocarmos no lugar, ou melhor, na posição


alheia é um dos critérios gerais a serem aplicados para uma atitude cooperativa e não
abusiva. A valoração dum ato ou critério fundante resulta do cálculo axiomático de
conseqüências de agirmos como agirmos e, a partir daí, a possibilidade de sensibilização
nossa para algum valor geral de amplitude ou repercussão ética. Se as ciências exatas
lidam com argumentos ou legítimos ou não no tocante a conhecimento; as ciências
humanas ou do comportamento trabalham com a categoria de se é lícito e por quê é?A
explicitação dos motivos (interesses, objetivos) trazem à baila para serem julgados pelos
modelos da regra de justiça, da qual derivarei algumas implicações lógicas
(necessárias), tanto nas repercussões, como na intenção dos agentes.

Resposta da 3º pergunta: a) reconheçamos a importância dos critérios tanto pelo que


eles evitem o que for desvantajoso, como também como o que eles mantém de
vantajoso, não para um grupo, mas para todo e qualquer grupo que deseje se

81
Explicar-vos-ei como se dá a equivalência entre condição geral de aplicação dum critério
como condição necessária e suficiente de validade e verdade; bem como, por sua vez, do aplicarmos um
critério para cada caso similar: o que é sentido sinteticamente (intuitivamente), pela expressão popular:
“Dois pesos, duas medidas”. Tal prognóstico pressupõe um sintoma: a injustiça decorrente das
conseqüências da: mentira, parcialidade, unilateralidade, dissimulação intencional, rigor metódico etc. A
tudo isso batizarei tal sistematização de estudo por Criteriologia.
desenvolver no axioma da eqüidade. Após a identificação do que é melhor, o desejo ou
motivação de querer agir em prol dos meios que executem ou atualizem as condições
necessárias para tal. Por último, como condição suficiente a ser conquistada após a
aquisição das condições necessárias a abertura (não só a de reconhecer e aplicar), mas a
de introjetar tais valores. Para isso não há fórmulas mas depende da vontade ética de
cada ente singular, na ânsia de ser coerente entre reconhecer, agir e sentir
(discriminação, volição atuante e sensibilidade). Considero este último, a sensibilidade
o mais resistente para aqueles que estão habituados a desconsiderar os demais e agirem
apenas para a família ou grupo de pequeno círculo de relações sociais em detrimento da
ação universal por e para o gênero humano.

Faz-se mister uma luta interna no âmbito individual e coletivo para que tal
sociedade seja atualizada. A sensibilização a um valor candente e necessária para a
cooperatividade por, para e no desenvolvimento mútuo é o núcleo de meu trabalho:

(...) diferenças de sensibilidade fazem que os mesmo excitantes não


produzam o mesmo efeito sobre todos os indivíduos. Como supor,
nessas condições, que seja realizável um cálculo dos prazeres e, a
fortiori, quando se reconhece, como J. St. Mill, que há entre os
prazeres e os pesares diferenças qualitativas que deixam estes sem
medida comum? (...).
(...) Um mesmo ato será julgado diferentemente conforme a intenção
que se atribui a seu autor. (PERELMAN, 1997: 18).

Seriam as divergências somente fruto dos condicionamentos culturais múltiplos?


Ou seria uma parte da divergência cabível à intenção de abuso ou destituidora que não
engloba o gênero humano e, por isso prevalecendo o interesse de grupo contra outros
grupos? Se prevalece assim, então a divergência interpretativa é condicionada por todo
indivíduo que não reconhece a outra pessoa como parceira mas como meio para atingir
um fim que só cabe a quem abusa e destitui os direitos daquele. Poderia uma mesma
conseqüência ser julgada perniciosa por uns e salutar por outras? E as resistências
psíquicas e os privilégios de status social? Qual o papel deles nesse contexto?

Com efeito, embora o argumento pragmático permita avaliar algo por


meio de seus efeitos, como determinar a parte que cabe a uma causa
única na realização dessas conseqüências?
O caso ideal seria aquele em que se poderia mostrar que um
acontecimento constitui a condição necessária e suficiente de outro.
(...). (PERELMAN, 1997: 19).
Dissertar

Se a crítica pode se dirigir a nós mesmos, então devemos atenção para o que
fazemos e como fazemos e por que fazemos. As conseqüências – embora careçam
ainda de critério comum de avaliação, são bons conteúdos que servem como modelo a
serem julgados os agentes e os receptores dos mesmos. A consciência de deveres vale
para todos como guia. A consciência de nosso papel social é a de não repetirmos os
mesmos erros e destituições, os mesmos expedientes comunicativos e os mesmos temas
ou intenções dos privilégios promovidos pela abertura do cenário social capitalista. A
responsabilidade e a ação é individual; as repercussões coletivas, sendo o retorno dessa
dialética, a construção (a partir da consciência psico-social de critérios valorativos) dum
mundo melhor, pelo menos, menos injusto, menos falaz, menos instrumental e mais um
valor em si mesmo, intrínseco, independentemente do oportunismo e meios humanos
para fins mesquinhos. Tal só é conquistado por trabalho de sensibilização a ponto de
introjetarmos tais valores; e, uma vez adquiridos em nosso íntimo, vigiarmos para
reconhecermos quanto e o quanto trairemos tal axioma.

(...) não é apenas uma luta contra o inimigo exterior, a burguesia, mas
simultâneamente uma luta do proletariado contra si mesmo: contra os
efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista nas sua
consciência de classe. O proletariado só obterá a verdadeira vitória
quando haja superado, em si mesmo, esses efeitos. (...). O proletariado
não deve recuar diante de uma autocrítica, porque somente a verdade
pode ser a portadora de sua vitória, e a autocrítica o seu elemento
vital. (BERTELLLI Org. - LUKÁCS , 1966: 56).

Ainda que seja reavaliado até que ponto somente a classe proletária – atualmente
– detém a responsabilidade de revolução contra a minoria que controla a maioria, para
reconfigurá-la em axiomas cooperativos, é necessário sabermos quando negarmos fazer
parte do cenário sem escrúpulos de privilégios e destituições. Para tanto, requisita-se a
volição individual bem como as práticas e discursos concernentes e coerentes a ela.
Se o momento da práxis é conteúdo para o senso identidário do trabalhador,
também o é para o burguês. Se o momento da aceitação e reprodução do conceito aceito
são efeitos do trabalhador; o momento de geração e produção de tais conceitos gerais
são de efeito do burguês ou detentor dos meios de produção. Se a racionalização é
construção sobre o mesmo tema, a ideologia é produção dos temas e definições gerais.
Se aos detentores temos uma tendência a gerar conceitos e práticas elegidas com
válidas, aos assujeitadores (trabalhadores) temos a tendência a variar os argumentos já
com os temas (premissas primas) como conteúdos. As racionalizações trabalham os
temas, variam-no em formas de argumentos derivados. As ideologias trabalham as
definições gerais que “justificam” (ou pelo menos tentam, almejam) o estado de
dominação pelas práticas produzidas pelos detentores e reproduzidas, operadas pelos
trabalhadores.
Qual uma das funções do par ideologia/racionalização? Evitar o conflito e o
sintoma de desconforto, e sua conseqüente mobilização! Obliterar o conflito impedindo
a reflexão histórica e semântica dos conceitos que servem como constructos das
derivações argumentativas das racionalizações! Impedir o sintoma da indignação e a
possível insurreição, uma vez que o âmbito do discurso é necessário para a tomada de
consciência da situação e suas implicações desiguais! Rebaixar o senso identidário de
um com a simultânea promoção do senso identidário do outro. Instalar qualidades
volitivas, motivacionais como únicos conteúdos possíveis para os específicos papéis
sociais que se definem na e pela classe que pertencem! Inculcar nas consciências uma
homologia entre práxis e discurso, tolhendo-nos da devida abstração e liberdade para ser
pensado não apenas o que está, mas o que pode ser; para pensarmos não apenas a
adequação do “devemos ser assim”, mas também o “pode ser de outra maneira”, deve
ser de outra maneira se quisermos relações cooperativas ao invés da contradição social
como luta de classes!!

Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como


movimento interno de produção da realidade cujo motor é a
contradição. Porém, Marx demonstra que a contradição não é a do
Espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetiva,
entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em idéias: a
contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas
e sociais reais e chama-se luta de classes. (CHAUÍ, 2004: 47).

Seria mesmo a contradição o motor da história? Ou será que o motor da história


é o desejo das pessoas individuais? Ou será que o motor são os interesses comuns,
nossas associações grupais? Fazer da “história” um agente é hipostasiá-la, sendo que o
que chamamos de história nada mais é que fatos, acontecimentos, relações, ideias e
ações produzidas por pessoas! Considerar a contradição social ou luta de classes sendo
o motor, é diferente de considerá-la como tem sido o motor. Motor é uma figura, uma
metáfora que significa o critério pelo qual fazemos história. Fazemos história somente
em conflito de interesses? Não. Se a maior parte da história humana foi a luta, a
contradição social e briga por poder administrativo-econômico-legal, não significa
necessariamente que deva ser assim. Se o motor da história (ou melhor, dos humanos)
tem sido esse, proponho que o critério motivador de nossa ação pode ser o da
cooperação mútua e não o da exploração num cenário social na qual papéis que são
aceitos só porque geram lucro.. e aceitos com alegria. Minha situação social será aquela
que eu desejo que seja: se aceito e me conforme, será a que já está, se nego e promovo
outras ações, critérios e discursos legitimadores, este pela alteração da premissa prima e
seu axioma! A motivação dum movimento dependerá da prioridade axiomática que
vivermos... logo, aos axiomas que aplicarmos... se e na medida em que os aplicarmos.
Faz-se mister um trabalho de sensibilização, um trabalho valorativo entre o que
faço e sua conseqüência, entre implicações causais entre atividades e noções, entre
obras e idéias, entre produto e conceito, entre processo de produção (seu como e em que
condições) e qualidade da internalização (introjeção) por e pelo resultado do produto
como um processo criativo nosso! Aqui, a destituição semântica incide sobre nossa
identidade individual e coletiva. Aqui, a volição é condicionada a ser meramente o
protótipo do primeiro programa: as condições de produção e as idéias, a frustração no
trabalho manual e a não realização pela não reconhecimento de seu autor na obra.
A possibilidade de desenvolvimento é diretamente proporcional ao grau de
acordo entre o que é nocivo e pernicioso entre os modos de produção, entre as
categorias sociais e entre a divisão mesquinha e corrupta do trabalho teórico e manual,
da setorização mecânica do trabalho manual e do trabalho teórico das disciplinas
‘científicas’. Explicarei mais sobre a base sensorial do cidadão que não tem terra e sua
implicação necessária na sujeição do trabalho para um detentor dos meios de produção.
Votemos às noções categoriais sociais. Constrói-se assim, simultaneamente, o
conceito de chefe e empregado. Determina-se assim uma práxis reiterativa no plano do
trabalho manual e um discurso reiterativo (ainda que sob a máscara de variantes) no
plano do trabalho ideativo. Um define-se por oposição à sua antítese... antítese essa
gerada por relações humanas com fins específicos de desigualdade instituída nas bases
da organização sócio-trabalhista-econômico!

A história não é portanto, o processo pelo qual o Espírito toma posse


de si mesmo, não é história das realizações do Espírito. (...). A história
é história do modo como se produzem suas condições reais de
existência. É história do modo como reproduzem a si mesmos (pelo
consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procriação),
como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo
trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações
sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma da propriedade,
que constituem as formas das relações de produção). (CHAUÍ, 2004:
47).

Se o cientista natural expõe e deduz causas, explicando ‘leis’, ou melhor,


condições regulares de manifestação dum dado fenômeno sensorial; o cientista cultural,
por sua vez, requer uma explicação para além dos fatos naturais, pois opera e trabalha
com fatos humanos, estes dotados de sentido, motivações, intenções, prioridades e
significados. A causa82 está para os fatos naturais assim como a interpretação83 das
intenções está para os fatos psico-sociais. Ao porquê da natureza responde-se com
causas no recorte dum processo; ao porquê da cultura responde-se com uma decifração
telésica, dos motivos do agente, e dos significados deduzidos pelos sinais84 que fazemos
das ações (Índices), promovendo uma interpretação de tais sinais.. tais sinais carregam
mensagens, assim como sintomas metabólicos e psíquicos carregam emoções e
significados. Se a interpretação é o método, então a investigação das ideias está em
primeiro plano: a ordem dos discursos. Também, num segundo plano, por falta de texto
explícito, temos como nosso objeto de estudo o contexto do texto: a situação psíquica
do agente, as condições sociais atuais, o contexto do sujeito e de sua classe, a
pragmática, como ciência da significação que se vale do contexto extralingüístico como
conteúdo a ser interpretado para o significado total que o texto do discurso é insuficiente

82
Aqui contrasto causas naturais e humanas como equivalentes aos juízos de fato e juízos de
valor do pensador britânico do século XVIII David Hume.
83
Valo-me aqui das acepções voluntário e involuntário das intenções dos agentes. Também dos
aspectos denotativos e conotativos, e das mensagens diretas e indiretas (estas, respectivamente:
explícitas e implícitas). Às implícitas denomino-as também de: caráter subliminar da mensagem.
84
Às noções: Mensagens e Sinais da Comunicação; bem como de Símbolo, Ícone e Índice da
Semiótica.
não dá conta. Quais são algumas dessas finalidades sociais ao nos dividirmos e
aceitarmos a divisão como justa?

(...) É também história do modo como os homens interpretam todas


essas relações, seja numa interpretação imaginária, como na ideologia,
seja numa interpretação real, pelo conhecimento da história que
produziu ou produz tais relações. (CHAUÍ, 2004: 47).

Bem que podemos classificar uma interpretação imaginária como um similar das
explicações míticas ou mágicas, visto que todas elas apresentam similaridade quanto às
dissociações históricas e semânticas, como também diferenciam-se pelo grau de delírio
ou confusão entre fantasia e sensorialidade, entre aquilo que projeto e invento causas
pelo desejo e aquilo que é e descubro pela investigação e análise. Interpreto, avalio
como central a função do esquecimento num determinado conteúdo (seja ou mais
empírico ou mais ideativo). Expliquei a distinção entre conteúdo histórico coletivo e
conteúdo histórico individual. O acesso aos conteúdos genéticos de nossa situação, ou
seja, o processo pelo qual formou-se uma ordem social e as idéias, definições,
conceitos, significados, implicações e valores que internalizamos.

(...) Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como
crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais
rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência,
no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação
psíquica”) (...). (Nietzsche, 2007: 47).

O exame intencional do esquecimento cumpre uma função, apartar da


consciência aspectos e conteúdos que de algum modo desejamos evitar, repudiar,
distanciar e esquecermos.

(...) entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma


recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o
papel desempenhado pelo recalcamento, e isso pode ser demonstrado
não só nos neuróticos, mas também (de modo qualitativamente
idêntico) nas pessoas normais. (FREUD, 2006: 280 e 281 Vol. III).

Como recurso ou epíteto, tais mecanismos do esquecimento são defesas, e como


tais inerentes á natureza humana. Uma distância tênue há entre o saudável e o
patológico, pois nossas ações, desejos e expedientes empregados para esquecer ou
mesmo ocultar, são potenciais, diferindo e configurando-se apenas no momento de
atualização. Ressalto o desejo de defesa quase compulsiva para tal intento como um
limiar semi-patológico, diferindo das pessoas classificadas como “doentes” mais pelo
grau do que pela tipo de conduta, sendo os “doentes” um modo sistemático de defesa
compulsiva na consciência. Se os psicóticos são separados pela comunicação auto-
centrada e pela não identificação com normas (discursivo-sociais), os sóciopatas são
aqueles que usufruem de maneira ou pré-consciente ou mesmo conscientemente os
recursos de esquecimento, ocultamento, dissimulação e mudança de foco e semântica,
usando regras permitidas de maneira informal, pelos hábitos adquiridos, mas somente
pela identificação de usar tais recursos de modo sistematicamente calculado.
Vejamos outro fator ou aspecto que pode se inserir nos conteúdos da alteração
semântica dum conceito determinado. Já vimos a instrumentalidade ideológica do
discurso pela ‘simples’ mudança de sentido operada por seus idealizadores, seja no
âmbito lingüístico, seja no da práxis. Se o ser humano pode se desenvolver, ou seja,
atualizar seu potencial por e pelo trabalho, com o devido reconhecimento de sua marca
no produto final, pela escolha dos meios de produção85 e dos meios de execução86 do
processo gerador. Uma implicação introjetiva é que num trabalho mecânico e repetitivo,
no qual há repetição de lugar de domínio técnico e velocidade no lugar de atividade
laboriosa. Se a satisfação e realização humanas dependem de nossa ação no mundo,
então a qualidade daquilo que se faz e da decisão dos meios são fundamentais para
garantirem uma práxis produtiva no aspecto subjetivo, a saber: a introjeção boa pelo
bom trabalho e remuneração, e o reconhecimento de nossa marca e estilo no produto
final. Tal implicação introjetiva será homóloga às condições (e sua qualidade) descritas
e explicadas desde o início deste texto.

A teoria materialista do conhecimento, como reprodução espiritual da


realidade, capta o caráter ambíguo da consciência, que escapa tanto ao
positivismo quanto ao idealismo. A consciência humana é “reflexo” e
ao mesmo tempo “projeção”; registra e constrói, toma nota e planeja,
reflete e antecipa; é ao mesmo tempo receptiva e ativa.
(KOSIK,1976: 26).

Por que é receptiva? Porque reproduz conteúdos e operações (discursivos e


manuais). Por que é ativa? Porque produz, gera novas formas (argumentativas e
produtivas).
A qualidade de nossa ação será também resultado da extrojeção dos
sentimentos e aspirações na atividade produtiva. Portanto, se a introjeção foi ruim ou
deficitária, a extrojeção de nossa personalidade, seja em motivação, seja em expressão
ativa será maculada por tal qualidade... seja ela qual for.

O caminho para dentro só encontra aqui o seu complemento pelo fato


de que se une o caminho aparentemente oposto, com a evolução de
dentro e fora. Pois o mais importante fator na estrutura da consciência
da personalidade é e permanece o fator da atividade. (CASSIRER,
2004: 337).

85
Refiro-me com quais instrumentos fazer.
86
Refiro-me como fazer... uma práxis que leva em conta o caráter modal da ação e suas
implicações introjetivas.
Ora, não nos importarmos com a extrojeção dos aspectos subjetivos é ver o ser
humano, predicá-lo, destituí-lo de sua humanidade: a personalidade enquanto
sentimento com a destituição e redução duma qualidade!

(...) o eu não apenas imprime aos objetos a sua forma, que lhe é dada
de antemão, mas encontra, ganha essa forma somente na totalidade
dos efeitos que exerce sobre os objetos e que deles recebe de volta.
Conseqüentemente, os limites do mundo interior só podem ser
determinados, sua configuração ideal só pode tornar-se visível à
medida que o âmbito do ser é circunscrito no agir. Quanto maior for o
círculo que o ser preencher com sua atividade, tanto mais claramente é
ressaltada a natureza da realidade objetiva, assim como a significação
e a função do eu. (CASSIRER, 2004: 337).

Temos aqui um imbricamento entre ontologia e semântica, uma vez que os


significados constroem-se para determinar um determinado ser ou situação. Ao nosso
filósofo escrever: “tanto mais claramente”, tomo o termo de Karel Kosik: “tanto mais
explicitamente” reconhecemos a natureza da realidade social, suas causas e as intenções
dos agentes.
Se trabalho como máquina mais maquinais seremos. Se trabalhamos com arte,
mais artistas seremos!

Assim, por exemplo, a mercadoria será considerada a forma mais


simples e mais abstrata do modo de produção capitalista, o qual
aparece imediatamente para nós como uma imensa produção,
acumulação, distribuição e consumo de mercadorias. (CHAUÍ, 2004:
48).

Ah... ora, ora... olha como o capitalismo é bom! Nunca tivemos tanta produção,
acúmulo de riquezas, distribuição e tanto consumo. Só esquecemo-nos de alguns
detalhes:

1) Qual o preço do acúmulo de riqueza? Resposta: Uns decidem e outros


trabalham!

2) Qual o preço da hiper produção? Resposta: Quem produz muitas vezes ganha
abaixo para comprar o que produziu. Nunca tivemos tanta miséria com tanta
produção.

3) Qual o preço do consumo? Resposta: indiferença à qualidade daquilo que se


consome. Ah, também a homologia de que o modo de consumo constrói
consumidores e não cidadãos. Outra mudança de sentido na definição de
indivíduo!
Esta é a aparência, ou melhor, a imagem superficial oferecida para o modo de
produção capitalista.

(...). Trata-se sempre de começar pelo aparecer social e chegar, pelas


mediações reais, ao ser social. Trata-se também de mostrar como o ser
o do social determina o modo como este aparece aos homens.
(CHAUÍ, 2004: 48).

O ser social é constituído pelas categorias sociais (senhor-escravo) com os


respectivos atributos, qualidades atribuídas a cada uma dessas condições coletivamente
engendradas, determinadas.

(...) a realidade social dos humanos se cria como união dialética de


sujeito e objeto. (KOSIK, 1976: 20). (...) Compreender o fenômeno é
atingir a essência. Sem o fenômeno sem a sua manifestação e
revelação, a essência seria inatingível. No mundo da
pseudoconcreticidade o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa
se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a
diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. (...) A realidade é
a unidade do fenômeno e a essência. (KOSIK, 1976: 12).

Não somente os fenômenos naturais são suscetíveis de uma definição essencial e


não acidental87. Os fenômenos sociais de suas categorias (classes) e seus derivados
semânticos (significados e conceitos) são também passíveis de definição necessária e
acidental. O esforço está em reconhecermos, por detrás do argumento explícito, o
significado implícito: sua construção histórica da práxis e sua constituição semântica
defendida, distribuída e sistematicamente reproduzida por diversos aparelhos
ideológicos nos mais diversos setores institucionais e classistas.
Comentei-vos a categoria: essencial/acidental também como critério operativo
(recurso) para uma construção ideológica, na inversão de seus predicados. Continuando:

A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há mais


mercadorias do que supúnhamos à primeira vista, pois um elemento
fundamental do modo de produção capitalista, o trabalhador, que
aparece como um ser humano é, na verdade, uma mercadoria – ele
vende no mercado sua força de trabalho. (CHAUÍ, 2004: 48).

Ora, na práxis pela qual nos vendemos para outro enriquecer, do qual estamos
destituídos dos meios de produção e execução, além da mercadoria como produto
“nosso”; temos os efeitos da qualidade daquilo que foi produzido: o ser humano como
mercadoria! Assim é a clássica noção de fetichismo da mercadoria. Se por um lado a

87
Ambos as categorias referem-se: 1) essencial: aos atributos necessários para que uma coisa
seja o que ela é, ou seja, algo que a defina necessariamente; 2) acidental: aos atributos ou qualidades
contingentes à constituição duma determinada coisa. Essencial e acidental são termos correlatos,
equivalentes de essência/ fenômeno (Kosik), e realidade/aparência (Chauí).
mercadoria adquire status humano (enquanto valoração aumentada = hiper-
axiomatização); por outro, o ser humano adquire status de mercadoria (enquanto
valoração diminuída = hiper-axiomatização). O humano se instrumentaliza se e na
medida em que a mercadoria se humaniza. Mais uma vez, temos o fenômeno simultâneo
de definição por negação de seu contrário (como na dialética senhor-escravo) enquanto
litotes. São interdependentes no processo de produção e enriquecimento; definem-se
por oposição recíproca e, explicam por exemplificação, a interação mútua entre práxis e
ideias, entre atividade e conceitos, entre status e auto-imagem, entre privilégios e
divisão de classes, entre uns que decidem e outros que executam... simultaneamente
determinados! Aqui mais um caso de determinação conceitual por destituição semântica
e seus reflexos no senso identidário e determinação de papéis sociais88.
Como seres-históricos que somos já está patente a esta altura da importância da
historização – seus conteúdos – para que possamos pensá-los, avaliá-los em
estruturação, elementos, relações, processos genéticos e implicações contextuais.
Ressaltei insistentemente o valor do conteúdo para a articulação do pensamento
avaliativo. Porém, ainda está implícito ou mesmo omitido qual aspecto da articulação
reverbera em nós como seres capazes de relacionar, associar e inferir... numa palavra:
hierarquizar valores, sentenças e derivações necessárias89.

(...) quando compreendemos qual é a gênese ou origem da mercadoria


(as mediações que a constituem), compreendemos que não se trata de
uma coisa tão simples como aparecia, pois ela é, ao mesmo tempo,
valor de uso e valor de troca. (CHAUÍ, 2004: 48).

Infiro como necessário o conhecimento histórico-causal como formador da


subjetividade humana. O fenômeno compreensão é uma fusão de
entendimento/interpretação, pois ao compreender assimilamos, internalizamos regras
operativas, condições, critérios; ao interpretarmos, aplicamos os devidos critérios em
seus contextos específicos de manifestação. Um horizonte90 maior considerativo
(conteúdos) farão parte integrante do conjunto de elementos, causas e premissas para
uma síntese dum dado fenômeno.

Ora, as análises de Marx revelam que o valor de uso é inteiramente


determinado pelas condições do mercado, de sorte que o valor de troca
comanda o valor de uso. (...) o valor da mercadoria não surge no
momento em que ela começa a circular no mercado e a ser consumida.
Seu valor é produzido num outro lugar: ele é determinado pela
quantidade de tempo de trabalho necessário para produzir as
máquinas, o tempo para extrair e para transportar a matéria-prima etc.
E o que são todos esses “tempos”? São tempos de trabalho da
sociedade. (...). (CHAUÍ, 2004: 49).

88
Seu eminente resultado: predestinação identidária.
89
Tecnicamente: Inferências.
90
Entendo por essa metáfora: a ampliação do raio investigativo.
O fator sucessão – como seqüência de eventos – é o relato, uma descrição
fenomênica das etapas. Mas etapas do quê? De processos. Vimos na expressão de Karel
Kosik a pseudoconcreticidade91 com um fenômeno interpretativo reducionista do
horizonte considerativo a que ele e Chauí chamam de realidade (social). Tal
interpretação toma as partes ou elementos92 da totalidade como algo isolado,
independente. A perniciosidade da interpretação ideológica reside em
sugerir/condicionar/restringir o isolamento causal, tomando o objeto ou coisa ou
fenômeno isolado como causa, quando no fundo é efeito dum processo maior.
Processo? Sim! A antípoda do pensamento isolante que toma a aparência como
realidade, ou melhor, o acidental como essencial, é o pensamento processual. Como tal,
carrega em seu bojo o imperativo da historização, não apenas sincrônicos, mas
diacrônicos. Se a sincronia é um movimento de reflexão sobre aspectos/fatores
simultâneos, como por exemplo, a definição de senhor-escravo; por sua vez, a
diacronia é um movimento de reflexão sobre aspectos/fatores sucessivos, como por
exemplo, a formação das condições sociais de senhor-escravo.
A definição está para o processo significador; assim como a formação está para
o processo práxico-social. Logo, a definição está para a semântica ou gênese conceitual;
assim como a formação está para as condições econômico-categoriais93. Se a sincronia
fornece os conteúdos semânticos: definições; a diacronia, fornece os conteúdos factuais:
a apropriação dos meios, a destituição da terra com sua conseqüente dependência para o
trabalhador, a escolha dos meios por um e a execução dos fins por outro.
Daí fica óbvio a Semântica e História – como juízos de valor conceitual e factual
– do processo significador do senso identidário no e pelas categorias sociais classistas.

Cada “elemento de significação” (se podemos falar de tal coisa


isoladamente) é determinado por todo o contexto de significação e, em
última instância, pela base vital que lhe dá origem; isso é um insight
que devemos ao historicismo. (MANNHEIM, 1974: 55).

E por isso proponho-vos o estudo da argumentação94, uma filosofia da


linguagem que leve em consideração o significado com suas implicações e o correlato
intencional do agente comunicativo. A manipulação abusiva alude ao discurso tendo as
noções oferecidas, seu conteúdo, como um estratagema para delimitar o alcance do
indivíduo em sua análise e reflexão. Tanto uma ressignificação de determinadas noções
bem como a problematização axiomática dos pressupostos de todo silogismo.

Não só determinar o sentido das noções, mas também a intenção de


quem fala, a significação e o alcance do que diz – tudo isso são

91
Tal expressão guarda analogias com as pseudoproposições de Rudolf Carnap. A distinção reside
na classe da experiência: vivida e pensada. Para Carnap é especificamente no plano do discurso, da
mediação simbólica, ou seja, do pensado.
92
Unidades mínimas atuantes, determinantes, causadoras. São fatores.
93
Conceito como significado; categoria como binômio litotes: senhor-escravo.
Respectivamente: significado e significante.
94
No entender de Chaïm Perelman, a ciência denominada Retórica.
problemas fundamentais da retórica com que a lógica formal, baseada
na univocidade, não tem de se preocupar. (PERELMAN, 1997: 81).

A conexão entre intenção e valores é tal que estes últimos chaves de


entendimento para a apreciação volitiva do agente comunicativo. Interpretar práticas e
discursos é um modo sistêmico ou pragmático (contextual) de associar idéias, conceitos
e inferências. À ressignificação da noção distorcida temos à apreciação da intenção
pelas implicações dos efeitos e pelos valores dos pressupostos95.

(...) nos fechamos numa concepção formalista da prova dedutiva, se


insistimos no caráter arbitrário dos sistema axiomático elaborado (...).
É preciso, para que o aparelho dedutivo cumpra sua função, que se
interpretem axiomas e regras operatórias, que se conceda a essas
interpretações um valor suficiente para que a falta de concordância
entre os resultados do cálculo e das medidas obrigue a efetuar certas
retificações. (PERELMAN, 1997: 81).

Ao momento do significante (taxionomia) e das condições temos o processo


factual; ao momento do significado (ideias, conceitos, definições) temos o processo
significador. E, como síntese de ambos, temos juntamente com o plano práxico e
ideativo, o axiomático, ou seja, os critérios pelos quais construímos toda uma cadeia
argumentativa. Quando para fins de dominação e destituição valorativa (ideológicos) o
binômio atividade motriz/produtiva e discursivo/argumentativa, ambos implicam na
determinação valorativa como critérios, como temas gerais a servirem como premissa
prima. Como tais são estáticos. O plano da aplicação de tais critérios e valores, temos
um caráter dinâmico: a variação (racionalizações) sobre os mesmos temas96 invariantes
(ideologias).

Vemos, assim, que o valor de troca da mercadoria, o seu preço,


envolve todos os outros tempos anteriores e posteriores ao tempo
necessário para produzi-la e distribuí-la. No preço da mercadoria está
incluído o gasto (físico, psíquico e econômico) para produzi-la. Ela
não é uma coisa, mas trabalho social concentrado. (CHAUÍ, 2004:
49).

Ora, se faz-se mister o conhecimento anterior e posterior, causador e implicador,


então nosso pensamento processual, que já introjetou motivos (propósitos), causas
(determinações) e mesmo o processo, o movimento – momentos – interativo entre
subjetivo/objetivo (determinação mútua, relacional). O momento da extrojeção, seja de
sentimentos, pensamentos e ações carregará consigo uma práxis sistêmica, pois após tal
experiência observadora e analítica, nossa resposta adquirirá o axioma sistemático, ou
seja, o pensamento sistemático. Este corresponde ao aspecto da articulação decorrente

95
Ou suposições implícitas.
96
Tais temas, são critérios, valores que se impõem sem serem avaliados em sua gênese
(anterioridade) e em suas implicações (posterioridades). Em nosso contexto, valores são intenções!
da exposição dos conteúdos (sincrônicos e diacrônicos). Historicizar um indivíduo é
levá-lo à condição de sistema de relações que tanto o produziram e produzem, como
também ele os produz quando na práxis revolucionária que encara a situação como
objeto de estudo vital, essencial, necessário para um pensamento, ação e sentimentos
direcionados para uma melhoria das condições existenciais em que nos encontramos.
O antes e depois são agora conteúdos valorizados e integrantes, estruturantes da
condição atual e futura; portanto, o acesso consciente (voluntário) da busca histórica e
significativa é o fundamento de viver em interação com o meio, de participarmos como
atores principais e não nos contentarmos com os atores coadjuvantes (instrumento e
máquina ao invés de fim e desenvolvimento).

Abrir aqui um capítulo de Axiologia com Aristótelois e Chaïm Perelman sobre


meios e fins, intrínseco e extrínseco, para depois associá-los a destituição semântica
e identidade, à realização com questão existencial de atualização de potências
(motriz, afetiva e cognitiva). Pág. 21 Perelman

Se a definição de aparência é pensar pela superfície, no que está próximo, o


pensamente qualitativamente sistematizado é ampliação do horizonte na sucessão de
eventos, a saber: temporal. A extensão de nossas considerações avaliativas, articulativas
e associativas incidi agora sobre um amplo espectro na cadeia de eventos: ao
antecessores, como causas, condicionamentos e determinantes; aos sucessores: como
efeitos, reflexos, determinados, dependentes. Ao momento presente, como unidade
sintética e interativa de todos os momentos.
A anterioridade e posterioridade (enquanto diacronia) fornecem causas e
conseqüências, numa realidade simultaneamente estruturada e estruturante, visto que a
reciprocidade das determinações ou reforçam ou enfraquecem uma situação presente.
Pelo antes de depois temos sintagmas que acarretarão em nova sintaxe explicativa. Pela
concomitância e inter-relação (enquanto sincronia) temos o processo mútuo de
sobredeterminação. Vimos que eles são o plano do discurso em seu aspecto significante
(= categorias sociais) e significado (= conceitos gerais). Nesta sincronia do signo social,
temos no plano da expressão uma classe de palavra: senhor, escravo, burguês,
trabalhador, dominante, dominado etc. tais classes fornecem-nos as categorias ou tipos
sociais. No plano do conteúdo temos um campo de significados, de ideias oriundas das
práticas sócio-econômicos, contraídas nas relações sociais intersubjetivas e
internalizadas ou introjetadas pelo psiquismo, que converte práticas em ideias,
definições e argumentos. Ainda no plano do conteúdo, teremos a externalização ou
extrojeção, ou seja, nossa resposta em face de tais atividades, depois de elaboradas
simbolicamente o plano do vivido (Icônico ou primeiridade Peirceana). No plano do
conteúdo temos uma ordem paradigmática, como campo semântico daquilo que pode
ser pensado enquanto associações de idéias nas categorias sociais primeiramente
determinadas pelas práticas, para depois, estas mesmas serem determinadas,
influenciadas pelas respostas, pelas exterioridades que aplicarão (quando ideológicas)
de maneira compulsiva, recursiva, em atos e discursos com os temas e critérios da classe
dominante.
Um sintagma define-se como um conteúdo a ser elaborado numa ordem, num
disposição, tal qual ocorre com as letras, palavras e orações. Um paradigma define-se
como expressão uma categoria, e como conteúdo, como campo de significados
correlacionados, que guardam verossimilhança em seus aspectos semânticos. Daí
considerarmos um paradigma social como campo semântico da ordem social vigente,
reverberando em nossa identidade, valores e discurso, como também um sintagma como
seqüência de eventos com seus desdobramentos lógicos, com suas derivações e
inferências.
Se no sintagma temos os conteúdos do antes e depois de caráter histórico
(factual e semântico), no paradigma temos os conteúdos dos campos semânticos
proporcionados pelas categorias sociais vigentes. Se a reiteração promove reprodução,
tal será retro-alimentadoramente ou reforçada (na práxis ingênua) ou reformulada e
criticamente apreciada (na práxis revolucionária). Numa práxis como esta, não
reinventamos pretextos sobre os temas (critérios valorativos, idéias e intenções), mas
colocamo-los sob o tribunal da consciência social agora historicizada, com seu
pensamento sistemático e uma práxis voluntariamente sistêmica (na consideração de
nossa história e das implicações que tais práticas promovem). Por esse contexto
associativo interdisciplinar é que tomo a Sintaxe e a Semântica como fatores
heurísticos, sejam pelas categorias explicativas, seja pelo imbricamento que linguagem
e pensamento mantém.. tanto ou mais que atividade e pensamento.

Trata-se de proceder a novas definições de conceitos conhecidos,


originados, geralmente, não tanto através da formulação consciente,
como, ao contrário, com gênese mais ou menos espontânea e
irrefletida. As novas definições deverão superar as antigas em clareza
e rigor, determinando uma estrutura conceptual eminentemente
sistemática. (CARNAP, 1983: 30).
Uma linguagem consiste num vocabulário e numa sintaxe, ou seja,
num conjunto de palavras dotadas dum significado e de regras para a
formação de proposições; tais regras indicam como se podem formar
proposições com palavras de diversas espécies. (CARNAP, 1983:
44).

Ora, já enfoquei o caráter compulsivo e reiterativo do movimento ideológico.


Espontânea (compulsiva) e irrefletida (não sistemática ou vaga). Ora, um movimento
revolucionário consiste tanto de reformulação semântica, como também de
sensibilização axiomática para nova internalização e externalização (introjeção e
aplicação). Atualmente, o próprio sentimento de indiferença para com deveres, para
com valores gregários, é um indício da abertura para a instrumentalização do ser
humano pelo ser humano.

(...) diferenças de sensibilidade fazem que os mesmos excitantes não


produzam o mesmo efeito sobre todos os indivíduos. Como supor,
nessas condições, que seja realizável um cálculo dos prazeres e, a
fortiori, quando se reconhece, como J. S. Mill, que há entre os
prazeres e os pesares diferenças qualitativas que deixam estes sem
medida comum? (PERELMAN, 1997: 18).

Comentei sobre os equívocos predicativos de autoria de Marilena Chauí num


estudo seu sobre a Filosofia Antiga de Arístocles (vulgo Platão) e Aristótelois. A
clássica inversão da realidade de Marx e Engels de colocarmos no céu aquilo que está
na terra, é uma inversão causal pelo recurso sintático de substituição. O critério
ideológico é confundir-nos, desviarmos o olhar, o foco para aquilo que no máximo será
um acidente mas não essencial, ou mesmo independente quando é dependente. Afirmar
que é causa quando é efeito é equívoco predicativo, e como tal, foi designado por
Carnap e Wittgenstein como falsas proposições, ou mesmo de proposições sem sentido.
Entretanto, os termos dependentes e independentes lembram-nos daquela análise dos
substantivos abstratos, todos dependentes, efeitos da ação dum agente. Se no 1º caso
temos um abuso na construção predicativa, na formação oracional – âmbito sintático – ,
ou seja, na inversão de antecedente e conseqüente, ferindo assim o axioma de
correspondência, de representação temporal, ou particularmente em Wittgenstein (a
configuração da proposição é uma figuração da realidade sensível), se a trocamos,
subvertemos a experiência com o discurso. Já, no 2º caso, temos um abuso na derivação
– âmbito lógico – como conseqüência lógica (mas não semântica e também não
pragmática) uma vez aceitos o substantivo abstrato como independente ou isolado. Nada
mais óbvio que postularmos e exigirmos um estudo de sintaxe + lógica:

(...) a lógica será a parte da sintaxe, desde que esta seja entendida de
modo bastante amplo e formulada com precisão. A diferença entre as
regras sintáticas, no sentido mais estrito do termo, e as regras lógicas
de dedução não é mais do que a diferença entre as regras de formação
e regras de transformação, ambas aliás formuláveis em termos
sintáticos. Por conseguinte, é justificado denominar “sintaxe lógica” o
sistema que compreende as regras de formação e de transformação.
(CARNAP, 1983: 50 e 51).

No 1º caso descrito há pouco, o recurso é utilização de troca das posições, numa


disposição que inverta a relação causa/efeito. Quanto a isso, o aspecto central é sintático
e, como tal, implica as regras de gramaticalidade, a saber normas de formação frasal no
âmbito da disposição dos termos = sintático. No 2º caso, o recurso é a utilização, duma
vez aceita a substituição predicativo-causal como legítima, temos uma implicação
lógica envolvida, de transformação da premissa anterior num conseqüente de
necessidade lógica: Se é verdade que substantivos abstratos são causas, então é porque
são determinantes e independentes, pois do contrário seriam efeito, e assim, sua
conseqüência inferencial seria a qualidade de dependência. Com a simples inversão
causal, temos uma derivação lógica perante tal afirmação. Para mudá-la ou questioná-
la, não podemos argumentar no plano da lógica, mas no plano da sintaxe lógica, que
considera ou a legitimidade ou a ilegitimidade da premissa antecedente que confere
necessidade em seu derivado. Questionar a premissa prima – que em nosso caso é a
possibilidade de inversão causal pela sintaxe – corresponde a uma problematização
semântica no 1º caso, e pragmática no 2º caso. Dissertar

(...) no uso da linguagem, é preciso distinguir três componentes, os


quais podem ser ilustrados como segue. Primeiramente, a ação, o
estado e o condicionamento do ambiente dum indivíduo, (...) [...].
Uma teoria completa da linguagem deve investigar os três fatores
referidos. Denominamos de ‘pragmática’ o conjunto das pesquisas
que versam sobre o primeiro deles, sozinho ou junto com os restantes.
Em pesquisas posteriores, às quais, é atribuído o designativo de
‘semântica’, abstrai-se, ao contrário, do falante, estudando apenas as
expressões lingüísticas na sua relação com aquilo que designamos.
Finalmente, é possível abstrair ainda das entidades designadas e
restringir o exame às propriedades formais das expressões e das suas
relações, o que recebe o nome de ‘sintaxe lógica’. (PASQUINELLI -
CARNAP, 1983: 77).

Outro esboço conceitual é definido por Manfredo Oliveira:

(...); a semântica, que estuda a relação entre construções lingüísticas e


coisas, acontecimentos do mundo etc., aos quais se referem as
expressões lingüísticas, como também a relação entre frases e as
condições no mundo, que devem existir afim de que as frases possam
ser consideradas verdadeiras; e, por fim, a pragmática, que trata das
características do uso da linguagem, como dos motivos psicológicos
dos falantes, das reações dos ouvintes, da sociologia dos diferentes
padrões lingüísticos. (OLIVEIRA, 2006: 83).

A proposta duma interpretação intencional insere-se no contexto da Psicologia


Social, ou melhor, duma Psicanálise Social, descrevendo também o processo do
fenômeno: desde a emissão ao significado do receptor, de modo a ter parentesco com a
Semiose (teoria dos signos aplicada ou em processo) e a Fenomenologia (descrição das
operações mentais na construção do fenômeno, em sua doação de sentido).
Vimos diversos mecanismos operacionais de nosso psiquismo que diferem
apenas no conteúdo manipulado, mas não em seus critérios operativos. O recurso da
inversão causal é um aspecto que inverte antecedente e conseqüente, ou seja, implica
diretamente em predicar causa quando se é efeito (é o caso da independência das
práticas e idéias de seu processo genético). Abstração e isolamento no discurso social e
hipóstase no pensamento mítico-religioso. Tal inversão é uma substituição de sujeito e
complemento na ordem causal. Inversão na ordem das sucessões. Tal epíteto tem como
recurso sintático à sua mercê.

Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A


história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da
natureza e história humana. Os dois lados não podem, no entanto, ser
separados; enquanto existirem homens, história da natureza e história
dos homens condicionar-se-ão reciprocamente. A história da natureza,
a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas
quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda
a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história, ou
a uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos
lados dessa história. (MARX/ENGELS, 2007: 87).

Como parte da história a ideologia é um fenômeno multifacetado de causas e


influências. A construção humana = história corresponde a tudo de
Institucional/Cultural já foi, é e será construído. Abstrair do produto humano e recolocá-
lo como agente, faz parte da patologia social de há muitíssimo tempo. Infelizmente,
como a maior parte daquilo que é tradição é conformisticamente aceito, a falácia
abstrativa da inversão é significada como norma, sendo aqueles que lutam contra sejam
uma espécie de indivíduos que “não souberam” se adaptar ao meio social: são aqueles
poucos que sentem a hipocrisia dos discursos, suas contradições performativas (porque
em relação às práticas), sejam também porque os critérios argumentativos de quem não
inverte é um discurso que herético e ameaçador, pelo simples fato de por a nu as
vicissitudes do cenário social, de seus valores, de sua dissimulação telésica.
A questão ética levantada aqui é de sinceridade, transparência intencional
(performativa) no discurso. Mentira, pretextos, categorias “metafísicas” ou dogmáticas
são outros significantes para o mesmo significado, a saber: a dupla ruptura da
cooperação através da luta de interesses de grupos (partidários) na instrumentalidade
comunicativa e o discurso que peca pela gnoseologia e pela ética, por desrespeitar as
regras de acordo de sentido, de conclusão e de justiça97. A substituição dos fatos
humanos (ricos em significados) por versões fantasísticamente: seja pelo mito, seja pela
inversões, universalizações, reducionismos98.
Na construção do litotes temos uma substituição (destituição por hipo e hiper
valorização), que é de teor simultâneo e necessário. A definição é pela oposição, pela
mútua negação, e não por afirmação específica de atributos, qualidade ou mérito
pessoal. É um status social tal qual numa balança, na qual necessariamente alto e baixo
são categorias de relação, e como tais inferem a concomitância de seu opositor como
posição “própria”. Aqui, a impropriedade reside na desqualificação humana de um para
a promoção do outro; na profanação de um para a sacralização de outro. Temos, neste
fenômeno um genuíno recurso semântico, com implicações na desigualdade social e
auto-estima psíquicas.
Nossa filósofa e eu comentamos sobre desigualdade social no início deste livro.
Mas qual o problema de não termos terra para produzir – pois nascemos numa ordem
política que impõe o pagamento de algo que é um direito natural e que eles obtêm pelos
famosos “mensalões” (caixa informal = roubo dos cofres públicos)? Qual o problema de

97
Respectivamente a três tipos de destituições: semântica, lógica e intencional/social
(pragmático).
98
Respectivamente a três tipos de falácias: de seqüência cronométrica, de generalização
apressada e de abstração ou unilateralidade.
trabalharmos numa produção em série e também não detemos o maquinário e espaço
para a produção de bens de consumo? Como se explica o enriquecimento do empresário
que não produz mas apenas administra? O valor de tal enriquecimento vem de onde?

Ora, sabemos que o produtor da mercadoria recebe um salário, que é o


preço de seu tempo de trabalho, pois este também é uma mercadoria.
Suponhamos, então, que, para fabricar um metro de linho e para
extrair um quilo de ferro, os trabalhadores precisam de 8 horas de
trabalho. Suponhamos que o preço desses produtos no mercado seja
de R$ 16,00. Diremos, então, que cada hora de trabalho equivale a R$
2,00. Porém, (...) o trabalho desses trabalhadores (...) não recebem R$
16,00, mas, sim, R$ 8,00. Há portanto, 4 horas de trabalho que não
foram pagas, apesar de estarem incluídas no preço final da
mercadoria. Essas 4 horas de trabalho não pago constituem a mais-
valia, o lucro do proprietário da mina de ferro ou da fábrica de linho.
Formam seu capital. A origem do capital, portanto, é o trabalho não-
pago. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso ou um
valor de troca qualquer, mas um valor capitalista. (CHAUÍ, 2004: 50).

Para uma interpretação do que está em jogo no conjunto de tais práticas


econômicas, é necessário uma historização. Como tal é um descrição de etapas, de
momentos dum processo maior que se pretende dominar, compreender e, finalmente,
interpretar. A saída da situação imediata – típica das interpretações ideológicas – requer
uma fenomenologia do processo trabalhista entre empregador e empregado. Como
resultado dessa investigação e método, conteúdos semânticos insuspeitados (ou mesmo
resistidos) vêem à tona. Ora, o que fora interpretado como mercadoria adquire status de
humanidade, pelo grau de importância concedido a eles; o que fora interpretado como
trabalhador, transforma-se (pelas práticas e pela conceituação correspondente da classe
social) em mercadoria, uma vez que é destituído de sua humanidade (parcialmente) para
ser mercadoria. O valor capitalista corresponde ao duplo movimento (litotes) simultâneo
de hiper e hipo-valorização. Ao trabalho como movimento braçal para alguém que
detém meios de produção que não detemos é incorporado neste o predicado de tempo de
trabalho, o atributo da medida do valor pelo critério do tempo gasto na produção do
maquinário, do produto e de sua distribuição. O “lucro”, visto ou aceito como algo
justo, nada mais é do que o tempo gasto não pago.
Numa característica cooperativa, de valores humanísticos – avessos que são à
dependência ou sujeição de quaisquer ordem ou natureza) – o foco ou propósito seria de
capacitar um indivíduo à autonomia e não a manter sua dependência. Lucro é acúmulo
de riqueza pelo trabalho alheio da qual quem é detentor não participa ativamente. Para
além da semântica, temos aqui a pragmática99. A implicação de tal práxis é –
simultaneamente – polarização axiomática entre produtor e produto, e aproveitamento

99
Tal disciplina Lingüística, apesar de correlata da Semântica, traz consigo o postulado da
contextualização como processo de significação. Se a semântica associa através do discurso explícito =
texto; a pragmática vale-se da situação implícita = contextualização. A primeira é intralingüística; a
segunda, extralingüística.
da carência dos meios para instrumentalização humana de fins capitalistas. Se trabalho
fora significado como dignificante, atualmente ele é significado como insignificante. Se
Outrora trabalho sinônimo com desenvolvimento; agora é antônimo do mesmo. Se antes
realização e a satisfação advinda do processo e resultado; hoje, a sensação de vazio e
insatisfação do trabalho: seja pelo modo, seja pelo tipo, seja pela renumeração pautada
na destituição dos meios de produção quando poderia ser o auxílio, não por doação ou
esmola, mas por critérios humanos em bases de reforma agrária, o que destruiria nas
raízes a dependência dos indivíduos a esta mesquinha, alienante e castradora existencial
do trabalho capitalista. A historização dos indivíduos é uma necessidade intrínseca
diante das condições extrínsecas. Condição necessário para a reflexão histórica, para a
identidária, para as categorias sociais (significado: origem, efeitos e intentos) e para a
transformação de tal processo pela aplicação de valores hierarquizados para a
cooperação humana e não sua escravidão, sujeição e dependência sistematicamente
estratégica: seja nas leis, seja nas práticas em voga. Os significados ou seu processo
construtor (significação) é uma dialética entre exterior e interior, entre práticas sociais
(num primeiro momento) como estímulos para as respostas ideativas: discursivas e seus
conceitos. Este é o percurso investigativo da historização100:

Estamos longe, agora, do aparecer social – estamos diante do modo de


constituição real do sistema capitalista. Passamos de algo abstrato e
imediato a algo concreto e mediato: passamos de mercadoria como
coisa à mercadoria como tempo de trabalho social, deste à mercadoria
como trabalho não-pago e, portanto, à forma de relação social entre o
proprietário privado dos meios de produção e o trabalhador por ele
explorado. (CHAUÍ, 2004: 51).

Após explicação, citar a mediação entre pensamento mágico e pensamento


lógico, para avaliarmos a importância de tal mediação, não tanto como causa, mas com
seus efeitos inerentes á natureza humana. Pág. 342. 362 e 363. Assim como a mediação
causal, como fazer e observar, a mediação histórica como homólogo ao Homo Faber, só
que para o Homo Sapiens.
Durante séculos há um equívoco entre as noções idealismo e materialismo.
Ambos os aspectos são vistos como unilaterais, como não comutativos em sua recíproca
causal. Vejamos o conceito de materialismo, uma vez que a expressão materialismo
histórico e materialismo dialético mantêm em comum:

(...) A matéria de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações


sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo
pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais
de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. (...)

100
Pelo meu juízo de valor, de natureza Fenomenológica e Semiótica por excelência!
Assim sendo, a reflexão não é impossível. Basta que percebamos que
o sujeito da história, seu agente, embora não seja Espírito101, é sujeito:
são as classes sociais em luta. (CHAUÍ, 2004: 51 e 52).

Agir e pensar como momentos integrantes das relações de produção e


reprodução dos mecanismos de promoção de subsistência de teor coletivo e,
destacadamente classista. Entretanto se na época de Engels e Marx houve argumentos
do “Espírito” como agente, atualmente o tema dos argumentos e discursos sociais é
distinto. Já não se usa o epíteto dum ser invisível para as relações econômicas, mas o
discurso coletivo do lucro, dum vale tudo, duma atividade significativa desde que
lucrativa. De qualquer modo, a luta que travo é com o conformismo, a aceitação
acrítica... acrítica porque não-historicizada, não-sistematizada, incoerente, compulsiva,
hipo-volitiva quanto à sua auto-imagem, na resistência de trazermos à baila, à
explicitação dos componentes semânticos por e pelas implicações e, com estas, uma
interpretação telésica dos agentes responsáveis pela manutenção de tal estado de
relações sociais: ações e pensamentos, atividades produtivas e ideias.
Toda reflexão é uma tomada de atitude (interna/externa), promovendo aplicação
de critérios, tanto para avaliação das condições como para a transformação das mesma
num cálculo de meios. Fins ou propósitos são critérios, são valores, são pulsões
culturais como premissa prima para a consecução duma cadeia discursiva, apontadora
de falácias e conteúdos ideológicos, e também uma cadeia de projetos modificadores da
organização social como um todo. Uma re-hierarquização axiomática é o resultado de
meu esforço e de todo aquele que aja com um fim em si mesmo, autônomo em sua
hierarquia, priorizando desenvolvimento coletivo, e não desenvolvimento forçado às
custas de rebaixamento do potencial realizador dos trabalhadores.
Se o significado sistemático difere da aparência decorre da historização das
condições sociais e pensamentos que dela evocam. Mas em qual aspecto um sujeito
pode ser classe? O que é uma classe social? Vimos que a polarização axiomática influi
no senso de identidade. Seria tal fenômeno um efeito da divisão dos que trabalham e
dos que comandam?

As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais
determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas
condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram
formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela
divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas,
representam para si mesmos o significado real de suas relações. As
classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades
econômicas, políticas e culturais. (CHAUÍ, 2004: 52).

101
Marilena refere-se com este termo à noção de Hegel numa obra intitulada A Fenomenologia
do Espírito, que apesar de dogmática e hipostaseada nalguns aspectos explicativos, oferece-nos uma
explicação processual da dependência dos momentos para o entendimento do todo, bem como da
interação mútua entre objetividade e subjetividade, entre exterior e interior, entre a categoria social
senhor-escravo: numa apreensão dialética necessária.
Classes sociais como categorias coletivas duma divisão esquematizada entre
detentores/administradores e produtores/trabalhadores. Mas a quem, ou melhor, a qual
classe social cabe a maior determinação, a maior responsabilidade para reproduzir o
status quo vigente de dominação e expropriação? Sinto em informar-vos, mas tal é
desempenhada pela classe trabalhadora.. por mais incoerente ou paradoxal que se
afigure num primeiro momento (aparente).
Como inicia uma classe? Depois que fomos destituídos do direito à uma quota
de terra para nossa subsistência, somos forçados (enquanto estivermos em tal situação) à
sujeição de todo o mega mecanismo produtivo/industrial dos detentores. Uma vez
montado o cenário desse teatro social com os meios de produção da parcela da
sociedade que administra, temos pela necessidade de sobrevivência, a sujeição da outra
parcela da sociedade que executa. O simples trabalho já é reprodução. Contudo, tal
sistema social injusto retroalimenta-se também dos momentos de não exercício do
trabalho ou parte executiva da produção. Quais? Nos momentos ociosos (produtivos ou
improdutivos quanto ao desenvolvimento pessoal), é o discurso que se encarrega de
angariar partidários, ou seja, partidários como pessoas que desejam continuar a serem
partes, à divisão social em classes. Agir com esse fim (horrendo fim) é defender e até
incentivar os mecanismos de abuso e injustiça na construção argumentativa
(argumentação). Quando tal é uma variante da temática da dominação capitalista, o
simples recurso ao lucrativo basta para pessoas pouco sensíveis cederem ao enredo,
cenário e papéis sociais do drama da luta de classes.
Fazer-se classes é assumir a postura (interna e externa) da reprodução de toda
atividade de exploração do humano pelo humano... tal qual o extrativismo desenfreado
em relação à natureza. É eleger como critério primeiro (premissa prima) o axioma da
instrumentalidade nas relações humanas da qual extraem seu lucro ao invés de extraírem
desenvolvimento do potencial humano: seja pelo tipo trabalho correspondente às
inclinações e anseios de caráter idiossincrática, pelo modo de execução, pela
significação pessoal que a introjeção proporcionada pelo reconhecimento de si no
produto, bem como no processo de sua constituição. O discurso é um meio eficaz de
restringir o alcance dum reconhecimento dos efeitos implícitos (implicações) de tal
práxis coletiva. Um meio eficaz utilizado amplamente pelos meios de comunicação de
massa com sutis sugestões e informação subliminar, bem como a alienação da moda e
costumes como modo de assegurar a adequação em detrimento da reflexão, a aceitação
em detrimento da avaliação sistêmico-histórico-conteudística-estrutural.

Sistêmico - porque articulo em bases amplas de partes em relações.

Histórico - porque processual dum dado fenômeno.

Conteudístico - porque não se atém ao caráter apenas formal da análise, mas investiga e
analisa os valores e intenções por detrás das práticas e discursos, valendo-se do método
analítico – das conseqüências –, e sintético – em sua interpretação de conjunto –: seja
ela para trazer à tona as intenções e critérios aplicados pelos agentes.
Estrutural – Uma vez concluída a etapa de apreciação dos conteúdos, temos as
inferências dos critérios operativos pelo qual está sujeito um conteúdo. Este é
manipulado pelos mecanismos psico-sociais de discursos e práticas que tornam os temas
da exclusão, divisão, injustiça, interesses de grupo, resistências e medo de mudar
(xenofobia) como invariantes, dum mecanismo que varia o resultado mas não os
critérios ou premissas primas pelos quais partem sua construção estratégica
sistematicamente conformistas, alienantes, destituidoras tanto semântico-identidárias
como do desenvolvimento e autonomia existenciais. Um fenômeno estrutural lingüístico
é a destituição semântica, a polarização axiomática, a condensação semântica de termos
ou expressões que têm a função de palavras de ordem, a ineficácia da ação individual
frente à sociedade, justamente para desestimular a iniciativa pessoal e, com isso, por
implicação necessária: um evitamento da mudança social de atos e ideias.
A polarização axiomática é epifenômeno da divisão social do trabalho, não
tanto pela especialização, mas pela divisão entre administrativo e executivo. Seria os
partidários um efeito da divisão social do trabalho? Ver-se fragmentariamente como
partes, como fragmentos, como intrinsecamente separados, quando na verdade são
extrinsecamente segregados, sendo a auto-imagem um efeito da dissociação social
(segregação). Um dos mecanismos ou funções da segregação é instalar a separação
como natural. Naturalizar a separação é um dos critérios de todo discurso legitimador da
divisão social injusta (injusta porque são “dois pesos, duas medidas”). Argumento de
autoridade, por exemplo, é um dos mecanismos pelo qual o critério adquire expressão.

Só aqueles que focalizam sua atenção exclusivamente sobre o atual,


sobre o produto acabado desligado de todas as relações funcionais no
interior do processo genético, podem ter a impressão de que o que
acontece foi a realização de algo preexistente, de uma entidade
absoluta, contida em si própria. (MANNHEIM, Org. Bertelli 1974:
51).

A filosofia do trabalho revela a especificidade da natureza humana. Está em jogo


uma antropologia filosófica na qual há uma série de categorias de interação entre:
natural-cultural, necessidade-contingência, interior-exterior, sujeito-objeto, teoria-
práxis, individual-coletivo, psíquico-scial, mecânico-dinâmico, inorgânico-orgânico,
causalidade-teleologia.
Uma teoria que se queira rigorosa, precisa e sistemática deve dar conta da
articulação dessas interações na noção de Homo-Faber, ou seja, da dialética entre ser
humano e natureza (sujeito-objeto), natureza e natureza (objeto-objeto) entre indivíduo
e sociedade (sujeito-sujeitos) e intersubjetivamente (sujeito e sujeito) e, finalmente, no
trabalho (sujeito-objeto-sujeitos). Além do castor e outros animais que modificam a
natureza em prol de sua sobrevivência, ou mesmo para uma melhor sobrevivência, o ser
humano progride na transformação da natureza, uma vez que nossa genética levaria
mais tempo para se adaptar ao meio: somos dotados duma tal subjetividade, esta
antecipa situações, prevê fenômenos, transforma pela atividade da imaginação
juntamente com a atividade artesanal, aplicando o projetado idealmente no meio natural
e também cultural através do executado muscularmente pelo fino ajuste da coordenação
motora de que dispomos.

Pode-se distinguir os humanos dos animais pela consciência,


pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se
distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de
vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao
produzir seus meios de vida, (...) produzem, indiretamente, sua própria
vida material. (MARX/ENGELS, 2007: 87).

Em todos estes âmbitos de relações, o trabalho insere-se num grau de


complexidade de estudo com interações mútuas. Os discursos sociais: “O trabalho
dignifica o ser humano” ou “O trabalho é um dever desprazeroso” são reduções, são
explicações ou visões unilaterais dum processo multilateral e que requer uma gama de
focos e métodos para a apreensão do significado totalizante do processo trabalhista da
sociedade capitalista atual.

No curso da investigação da problemática do trabalho, a análise não


pode ser acusada de insuficiente sistematicidade porque da série de
pares dialéticos se escolhe apenas um, ou alguns, conferindo-lhes,
assim um privilégio. O defeito fundamental manifesta-se na
unilateralidade da escolha, que coincide com a incapacidade de
formular cientìficamente o problema, impossibilita que se penetre na
essência do problema. (KOSIK, 1976: 182).

(...) A transformação do desejo animal em desejo humano, a


humanização do desejo sobre a base e no processo do trabalho, é
apenas um dos aspectos do processo que se opera no trabalho. (...).
O trabalho, que superou o nível da atividade instintiva e é agir
exclusivamente humano, transforma aquilo que é dado natural,
inumano e o adapta às exigências humanas; ao mesmo tempo realiza
os fins humanos naquilo que é natural e no material da natureza.
(KOSIK, 1976: 183).

A visão isolada e a interpretação da aparência do primeiro momento são outros


mecanismos utilizados para a construção ideológica. É a resistência de conceber/aplicar
a interação mútua nos processos, nos fenômenos entre sujeito e objeto, ou mesmo, entre
sujeito/sujeito. A dialética é um conceito central da teoria do conhecimento como um
método de apreender um fenômeno a partir dos das partes como fatores, das relações
que se travam entre elas e ao campo a que estão expostas, e a resultante totalitária ou de
conjunto que temos como produto final de toda a intervenção e relação contraída no seio
de tal totalidade.

Mas o que interessa realmente à dialética materialista não é a simples


relação dos homens com a Natureza através (pela mediação) do
trabalho. O que interessa é a divisão social do trabalho e, portanto, a
relação entre os próprios homens através do trabalho dividido.
(CHAUÍ, 2004: 52).

A separação é um mecanismo de toda sociedade. O que problematizo não é o


fenômeno da separação. Mas a qualidade de seus efeitos. Problematizo a injustiça
sistematicamente conduzida pela separação dos Detentores e Executores num primeiro
plano, para a divisão entre Sociedade (instituições) e Estado (política) num segundo.
Após as específicas divisões envolvidas e concomitantes ao crescimento populacional102
duma dada nação, avaliarei seus resultados implícitos para historicizarmos a
organização social em seu grau de complexidade e de implicações na qualidade de vida
intersubjetiva e intra-subjetiva.

(...) Essa divisão começa no trabalho sexual de procriação, prossegue


na divisão de tarefas no interior da família, continua como divisão
entre pastoreio e agricultura e entre estes e o comércio, caminha
separando proprietários das condições do trabalho e trabalhadores,
avança como separação entre cidade e campo e entre trabalho manual
e trabalho intelectual. Essas formas da divisão social do trabalho, ao
mesmo tempo em que determinam a divisão entre proprietários e não
proprietários, entre trabalhadores e pensadores, determinam a
formação das classes sociais e, finalmente, a separação entre
sociedade e política, isto é, entre instituições sociais e Estado.
(CHAUÍ, 2004: 52 e 53).

Qual a qualidade da divisão de trabalho sexual na procriação? A divisão permite


a especialização das práticas. Mas, além disso, pode decorrer dela a fixação da atividade
como obrigatório, quando poderia ser rotativa, uma vez que há funções que podem ser
desempenhadas por ambos os sexos. Exceção feita aos casos em que há uma adequação
melhor por condições anatômicas, motrizes e de temperamento que se ajustem melhor
em determinada atividade.

Por meio da divisão do trabalho, já está dada desde o princípio a


divisão as condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais, o
que gera a fragmentação do capital acumulado em diversos
proprietários, e com isso, a fragmentação entre capital e trabalho,
assim como as diferentes formas de propriedade. (ENGELS/MARX,
2007: 72).

Numa via de “mão dupla”, tanto a divisão do capital e trabalho influencia-nos na


significação de trabalho e propriedade, como o interesse motivador de segregação social
pela classe apropriadora opera fragmentando, dividindo geograficamente o poder
político. Seja mediante nossa posição ou como detentores ou como desapropriados, será
a posição assumida em que nos encontramos que determinará o fetiche semântico de

102
Todos os acarretamentos de tal fenômeno, bem como aos fenômenos associado-lhes ou
diretamente ou indiretamente será tratado por mim pelo termo Sociometria.
cada uma destas categorias sociais. No critério prático das classes, há uma associação
involuntária – mas comum – das categorias vividas pelas atrizes e atores sociais.

À fragmentação dos interesses correspondia a fragmentação da


organização política, os pequenos principados e as cidades dos reinos.
(ENGELS/MARX, 2007: 194).

Qual a qualidade da divisão entre agricultura e comércio? Se a vantagem do


comércio está na ampliação do distribuição do produto, poderá haver uma defasagem
entre o ganho do comerciante que não produziu e aquele que produz. Enfatizo o axioma
da rotatividade da atividade ou função como um modo de desfazer a desqualificação do
trabalho produtivo diante do trabalho de vendas e distribuição. Se geralmente há mais
dispêndio de forças por aqueles que produzem, porque então ganharem menos em
relação àqueles que vendem? E tem mais: os que vendem trabalham menos tempo dos
que os produtores. Há aqui uma desqualificação (polarização axiomática e status social
desproporcional aos critérios esforço/tempo) da atividade, seja pelo tipo de serviço, seja
pelas horas dedicadas a elas.
Qual a qualidade da divisão entre Detentores dos Meios de produção e do modo
de execução para os Executores? Bem, este par já foi amplamente avaliado as
conseqüências do não reconhecimento do executor frente ao produto (aspecto do modo
produtivo); e pelas efeitos da auto-imagem e mudança de significado de conceitos que
servem como palavras de ordem para diminuir o teor revolucionário dos Executores.
Qual a qualidade da divisão entre cidade e campo? Algo similar ao dos
agricultores e comerciantes. Tal divisão acarretará a separação entre proprietários de
terra e não proprietários do mesmo. Se as pessoas do campo estão mais restritas
enquanto desenvolvimento cultural, estão mais independentes do modo alienante de
execução e detém os meios de produção. As pessoas da metrópole têm mais chances de
desenvolvimento cultural, porém, sua qualidade de vida é geralmente inferior à das
pessoas do interior: seja pela alienação, seja pelo pagamento desonesto da mais-valia.
Se todos tivessem terras ninguém poderia responsabilizar o grau de desenvolvimento
subjetivo que se encontra, uma vez que terra é sinônimo de independência na
subsistência.
Qual a qualidade da divisão de entre trabalho manual e intelectual? O problema
aqui reside na polarização axiomática entre prática e teoria. Também há a divisão do
trabalho intelectual que divide as ciências como setores independentes do saber quando
carecem de sínteses capazes de articular os diversos campos de modo coerente. O
desafio É integrar aquilo que foi voluntariamente dividido. Se não é impossível
refletirmos sobre as condições sócio-históricas também é possível uma síntese
explicativa menos esquizofrênica cognitivamente falando. Aqui também há o fenômeno
da polaridade axiomática nos privilégios e deméritos sociais das profissões. O palco de
enriquecimento desmedido e acrítico está aí. Cabe a nós ou aceitar ou negar as formas
de ascensão que desprestigiam o trabalho manual no teatro social da atividade
profissional fixionada. Afinal, o que nos impede de ter duas ou mais funções para
desenvolvermos, atualizarmos maiores potências em nós? Somente nossa possível
resistência a sermos menos fragmentados, em atitudes e palavras, em ações,
pensamentos e discursos.
Qual a qualidade da divisão entre Sociedade e Política? A este reservarei um
capítulo para Ideologia e Estado.

Em toda a investigação sóbria, os produtos culturais, seus responsáveis, são os


próprios produtores. Porém, em nosso contexto, o fenômeno da dissociação cognitiva,
separa o produto do produto, como a práxis econômica da elite separa os instrumentos e
meios daquele que produzirá. Se pensarmos na mitologia comparada, verificaremos a
sacralização dos agentes que promoveram um impulso para o desenvolvimento
civilizatório. A eles chamamos-lhes de Heróis. Citar Campbeel!! As conquistas
técnicas de extração, plantação e manejo de materiais, a intensificação das forças
produtivas, as pesquisas e aplicações do campo agrícola, pecuária, extrativismo e
emprego da força animal e animal-humano foram durante séculos atribuídos por agentes
imaginários, seres míticos (“transcendentais” por excelência). Interessante notarmos que
é como se fôssemos incapazes de transformarmos o grupo social e suas práticas por nós
mesmos.
A conquista lenta, progressiva da linguagem, estimulada pelo comércio com
outros povos, e pelo grau de complexidade que advém naturalmente da crescente
complexificação das relações intersubjetivas: a linguagem simbólica é predica como
resultado de seres míticos que trouxeram tal conhecimento para nós.
O período Neolítico103 e seu período imediatamente posterior a Idade dos
Metais104 também foram explicadas pela intervenção “não-humana” das Deusas e
Deuses. Estes, com faculdades ou funções específicas em cada arte, trazem de “outra
dimensão” para os pobres humanos – passivos e incapazes de progresso cultural por
suas próprias forças – como dádiva divina de seres invisíveis preocupados com os
humanos, estes demasiadamente não humanos (na perspectiva mítico-religiosa) para
gerarem novas formas de ações.
Ora, ora... estamos nos domínios do discurso religioso a “explicar” as “causas”
supra-históricas do desenvolvimento da humanização do animal humano. Vejamos um
estudo dum filósofo e antropólogo (autodidata) alemão a respeito das ideações
religiosas, para contribuir com nossa investigação do fenômeno ideológico em geral.

(...) da concepção hegeliana Marx também conserva o conceito de


alienação, tendo como referência as análises de Feuerbach sobre a
alienação religiosa. Para Feuerbach, a religião é a projeção suprema
da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência
humana num “Ser superior”, estranho e separado dos homens, um

103
Seu aspecto nuclear: a passagem gradual do nomadismo para o sedentarismo,
proporcionado pela cultura dos alimentos, seja a agricultura, seja a pecuária.
104
Seu aspecto principal: o domínio produtivo de bens de natureza cortante para o manejo de
madeira, corte, armas e etc. Com tais instrumentos, acelera-se vertiginosamente a facilidade de
transformação da natureza com menores esforços motrizes; tal fenômeno será a chave para o
entendimento das condições necessárias conquistadas no tocante ao desenvolvimento cultural: arte,
lazer, jogos, filosofia e ciência.
poder que os domina e governa porque não reconhecem que foi criado
por eles próprios. (CHAUÍ, 2004: 53).

(...) de início, tudo entra na linha de conta da falta de unidade na


própria consciência. De fato, embora a sociedade represente em si
uma unidade vigorosa e que seu processo de solução seja igualmente
um processo unitário, ambos não são dados como unidade à
consciência do homem, em particular do homem nascido no seio da
reificação capitalista das relações com em um meio natural. Ao
contrário, são dados como uma multiplicidade de coisas e de forças
independentes umas das outras. (LUKÁCS, Org. Bertelli 1974: 45).

A alienação, tema central do Filosofia da Economia, da Sociologia do


Conhecimento e, por fim da Psicologia Social de Engels e Marx, tem como fundamento
ou efeito, a abstração do que é humano para algo não humano. O supra-humano com
seu efeito é análogo ao caráter impessoal da ideologia, o que confere aos ignorantes
histórico-sociais, um motor próprio, um impulso do qual o ser humano não participa,
mas recebe passivamente os resultados (estranhos, alheios à nosso vontade voluntária)
desse móvel, seja-o um outro ente imaginária (mas que se toma como empírico), seja-o
aos discursos coletivos ideológicos.

Parece ser geralmente negligenciado o fato de que o sujeito que estuda


e compreende a história pode olhar para a última de várias “posições”
que acarretam uma diferença existencial considerável. Assim, (...) faz
grande diferença se fazemos uma levantamento dos produtos da mente
retrospectivamente como produtos acabados ou se tentamos
reencenar o processo de sua criação. (MANNHEIM, 1974: 50).

O paralelismo do desenvolvimento nos vários ramos da ciência –


especialmente biologia, física, química, tecnologia, cibernética e
psicologia – conduz à problemática da organização, da estrutura, da
inteireza, da interação dinâmica (...). (KOSIK, 1969: 37 e 38).

Após estas considerações do método dialético de apreensão dos fenômenos, de


cuja qual a categoria de interação sujeito-objeto torna-se necessária, enfocarei dois
fenômenos destituidores. Antes examinei os processos de destituição humana, ou seja,
as emissões, os movimentos ou operações por parte dos destituidores 105; agora,
investigarei as respostas, os movimento ou operações por parte dos destituídos106.
Há duas respostas conformistas aos agentes ideológicos secundários, a saber:

1) Práxis reduzidas à técnica;


2) Consumo restrito à condição consciencial descomprometida.

105
Agentes ideológicos primários.
106
Agentes ideológicos secundários.
Respectivamente tais temas provêm de Karel Kosik e Terry e Eagleton.
Práticas impessoais são aquelas em que o indivíduo não atualiza seu potencial de
realização. Se, e na medida em que estamos sujeitos à desapropriação dos meios de
execução107, nossa atuação, a maneira como coordenaremos nossos movimentos serão
regulados por fatores alheios à nossa escolha. Impera aqui a heteronomia do trabalho
estritamente técnico: sinônimo de dever violentamente segregado, destituído de prazer
ou satisfação. Compreendamos por satisfação as condições necessárias de
correspondência entre a espécie de trabalho e o modo de execução do mesmo. Cabe ao
indivíduo a condição suficiente de realização no (SEU) trabalho quando exposto às
condições necessárias já adequadas às suas disposições e desejos idiossincráticos108.
Se e somente se apaixonadamente e, portanto, engajados naquilo que fazemos,
na correspondência dos requisitos necessários (porque apropriados!) em relação ao
indivíduo deliberador da espécie de trabalho e modo de execução do mesmo – para não
falar dos meios de produção próprios – garantiremos o anseio humano de sentirmo-nos
realizados como indivíduos num cenário social de desenvolvimento individual a ressoar
no desenvolvimento da organização coletiva. Para tal, faz-se mister as finalidades
atualizadoras de potência (humana e indiretamente intersubjetiva) em prol duma
comunidade justa, no tocante ao desenvolvimento emancipador de si próprio com
vistas à produção ou vantagem social ou bem comum. O desejo humano é separado,
reprimido ou até mesmo recalcado da esfera trabalhista no modo de produção capitalista
reduzindo o indivíduo a meio para a consecução de fins, finalidades estas alheias ao
interesses pessoais que lhe cabe por direito.

Aquilo que em determinados momentos históricos se apresenta como


“impersonalidade” ou “objetividade” da práxis, e é apresentado por
uma falsa consciência como a mais própria praticidade da práxis, é ao
contrário apenas a práxis como manipulação e preocupação, isto é,
práxis no seu aspecto fetichizado. (...) sem a luta pelo
reconhecimento, que acomete todo o ser humano, a práxis se degrada
ao nível da técnica e da manipulação.
A práxis é tanto objetivação do ser humano e domínio da natureza
quanto a realização da liberdade humana. (KOSIK, 1969: 205).

Comentei sobre o problema e conseqüências da indiferença, pois é através dela


que nós podemos receber de maneira compulsória, automática os conteúdos ofertados
pelos meios de comunicação de massa ou programas de entretenimento, bem como os
bens ou produzidos ou comprados por uma sociedade, num consumo frenético e
fantasisticamente dissociados do grupo: seja pelo descomprometimento valorativo no

107
Além destes, para piorar a situação do trabalho desapropriador e destituidor, quando
trabalhamos em algo que independentemente de escolher os meios de execução (como fazer), não
escolhemos o que fazer, ou seja, a espécie de trabalho que satisfaz nosso desejo de atuação, de
desenvolvimento. Como condição atual do trabalho capitalista, é índice de sociabilização o auto-
sacrifício da satisfação no trabalho no desenvolvimento subjetivo. (Yuri Simoni Coutinho).
108
Termo que designa as peculiaridades inerentes a um modo singular de agir, sentir e pensar.
consumo, ou melhor, na maneira como um produto é consumido, selecionado e
assimilado; seja pelas implicações de embotamento mental quanto ao fechamento ou
inoperatividade reflexiva de como tal produto foi produzido, para quê, para quem e
também quem consome ou deve consumir, como e para quê.

(...) a ideologia requer uma subjetividade um tanto profunda sobre a


qual trabalhar, uma certa receptividade inata a seus decretos; mas se o
capitalismo avançado reduz o sujeito humano ao olho que vê e ao
estômago que devora, então não há subjetividade suficiente nem para
que a ideologia se estabeleça. Os sujeitos achatados, depauperados e
sem rosto dessa ordem social não estão à altura do significado
ideológico, nem têm necessidade dele. (EAGLETON, 1997: 45).

Uma ideologia oferece conteúdo? Sim. Qual? Depende de toda uma conjuntura;
porém, toda ideologia pelo grau de sistematização de sua “explicação” ou requer certo
grau de desenvolvimento cognitivo, consciencial. Por qual motivo tais indivíduos
carentes e invisíveis socialmente carecem de ideologia? Porque uma vez reduzidos a um
nível instintivo básico109 de consumo, descartamos a operação do entendimento, e
mesmo duma identificação genuína no sentido de relações humanas produtivas em seu
aspecto intersubjetivo de desenvolvimento potencial; simultaneamente psíquico e social.

A política é uma questão mais de gerenciamento técnico e


manipulação que de pregação ou doutrinação, de forma mais
que de conteúdo; uma vez mais, é como se a máquina
funcionasse sozinha, sem precisar fazer um desvio pela mente
consciente. A educação deixa de ser uma questão de auto-
reflexão crítica e passa a ser absorvida, por sua vez, pelo aparato
tecnológico, atestando a posição de alguém dentro dele. O
cidadão típico é menos o entusiasta ideológico que grita “Viva a
liberdade!” do que o telespectador dopado e estupefato, cuja
mente é tão calma e imparcialmente receptiva como a tela em
sua frente. (EAGLETON, 1997: 45).

É clássica a afirmação de que a uma força impessoal – e, portanto, involuntária –


a controlar as pessoas, levando-as a um automatismo práxico e argumentativo. Tal força
é simultaneamente psíquica como social, uma vez que cada indivíduo participa
individualmente operando uma espécie de dissociação de tal força, força esta encontrada
na coletividade, com a visão imaginária da sociedade como um grande outro a exercer
seu poder sobre nós: coercitivamente e reiterativamente. Vejamos um pouco mais deste

109
Carecimentos necessários à sobrevivência. Quando não, apenas o fetiche da aquisição
sígnica de pertença a um grupo, meramente pelo consumo... O que é atestado pela expressão: Código
de Defesa do Consumidor e não Código de Defesa do Cidadão. Ser cidadão, na Grécia antiga, foi sermos
para a Cidade, o que infere necessariamente a condição de sociabilização com internalização de
deveres, de valores gregários em prol do teor cooperativo e em detrimento do competitivo.
fenômeno psicossocial patológico sob as condições propícias do quadro atual para a
gênese de tal reação frente aos estímulos do cenário social.

“O Capital”, diz Manifesto Comunista, “não é uma força pessoal, é


um força social”. Mas uma força social cujos movimentos são
dirigidos pelos interesses individuais dos possuidores de capitais, que
não possuem uma visão de conjunto da função social e de sua
atividade, e nem cuidam disso, de sorte que o princípio social, a
função social do capital, só se cumpre por cima de suas cabeças,
através de suas vontades, sem que eles próprios tenham consciência
disso. (LUKÁCS, Org. Bertelli 1974: 36).

Voltemos a Eagleton e o conteúdo de sua citação. Tal exposição explicativa é


uma preciosa chave de entendimento para como é possível atualmente a noção
governamental herdada, migrada e copiada dos estadudinenses denominado de: Estado
Mínimo.
Fornecer-vos-ei o processo que torna possível o emprego em larga escala deste
expediente administrativo-político:

Talvez, ao utilizar o termo polissêmico e vago de essência, Feuerbach referiu-se


não a conteúdos prontos dos seres humanos, mas a algo que é inerente á natureza
humana, a algo como uma espécie de operatividade que independência relativa do
conteúdo, como é o caso do pensamento mítico que separa as grandes conquistas para
entes supra-humanos ou heróis civilizatórios dotados de capacidades humanas
hiperbolicamente ampliadas. Trago á baila para nosso estudo, dois mecanismos
psíquicos que substituem o humano por um não-humano e constrói versões estóricas
para mitigar a ignorância histórico-social das causas experienciadas e não apenas
imaginadas noutra dimensão.
De qualquer modo, estes dois mecanismos110, o resultado ou mesmo intenção
velada é:

1) A ahistoricização dos conteúdos e causas e intensificação das faculdades


humanas como idealização dum ser melhorado, desejado.

2) Inventar causas supra-humanas e desistoricizar sistematicamente os seres


humanos com explicações apelativas mágicas.

3) Substituir os agentes construtores por “outros” agentes é dissociar as faculdades


humanas e sua construção.

110
Hipóstase como abstração = Deus da Forja (Hefaistos), Deusa da vegetação (Deméter),
Deusa da caça (Diana); Hipérbole como acentuação duma qualidade = Heróis (Héracles, Moisés, Krishna)
Em ambos os mecanismos, sua eficácia reside na dissociação cognitiva de
causas, bem como a causa abrupta e aprocessual pela intervenção imaginária (forçada,
inventada e não descoberta por observação e análise) de forças alheias (daí o termo
alienação como estranhamento, não reconhecimento de si na obra, na história ou no
processo).

(...) Só aqueles que focalizam sua atenção exclusivamente sobre o


atual, sobre o produto acabado desligado de todas as relações
funcionais no interior do processo genético, podem ter a impressão de
que o que aconteceu foi a realização de algo preexistente, de uma
entidade absoluta, contida em si própria. (MANNHEIM, 1974: 51).

(...) e com isso à constatação de que o estudo das partes e dos


processos isolados não é suficiente; ao contrário, o problema essencial
consiste em “relações organizadas que resultam da interação
dinâmica, fazem com que o comportamento da parte seja diverso, se
examinado isoladamente ou no interior do todo”. (KOSIK, 1969: 38).

Separação dos agentes causais humanos, invenção substitutiva por entes míticos,
negação sistemática (ainda que involuntária) dos graduais processos por intervenções
mágicas e instantâneas. Estas são as operações psíquicas dos conteúdos daqueles que
ainda empregam os meios mágico-míticos e religiosos (dogmáticos) para encetarem,
inculcarem desvios da intencionalidade político-religiosa, a saber: a dominação pelo
convencimento pelos recursos elencados para fins de desigualdade, de privilégios, de
instrumentalização humana para interesses de grupo que contrapõem-se a um
desenvolvimento comum, coletivo; da legitimação de estratificação social, para
culminar na divisão em classes no sistema capitalista.

Todavia, Marx imprimirá grandes modificações nesse conceito.


Contra Hegel, dirá que a alienação não é do Espírito, mas dos homens
reais em condições reais. Contra Feuerbach, dirá, em primeiro lugar,
que não há uma “essência humana”, pois o homem, é um ser histórico
que se faz diferentemente em condições históricas diferentes; e, em
segundo lugar, que a alienação religiosa não é a forma fundamental da
alienação, mas apenas um efeito de uma outra alienação real, que é a
alienação do trabalho. (CHAUÍ, 2004: 53).

Como já expliquei, é característica de todo e quaisquer fenômenos a interação


entre as partes dum todo, entre os fatores (causas) que convergem para uma resultante
fenomênica global, de conjunto.

(...) temos que reconhecer duas esferas “mentais”, cuja relação mútua
é a da infra-estrutura e superestrutura. A questão aqui será de que
modo uma esfera afeta a outra no processo global – como uma
mudança estrutural na superestrutura. (MANNHEIM, Org. Bertelli
1974: 48).

É próprio, inerente ao discurso ideológico privilegiar um fator dentre outros, um


lado da questão quando ambos são retroalimentadores. Em nosso caso, tanto o exercício
ideativo-dogmático do plano do discurso reforça a sujeição humana na práxis escrava e
desumana do sistema de relações capitalistas, como a no plano da ação, a reprodução e
aceitação de tais práticas produtivas também re forçam os recursos mágico-míticos-
dogmáticos de legitimação da situação vigente. Compreendo que Marx e Engels talvez
agissem assim para equilibrarem o prato da balança, uma vez que ela pendeu para
considerar – em sua unilateralidade – a determinação (ou maior ou única) das idéias
frente as práticas.
Um exame comparativo, da divisão de interesses de grupos, que pela divisão
fortalecem-se para impor-se para conquistar apenas o benefício próprio explorando os
demais grupos. Também no combate teórico, os queridos Marx e Engels não estiveram
totalmente imunes disso. Não tenho como afirmar que eles agiram apenas
unilateralmente, pois pode ser que tal ênfase do trabalho para as idéias provenieram da
ridícula e caricaturada explicação alemã: forçada, dissociativa, dogmática e unilateral
em suas considerações.

Somente em seus últimos escritos Engels aceita que a noção de


superestrutura ideológica inclui uma variedade “formas ideológicas”
que diferem significativamente entre si, isto é, que não são igual e
semelhantemente condicionados pela base material. O fato de Marx
não ter sistematizado o problema explica boa parte da imprecisão
inicial sobre o que se deveria incluir na superestrutura e como se
achavam relacionadas aos modos de produção as diferentes esferas
“ideológicas”. (MERTON, Org. Bertelli 1974: 97).

Chega de tomar partido, pois como sugeriu Karel Kosik, a


pseudoconcreticidade é construída à custa de separação, de unilateralidade, de
aparência das interpretações ahistórico-sociais, presumindo uma explicação distorcida
das causas e intenções sociais de interesses de grupos/classes em jogo, para substituir
por uma interpretação dialética que visa o conjunto, e como tal, inimiga da
unilateralidade, da exclusividade causal e do isolamento e independência das partes,
separando os determinismos das relações adquiridas num sistema de interações, como
tais mútuas, ainda que difiram em grau nas direções das determinações111.

O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário,


artístico etc. funda-se sobre o desenvolvimento econômico.
Entretanto, todas essas esferas reagem entre si e em relação à base

111
Com grau de direções das determinações quero frisar que nalgumas situações pode
prevalecer mais do ideal para a ação; e noutras, mais para a práxis para o discurso. Portanto não
privilegio uma delas para minha investigação, mas depois de investigar posso inferir se há maior
intensidade de uma para outra.
econômica. Não é que a posição econômica seja a única causa
atuante, enquanto tudo o mais se limite a efeitos passivos. O que
existe é uma interação das esferas sobre a base da necessidade
econômica que, em última análise, predomina sempre. (MERTON112,
Org. Bertelli 1974: 98).

Admitimos certo grau de independência na produção ideológica dos diversos


setores institucionais, uma vez que produzem discursos ‘próprios’, característicos, mas
sempre versando sobre os temas ou interesses capitalistas na manutenção da dominação
do ser humano pelo humano. Os momentos não são suscetíveis de investigação
direcional, uma vez que são internos, mas a bilateralidade a direção deve ser estudada
na demonstração de outro foco de estudo: não mais da unilateralidade ou mesmo
preponderância de um, mas admitidas a interação entre eles, a retroalimentação, tanto
modal (idéia e ação) como setorial (âmbitos institucionais de disseminação e
inculcamento).

Quanto mais a esfera específica que estudamos se afasta da esfera


econômica e se aproxima da esfera da pura ideologia abstrata, tanto
maior será o número de acidentes (desvios do comportamento
“esperado”) que iremos encontrar em seu desenvolvimento, tanto mais
sua curva tenderá acorrer em zigue-zague. (MERTON, Org. Bertelli
1974: 98).

Confiro tais diferenças ideológicas a cada esfera como um repertório de


categorias explicativas próprias a serem empregadas. Contudo, se imaginarmos na
Estilística e Retórica as figuras de linguagem e de pensamento como recursos diferentes
que podem atingir os mesmos intentos, então a variação é parcial, pois somente os
meios utilizados diferem, enquanto o interesse comum e temas são o núcleo das
manifestações discursivas ideológicas e racionalizantes. A defesa dum propósito
unitário ramifica-se em suas múltiplas manifestações ou expressões para levar à cabo a
inversão, a destituição, a alteração semântica, o ocultamento, o assujeitamento, a
dependência dos indivíduos em relação a seus governantes, às pseudo-legitimações das
medidas educacionais, econômicas, trabalhistas, oportunidades, mérito, critérios etc... A
eficácia dos meios para a consecução de fins dominantes:

As condições econômicas são necessárias, mas não suficientes, para a


emergência e difusão de idéias que expressem os interesses, ou as
perspectivas, ou ambos, de estratos socais distintos. As condições
econômicas não exercem um determinismo estrito sobre as idéias, mas
constituem predisposição definida. Podemos predizer a partir das
condições econômicas quais tipos de idéias exercerão influência
controladora numa direção que possa ser eficaz. (...). os sistemas de
idéias podem desempenhar um papel decisivo na escolha de uma

112
Citação de Engels por Merton. Engels, em carta a Heinz Starkenbuerg, a 25 de janeiro de
1894, p.392.
alternativa, que “corresponda” a um real equilíbrio de forças, ao invés
de optar por outra que, dirigindo-se em sentido contrário ao da
situação de poder existente, está destinada a ser instável e precária.
Existe uma compulsão última advinda do desenvolvimento
econômico, mas sua orientação não é a tal ponto detalhada que impeça
a total ocorrência de variação das idéias. (MERTON, Org. Bertelli
1974: 112).

Precisamos de mais precisão explicativa do processo de correspondência, ou


reflexo, ou determinação da infra e super estrutura em suas duas direções. Por isso
explico a unidade intencional com seus temas (esquemas) de ocultamento, inversão,
destituição etc... a serem aplicados nas categorias explicativas própria de cada esfera
institucional. A categoria de interação é primordial para a explicação do fenômeno
ideológico, seja de interação entre infra e super estrutura, seja na interação entre os
setores. No mesmo setor ou comparativamente o processo é análogo quanto aos
esquemas intra-setorial e homólogo quanto às relações condicionais inter-setoriais.
Vejamos outra citação de reforço na categoria explicada acima:

A ambigüidade do termo “correspondência” para definir a relação


entre a base material e a idéia só poderá ser negligenciada pelo
apologista entusiasta. (...). Quando reconhece nas crenças “ilusórias”
motivos para a ação, o marxismo atribui uma certa independência às
ideologias no conjunto do processo histórico. Elas já não se reduzem a
epifenômenos. Gozam de uma certa autonomia. A partir de então se
desenvolve a teoria de interação de fatores, que atribui também à
superestrutura, ainda que em relação com a base material, um certo
grau de independência. (MERTON, Org. Bertelli 1974: 111).

O reconhecimento de determinação mútua dos aspectos é base d pensamento


dialético de Karel Kosik e do pensamento fenomenológico de Edmund Husserl. Ambos
destacam a categoria de relação ou reciprocidade causal a que denomino de
determinação mútua ou interação estrutural. Considero a própria alienação na práxis
homóloga à falsa consciência no processo epistêmico de explicação dos fenômenos,
tendo como exemplo a inversão causal como sintoma da dissociação, esta que é similar
ao estranhamento ou não reconhecimento de causas externos e poderes psíquicos
ameaçadores e extrojetados ou dissociados.
Retomemos a questão da alienação:

O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não se pode


reconhecer no produto porque as condições desse trabalho, suas
finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador,
mas do proprietário das condições de trabalho. Como se não bastasse,
o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não
o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja
como um poder separado do produtor e como um poder que o domina
e ameaça (CHAUÍ, 2004: 52 e 53).
“O capital, diz o Manifesto Comunista, não é uma força pessoal, é
uma força social”. Mas uma força social cujos movimentos são
dirigidos pelos interesses dos indivíduos dos possuidores de capitais,
que não possuem uma visão de conjunto da função social, e de sua
atividade, e nem cuidam disso, de sorte que o princípio social, a
função do social do capital, só se cumpre por cima de suas cabeças,
através de suas vontades, sem que eles próprios tenham consciência
disso. (LUKÁCS, Org. Bertelli 1974: 36).

Em suma, enfatizo a reciprocidade causal do estranhamento ou não


reconhecimento, seja no trabalho, seja nas ideias. O curioso sentimento de sermos
dominados e ameaçados por essa força impessoal e coercitiva, muito assemelha-se à
imagem de deus e demônio: o primeiro como representante do dever, do ideal, da meta
civilizatória de caráter heteronômico; o segundo como representante de forças
psíquicas, desejos e instintos, dissociados do próprio sujeito como algo externo. Se o
primeiro cumpre a função de Supra-ego, o segundo cumpre a de desejos involuntários
que visitam o campo mental, o campo consciente de maneira intrusiva (coercitiva),
função de Id. Tanto o sentimento de culpa (deus, dever não introjetado mas castrador),
como os desejos (impulsos para ações com fins de satisfação pessoal). Ambos por
manifestarem-se de maneira involuntária, são dominadores no tocante à inevitabilidade
de serem sentidos, ainda que possam não ser ouvidos113 por nós ou mesmo
reprimidos114.
As interpretações de destino inevitável, necessário é uma conseqüência da
situação econômica no que tange ao trabalho, e da situação psíquica no que tange aos
apelos dogmáticos do ideário religioso com seus efeitos de terrorismo psíquico de
dever/culpa dissociados do sujeito pela representação icônica das forças morais e
instintivas. O intento do terrorismo é a dependência do sujeito para continuar a agir de
maneira passiva, pela dissociação sígnica a que está sujeito quase como num sonho (ou
pesadelo). O intento da ideologia de caráter político-econômico, apesar de menos
delirante, também dissocia os indivíduos da posse de conteúdos histórico-causais, e com
estes, a intencionalidade dos agentes e as implicações do trabalho na qual escolha e
meios foram destituídos da massa trabalhadora para se concentrarem nas mãos, na posse
e domínio econômico duma minoria, estes que aproveitam os desfrutes pelo
enriquecimento sistematicamente admitido como justo, certo e necessário.
Por que comparei pensamento mítico com ideologia? Porque ambos empregam
os mesmos mecanismos psíquicos que operam em função de resistência psíquica, de
medo, de subordinação da organização social em voga. Se Feuerbach acertou em
afirmar a natureza humana nos fenômenos de alienação psíquica; esqueceu que os
conteúdos são determinados, montados, estruturados por relações externas =
intersubjetivas. Se Engels e Marx acertaram em afirmarem a determinação da natureza
humana ou essência como algo por se construir, por se fazer na ação, equivocaram-se

113
Supra-ego.
114
Id.
em não perceberem nos mecanismos que descrevi como inerentes ao ser humano, em
qualquer época, povo ou grupo social.
Provavelmente Feuerbach predicou, compreendeu pelo termo essência algo que
é constitutivo no ser humano, ou seja, que é uma potência a ser atualizada. Engels e
Marx, similarmente compreenderam de tal termo, não o inato, mas o adquirido, a
formação, a construção daquilo que é volátil e cultural.

Essência em:

Engels e Marx é cultural.


Engels e Marx é adquirida.
Engels e Marx é estimulada, condicionada por relações humanas, conteúdos sociais.

Feuerbach é natural.
Feuerbach é herdada.
Feuerbach é resposta humana, operada mentalmente pelo indivíduo.

Ora, não há contradição aqui, pois os significantes em cada um deles é tomado


em acepções distintas: absoluta e relativa115. Se Feuerbach afirmou o primado de tal
operação para explicar o conteúdo antropomórfico da divindade cristã, Marx e Engels
afirmaram que tais recursos psíquicos são respostas condicionadas e determinadas pelas
condições sócio-econômicas do trabalho, das práticas adquiridas que, pela inerência da
proposta lucrativa e abusiva do sistema capitalista de produção e consumo, fornece o
disparo-gatilho de tais ideações e expedientes psíquicos. O que é inato é necessário,
absoluto; o que é adquirido é contingente, relativo.
Afirmar que os seres humanos não sofrerão no suposto “céu” ou outra dimensão
paralela é transformar (forçadamente pelo desejo, pela idealização) o que é absoluto e
inerente a algo que se molda ao desejo de continuidade, de imortalidade, de aspectos
subjetivos em livre desenvolvimento sem as restrições dos aspectos objetivos,
metabólicos.116 Tal idealização separa (abstrai) as necessidades para a contingência da
subjetividade. As ideologias do produto e consumo, conferem predicado humano para o
produto (fetiche da mercadoria) e instrumentalizam, transformam em meios
(desumanização pelo efeito na auto-estima como corolário da consciência de classe
subalterna) as relações humanas que poderiam ser de desenvolvimento mútuo, o é
apenas para pequenos grupos de elite administrativa.
A inversão de valores (destituição semântica e auto-imagem) e a inversão causal
(abstração mítica daquilo que é caro e valoroso para o desenvolvimento civilizatório)
são causados, segundo Engels e Marx como epifenômenos de base, da infra-estrutura, a
saber: condicionadas como por arco-reflexo das condições de exploração pelo trabalho
capitalista. Marilena Chauí sintetiza pertinentemente meu esboço:

115
Ambos os termos são um legado de Aristótelois.
116
Carecimentos básicos: fome, sede e sono; noutro aspecto, desejos.
Que é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não-pago. Por
depender da forma da propriedade privada capitalista, que separa o
trabalhador dos meios, instrumentos e condições da produção, a
mercadoria é uma realidade social. No entanto, o trabalhador e os
demais membros da sociedade capitalista não percebem que
mercadoria, por ser produto do trabalho, exprime relações sociais
determinadas. (...). (CHAUÍ, 2004: 54).

Mercadoria como realidade social, portanto produto, e como tal dependente de


seu produtor. Não tem vida autônoma, mas refratária. Utilizando a categoria peirceana
de Índice, a mercadoria – por indução metonímica, assim como uma nuvem escura é
presságio de possível chuva – é presságio de algo a mais que sua condição ôntica: temos
a projeção humana, das condições sociais de produção. Mas, se na produção (trabalho)
a mercadoria é significada como algo penoso e estranho; no valor de uso (consumo) ela
é dignificada numa condição humana, como algo portador mágico de possível status
social daquele que o consome. Não! Nem é preciso consumir, basta ostentarmos-lhe
para que os efeitos identidários ou auto-imagem sejam acionados, a saber: sou mais
aquilo que tenho e menos aquilo que faço. Novamente temos as categorias aparência e
realidade (Kosik), ou melhor, uma interpretação isolada e superficial e outra articulada,
histórica e sistêmica. Somente a segunda confere o significado totalizante das condições
sociais que o engendram e configuram.

Assim, em lugar de a mercadoria aparecer como resultado de relações


sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que
se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si
mesma, como se fosse um dom natural nas próprias coisas. (CHAUÍ,
2004: 54).
(...) Que significa dizer que a aparência social é a própria realidade
social? Significa mostrar que no mundo de produção capitalista os
homens realmente são transformados em coisas e as coisas são
realmente transformadas em “gente”. (CHAUÍ, 2004: 55 e 56).

Valer por si mesma é perder o caráter histórico de configuração e


condicionamento. É abstrair e isolar, é caracterizá-la como algo independente:
valorizada como tal, sacralizada por seu poder identificatório mais pela ostentação do
que pelo uso. Os aspectos projetivos do pensamento mágico-religioso estão presentes
de maneira sutil na produção e no consumo. Se na produção há estranhamento e
ameaça117 o que terá no consumo?

117
O aspecto ameaçador é explicado pelo mecanismo psíquico de extrojeção. Corresponde a
expulsarmos para fora aquilo que nos desagrada (análogo à representação icônica do diabo). A força da
ameaça tida como externa é uma dissociação da interna: o medo e insatisfação sentida de maneira
difusa e vaga, sendo tal projetada, extrojetada como um meio para aplacar a ansiedade e insatisfação
por deslocamento do agente. Com tal deslocamento conseguimos nos eximir da responsabilidade de tal
atitude ou causadores desse sentimento ou condição com a atribuição predicativa deslocada num
“outro”. No âmbito dialético, se a resposta do conflito externo das relações humanas é a internalização,
O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte:
assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem
poder sobre seus crentes ou adoradores, domina-os como uma força
estranha, assim também age a mercadoria. O mundo se transforma
numa imensa fantasmagoria. (CHAUÍ, 2004: 55).

No momento do consumo, além da mercadoria ser hiper valorizada e significada


como algo por si e independente; os efeitos da dissociação (no trabalho e nas ideias)
fazem-se sentir pelo fenômeno de força estranha dissociada. Se a quilo que é involuntá-
rio em nós pode ser extrojetado - para alívio do indivíduo – e como forma neurótica de
lidar com um problema; para o plano do trabalho, da práxis, aquilo que é projetado é
como se tomasse vida própria e nos dominasse de fora para dentro. No trato intra-
subjetivo aquilo que é dissociado não pode ser conhecido e, por não ser entendido, pois
trata-se dum outro ente, tem os mesmos efeitos perniciosos da alienação no trabalho,
este que tem a realidade social historicamente, geneticamente dissociada.

(...) O pensamento burguês considera sempre, e necessariamente, a


vida econômica do ponto de vista do capitalismo individual, e daí
resulta automàticamente essa oposição aguda entre o indivíduo e a
toda e poderosa e impessoal “lei da natureza”, que põe em movimento
toda a sociedade. Daí decorre não só a rivalidade entre interesse de
classe e interesse individual em caso de conflito (...), mas a
incapacidade elementar de assenhorear-se teórica e pràticamente dos
problemas que surgem necessàriamente do desenvolvimento da
produção capitalista. (LUKÀCS, 1966: 36 e 37).

Se o princípio de regência dos mecanismos operativos involuntários é


inconsciente, dissociar psiquicamente traz a conseqüência da delegação para o plano
inconsciente de regência mental de conteúdos que poderiam estar no plano consciente
de manipulação. É conhecido por nós a prevalência do emprego de imagens (ícones)
pelo Id, bem como o de palavras (símbolos) pelo Ego.

Citar Habermas com o conceito de Paleo-Símbolo Rouanet.

A menção ao pensamento mítico, mágico e discurso religioso têm a intersecção


dos mecanismos ideológicos. A insatisfação no (tipo e modo de) trabalho é reagido
involuntariamente com a dissociação extrojetiva. Um sentimento de vazio e
insatisfação, de não-realização, de não escolha e sujeição é apaziguado imageticamente,
fantasisticamente com o deslocamento do interno (sentimento de insatisfação
involuntário) para as condições externas que o estimulam. O predicado de ameaça,
coerção e necessidade natural das condições sociais são mecanismos de racionalização
para mitigar – ainda que de maneira indevida, imprópria – o sentimento interno. E,

a introjeção de tal conflito na vida intrasubjetiva, ambos os momentos são faces, lados da mesma
situação dissociativa, deslocativa.
também, para desviar o princípio causal de tudo isso: possivelmente as condições de
trabalho alienado com suas implicações de destituição semântico-valorativa. Uma vez
introjetados os mecanismos de dissociação advindos do conflito externo, de lutas de
classes, de conflito por situações de sujeição injusta e desigual, é como se o plano do
discurso introjetasse homologamente a contradição social, resultando de tal
internalização, uma cópia, uma mímesis das condições externas para os mecanismos
internos, operativos, de também dissociação dos signos.
A dissociação externa da escolha, trabalho e meios reflete-se mecanicamente,
involuntariamente – tal qual num sintoma – nos mecanismos psíquicos, seja para o trato
intra-subjetivo, seja para o intersubjetivo. Naquele, a racionalização como legitimação
das condições externas e também para refrearmos o potencial de revolta externa; neste a
ideologia e o trabalho mecânico como uma maneira de legitimar as diferenças geradas
pelas divisões de classes e do trabalho, renunciando à transformação pela acomodação
(prática e teórica), pela adequação e conformismo, pela aceitação e defesa do estado de
coisas atuais. O medo da problematização é o medo da reflexão das causas e, com ela,
as implicações psíquicas e sociais de transformação. Percebermos o mecanismo
neurótico de ideologização e racionalização é renunciarmos com tais expedientes e
agirmos de maneira ativa, dentro e fora de nós. Percebermos as condições genéticas de
organização sócio-econômica é optarmos por condições não de exploração e
desigualdade, mas com relações de cooperação para o desenvolvimento mútuo e,
também, pela escolha dos meios, pelo sentido de realização que advém do labor e da
maneira de execução do trabalho que detemos os meios de produção: para nosso
desenvolvimento e senso de realização.
Tudo isso implica na formação de nossa identidade pelo reconhecimento de
nosso trabalho no produto (fazer-se pelo agir118) bem como o conhecimento dos
mecanismos do aparelho psíquico (natureza humana inata119) que age de maneira
automática em casos de problemas e conflitos que não foram enxergados as suas
origens, fontes e causas. Ambos são necessários para a compreensão, está que é
interpretação sistêmica, relacional dos determinantes e condições (externos e internos).
A cura para tal enfermidade é um processo de reconhecimento histórico, de
hierarquização dos valores, de aprofundamento conceitual e categorial, de precisão
semântica, de domínio lógico dos discursos, da retórica que apreende os expedientes
dos juízos de valor e da escolha do agir e fazer como integrantes de nossa resposta
afetiva, essencial nas práxis, nas deliberações e construções explicativas que denunciam
formas de exploração e alienação, sejam mais coletivas, sejam mais individuais. Se
interpretamos algo como independente de nós quando somos nós que produzimos, está
aí o segredo, o índice duma sintomatologia: o desejo de nos eximir da responsabilidade
de domínio da realidade interna e externa, por deduções superficiais e aparentes daquilo
que depende de nós. Fantasisticamente, aquilo que é dissociado é uma maneira de
evitarmos um confronto: seja com os conteúdos, seja com a operatividade que reina e

118
Posicionamento semântico de Engels/Marx.
119
Posicionamento semântico de Feuerbach.
insiste em nossa atuação infantil de proto-racionalidade nos conflitos internos e
contradições externas (interesses de grupo contrárias ao desenvolvimento comum).
Poderíamos pensar a divisão social do trabalho como uma simples partilha nas
tarefas. Ora, mas qual o problema de dividir atribuições? Não tanto pela divisão em si
mesma, mas o encaminhamento social, a configuração que é posterior à divisão: a
desigualdade das oportunidades120 e a propriedade privada como monopólio da classe
dominante.

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas


a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a
existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre
as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho,
incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto do
trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é
engendrada pela desigualdade social ou pela forma de propriedade.
(CHAUÍ, 2004: 59).

Se tomarmos a categoria de aparência (Chauí e Kosik), sentiremos a


problemática das passagens sucessivas (história) a incidirem, também, no conceito
de divisão social do trabalho, como algo complexo, penetrando na progressiva
destituição da autonomia humana121 das pessoas de classe subalterna. O
enriquecimento menos dispendioso, e por isso, mais corrupto é o da desqualificação do
“outro” para a investida de apropriação do que não é nosso. Ex.: pensemos nos despojos
de guerra, ou seja, a primeira intenção de toda guerra, sendo secundário a dominação
político-administrativa duma nação incorporada agora em nossos domínios. A ânsia
pela conquista noutros países e povos é a dupla face da mesma situação humana: o ego
inflado pela comando das vidas dos súditos e a apropriação (como golpe de Estado
estrangeiro) daquilo que não nos pertence. Como se não bastasse, a posse dos produtos
alheios, possuiremos os seres humanos122 em sua força de trabalho, em seu potencial de
mercadoria e troca, bem como a personalidade destituída, alterada, domada, mais
adequada, mais conformada. Para isso é na e pela comunicação os grandes feitos do
sutil controle das motivações e axiomas, estes que são reproduzidos pelos trabalhadores
com intensidade às vezes até maior que se fosse dum integrante da classe dominante.

120
Raymond Boudon tem uma obra intitulada.
121
Com tal expressão caracterizo a relação diretamente proporcional entre autonomia
existencial, ou seja, a capacidade de gerir a própria subsistência e a decorrente construção identidária, a
dos significados, dos sentidos de realização através do agir. Homo Faber é outra expressão da natureza
por se fazer, da essência humana adquirida nas relações, nas atividades engajadas e escolhidas; elas
ressoam na identidade individual com mais raízes se comparadas ao mero fetiche do status social do
consumo. Estamos diante duma Filosofia da Práxis como explicação da construção subjetiva por e pela
ação, também entendida aqui como ação comunicativa, uma vez que comunicar é uma forma de relação
simultaneamente intra e intersubjetiva.
122
Não tão humanos, pois o instinto gregário que segrega as pessoas em “outros”, “estranhos”
é um recurso antigo de sermos humanos e respeitosos apenas com um grupo: a nossa nação. Ah, mas
mesmo dentro da mesma nação teremos outras divisões expropriadoras e desapropriadoras... ambos os
momentos são litotes, ou seja, definem-se apenas mutuamente, como pares antitéticos gerados por
interesses de grupo pela categorias sociais já explicadas.
Dissertarei em momento oportuno o paradoxal fenômeno da mímesis ideológica
e axiomática, como elementos necessários para aqueles que aceitaram o cenário social
de ascensão, com a defesa quase maníaca, compulsiva, dos privilégios e prestígios das
posições sociais adquiridas como legítimas formas de ascensão econômica... como
justas, afinal que mal há em ocupar a posição, a sintaxe social do enriquecimento dos
alto cargos? Uma vez que é sempre por “mérito”, por “direito”, assumir a prerrogativas,
os ganhos e vantagens de tal posição social? Tiremos proveito da destituição volitiva,
identidária, cultural e luxo... ainda que seja necessário como momento dialético do
litotes, a simultânea hipo-axiomatização e destituição alheia, daquele que não pertence à
classe que agora fazemos parte.
Pela capacidade de síntese processual do trâmite histórico-sócio-econômico da
Filósofa Marilena, reproduzirei um trecho de maior extensão, com o propósito de
explicitar por via da historicização e implicações das divisões, o significado ampliado, a
visão sistêmica de maior alcance proporcionada pela tomada de conteúdo histórico, da
montagem desse drama sócio-patológico no teatro de enredo capitalista, pelo qual os
atores e atrizes sociais vivem seu cotidiano como o único possível, por não atentarem
para a relatividade da construção teatral, dos postos, enredos e cenário institucionais,
dos papéis admitidos e dos rejeitados. Na medida em que tomamos ciência de tal
estruturação, de tal montagem, teremos ao nosso dispor os meios de interromper a
marcha “impessoal” da tais práticas e condições para um andamento pautado na
deliberação de novas medidas práticas e teóricas, transformadoras do estado interno e
externo, só que agora com domínio dos efeitos em ações e projetos conscientes,
conscientes das modificações necessárias, individuais e coletivas, psíquicas e sociais,
conceituais e motivacionais, explicativas e acusativas, renunciadoras do estado presente
para a pró-atividade com vistas no presente e futuro.

A propriedade começa como propriedade tribal, e a estrutura social é a


de uma família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes
e consumo. A segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal,
isto é, propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado
(Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída
pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação
permite aos senhores distanciarem-se da terra e dos ofícios, que ficam
a cargo dos escravos – esta separação leva os senhores a viverem nas
cidades, e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o
campo, da qual resultarão lutas sociais e políticas. A terceira forma da
propriedade é a feudal ou estamental, e apresenta-se como propriedade
privada territorial trabalhada por servos da gleba e como propriedade
dos instrumentos de trabalho, pelos artesãos livres ou oficiais das
corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). A estrutura da
sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como oficiais
livres dos burgos, e os trabalhadores como servos de terra enfeudada e
como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma
figura social intermediária: o comerciante. As transformações dessa
estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do
trabalho, dão origem à forma da propriedade que conhecemos: a
propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho
alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital
(portanto os meios, condições e instrumentos da produção e da
distribuição), que são também os proprietários do produto do trabalho
e, de outro lado, a massa de assalariados ou dos trabalhadores
despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho,
que vendem como mercadoria a proprietário do capital. (CHAUÍ,
2004: 59 e 60).

O resíduo da desapropriação do trabalhador pela apropriação dos detentores dos


meios de produção e execução é força de trabalho. A redução em mercadoria é a
concepção de máquina ou peça, de instrumento entre instrumentos, de meio entre fins
de enriquecimento abusivo e desumano para o progresso econômico dos proprietários
do capital. Não apenas a desigualdade na distribuição, mas no preço pago pelo mesmo
produto: pensemos na medida mesquinha dos governantes pelo qual produtos
eletrônicos produzidos neste país, são exportados para voltarem para cá com o preço
maior. Resultado: diminuição do poder de compra dos aparelhos técnicos eletrônicos
como medida profilática de bem-estar e satisfação. Há a possibilidade da compra, mas
por um preço superior ao que é vendido externamente. Dupla expropriação! E para
reforçar, programas na rede Globo das criminosas e ilegais aquisições via contrabando!
Quem se pergunta se é justo ao invés de legal? Se é justo pagarmos duas vezes pelo
mesmo produto?! Se a propaganda de contrabando é um meio eficaz de desestimular a
aquisição dos produtos por preço mais baixo que os governantes daqui
propositadamente, calculadamente encetaram tais mecanismos de desestimulação do
contrabando via propaganda televisiva, taxas de importação, limites de compra e
fiscalização nas fronteiras entre Argentina e Brasil e Paraguai e Brasil.
Ah, mas só eles podem enriquecer, ou melhor, comprar com poucos dispêndios
econômicos. A divisão é o mecanismo corrupto de desigualdade sistemática. E a
organização política detém o monopólio administrativo da produção e distribuição bem
como a escolha pela legislação do que é legal e ilegal... A Justiça brasileira sofre,
padece de esquecimento etimológico e semântico – propositadamente, voluntariamente
– a Justiça enquanto instituição social não responde por eqüidade e igualdade de
oportunidades, ela gera a desproporção da aquisição, das oportunidades, com o
argumento medíocre que está nos lábios de qualquer pessoa formada em advocacia: A
Justiça responde pela legalidade/ilegalidade e não por justiça e injustiça. Para reforçar,
colocam a justiça e injustiça como algo “subjetivo”, “relativo” ou “arbitrário”.
Quereis algo mais arbitrário que o interesse de grupo que delibera por medidas
pelas quais a população não é consultada e ainda chamam este país de democrático123?

123
Lembremos da explicação da destituição semântico-etimológica do termo democracia
como um expediente de dominação apolítica, uma vez que política, em Atenas, é administrar para o
bem-comum, o que é incompatível com a unilateralidade de interesses de grupo que promovem a
desigualdade e a injustiça com o nome de Justiça brasileira. O significante foi dissociado do significado
original com intentos de exploração e enriquecimento, de manutenção do status quo de acúmulo de
riqueza tributária na oligarquia que vivemos.
Queres maior arbitrariedade em leis que os protegem e inibem o proletariado ao acesso
da educação superior e aos meios de aquisição de bens de consumo? Sabemos agora
qual é a entidade “impessoal” que nos domina e nos ameaça: Estado como interesse
discriminador e destituidor com vistas em seu próprio umbigo! Como comitê da
corrupção e da promoção da desigualdade organizada: socialmente, estruturalmente
engendrada. Pela emissão de discursos pseudo-legimitadores da ordem vigente com o
intento de permanência do cenário sócio-econômico-administrativo com seus
privilégios. Com argumentos escamoteadores para despistar nossa atenção quanto à
intenção dos mesmos e suas causas históricas (passadas e atuais). O fomento ao
Consumo frenético e o fetiche do senso de identidade a ser construído sob o critério da
mais do ter do que do ser, mais da aquisição do que do uso, mais da ostentação do que
do fazer-se a si próprio. Os meios de comunicação de massa completam o quadro
reprodutor como aparelhos ideológicos de Estado.. ainda que não oficiais mas oficiosos
em sua eficácia sígnica e sutilezas semióticas de disseminação da dispersão da
consciência em projetos superficiais de realização pessoal via ingresso no consumo e
nos valores sociais vigentes, valores estes invertidos, tanto quanto a inversão no plano
das ideias entre causa e efeito, entre essência e acidente, entre necessidade e
contingência.
Confiro ao par antitético aparência/realidade como interpretações superficiais e
imediatistas e interpretações elaboradas, articuladas em suas relações e determinadas
pelos fatores geradores ou formadores (causas necessárias).

A consciência, prossegue o texto de A ideologia Alemã, estará


indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da
existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as idéias
nascem da atividade material. Isso não significa, porém, que os
homens representam nessas idéias a realidade de suas condições
materiais, mas, ao contrário, representam o modo como essa realidade
lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as idéias
tendem a ser uma representação invertida do processo real, colocando
como origem ou como causa aquilo que é efeito ou conseqüência, e
vice-versa. (CHAUÍ, 2004: 60 e 61).

A própria noção de não-mediação é uma recusa (inconsciente) de aceitarmos


processo formador de determinado fenômeno. Assim vimos na representação icônica
das marcantes conquistas civilizatórias, narradas por mitos com entidades que recebem
nome das atividades ou conquistas que determinaram a aquisição cultural: fogo,
linguagem, escrita, agricultura, metalurgia... Ao invés de gerarmos mitos com entidades
de função alegórica, invertemos por ignorância causal/histórica e atribuímos predicamos
que invertem a relação de sucessão de eventos sociais. Estes eventos são aqueles que
fornecem-nos a contrariedade de interesses e organização injusta da atividade humana e
suas relações decorrentes. Uma intervenção sintática opera uma mudança semântica:
aquilo que é causa esconde-se como efeito = não reconhecimento dos agentes
sóciopatas; aquilo que é efeito (as ideias e conceitos) são vistos como causas. Tomar a
ideia como única causa é tentar agir no social através duma ação ideal, o que confere
perenidade ao social e ineficácia transformadora por parte dos pensamentos.
A aceitação da ordem constituída é compulsória e como tal utilizamos o
expediente da necessidade das coisas sociais, assim como utilizamos o expediente da
humanização da natureza ao gerarmos “seres” por detrás dos fenômenos naturais.
Aquilo que é natural tem um forçoso e artificioso controle “humano” invisível. Aquilo
que é social é naturalizado com o intuito de perenizar e absolutizar aquilo que vimos ser
relativo e construído por pessoas e não por uma força cega, impessoal e coercitiva. A
suposta força cega das coisas (sociais e naturais) existentes por si mesma é sintoma do
medo de enfrentarmos os opressores sociais. Se estes opressores forem reconhecidos
como agentes, seremos simultaneamente cobrados por nossa indulgência e isso
acarretará em constrangimento e culpa = responsabilidade de aceitarmos tal quadro. Se
negarmos a possibilidade de mudança, predicando necessidade na onde é contingente,
tomaremos o que é relativo, histórico e mutável como absoluto, aprocessual e imutável.
Lembremos do discurso dos reis: “Sou representante de deus aqui na terra”. Por tal
intimidação imaginária, pelo terrorismo psíquico par pessoas ingênuas, crédulas, fracas
e dogmáticas, o charlatão assume o posto no cenário social e governa (aproveita-se do
privilégios do cargo) legitimando seu domínio com o escudo argumentativo de que se
foi posto aí por deus, então o rei pode mandar, decidir e até mesmo matar.
O que podemos tirar de lição disso? Numa interpretação subliminar: aquele que
é mais forte pode mandar. Há seres “especiais”, e estes podem fazer leis ao seus
caprichos. Quem duvidar é só ouvir evangélicos afirmarem como já ouvi: Mas ele
(deus) pode fazer você não. Está instituído imaginariamente na terra o que é no céu, o
que acontece nas idéias (céu metafórico) acontece e deve acontecer na vida coletiva
humana (terra metafórica). Se no plano invisível celeste ocorre, então aqui no visível
terrestre será efeito. Se a imaginação e fantasia (céu) afirmam tal predicado, então o
sensorial (terra) deve ser efeito: “assim na terra como no céu!”

(...) Cada um não pode escapar da atividade que lhe é socialmente


imposta. A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais
aparece nas idéias como se fosse coisa em si, existente por si mesma,
e não como conseqüência das ações humanas. Pelo contrário, as ações
humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista
como existente por si mesma e dominando os homens. (CHAUÍ, 2004:
61).

A ameaça invisível corresponde no plano mental às ficções geradores de temor e


subserviência pelos apelos mágico-religiosos dum grande juiz e rei (respectivamente
dever/culpa e lei/ordem). A causa da sujeição não é de avaliação dos conteúdos, mas
pelo epíteto de autoridade reconhecida, não importa qual conteúdo. Como os
argumentos de autoridade, muitos se curvam aos ditames terrenos como se fossem de
outro mundo, uma vez que esse “outro” mundo nada mais é que o psiquismo projetado
num outro espaço. Se nossa vivência subjetiva, imagética estiver nos critérios de
autoridade reconhecida, tal será ameaçadora pelo seu caráter coercitivo, por engendrar
culpa, pelo medo do castigo. Assim como nos sentimos mal ao violar algum ditame
social pelo acionamento do juízo de valor da instância psíquica denominada supra-ego,
a entidade imaginária deus é predicada com conteúdos de legislador e como juiz, pelos
quais reproduzimos a ordem social institucional tal qual fizeram os povos com as
alegorias das conquistas civilizatórias. A ameaça é medo potencial, a possibilidade de
intervenção supra-egóica no indivíduo e seu conseqüente mal-estar psíquico e
sentimento de culpa. Fazer o que deus quer é fazer o que o Estado quer, pois suprindo as
expectativas sociais não nos sentiremos mal ou culpados, mas somente se
ultrapassarmos a normativa social com o posterior medo da penalidade externa.

(...). Se a Natureza, pelas idéias religiosas, se “humaniza” ao ser


divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é,
aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como
resultado da práxis humana. “esta fixação da atividade social – esta
consolidação de nosso próprio produto num poder superior a nós, que
escapa do nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a
nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do
desenvolvimento histórico que até aqui tivemos”. (CHAUÍ, 2004: 61).

A ameaça e força que foge de nosso controle são as condições de exploração que
não foram identificadas no plano consciente e que por isso são lidadas de maneira
neurótica pelo princípio de regência inconsciente como um meio (inadequado) de lidar
com aquilo que é intersubjetivo. A ameaça do poder que nos domina e não pode ser
nominado pelo fato de não ser ainda reconhecido, é o medo de enfrentamento, este que
é o motivo de nossa resistência em atribuir a causa de nosso sofrimento (pelo menos
parcial no que se refere à estrutura social) aos agentes castradores de nossa subsistência
e desenvolvimento: os detentores dos meios de produção e terras. A dissociação para o
“céu” impede de reconhecermos os agentes de nos sentirmos mal pela responsabilidade
de aceitarmos viver neste cenário social. A recusa da causa histórica fornece o ambiente
adequado de passividade e comodidade psíquica.

Assim como da divisão entre trabalho manual e intelectual nasce a


suposição de uma autonomia das idéias, como se fossem ou como se
tivessem uma realidade própria independente dos homens, assim
também da separação entre os homens em classes sociais particulares
com interesses particulares contraditórios nasce a idéia de um
interesse geral ou comum que se encarna numa instituição
determinada: o Estado. (CHAUÍ, 2004: 65).

Se concomitante à separação dos tipos de trabalhos temos a predicação de


independência do pensamento em relação às práticas; na separação entre classes
econômicas temos a predicação de unidade ou interesse comum projetada na instituição
que administra os cofres públicos primariamente para seu proveito: o famigerado
Estado. Atribuir total independência do pensamento é hipostasiar a relação ou dialética
entre condicionamento e sobredeterminação de um pelo outro; atribuir unidade de
propósitos é reunir indevidamente na Instituição Estado os anseios projetados nele, sem
a consideração que a própria construção do Estado é um ato de ganância desmedida, de
ambição e enriquecimento abusivo: seja pela destituição valorativa, seja pela
desapropriação de terras, seja pela imposição do trabalho alienado e injusto dos meios
de produção em face de indivíduos carentes dos meios de subsistência pela
arrendamento da terra, ou forma de propriedade privada do Estado.

O Estado aparece como a realização do interesse geral (por isso Hegel


dizia que o Estado era a universalidade da vida social), mas, na
realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e
poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência
de interesses de toda a sociedade. (CHAUÍ, 2004: 63).

Novamente temos o conceito de aparência tomado como realidade. Aquilo que


aparece à consciência através de imagens, na maioria das vezes ocorre através dum
modo autônomo, invadindo o campo mental de maneira intrusiva. A visita de tais
imagens quando “refletimos” ou somos questionados e estimulados a responder uma
pergunta pela qual estamos inclinados numa conclusão viciada e irrefletida, quase
compulsória, é nossa interpretação que será comprometida, uma vez que a aparição de
tais imagens não carecem, num primeiro momento, de processo, de formação, ela
aparece pronta e abrupta na consciência. Este caráter acabado e final influencia-nos a
predicarmos a “independência” dos conteúdos. A suposta independência dos conteúdos
é confundida124 com a involuntária manifestação dos mesmos, o que difere amplamente
de atribuirmos tal involuntariedade de manifestação à uma independência (anti-
dialética) de tais imagens se comparados à organização social a que o indivíduo está
imerso, condicionado, subjugado, explorado e destituído de dignidade individual e
social por e pelo trabalho, por e pelas divisões das categorias sociais: quer sejam elas
trabalho manual e intelectual, quer sejam ricos e pobres, quer sejam pelos discursos de
autoridade reconhecida, quer sejam pelas racionalizações singulares a defenderam os
mesmos interesses da classe dominante. Uma fenomenologia da consciência verificará
que a independência do conteúdo pela mera manifestação do mesmo é uma espécie de
cognocentrismo.125

124
Novamente enfoco tal fenômeno como aquele explicado pela professora Chauí com a
expressão Equívoco Predicativo, como já mencionei nesta investigação.
125
Termo cunhado por mim para designar a os aspectos conotativos/denotativos deslocados da
consciência para seus representados. É a confusão de predicados entre manifestação enquanto
representação da e na consciência pelo referente. É como no etnocentrismo ao interpretarmos com
juízos de valor de nossa própria cultura. Nada há de necessário em tais predicados, uma vez que são
projetados – indevidamente atribuídos – ao referente o objeto de estudo. O modo como conheço meu
conteúdo (a manifestação involuntária da imagem do Estado como interesse comum e unificado) não
carece de processo numa manifestação abrupta, mas necessita de processo quanto à anterioridade ou
substrato formador de tais imagens. Quanto à operatividade é involuntária, portanto independente;
quanto ao conteúdo Estado é dependente, e revela o contexto sócio-político-cultural do indivíduo. Aqui
é um caso clássico, típico de Fusão de atributos díspares, na confusão do atributo formal para o
conteudístico. Discriminar operatividade dos signos e conteúdo dos mesmos é crucial, nuclear para uma
dialética explicativa e para uma interpretação isenta de ideologia: seja na intenção, seja na implicação.
Estranhamento e força involuntária são propostas como efeitos das condições
sistemáticas de exploração na produção e reprodução da vida, nas relações que se
travam nessas produções, sendo a consciência, pelo menos em grande parte, efeitos em
sua apreensão e reprodução da realidade social cindida. È como se a cisão em categorias
sociais, na forma de trabalho, nos meios de produção expropriados e no próprio modo
de execução repercutissem em toda a captação dos indivíduos com os sentimentos
também cindidos: involuntariedade do poder impessoal que os domina bem como
independência de vontade e ações!

(...) O poder social, isto é, a força produtiva unificada multiplicada,


que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do
trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu próprio poder
unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja
origem e cujo destino ignoram e que, pelo contrário, percorre agora
uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento,
independentemente do querer e do agir dos homens e que, na verdade,
dirige esse querer e esse agir. (CHAUÍ, 2004: 65).

Contudo, se a tomada de consciência das causas sócio-históricas de nossa


condição subalterna ocorrer, haverá o mal-estar e a revolta para com aqueles agentes
agora identificados e predicados como tais. A ameaça estranha e externa é o comando
“impessoal” do sistema econômico com a nosso automatismo de adequação. A resposta
automática é a força estranha que não dominamos que reside no plano psíquico
(interno). A resposta automática de sujeição no trabalho capitalista é a força estranha
que não dominamos que reside no plano social (externo). Como dialéticos, ambos os
momentos são sabotados por nós enquanto sentimos medo de mudar, de sermos
diferentes do meio. O medo da rejeição é dupla: por deus como metáfora da própria
aceitação (supra-ego); e pelas relações intersubjetivas das autoridades sociais
reconhecidas.
Certa vez li o seguinte dum escrito de Feuerbach. Quanto mais pomos numa
divindade (deus) determinadas qualidades, mais a perdemos. É como se os predicados
conferidos ao ente imaginário fossem dissociados de nós mesmos. Este fenômeno que
dissocia de si, tal qual como expliquei nas noções de diabo e deus, retiram a iniciativa
de entendermos e, conseqüentemente dominarmos e trabalharmos nossos impulsos,
desejos e qualidades. Tal é o efeito da dissociação “religiosa” tornar impotentes os
crédulos! Mas para quê? Para melhor dominá-los! Com qual intuito? Deles introjetarem
tal alienação operativa (psíquica) como um meio vicioso de lidar com a dor, os
conflitos e os problemas existenciais. Tal força estranha que nos domina é resultado de
nossa dissociação (involuntária na maioria das vezes) psíquica para os conteúdos
internos (afetos, desejos e instintos), bem como de nossa dissociação social para os
conteúdos externos que nos afligem, condiciona e subjuga-nos como menores do que
somos. Como poder “espiritual” autônomo, é resultado de nossas projeções, e como está
submetido (pela dissociação) ao princípio de regência inconsciente, é como se tivesse
vida própria. Assim como os sonhos são obras nossas, mas dum extrato involuntário em
nós; também as gerações sígnicas ou imaginárias fortalecem a atuação dos mecanismos
psíquicos inconscientes, dominando-nos como se fosse de fora para dentro, quando tal
regência psíquica efetua-se dentro para dentro, de mecanismos involuntários que
adentram o campo mental, seja em sua realidade significante (imagens e palavras), seja
em sua realidade significado (desejos, temores, culpa, coerção emocional e volitiva).

A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação, pois os


homens não se percebem como produtores da sociedade,
transformadores da natureza e inventores da religião, mas julgam que
há um alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu
suas vidas e a forma social em que vivem. Submetem-se ao poder que
conferem a esse Outro e não se reconhecem como criadores dele. E
porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia
será possível: as idéias serão tomadas como anteriores á práxis, como
superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que
comanda a ação material dos homens. (CHAUÍ, 2004: 62).

Máxima: o fenômeno do litotes como expressão psico-social depende da dupla


valorização: menosprezo pelo outro (agente social) e auto-menosprezo (agente
psíquico). Para isso basta lembrarmo-nos da célebre frase: precisamos ser pequenos,
pois só ele (deus) é grande! Também, o maiorprezo: precisamos justificar a posição
social de destaque como “legítima e justa” (ainda que não seja!), assim como
projetamos para fora (extrojeção) aquilo que gostaríamos de ser mas fomos
expropriados: sermos Grande como aqueles agentes sociais capitalistas. O outro lado do
fenômeno é a extrojeção não apenas direcionado para o agente social capitalista e
opressor, mas para um signo imagético que é condensado com os mais variados
atributos de força, poder e qualidades humanas desejadas: deus. O recurso psíquico da
fantasia, como nos mitos antigos, representa nossas forças dissociadas, sendo
convergidas para uma imagem ou palavra (deus). Este sim é grande nós não. Por quê?
Porque o fizemos assim, em nosso apequenamento social, também reproduzimos tal
opressor internamente, com a operatividade sígnica de convergir o engrandecimento
daquilo que tiramos de nós.
Litotes como apequenamento/engrandecimento, nos dois modos: no coletivo e
no individual, nas representações externas e nas representações internas: ambos
legitimados por “direito e justiça”, como forças-em-si126 e não no processo formador da
alienação humana promovida pela hipo-axiomatia de discursos e práticas sociais e de
discursos e imaginário mítico-religiosos para as classes desfavorecidas e hiper-
axiomatia para as mais favorecidas.
Vimos a perniciosidade da separação e suposta independência daquilo que foi
separado é produto nosso. Vejamos o que os discursos ideológicos têm em comum com
tal fenômeno alienante.

126
Independentes, não suscetíveis de formação ou de processo gerador.
Nasce agora a ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado
de idéias ou representações e das normas e regras como algo separado
e independente das condições materiais, visto que seus produtores – os
teóricos, os ideólogos, os intelectuais – não estão diretamente
vinculados à produção material das condições de existência. E, sem
perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas
idéias. Ou seja: as idéias aparecem como produzidas somente pelo
pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da
produção material. Assim, em lugar de aparecer que os pensadores
estão distanciados do mundo material e por isso suas idéias revelam
tal separação, o que aparece é que as idéias é que estão separadas do
mundo e o explicam. As idéias não aparecem como produtos do
pensamento de homens determinados – aqueles que estão fora da
produção direta – mas como entidades autônomas descobertas por tais
homens. (CHAUÍ, 2004: 63).

Em toda ideação há uma parcela, uma parte com independência relativa em sua
produção. Por tal fenômeno podemos nos valer do argumento de que há originalidade
na teorização. Entretanto, como expliquei, as racionalizações são variações sobre o
mesma tema, variantes dos mesmos critérios, condições ou desejos dum grupo detentor
e administrador. A identificação dos indivíduos é a chave para concebermos que uma
vez identificados com o cenário social de privilégios e status, mesmo aqueles que estão
em condições subalternas almejam alcançarem o pódio dos altos cargos administrativos
para colherem “o céu aqui na terra”. Somente aqueles que abdicam de tal posição e
participação nesta organização sócio-econômica corrupta é que avaliam meios e fins,
modos e intenções, atos e conseqüências dos mesmos. A obliteração de tais axiomas
socais é o indício da insurreição e da transformação de práticas reiterativas e discursos
legitimadores da exploração do ser humano pelo humano.
A variação individual das idéias versam sobre invariantes, sobre critérios e
axiomas que mantêm o estado de coisas sociais atuais. Agir sobre tais regras,
pressupostos e valores, pouco importa a roupagem, desde que a defesa de tais valores
seja alcançada com sucesso, seja coerente aos critérios, que apesar de implícitos,
fornecem a base, o paradigma para práticas e discursos apologéticos do sistema
econômico vigente. Se é para elogiar, pouco importa os elogios, só não pode refutá-los,
pois somente assim ameaçaria a ordem social da dominação capitalista. No campo
lógico127 e retórico128, as falácias e os recursos para os mesmos são empregados para
legitimar a dominação em si e a expressão da dominação. Aquela refere-se a toda
dominação administrativa; esta, aos modos específicos empregados nos casos
singulares. A primeira é fim (finalidade defendida), a segunda são os meios para a
consecução da primeira. Também os setores envolvidos: religiosos, midiáticos,
político, econômicos e educacionais completam e reforçam através da propaganda
subliminar.

127
Sintático denotativo.
128
Semântico conotativo.
O instinto gregário desmedido, incondicional deve ser superado pelo desejo de
sermos aceitos somente em condições que considerarmos dignas. A força da dominação
reside na capacidade individual de sentirmos a dor da perda, a dor psíquica de sermos
diferentes do massa, a dor de não sermos reconhecidos em todos os lugares. A força da
dominação também reside no medo de enfrentarmos e questionarmos as medidas sociais
que são injustas e abusivas. O enfrentamento requer energia para mudar (externo e
interno), seja pelas acusações dos discursos contraditórios da ideologia, seja pelas
recusas de práticas injustas no cenário constituído coletivamente: em seus cargos
elitistas e privilégios concedidos. É também um trabalho de hierarquização de valores,
de revaloração do que é direito e dever. Ninguém tem o direito de desapropriar e nem o
dever de aceitar tais condições materiais de existência sócio-cultural.
Toda revaloração encaminha-se pela reconceituação, pela re-significação e visão
de mundo. Reverbera também as atitudes, agora avaliadas sobre outro prisma, sobre
critérios mais humanos e menos segregadores, na distribuição de oportunidades por
mérito pessoal e não por pertença classista. Referi-me várias vezes sobre o cenário
social (capitalista) como espaço público para ocuparmos determinado posto e, por e a
partir dele, executarmos práticos coerentes com o oportunismo129.

As distinções de status são então garantidas não apenas por


convenções e leis, mas também por rituais. (...) todo contato físico
com um membro de qualquer casta tida como ‘inferior’ pelos
membros duma casta ‘mais alta’ é considerado produtor de uma
impureza ritualística e como um estigma a ser expiado através dum
ato religioso. Cada casta desenvolve cultos e deuses bem distintos. Em
geral, no entanto, a estrutura de status só atinge conseqüências tão
extremas quando existem diferenças subjacentes consideráveis
‘étnicas’. A ‘casta’ é, na verdade, a forma normal em que geralmente
convivem comunidades étnicas de modo societalizado. Essas
comunidades étnicas acreditam em relações de sangue e excluem o
casamento e o relacionamento exogâmicos. (...).
Uma segregação de ‘status’ que se transforma em ‘casta’ difere em
sua estrutura de uma mera segregação ‘étnica’: a estrutura da casta
transforma a coexistência horizontais e sem conexões de grupos
ètnicamente segregados num sistema social vertical de super e
subordenação. (BERTELLI Org. - WEBER, 1966: 67 e 68).

A origem de todo o oportunismo está em partir dos efeitos e não das


causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não da coisa; está em
ver no interesse particular e na sua satisfação não um meio de
educação tendo em vista a luta final, cuja saída depende da medida em
que a consciência psicológica se aproxime da consciência adjudicada,
mas algo de precioso em si ou, pelo menos, algo que, por si próprio, se
aproximaria de alvo. Em uma palavra, está em confundir o estado

129
Tal termo designa a ambição privada (abusiva) retroalimentada pelo espaço pública (legal)
com o interesse de adquirir privilégios em detrimento da destituição alheia.
efetivo de consciência psicológica dos proletários com a consciência
de classe do proletariado. (BERTELLI Org. - LUKÁCS, 1966: 48).

Os qualitativos de intensidade super e sub, bem como hiper e hipo, denotam a


polarização axiomática entre distinções130 sócio-culturais, marca registrada de práticas
injustas instituídas em espaços públicos como enredo e cenário de agentes capitalistas.
A seleção de indivíduos e a nos discrepantes acessos às oportunidades sociais de
desenvolvimento pessoal são outras notas inerentes da práxis destituidora.

(...) um grupo de status é altamente eficaz na produção de tipos


extremos, pois seleciona indivíduos pessoalmente qualificados (e.g. a
Cavalaria Medieval selecionava os aptos, física e psíquicamente, para
a guerra). Porém a seleção está longe de ser o único modo, ou o
predominante, através do qual se formam os grupos de status. A
participação política ou a situação de classe tem sido, em todos os
tempos, pelo menos tão freqüentemente decisiva. (BERTELLI Org. -
WEBER, 1966: 69).

Como todo esquema de divisão de classes, há o fenômeno exclusor/privilégio131,


e como tal, explicam-se pela oposição, reconhecêmo-los pela negação do seu antônimo,
e não por um conteúdo imanente. Como todo partidarismo e seus respectivos injustos
interesses de grupo, uma contradição social (injustiça na partilha ou oportunidades) não
é uma contradição lógica, mas afeta uma contradição semântica132, a saber: altera com a
hipo e hiper-axiomatização e, com eles, necessariamente os conceitos que o definem
como tais. Como num jogo de cassino: os dados estão lançados, ou ainda “jogo de
cartas marcadas...”, ou seja, o emprego da diferenciação social valorativa133. Já que
contradição é um termo mais ligado a afirmação e negação de algo, sob o mesmo
aspecto ou sob o mesmo tempo, utilizo o termo contrariedade para designar o conflito
de interesses, acesso ao desenvolvimento pessoal e proporção da aquisição dos bens
culturais entre os indivíduos.

(...) faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um


direito de todos (...). Ora, na realidade sabemos que isso não ocorre.
Nossa tendência, então, será dizer que há uma contradição entre a
idéia de educação e a realidade. Na verdade, porém, essa contradição
existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma outra: a
contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com
seu trabalho e aqueles que usufruem dessas riquezas, excluindo delas
os produtores. Porque estes encontram-se excluídos do direito de
usufruir dos bens culturais que produzem, estão excluídos da

130
Conceito explicativo empregado por Pierre Bourdieu.
131
Mais um binômio da explicação do Litotes. Um binômio é um par de oposição necessário, na
qual um determina o outro pela significação comparativo-polar.
132
Mais especificamente a instituição da polaridade classista, da contrariedade telésica na
comunidade.
133
Como expressão técnica: distinção classista de repercussão axiomático-identidário.
educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola
e o marceneiro que faz as carteiras, mesas e lousas são analfabetos e
não têm condições de enviar seus filhos para escola que foi por eles
produzida. Essa é a contradição real, da qual a contradição entre a
idéia de “direito de todos à educação” e uma sociedade de maioria
analfabeta é apenas o efeito ou a conseqüência. (CHAUÍ, 2004: 63).

O livro de nossa filósofa foi escrita nos anos 80. Depois de 30 anos são poucas
as pessoas que não tenham acesso às escolas. Entretanto, ainda que a maioria seja
escolarizada, muitos são analfabetos funcionais, quando não, condicionados
tematicamente e na amplitude do alcance articulativo do pensamento, minados
volitivamente, seja na auto-estima, seja no ganho secundário do produtos tecnocráticos
de entretenimento. Com o programa de passagem compulsória de uma série para a
outra134, o quadro da exclusão mudou de Foco. Se no passado a briga foi para a inclusão
das escolas, hoje a briga é pela inclusão numa escola de qualidade reconhecida. O
motivo pelo qual o progresso da qualidade do aproveitamento acarreta a mudança
semântica: de progresso qualitativo para quantitativo: Verdade? Sim! Por quê?
Ocultaram-nos do mais importante: os motivos de não repetição é para excluir os jovens
da disciplina, do engajamento do interesse genuíno por aprender; para os políticos
obterem o tão almejado investimento do Banco Mundial para o Brasil (motivos
econômicos ocultados e travestidos por educacionais135). Se avaliarmos o grau zero de
exigência para sermos aprovados na escola no ensino fundamental e o grau superlativo
de exigência para o sermos nas Universidades Públicas predicaremos sem louvor e com
tristeza (e revolta) o seguinte desfecho: Mais uma contrariedade social está instalada!
Qual? A discriminação em forma de litotes entre a massa de ensino medíocre e a elite de
ensino reconhecidamente qualificada. Também entre o quanto é exigido no
fundamental e no superior nos vestibulares. Para que tanta informação mecânica?
Porque somente quem dispõe de tempo ocioso pode memorizar e assimilar fórmulas e
conteúdos que não se vive no dia-a-dia, pois quem está preocupado na manutenção da
vida em subsistência, não consegue admitir prazer em estudar algo que não se vive, que
está distante da vida cotidiana. No próprio ensino estamos destituídos – didaticamente -
dos processos que desembocam nas fórmulas das disciplinas das ciências
quantificadoras (exatas), sendo mais fácil e viável para um ensino alienado,
fragmentado, a exposição das formas das fórmulas e não do conteúdo
histórico/processual/analítico de seus descobridores. Aqui temos a indiferença dos
governantes e administradores em diferenciar por exclusão/inclusão de critério classista-
econômico não apenas o acesso à educação técnica, mas a destituição da educação
humanista (ciências humanas), dado pelo enfoque tecnocrático dos investimentos
acadêmicos.

134
A “progressão continuada” implantada pelo governo do Estado do PSDB mascara a
regressão continuada daquilo que se chama ensino....piada!
135
Há uma das partes do capítulo dedicado à interpretação intencional entre as práticas da
“progressão continuada” e os discursos legitimadores dos mesmos.
O pedreiro que levanta as paredes da escola e o marceneiro que confecciona os
objetos para as escolas podem sim participar do ensino. Mas de qual? Jamais o alto
nível, apenas o de 2º grau... e caso curse o 3º grau, sê-lo-á em faculdade privada. A
contrariedade explicada por mim revela o pressuposto da oposição por litotes, ou seja,
em nosso contexto, a oposição entre faculdade de alto e baixo nível entre sistema de
ensino via pública e particular até o ensino médio, com a inversão entre alto e baixo
nível de ensino na rede pública e particular no ensino superior.
Toda esta má distribuição de oportunidades é paralela à má distribuição das
riquezas da ‘nação’. A organização chamada Estado é responsável pelas medidas legais
e administrativas, gerenciando e mantendo as condições de exploração capitalista, dos
cofres públicos advindos de tributos previstos em leis, pois estes são responsáveis pelo
enriquecimento duma minoria elitista em detrimento das classes produtoras. Na
constituição há diversas “garantias” do uso da verba pública destinadas à manutenção
duma certa qualidade da saúde, educação e segurança. Nem saúde nem educação estão
em quantidade suficiente para a demanda populacional, muito menos a qualidade de
ensino que os políticos e filhos e filhas destes têm ao estudarem nas Universidade
Públicas brasileiras, ou mesmo colégios no exterior. De passagem, comento aqui o
suposto interesse comum dos governantes, do argumento de que o Estado representa o
“poder do povo e para o povo”. Veremos o quanto há de verdadeiro nesta afirmação,
iniciando nossa investigação por mais uma citação de nossa Filósofa:

Assim como da divisão entre trabalho material e intelectual nasce a


suposição de uma autonomia das idéias, como se fossem ou como se
tivessem uma realidade própria independente dos homens, assim
também da separação entre os homens em classes sociais particulares
com interesses particulares contraditórios nasce a idéia de um
interesse geral ou comum que se encarna numa instituição
determinada: o Estado. (CHAUÍ, 2004: 65).

Este encarnar, esta figura metafórica guarda seu sentido no fenômeno de


convergência de atributos, na condensação dos interesses e aspirações coletivas no
signo do assim chamado Estado. Se a “independência” das idéias advém da separação
entre discurso e práxis, entre trabalho braçal e intelectual, ressoando, ou melhor,
oferecendo as bases, o fundamento para a ideação independente das relações humanas
travadas, ocorrerá na consciência individual o aparecimento do Estado como força
independente também.

O Estado é uma comunidade ilusória. Isso não quer dizer que seja
falso, mas sim, que ele aparece como comunidade porque é assim
percebido pelos sujeitos sociais. Estes precisam dessa figura unificada
e unificadora para conseguirem tolerar a existência das divisões
socais, escondendo que tais divisões permanecem através do Estado.
(CHAUÍ, 2004: 66).
Assim como o sentimento de estranhamento guarda caracteres de intrusivos e
recursivos em nossa mente, de modo que tal aparecimento está destituído de mediação
do processo que o gerou: também o Estado é predicado como algo independente da
vontade dos indivíduos, porém, com a prerrogativa de que é “necessário” um corpo
administrativo para gerir os interesses comuns ou da maioria, para lhe dar forma e
deliberar sobre as causas sociais.

O Estado aparece como a realização do interesse geral (...), mas, na


realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e
poderosa da sociedade (a classe de proprietários) ganham a aparência
de interesses de toda a sociedade. (CHAUÍ, 2004: 65).

O critério do mais forte, da exploração deste é muitíssimo arraigado na


mentalidade brasileira. É como se as pessoas de um modo geral auto-justificassem a
própria sujeição (enquanto trabalhadores ou destituídos) e a própria dominação (quando
pela ascensão social ou posição dominante de comando). Com o fenômeno predicativo
do “interesse geral” para o Estado, temos a seguinte explicação: é como se
abdicássemos de nossos direitos, de nosso direito à autonomia ao nos “permitirmos”
sermos governados – e todas as implicações desumanas, alienantes e injustas – quase
que num acordo implícito e tácito de aceitação do mais forte como numa figura dum
Pai, pelo qual podemos nos sujeitar a seus caprichos não por uma avaliação do que é
melhor e desejado, mas pela simples comodidade de nos vermos “cuidados” ou geridos,
como também pela tendência conformista de defendermos a figura do agressor como
dotada de direitos naturais, adquiridos por nascença, numa palavra: natos.
Na própria diferenciação pelas categorias sociais e práticas condizentes com as
mesmas, temos o cenário da exploração montado.

(...) O Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto


dividida em classes. Não é como imaginava Hegel, a superação das
contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras.
(CHAUÍ, 2004: 63).

A distinção por litotes confere significado, atribui papéis, a classe de


proprietários e a mídia promovem justificativas defensivas e legitimadoras de tal modo
de ser, agir e pensar dessa estirpe “nobre” que carrega consigo as projeções
megalomaníacas, da hipérbole sentimental dum grande pai e, com isso, as prerrogativas
do privilégio, do “eles podem”. As leis tendenciosas e favorecedoras da elite dominante
são a expressão explícita dos interesses implícitos sob a rubrica do Estado: preservação
dos interesses de grupo travestidos de classe organizada para o bem-comum ou geral.

O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula


para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder
separado e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a
preservação dos interesses particulares da classe que domina a
sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração
que existem na esfera econômica. (CHAUÍ, 2004: 66).

Exemplo de homologia estrutural entre os setores econômico e educacional: a lei


que proíbe a abertura de universidades com os mesmos cursos na mesma cidade. Por
isso a USP Leste contêm cursos que a USP do Butantã não contêm! A inclusão a
qualquer custo nas escolas de 1º grau funciona como tampa para a exclusão a muito
custo (mnêmico e monetário) daqueles que nasceram em “berço de ouro” ou tiveram a
oportunidade duma boa formação colegial. Exemplo de homologia estrutural entre os
setores econômicos e políticos: a proibição e taxação popular e legal de contrabando
como crime para esconder, encobrir o crime da corrupção da injusta distribuição dos
bens de consumo eletro-eletrônicos com a importação do mesmo produto ser vendido
para os produtores em preço maior do que o oferecido para a venda na exportação;
também os critérios de tempo de propaganda política concedendo maior tempo para
aqueles que estatisticamente possuem o maior número de votos: ou seja, aquele que está
no início da carreira política continuará em baixo e o que está em cima preservá-lo-á.
Aqueles que tiverem dinheiro disponível para o devido investimento nas propagandas
eleitorais garantirão a proporção dos votos (meio elitista de aquisição de eleitores).
Exemplo de homologia estrutural entre os setores econômicos e religiosos: o argumento
de cunho popular: “deus deu a vida, portanto pode tirá-la” ou mesmo” ‘Ele’ pode,
porque é divino, nós não, porque somos pecadores”. Só repeti isso quem admito em seu
íntimo a concessão de direito do mais forte. Assim como pai e mão podem abusar da
formação da filha e do filho sob o pretexto argumentativo de: “dei a vida, posso
dominar”. Outro exemplo interessante e igualmente revoltante: “Manda quem pode,
obedece quem tem juízo”. Frases típicas de pessoas incultas e corruptas, uma vez que
defendem o posto de comando, a organização que causa a destituição e ainda imputem-
na o “direito” de ser assim, apenas pela força armada e legal que preservam por
intimidação o posto de comando e exploração sócio-econômico-cultural.
Os três exemplos guardam não uma determinação unívoca de direção, mas
apenas uma homologia volitiva, ou seja, apesar de diferenciarem dos meios
empregados, os fins ou resultados são os mesmos: explorar o humano pelo humano com
o fito de enriquecimento e status social, numa ambição desenfreada e sem escrúpulos.
Infiro a partir disso não a determinação do político pelo econômico, nem do religioso
pelo econômico, nem do educacional pelo econômico, mas tão simplesmente dos meios
eficazes para a preservação da exploração, da manutenção das condições de exploração,
estas que são garantidas por medidas legais, por procedimentos extra-oficiais e por
práticas informais das e nas instituições dos respectivos setores supramencionados.
Não cabe aqui a pergunta pela demonstração de quem determina quem, de qual
esfera determina e é determinada por outra! O foco do problema reside na comunidade
volitiva, telésica pelo qual os meios variados são expressão dos fins comuns almejados
da classe proprietária e detentora. A distinção é a produção da injustiça social. A
destituição é o momento necessário do privilégio da outra categoria social.
Dissertar e citar em Merton o pseudo problema da determinação causal daquilo
que é reflexo ou ressonância de outro fator.

Talvez não seja a insuficiência da demonstração e seu método, mas o não perceber a
independência dos meios para adquirir fins comuns. São os fins e sua operação
separadora, segregadora, distintiva e legitimadora da ordem oficial exploradora é ponto
em comum, sendo as variações de meios para a sua execução um mero acidente que o
acompanha, mas que apenas os fins, os interesses elitistas e seus critérios gerais de
desapropriação semântico/identidária/econômico/existencial/cultural levados a cabo.

Porém, se o Estado foi constituído por um processo formador e é constituído por


práticas e discursos legitimadores, qual é então a força ou sua estratégia para manter
tal posto dominante, tal organização política? A imagem que fazemos do Estado,
quando ainda irrefletida, é uma caricatura, uma visão estereotipada, exagerada e,
portanto, idealizada. A similar força estranha e que nos domina por dentro, enquanto
manifestações psíquicas do aparecimento de imagens involuntárias na consciência dos
indivíduos encontra seu homólogo de cunho social: a necessidade de unificação dos
anseios humanos e carecimentos básicos numa única figura e, por esta somos unificados
em forma de “nação”, é uma maneira fantasística poderosa, pois confere ao indivíduo o
paternalismo do Estado, o apaziguamento das ansiedade existenciais de âmbito natural,
do controle da natureza e da manutenção da saúde e cuidados “especiais”. Entretanto
está no âmbito social e político a dominação do humano pelo humano na forma de
exploração pela desapropriação de bens, de predicados, na composição da discursos
unilaterais de privilégios e direitos por um lado, e de obrigações e deveres por outro. Se
ao estranhamento ou consciência alienada do indivíduo tem como base uma aparição de
conteúdos independentes de sua vontade consciente e que o domina, a figura do Estado
cumpre tal papel por ser funcionalmente o homólogo coletivo da aparição da
consciência alienada: se os conteúdos na mente aparecem como a-processuais, como a-
históricos e em-si, ou seja, “independentes”, a noção de Estado é homólogo: carrega em
seu bojo os predicados de força impessoal, independente ou divorciada da vontade
individual e com caráter coercitivo. Os fins de tais agentes ocultos e ocultados por tal
imagem caricaturada do Estado são obliterados ou substituídos por predicados mais
dóceis de serem aceitos: a figura do Grande Outro como um Grande Pai... Dominador
sim, mas ainda Pai, tanto quanto uma filha e filho mantém o sentimento de respeito e
temor independente do mérito do genitor ou educador.

Como, porém, o Estado não poderia realizar sua função apaziguadora


e reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse
como realização de interesses particulares, ele precisa aparecer como
uma forma muito especial de dominação: uma dominação impessoal e
anônima, a dominação exercida através de um mecanismo impessoal
que são as leis ou o Direito Civil. Graças às leis, o Estado aparece
como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em
lugar de o Estado aparecer como poder social unificado, aparece como
um poder desligado dos homens. Por isso, também, em lugar de ser
dirigido pelos homens, aparece como um poder cuja origem e
finalidade permanecem secretos e que dirige os homens. Enfim, como
o Estado ganhou autonomia, ele parece ter sua própria história, suas
fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da história social
efetiva. (CHAUÍ, 2004: 66).

Esta autonomia é conquistada pela delegação dos sujeitos do gerenciamento de


sua vida e escolha à organização política denominada Estado. O estudo feito sobre
Democracia é um bom exemplo: a desapropriação participativa é causa do efeito do
sentimento de independência do Estado contendo uma história própria. Claro! Se as
deliberações político-adiministrativo-legais apenas eles participam, os cidadãos estão à
margem de tal palácio deliberativo, então por implicação lógica, a história do Estado
continuará independente em suas deliberações e processos executores, por mais que a
manutenção, as condições de sua exploração seja efeito da conformidade coletiva de
seus súditos. A história estrutural ou formadora é passado; a história em movimento, a
deliberação, é presente; a história em perspectiva de preservação é discurso ou ideologia
é futuro, promovendo a recursividade dos motivos e ambições dominantes da mente dos
dominados (aspecto retrospectivo e projetivo), tanto quanto de suas práticas (aspecto
técnico, modo de produção e modo de reprodução das relações sociais de trabalho).
Comentei sobre a importância dos momentos práticos e teóricos, das atividades e
conceitos como inerentes ao processo de interação humana com o meio social. A
discussão sobre a primazia ou do prático ou das idéias no tocante à determinação causal
e seus efeitos são para mim um pseudo-problema. Por quê? Porque o foco da
investigação é muito menos a obtenção duma cadeia cronológica de determinantes ou
fatores causais: é muito mais a relativa independência dos setores em seus modos de
exploração! São os critérios comuns dos setores e instituições sociais que facultam e
fundamentam o fenômeno da homologia não como epifenômeno ou efeito passivo, mas
como uma variação obre o mesmo tema, como uma diversidade de meios para a
consecução dos mesmos fins de dominação, exploração, enriquecimento e privilégios
sociais. O foco da investigação são os recursos comuns utilizados em suas mais diversas
expressões e diferentes esferas sociais de atuação. Tornar um fenômeno como em-si,
sem processo e independente é uma Forma, uma operatividade final, uma conclusão e
interesse de todo aquele que deseja dominar o humano pelo humano, pouco importante
os meios pelos quais adquire-se tal resultado. As idéias e práticas estão condicionadas
pelos fins e não pelos meios, pelos resultado final e não pelos intermédios do processo.
Assim como a realização de um desejo erótico tem seus meios para atingi-los,
todo o ser humano deseja expressar tal desejo em ato, pouco importando o conteúdo do
ato, e mais importando a satisfação nos atos. É como bebermos um suco ou num copo,
ou na panela, ou num cálice. Haverá diferença estética em cada experiência do
continente, mas será o mesmo conteúdo a satisfazer-nos. Por analogia, o continente
equivale aos meios, assim como o conteúdo equivale aos fins. O continente são variados
em seus modos mas o resultado almejado são idênticos: então, é na função que cabe ao
meio e não o meio por si mesmo que confere ao Estado e seus aparelhos ideológicos o
predicado ou conceito de Ideológico. Todo aquele que age em conformidade com os
fins e interesses destituidores e desapropriadores agem em comum, ou seja, a
comunidade ideológica não é o agente em si, mas o interesse específico que o motiva: a
função é um conceito nuclear de invariante na variação.
Função é um critério motivador com expressão por meios eficazes. A eficácia
de um conjunto de atos ou argumentos reside na comunhão funcional, na comunhão dos
critérios motivadores, na comunhão ideológica opressora e injusta para a descomunhão
dos oprimidos e serviçais. O aspecto formal136 é qualquer operação que leve a cabo o
resultado almejado. São os epítetos utilizados, os recursos falaciosos empregados na
argumentação ideológica, pois seus propósitos ou fins são o burlar a balança de direitos
e deveres, e para isso: a alteração semântica dum conceito, a identidade hipo e hiper
valorizada com seu respectivo papel social, a desapropriação de meios de produção, a
expropriação dos meios de execução e seus resultados nefastos de alienação e
insatisfação.
De volta à pergunta: seria a transformação da exploração em cooperação um ato
isolado das idéias? Seria o das práticas somente? Minha resposta é não! Ora, os
momentos dialéticos entre atos e idéias são ambos expressões de valores. Estes são
critérios para práticas e discursos. Ação sem compreensão de meios são ações
insuficientes. Ação sem compreensão de fins são reproduções do já existente e vicioso.
Ação com a compreensão causal do atual estado de coisas, carregadas da motivação da
cooperação e desejo de participação histórica, com a compreensão dos meios adequados
para a eliminação da propriedade privada, para a substituição pela reforma agrária, para
a abolição do salário e para práticas que incentivem o desenvolvimento potencial dos
indivíduos em relações produtivas são necessários para a revolução: duplamente da
consciência enquanto conceitos e causas, e das práticas enquanto escolhidas e
direcionadas para o bem comum e não classista.
Desejar apenas ou práticas ou idéias como fatores transformadores é prejudicar o
processo como um todo. Ainda que haja ambos, as motivações, ou seja, o caráter
axiomático será necessário como valor intrínseco, produzindo a satisfação, a deliberação
autônoma sadia e não reativa ou por obrigação. Considero tanto condições externas
como internas para a realização revolucionária de indivíduo/sociedade ambos momentos
entre atores e atrizes e cenário, entre sujeitos e situações sociais, entre motivos internos
e condições externas de expressão adequada. Entretanto, considerarei a tendência à ação
em detrimento das idéias, até porque é mais fácil o surgimento das idéias quando o
cenário social está equipado para tal, para assumirmos os papéis sociais de
transformação dos meios de produção e reprodução da existência humana.

136
Formal como operatividade que executa um propósito, que atualiza, que provoca um
resultado esperado. Daí o termo funcional como síntese de dois momentos: o critério motivador
(axioma) e a expressão ou execução de meios que resultem na obtenção dos fins almejados. Estrutura é
o mecanismo operativo da função; o interesse é o desejo motivador de estruturas; os meios são as
expressões ou os modos pelos quais o interesse potencial é atualizado. Daí o grau superlativo de
importância que atribuo à interpretação intencional e seus correspondentes recursos atualizadores.
Sem as condições materiais da revolução, é inútil a idéia de revolução,
“já proclamada centena de vezes”. Mas sem a compreensão intelectual
dessas condições materiais, a revolução permanece como um
horizonte desejado, sem encontrar práticas que a efetivem. (CHAUÍ,
2004: 68).

A mediação simbólica é tão importante quanto às práticas de reforma agrária, de


trabalho manual e teórico alternado e dedicação de tempo para arte, cultura e lazer. O
desejo também é fomentado pelo investigação, assim como as práticas também
fomentam desejos de realização através de procedimentos externos. Também a
realização em ato daquilo que foi planejado e estudado como objetivação do
desenvolvimento subjetivo, numa interação constante, numa dialética do
desenvolvimento potencial, simultaneamente externo e interno enquanto condições do
processo, do devir humano nas e pelas relações: consigo mesmo, com os outros e com a
natureza. A ação consciente das implicações sociais e psíquicas são fatores necessários
para uma práxis social transformadora do quadro alienante e explorador. O comunismo
é um modo de produção econômica que leva em conta o modo de execução e recusa a
expropriação da terra e dos meios de produção. Sem a devida compreensão das
implicações da reforma agrária, da necessidade cooperativa e de grupo para a formação
de comunas e que esta é a única maneira de satisfazermos práticas escolhidas por nós:
sejam os tipos, sejam os meios de execução, toda a investida será a de reatar com o
cenário social e seus papéis de privilégios e semi-deuses na corrupção constituída pela
prática, pelos valores e pela idéias funcionais capitalistas.

A massa de explorados compreenderá que esses poderes foram


produzidos pela práxis social e que, por serem produtos da atividade
histórica dos homens em condições determinadas, também podem ser
destruídos pela prática social dos homens em condições determinadas.
Até agora os homens fizeram a história, mas sem saber que a faziam,
pois, ao fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas
por eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e
dominadores que os compeliam a agir. (CHAUÍ, 2004: 68).

Afinal de contas o que é fazer história além de reagir compulsivamente sobre os


mecanismos de produção e reprodução capitalista? Talvez a pergunta pertinente seja:
por que resistimos a admitir nosso quinhão de responsabilidade perante o quadro
histórico atual? Desejar participar é ver-se como ser-histórico-causal, é aplicar tal desejo
ou critérios na consecução de determinados fins. É negar o enredo alheio, negar o ator
coadjuvante para assumirmos os papéis principais, tomando as rédeas de nosso devir.
Agir como aplicação; ver-se como sentir-se a si próprio como tal, identificado; pensar
como apontamento e acusação de práticas e discursos ideológicos, como reformulador e
investigador das condições atuais em vistas para condições de superação das práticas de
subjugamento e exploração.
A tomada de consciência histórico-social fundamenta-se na ciência da escolha
inconsciente feita até então para o estarmos cônscios de nosso lugar, de nosso papel e
responsabilidade na vida, nas relações humanas, tendo em vista as implicações de
nossos atos na vida social.

A história não é o desenvolvimento das idéias, mas o das forças


produtivas. Não é a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta
das classes. Não é história das mudanças de regimes políticos, mas a
das relações de produção que determinam as forças políticas da
dominação. Assim sendo, qual é o palco onde se desenvolve a
história? A sociedade civil.
(...). A sociedade civil é o sistema de relações sociais que se
organizam na produção econômica. Nas instituições sociais e
políticas, e que são representadas ou interpretadas por um conjunto
sistemático de idéias jurídicas, religiosas, políticas, morais,
pedagógicas, científicas, artísticas, filosóficas. (CHAUÍ, 2004: 68 e
69).

Por conjunto sistemático podemos entender as esferas sociais e culturais que


podem refinar, reforçar e defender os valores capitalistas. Entendo por ressonância
econômica nas idéias institucionais os temas e critérios da mentalidade capitalista como
a premissa prima, como axioma pelo qual as derivações jurídicas, religiosas, políticas,
morais, pedagógicas, científicas, artísticas e filosóficas farão seu papel, ou melhor,
cumprirão a função de reprodução no discurso daquilo que é feito nas práticas de
exploração: a legitimação da dominação política, o convencimento, o ocultamento, o
deslocamento de foco, a inversão, a destituição semântica e identidária, a hipo e hiper
axiomatização, a alienação pelo modo de execução, as leis unilaterais, a má distribuição
dos bens e de oportunidades: sejam duma educação aprofundada, sejam da aquisição do
bens produzidos.

(...) A luta de classes não é apenas o confronto armado das classes.


Mas está presente em todos os procedimentos institucionais, políticos,
policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para
manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de
trabalho (separando os trabalhadores uns dos outros e separando a
esfera de decisão e de controle do trabalho da esfera da execução,
deixando esta última para os trabalhadores) e o modo de apropriar-se
dos produtos (pela exploração da mais-valia e pela exclusão dos
trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do
Direito e o funcionamento do Estado. (...). A luta de classes está no
quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e
educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas
eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes,
policiais e povo, juízes e réus, patrões e empregados. (CHAUÍ, 2004:
71).

O raio de alcance da luta de classes são as relações diárias em seus mais diversos
domínios e setores institucionais. A destituição volitiva e executiva, bem como o modo
de como consumimos os produtos são dois momentos do mesmo processo: um estilo de
vida marcado pela segregação e injustiça, pelas medidas administrativas de governantes
e pelo apreensão dos discursos e apropriação – alienada – dos produtos pela classe
trabalhadora.
Leitoras e leitores, lembrai-vos de meu comentário concernente aos mitos?
Expliquei o recurso psíquico utilizado para sintetizar, fazer convergir diversos
significados num significante de imagem (o que chamo de ícone). Se lá no mito
houveram entidades imaginadas para cumprirem o papel de significante e, com isso, na
unidade de signo; aqui, temos a sociedade civil sendo tomada como signo. Talvez por
isso, na obra Leviatã de Hobbes, apareça no frontispício a figura mítica de um gigante
Rei abarcando, englobando a população e o espaço geográfico de seu reino: como a
delimitar seu alcance de comando e gerenciamento das vidas subordinadas à sua espada
e seu cetro. Tal signo cumpre a função de unificação, ponto de convergência de vida,
interesse, economia, medidas administrativas e etc. Mas, se o signo é apenas um, o que
ele se remete é múltiplo; se o que ele representa é individual em sua expressão
significante, é coletivo no conteúdo do significado.
Contudo se o signo-imagem aglutina em si todo uma miríade de significados,
valores e noções, tais são vagas em nossa consciência, justamente pelo fato de tal
fenômeno ser implícito. Acrescente-se a isso uma ambigüidade estrutural na produção
mítica e onírica: todo ícone expressa e oculta, revela e esconde, emiti e omiti!

(...) A sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma


das grandes idéias da ideologia burguesa para ocultar que a sociedade
civil é a produção e reprodução da divisão em classes e é luta das
classes. Isso significa que a sociedade não pode ser o sujeito da
história, criando-se e recriando-se a si mesma em passes de mágica. A
História é o indivíduo fazendo-se uns aos outros (...). (CHAUÍ, 2004:
71).

Quando afirmamos uma sociedade, temos a tendência a substancializá-la e, com


isso, predicarmos como um objeto sensorial, e como tal, pronto, acabado, formado. Não
duvido que um objeto sensorial esteja formado, mas é impossível que tal esteja estático.
A noção de permanência, de perenidade é um constructo, uma artimanha ideológica
para ocultar o processo, o movimento de todo fenômeno, seja-o natural, seja-o social.
História são fatos, são relações humanas e natureza. A abstração ou separação do
coletivo e individual recai sobre aquela forma de reducionismo dos momentos do
processo totalizante. Talvez haja um vago, mas persistente sentimento de que quase
não fazemos história, uma vez que para tal depende do grau e qualidade de nossa
consciência histórico-social. Os únicos agentes são indivíduos; porém, a mentalidade
massificada e reativa se e na medida em que ocorre acarreta num impessoalismo do
devir histórico, ou seja, no sentimento de independência dos fatos em relação aos seus
produtores, da independência dos resultados em relação a seus agentes diretos.
Ora, se não fazemos historiam, pois tudo o que “sabemos” ou “desejamos” fazer
é reproduzir, então não há como percebermos que nosso próprio juízo de valor em face
da situação histórica esteja contaminado com as projeções e predicados dos próprios
sujeitos: aquilo que concebemos é, muitas das vezes, epifenômeno de nosso próprio
estado interno! Somente quando ação/pensamento adquirirem certo grau de
diferenciação do meio sócio-cultural é que nosso senso identidário estará apto,
capacitado a predicar na nossa história o papel e responsabilidade individual na
construção e reconstrução, nos condicionamentos e recondicionamentos, na geração e
na repetição de práticas (atos e discursos). A impessoalidade histórica é efeito da
involuntariedade137 das ações humanas: numa palavra: alienadas.
Afinal, a quem imputaremos a motricidade histórica?

(...). O sujeito da história, portanto, são as classes sociais. (CHAUÍ,


2004:71).

A pessoalidade advém da consciência de classe que manifestamos. A


impessoalidade é oriunda da separação e distanciamento dos agentes sociais como
causadores da situação atual vivida.

Dissertar história e consciência de classes.

Após tal investigação entre história e consciência (individual e coletiva)


voltemos ao debate sobre inversão consciencial da realidade externa. Tal inversão
causal é a chave para nosso entendimento quanto ao fenômeno da alienação. O estudo
de tal expediente operativo é condição necessária da natureza psíquica dos seres
humanos, bem como dos determinantes sociais que lhe dão forma e condição. Por isso
insisto na análise formal (operativa) e conteudística (dos valores, interesses e
implicações). Some-se a isso o aspecto da imediaticidade da manifestação de tais
conteúdos nas consciências individuais. São “imediatos” todos os fenômenos que
aparecem na consciência sem a mediação do processo formador. A perda da
historicidade é um fenômeno que nasce tanto na sociedade e suas classes, como também
no psiquismo. Ambos os momentos explicam os dois aspectos produtores do tipo de
consciência que teremos, seja quando expostos numa dada situação social, seja nas
manifestações individuais e o modo como tal aparição ocorre na consciência. A unidade
é a correlação dos aspectos homólogos, homólogos porque sujeitos à mesma condição
existencial, diferindo apenas nos aspectos da manifestação: individual e coletiva, interna
e externa, psíquica e social, consciencial e práxis, idéias e atividades...
A maneira abrupta de como irrompe tais signos na consciência, dificulta a
articulação do pensamento em bases dialéticas ou processuais. Ao caráter intrusivo de
tais signos não mediados pela sua historicidade formadora devemos o sentimento de
alheamento, estranhamento ou “outro” e ; ao caráter recursivo de tal aparição devemos a
noção ou sentimento de controle ameaçador, dominando nossas idéias e ações,
impondo-se de fora e sub-repticiamente. O produtor é ocultado em relação ao seu
137
Automatismo das ações como efeitos da massificação dos indivíduos: seja pelo modo
produção capitalista, seja pela reprodução acrítica e não reflexiva das implicações de todo aparato social
do trabalho.
produto: isto é alienação em seu aspecto estranho ou não reconhecido. O produto
adquire força coerciva sobre nós com poderes ameaçadores: isto é alienação em seu
aspecto de ameaça externa e automatismo.

Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua
classe são relações alienadas. Ou seja, assim como a Natureza, a
Sociedade e o Estado aparecem para a consciência imediata dos
indivíduos com os poderes separados e estranhos que os dominam e
governam, assim também a relação dos indivíduos com a classe lhes
aparece imediatamente como uma relação com algo já dado e que os
determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada. A
classe ganha autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, em
lugar de aparecer como resultante da ação deles, aparece de maneira
invertida, isto é, causando as ações deles. (CHAUÍ, 2004: 72).

A repetição na produção ressoa nas idéias também reiterativas, bem como as


idéias cultivadas com o intuito de legitimar o status quo de dominação ressoa no modo
como produziremos. Proponho a categoria explicativa fenomenológica de reforço
mútuo dos momentos do processo alienante. A perda de decisão no trabalho e nos
meios de execução acarretam nas consciências individuais um modo de aparecer
análogo: o que aparece imita a perda de controle da práxis produtiva. O sentimento de
perda de controle da história como agentes que somos é reflexo da perda de domínio e
controle na produção dos meios de vida. As ideações cultivadas e retroalimentadas
impõe nas práticas como significados, como conceitos a delimitarem e moldarem a
volição humana para os interesses de produção capitalista e reprodução das relações
humanas pautadas sob a mesma égide criterial: reproduzir todo e qualquer prática como
solidária do intento de dominação do humano pelo humano.

A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um


fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições
objetivas da existência social dos indivíduos. Ora, a partir em que a
relação do indivíduo com sua classe é a da submissão a condições de
vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com que cada
indivíduo não possa se reconhecer como fazedor de sua própria classe.
Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe
decorre da atividade de seus membros. Pelo contrário, a classe aparece
como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo se converte numa
parte, quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A classe
começa a ser representada pelos indivíduos como algo natural (e não
histórico), com um fato bruto que os domina, como uma “coisa” que
vivem. (CHAUÍ, 2004: 72 e 73).

Naturalização do cultural; coisificação (ou substancialização) do fato bruto não


articulado, não historicizado, destituído de seu caráter processual, mediado.
Interessantemente a representação é condicionada por certos tipos de atividades
destituidoras e injustas. Esta será marcada de maneira permanente até que outra práticas
possam descondicionar a inversão causal ou representação alienada da realidade social,
retomando o significado de toda e qualquer configuração sócio cultural: construída,
mutável, não-natural, resultado das ações humanas e dependente de seus agentes. A
falsa e pretensa fatalidade substitui (intencionalmente) e, portanto encobre, dissimula os
propósitos mesquinhos dos valores e práticas capitalistas, seus critérios e interesses.
Aprofundemos um pouco a noção de representação em relação às atividades
humanas alienadas.

“A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes


últimos encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm,
assim, sua posição na vida e o seu desenvolvimento pessoal
determinados pela classe. Tornam-se submissos a ela. Trata-se do
mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos isolados à
divisão do trabalho, e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se
supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias
vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se
transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de
representações”. (CHAUÍ, 2004: 72).

O campo das representações na consciência condiciona-se de maneira similar


aos condicionamentos produtivos capitalistas. Por isso, todos as representações mentais
da realidade distorcem de algum modo a realidade social devido à destituição do
trabalho (meios e execução), legitimando-a como perene, natural e, portanto “justa”.
Subsunção ou sujeição volitiva ao trabalho da mais-valia e suas condições descritas
logo acima explicam o processo deformador, inversor e ocultador do trabalho no âmbito
das consciências individuais ou representações mentais. É como se os significados
gerados pelas representações fossem tão destituídas do controle e domínio que já não
dominam o conhecimento causal do processo de produção capitalista e a mentalidade
correlata que lhe é necessária, seja-a por imitação, seja-a por assimilação inconsciente
dos esquemas operativos a que chamo epítetos ou expedientes operativos.
Com o correlato homólogo exponho o fenômeno interativo e retro-alimentador
de tais momentos (ideais e práxicos) como melodia e sentimento são correlatos da
mesma tônica ou mesmo coreografia e sentimento o são para a dança. Temos unidade
estrutural como a harmonia ou mímesis de interesses comuns sob roupagens e
manifestações diversas. A unidade estrutural das idéias e práticas reside em quais
critérios ou axiomas tomamos para agir no mundo. São solidários os efeitos e reflexos
quando sob o mesmo critério ou interesse. O interesse de grupo é forma operativa
(com todos os expedientes ideológicos já expostos) para as consciências individuais
pensarem e racionalizarem, tanto quanto o conteúdo operado é uma seleção dentre
muitas alternativas a cumprirem a função dos intentos mesquinhos de dominação.
Veremos agora quais são as propagandas ou discursos sociais vigentes da
justificação da dominação capitalista em face de seus subordinados. Aqui retomo o
enfoque quanto às desiguais oportunidades de crescimento ou desenvolvimento
subjetivo no cenário capitalista de produção e relação humanas, bem como a
legitimação do poder dominante como algo justo ou pertinente.
A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir idéias
que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os
homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que
são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente
trabalham enriquecem, e os preguiçosos empobrecem. Ou então faz
com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social,
permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de
melhorar – ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores
de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não
dependem deles, mas de quem possui os meios e as condições socais,
mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a
lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos
dominantes. (CHAUÍ, 2004: 73).

À aparição representativa não-mediada do processo formador temos a


substituição através de discursos sociais vigentes. Tais são colocados no lugar da
suprassumida formação histórico-social, revelando e apresentado uma versão
tendenciosa e fantasística em relação às causas, determinantes e implicações.

(...). O processo que aqui vemos em ação – conflito, recalcamento e


substituição envolvendo uma conciliação o retoma em todos os
sintomas psiconeuróticos e nos fornece a chave para compreendermos
sua formação. Portanto, não deixa de ter importância que possamos
mostrar o mesmo processo em ação na vida mental de indivíduos
normais. (FREUD, 2006: 291 Vol. III).

Para tais fins, o recurso empregado reside na predicação, nos conceitos e nas
causas forjadas á força, induzidas pelo medo de revolta contra práticas a serviço dos
dominantes ou mesmo da dominação em geral independente da posição social138 ou
classistas de seus agentes. O não-olhar sistemático de conteúdos que despertem conflito
interno e externo promove a substituição da causa social pela inversão. A função de
apaziguamento do indivíduo fortalece esse recurso, ainda que inadequado e imaturo.

(...) O resultado do conflito, em vez da imagem mnêmica que seria


justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi até certo
ponto associativamente deslocada da primeira. (FREUD, 2006: 290
Vol. III).

138
Uma das recentes explicações de meu Mestre Marcos Oliveira da Silva está na Teoria dos
quatro Setores, com seu conceito de Quaternidade, ou seja, de que pouco importa atualmente de
quem vem, de qual a origem dos agentes comunicativos das justificativas e legitimações do poder
dominante, pois este já está (pre)dominante nas consciências individuais como metas, diferindo em
cada setor os meios empregados para atingi-los. A classe trabalhadora e destituída já defende por si
mesma ao identificar-se com tal poder social de privilégios e práticas sistematicamente injustas e
divisoras de classes, valores e direitos correspondentes.
Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência;
permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de
órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um
pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar
para o novo (...) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse,
espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da
etiqueta (...). (NIETZSCHE, 2007: 47).

Desigualdade justificada mas que não aceito, pois tenho valores como o
princípio de isonomia e isogoria. Tal justificativa não convence, pois institui a
destituição, a divisão de mérito por classe econômica e não por mérito pessoal da
idiossincrasia. No plano de minha investigação intencional, está a hierarquização dos
valores e seus pressupostos como base ou passagem para os predicados concernentes a
seus agentes, no tocante à intencionalidade dos mesmos. Daí a primazia do plano do
discurso como objeto de estudo das proposições e práticas coletivas e individuais.

Quando se refere a um agente, a justificação consiste, de fato, na


justificação de sua conduta. Ela pode também, é verdade, visar a
dissociar, ou inteira ou parcialmente, o agente do ato, provando que
essa conduta não lhe é imputável ou que ele não é responsável por ela,
(...); mas então se trata antes de desculpa do que de justificação.
(PERELMAN, 1997: 168).

É vedado o acesso a instituições universitárias reconhecidas, pois o critério não


é integrar diversas camadas sociais, mas separá-las, constituir sistematicamente práticas
e discursos que minimizam nossa indignação e revolta com paleativos argumentativos
ideológicos. A posição social é sacralizada, valendo como critério avaliativo mais a
forma do que o conteúdo, mais o fetiche da posição de poder do que o usufruto, o valor
de uso de tais postos ou aquisições culturais. É como se o virtuosismo numa Sala de
Concerto valesse mais do que a melodia e a peculiaridade harmônica de tal música. É o
fetiche além da mercadoria como produto simultâneo da reificação das relações
humanas, do consumo da “arte” como posto social de destaque e não nas implicações do
proveito de tais práticas estéticas no auto-desenvolvimento da subjetividade e
sensibilidade.
As “chances” de melhora tem o preço da reprodução das relações de exploração,
destituição e desapropriação. Tem o preço dos agentes transformarem-se em núcleos de
disseminação práxica e discursiva de maneira formalizada. O preço das ações de anti-
éticas porque injustas, desiguais e hipócritas em suas justificações. A melhora da
condição econômica com a perda da dignidade e relações produtivas do ponto de vista
do desenvolvimento subjetivo nas relações, na intersubjetividade. É condição necessária
nos axiomas capitalistas a reificação ou instrumentalização das relações humanas para
proveito de interesses de grupos ou classes.
Todo meu empenho é acusar as práticas – sejam quais forem elas – que estejam
a serviços de esquemas ideológicos já descritos, uma vez que eles são indícios da
intencionalidade dominadora de seus agentes. Uma teoria da interpretação intencional
dos argumentos empregados e das práticas produtivas e inter-subjetivas é uma poderosa
arma contra a produção de falsa consciência e subserviência dos indivíduos.

A teoria está encarregada de desvendar os processos reais e históricos


enquanto resultados e enquanto condições da prática humana em
situações determinadas, prática que dá origem à existência e à
conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A
teoria está encarregada de apontar os processos objetivos que
conduzem à exploração e à dominação, e aqueles que podem conduzir
à liberdade. (CHAUÍ, 2004: 74).

Desvendar motivos é para mim mais um aspecto nesse processo. Além das
práticas discursivas, atividades produtivas e atividades intersubjetivas, apontar os
mecanismos ou recursos ideológicos, bem como práticas alienantes (produtivas e
interativas), tomo como núcleo e precedente cronológico de tais fenômenos a
intencionalidade dos agentes. Práticas e comunicação como esteio da visada, da volição
humana como expressão no mundo. Elas podem ou exercitar o domínio abusivo ou o
domínio didático, emancipativo, cooperativo, acolhedor, corretivo e valorativo. A
libertação da dominação abusiva está no trabalho volitivo e teórico por um lado, e
prático e dinâmico por outro. Se o pensar a-histórico prevaleceu nas investigações
ideológicas e de comportamento humano é porque tal expediente oculta –
propositadamente – conteúdos, inventa causas ou substitui os fins dos agentes para
exumá-los da responsabilidade: é melhor endeusar o agressor numa atitude projetiva
filial a contestar-lhe os propósitos e meios nas implicações diretas (conseqüências
práticas e econômicas, má distribuição dos bens, seleção abusiva e discriminativa do
acesso cultural) e indiretas (valores, conceitos, idéias, definições, causas, senso
identidário).
Todo o respeito portanto, aos bons espíritos que acaso habitem esses
historiadores da moral! Mas infelizmente é certo que lhes falta o
próprio espírito histórico, que foram abandonados precisamente pelos
bons espíritos da história! Todos eles pensam, como é velho costume
entre filósofos, de maneira essencialmente a-histórica; quanto a isso
não há dúvida. (Nietzsche, 2007: 18).

Na medida em que as forças reais, que explicam o processo de


surgimento de um acontecimento, permanecem ignoradas ou
escondidas, o historiador-ideólogo inventa causas e finalidades que
acabam convertendo a história numa entidade autônoma que possui
seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os
homens como seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da
realidade histórica e diante da idéias de história. (CHAUÍ, 2004: 77).
Outro aspecto fundamental das práticas ideológicas reside – no mundo europeu e
suas colônias – a noção argumentativa de progresso. Colonizadores139 sedentos de
ampliação de matéria-prima para suas indústrias invadem países para impor a
mentalidade capitalista desumana, destituindo a população local da vida nativa. É
clássico o argumento do progresso, pois comete uma conhecida ferramenta ideológico
em minha Filosofia da Linguagem, pela Elipse, oriunda da Lingüística. A omissão
significante, a ausência da explicitação com a presença implícita do significado
específico de tal progresso: quando comentam que levariam progresso a povos
primitivos, não especificaram algo já presente em seus cérebros: O progresso
tecnológico. E mais, não importando para isso os meios pelos quais tal progresso, ou
melhor, trabalho escravo, matéria-prima para indústria, desapropriação agrária e
familiar, guerras, torturas e morte.
Acrescentemos a isso a o discurso etnocêntrico, ou seja, a interpretação
tendenciosa dos colonizadores em relação ao povos dominados: “Africanos não tem
‘alma’...” A implicação de tal premissa é simples: se africanos não são dotados de
humanidade, podemos dominá-los, usá-los em bel proveito nosso! Outro detalhe:
Somos nós que destituímo-los de humanidade, com nossas práticas, sendo o discurso
apenas um reforço a mais nas consciências anti-sociais e xenofóbicas dos
conquistadores. Ninguém problematizou a que progresso está implícico? Ninguém
problematizou as implicações da imposição do progresso tecnológico e seus meios?
Ninguém problematizou, ou melhor, lembrou do progresso sócio-psíquico da qualidade
das relações humanas? Que justamente o capitalismo é recusa da qualidade para o
proveito minoritário da quantidade dos bens de produção e do posto privilegiado em
nosso cenário social da eficácia psico-social do rótulo honorífico?

(...). O historiador ideólogo constrói a idéia de progresso histórico


concebendo-o como a realização, no tempo, de algo que já existia
antes de forma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto
final necessário. Visto que a finalidade do progresso já está dada (...),
e visto que o progresso é uma “lei” da história, esta irá alcançar
necessariamente o fim conhecido. Com isso, os homens tornam-se
instrumentos ou meios para a “história” realizar seus fins próprios, e
são justificadas todas as ações que se realizam “em nome do
progresso”. (CHAUÍ, 2004: 77).

Afinal, o que é história? É, por princípio, conjunto de fatos. Fatos selecionados,


colecionados e parcialmente explicados. Em sua maior parte, fatos humanos, em
detrimento dos naturais: fatos culturais. Tanto Marx como Hegel – ainda que
promotores duma Filosofia da História, dos ciclos a que os povos passam mediante
determinadas configurações sócio-político-econômico-culturais determinadas –
incorrem no mesmo esquema discursivo em sua explicação: O motivo ou motor
histórico... A missão histórica... Eles cometeram antropomorfismo e hipóstase. Dois

139
Ou melhor, desapropriadores de terras, saqueadores, ladrões, estupradores, assassinos,
escravagistas, extrativistas anti-ecológicos e, por fim, heróis da desumanidade!
mecanismos operativos, dos esquemas argumentativo ou retórico, com a conseqüente
polarização axiomática, mas não de litotes classistas, mas dum fantasma chamado
história e seus agentes.
História é um produto, e como tal, uma produção coletiva pelos atos. Também é
uma seleção dos fatos conforme a predileção valorativa de seus executores
(historiadores). Dotar o produto de força própria quase humana (antromorfismo) bem
como independência volitiva dela – a história – de seus agentes singulares – os
indivíduos – (hipóstase) é mais um mecanismo operativo psico-lingüísitico de teor
retórico, com fins específicos: destituir os agentes da tomada causal frente a seu
produto140 e deslocar o conteúdo/atributo – este destituído dos agentes singulares – para
a esfera do universal (história), para o âmbito do substantivo abstrato dotado de
humanidade (antropomorfismo) e independência141 motriz (hipóstase).
O que tais ideólogos chamam ou entendem de história substitui a classe
dominante, oculta-os pelo outro significante. O significado de tal substituto é o mesmo
da classe dominante: “lei”, soberana, impessoal, coercitiva, destituidora. O mesmo
papel do Estado é imputado travestidamente na História. Sendo que os súditos de tal
Rainha recebem os mesmo efeitos, só que desta vez o elemento fantasístico, esse
fantasma que encobre o Leviatã – a ‘história’ – com motor próprio, ou seja, vida
independente. Claro! Seus produtores são produzidos projetivamente pela ‘história’, não
são mais produtores, mas restringidos a produtos de sua própria produção, do qual não
se reconhecem – num primeiro momento irreflexivo – como produtores, e nem como
repectáculos dos atributos da soberana ‘história’ que detém as qualidades, os atributos
usurpados de seus produtores, deslocados para o substantivo abstrato, este como ponto
de convergência dos atributos e feitos humanos. Nossa como um substantivo abstrato
desse teor lembra a frase de Engels e Marx parafraseando Feuerbach de que: “Quanto
mais pomos em ‘deus’, mais tiramos de nós os mesmos atributos”.
Vejamos o que Marilena oferece-nos quanto a tal tópico:

Dessa maneira, não só os acontecimentos históricos são explicados de


modo invertido (o fim explica o começo), mas tal “explicação” ainda
permite que a classe dominante justifique suas ações, fazendo-as
aparecer como as “razões da história”. Atribui-se à história uma
racionalidade que é apenas a racionalização dos dominantes. (CHAUÍ,
2004: 78). (...). em termos do materialismo histórico e dialético, é
impossível compreender a origem e a função da ideologia sem
compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos
da dominação de classe e uma das formas da luta de classes. A
ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a
dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos
dominados. (CHAUÍ, 2004: 78 e 79).

140
Destituição causal.
141
Fator do fenômeno da alienação.
A explicação, o discurso é centro de batalha; é instrumento de ampliação e
reforço dos mesmos intentos das práticas socais de dominação capitalista. Por isso meu
foco interpretativo resida no discurso, para num segundo momento dedicar-me à
interpretação das práticas. Investiguemos outro discurso corrente no inconsciente social
dos indivíduos duma mesma situação de trabalho desde o séc. XVI até meados do séc.
XIX: “O trabalho dignifica o homem”.
O ser humano, quando em atividade que escolhe e por motivos que visualiza ser
um fator de realização sua no mundo (natural/social), sente-se realizado no processo de
tais práticas. Mesmo o resultado final é sinal de satisfação para uma atividade engajada
e apaixonada. Infelizmente, interesse e paixão, realização e resultado nem sempre
caminham juntos. O discurso oficial do trabalho expõe um verdade práxica e psíquica
inerente a todo o ser humano; porém, omiti as condições pelas quais o contexto de tais
séculos destitui o ser humano dos itens: deliberação, meios de produção, identificação
do produtor e a espécie de trabalho e produção e etc. Levanto uma questão: Todo
trabalho dignifica o ser humano? A referência ‘o trabalho’ é vaga, pois omiti condições
de realização de todo e qualquer trabalho e suprimi a situação atual de desapropriação,
mais-valia, meios de produção alheio, execução do mesmo escolhida por outro, da
destituição identidária, e etc.
Qual trabalho dignifica o ser humano? Aquele que preenche requisitos de
escolha de meios de execução e detendo os meios de produção. Aquele que corresponde
aos anseios do trabalhador. Aquele que uma vez escolhido será fator de realização para
aquele que o realiza. Interesse e paixão combinado com meios e espécie de trabalho
próprios do produtor garantem engajamento e não alienação no trabalho. Qual será
então a intenção por trás do discurso oficial acima? Explico-vos: dispensando analisar
as condições de todo e quaisquer trabalhos e situações a que o trabalhador do sistema e
práticas capitalistas estão submetidos, o ser humano é pego em seu senso identidário:
“Homem que é homem trabalha” ou “A atividade desempenhada engrandece o ser
humano”. Bem, nem todo trabalho dignifica, pois o trabalho capitalista destitui o ser
humano. Nem toda atividade desempenhada engrandece, pois também o aliena142. Nesse
aspecto, a idéia de trabalho diverge da situação social em que o trabalho se realiza.

(...) se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as


condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram
certos homens em benefício de uns poucos. Estamos diante da idéia de
trabalho e não diante da realidade histórico-social do trabalho.
(CHAUÍ, 2004: 81).

A dignidade humana está em condições explícitas de trabalho, em situações


psico-sociais definidas. O capitalismo é um conjunto de práticas e discursos que
inviabilizam a dignidade humana dos produtores para enriquecer os detentores. O
mesmo é válido para o discurso da liberdade de escolha. Alguém tem liberdade para
escolher um segmento religioso num país que visceralmente impõe cristianismo

142
Lembremos do método Taylorista de produção em série.
(católico e protestante)? Liberdade pressupõe apresentação de diversidade e não
univocidade, e não variação sobre o mesma tema. Qual o grau de liberdade para um
trabalhador destituído? Nenhuma, no tocante ao trabalho apropriado às suas
identificações e deliberado por ele; a única opção é escolher qual trabalho destituidor
presente no mercado de trabalho. O mesmo vale para a ‘religião’: qual o grau de
liberdade da opção deste setor aqui no Brasil? Nenhuma, no que tange aos segmentos
religiosos comparados e heterogêneos. Somente a ‘escolha’, no geral, entre catolicismo
e protestantismo143. Isso tem nome: etnocentrismo, e como tal, segregador e mais um
produtor de litotes social: os que são “salvos” e os que não são; os que são virtuosos e
valorosos e os do “mundo”. Ou seja, em ambos a diversidade é evitada,
sistematicamente evitada, omitida e ocultada, para que o adjetivo liberdade não
problematize as condições sociais de manipulação dos que são oficais, mas conforme-se
ao já instituído e reconhecido como único cenário possível na questão da deliberação.

Ou, então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que
exprimem essa liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou
entre situações dadas, sem que se analise quais coisas e quais
situações são dadas para que os homens escolham. (CHAUÍ, 2004:
81).

Dissertar sobre problematização sistematicamente obliterada em Rouanet e Habermas.

Uma vez mais enfatizo como método de investigação intencional144 o exame das
repercussões que advém de determinadas práticas e condições sociais de escolha. Esta
última, correlaciono as implicações e enviesamento da diversidade oferecida em prol da
diversidade omitida/ocultada. É fácil exaltarmos uma idéia de liberdade quando ela está
tão restrita pelas situações atuais. Tal fenômeno de discurso social é similar ao de
“democracia”, pois infunde-se o que chamo de palavra de ordem. Esta é eficaz para
promover auto-estima na população quando se deseja evitar problematizações do
cenário social pelas implicações ocasionadas pelas mesmas. Nesse aspecto, o plano
ideativo cumpre ainda mais uma função de dominação do que as atividades capitalistas.
A exaltação duma qualidade e que tal é oferecida confere aos súditos um ‘espaço’ social
de deliberação. O mesmo espaço social é necessário para a manutenção capitalista,
porém, o que não se explicita é que tal espaço poderia ser outro bem melhor,
qualitativamente não destituidor do ser humano e nem instrumentalizador das relações
humanas. Bradamos democracia (representativa) para não lembrarmos da participativa
ou problematizarmos a atual. Bradamos liberdade frente ao trabalho todos estes são
destituidores. Bradamos liberdade de pensamento (inclusive ‘religioso’) quando o
currículo escolar do ensino fundamental não ensina religiões, não compara ou contrasta,

143
Apesar das múltiplas e variadas ramificações do linha protestante, todas versam sobre as
mesmas peculiaridades: fundamentalismo, segregação, terrorismo psíquico do complexo de culpa e
apequenamento do ser humano frente às ideações da divindade cristã e etc.
144
Teleologia.
mas apologiza145 a “religião” oficial vigente na mesma instituição educacional. Ocultar
os agentes e dissimular as implicações são esquemas da ideologia burguesa:

Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente


escolher o que desejarem? O nordestino, vítima da seca e do
proprietário das terras, realmente “escolhe” vir para o sul do país?
Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico “escolheu” livremente
fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A menina grávida
que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um
aborto? A definição de liberdade com igual direito à escolha é a idéia
burguesa da liberdade e não a realidade histórico-social da liberdade.
(CHAUÍ, 2004: 81 e 82).

Dentre as diversas finalidades ideológicas, ressalto a omissão e o ocultamento,


quando não a dissimulação, como esquemas, como critérios operativos dos argumentos.
Basta que tais atinjam tais fins para receberem o predicado de ideológico. Os meios
empregados são diversos; as intenções dos agentes comunicativos são comuns:
minimizar com as exaltações de determinadas qualidades públicas para encobrir tanto a
intenção como as conseqüências do cenário capitalista no teatro social. Análogo
situação podemos sentir ao bradarmos liberdade de escolha de papéis quando estes estão
restritos ao mesmo jogo de competição social. Liberdade é repensar os papéis
oferecidos e situações atuais; é gerar novos papéis e condições sociais de relações
humanas no trabalho. Qual a liberdade de escolha das disciplinas oferecidas numa
faculdade que só tem área de exatas que visa tecnólogos e não amantes do saber que
ultrapassa a tecnocracia para se aprofundar na natureza humana e seus problemas
perenes? Qual a liberdade de expressão quando não há espaços públicos para debates
nas faculdades? Quando palestrantes lêem durante 1 hora e meia e abrem apenas 10
minutos para comentários?
As leis estão aí para salvaguardarem apenas a idéia, apenas e definição: mas não
sua aplicação. Aplicar regras em casos singulares é próprio de atitude ética; dissimular e
empregar falácias com o intuito de não aplicá-las é próprio de ideologias pelos quais
seus agentes pretendem sistematicamente não problematizar a desumanidade das
condições sócio-econômico-pedagógicas externamente presentes.

(...) O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação


não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e

145
O mesmo ocorre com a assim chamada teologia: todo estudo requer um exame da
diversidade de seu objeto de estudo. Uma verdadeira teologia seria comparativa quanto ao conceito de
divindades, cosmogonia (mitologia) e valores da mesma, e não circular, unívoca e dogmática. Estudar
religiões é estudar diversidade de expressões e valores das mesmas e não eleger uma como verdadeira
e as demais como falsas, até porque a base de todas elas reside no consolo dos dogmas e explicações
mágicas e não na investigação das condições sócio-psíquicas de sua produção. Seria o mesmo que
estudar Mitologia, estudando apenas um mito e lidando com ele como se fosse factual; seria retroceder
no pensamento mágico ao invés de explicá-lo, de explicitarmos os mecanismos psíquicos inerentes a
eles, e a organização social do qual emana e promove seu assentimento por discursos etnocêntricos,
segregadores e políticos.
não-violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever
para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos
nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício
consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados,
e os dominados revoltar-se-iam. (CHAUÍ, 2004: 83).

Como vimos, na atualidade, a legalidade está dissociada de justiça. Todo o


trabalho legislativo de elaboração legal é considerada não-violenta porque carrega em
seu bojo a insígnia do Estado, via instituição jurídica. Mas será que basta o carimbo do
Estado na especificidade de seus Aparelhos Ideológicos para promover justiça ou não
invasão ou destituição dos e nos direitos humanos? A categoria social direitos/deveres
está há muito tempo mal distribuída entre seus os atores e atrizes sociais duma
determinada sociedade. O conjunto de leis prescreve obrigações e direitos, discrimina os
destinatários dos privilégios e deveres, tornando a aceitação geral dos mesmos como
“natural”, “reconhecida” e, portanto, “por direito”, acolhida como norma razoável, mas
sempre implícito a noção popular cabível aqui: Manda quem pode, obedece quem tem
juízo! Violência é todo e qualquer ato de desconsideração dalgum direito humano,
ferindo assim os sentimentos de dignidade pessoal ou grupal através de discursos e
práticas que implicam no desrespeito de tais direitos, o que acarreta em injustiça social
sistematicamente organizada por interesses de grupos – em sua maioria, administradores
– garantida simbolicamente pelo código escrito (leis) e, também, pelas leis informais146.
O consentimento da destituição dos direitos e das oportunidades eqüalitárias,
bem como da promoção da invisibilidade social como critério de distinção social do
litotes classista corresponde à falta de consciência dos indivíduos em face da
intencionalidade dos agentes Estatais, de suas normas, práticas e valores. Tais são
reconhecidos pela simples investigação das implicações, ou seja, dos fenômenos
decorrentes dos mesmos. Compreensão equivale e percorrermos o trajeto progressivo
(no tocante às implicações); e, regressivo (no que tange as intenções).
Através dos efeitos implicativos (desta base ou modelo) construo ou infiro a
interpretação intencional de tais agentes, códigos “morais”, “legalidade” e “justiça”,
bem como a suposta “não-violência”. Tal “não violência é justificada pela pseudo-
legimitação do Estado e suas produtos somente porque advém do mesmo. O critério de
todo Estado é angariar adeptos, conquistar assentimento coletivo da Violência da
Destituição Geral da subjetividade humana pelos Detentores dos meios de produção
bem como dos representantes dos Aparelhos Ideológicos e Alienantes do Estado, em
suas mais diversas ramificações e especialidades.
Estado e seus aparelhos bem que podem chamar-se de: Razões Instrumentais147
de Destituição Humana da Humanidade dos indivíduos com o fim de consentimento do
exercício da Violência sistematicamente organizada pelos súditos (maioria dominada)

146
Todo o conjunto de pressupostos, ou seja, de valores implícitos aplicados. Também o
conjunto de práticas que em sua maioria subvertem, contradizem a lei formal (escrita).
147
Tal expressão origina-se de Herbert Marcuse como noção de instrumentalidade humana, ou
seja, das relações intersubjetivas como meios, destituídas dos fins humanistas, estas que são por e pelas
relações humanas em seu aspecto simbiótico, construtivo/cooperativo/humanista, em detrimento do
construtivo/segregativo/instrumental do modelo valorativo capitalista ou estatal.
sob a rubrica de Não-Violência no plano discursivo pela pseudo-legitimação que adota
como critério a origem estatal das leis como suficientes para a legitimação das
mesmas, mas mascarada pelo deslocamento da injustiça com a substituição da mesma
pela noção de legalidade!
Mas porque tal justificativa? Para mitigarem a atualização do potencial
naturalmente vivo dos subjugados (ou súditos, assujeitados). Para garantirem no plano
das idéias ou conceitos uma descrição que mantenha a imagem de bom samaritano da
figura do Estado e do Direito. Para garantirem a alteração semântica do conceito de
justiça pela substituição do mesmo pelo critério de legalidade instituída. Para conter o
ímpeto de revolta dos injustiçados pela figura de poder paternalista do Estado e do
Direito, tal qual mantemos um temor (vulgo respeito, porém mais próximo de
tolerância) cego pelo pai, ainda que sob cuidados desrespeitosos e instrumentais.
O investimento numa imagem boa é epíteto compensatório148 das práticas ruins
operadas pelos Detentores. Porém, tais investidas encontram uma manifestação mais do
que dum grupo específico pelo qual é emitido ou organizado: é a natureza (quase)
enigmática da impessoalidade149. É devido a tal característica que as ideologias são
escorregadias em seu núcleo formador e disseminador.

Não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam fazer


uma ideologia, (...). (...) seria muito mais fácil acabar com uma
ideologia.
A ideologia resulta da prática social, nasce da atividade social dos
humanos no momento em que estes representam para si mesmos essa
atividade, e vimos que essa representação é sempre necessariamente
invertida. (CHAUÍ, 2004: 83).

Já vimos a distância entre idéia de Estado, por exemplo, e o que as pessoas que o
representam fazem e intencionam. O núcleo do problema reside no entendimento de
como a representação da categoria Estado, ou mesmo as mais diversas ideias oriundas
do mesmo centro de disseminação. Mas o que podemos entender por ‘centro’?
Em nosso contexto, as situações de exploração, desapropriação e destituição –
sejam quais forem elas – oferecem os subsídios para que de maneira pré-consciente,
nossa subjetividade (ou consciência ou mente ou razão ou intelecto) organize
mecanicamente todo um conjunto de argumentos pautados, funcionamento equipados
para obnubilar a imagem da fonte emissora (no caso a instituição social Estado). Os
conceitos (definições) de Natureza, Sociedade, Ser Humano, Trabalho, Salário, Mais-
Valia, Economia, Ciências etc... são confeccionados por todo aquele que está, que vive
no seio da mesma situação sócio-econômica-cultural, pelo simples fenômeno de que as
definições ocultam a agressão sistemática dos Aparelhos de Estado, como também

148
As chamadas Fantasias Compensatórias oníricas são recursos psíquicos de todo indivíduo.
Chamo a atenção dos mesmos quando socialmente orientados na e pelo trato intersubjetivo.
149
Tal categoria interpretativa – dentre as categorias econômicas já estudadas – é oriunda dum
conjunto complexo de práticas, nos mais diversos setores e grupos sociais, na qual esmiussarei o
processo de sua manifestação ou produção.
invertem a relação causal entre: Natural e Cultural, o humano e seu produto (pela
reificação150).
A matriz ideológica são as definições do termos gerais ou universais que
implicitamente trazem em seu bojo a marca da intencionalidade da classe dominante,
pelo simples fato de neles conterem semanticamente a distinção classista e suas
conseqüências sistematizadoras no plano do discurso da posição de cada elemento
dentro do sistema. É como se houvesse uma relação sintagmática, sintática pelo
posicionamento (auto-imagem e visão de mundo) dos indivíduos explorados. Com isso,
gera-se por oposição do litotes classista, a posição social ou status privilegiado dos
elementos pertencentes da classe dominante.
Contudo, o fenômeno continua: além da distinção, inversão e reprodução
conceitual das ideias dominantes, não precisamos pertencer à classe dominante
enquanto rótulo de quem domina explicitamente e com os meios de produção e
políticos; porém, qualquer um pode reproduzir tais conceitos e argumentos por um
fenômeno psíquico denominado identificação.
Com a identificação tomamos a causa dominante como nossa. Se por um lado as
práticas e ideias de mundo, natureza, indivíduo, política, sociedade, trabalho, arte,
educação e etc... provêm da matriz ideológica dos elementos componentes dos
Aparelhos Ideológicos de Estado; por outro lado, a reprodução criativa (mas não
inventiva em se tratando de sua fonte emissora) cabe a todo aquele abestado que toma
as dores, metas e axiomas da classe dominante aplicando-os como critérios151 para a
perpetuação das condições individuais e coletivas, ideativas e práticas das condições
necessárias da organização social, bem como de seus componentes.
Trago-vos uma pequena contribuição: Qual é a matriz ideológica? Por que a
aparência de impessoalidade e com ela todo o processo involuntário (maquinal ou
mecânico)? Respondo-vos: não é um lugar ou centro emissor o responsável pela
reprodução152, mas sim um adjetivo, um sentimento, um anseio anti-social: o fascínio
pelo enriquecimento pouco dispendioso e abusivo pelo domínio do humano pelo
humano, como também pelo enriquecimento egóico do posto adquirido, do fetiche da
posição social que cada indivíduo pode ceder. Cedendo haverá sistematicamente toda
uma legitimação argumentativa (criativa), bem como a adequação
(modelamento/hábito) das e nas práticas com todas as implicações que advém de tal
conduta.

150
Termo chave para a investigação psicossocial da humanização do produto com a simultânea
desumanização (coisificação) dos seres humanos (trabalhadores). É o fetiche da mercadoria que adquire
status de ser orgânico; enquanto que seu produtor – não reconhecido como tal – destitui-se tanto pelas
práticas alienadas e reiterativas, como pelo retroalimentação conceitual da matriz ideológica com as
definições já sistematicamente controladas semanticamente, com o propósito de fornecer a reprodução
representativa daquilo que já fora elaborado e formado no plano da práxis.
151
Em sua maioria implícitos... e quanto mais forem assim, mais eficazes serão: seja pela
dificuldade do reconhecimento do agente (impessoal), seja pela sutileza e criatividade das variações,
mas que sempre versam pelos mesmos temas, pelos mesmos critérios da matriz ideológica.
152
Ainda que não seja responsável pela reprodução, a produção ou invenção das definições
partem tanto dos grupos dominantes governamentais, empresariais, midiáticos, e os expoentes
hierárquicos educacionais.
É nossa aceitação pelo fascínio do cenário de corrupção, abuso e
instrumentalidade que reproduzimos os meios necessários para a exploração, destituição
e desapropriação (de terras e semântica) que toda a engrenagem é posta em movimento:
a engrenagem da situação social segregadora que confere privilégios, postos e atributos
egóicos pela sensação de poder e pertença social no e pela categoria social de
dominação. Somente a recusa – por uma identificação axiomática de práticas e critérios
argumentativo/conceituais que promovam a união-cooperativa e não segregadora-
instrumental – de tal cenário social, bem como a da participação nele é que traremos os
subsídios necessários para a insurreição coletiva.. primeiramente via individual, pois
somente as células do organismo podem mudar o quadro ou sistema de que fazem parte.
O aspecto destituidor identidário pela via semântica incide sobre o campo das
representações assim como o aspecto destituidor desapropriador pela via de terras e
meios de produção incide sobre o campo da práxis. É por isso que não há local para a
reprodução (criativa de variações), ainda que haja local para a produção (inventiva de
temas e critérios). A querela da impessoalidade dos agentes ideológicos– pela
fenomenologia psicossocial – é respondida com o espaço governamental dos Aparelhos
Ideológicos de Estado e com as consciências individuais a operarem a reprodução
conceitual (criativa nas relações das ideias que mantêm o mesmo conceito intacto) e
prática (reiterativa das atividades produtivas de bens).
A criatividade reprodutiva gera novas articulações; porém, com as velhas e
caducas definições enviesadas. Portanto, a garantia da permanência dos conceitos e
visão de mundo das idéias dominantes está na variação livre (mas sob a égide de
critérios e temas dominantes/inventivos), bem como na reprodução mecânica das
atividades técnico-administrativas. Ambas garantem ou perpetuam o status quo de
instrumentalidade, de identificação do litotes classistas e todas suas implicações, bem
como a manutenção das representações – o mais distantes possíveis das intenções dos
agentes ideológicos inventivos – com o fito de fixação sintática dos elementos do
conjunto social.
Chamarei de agentes ideológicos primários os de atividade inventivo-produtiva
(definições, temas e critérios); chamarei de agentes ideológicos secundários os de
atividade criativo-reprodutivas. Os primeiros são; os segundos, querem ser. Os
primeiros comandam diretamente; os segundos indiretamente. Aqueles detêm os meios;
estes, identificam-se com o status. Aqueles dissseminam conceitos gerais; estes,
articulam-nos em rigorosa derivação lógica. Os primeiros emitem noções semânticas
com modelos de execução (trabalho); os segundos sistematizam sintaticamente os
discursos e mantêm ou executam as práticas reiteradas ditadas pelos modelos do como
fazer (trabalho). Os primeiros são porque desapropriam porque detêm os meios de
produção e execução; os segundos além de receberem os efeitos de desapropriação e
alienação, rearticulam argumentativamente os temas gerais e executam o modelo da
práxis reiterativa.
Logo,

1) O que é pessoal? Agentes ideológicos primários! E seu posto ativo...


2) O que é impessoal? Agentes ideológicos secundários! E seu posto reativo...

3) O que é interpessoal? As relações não rotuláveis que podem implodir todo o


edifício do cenário social injusto: pela identificação com axiomas e práticas,
definições e atitudes que impliquem na organização de relações humanas
genuínas, no sentido de cooperatividade, de ser humano enquanto fim em si
mesmo.
Como sabemos, um dos efeitos serão a extinção: do salário, da mais-valia e da
propriedade privada, bem como a extinção: da matriz ideológica dominante como
referência semântico-conceitual; dos discursos racionalizantes que defendem o agressor,
ou melhor das práticas agressoras; das categorias sociais de litotes classista e das
distinções segregadoras.

No entanto, as idéias dominantes em uma sociedade numa época


determinada não são todas as idéias existentes nessa sociedade, mas
serão apenas as idéias existentes dessa sociedade nessa época. Ou
seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma
(sua idéia a respeito de si mesma), representa sua relação com a
Natureza, com os demais humanos, com a sobrenatureza (deuses),
com o Estado etc., tornar-se-á a maneira como todos os membros
dessa sociedade pensarão. (CHAUÍ, 2004: 84).

A singularidade das idéias reside na auto-imagem atual da classe dominante.


Enfoco mais uma vez que não necessariamente é a classe dominante enquanto posto de
comando administrativo-econômico-político, mas todo e qualquer pessoa que de algum
modo, com suas práticas – mais até que as idéias – fornecem subsídios ou
retroalimentam (confirmando ou reforçando indiretamente) os axiomas ou intenções
“dominantes”. Nesse aspecto, Terry Eagleton é intensamente explicitador:
Citar

Os conceitos de natureza, relação humana, supostas “divindades invisíveis” e as


relações dos súditos com os dirigentes (elementos ativos do Estado) são engendrados
pelo modelo da classe dominante que – por mímesis ou mais ou menos
involuntariamente – reproduzir-se-á por todos (ou maioria) dos indivíduos da mesma
sociedade em questão. Vejamos um “pequeno” exemplo mítico: está escrito que deus
falou para Adão que os animais (os outros) serviriam a Adão. Interessantemente, muitos
cientistas, usam a natureza, bem como os capitalistas com o extrativismo predatório, de
maneira análoga: está inscrito em suas mentes ao sentirem Natureza como meio, como
uso, como abuso... Qual é o processo pelo qual crédulos do mito de Adão e Eva (versão
criacionista judaica copiada pelos cristãos), cientistas e capitalistas podem ter tão
denominador comum no tocante ao conceito de natureza? Não tanto no que é Natureza,
mas para que serve, para suprir quais intentos humanos.
O processo é a identificação com as fáceis aquisições de bens advindos da
natureza. O fascínio de vantagem ou enriquecimento sobrepuja a consideração ética de
cuidado e limites (quantitativos e qualitativos). Quantidade como limite para os
extratores; qualidade para como os cientistas usam a natureza: atentarmos para as
indiscriminadas experiências com ratos de laboratório cujos quais são abertos vivos e
quando não morrem na experiência são sacrificados. Ou mesmo as práticas japonesas de
comer macacos (seus cérebros) com marteladas na cabeça dos macacos ainda vivos.
Digamos que o mito adâmico (neste aspecto) reforça fantasisticamente com a
figura de autoridade de deus (divindidade ou entidade imaginária oposta ao profano) a
legitimar o uso da natureza, dos animais a serviço do ser humano. Ora, ora... parece ser
anterior à escravidão e trabalho capitalista o desejo, a permissividade de abuso para com
entes de complexidade orgânica menor que a nossa!
Ainda que cientistas, empresários e políticos mantenham a mesma postura
(práticas) em frente à natureza, os mesmos não precisam necessariamente acatar o
dogma adâmico para imitar tal procedimento axiomática de desconsideração para com a
Natureza: basta a identificação do uso vantajoso com o fascínio da aquisição fácil para
que seja dada a largada para a “corrida pelo ouro” anti-ética153. O princípio de prazer
opera de modo mecânico-impulsivo em detrimento do princípio de realidade natural e
social, este que é sinônimo de compromisso avaliativo das práticas e idéias antes que
uma prática seja executada, ou mesmo como será executada.
Agora é fácil detectarmos o quão automático são as reações humanas frente à
permissividade para com determinado temas (práticas e idéias): muito pouco é oferecido
como modelo para que os indivíduos ajam – ou melhor reajam – em frente a
determinadas circunstâncias já sancionadas por alguns agentes ideológicos primários e
secundários. Uma mímesis involuntária, sem nome, quase impessoal a impelir aquelas
pessoas insensíveis para articular e comparar a situação atual de atividade e conceitos
temáticas e, muito menos, para transformarem as atitudes e aprimorarem as noções de
natureza, intersubjetividade, crendices míticas e relações com a figura de autoridade do
corpo chamado Estado. Tal aprimoramento conceitual guarda relações diretas com
axiomas, pois o próprio ato de nos permitirmos debruçarmo-nos sobre temas,
debatendo-os, examinando-os por diversos prismas e sob diversos enfoques valorativo-
implicativos já é um índice de sensibilidade subjetivo-simbólica para uma possível
transformação também no plano da práxis.

(...) As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das
relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes
concebidas como idéias; (...).
A ideologia consiste precisamente na transformação das idéias da
classe dominante em idéias dominantes para a sociedade como um
todo. (...).

153
Ético porque avaliador das implicações com devidas mudanças práticas; anti-ético porque
compulsivamente prática sem a mediação simbólica do trâmite intra-psíquico de reavaliação dos atos
frente às conseqüências dos mesmos.
Para que isso ocorra, é preciso que a classe dominante, além de
produzir suas próprias idéias, também possam distribuí-las, o que é
feito, por exemplo, através da educação, da religião, dos costumes, dos
meios de comunicação disponíveis; (...). (CHAUÍ, 2004: 85 e 86).

Se por um lado a transmissão para a homogeneidade de pensamento de conceitos


e discursos carecem de propagação ou distribuição da classe dominante para a classe
dominada, por outro lado, nem todas as noções serão reproduzidas como pelo modelo
dominante. Por quê? Por três motivos:

1) Somente se houver identificação (aprovação) da classe dominada.

2) Podemos reproduzir noções e idéias similares – ainda que não transmitidas –


simplesmente pelo fato de estarmos expostos às mesma circunstâncias das práticas
ideológicas.

3) Manifestarmos outras idéias, outros conceitos, ou mesmo outros discursos


“legitimadores”, mas que ainda sim contribuem com os mesmos axiomas dominantes:
seja-os pelos efeitos solidários, seja pelo discurso que difere pelo argumento mas não
pelo axioma defendido ou aplicado. É aquele caso típico da variação sobre o mesmo
tema.

Mas supondo que não houvesse diferenciação das idéias, quais seriam os meios
coletivos envolvidos na disseminação de tais idéias?

(...) a produção ou distribuição dessas idéias ficam sob o controle da


classe dominante, que usa as instituições sociais para sua implantação
– família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas, meios de
comunicação da cultura permanecem atrelados à conservação do
poder dos dominantes. (CHAUÍ, 2004: 88).

A conservação do status quo dominante abre margem para um enorme leque de


possibilidades argumentativas, desde que concluem no final da argumentação os
mesmos pressupostos (axiomas implícitos) ou da ou para a classe dominante. Possuímos
um mecanismo heurístico, composicional, capaz de gerar discursos sistematicamente
coerentes com os resultados ideológicos. Porém, se compararmos as condições
históricas entre feudalismo e capitalismo, teremos um excelente exemplo de meios
diferenciados empregados em cada período; porém, a manterem, a reproduzirem a
injustiça social: ou com seus fins, ou com práticas coerentes a elas, ou com ambas.

(...) a forma de dominação feudal impõe uma divisão social por


estamentos fechados que se subordinam uns aos outros segundo uma
hierarquia imóvel, que culmina na figura do papa, e deste alcança a de
deus, entendido como fonte de poder que, por uma graça ou por um
favor, concede poder a alguns homens determinados, e que, portanto,
as relações de honra e de fidelidade simplesmente exprimem o modo
pelo qual os laços de poder são conservados no interior da nobreza
contra os servos. Ao contrário, no mundo capitalista as relações entre
os indivíduos são determinadas pela compra e venda da força de
trabalho no mercado, estabelecendo-se entre as partes (proprietários e
assalariados) um contrato de trabalho. (CHAUÍ, 2004: 89).

Exemplo da empresa NET: cuja qual camufla a imposição de ficarmos com seu
serviço, obrigatoriamente por um período determinado por eles, com a eufemista
expressão: Plano Fidelidade. No caso do período delineou-se ou direta ou indiretamente
as obrigações servis daqueles que trabalharam em terras feudais. Interessantemente, no
setor “religioso”, as honras ou graças “divinas” recaem sobre pessoas de Estado, por
que não recaem sobre mendigos, indigentes ou pessoas não representativas? Seria um
álibi discursivo de outorgar – imaginariamente – comando “reconhecido” por um “ser”
invisível para que os súditos convencessem-se da “legítima” atuação e permissão
daqueles que beneficiam-se com os postos de comando administrativo-econômico?
Por outro lado, atualmente, o regime CLT154 oferece-nos legalmente as
condições empregatícios e dos empregados, reproduzindo a trabalho com sua mais-
valia, bem como a possibilidade de qualquer um contratar uma pessoa nestas condições,
reproduzindo assim a base legal para as práticas de trabalho no qual os trabalhadores
estão desapropriados de terras e meios de produção, como se tudo fosse “justo”, normal
ou natural. O direito com suas leis reforçam as práticas e, de algum modo,
interiorizamos conceitualmente; captamos as noções de justiça, direito, liberdade,
igualdade nos moldes legais. Estamos assim formalmente amparados com um arsenal de
leis que fornecem as diretrizes para que semanticamente prediquemos ambas as
categorias: empregadores e empregados, como iguais, quando a distinção entre
apropriadores dos meios de produção/execução e desapropriados estejam de algum
modo ocultados suas diferenças fundamentais.

Ora, o pressuposto jurídico da idéia de contrato é que as partes sejam


iguais e livres, de sorte que não apareça o fato de que uma das partes
não é igual à outra nem é livre. A realização de relações econômicas,
sociais e políticas baseadas na idéia de contrato lega à universalização
abstrata das idéias de igualdade e de liberdade. (CHAUÍ, 2004: 89).
(...) Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar as idéias de
igualdade e de liberdade como a essência do homem, faz com que se
coloquem ao seu lado como aliados todos os membros da sociedade
feudal submetidos ao poder da nobreza, que encarnava o princípio da
desigualdade e da servidão. (CHAUÍ, 2004: 90).

Liberdade e igualdade são adjetivos, condições humanas que todos almejamos.


Contudo, não se explicitam os detalhes de distinção e ocultação das diferenças
instituídas socialmente no litotes classista que apenas uma faixa da sociedade (burguesia

154
Carteira... de Trabalho
e feudos na passagem do feudalismo ao capitalismo) estão em condições de usufruírem
de tais predicados, sendo os demais desconsiderados e fadados a contemplarem – sem
participarem – a idéia de liberdade e igualdade. Daí a fantasia compensatória dos
dogmas “religiosos” a prometerem terras e liberdade noutra vida além túmulo.
Uma complementação interessante do tema da universalização conceitual da
ideologia dominante reside também em que nem sempre tais universalizações serão
falas ou apenas setoriais quanto aos interesses de grupo. A ideologia burguesa francesa,
ao reivindicar os ideais de todo ser humano para sua própria tomada de poder, também
comprometeu a si própria a médio prazo, uma vez que os súditos ou classes distintas
dele internalizou e identificaram-se com tais valores a ponto de questionarem a própria
condição na discrepância da burguesia no poder político e as demais classes.

A universalização, portanto, nem sempre é um mecanismo


ilusoriamente racionalizante. (...) Se um grupo ou classe social
necessita universalizar suas crenças e valores para conseguir-lhes
apoio, então isso terá influência sobre as crenças em questão. (...). Ao
formular os próprios interesses dessa maneira, pode ir de encontro a
seus interesses imediatos ou mesmo contra aqueles a longo prazo. Os
valores universais da burguesia revolucionária – liberdade, justiça,
igualdade etc. – ao mesmo tempo que promoveram sua própria causa,
criaram-lhe sérios embaraços quando outras classes subordinadas
começaram a levar a sério esses imperativos. (EAGLETON, 1997: 60
e 61).

Como classe em ascensão a burguesia empregou o recurso da universalização de


tais conceitos, de modo a transmitir um desejo inato no ser humano, por isso foram
acatados como representantes de interesses gerais. A diferença reside em que estiveram
certos em colocar tais predicados como universais para o ser humano; mas agiram de
má-fé na medida em que ocultaram as condições sociais e posições privilegiadas de
comando político que podem usufruir de tal condição geral humana. Levantaram a
bandeira das qualidades antropológicas sendo que simultaneamente nada fizeram
(depois da ascensão social enquanto classe organizada) para transformarem a
configuração social de seu tempo para promoverem a distribuição das condições
universais a todos.

(...) a classe ascendente não pode aparecer como uma classe particular
contra outra classe particular, mas precisa aparecer como
representante de toda a sociedade, dos interesses de todos contra os
interesses da classe particular dominante. E consegue aparecer assim
universalizada graças às idéias que defende como universais.
(CHAUÍ, 2004: 90).

Angariar apoio é um dos motivos pelos quais uma classe investe na conceituação
generalizante. Mas vimos também que nem sempre se administra a falsidade do
conteúdo veiculado (conceitualizado), pois o recurso à verdade de tal conteúdo, nalguns
casos, pode ser até mais benéfico para unificar apoio, com a ressalva de “tal tiro sair
pela culatra”, dado pela motivação/identificação com o qual os súditos ou classes
envolventes não se contentem com a contemplação de tais valores, mas com a
experiência empática com a mesma ou mesmo com as condições necessárias para tal se
manifestar. Embora na maioria das vezes a ideologia seja falsa, ela é mais um ilusão,
uma espécie de discurso abstrato (porque generalizante) e invertido155.

11) a ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por


ilusão não devemos entender “ficção”, “fantasia”, “invenção gratuita e
arbitrária”, “erro”, “falsidade”, pois com isto suporíamos que há
ideologias falsas ou erradas e outras que seriam verdadeiras e corretas.
Por ilusão devemos entender: abstração e inversão. Abstração é o
conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa
experiência imediata, como algo dado, feito e acabado, (...) sem
indagarmos como tal realidade foi concretamente produzida. Uma
realidade é concreta porque mediata, isto é, porque produzida por um
sistema determinado de condições que se articulam internamente de
maneira necessária. Inversão é tomar o resultado de um processo
como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as
conseqüências pelas premissas, o determinado pelo determinante.
(CHAUÍ, 2004: 93 e 94).

Sintetizando: abstrair é negarmos o processo, é recusarmos o devir pelo


acabado, o vir-a-ser pelo em-si; inverter é substituir o final do processo pelo início de
um processo; é negarmos o resultado e elevá-lo ao status de resultante, é concebê-lo de
passivo a ativo.

Se, em toda a ideologia, os homens e suas relações aparecem de


cabeça para baixo como numa câmera escura, este fenômeno resulta
de seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão
dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente
físico. (MARX/ENGELS, 2007: 94).

Pode o plano sensorial ser deturpado, invertido pelo campo representacional do


discurso, do pensamento? O fenômeno da inversão causal é produto da atividade
psíquica em face duma situação social que o estimula – mas sem o determinar de
maneira absoluta –, sendo a explicação produzida tal qual um fenômeno reativo de
hipervalorização do mental em detrimento do sensorial. Freud explicou tal fenômeno
em relação aos sonhos, quando desejamos ocultar um sentimento de ódio por afeto, para
dissimular nosso desejo verdadeiro e, com isso, aceitarmo-nos mais – através duma
versão156 –, uma maneira de diminuir a ansiedade e remorso causado se admitíssemos o
reconhecimento do sentimento em pauta em relação a determinada pessoa.

155
Inversão por predicarmos independência e autonomia do produto; por colocá-lo como
efeito e não como causa, com status de vida própria como o do produtor.
156
Auto-imagem forçosamente construída pelo desejo.
(...). A estrutura social e o estado provêm constantemente do processo
de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como
podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como
realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem
materialmente e, portanto, tal como desenvolvem sua atividades sob
determinados limites, pressupostos e condições materiais,
independentes de seu arbítrio. (MARX/ENGELS, 2007: 93).

Se na Psicanálise o indivíduo pode inverter uma relação afetiva ou até mesmo


colocar palavras e ações nossas na boca de outra pessoa; já, na Psicologia Social ou
Sociologia do Conhecimento de Engels e Marx, é um grupo, uma coletividade
específica a manipular através o mesmo conteúdo social – sua situação comum a que
estão expostos – através da inversão, colocando a causa inicial do estímulo sensorial
como efeito do campo representacional ou sígnico. A vantagem de tal comportamento
involuntário reside na sujeição à ordem social vigente de dominação, como também no
predicado de que aquilo que provém duma esfera invisível ou na consciência deve se
seguir “necessariamente” uma resultante no campo sensorial. Quando o sensorial é
explicado em termos de efeito do plano da “consciência”, ou de um “transcendente”,
silenciamos, mitigamos157, tomamos a história e a organização social como perenes,
legítimas e, ao mesmo tempo, eximimo-nos da responsabilidade de transformação
(interna e externa) sob o pretexto da absolutização da ordem social dominante, ao invés
da relativização da mesma, uma vez que estas são construídas pelos indivíduos
(mecanismos de produção e reprodução ideológica).

As representações que esses indivíduos produzem são representações,


seja sobre sua relação com a natureza, seja sobre suas relações entre si
ou sobre sua própria condição natural. É claro que, em todos esses
casos, essas representações são uma expressão consciente – ou real ou
ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção,
de seu intercâmbio, de sua organização social e política. A suposição
contrária só seria possível no caso de, além do espírito dos indivíduos
reais e materialmente condicionados, pressupor-se ainda um espírito á
parte. Se a expressão consciente das relações efetivas desses
indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a sua realidade
de cabeça para baixo, isto é conseqüência de seu modo limitado de
atividade material e das suas relações sociais limitadas que daí
derivam. (MARX/ENGELS, 2007: 93).

157
Simultaneamente esquecendo, abstraindo da situação histórico-social: hipovalorizando-a em
prol da sacralização dos representados psíquicos elevados a causas primeiras e determinantes.
Sacralizar tais representados inconscientes equivale interpretar a sacralização da ordem social como
legítima, como conseqüência necessária da inversão oferecida por nossa atitude doentia e covarde em
enfrentarmos a situação social conflitante e injusta ao invés da apologização eufemista do mesmo pelo
campo representacional.
Interpretemos toda essas distorções discursivas como um mecanismo de auto-
preservação da integridade egóica de cada um de nós. Todo o recurso a desculpas, todo
argumento que molda, idealiza a explicação da estrutura social e de suas implicações,
está comprometida com uma espécie de reação instintiva158 de mecanismos de defesa,
evitando para os indivíduos aquele sentimento de conflito interno ao notarmos a carga
de responsabilidade que temos ao “legitimarmos” o status quo de relações sociais
depauperadas, instrumentalizadas e sistematicamente desumanizadoras e alienadoras.
Nesse aspecto, o discurso institucional das religiões e mesmo o discurso popular de
natureza moral (prescritiva) são agentes, funcionários estatais, que como tais cumprem
uma função específica: desviar o foco da transformação externa (uma vez que ela é
perene e resultado duma atividade “do além”) oferecendo práticas psíquicas como:
horóscopos, orações, ritos etc... todas elas camuflam, dissimulam a transformação da
sociedade para um retraimento, para uma redução das ações à esfera dos signos mentais.
É como se a manipulação interna dos signos imaginados, fantasiados surtissem efeito no
campo sensorial (social ou natural). Ritos mágicos, palavras mágicas e interiorização
são o máximo que podemos fazer para modificarmos as práticas, discursos e valores?
Não! São apenas recursos paleativos visando aplacar a ansiedade e desespero da ordem
social injusta, num refúgio paradisíaco da “religiosidade”, ou melhor, das práticas
psíquicas de pretensões mágicas vaticinadas, legitimadas pelos meios de comunicação
de massa e pelas instituições religiosas.

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, em


princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com
o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O
representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda
aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento
material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se
apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da
metafísica etc. de um povo. (MARX/ENGELS, 2007: 94).

158
Tal reação opera-se no campo das representações, ou seja, no psiquismo, ainda que o
produto dessa atividade individual seja comum, social. Ser comum é repetir um conteúdo psíquico (aqui
no caso a inversão) para o mesmo evento ou situação. A situação social recebe as mesmas inversões
porque há uma relação entre o psíquico (que substitui o efeito dos representados como causas da
situação social) com situação mesma, o conteúdo social que se deseja inverter. Uma Psicologia Social
trabalha com a relação do estímulo externo com a resposta interna. Se a resposta é idealizada, então
será índice de engodo, mentira, dissimulação... mas somente em relação causal; pois, será verdadeira se
restringimos que a motivação de cada um quando dominada pela inação, preguiça e medo é
idealizarmos/sacralizarmos a ordem social vigente com a intenção (ainda que involuntária) de
conformação da injustiça pelo juízo de caráter absoluto, perene, daquilo que é relativo e moldado,
reproduzido... freneticamente reproduzido... a ponto das idéias conterem formas delirantes de
distorções, distorções essas que encontram amparo e guarida nas práticas e discursos coletivos.
Investiguemos brevemente as categorias explicativas: parecer e ser. Expliquei
neste livros diversos significados atribuídos ao significante aparência. Engels e Marx
referem-se com este termo a maneira como surge – enquanto representado na mente –,
ao modo como um ícone como a Cultura, o Estado, a Memória ou mesmo qualquer
instituição social ou mesmo a instância Supra-Eu... todos eles podem surgir como
autônomos, como involuntários. A experiência mental, psíquica ou ideativa – como
quisermos chamar – significamo-lo justamente com o mesmo predicado pela qual
sentimos seu surgimento, aparição em nossa tela mental: como algo independente de
nossa vontade!
Ora, tal fenômeno, de predicarmos como independentes de nós só porque surgiu
de maneira involuntária em nossa consciência pressupõe uma transposição indevida.
Explico-vos: ao sentirmos o signo, o ícone manifestar-se de maneira intrusiva e
recursiva, projetamos tais qualidades ao referente. Ora, houve aqui uma fusão:
misturamos, ou melhor, tratamos com igual ou equivalente a maneira como um
conteúdo psíquico irrompe no plano consciente como se tal característica fosse inerente,
necessária, própria do fenômeno pelo qual tal signo representa. O referente do signo,
como: Estado, Memória, Instância psíquica que nos adverte das conseqüências dos atos
e desjos, Ordem Social Trabalhista desapropriadora de terras, de serviço autônomo e das
não-identificações entre sujeito e espécie de trabalho são TODOS provenientes de cada
um nós. Tal processo de produção e reprodução é um constructo humano, ainda que
ajamos compulsivamente... ainda que não seja deliberação nossa, agimos na maioria das
vezes como que robôs que executam programas prontos.
Confundir signo com referente é um recurso empregado quando expliquei
quando projetamos sentimento a um objeto que não o possui. O fato de termos o objeto
como referência, como signo para sentirmos algo a partir do contato com ele, não faz
com que tais predicados, tais sentimentos pertençam ao sujeito: simplesmente
projetamos conotações como se fossem denotações. Apenas a discriminação destes
aspectos, dessas diferenças (entre significante e referente) farão com que o significado
que pertence ao sujeito (os sentimentos sentidos por ele) restrinjam-se somente a ele. De
modo análogo, as aparições intrusivas, “independentes” de nossa vontade consciente e
aparência de entidade autônoma nada tem a ver com o referente, pois não houve aqui
uma reflexão que comparasse a experiência do indivíduo (e que é verdadeira para ele
enquanto seu) a partir daquela imagem que lhe visita o campo mental daquele maneira
autônoma, com em predicar de autônomo o referente ou situação externa que fora
gerada por nós. A geração duma situação social será sempre produto dos indivíduos que
compõe a sociedade em questão; a maneira como a imagem, o signo aparece ao
indivíduo é fruto duma dissociação Psico-Social, daí o tomar do predicado do sujeito
projetado no referente.
Ao referente compete não o modo representacional signo-interno, mas às ações,
discursos e práticas sociais do signo-externo que é o objeto, ou melhor, o fenômeno
social em pauta. A distorção operada por nós quando reagimos assim provém da
imaturidade de encarar frontalmente as situações e nossas possíveis resistências,
idealizamos, ou seja, configuramos através de signos internos através dum princípio e
prazer que molda a seu desejo... ainda que não percebamos, o ato ocorre. Após isso,
axiologicamente infiro: em comparação com os signos externos (situação social atual),
traímos com nossa ideação. Citar Eagleton: 83.
No aspecto do signo interno (situação psíquica) sentido e aparecido desta
maneira é verídico; a mentira está em predicar tais qualidades no signo externo
(situação social). Nem sempre uma mentira é absoluto, mas como vimos, adquire tal
valor em comparação a setores, a instâncias a aspectos diferentes. Presumo aqui uma
teoria da verdade pelo critério de relação. Tal apontamento e método de investigação é
predominantemente dialético – porque em interação a algo específico –,
fenomenológico – porque descreve o processo do fenômeno psico-social – e semiótico
– porque confere significados através do movimento sígnico de considerações
externas/internas.159
Com o fetiche da mercadoria, temos a dominação tirânica da mercadoria na
consciência, pela significação: o sentimento atribuído à mercadoria é reflexo do vivido
consciencial (verdadeiro), mas às custas da projeção invertida no significante
(deslocamento). Aqui temos o processo homólogo à metonímia: já que está ou antes ou
concomitante a este, logo é como este. É assim a articulação do pensamento ou pré-
consciente ou inconsciente, uma vez que está explicitado aqui o critério que permite a
manifestação da distorção predicativa por um mecanismo já presente em nosso
potencial comunicativo, porém, operado involuntariamente em relação ao plano
consciente.
Pela hiper-axiomatia a mercadoria humaniza-se e, num contraponto, pela hipo-
axiomatia o ser humano destitui sua humanidade, desumaniza-se gradativamente pela
redução a instrumento ou coisa. A causa é social, coletiva; mas o sentir humano é
individual, na consciência. Como relação, seguindo Eagleton, a Fenomenologia e este
que escreve, os momentos dialéticos entre relações de produção (social) e consciencial
ou subjetiva (individual) são fatores unilaterais da significação, sendo o deslocamento
operado nas mentes – individuais – homólogo ao conteúdo ou intenção dos agentes
ideológicos; por isso, a substituição da intenção causa a projeção, a extrojeção sintética
na mercadoria daquilo que sentimos a partir, ou seja, derivada da mercadoria, este que é
significante último do processo produtivo.
O processo final (mercadoria) recebe os significados sentidos pelos sujeitos – em
seu drama existencial das relações capitalistas de trabalho – a indignação, a destituição,
numa palavra: é a mercadoria dotada de vida, animada com os conteúdos dos
trabalhadores, seus produtores! A mercadoria é receptáculo do mal sentimento tanto
quanto o “diabo” é causa de nossos males! Aqui uma homologia com algumas práticas
do ideário “religioso”. A mercadoria, como o “diabo”, virou ponto de convergência de
nossas mazelas, de nossos infortúnios: deslocamos de nós por extrojeção e introduzimos
na mercadoria e no “diabo” pela projeção.

159
Considero a junção dos métodos fenomenológicos e semióticos em comum com a
Pragmática. Talvez não seja à toa que está disciplina Filosófico-Lingüística desenvolveu-se após a
maturidade da Fenomenologia e da Semiótica. Na verdade, fiz Semiose aqui, uma vez que semiologia é
teoria dos signos e, semiose, a análise dum processo através do arsenal explicativo semiótico. De
qualquer modo: os três modelos metódicos correspondem ao Processo Significador Humano e, como
tal, necessariamente interdisciplinar.
Simultaneamente ao ato de projetar à mercadoria algo que não é dela mas que é
significada assim por nós quando estamos no fenômeno ideológico da inversão,
diminuímos nosso potencial. Ao dar à mercadoria e ao “diabo” conteúdos nossos,
esvaziamos nossa subjetividade de sentimentos ruins tal qual numa catarse.
Se a mercadoria e o “diabo” possuem vida própria, independente de nós; nós,
promovidos assim para destituidores profissionais de nós mesmos, além de perdemos o
que foi deslocado, projetado para a mercadoria, adquirimos os predicados da
mercadoria: coisificação, instrumentalidade, valor de troca... O ser humano deveria usar,
mas é mais usado por outros humanos, mas como teme enfrentar os agentes causais,
desloca a causa para a mercadoria! Humanizar a mercadoria implica necessariamente
em desumanizar o ser humano. Humanizar o robô nos filmes de ficção é indício de
mecanizarmos o ser humano: tanto no trabalho produtivo, como nas relações
intersubjetivas.
Assim como pomos esperança na ciência para construir um robô sensível,
humanizado; abdicamos do esforço, do engajamento do auto-desenvolvimento: é
sintoma de falência humana em nossa empreitada de emancipação e auto-construção: É
como se diséssemos: Já que não temos perspectiva de melhora, quem sabe um robô
adquira o que não adquirimos ainda.. ou pior: quem sabe o robô seja o que não pediu
para ser e, nós, sejamos apenas o que temos coragem de ser: reprodutores mecânicos de
formas de vida: viciada, instrumental, corrupta, anti-social e desagregadora!
Somemos a isso a famigerada esperança de dias melhores, mas, espera! Onde?
Aqui? Não! Então no quê? No “além”... nas dimensões paralelas, no invisível “vivo”,
no mundo dos espíritos... Seja qual for a categoria, o esquema é homólogo ao fetiche da
mercadoria, ao “diabo” e ao robô: continuaremos a manipular a imaginação da
construção de dogmas, de castelos (nem de areia são... rsrsr) para um alegria vindoura
esperada, mas não vivida, imaginada mas não tocada... criativamente trabalhada e, no
entanto, inversamente proporcional com o descaso160 para com o sensorial.

Dissertar sobre a mudança de Foco: entre a transformação das condições de


exploração, ou melhor, expropriação epistêmica para a adequação nos estudos dos
conteúdos do currículo vestibular das universidades públicas. Para o capítulo da
Interpretação da Intencionalidade. Associar o primado atual do ensino formal em
detrimento do conteudístico.

Dissertar sobre os métodos sociológicos do conhecimento de Merton no tocante às


demonstrações das direções das determinações entre infra e super estrutura.
160
Em nosso futuro livro, trabalharemos a criatividade na arte, como uma heurística de novas
formas para encantar o mundo, porém, com a participação gerativa, e não com a espera estática do
“mundo” gerado por nós que, só por isso deve estar fora de nós (o fenômeno da alienação gerando a
independência absoluta na conseqüente alteridade psíquica).. sensorialmente falando. A arte opera
também miticamente, magicamente.. o problema não está na operatividade em si mesma, mas nas
explicações delirantes quando dogmáticas e nas dissimulações intencionais nas comunicações e práticas
injustas.
Dissertar sobre Perelman e a questão do primado da antecedência axiológica em
relação à teoria do conhecimento (sujeito/objeto conhecimento verdade critério) e
ontologia (semântica, predicação, categorias).

Consciência das relações, consciência do processo formador, ciências das


medidas corretivas e profiláticas de desconstrução interna e externa: via linguagem e
ação.

(...) a argumentação pode conferir a elementos que normalmente estão


distantes no tempo uma simultaneidade que nasce na inserção deles
num sistema de fins e de meios, de projetos e obstáculos. Estes aí se
tornam incompatíveis porque esse sistema encaixa, de certo modo,
num momento único o que pertencia a cadeias de pensamento
isoladas, espalhadas no tempo. (PERELMAN, 1997: 387).

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