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UM MAPA DA IDEOLOGIA

Slavoj Zizek

Parece mais fácil imaginar o “fim do mundo” que uma mudança muito mais
modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o “real” que de
algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global...
Assim, pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia qual matriz geradora
que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem
como as mudanças nessa relação.
“Ideologia” pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que
desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças
voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas
relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder político
dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evita-la e deixa de aparecer
onde claramente se esperaria que existisse.
O paradoxo é que a saída da(quilo que vivenciamos como) ideologia é a própria
forma de nossa escravização a ela.
O conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática
“representativista”: a ideologia nada tem a ver com a “ilusão”, com uma representação
equivocada e distorcida de seu conteúdo social. Dito em termos sucintos, um ponto de
vista político pode ser perfeitamente correto (verdadeiro) quanto a seu conteúdo
objetivo, mas completamente ideológico, e inversamente, a ideia que uma visão política
fornece de seu conteúdo social pode revelar-se totalmente equivocada, mas não ter
absolutamente nada de ideológica.
Uma das tarefas da crítica “pós-moderna” da ideologia: nomear, dentro de uma
ordem social vigente, os elementos que apontam para o caráter antagônico do sistema e,
desse modo, “nos alienam” da evidencia de sua identidade estabelecida.
Uma ideologia não é necessariamente “falsa”: quanto a seu conteúdo positivo,
ela pode ser “verdadeira”, muito precisa, pois o que realmente importa não é o conteúdo
afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura
subjetiva envolvida em seu próprio processo de enunciação. Estamos dentro do espaço
ideológico, propriamente dito no momento em que esse conteúdo – “verdadeiro” ou
“falso” (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico”) – é funcional com
respeito a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração”) de maneira
intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de
dominação tem que permanecer oculta.
Deve-se interpretar essa própria multiplicidade de determinações da ideologia
como um indicador de diferentes situações históricas concretas – ou seja, deve-se
considerar aquilo a que Althusser, em sua fase autocrítica, referiu-se como o “caráter
tópico do pensamento”, a maneira como um pensamento se inscreve em seu objeto, ou
como diria Derrida, a maneira como a própria moldura é parte do conteúdo enquadrado.
Hegel distinguiu três momentos: doutrina, crença e ritual; assim, fica-se tentado
a distribuir em torno desses três eixos a multiplicidade de ideias associadas com o termo
“ideologia”: a ideologia como um complexo de ideias (teorias, convicções, crenças,
métodos de argumentação); a ideologia em seu aspecto externo, ou seja, a materialidade
da ideologia, os AIE, e por fim, o campo mais fugidio, a ideologia “espontânea” que
atua no cerne da própria “realidade social”. Tríade hegeliana do Em-si/Para-si/Em-si-e-
Para-si.
1 Temos a ideologia “em si”: destinada a nos convencer de sua “veracidade”,
mas na verdade, servindo a algum inconfesso interesse particular do poder. A
modalidade da crítica da ideologia que corresponde a essa noção é a da leitura sintomal:
o objetivo da crítica é discernir a tendenciosidade não reconhecida do texto oficial,
através de suas rupturas, lacunas e lapsos.
Michel Pêcheux, que deu um toque estritamente linguístico à teoria da
interpelação de Althusser. Seu trabalho centra-se nos mecanismos discursivos que
geram a “evidencia” do Sentido. Ou seja, um dos estratagemas fundamentais da
ideologia é a referência a alguma evidencia.
2 “Para si”, para a ideologia em sua alteridade-externalização, momento
sintetizado pela noção althusseriana de AIE, que apontam a existência material da
ideologia nas práticas, rituais e instituições ideológicos.
A contrapartida Foucaultiana dos AIE são os processos disciplinares que
funcionam no nível do “micropoder” e designam o ponto em que o poder se inscreve
diretamente no corpo, contornando a ideologia – razão, por que, justamente, Foucault
nunca usa o termo “ideologia” a propósito desses mecanismos de micropoder. Esse
abandono da problemática da ideologia acarreta uma deficiência fatal na teoria de
Foucault.
A vantagem de Althusser em relação a Foucault parece evidente. Althusser
procede exatamente no sentido inverso – desde o começo, concebe esses
microprocessos como partes dos AIE, ou seja, como mecanismos que, para serem
atuantes, para “captarem” o indivíduo, sempre já pressupõem a presença maciça do
Estado, a relação transferencial do indivíduo com o poder do Estado, ou – nos termos de
Althusser – com o grande Outro ideológico em quem se origina a interpelação.
3 “Refletida em si mesma”: o que ocorre é a desintegração, autolimitação e
autodispersão da noção de ideologia. A ideologia deixa de ser concebida como um
mecanismo homogêneo que garante a reprodução social, como o “cimento” da
sociedade, e se transforma numa “família” wittgensteiniana de processos vagamente
interligados e heterogêneos, cujo alcance é estritamente localizado.
Uma das principais razões para o abandono progressivo da noção de ideologia:
de algum modo, essa noção torna-se “forte demais”, começa a abarcar tudo, inclusive o
terreno sumamente neutro e extra-ideológico que supostamente fornece o padrão pelo
qual podemos medir a distorção ideológica.

1 Mensagens numa garrafa

2 Adorno, pós-estruturalismo e a crítica da identidade

3 A crítica da razão instrumental

4 O estádio do espelho como formador da função do Eu

5 Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado


Para existir, toda formação social, ao mesmo tempo que produz, e para poder
produzir, tem que reproduzir as condições de sua produção. Portanto, tem que
reproduzir:
1 as forças produtivas;
2 as relações de produção existentes;
A reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução de sua
qualificação, mas também, ao mesmo tempo, uma reprodução de sua submissão às
regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução de sua submissão à ideologia
vigente, para os trabalhadores, e uma reprodução da capacidade de manipular
corretamente a ideologia dominante, para os agentes da exploração e da repressão, a fim
de que também eles assegurem “com palavras” a dominação da classe dominante.
Em outros termos, a escola (além de outras instituições de Estado, como a Igreja,
ou outros aparelhos, como o Exército) ensina a “habilidade”, mas sob formas que
assegurem a sujeição à ideologia dominante ou o domínio de sua “prática”. Todos os
agentes da produção, da exploração e da repressão, para não falar dos “profissionais da
ideologia” (Marx), devem, de um modo ou de outro, estar “impregnados” dessa
ideologia, a fim de cumprir “conscienciosamente” suas tarefas – as tarefas dos
explorados (os proletários), dos exploradores (os capitalistas), dos auxiliares da
exploração (os administradores) ou dos sacerdotes da ideologia dominante (seus
funcionários) etc.
O Estado, portanto, é antes de tudo o que os clássicos marxistas chamaram de
Aparelho de Estado. Esse termo significa: não apenas o aparelho especializado (no
sentido estrito) cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática
jurídica, isto é, a polícia, os tribunais e os presídios, mas também o exército, que
intervém diretamente (o proletariado pagou com seu sangue essa experiência) como
força repressora suplementar em última instancia, quando a polícia e seus corpos
auxiliares especializados são “superados pelos acontecimentos”; e acima desse
conjunto, o chefe de Estado, o governo e a administração.
Que são os AIEs?
Eles não se confundem com o Aparelho Repressivo de Estado. O “repressivo”
sugere que o Aparelho de Estado em questão “funciona pela violência”.
Daremos o nome de AIE a um certo número de realidades que se apresentam ao
observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Delas
propomos uma listagem empírica.
- o AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas);
- o AIE escolar (o sistema das diferentes escolas, públicas e particulares);
- o AIE familiar;
- o AIE jurídico;
- o AIE político (o sistema político, incluindo os diferentes partidos);
- o AIE sindical;
- o AIE da informação (imprensa, rádio e televisão);
- o AIE cultural (literatura, artes, esportes);
Enquanto o ARE pertence inteiramente ao domínio público, a grande maioria
dos AIE pertence, ao contrário, ao domínio privado.
Não importa se as instituições em que eles se materializam são públicas ou
privadas. O importante é como funcionam.
O ARE funciona pela violência, ao passo que os AIE funcionam pela ideologia.
Trata-se do fato de que o ARE funciona maciça e predominantemente pela
repressão (inclusive a repressão física), e secundariamente pela ideologia.
Como se assegura a reprodução das relações de produção? Ela é assegurada pela
superestrutura jurídico-política e ideológica.
O papel do ARE, na medida em que ele é um aparelho repressor, consiste
essencialmente em assegurar, através da força, as condições políticas de reprodução das
relações de produção que são, em última instancia, relações de exploração. Não só o AE
contribui para grande parte de sua própria reprodução, como também, e acima de tudo,
o AE assegura, através da repressão, as condições políticas de atuação dos AIE.
É a intermediação da ideologia dominante que assegura uma “harmonia” (às
vezes tensa) entre o ARE e os AIE, e também entre os diferentes AIE.
O AIE que se instalou na posição dominante nas formações sociais capitalistas
maduras, em decorrência de uma violenta luta política e ideológica de classes contra o
antigo AIE dominante, foi o AI escolar.
Ele é tal silencioso. Trata-se da escola.
Ele pega crianças de todas as classes desde a tenra idade escolar e, durante anos
– os anos em que a criança está mais “vulnerável”, espremida entre o Aparelho de
Estado familiar e o Aparelho de Estado escolar -, martela em sua cabeça, quer utilize
métodos novos ou antigos, uma certa quantidade de “saberes” embrulhados pela
ideologia dominante ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro.
Tao pequena é a desconfiança deles que sua própria dedicação contribui para a
manutenção e a alimentação dessa representação ideológica da escola, que a torna hoje
tão “natural”, indispensável/útil e até benéfica para nossos contemporâneos, quanto a
Igreja era “natural”, indispensável e generosa para nossos ancestrais de alguns séculos
atrás.
Quando Marx retomou o conceito, a ideologia é o sistema de ideias e
representações que domina a mente de um homem ou de um grupo social.
A ideologia não tem história.
Em A ideologia alemã, portanto, a tese de que a ideologia não tem história é uma
tese puramente negativa, pois significa:
1 que a ideologia não é nada, na medida em que é puro sonho (fabricado sabe-se
lá por qual poder, ou pela alienação da divisão do trabalho, mas também essa é uma
determinação negativa);
2 que a ideologia não tem história, o que não significa, decididamente, que nela
não haja história (muito pelo contrário, pois ela é meramente o reflexo pálido, vazio e
invertido da história real), mas que ela não tem uma história própria.
TESE 1: a ideologia representa a relação imaginaria dos indivíduos com suas
condições reais de existência.
A natureza imaginária dessa relação é que subjaz a toda a deformação imaginária
que se pode observar (quando não se vive em sua verdade) em qualquer ideologia.
TESE 2: a ideologia tem uma existência material.
Uma ideologia existe sempre num aparelho e em sua pratica ou práticas. Essa
existência é material.
1 não existe pratica, a não ser através de uma ideologia, e dentro dela;
2 não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos;
Tese central: a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos.
A categoria sujeito só é constitutiva de qualquer ideologia na medida em que
toda ideologia tem a função (que a define) de “constituir” indivíduos concretos como
sujeitos.
A ideologia em geral. A dupla estrutura especular da ideologia garante,
simultaneamente:
1 a interpelação dos indivíduos como sujeitos;
2 sua sujeição ao Sujeito;
3 o reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, o reconhecimento dos
sujeitos entre si e, por último, o reconhecimento de si mesmo pelo sujeito;
4 a garantia absoluta de que tudo realmente é assim e de que, desde que os
sujeitos reconheçam o que são e se comportem consonantemente, tudo ficará bem:
“amém – assim seja”.

6 O mecanismo do (des)conhecimento ideológico


(a) Enfatizo as “condições ideológicas da reprodução/transformação das
relações de produção” porque o campo da ideologia não é, de modo algum, o
único elemento em que se dá a reprodução/transformação das relações de
produção de uma formação social;
(b) Ao escrever “reprodução/transformação”, pretendo designar o caráter
intrinsecamente contraditório de qualquer modo de produção que se baseie
numa divisão em classes, isto é, cujo “princípio” seja a luta de classes.

7 Determinismo e indeterminismo na teoria da ideologia


A principal tarefa da ideologia é construir a subjetividade humana; logo, “buscar
a estrutura do universo ideológico é buscar as dimensões da subjetividade humana”.

8 As novas questões da subjetividade


As ideologias dominantes precisam ser resgatadas de sua conversão em teses,
seja por proponentes, seja por opositores. Devem ser desenvolvidas como hipóteses de
pesquisa empírica. Tanto quanto me é possível dizer, AHT tem toda razão de rejeitar a
ideia de que haja doutrinas normativas universalmente difundidas regendo o
comportamento dos membros das sociedades desenvolvidas. Nesse aspecto, a
abordagem comparativa parece ser a mais fecunda. Nas sociedades complexas, a
maneira mais fácil de descobrir o que é consiste numa comparação com aquilo que
existe ou existiu em outros lugares.

9 A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental


Todas as formas de consciência de classe são ideológica, mas algumas, por
assim dizer, são mais ideológicas do que outras.
A ciência, a verdade ou a teoria, em outras palavras, já não devem ser
estritamente contrapostas à ideologia; ao contrário, são apenas “expressões” de uma
determinada ideologia de classe, a visão de mundo revolucionária da classe
trabalhadora. A verdade é apenas a sociedade burguesa tomando consciência de si como
um todo, e o “lugar” onde ocorre esse momentoso evento é a autoconscientização do
proletariado. O proletariado é o protótipo da mercadoria, obrigado a vender sua força de
trabalho para sobreviver, ele pode ser visto como a “essência” de uma ordem social
baseada no fetichismo da mercadoria.
As classes sociais não expressam ideologias da mesma maneira como os
indivíduos exibem um estilo particular de andar; a ideologia é, antes, um campo de
sentido complexo e conflitivo, no qual alguns temas são estreitamente vinculados à
experiência de determinadas classes, enquanto outros são mais “soltos”, puxados ora pra
cá, ora pra lá, na luta entre os poderes em disputa. A ideologia é um campo de
contestação e negociação em que há um constante tráfego pesado: os sentidos e valores
são roubados, transformados e apropriados pelas fronteiras das diferentes classes e
grupos, cedidos, reapropriados e remodelados.
A hegemonia, portanto, não é apenas um tipo bem-sucedido de ideologia, mas
pode ser decomposta em seus vários aspectos ideológicos, culturais, políticos e
econômicos. A ideologia refere-se especificamente ao modo como as lutas pelo poder
são travadas no nível da significação; e, embora essa significação esteja presente em
todos os processos hegemônicos, ela não é, na totalidade dos casos, o nível dominante
pelo qual a norma é mantida.
Como se pode combater um poder que se tornou o “senso comum” de toda uma
ordem social, em vez de ser amplamente percebido como alheio e opressor?
Williams reconhece o caráter dinâmico da hegemonia, em contraste com as
conotações potencialmente estáticas da “ideologia”: a hegemonia nunca é uma
conquista de uma vez por todas, mas “tem que ser continuamente renovada, recriada,
defendida e modificada”.
Em termos muito gerais, portanto, poderíamos definir a hegemonia como toda
uma gama de estratégias práticas mediante as quais um poder dominante obtém,
daqueles a quem subjuga, o consentimento em sua dominação.
Em qualquer “bloco histórico”, comenta Gramsci, as forças materiais são o
“conteúdo” e as ideologias, a “forma”.
O termo ideologia, aqui é usado em seu sentido mais elevado, de uma concepção
de mundo que está implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade econômica
e em todas as manifestações da vida individual e coletiva.
Essa “visão de mundo” solda um bloco social e político, como um princípio
unificador, organizador e inspirador, e não como um sistema de ideias abstratas.
A ideologia marca o ponto em que a linguagem é desviada de sua forma
comunicativa pelos interesses de poder que incidem sobre ela. Mas esse cerco da
linguagem pelo poder não é apenas uma questão externa: ao contrário, tal dominação
inscreve-se no interior de nossa fala, de modo que a ideologia converte-se num conjunto
de efeitos inerentes aos próprios discursos particulares.

10 Feminismo, ideologia e desconstrução: uma visão pragmática


Indagar se os feministas podem manter a noção de “crítica da ideologia” sem
invocar a distinção entre “matéria” e “consciência” exposta em A ideologia alemã.
Eagleton rejeita a frequente sugestão de que esse termo tornou-se mais problemático do
que merece, e oferece o seguinte à guisa de definição: “ideias e crenças que contribuem
para legitimar os interesses de um grupo ou classe dominante, especificamente através
da distorção e da dissimulação”. Como alternativa, ele sugere “crenças falsas ou
enganosas” que brotam, “não dos interesses de uma classe dominante, mas da estrutura
material da sociedade como um todo”.

11 Ideologia, política e hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe


Laclau conclui que as categorias de ideologia e desconhecimento podem ser
preservadas, mas invertendo-se seu conteúdo tradicional: ele sugere que o ideológico
não consistiria no desconhecimento de uma essência positiva [numa ilusão quanto aos
verdadeiros interesses de classe, por exemplo], mas exatamente no oposto: consistiria
no não-reconhecimento do caráter precário de qualquer positividade, da impossibilidade
de qualquer sutura última.

12 A doxa e a vida cotidiana: uma entrevista


Bordieu – Tendo a evitar a palavra “ideologia”, porque, como seu próprio livro
mostra, ela tem sido mal utilizada com muita frequência, ou usada de maneira muito
vaga. Parece transmitir uma espécie de descrédito. Descrever uma afirmação como
ideologia, é muitas vezes, um insulto, de modo que essa própria designação torna-se um
instrumento de dominação simbólica. Procurei substituir o conceito de ideologia por
conceitos como “dominação simbólica”, “potência simbólica” ou “violência simbólica”,
para tentar controlar alguns dos usos a que ele fica sujeito.
Eagleton – Creio haver razoes, hoje em dia, pelas quais o conceito de ideologia
parece supérfluo ou redundante. Tento igualmente examiná-las em meu livro. Umas
delas é que a teoria da ideologia parece depender de um conceito de representação.
Outra razão é que hoje, muitas vezes, tem-se a sensação de que, para identificar uma
forma de pensamento como ideológica, seria preciso dispor de uma espécie de acesso à
verdade absoluta. Se a ideia de verdade absoluta é contestada, o conceito de ideologia
parece desmoronar com ela.
Há outras duas razoes por que a ideologia aparece já não ser um conceito da
moda. Uma é o que se chamou “falsa consciência esclarecida”; em outras palavras,
numa era pós-moderna, a ideia de que simplesmente funcionamos pautados na falsa
consciência é simplista demais: as pessoas, na verdade, estão muito mais cínicas ou
astutamente cônscias de seus valores do que isso sugeriria. Por fim, existe a tese de que
o que mantem o sistema em funcionamento é menos a retórica ou o discurso do que,
digamos, sua própria logica sistêmica: a ideia de que o capitalismo tardio funciona por
si, de que já não precisa passar pela consciência para ser validado, de que garante, de
algum modo, sua própria reprodução.
Bourdieu – Althusser e os que foram influenciados por ele fizeram um uso
simbólico muito violento desse conceito. Usaram-no como uma espécie de noção
religiosa, pela qual se deveria ascende gradativamente à verdade, sem nunca ter certeza
de haver alcançado a verdadeira teoria marxista. O teórico estava habilitado a dizer:
“você é um ideólogo”. Por exemplo, Althusser referia-se depreciativamente às
“chamadas ciências sociais”. Era um modo de tornar visível uma espécie de separação
invisível entre o verdadeiro conhecimento – detentor da ciência – e a falsa consciência.
Isso, penso eu, é muito aristocrático, na verdade, uma das razoes de eu não gostar da
palavra “ideologia” é o pensamento aristocrático de Althusser.
Falou-se demais em consciência, demais em termos de representação. O mundo
social não funciona em termos de consciência; ele funciona em termos de práticas,
mecanismos e assim por diante. Ao usarmos a doxa, aceitamos muitas coisas sem
conhece-las, e é a isso que se chama ideologia. Ao meu ver, devemos trabalhar com
uma filosofia da mudança. Devemos afastar-nos da filosofia cartesiana presente na
tradição marxista, em direção a uma filosofia diferente, na qual os agentes não estejam
visando conscientemente às coisas nem sejam erroneamente guiados por representações
falsas.
A doxa implica um conhecimento, um conhecimento prático. Os trabalhadores
sabem uma porção de coisas: mais do que qualquer intelectual, mais do que qualquer
sociólogo. Mas, em certo sentido, não sabem, porque lhes falta o instrumento para
apreender isso, para falar disso.

13 O pós-modernismo e o mercado

14 Como Marx inventou o sintoma?


Essa, provavelmente, é a dimensão fundamental da “ideologia”: a ideologia não
é simplesmente uma “falsa consciência”, uma representação ilusória da realidade, antes,
é essa mesma realidade que já deve ser concebida como “ideológica”: “ideológica” é
uma realidade social cuja própria existência implica o não-conhecimento de sua
essência por parte de seus participantes, ou seja, a efetividade social cuja própria
reprodução implica que os indivíduos “não sabem o que fazem”. “Ideologia” não é falsa
consciência de um ser (social), mas esse próprio ser, na medida em que ele é sustentado
pela “falsa consciência”. Dimensão do sintoma, pois uma de suas definições possíveis
seria, igualmente, “uma formação cuja própria consistência implica um certo não-
conhecimento por parte do sujeito”: o sujeito só pode “gozar com seu sintoma” na
medida em que sua lógica lhe escapa – a medida do sucesso da interpretação do sintoma
é, precisamente, sua dissolução.
Esse processo implica, pois, uma certa lógica da exceção: todo Universal
ideológico – por exemplo, a liberdade, a igualdade – é “falso”, na medida em que
necessariamente inclui um caso específico que rompe sua unidade, que expõe sua
falsidade. A liberdade, por exemplo: é uma noção universal que abrange várias espécies
(liberdade de fala e de imprensa, liberdade de consciência, liberdade de comercio,
liberdade política, etc.), mas também, por uma necessidade estrutural, uma liberdade
especifica (a de o trabalhador vender livremente sua força de trabalho no mercado), que
subverte essa noção universal. Ou seja, essa liberdade e o próprio oposto da liberdade
efetiva: ao vender “livremente” sua força de trabalho, o trabalhador perde sua liberdade
– o conteúdo real desse livre ato de venda é a escravização do trabalhador ao capital. O
aspecto crucial, é claro, é que essa liberdade paradoxal, a forma de seu oposto, é
precisamente o que fecha o círculo das “liberdades burguesas”.
Onde se situa a ilusão ideológica, no “saber” ou no “fazer” na própria realidade?
À primeira vista, a resposta parece óbvia: a ilusão ideológica reside no “saber”. A
questão é a discordância entre o que as pessoas efetivamente fazem e o que pensam
estar fazendo – a ideologia consiste no próprio fato de as pessoas “não saberem o que
estão realmente fazendo”, de terem uma representação falsa da realidade social a que
pertencem (sendo a distorção produzida, é claro, por essa mesma realidade”. O clássico
exemplo marxista, o dinheiro.
Mas essa leitura da formulação marxista deixa de lado uma ilusão, um erro, uma
distorção que já está em funcionamento na própria realidade social, no nível daquilo que
os indivíduos fazem, e não do que pensam ou sabem estar fazendo. Quando os
indivíduos usam o dinheiro, eles sabem muito bem que não há nada de magico nisso –
que o dinheiro, em sua materialidade, é simplesmente uma expressão das relações
sociais. A ideologia cotidiana espontânea reduz o dinheiro a um simples sinal que dá ao
indivíduo que o possui o direito a uma certa parte do produto social. Assim, no plano do
dia-a-dia, os indivíduos sabem muito bem que há relações entre as pessoas por trás das
relações entre as coisas. O problema é que, em sua atividade social, naquilo que fazem,
eles agem como se o dinheiro, em sua realidade material, fosse a encarnação imediata
da riqueza como tal.
A ilusão portanto, é dupla: consiste em passar por cima da ilusão que estrutura
nossa relação real e efetiva com a realidade. E essa ilusão desconsiderada e inconsciente
é o que se pode chamar de fantasia ideológica.
Em sua teoria dos AIE, Althusser forneceu uma elaborada versão contemporânea
dessa “maquina” pascaliana; mas o ponto fraco de sua teoria é que ele ou sua escola
nunca conseguiram discernir o vínculo entre os AIE e a interpelação ideológica: como é
que o AIE (a máquina pascaliana, o automatismo significante) se “internaliza”? a
resposta a isso, como vimos, é que essa “máquina” externa dos AE só exerce sua força
na medida em que é vivenciada, na economia inconsciente do sujeito, como uma
injunção traumática e sem sentido.

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