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A Cruz e a Estrela
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Uma breve análise da Inquisição moderna e seu
insaciável apetite pelos bens
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de judeus e cristãos-novos
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DANIEL DE OLIVEIRA VIANNA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
A Cruz e a Estrela
Uma breve análise da Inquisição moderna e seu insaciável apetite pelos bens
de judeus e cristãos-novos
TERESINA
2017
DANIEL DE OLIVEIRA VIANNA
A Cruz e a Estrela
Uma breve análise da Inquisição moderna e seu insaciável apetite pelos bens
de judeus e cristãos-novos
TERESINA
2017
DANIEL DE OLIVEIRA VIANNA
A Cruz e a Estrela
Uma breve análise da Inquisição moderna e seu insaciável apetite pelos bens
de judeus e cristãos-novos
Aprovada em
______\______\2017.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Fonseca dos Santos Neto(Orientador)
Universidade Federal do Piauí
________________________________________________________
Prof. Dr. Johny Santana de Araújo (Examinador)
Universidade Federal do Piauí
________________________________________________________
Prof. Me. Maria do Socorro Rangel (Examinador)
Universidade Federal do Piauí
Para São Judas Tadeu.
Agradecer definitivamente não e fácil. É difícil ser honesto e sincero sem ser
lisonjeador, subserviente ou hipócrita quando se agradece por um trabalho feito nas
madrugadas, a maior parte do tempo sozinho. Mas nas sombras das madrugadas de solidão
haviam luzes que me inspiravam, e algumas me ajudaram bastante, materialmente e
moralmente. Seria ingratidão de minha parte não citar meus professores Dr. João Kennedy
Eugênio, que foi o primeiro a me incentivar a escrever sobre a inquisição, e Dr. Johny Santana
de Araújo, um homem cuja a paixão pela História contagia até o mais frio Físico Quântico e que
me foi uma das maiores fontes de inspiração e amor à História. Amigos de primeira e ultima hora
também me vêm à cabeça quando penso em agradecimentos. Lucas, sempre sólido e lúcido em
seus comentários; Júlio César, um grande menino que se tornou um homem, sempre pronto a
ouvir e ajudar (obrigado pelo livro da Novinsky); Leonardo, parceiro do início ao fim da
jornada, amigo de horas incertas e fiel confidente (obrigado pela "Bíblias"). Agradeço de
forma especial à minha esposa, Luiza, que está a mais de dez anos me apoiando, resistindo à
minha excentricidade e sendo meu esteio nos momentos mais difíceis da minha vida.
Agradeço também ao meu filho, Gabriel, por existir e acreditar em mim, e ao meu irmão,
Leonardo, mão amiga e ouvido aberto aos meus inúmeros problemas. Por fim, agradeço à
Prof. Me. Maria do Socorro Rangel pelo apoio e incentivo e ao ilustre Prof. Dr.
Antônio Fonseca dos Santos Neto por ter aceito meu pedido de orientação na ultima hora e ter
me dado condições de concluir este trabalho.
Não sou um exemplo de fé, mas agradeço a São Judas Tadeu o milagre que ajudou a concluir
este trabalho.
RESUMO
ABSTRACT
In this work we make a brief survey of the History of the establishment and operation of
the Court of the Holy Office in the Iberian Peninsula from the fifteenth century until the
end of the Union of Crowns and his preferred share against the Jews and new Christians
in this period. Being the Inquisition an institution that crossed almost five centuries, its
study must take place in phases, since there were several contexts in which it acted. But
the point that unites all these phases is the persecution of this specific ethnic group, and
we intend to demonstrate this in our work.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12
CONCLUSÃO............................................................................................................... 93
INTRODUÇÃO
de Ceuta pelos portugueses em 1415 inaugurara uma nova etapa nas navegações e rotas
comercias da Europa, mais precisamente do Mediterrâneo. A Coroa portuguesa
centralizou suas decisões políticas e econômicas, tomando para si os negócios e
impondo monopólios régios nas transações mercantis. Mas novas redes comerciais
europeias surgiram em consequência da ação que os mercadores europeus,
principalmente os judeus, teceram na Baixa Idade Média, e seu entrosamento com o
negócio dos metais nobres e da moeda, conforme afirma Marques de Almeida,
considerando os trabalhos de Braudel para a compreensão do capitalismo 2. No entender
de Marques de Almeida, os mercadores judeus valeram-se da usura, o comércio de larga
distância, as cadeias familiares e da lenta acumulação de patrimônio e honras da
sociedade feudal para emergir em uma economia monetarizada. Os judeus em Portugal,
na Idade Média, se fortaleceram em termos econômicos, permitindo que se destacassem
e participassem como financiadores da expansão ultramarina e das atividades mercantis
que dela derivaram, conforme apontam os estudos de Maria José Pimenta Ferro3.
Foi com o desenvolvimento dos meus estudos na disciplina de História
Moderna, me deparei com a Inquisição de uma forma nova e instigante que para mim
foi o estopim para um desenrolar de descobertas que me enredei de bom grado e com
muito entusiasmo. O assunto Inquisição, primeiramente, me despertou certa curiosidade
e interesse pela sua atuação no Brasil na ocasião de suas 3 visitações à então colônia
portuguesa, principalmente a primeira4, e sem nenhuma relação, a princípio, com as
navegações ou com o comércio que se desenvolvia simultaneamente ao surgimento do
Santo Ofício. Comecei então, ainda no ano de 2014, um longo e solitário caminho em
busca dos processos oriundos destas visitações, por mera curiosidade sobre o tema e
sempre na esperança de encontrar uma personagem histórica que me despertasse o
interesse e me instigasse a pesquisar mais sobre ela, sem nenhum compromisso
acadêmico a princípio. Já havia lido as teses de Adriana Romeiro e Plínio Freire Gomes
sobre as peripécias e devaneios teológicos de Pedro de Rates Henequim, sugeridas pelo
meu docente da disciplina de História Moderna, Professor João Kennedy, e havia me
2
apud ALMEIDA, A. A. Marques de., 1993.
3
TAVARES, Maria José Pimenta Ferro; 2000.
4
Salvador, 50 anos depois de fundada, possuía por volta de 800 vizinhos brancos e três vezes mais negros
e índios, quando no ano do Senhor de 1591 desembarca em seu porto inesperado visitante: o Licenciado
Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição. A notícia de tão temível visita
deve ter-se alastrado a trote de cavalo pelos mais de 40 engenhos espalhados pelo Recôncavo, deixando a
população em palpos de aranha. Afinal todos sabiam que a Inquisição tinha poderes quase tão ilimitados
quanto o próprio Rei, só que as justiças reais enforcavam ou degolavam seus criminosos mais graves,
enquanto o Santo Ofício encaminhava- os à fogueira. (MOTT, 2010,p. 294 )
14
encantado ainda mais com o tema, embora na confusa vida de Henequim, a Inquisição
tenha sido apenas uma coadjuvante, aquela que findaria seus devaneios e peripécias. As
teses teológicas de Henequim o levaram à fogueira da Inquisição em 1744, mas o
mesmo já havia sido bem biografado e bem estudado no Brasil e em Portugal de forma
que as duas vertentes de sua história, tanto a que ele morre em decorrência de seus
devaneios teológicos por ação imediata da Inquisição, quanto a que ele se envereda por
uma conspiração política com a intenção de proclamar a independência da colônia
brasileira de Portugal e coroar rei do Brasil o infante D. Manuel (1741-1744), estavam
muito bem contadas nas obras dos autores que eu havia lido (Adriana Romeiro: Um
visionário na corte de D. João V - Revolta e milenarismo nas Minas Gerais; Pedro
Vilas Boas Tavares: Pedro Henequim protomártir da separação (+1744). O Brasil e a
sua coroa imperial na "teologia da história" de um visionário). Restava-me então
continuar minha busca nos arquivos por uma personagem nova tão fascinante e cheia de
nuances como o imprevisível e inusitado português filho de pai holandês protestante e
mãe católica portuguesa e educado pela igreja, Pedro de Rates Henequim.
Em pouco mais de um mês de pesquisa nos arquivos digitais da Torre do Tombo,
acabei por juntar cerca de 300 processos. Percebi então que, embora não tivesse
encontrado o retrato pronto ou a personagem da Inquisição que eu tanto procurara e
idealizara no início de minha busca, tinha em mãos agora um mosaico desorganizado
das várias faces desta instituição que se moldou no século XVI e se aperfeiçoou no
decorrer do século XVII, e chegou ao apogeu no século XVIII, moldando
comportamentos e costumes durante praticamente toda a modernidade. Meus 300
processos, e os chamo de "meus" pela relação de intimidade que adquiri com os réus e
personagens citados no decorrer das leituras e interpretações destes durante longas
madrugadas de solidão, se tornaram fonte de uma pesquisa estatística que demonstrou a
clara preferência da Inquisição pelos Cristãos Novos visando, mais do que qualquer
outra coisa, seus bens. E então estes processos passaram a ser a base de um
levantamento mais refinado que me conduziu ao estudo da perseguição do Tribunal do
Santo Ofício à este grupo específico de pessoas em Portugal nos séculos XVI e XVII,
com apoio ou a conivência da Coroa, visando os bens desses que eram donos de um
percentual significativo da economia ibérica de então.5 Como diz Antônio José Saraiva,
5
A importância dos cristãos-novos para a economia nacional foi reconhecida pelos portugueses mais
esclarecidos, que advertiam os dirigentes sobre os prejuízos causados pelas perseguições. Quem mais se
empenhou em responsabilizar a Inquisição pelo desastre econômico de Portugal <no século XVII> foi o
15
"o confisco dos bens dos cristãos-novos era disputado com o Rei, cujo tesouro vivia
sempre na penúria".6 Tanto para o Tribunal do Santo Ofício quanto para a coroa
portuguesa, estes bens dos cristãos-novos eram indispensáveis para sua manutenção e
para suas empreitadas mercantis em determinado tempo histórico.
Mas os números e a conjuntura política e econômica do momento histórico
estudado mostra que a busca do Tribunal por bens dos cristãos novos visava também a
desconstrução e apropriação de uma rede comercial que se formara entre os judeus da
península Ibérica e, após a expulsão destes da Espanha pelos Reis Católicos, de
Amsterdã, em plena guerra entre Holanda e Espanha. Uma vez que as coroas Ibéricas
estavam unidas por Felipe II, a função de tentar impor certo controle às redes mercantis,
de fiscalizar e combater os laços comerciais e culturais, assim como a apropriação dos
bens dos judeus portugueses nessa trama seria responsabilidade da Inquisição
portuguesa, agindo em sincronia com a Coroa espanhola.
padre Antônio Vieira, que sabia o quanto os portugueses cristãos-novos atuavam no mundo financeiro por
intermédio de seus agentes e suas redes internacionais. Numa época em que os contatos eram difíceis, os
cristãos-novos faziam seus negócios muitas vezes baseados na confiança, ligados a membros de uma
mesma família, estabelecidos em diversos pontos estratégicos da Europa e América. Além das propostas
dirigidas ao rei D. João IV sobre a crise portuguesa, Vieira ainda procurou, junto ao papa, golpear a
Inquisição. O Tribunal foi suspenso por alguns anos, o que não passou de uma farsa, pois suas atividades
logo se reiniciaram, com a perseguição mais feroz de toda sua história. (NOVINSKY, p. 17.)
6
AZEVEDO, J. L., in SARAIVA, 1976., p. 293.
16
CAPÍTULO I
Provérbio Judeu
Ser Judeu
7
AZEVEDO, Carlos Moreira de. DICIONÁRIO DE HISTÓRIA RELIGIOSA DE PORTUGAL, p. 33.
8
Midrash: Interpretação da "Bíblia" hebraica. Os textos da Escritura Sagrada são sempre entendidos e
explicados de maneira nova e diferente. No Judaísmo, há muitos livros nos quais estão reunidas as
diversas “midraschim” (interpretações). Do hebraico = informar-se sobre, procurar na Escritura a
resposta divina. "Talmude". AZEVEDO, op cit. , p. 71.
17
esse povo é Judeu, Hebreu ou Israelita? As três designações, hoje, estariam corretas,
mas cada uma surgiu em um tempo, o que as coloca em certa ordem cronológica.
Vejamos: o primeiro indivíduo a ser chamado de Hebreu segundo a Bíblia foi Abraão.
Mais especificamente quando ainda se chamava Abrão: "Então veio um, que escapara, e
o contou a Abrão, o hebreu; ele habitava junto dos carvalhais de Manre, o amorreu,
irmão de Escol, e irmão de Aner; eles eram confederados de Abrão."(Bereshit/Gênesis
14.13)
As origens geográficas dos Hebreus são confusas. A maior fonte que temos a
este respeito ainda é a Bíblia, mais precisamente os livros do Pentateuco, e analisando-
os encontramos que eles eram de Ur, na Caldeia, terra de Abrão, da qual ele saiu por
ordem de Deus, como relatado no Gênesis. Pode-se dizer que Abraão, historicamente,
deu origem a esse povo. A palavra “hebreu” foi usada para dar nome a ele e a sua
descendência até uma nova palavra aparecer (sem que a anterior desaparecesse),
quando, segundo a Bíblia, Deus mudou o nome do neto de Abraão, Jacó, para Israel.
9
Bereshit/Gênesis 35.9-12
10
Existem versões que contestam a escravidão dos hebreus em um primeiro momento. Segundo algumas
analises, os hebreus teriam se refugiado em um primeiro momento por vontade própria, fugindo da fome
e da seca, no Egito a convite de José, o governador hebreu do reino egípcio. Esse refúgio teria se
transformado em escravidão ao longo dos quatro séculos que durou esta relação.
18
descendentes de Davi. No livro de Ester é que vemos o povo ser chamado pela primeira
vez de judeus, por sua ligação com o reino e por sua fidelidade e devoção à religião de
seus ancestrais, o judaísmo.
11
Ester 1. 1-1b
12
Termo grego que significa “dispersão”. Em sentido restrito, as colônias judaicas situadas fora de Israel.
Em hebraico, empregavam-se os termos gola e galut, tendo o último um sentido pejorativo. Jesus parece
ter sentido interesse por seus compatriotas da diáspora, considerando que pregaria também a eles (Jo
7,35) SAULNIER, C. e ROLLAND, B.; PALESTINA EN TIEMPOS DE JESÚS, Estella 1994.
19
13
DIAS,Eduardo Mayone;"CRIPTOJUDEUS PORTUGUESES" O fim de uma era. 1999
14
Sefarditas (em hebraico ספ י, sefardi; no plural, sefardim) é o termo usado para referir aos
descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha. A palavra tem origem na denominação
hebraica para designar a Península Ibérica (Sefarad ) ספ. Utilizam a língua sefardi, também chamada
"judeu-espanhol" e "ladino", como língua litúrgica. (Em "1492: El Otro Caminho" - Sofia - Bulgária)
[http://www.centropa.org/node/83049] consultado em 03/04/2016
15
AZEVEDO, J.Lúcio de; “HISTÓRIA DOS CRISTÃOS-NOVOS PORTUGUESES”, 1989, p.2.
16
SCHUBART, Hermanfrid; AETEAGA, Oswaldo, 1994, p. 432
17
RODRIGUES, Nuno Simões;"HIPÓTESES PARA O ESTUDO DOS JUDEUS NA HISPÂNIA SOB
OS ANTONINOS", in Actas del II Congresso Internacional de Historia Antigua. La hispânia de los
Antoninos (98 – 180), Valladolid, Universidad de Valladolid, Novembro de 2004, p.418
20
quanto à data em que esse acontecimento se deu, existem menos certezas ainda, embora
hajam várias conjecturas que apontam para diversas épocas.
De entre as várias hipóteses da chegada dos judeus, a que aponta para uma data
mais remota relata a vinda dos primeiros judeus ainda no tempo do reinado de Salomão
(974 A.C. a 937 A.C.)18. Se aceitarmos como válida esta data, seriam os judeus,
portanto, uns dos primeiros antepassados dos portugueses. Outra versão indica o início
da presença judaica na península Ibérica, por volta do reinado de Nabucodonosor II, rei
dos Caldeus, por volta do século VI a. C., quando da fuga dos judeus ao domínio dos
invasores. Por esta vertente, desde a época em que o Rei Nabucodonosor conquistou
Israel19, os hebreus começaram a imigrar para a Península Ibérica. A presença judaica
na península provavelmente cresceu ainda mais durante os séculos II e I A.C., no
período dos judeus Macabeus. Mais tarde, depois de Cristo, no ano 70, o imperador Tito
ordenou a destruição de Jerusalém, determinando assim a expulsão de todo judeu de sua
própria terra, e a península já habitada por judeus seria novamente um destino viável. A
derrota final do povo judeu na Palestina, que ocorreu com Bar Kochba no ano 135 D.C,
já na diáspora propriamente dita, fortaleceria o numero de migrantes para a Europa, e
para a Península Ibérica. A arqueologia recente corrobora com a possibilidade da
existência dos judeus ibéricos, também denominados “sefaradim”, na península, bem
antes do período dos godos, como comprovam as velhas sepulturas hebraicas20 muito
anteriores às leis góticas que já os separavam dos cristãos.
Habitando os territórios lusos muito antes da própria construção da
nacionalidade e da identidade portuguesas, os judeus eram uma presença comum nos
18
DIAS ,Eduardo Mayone;"CRIPTOJUDEUS PORTUGUESES". O fim de uma era; 1999, p. 11.
19
Nabucodonosor conquistou a Palestina em 602 A.C, tomando o reino de Israel e destruindo Jerusalém,
e levou cativos para a Babilônia grande parte da população e em 598 A.C., o rei Joaquim de Judá acredita
na proteção do faraó Neco e se rebela contra ele. Nabucodonosor conquista também o reino de Judá e
coloca as suas províncias sob o seu domínio, sendo que na última revolta, de Zedequias, Nabucodonosor
arrasa Jerusalém (586 A.C.), fura os olhos do rei judeu como vingança a traição e o deixa morrer pelos
ferimentos, sem que recebesse socorro.AHARONI; AVI-YONAH; RAINEY; SAFRAI; 1999, p.123.
20
The recent discovery of a marble plate bearing the Hebrew inscription “Yehiel” in Portugal serves as
the oldest archaeological evidence of Jews in Iberia. Dated sometime before 390 C.B., the two-foot-wide
marble plate appears to be a tomb slab. Discovered in a Roman-era excavation near the city of Silves,
Portugal by archaeologists from the German Friedrich Schiller University Jena, the discovery predates the
previous oldest evidence of Jews in Iberia by nearly a century. (A recente descoberta de uma placa de
mármore com a inscrição hebraica " Yehiel " em Portugal serve como a mais antiga evidência
arqueológica de judeus na Península Ibérica. Datada de algum tempo antes de 390 a.C. , a placa de
mármore de dois pé de largura parece ser uma laje de sepultura. Descoberta em uma escavação de um
sítio da era romana perto da cidade de Silves , Portugal, pelo arqueólogo alemão da Universidade de Jena,
Friedrich Schiller , a descoberta antecede a evidência anterior mais antiga de judeus na Península Ibérica
por quase um século.) Tradução nossa.
Disponível em [http://www.biblicalarchaeology.org/daily/news/hebrew-inscription-provides-oldest-
archaeological-evidence-of-jews-in-iberia/] consultado em 16/03/2016
21
21
"De facto, a sua presença nestes espaços urbanos é comprovada pela referência a judei nas primeiras
cartas de foral, aparecendo estes como habitantes do espaço municipal ao lado dos cristãos e dos mouros
ou em trânsito quando mercadores. O seu número devia ser reduzido, encontrando-se os indivíduos da
minoria espalhados entre os cristãos ou a residir no arrabalde judaico da ex-cidade muçulmana, o qual
viria a ser o embrião da rua da judiaria do conselho cristão. As mais antigas referências não os relacionam
com as comunas, o que também não quer dizer que estas não existissem, pois as aljamas datavam do
período da dominação muçulmana". AZEVEDO, Carlos Moreira de. Dicionário de História Religiosa de
Portugal. Edição n.° 4196, Vol. VII, J-P, p.37.
22
Localizam-se na Beira Interior: Almeida, Castelo Mendo e Castelo Bom (conselho de Almeida),
Sortelha (c. Sabugal), Castelo Rodrigo (c. Figueira de Castelo Rodrigo), Marialva (c. Meda), Linhares da
Beira (c. Celorico da Beira), Belmonte, Trancoso, Castelo Novo (c. Fundão), Idanha-a-Velha e Monsanto
(c. Idanha-a-Nova). A Beira Interior tem limites naturais bem vincados. A norte, é delimitada da região de
22
Trás-os-Montes e Alto Douro, pelas serranias dos vales do Douro e do Côa. A este, os rios Mondego e
Zêzere, e as serras do Açor, da Gardunha e da Lousã, separam-na da Beira Litoral. A sul e a sudoeste, o
rio Zêzere e a serra da Melriça separam-na da Estremadura e Ribatejo. A oeste, as fronteiras com Espanha
são as mesmas desde há mais de sete séculos: os rios Águeda e Erges, e a ribeira dos Tourões, sendo que
em várias partes existe a chamada "raia seca". E, no extremo sul da Beira Interior, o rio Tejo faz a ponte
com o Alentejo.(fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Beira_Interior_(região) consultado em 02/04/2016.
23
SILVA, Manuela Santos; “As cidades (séculos XII-XV)” in “História de Portugal. Portugal Medievo”,
Vol.III, Lisboa, Ediclube, 1993, p. 281
24
MARTINS, Jorge; “ PORTUGAL E OS JUDEUS”. Dos primórdios da nacionalidade à legislação
pombalina, Vol. I, Lisboa, Nova Vega Edições, 2006, p.117
25
Idem, ibidem. p.117
26
TAVARES, 2000, p. 19; MARTINS, 2006, p.152
27
KAYSERLING, 2006, p. 47; Elucidário II, 61, 325 : “Judenga, tributo de 30 Dinheiros que os Judeos
pagavão por cabeça, para lembrança e pena de haverem vendido a Christo por outros tanto”.
23
ódio e inveja28 muito devido à essa prosperidade destoante das condições sociais da
maioria dos cristãos.
Nas localidades pequenas, como as da Beira Interior, se podia constatar uma
maior tolerância e até certa aproximação entre a cultura cristã e a cultura judaica29. Os
motivos desta menor diferenciação nas pequenas vilas não se devia ao fato do não
conhecimento das proveniências culturais ou religiosas umas das outras, mas sim da
necessidade da convivência em locais pobres, em que todos se ajudavam para a mesma
causa. E era de fato essa dificuldade monetária e de comunicação com as grandes
cidades, que fazia com que se tolerassem as diferenças religiosas gerando um tipo de
simbiose entre os grupos, embora ainda que condenada por alguns clérigos das aldeias,
que algumas vezes sugeriam a separação entre judeus e cristãos na vida quotidiana, ou
seja, que não houvesse casamentos entre eles, relações passionais, etc.
É bem provável que judeus e cristãos lutaram juntos na reconquista da península,
ou que, pelo menos, a maioria dos judeus não lutou ao lado dos muçulmanos. Nos
territórios reconquistados era, na maioria das vezes, recorrente e farta a presença de
judeus, o que leva a crer que, ou eles participaram da luta de reconquista ou ali já
residiam mesmo durante o domínio mouro, e não foram resistência à reconquista cristã
de nenhuma forma. Após a Reconquista Cristã os territórios até então governados e
ocupados por muçulmanos deviam ser repovoados imediatamente para não se permitir
novas ocupações de outros povos não ibéricos, já que uma grande maioria dos
moradores tinha sido expulsa ou tinha mesmo fugido da reconquista cristã. Mais um
motivo para se tolerar a permanência dos judeus nessas áreas.
Durante muito tempo, judeus conviveram com vários povos em certa harmonia
na Península Ibérica. Após a conversão dos Visigodos e a expansão do cristianismo no
28
"...os reis nunca deixaram de explorar os judeus com impostos (capitação, judenga)e, muitas vezes, os
usaram como banco supletório para os momentos de crise econômica ou para as empresas de maior vulto.
Da parte do povo cristão houve sempre um certo ressentimento religioso a que não era alheia uma boa
dose de inveja pela habilidade com que os judeus lidavam com dinheiro." DIAS, Geraldo J.A. Coelho, AS
RELIGIÕES DA NOSSA VIZINHANÇA: História, crença e espiritualidade, p.210
29
"Afonso III, que na expressão de um escritor português reconheceu ser a tolerância uma das mais
nobres virtudes, conferiu especialmente após a conquista do Algarve , certos foros às localidades situadas
na região arrebatada aos mouros, não excluindo também os judeus que aí viviam em grande número,
como por exemplo, em Tavira, Faro, houlé - que possuía seu próprio “Val de Judeus” - Silves, Alvor,
Castro Marim, etc. seu sucessor, D. Diniz, concedeu foros a diversas cidades no Algarve, tais como
Aljezur, Cacilhas, Porches, Alcoutim, Gravão, etc. em todas essas localidades havia judeus." Ibidem. p.8
24
Os judeus tinham até certo status entre alguns cristãos como representantes da
antiga lei, a do Antigo Testamento, mas também ao mesmo tempo também estavam
condenados pelo maior crime da história: a crucificação de Cristo. E por este crime
pagariam duras penas. Não são poucas as referências utilizadas pela Igreja dentro do
próprio Testamento Novo, para recriminar e condenar os Judeus. Os clérigos, que além
de não nutrirem grande simpatia pela gente da nação hebreia, uma vez que estes eram,
quando livres de perseguição, prósperos comerciantes, ourives e boticários, ou seja,
gente com dinheiro e que não pagava à igreja o dízimo cobrado de todos os cristãos ou
quaisquer outras contribuições à obra eclesiástica, se utilizaram várias vezes em seus
sermões de passagens como João 8:30-4031 para incitar o ódio e a perseguição aos
30
BURKE, 2010, p.50. grifo nosso
31
" Jesus falava essas coisas, muitos acreditaram nele. Então Jesus disse para as autoridades dos judeus
que tinham acreditado nele: 'Se vocês guardarem minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos;
conhecerão a verdade, e a verdade vos libertará.' Eles disseram:'Nós somos descendentes de Abraão, e
nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer 'vocês ficarão livres'?' Jesus respondeu:'Eu garanto
25
a vocês: quem comete o pecado, é escravo do pecado. O escravo não fica para sempre na casa, mas o filho
fica aí para sempre. Por isso, se o filho os libertar vocês realmente ficarão livres. Eu sei que vocês são
descendentes de Abraão; no entanto, estão procurando me matar, porque minha palavra não entra na
cabeça de vocês. Eu falo das coisas que vi junto ao Pai; vocês também devem falar aquilo que ouvem do
pai de vocês.' As autoridades dos judeus disseram a Jesus:'Nosso pai é Abraão.' Jesus disse:'Se vocês são
filhos de Abraão, façam as obras de Abraão. Agora, porém, vocês querem me matar, e o que eu fiz, foi
dizer a verdade que ouvi junto de Deus. Isso, Abraão nunca fez.'" (Jo 8, 30-40)
32
Embora a tradução comum de "Ha El Shaddai”( י )ח אseja “Deus Todo-Poderoso”, alguns
linguistas contestam tal fato alegando que, conforme o acádico, o correto seria “Deus da Estepe” (ver
Bíblia de Jerusalém – p. 52). Há os que afirmam que “Shaddai” vem do hebraico “shad”, que significa, ao
pé da letra, “seio, mama”. Neste caso, “El Shaddai” seria “o Deus que sustenta”, “o Deus que nutre”, “o
Deus que satisfaz”. Há também aqueles que o façam derivar de uma raiz cujo sentido é “acumular
benefícios ou vantagens”, remetendo à noção de um Deus que beneficia os patriarcas e pastores”. Existem
ainda alguns que vêem em “Shaddai” o significado de “o Deus das Montanhas” (ver Bíblia Vida Nova –
26
muitos traduziram como "Anjo Caído" – o Satã (ver a tradução original da Bíblia,
Gênesis 17:1 "Eu sou o Todo Poderoso"). Se em texto a língua já havia gerado centenas
de equívocos de tradução e interpretação, quem dirá em fala. Não é difícil imaginar
judeus sendo hostilizados por causa de sua língua. A blasfêmia ao Espírito Santo era
pecado gravíssimo e, principalmente em Portugal, Reino abençoado pelo Divino
Espírito Santo, de Reis da Ordem dos Templários e devotos da Sagrada Cruz, tal pecado
de blasfêmia era muito mais grave do que se pode imaginar e passagens bíblicas eram
constantemente utilizadas para justificar a gravidade desse pecado.
Na verdade eu vos digo: tudo será perdoado aos filhos dos homens, os
pecados e todas as blasfêmias que tiverem proferido. Aquele, porém,
que blasfemar contra o Espírito Santo, jamais será perdoado: é
culpado de pecado eterno. Isso porque eles diziam: Ele está possuído
por um espírito impuro.33
Esse "pecado sem perdão", ocorreu entre os escribas e fariseus (aqueles que conheciam
profundamente as escrituras e, teoricamente, a Deus) na presença de Jesus, e voltava a
ocorrer sempre que um judeu mencionava Jesus como profeta e não como Messias. Para
os hebreus, curar um endemoniado cego e mudo seria, na tradição judaica, visto como
um sinal de que ali estava o Messias. Portanto, diante desse sinal inegável, eles (os que
mais conheciam essas revelações) estavam não apenas rejeitando malevolamente o
Cristo, mas também atribuindo esse "sinal messiânico" ao demônio (Belzebu), já que as
curas realizadas por Jesus não eram o "sinal" esperado pelo judeus. Para a maioria dos
cristãos, eles não estavam fazendo por ignorância e sim, por maldade. Estavam
"diabolizados" a tal ponto de negar suas próprias convicções de fé (com um nível tão
alto de compreensão e na presença do próprio Deus encarnado) a fim de manterem-se
com suas tradições, benefícios e caprichos. Eles propositalmente tentavam "derrubar
Jesus" e acabar com Ele através dessas acusações. Aos judeus do mundo todo, esse
pecado gravíssimo seria sempre atribuído.
A prosperidade do judeu em tempos de crise era outro "sinal claro" de aliança
desse povo com o demônio. Aos cristãos, que oravam e esperavam na fé em Cristo por
p. 20). Já o Dicionário Hebraico-Português, de Rifka Berezin, publicado pela Universidade de São Paulo,
corrobora a idéia de que “Shaddai” significa realmente “Todo-Poderoso (Deus)”. Tal termo, no hebraico,
é escrito com três letras: “shin” (transliterada por “sh”), “dalet” (transliterada por “d”) e “iud” ou “iod”
(transliterada por “y” ou “i”). Ou seja: “Shadai” ou “Shaddai”.
[http://www.etimologista.com/2011/06/qual-o-verdadeiro-sentido-de-shaddai.html] consultado em
03/04/2016
33
Marcos 3: 28 a 30
27
dias melhores, a fome e a pestilência da Idade Média foi muito mais severas que aos
judeus que, vivendo em comunidades muito mais fechadas, mantinham certa
solidariedade em seus recursos, fazendo-os render mais e reinvestindo as sobras para
obterem mais provisões. Além disso, as restrições alimentares da fé judaica também foi
útil na contenção de muitas pragas e doenças no decorrer da história. Não era a
prosperidade do judeu sinal de aliança com o "pé preto", mas sim resultado de melhor
administração dos recursos que lhes cabiam em tempos de crise. Mas aos cristãos
famintos que saquearam muitas vezes as judiarias nada disso interessava. Eram aliados
do demônio, portanto, não lhe deviam respeito aos bens ou à vida. Essa visão não era
alimentada pela Igreja oficialmente. Os Bispos pediam tolerância e respeito aos judeus
em suas homilias e bulas, mas o baixo clero, tão faminto quanto o povo muitas vezes,
não tinha essa mesma tolerância com os hebreus, na maior parte do tempo.
Na Espanha
As comunidades judaicas desempenharam um papel de destaque na vida
comercial da Hispânia34 muçulmana, especialmente nas grandes cidades de Lisboa,
Évora, Córdova, Sevilha e Barcelona, durante o longo domínio Mouro da península. A
reconquista cristã na Alta Idade Média acarretou perseguições esporádicas, se bem que
até o final do século XIII a judiaria espanhola, produziu alguns dos mais poderosos
intelectos da época. Moisés Maimônides (1135-1204)35, por exemplo, nasceu em
Córdova, mas foi no Egito que desenvolveu e praticou sua erudição a maior parte da
vida, desempenhando papel de destaque no revivamento da cultura greco-romana no
ocidente, graças a sua grande compreensão e desenvoltura na reprodução do
pensamento aristotélico, assim como o domínio do árabe e do hebraico. Os judeus de
34
Os romanos chamavam Ibéria "Hispânia", mas esse nome é provavelmente de origem fenícia. Durante
a República Romana, Hispânia foi dividida em 2 províncias: Hispânia Citerior e Hispânia Ulterior.
Durante o reinado de Augusto, as últimas das áreas tribais foram conquistadas e redividiram a península
Ibérica em 3 províncias: Lusitânia no Ocidente, Baética no Sul, e Tarragona no resto da península, além
das ilhas Baleares. Hispânia passou a se tornar uma das regiões mais importantes do Império Romano.
Muitos dos povos da península foram admitidos para a classe aristocrática romana que participaram do
governo da Espanha e do Império Romano. As propriedades, grandes fazendas controladas pela
aristocracia, foram sobrepostos romanos sobre as terras do sistema ibérico.
Durante a época romana tardia, o Império Romano estava constantemente sob ameaças externas e
internas. A fim de reduzir o poder dos governadores provinciais, o imperador Diocleciano reduziu
drasticamente o tamanho das maiores províncias. Um deles foi o formidável Hispânia Tarraconensis, que
se dividiu em 4 províncias: Gallaecia no Noroeste, Tarrconense no Nordeste, Cartagineses na região
central e sul, e Hispânia Baleares nas Ilhas Baleares. O domínio romano terminou na Hispânia durante o
colapso do Império Romano do Ocidente com a invasão de várias tribos germânicas. Os Visigodos foram
a tribo que passou a dominar a Península Ibérica.
Disponível em [http://explorethemed.com/IberiaRomPt.asp?c=1], consultado em 03/04/2015
35
LOYN; Tradução: Álvaro Cabral; 1990, p.346
28
36
Sefarditas (em hebraico ספ י, sefardi; no plural, sefardim) é o termo usado para referir aos
descendentes de judeus originários de Portugal e Espanha. A palavra tem origem na denominação
hebraica para designar a Península Ibérica (Sefarad ) ספ. Utilizam a língua sefardi, também chamada
"judeu-espanhol" e "ladino", como língua litúrgica. (Em "1492: El Otro Caminho" - Sofia - Bulgária)
[http://www.centropa.org/node/83049] consultado em 03/04/2016
37
LOYN,1990, p.347.
38
“Durante a peste negra, um certo número de pogroms foi perpetrado na Renânia pelos flagelantes,
bandos de penitentes místicos logo combatidos pela Igreja, mas que se tomavam por cristãos de elite.
Além disso, as próprias autoridades religiosas não haviam anteriormente sugerido que os judeus podiam
ser envenenadores? Desde 1267 os concílios de Breslau e de Viena tinham proibido os cristãos de
comprar víveres dos israelitas”.DELUMEAU, 1993, p. 283
39
DELUMEAU, 1993, p.347
29
Seriam pois, incompatíveis as visões de comércio, lucro e juros, próprias dos judeus à
séculos, com os conceitos de usura e pecado dos cristãos católicos. Mas é justamente na
regra dos juros que os cristãos se apegam e se inflam de motivos para odiar os judeus,
uma vez que entre eles, os judeus, não se cobravam os juros considerados usura que se
aplicavam aos cristãos ou mouros ou qualquer um que não fosse judeu. Isso se deve a
uma passagem do Pentateuco seguida á risca na grande maioria das vezes, tanto pelos
sefarditas quanto por qualquer outro judeu da Europa:
40
HUBERMAN, 1936. P.48
30
Mas a união do reino espanhol precisava de um lastro, de algo que forjasse a identidade
espanhola, e este lastro seria o cristianismo, mas especificamente o catolicismo dos reis
espanhóis. A questão econômica seria resolvida, nem que para tal fosse necessário
destituir os bens dos judeus, tomar-lhes o controle de suas rotas e expulsá-los da
Espanha, sem direito a nada. Aos cristãos, a Espanha. Aos judeus, a Inquisição.
Em Portugal
41
MARTINS, 1882, p.105
31
42
O padroado real ou padroado régio, conferia aos monarcas lusitanos o direito de cobrar e administrar os
dízimos eclesiásticos(taxa de contribuição dos fiéis para a igreja). Cabia também ao monarca escolher os
ocupantes dos governos das dioceses, das paróquias e de outros benefícios eclesiásticos, bem como zelar
pela construção e conservação dos edifícios de culto, remunerar o clero, e promover a expansão da fé
cristã. O padroado real permitia que os portugueses exercessem um controle sobre as esferas temporais e
as espirituais, tanto em Portugal como nas colônias.
43
AZEVEDO, 2001, p.38
44
al.cai.de1: sm (ár al-qaid) 1- Governador de castelo, província ou comarca, com jurisdição civil e
militar. 2- Prefeito. 3- Oficial de justiça; disponível em
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=alcaide[consultado em 02-04-2016].
45
al·va·zir: sm 1. [Antigo] O mesmo que aguazil. 2. Governador de uma ou mais cidades. 3. Presidente
ou chefe de uma província ou território. 4. Juiz ordinário. 5. Alcaide, magistrado supremo.
Sinônimo Geral: ALVAZIL "alvazir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2013, http://www.priberam.pt/dlpo/alvazir [consultado em 02-04-2016].
32
a Coroa portuguesa, sempre que pôde, defendeu e resguardou a segurança dos judeus,
chegando inclusive a lhes oferecer a justiça como ferramenta para ressarcimento de
perdas e danos em episódios de intolerância tanto nas Siete Partidas (séc. XIII) como
nas Ordenações Afonsinas (séc. XV)46. É óbvio que o Rei não dava total autonomia aos
judeus e mouros em seus tribunais. Nas Ordenações Afonsinas, percebe-se que o
monarca não dispensava leis de maneira unilateral, mas que ele observava as demandas
por justiça nas comunas dos mouros e dos judeus, como o reconhecimento de uma
esfera jurisdicional de atuação para proteção dessas minorias. Um caso interessante
referente a esta temática é o número LXXV, o qual proíbe que os judeus compareçam
armados à presença do rei ou de qualquer Fidalgo, e caso incorressem em tal erro,
perderiam as armas e a comuna judaica devia pagar a quantia de mil dobras de ouro.
Diante dessa punição, a comuna recorre ao rei afirmando que a Ordenação era muito
severa e que cabiam formas de ludibriar o Rei e forçar a comuna à pagar o que não
devia (...) "... hum Fidalgo, ou Cavalleiro falaria com algum Judeo seu acostado, que
aos ditos jogos levasse alguma arma pera depois nos pedir a dita pena, do que a dita
Comuna nom feria em culpa alguã."47 Ao requerimento, o rei responde que por "por nos
parecer razoada, acordamos de emendar desta maneira; a saber, quando algum judeu
em semelhantes jogos,(...) levar alguma arma das sobreditas, sem mandado, mandamos
que tal judeu seja nosso cativo, e seus bens todos nosso(...) e a dita Comuna não haja
pena alguma."48
Assim, é importante notar que os judeus estavam inseridos em um sistema
jurídico com magistrados próprios, não lhes sendo vedado o direito à justiça cristã em
casos de impasse ou medidas extremadas. Por outro lado, o monarca exerce plenamente
o papel de juiz que negocia uma composição de justiça, mas que garante a si sempre a
última palavra.
46
Exemplo disso, encontramos nas Ordenações Afonsinas, quando se determina que em questões
inerentes ao âmbito interno da organização social e religiosa de mouros e judeus, a competência jurídica
cabia aos magistrados escolhidos pelo próprio grupo em questão. Podemos notar tal lógica no título
LXXXI, o qual trata de como o Raby-Mor dos judeus deve usar de sua jurisdição: “pera veermos a
jurdiçom(...) mandamos a todolos nossos juízes, e Corregedores das Comarcas(...) que nom conheçam de
nenhuu feito Civel, nem Crime, que seja antre Judeo, e Judeo de qualquer estado, e condiçom que seja(...)
que sejam vistos, e desembargados per elle, ou per seus, ou per seus Ouvidores, e seelados do nosso
seello, que o dito Arraby Moor trouver.” Ordenações Afonsinas, Livro II, Título LXXXI: De como o
Arraby Moor dos Judeos, e como outros Arrabys devem d’husar de suas Jurdiçooens. Pág. 477
47
Ordenações Afonsinas, Livro II, Título LXXV: De como os Judeos nom ham de levar armas quando
forem a receber El Rey, ou fazer outros jogos.
48
Ordenações Afonsinas, Livro II, Título LXXV: De como os Judeos nom ham de levar armas quando
forem a receber El Rey, ou fazer outros jogos.
33
49
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo,
2006, p. 237
50
SALVADOR, 1976, p.3
51
Ver CARDAILLAC, L. (org.). Toledo, séc. XII-XIII. Muçulmanos, cristãos e judeus: o saber e a
tolerância. 1992.
52
Um famoso estatuto de Toledo datou de 1449 e obrigava a afastar os conversos dos cargos municipais;
terá tido um horizonte meramente local, e não gozava da sanção régia. No entanto, o mesmo princípio foi
depois aplicado a várias instituições e com outros âmbitos. As polêmicas sobre a matéria foram
frequentes na Coroa Castelhano-aragonesa desde o século XV. Em Portugal, a institucionalização da
34
54
GAON - (plural: gueonim) - Assim eram intitulados os rabinos pós-talmúdicos da Babilônia, cujos
tribunais permaneceram seguindo o mesmo sistema de seus antecessores, os Amoraím e os Tanaím (v.
termos). Isto é, buscavam manter a guarda memorizada dos ditames de seus antecessores pelo mesmo
método comum no Talmud. O termo "gaon" é mal compreendido em nossos dias, pois tomara o sentido
de "gênio", "pessoa super inteligente", quando na verdade deriva do versículo: "Pois Deus faz voltar o
orgulho de Jacob..." - (Nahum 2:3) - orgulho, em hebraico - gaon, é a sabedoria de Israel, e esta é a Torá;
sendo seus Sábios seus representantes - dera-se este termo como designação para os maiorais dos grandes
tribunais rabínicos da Babilônia, sendo os ditos tribunais chamados Iechivá (termo que também perdera
seu sentido original, e em nossos dias se utiliza em analogia a Bet Midrach - casa de estudo de Torá). - v.
também o termo "savorá". (Fonte: http://www.judaismo-iberico.org/mtp/prefacio/p202.htm [consultado
em 04/04/2016]
55
MARTINS, 1882, p. 201
36
vendidos ou doados pelo rei. Não satisfeito, no início de 1493, ordenou que cerca de
700 crianças judias, de 2 a 10 anos, fossem arrancadas de suas famílias, batizadas à
força e enviadas para a ilha de São Tomé56, onde a maioria morreu.
56
Os documentos de época falam em 2 mil crianças judias encomendadas a Álvaro de Caminha. Ver
PINA, Rui de. Crónica de D. João II. Alfa, 1989, p. 135-139. RESENDE, Garcia de. Crónica de dom João
II e miscelânea. Lisboa: Nacional-Casa da Moeda, 1973, p. 241-242. Os judeus portugueses eram
considerados pertença do rei, assim como acontecia em outros Estados europeus. Sua condição social era
definida por cartas de privilégio que os colocavam sob a proteção régia em troca do pagamento de
impostos. Como servi camarae, ou servos reais, podiam ser vendidos ou doados pelo monarca.
57
TAVARES, 1982, p. 484-500.
37
58
Por "tradição herética" pretendo dizer que os casos de heresia mais tarde julgados aos milhares pelo
Tribuna do Santo Ofício derivariam em sua grande maioria, dentre outro motivos, principalmente da
conversão forçada dos batizados em pé, uma vez que fica clara a não conversão espiritual destes judeus
que só se sujeitaram a tal "encenação, por questão de vida ou morte. Por heresia entendamos que "A
palavra 'heresia' originalmente significava 'uma escolha', depois [passou a significar] a opinião que é o
produto de escolha ou da vontade [humana], em vez de ser tirada Palavra de Deus. Refere-se a uma
opinião fabricada pelo homem.
Depois o termo foi dado como um nome para o ato de sair do ensino ortodoxo, ato que carrega consigo
uma quebra [biblicamente justificada, ou não] da unidade [unidade pela verdade, ou não] da Igreja "(GP
Fisher, History of Christ Doctrine) disponível em [http://solascriptura-tt.org/] acessado em 06/04/2016.
59
A terminologia genérica de “Marranos” (que na língua espanhola quer dizer “porco”) é um tanto
contundente e refutada por muitos, pois na língua hebraica poderia se dizer “Mar Anuss” ou “Maranus”
ou mesmo “Maranos” que significa “Conversos à força”. Disponível em [http://anussim.org.br/a-
restauracao-dos-bnei-anussim-filhos-dos-forcados/] acessado em 06/04/2016
38
serem descobertos e denunciados, criaram uma série de artifícios, passando a viver uma
situação de duplicidade, em que, para uso externo, eram cristãos, mas na intimidade dos
lares continuavam sendo judeus. A expressão hebraica para denominar os descendentes
dos judeus convertidos à força ao catolicismo é Anussim60, que pode ser entendida
como “filhos dos forçados”.
A expulsão e o posterior batismo forçado na península Ibérica foram
determinantes no aumento significativo de judeus na Holanda61 entre os séculos XV e
XVII. Vindos da Espanha e de Portugal, judeus na Holanda formaram, ou melhor,
consolidaram redes comerciais que já existiam e que, se não fosse pela intolerância
religiosa, talvez fossem totalmente dominadas por Espanha e, principalmente por
Portugal um século mais tarde.
60
Idem.
61
São fartas as referências quanto à entrada de judeus na Holanda por conta das políticas anti semitas
adotadas na Península Ibérica entre o fim do século XV e o início do século XIX. Citando algumas fontes
podemos utilizar: Saul Levi MORTERA, Tratado da Verdade da Lei de Moisés. Escrito pelo seu próprio
punho em Português em Amesterdão. 1659-1660; MENDES, David Franco e REMÉDIOS, J. Mendes
dos; Os Judeus Portugueses em Amesterdão; FABIÃO, Luís Crespo, "Subsídios para a História dos
chamados 'Judeus Portugueses' na Indústria dos Diamantes em Amsterdão nos séculos XVII e XVIII",
Revista da Faculdade de Letras, 3º série, 15, 1973, p. 455-519; BARATA, Maria do Rosário de Sampaio
Themudo, "A Gazeta de Amsterdam de 1675 e as suas Notícias de Portugal. Um Centenário Esquecido",
Arquivos do Centro Cultural Português, vol. 9, Paris 1975, p. 287-317; H. P. SALOMON, Os Primeiros
Portugueses de Amsterdão. Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo: 1595-1600;
TEENSMA, Benjamim N., "OS Judeus Portugueses em Amesterdão", em Flandres e Portugal na
Confluência de Duas Culturas, eds. J. EVERAERT e E. STOLS, S.L: INAPA 1991, p. 275-287;
39
CAPÍTULO II
Antero de Quental
Trecho do Discurso proferido numa sala do Cassino Lisbonense,
em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das
Conferências Democráticas
62
GONZÁLES, 1986, p.85
63
SCHWARTZ,2009, p.21
40
64
GONZÁLES,1986, p. 86. Parêntese nosso
65
BUADES, 2008, p. 66
66
Idem, ibidem, p, 67
67
WEFFORT, 2012, p.64
41
e outros povos germânicos e latinos remanescentes na área. "Já no século VIII, pela
primeira vez um sacerdote espanhol designou essas gentes como 'europeenses'".68
A presença judia na península não diminui com o domínio mouro, ao contrário
disso, a liberdade de culto garantida pelos muçulmanos fez florescer o comércio
judaico. Além de prosperarem economicamente durante os séculos de domínio
muçulmanos na Península Ibérica, os judeus também foram destaque nas artes, ciências
e na filosofia. Nomes como o do grande filósofo judeu Maimônides se tornaram
conhecidos em toda a Europa civilizada.
Tamanha influência deixaria marcas visíveis até hoje no povo ibérico. Se por um lado
houve dominação, por outro, graças a essa dominação a Península Ibérica foi além do
que o resto da Europa, mergulhado na teocracia católica, e pode viver tempos de
vanguarda filosófica, artística e científica.
A chamada "reconquista" durou séculos, e muitas vezes se deu sem guerra, pois
os próprios muçulmanos simplesmente abandonavam certas áreas e os cristãos se
68
Idem, ibidem, p. 65
69
GONZÁLES, 2001, p. 116
70
Idem, ibidem, p. 72
71
WEFFORT, 2012
42
O conceito de nação em uma perspectiva marxista surge com Otto Bauer (1907)
e, mais tarde, com o texto de Stalin em 191374.
72
GONZÁLES, 2001, p.118
73
Idem, ibidem, p.93
74
BOTTOMORE, 1988, p.287
75
Idem, Ibidem p. 287
43
76
LE GOOF, 2007, p. 19 a 28; GONZÁLES, 2001, p. 31 a 85; VEYNE, 2011, p.65 a 71; ECO, 2004,
p.41 a 68, 148 a 195; PERNOUD, 1979, p. 17 a 35.
77
Título foi concedido aos Reis de Castela e de Aragão mediante a bula Si convenit no dia 19 de
Dezembro de 1496, pelo papa Alexandre VI, o nobre espanhol Rodrigo Borgia que havia sido alçado à
condição de papa.
44
outros delitos de ordem material e não apenas espiritual e religiosa, estavam ajudando a
reforçar a instituição social da propriedade, santificando a estrutura social existente.78
O reino de Castela, que no início era uma extensão e depois passou a ser a corte
também do reino de Leão, se estendeu por todo centro norte da península se limitando à
oeste pelo Estado português, a norte após se anexar ao reino da Galícia e ao principado
das Astúrias se limitava apenas ao Atlântico, a leste se limitava pelo reino de Navarro e
a Coroa de Aragão, e a sul pelo último refúgio islâmico, o reino de Granada, na primeira
metade do século XV.79 A expansão castelhana não manteve o centralismo do poder na
côrte de Castela, pelo contrário, fez crescer o poder regional da nobreza castelhana e
com isso promover a pluralidade de leis que diferenciavam-se de um lugar para o outro.
Além disso, o pluralismo religioso prosperou nas áreas sem controle do poder central, e
cristãos se viam por diversas vezes cultuando deuses pagãos. As práticas de adivinhação
também eram muito comuns em todo o interior do reino. A liturgia visigótica
permanecia viva nas igrejas de muitas regiões, e pregadores contra o centralismo
clerical se espalhavam pela Península colocando em xeque o poder clerical.80
Filha de D. João II, Rei de Castela, e sua segunda esposa, Maria de Aragão, Isabel
nasceu em 22 de abril de 1451 na pequena cidade de Madrigal. Seu pai faleceu quando
ainda tinha pouco mais de três anos e ela foi educada pela mãe, juntamente com seu
irmão menor, Afonso. Aos 11 anos foi levada juntamente com Afonso por Henrique IV,
rei de Castela e seu meio-irmão por parte de pai, para a corte castelhana. Com a chegada
dos jovens príncipes, formaram-se logo na corte dois blocos: um que defendia a
legitimidade destes ao trono de Castela, e outro que defendia a linha sucessória que
78
SIQUEIRA, 1978, p. 93
79
disponível em [http://www.culturandalucia.com/La_conquista_de_Granada_por_Milagros_Soler.htm]
acessado em 23/11/2016
80
"O pensamento heterodoxo não era, porém, um exclusivo dos meios universitários. Nesta segunda
metade da centúria de Trezentos, a Cristandade, submetida ao triplo flagelo da fome, da peste e da guerra,
estava a ser varrida por movimentos de revolta anti-senhorial e anticlerical, muitas vezes suscitados por
pregadores itinerantes que proclamavam a igualdade de todos os homens perante Deus e fustigavam a
excessiva riqueza e a vida dissoluta da hierarquia eclesiástica, encontrando um público atento e motivado
para a luta, quer entre os camponeses esmagados pelas exacções senhoriais, quer entre o proletariado
urbano sujeito ao desemprego e a condições de vida miseráveis."(AZEVEDO, 2000, p.69)
81
AMADO; 1999, p.266
45
82
AMADO,199, p.267
83
SOUSA, 1742, p.114.
46
combate as tropas de Castela e de Aragão que lutaram juntas, consolidando assim Isabel
no trono de Castela e Leão, Rainha de Aragão, pelo casamento com Fernando II, Rainha
de Maiorca, Valência e Sicília por herança de irmão, Condessa de Barcelona, princesa
das Astúrias e, mais tarde, rainha de Nápoles.
Nascido na localidade aragonesa de Sos, conhecido como "o Católico" e casado
com Isabel I, "a Católica", Fernando II de Aragão e V de Castela era filho de João II de
Aragão e de Joana Enríquez. Foi nomeado herdeiro do trono de Aragão em 1461 e foi
designado rei da Sicília em 1468. Assumiu o trono de Aragão com a morte do pai, em
1479, após uma prolongada guerra civil, que durou de 1474 a 1479 no reino de Castela,
instituindo assim a união dinástica de Aragão e Castela, que seria a base institucional da
Espanha moderna. Um ano antes, em 1478, ficara estabelecida a Santa Inquisição, em
Sevilha, tribunal eclesiástico independente para a erradicação da heresia e favorecer a
expulsão dos judeus e mouros da região, de grande interesse da Igreja de Roma.
Durante os primeiros anos de reinado, Fernando e Isabel lutaram juntos por
afirmar sua autoridade em Castela e Aragão e para transformar politicamente os reinos
por meio da implantação de novas instituições. Embora o casamento forjasse uma união
entre as coroas de Castelo e Aragão, na prática não foi isso que aconteceu. Os dois
reinos mantinham leis diferentes, sistemas de pesos e medidas diferentes, e até mesmo
as alfândegas não foram desativadas na divisa entre os reinos.84Para consolidar o poder
real frente à nobreza criou-se a Santa Irmandade para garantir a ordem, reorganizou-se o
Exército e unificou-se a maior parte da legislação dos dois reinados.
Após uma luta de dez anos (1482-1492), o reino de Castela venceu o reino de
Granada e expulsou de vez os mouros da Península Ibérica. Mas ainda havia o problema
judeu. A boa convivência entre mouros e judeus na península permitiu o aumento
substancial da população judia nos séculos de dominação, já que no resto da Europa os
judeus eram perseguidos e discriminados pelos cristãos. A Península Ibérica se tornara
então refúgio de judeus de toda a Europa. Mas agora eles eram um problema à unidade
pretendida pelos Reis Católicos.
84
WEFFORT, 2012, p. 75
85
LLORENTE, 1947, p.15
47
A solução do problema judeu tinha nome: Inquisição, e ela se instauraria no reino dos
Católicos em 1481. Daí em diante a vida dos judeus de toda a Península Ibérica mudaria
radicalmente.
A Inquisição não era uma novidade nos reinos da Espanha. Com o crescimento
contínuo de doutrinas heréticas na Idade Média em toda a Europa (Cátaros e Valdenses
por exemplo), os cristãos se levantavam, cada vez mais energicamente, contra aqueles
que, em sua ótica, praticavam heresias86, e os príncipes e reis católicos, apoiando-se
nessa insatisfação popular, promulgavam seguidamente leis civis contra as heresias,
chegando a considerar os praticantes de tais doutrinas inimigos do Estado. Assim, no
fim do século XII e início do século XIII, aparecem: Felipe Augusto da França; Ramón
V de Tolosa; Pedro II de Aragão; em 1197, e logo Jaime I, el Conquistador; Luis VIII e
Luis IX da França; em 1226 e 1228; o imperador Frederico II a partir de 1224; todos
promulgando leis em que condenavam diretamente a heresia como crime de Estado. Os
Papas, percebendo as atitudes dos monarcas e a reação do povo cristão à essas leis,
também tomaram medidas rigorosas contra os hereges. As normas dadas por Alexandre
III, no Concílio ecumênico de Latrão, 1179; por Lúcio III, em Verona, 1184; e por
Inocêncio III, no II Concílio de Latrão expressão essa reação do clero às heresias. Por
fim, como resultado desse movimento anti-herético na Europa, Gregório IX, em 1231,
"admitió para toda la Iglesia el pricipio de represión violenta ann con la misma muerte
cxontra los herejes, y sobre estas bases estabeció la Inquisición medieval"87.
A face da Inquisição na Idade média era diferente da que seria instaurada,
novamente, dois séculos mais tarde, pelos Reis Católicos. Se, na Idade Média as
heresias eram personificadas pelas releituras cristãs de fé88, no reinado de Isabel e
Fernando estas se personificarão na figura do judeu, quase que exclusivamente. Houve
sim uma certa perseguição à outras doutrinas, como o Islã e os protestantes, que
86
Tese que se desvia da doutrina comumente aceita (*dogma). As Religiões e *Confissões religiosas
definiram mais ou menos o que faz e o que não faz parte do seu elenco doutrinário. Caso o membro da
comunidade em questão sustente uma opinião fortemente contrária, esta é condenada como heresia,
conforme o princípio: Uma doutrina que leva ao erro, já é errônea. - No caso de graves heresias, pode-se
chegar até à exclusão da comunidade. *Excomunhão. *Herege. - Do grego “hairesis” = diferença,
escolha. (SCHWIKART, 2001, p.57)
87
LLORCA, 1949, p. 22
88
Tanto os Cátaros quanto os Valdenses eram cristãos a princípio, e suas doutrinas, embora
completamente destoantes do catolicismo, ainda tinham o Cristo como salvador.
48
entraram no reino após o cisma católico promovido por Lutero em 1517, mas os
números comprovam que a enorme maioria dos processos da Inquisição, tanto a
espanhola quanto a portuguesa, foram relacionados à judeus, marranos e cristãos
novos89. Judeus haviam prosperado muito durante o domínio mouro e tinham se tornado
donos de parte significativa da riqueza do reino. Frequentavam e lecionavam nas
principais Universidades, eram grandes médicos, boticários, literatos e, principalmente,
financistas e mercadores. Miguel de la Pinta Llorente, em seu brilhante trabalho "LA
INQUISICIÓN ESPAÑOLA" diz:
A usura praticada pelos financistas judeus era uma afronta aos cristãos, que pela
orientação da Igreja a viam como pecado. Além disso, a prosperidade dos judeus em
tempos de crise gravíssima enfrentada pelos cristãos aumentava o ódio cultivado à
séculos. A ostentação das riquezas que a minoria judia possuía despertava a fúria da
maioria cristã, que amargava a miséria de um reino consumido por guerras, altos
impostos e péssima administração pública. Administração pública essa que muitas vezes
recorria justamente aos financistas judeus para sanear suas contas, e por conseguinte
acabavam pagando os juros desses empréstimos com os impostos cobrados dos cristãos.
Percebe-se a roda do ódio sendo azeitada pela incompetência dos nobres.
A habilidade semita com as finanças seria aproveitada pela nobreza dos reinos
espanhóis desde o século XIV. Em 1341, um clérigo da Igreja de Écija, em Sevilha,
chamado Fernán Martínez, fez uma longa pregação contra os judeus e conversos.
Atribuiu então a eles as graves "distorções econômicas" que ocorriam em toda a
Espanha naqueles tempos. As ricas e prósperas judiarias daquele tempo passaram então
a sofrer com frequentes saques e matanças promovidas pelos cristãos, inflamados pelos
discurso do baixo clero.91 Por medo dessa onda de saques e matanças, muitos judeus se
89
Na Espanha Marranos, em Portugal cristãos novos. Ambos os termos designam judeus conversos ao
cristianismo, por vontade própria ou forçadamente, como se deu em Portugal nos tempos de D. Manuel.
90
"No século XIII, eles (os judeus) acusam um poder social e de riqueza econômica que os tornam
árbitros e senhores. Em Castela eles pagavam um imposto de 2,561,855 maravedis. Durante o século XV,
uma quarta ou quinta dos vinte e cinco milhões de pessoas que povoaram os reinos espanhóis era judeu".
Tradução nossa. (LLORENTE, 1947, p.16)
91
LLORENTE, 1947, p. 17.
49
"Citamos como exemplo a família dos Santa Fé. Entre seus membros,
um alcançou recompensas únicas da rainha Dona Maria. Micer
Francisco de Santa Fé desempenhou a Assessoria Geral do governador
de Aragão. Se distinguiu assim dos Santángel, oriundos da Catalunha,
dos Santa María, dos Cruyllas e dos Cabras. Luís de Santángel,
reconhecido homem de letras, exerceu o cargo de (zalmedina) em
Zaragoza. Entre os Cruyllas encontramos Mosén Pediu, um dos
secretários da Assembléia aragonesa. O arcebispo de Tarragona, Dom
Alfonso de Aragão, era filho da judia Estenza Conesu, que havia se
casado com o bastardo do rei Don Juan de Navarra, o mestre de
Calatrava. 92
92
Idem, Ibidem, p. 19. Tradução nossa
93
LLORCA, 1949, p.26.
50
94
A rendição de Granada só se deu em 1492, mas era tida como certa pelos nobres espanhóis e pela Igreja
em Roma desde o início da campanha de reconquista.
51
95
Sobre essa hipótese, ver o discurso de Antero de Quental proferido numa sala do Cassino Lisbonense,
em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das Conferências Democráticas intitulado
"CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES NOS ÚLTIMOS TRÊS SÉCULOS".
96
da SILVA in GOMEZ, 2014, pp. 244-245
97
PEDREIRA, 1998, p. 456.
52
98
Braudel, em seu clássico "O MEDITERRÂNEO E O MUNDO MEDITERRÂNEO", relata a volta do
comércio inglês no Mediterrâneo e a necessidade de estanho e chumbo dos países muçulmanos naquele
tempo, o que favoreceu o comércio com os ingleses. As rotas foram reativadas então, e o comércio voltou
a fervilhar nas águas do Mediterrâneo, diminuindo os lucros da rota do Cabo, utilizada pelos portugueses.
BRAUDEL, 1966, pp. 671-674
99
tença: ten.ça ˈt̃sɐ substantivo feminino - pensão dada em remuneração de serviços
Do latim tenentĭa, particípio presente neutro plural de tenēre, «ter;segurar» tença in Dicionário infopédia
da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult.
2016-10-28 21:58:47]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-
portuguesa/tença
100
MARTINS, 2004, p. 218.
101
Idem, ibidem, p. 219.
53
102
da SILVA in GOMEZ, 2014, p. 247.
103
Idem, ibidem, p. 278.
54
104
MÉCHOULAN, 1992, p. 16.
55
Liberdade religiosa era definitivamente algo impensável para Filipe II. Seu apego à
Inquisição e sua defesa da fé Católica foram marcas de seu reinado. A maioria das
províncias do norte não aceitaria calada a perda de direitos, que para eles eram
fundamentais.
Liberdade política e opção religiosa não são dissociáveis em meados do século
XVI. Podemos encontrar locais com relativa participação política dos habitantes em
concomitância com a atuação implacável da Inquisição, e também lugares onde o poder
político era centralizado e concentrado nas mãos de uma nobreza déspota e, em contra
partida, protestantes, judeus e cristãos viviam em harmonia. Destes últimos locais
partiam, não raramente, publicações anticlericais e críticas à Inquisição. A procura pelos
autores dessas publicações se revelou perigosa, principalmente nas províncias do norte,
onde a prisão de um crítico, por vezes se mostrou ser um remédio pior que a doença.
Filipe II não se intimida com o povo, e, ao invés de negociar, baixa um édito no qual
recomenda a estrita aplicação das leis em matéria de fé e exige que se preste assistência
aos inquisidores106. A insistência de Filipe II em tentar impor o Santo Ofício às
províncias do norte têm uma razão e uma consequência: a razão é óbvia. Com a
expulsão dos mouros, judeus e conversos do reino de Castela, o norte da Europa foi
destino de grande parte dessa população, que na sua grande maioria era de gente
abastada, letrada e com alma ibérica. Essa camada social era o lastro econômico das
províncias e qualquer tentativa de independência destas da Espanha de Filipe II teria
que ter o apoio financeiro desta classe, que não nutria nenhuma simpatia pela
Inquisição. Já a consequência foi o crescimento do ódio contra o despotismo de Filipe
II, que fez com que as províncias do norte se unissem. Entre os maiores oponentes de
Filipe II estavam, justamente, os mercadores, que vinham tendo prejuízos consideráveis
desde que a Inquisição espanhola passou a atuar no norte, interferindo na liberdade de
comércio.
105
MÉCHOULAN, 1992, p.21
106
Idem, Ibidem, p.21
56
107
BRAUDEL,1966, p. 690
108
Os números apresentados sempre são aproximados, uma vez que mais de 40 mil processos aguardam
análise no A.N.T.T. Qualquer estimativa cabal sobre números de processos da Inquisição portuguesa é
fruto de especulação. Portanto, nos atemos a estimativas aproximadas em acordo com o número de
processos já investigados.
109
Levantamento do número de processos no T.S.O. de Lisboa feito pelo site "GENEALOGIA FB"(
disponível em [http://genealogiafb.blogspot.com.br/2015/06/tribunal-do-santo-oficio-processos.html]
acesso em 26/11/2016) com base nos números disponíveis nos arquivos digitais da A.N.T.T., DGLAB,
disponível em [http://digitarq.arquivos.pt]. As estatísticas apresentadas também contam com meu
levantamento pessoal dos processos feitos a partir da plataforma digital da A.N.T.T. 298 processos foram
57
[...] O tesouro espanhol é devorado por essa guerra que não acaba, e
Requesens110 é acuado exatamente como Orange. O espanhol convoca
os Estados a Bruxelas, para obter o financiamento de uma guerra que
agora acontece no norte do país, enquanto Orange obtém de
Rotterdam a promessa de uma contribuição anual. Mercenários
espanhóis, por não receberem o seu soldo, se amotinam em Antuérpia,
e obrigam o novo governador a negociar com eles, a vender seus bens
e tomar dinheiro emprestado aos mercadores para livrar a cidade da
soldadesca.[...] 111
Filipe II tinha uma fonte de renda na prata vinda das Américas, mas quem pensaria que
a quantidade extraordinária de prata minerada de Potosí desde 1560 seria um problema?
A enorme quantidade do metal derramada na Europa pela Espanha fez o preço cair
vertiginosamente no último quartel do século XVI e no primeiro do século XVII. A
mineração, para se tornar economicamente viável, devia produzir cada vez mais prata,
já que o preço do metal despencava a medida que os galeões espanhóis chegavam à
Europa com enormes carregamentos, além da prata proveniente dos roubos e da
pirataria, que também era derramada no mercado, fazendo o preço do metal chegar a
níveis ínfimos na metade dos seiscentos. "Toda a Itália é então invadida pelos metais
preciosos de Espanha"112. A bancarrota não era uma situação nova para a Espanha.
Desde os Reis Católicos, o Estado espanhol já tinha sofrido duas falências, sendo que a
segunda foi em 1575. Coincidência ou não, as finanças espanholas perderam o controle
arquivados e contabilizados mim em um período de pouco mais de 6 meses de pesquisa nos arquivos da
A.N.T.T.
110
D. Luís de Requesens; governador de Milão, enviado a Amsterdã por Filipe II uma saída da guerra por
meios diplomáticos após a dispensa do Duque de Alba do comando das tropas espanholas.(
MÉCHOULAN, 1992, p.27)
111
Idem, Ibidem, p. 28
112
BRAUDEL, 1983, p.542
58
desde que saíram das mãos dos hábeis contadores marranos. A política beligerante de
Filipe II nos países baixos não ajudava em nada o controle das finanças.
Mas, mesmo com as finanças estatais em frangalhos, o T.S.O. funcionava, e
funcionava bem. Os autos de fé eram verdadeiros espetáculos, cheios de pompa e luxo
que custavam verdadeiras fortunas, tudo pago pelo Santo Ofício com o tesouro
confiscado dos marranos e cristãos novos. De fato, a Inquisição não os condenou à pena
capital na maioria das vezes, mas, em contrapartida, nunca perdeu a oportunidade de
lhes confiscar os bens.
113
Carlo Ginzburg aborda com genialidade essa utilização do medo na contemporaneidade nos quatro
artigos que compõem seu livro "Medo, reverencia e terror" (São Paulo: Companhia das Letras, 2014)
114
O anti semitismo moderno, como nos vem `mente hoje, não era conhecido antes da década de 1870,
mas o conteúdo anti semítico pregado pelos padres cristãos existiu desde o Império Romano, como bem
lembra Hannah Arendt (2013, p. 17)
59
gente fatua, & fem juizo. Efta he toda a voffa culpa; efta toda a voffa
pena."115
115
Trecho do sermão pregado no Auto da Fé que se celebrou na cidade de Lisboa em 8 de agosto de 1683
pelo ilustríssimo senhor Bispo Frey Manoel Pereyra, In de SÁ; MEMÓRIAS HISTÓRICAS DOS
ILLUSTRÍSSIMOS ARCEBISPOS, BISPOS E ESCRITORES PORTUGUESES, 1724, p. 223.
(Transcrição ipsis litteris)
116
DELUMEAU, 2009, p.414.
60
diversas nos desfiles de entrada eram, sem dúvida, o ápice de uma instituição que tinha
por objetivo se perpetuar e acender cada vez mais alto na escala do poder.
Havia dois tipos de autos-de-fé: os grandes autos-de-fé públicos, feitos em praça
aberta, solenes, pomposos e com a presença de grandes autoridades, a nobreza, o clero,
o povo e um grande número de condenados; e em contraste, havia os autos particulares,
realizados nas igrejas, ou mesmo nas dependências do T.S.O., com poucos réus (as
vezes apenas com um único acusado), apenados de pequenas causas ou membros do
clero, cuja reputação devia ser preservada.117 Para os autos públicos, construíam-se
estradas, utilizava-se mobiliário fino, decorações pomposas, tinham longa duração,
duravam o dia todo e, às vezes, dependendo do número de réus estendiam-se até altas
horas da noite, chegando mesmo até o dia seguinte. Com o passar do tempo, o caráter
festivo e sua ostentação aumentaram e eram convidados reis, infantes e toda a corte para
assistirem de camarote a execução das penas dos hereges transgressores da sociedade.
Durante esta festa, os acusados ouviam suas sentenças e os condenados à morte,
depois da cerimônia, eram conduzidos à fogueira. Mas não antes de serem
apropriadamente despidos para seu trágico fim. Os condenados à fogueira “eram
despojados de seus sambenitos118 após o auto-de-fé, e antes de chegarem à fogueira,
pois os hábitos que usavam eram colocados nos muros das igrejas paroquiais como
bandeiras arrancadas do inimigo, para perpetuar a memória de sua vergonha e advertir
seus descendentes. Quando o hábito apodrecia, era substituído por pedaços de tela
amarela, com nome do réu e de sua família, o delito e pena do condenado. Um dos
deveres do inquisidor, quando fazia as inspeções periódicas a seus distritos, era
examinar nas igrejas os sambenitos e os pedaços de tela para ver se estavam sendo
devidamente conservados. As igrejas acumulavam centenas de sambenitos,
regularmente restaurados como uma espécie de fichário de um monstruoso arquivo
policial”.119
Esta festividade com pinceladas macabras iniciava-se com a procissão dos réus,
seguida de uma longa missa, na qual o teor do sermão era a essência de toda a
cerimônia. Uma afirmação geral da historiografia de que os sermões dos autos da fé
mantiveram seu conteúdo antijudaico, e, invariavelmente, repetiram à exaustão os motes
117
RIBEIRO, 2006, p.179.
118
O sambenito, também conhecido como “hábito penitencial”, era uma “espécie de capa com a cruz
amarela de Santo André, traje especial que indicava sua condenação por heresia”. GORENSTEIN, 2005,
p. 151.
119
NAZARIO, 2005. p. 94
61
difamatórios contra judeus e o judaísmo torna-se incompleta, para não dizermos errada,
quando analisamos a eloquência religiosa inquisitorial no detalhe. De fato os sermões
apresentavam forte e incontornável conteúdo antijudaico, sendo que o judaísmo era o
alvo preferido da Inquisição portuguesa. Contudo essa alegação desconsidera três
especificidades particulares, a saber: a adequação do sermão com a ocasião de sua
pregação, as contingências políticas que atuaram na época do auto e a intenção do
pregador e da Inquisição no momento do sermão. É óbvio que o T.S.O. não perderia a
oportunidade que um auto-da-fé com milhares de espectadores proporcionava de se
encravar ainda mais dentro sociedade seus dogmas e seu modo de atuação.
Entretanto, os judeus, judaizantes e cristãos novos, embora fossem o principal
alvo da Inquisição e tema recorrente em todos os sermões dos autos-de-fé realizados,
não eram os únicos condenados presentes, na enorme maioria das vezes. A presença da
realeza e da alta nobreza do reino nos autos-de-fé era, além de um chamariz para a
população ávida de atenção e de um olhar piedoso da nobreza frente às suas labutas
diárias e à miséria causada pela forte crise econômica que rondou a Península Ibérica do
século XV ao XVIII, indo e voltando, também uma prova do prestígio e do poder da
Inquisição. E esta não desperdiçaria de forma alguma esse palco rico de espectadores.
Contextualizando seu discurso e adequando-o às heresias julgadas em cada auto-de-fé, o
T.S.O. não perdia de vista os judeus e cristãos novos em seus sermões. Segundo o
trabalho de Leonardo Coutinho Lourenço, o sermão pregado no auto de Lisboa em 25
de junho de 1645 pelo frei agostiniano, D. Filipe Moreira, é um bom exemplo do uso do
sermão no auto-de-fé, embora o autor não veja com os mesmos olhos a perseguição do
Santo Ofício aos judeus e judaizantes nos sermões dos autos-de-fé. Lourenço trabalha
uma linha que defende uma pluralidade maior na temática dos sermões, e seu trabalho é
convincente nesse sentido. Mas outras nuances devem ser levadas em conta, além dos
autos-de-fé para a formação do juízo sobre este espetáculo. Se a atuação do Santo
Ofício era calcada na perseguição aos cristãos-novos em prioridade, os autos-de-fé
seguiriam esta mesma orientação, de um modo ou de outro. De forma muito mais sutil,
os sermões abordavam o tema do judaísmo recorrentemente. Vejamos pois o exemplo
do auto de 25 de junho de 1645 rezado pelo frei agostiniano, D. Filipe Moreira.
"Segundo relatos, assistiam ao auto das janelas do Paço da Ribeira o rei D. João IV e a
rainha D. Luísa de Gusmão, além dos infantes. Frente a tão digna audiência o frei Filipe
dedicou o seu sermão ao combate à sodomia no auto que relaxou oito homens
condenados pelo delito, dentre eles três clérigos. A argumentação do frei agostinho era
62
feroz. Ao mesmo tempo em que apontava os erros morais envolvidos no nefando crime,
também lançava suspeita de que tais atos pudessem suscitar heresias, dada a frouxidão
moral e espiritual dos acusados.
Num golpe de grande perícia o frei comparou os sodomitas aos judeus que
andam a tentar ludibriar o rei."120 Disse:
120
LOURENÇO, Leonardo Coutinho, 2016. Op. Cit. pp. 60,61.
121
MACHADO, Diogo Barbosa. In LOURENÇO 2016.
63
CAPÍTULO III
Provérbio judeu.
122
"...por ser de grande experiência e muito conhecedor das coisas da Índia, o qual foi, mais tarde,
batizado e recebeu o nome de Gaspar da Gama, sendo vulgarmente conhecido por Gaspar das índias. Este
judeu conversava muitas vezes com El Rei D. Manuel, que folgava de lhe ouvir falar sobre as coisas da
Índia, e lhe fez muitas dádivas e mercês. A Vasco da Gama e outros almirantes portugueses, Gaspar das
índias prestou inestimáveis serviços." FILHO, 1923, pág. 24 e 25.
64
123
BUENO, 1998, p.40.
124
COSTA, 1936, pp. 58,126
65
125
segundo o DICIONÁRIO ESCOLAR MICHAELIS - ESPAÑOL PORTUGUÊS, ma.rra.no, -a : do
espanhol - adj+sm Zool Porco. • adj+sm 1 coloq Porco, sujo, porcalhão. 2 coloq Canalha, patife, velhaco
126
Segundo Anita Novinsky haviam entre 30 e 50 mil judeus vivendo em Portugal antes da expulsão
espanhola. Com a expulsão entre 100 e 120 mil judeus espanhóis fugiram para Portugal. A população
portuguesa na época não ultrapassava um milhão de habitantes, e entre estes cerca de 15 % eram judeus
antes do batismo forçado de D. Manuel; NOVINSKY, 2000.
66
127
MOTT, L. , 1991
128
PROCESSO DE JOÃO COINTA, SENHOR DE BOLÉS- CÓDIGO DE REFERÊNCIA PT/TT/TSO-
IL/028/01586
129
PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO ÀS TERRAS DO BRASIL, p.2 (Edição digital
disponível no endereço eletrônico [http://www.usp.br/cje/anexos/pierre/oficio.pdf], acessado em
15/03/2016)
67
por Mott. Novinsky em sua minuciosa pesquisa identificou o século XVII como o mais
brando da inquisição no Brasil, tendo ocorrido nesse período um total de 87 prisões
contra mais de 500 ocorridas na primeira metade do século XVIII, período mais
rigoroso. Analisando os números de Novinsky, concluímos que a primeira visita da
Inquisição ao Brasil não foi nem tão severa nem tão branda. De acordo com os números
pesquisados, ela teve um caráter mais fiscalizador do que perseguidor, já que em seu
período não se ultrapassou os 223 presos e com menos de 10% deste total levados ao
tribunal do Santo Ofício, em Lisboa.
Mott fornece números um pouco menos precisos que Novinsky e nem um pouco
semelhantes. Em sua pesquisa, Mott encontra na 1ª visitação do Santo Ofício na Bahia,
que se deu no mesmo século XVI pesquisado por Novinsky, 121 pessoas que se
confessaram, e mais três centenas de pessoas denunciadas, predominando os crimes de
judaísmo, blasfêmias, distorção ou omissão de práticas litúrgicas, sodomia e as
"gentilidades"131. Nesta primeira Visitação, a maior parte dos réus foi sentenciada aqui
mesmo no Brasil, com penas que incluíam açoites, sequestro de bens, degredo para
outra Capitania, não chegando a uma dezena os que foram remetidos a Portugal para
serem julgados nos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa.132
Minha análise dos processos da primeira visitação é mais parecida com a de
Novinsky do que com a de Mott. A primeira visitação no Brasil se deu entre 1591 e
1595, percorrendo Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Além da preocupação
constante com os cristãos-novos, ela também tinha preocupações relativas ao
protestantismo e aos comportamentos morais e sexuais não pertinentes aos dogmas
católicos. A primeira visitação teve 187 confidentes (152 na graça e 23 fora).133
Encontrei em minha pesquisa, dentre 298 processos analisados, 36 no período da
primeira visitação (entre 1591 e 1595) onde, destes, 28 de cristãos-novos, e destes 15
130
NOVINSKY, 2000, p.122
131
Uma espécie de "conversão" dos rituais litúrgicos em rituais indígenas ou mesmo em alguns
provenientes da África. MOTT, 2010, p.291.
132
em MOTT, 2010. p.294.
133
NOVINSKY, 2000, p.127
68
134
Código de referência PT/TT/TSO-IL/028/12142 Cota atual Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
Lisboa, proc. 12142.
135
NOVINSKY, 2000.
69
136
MENDA, Nelson, KUPERMAN, Jane. Casal de origem sefardita que pesquisa a influência da cultura
judaica sefardita na vida dos brasileiros, entrevistado pelo Programa Jô Soares,16 de nov.2000.
71
e abrangia todos os cristãos novos e suas transgressões passadas. O preço deste ato veio
mencionado na carta patente real de 1º de Fevereiro de 1605 e foi equivalente a
1.700.000 cruzados em dinheiro, mas a condição do débito do tesouro real num
montante de 225.000 cruzados pagos pelos Judeus, seus descendentes e cristãos novos
em Portugal.
Embora houvesse grande resistência ao perdão Papal por parte do Santo Ofício e
de grande parte das elites portuguesas que não viam com bons olhos a fuga de cristãos-
novos e suas fortunas de Portugal naquele momento, as condições do acordo foram
respeitadas e os tribunais inquisitoriais portugueses puseram em liberdade 410
prisioneiros (entre eles, os brasileiros, Ana Alcoforada Brites da Costa e Ana da
Costa)137, aos quais foi reposto apenas uma pena formal. Assim, um grande êxodo de
cristãos-novos deixou Portugal e veio para o Brasil estabelecendo-se nos Estados da
Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro.
Também alguns milhares de judeus portugueses e espanhóis imigraram para a
Holanda. O motivo da escolha era a maior liberdade de crença e culto ali permitido.
Muitos judeus, cristãos-novos e marranos mantinham contatos pessoais e relações
comerciais com os judeus de Amsterdã. O Tratado de Utrecht em 1579138 estipulava que
pessoa alguma, no território da Holanda seria perseguido por motivo de suas convicções
ou práticas religiosos. Assim, muitos judeus, não só de Portugal e Espanha, mas
também da Antuérpia e França imigraram para a Holanda. A vida cultural e religiosa
desses judeus floresceu rapidamente. Fundaram na Holanda três congregações: Beth
Jacob, Neweh Shalom e Beth Israel, bem como uma Escola Talmúdica de Torah e um
Colégio Ets Hayim. Amsterdã conseguiu dois rabinos, Menasseh ben Israel e Isaac
Aboab da Fonseca. Ambos tinham sido católicos (de famílias marranas) e foram os
primeiros a receberem educação rabínica em Amsterdã. Este último imigrou para Recife
e foi conhecido mais tarde como o primeiro rabino a fundar a Congregação Tsur Israel
(Rocha de Israel).139
Com a conquista da Bahia pelos holandeses no dia 8 de Maio de 1624 foi
proclamada imediatamente a política de tolerância religiosa e oferecida proteção aos
residentes da cidade. Dessa forma os holandeses ganharam o apoio da população local,
em especial dos marranos, que detinham o poder econômico pelo cultivo e dos
137
WIZNITZER; 1996. pág. 28.
138
O Tratado de Utrecht é de 1579 e proclama a independência da Holanda e formação do uma aliança de
mútua defesa com os Países Baixos. A Espanha só viria a reconhecer a Holanda como país em 1609.
139
Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco
72
140
ver RIBEMBOIM; 1995.
73
O ouro e a cruz
Todos os holandeses, tanto cristãos como judeus, que, devido ao atraso dos
navios onde deviam embarcar, não tivessem partido dentro dos três meses dados pela
coroa portuguesa como prazo máximo para desocuparem as terras da colônia invadida,
seriam tratados como até o presente o tinham sido, homens livres mas vivendo agora
sob o código de leis português. Exceto os judeus que antes da ocupação holandesa
nunca se disseram cristãos, todos os outros estavam sujeitos à Santa Inquisição, que
voltou então a ter seu lugar e seu respeito em Pernambuco, novamente colônia
portuguesa. A Inquisição entendia que qualquer judeu que não tivesse sido batizado
católico poderia permanecer no Brasil sem correr o risco de ser molestado ou
perseguido, embora a estes já coubessem as penas típicas de ser judeu, como a
segregação social. Antigos marranos de descendência espanhola e cristãos-novos de
descendência portuguesa, que abertamente tinham abraçado o judaísmo, formavam a
grande maioria da população judaica do Brasil - Holandês, e estes seriam o alvo
predileto da Inquisição que retornara à Pernambuco; mas seus filhos, nascidos judeus
depois da emigração de seus pais para o Brasil, não podiam ser considerados heréticos
pela Inquisição, já que nunca foram batizados, consequentemente, não seriam
molestados, caso optassem pela permanência no Brasil. E a opção de permanecer no
Brasil ganhava força com a descoberta do ouro nas Minas Gerais. Brancos, negros,
mulatos, índios; homens e mulheres, jovens e velhos; os ricos, os pobres, os nobres e os
plebeus, clérigos e leigos; estrangeiros com ou sem passaporte, todos se precipitaram
para a região aurífera da Minas Gerais. A multidão abrangia, naturalmente, um grande
número de cristão novos, e entre esses havia judaizantes que, quando descobertos, eram
denunciados, presos e entregues à Inquisição de Lisboa.
Em 1621, o Conselho Geral do Santo Ofício foi consultado sobre a
vantagem de se introduzir no Brasil, ministros permanentes da Inquisição. No ano
74
pelo Tribunal do Santo Ofício. De acordo com os processos inquisitoriais, essas famílias
formavam verdadeiras comunidades judaizantes. Reuniam-se nas casas uns dos outros,
para as práticas e rituais Hebreus, além de ensinarem e transmitirem a religião e os
costumes entre eles A família de Ignácio Cardoso de Azevedo foi um exemplo de
comunidade judaizante:
processo. As práticas judaizantes de toda a família ia sendo sua ruína econômica e seu
destino ia se desenhando pelas mão da Inquisição. A primeira mulher penalizada foi
Violante de Azevedo144, de 35 anos, filha de Antonio Cornegaga que, em 1666, foi
condenada a degredo para o Brasil. Violante, já no Brasil continuou a linhagem cristã-
nova da família, que também continuou na mira do Santo Ofício145.
O próximo na lista de acusações do Santo Ofício seria Antonio de Azevedo146
que foi condenado, em 1669, a cárcere e hábito perpétuo, além de confisco dos bens.
Outro Antonio de Azevedo foi preso no Rio de Janeiro, em 1713 e condenado à cárcere
e hábito perpétuo. Quatro anos depois, teve a mesma condenação o senhor de engenho,
no Rio de Janeiro, Joseph Pacheco Azevedo147. Outro senhor de engenho no Rio de
Janeiro, Bento de Azevedo, teve seus filhos - Esperança de Azevedo, Diogo, Sebastião
de Lucena e Maria da Silva - condenados a degredo para Angola. Outro tio de Antonio
José, Miguel de Castro Lara, foi preso com sua mulher, sua prima Maria Coutinho. O
Tribunal procurou familiares de Ignácio Cardoso de Azevedo, até o ano de 1742,
quando prendeu José Luís de Azevedo, condenado a cárcere e hábito penitencial
perpétuo. Ignácio Cardoso foi detido, no interior de Minas, por ordem do governador, e
enviado para o Rio de Janeiro. Seu auto-de-fé deu-se em 8 de maio de 1713. Foi
considerado herege, penalizado com excomunhão maior, cárcere e hábito penitencial
144
PROCESSO DE VIOLANTE DE AZEVEDO
CÓDIGO DE REFERÊNCIA: PT/TT/TSO-IL/028/09939
Estatuto social: parte de cristã-nova,Idade: 35 anos,Crime/Acusação: judaísmo,Naturalidade: Vila
Viçosa;Morada: Vila Viçosa;Pai: António de Codornega;Mãe: Antónia Simões Correia;Estado civil:
solteira;Data da prisão: 01/01/1662;Sentença: auto-da-fé de 04/04/1666. Abjuração em forma, cárcere e
hábito penitencial perpétuo, sem remissão, degredo para o Brasil por três anos, penas e penitências
espirituais, instrução na fé. A 11/05/166 foi-lhe comutada a pena de degredo para o Brasil de três anos,
para fora da Comarca da sua residência.
145
FERNADES,Neuza; 2003
146
PROCESSO DE ANTÓNIO DE AZEVEDO
CÓDIGO DE REFERÊNCIA: PT/TT/TSO-IL/028/00575
Estatuto social: 1/4 de cristão-novo ;Idade: 30 anos ;Crime/Acusação: judaísmo ;Cargos, funções,
actividades: serrareiro ; Naturalidade: Montemor-o-Velho ; Morada: Montemor-o-Velho ; Pai: António
Limpo de Abreu, 1/2 cristão-novo, sem ofício ; Mãe: Maria Rodrigues, cristã-velha ; Estado civil:
casado ; Cônjuge: Isabel da Rocha, cristã-velha . Data da prisão: 25/01/1667 Sentença: 31/03/1669, no
auto-da-fé que se celebrou no Terreiro do Paço. Confisco de bens; abjuração em forma; cárcere e hábito
perpétuo; penitências espirituais. O foi preso pela Inquisição de Coimbra.
147
PROCESSO DE JOSÉ PACHECO DE AZEVEDO
CÓDIGO DE REFERÊNCIA:PT/TT/TSO-IL/028/11683
Estatuto social: cristão-velho;Idade: 62 anos;Crime/Acusação: judaísmo;Cargos, funções, actividades:
senhor do engenho;Naturalidade: Rio de Janeiro;Morada: Rio de Janeiro;Pai: Francisco Pacheco de
Azevedo, cristão-velho, lavrador de cana;Mãe: Inácia de Aguiar, cristã-velha;Estado civil:
casado ;Cônjuge: Maria de Abreu, cristã-velha;Data da prisão: 25/03/1714;Sentença: auto-da-fé de
24/10/1717. Ir ao auto-da-fé com vela acesa na mão, abjuração de veemente, cárcere a arbítrio dos
inquisidores, instrução na fé, penas e penitências espirituais, pagamento de custas.
Por despacho da Mesa de 08/04/1718, o réu foi para o Rio de Janeiro.
77
perpétuo, confisco de todos os seus bens148. No mesmo processo delatou outros tantos
cristãos-novos, sob as torturas do cárcere inquisitorial. Em 1723 solicitou junto ao
Santo Ofício permissão para retornar ao Brasil alegando não ter condições de se manter
em Lisboa, já que havia perdido todos os seus bens no processo inquisitorial e vivia de
mendicância desde então. A permissão foi concedida pela mesa do Santo ofício.
Outras centenas de famílias sofreram perseguição semelhante pelo Santo ofício,
que em raros processos não conseguia o arrependimento através de confissão de seus
réus. Sob as duras torturas do tribunal, cristãos novos judaizantes, quase sempre, se
convertiam em bons cristãos.
As práticas de tortura do Santo Ofício, que hoje chocam, devem ser vistas, sem
anacronismos, como práticas investigativas normais para a época “uma vez que a
confissão se tornara essencial para o próprio julgamento, os métodos utilizados para a
obter tinham que ser considerados como fazendo parte do processo jurídico [...]”
(PETERS, s/d, p.62) em (Lima, 1999). Os tribunais do Santo Ofício dispunham de um
corpo médico, pelo menos na maioria das vezes, para avaliar as torturas e a gravidade
das mesmas, quando se utilizava de tal prática em seus interrogatórios. Manter o réu
vivo, mesmo que muito ferido, era a determinação do Santo Ofício. A morte durante o
interrogatório era inadmissível ao Inquisitor, com pena de investigação do mesmo sob a
acusação de excesso de rigor e uso abusivo do poder inquisitorial. A tortura era uma
ferramenta de interrogação.
O Santo Ofício era um tribunal, não muito diferente dos que temos hoje em dia.
A acusação e a defesa debatiam, apresentavam provas e testemunhas e o réu era julgado
por Inquisidores. As práticas processuais do Santo Ofício, no entanto, ofereciam
chances mínimas do réu se defender plenamente, uma vez que aceitava depoimentos
como provas, o que resultava em, quase sempre, o suspeito se tornar culpado.
148
PROCESSO DE INÁCIO CARDOSO DE AZEREDO
CÓDIGO DE REFERÊNCIA:PT/TT/TSO-IL/028/05447
Outras formas do nome: Ignácio Cardoso ;Estatuto social: cristão-novo ;Idade: 35 anos ;Crime/Acusação:
judaísmo ;Cargos, funções, actividades: advogado, lavrador de cana ;Naturalidade: Rio de Janeiro,
Brasil ;Morada: Rio de Janeiro, Brasil ;Pai: Agostinho de Paredes, 1/2 cristão-novo, senhor de
engenho ;Mãe: D. Ana de Azeredo, 1/2 cristã-nova ;Estado civil: casado ;Cônjuge: D. Branca Maria
Coutinho, [Cristã-Nova] ;Data da prisão: 10/10/1712 ;Sentença: auto-da-fé de 09/07/1713. Confisco de
bens, abjuração em forma, cárcere e hábito perpétuo, penitências espirituais.
78
149
Lima, 1999
150
PROCESSO DO PADRE GABRIEL MALAGRIDA
CÓDIGO DE REFERÊNCIA: PT/TT/TSO-IL/028/08064
Sentença: auto-da-fé de 20/09/1761. Excomunhão maior, deposto e degredado de suas Ordens, relaxado à
justiça secular com mordaça e carocha com rótulo de heresiarca. O réu deu entrada nos cárceres da
Inquisição vindo transferido do presídio do Forte da Junqueira, onde cumpria pena pela sua implicação
nos desacatos contra D. José a 3 de Setembro de 1758, cujo processo correu pelo Supremo Tribunal da
Junta da Inconfidência culminando com a sentença proferida a 12 de Janeiro de 1759.
A leitura da sentença e respectivo auto-da-fé, decorreu nos claustros do Convento de São Domingos.
79
151
VAINFAS, 2002
80
CAPÍTULO IV
eram pagos pela Coroa com juros consideráveis e quase sempre em espécie. Para os
investidores, a rota do Cabo rumo à Índia representava um excelente negócio pelos altos
juros cobrados, embora fosse muito arriscado152 e de resgate somente a longo prazo.
Porém, com o passar dos anos, devido a uma série de fatores, incluindo-se aí a escassez
de mão de obra qualificada, que cada vez mais preferia embarcar para o Brasil do que
para a Índia, o retorno financeiro dos investidores começou a tornar-se cada vez menor,
fazendo com que os investimentos fossem se concentrando na rota do Brasil, de retorno
mais rápido e quase certo, em detrimento da rota da Índia.
Mas onde se encaixa a atuação do Santo Ofício nesse meandro intrincado das
grandes navegações e do comércio internacional de especiarias? Lembremo-nos que em
1492 houveram dois grandes acontecimentos que mudariam a face da Península Ibérica:
a chegada de Colombo à América e a expulsão dos judeus da Espanha pelos reis
católicos. A quase simultaneidade desses acontecimentos foi condição sine qua non
para o sucesso das duas empreitadas que eles representavam: o povoamento das
Américas e a saída dos judeus para a unificação da Espanha católica. Como já vimos, a
maioria dos judeus que foram expulsos da Espanha buscaram abrigo em Portugal, que
cobrou uma gorda taxa de entrada aos refugiados que chegavam aos montes em suas
fronteiras, o que acabou se tornando um eficaz filtro social. Somente judeus ricos,
letrados nas universidades e com bons contatos comerciais entraram em Portugal desta
feita. Tanto essa mão de obra quanto os recursos captados com o pedágio de entrada no
reino, foram fundamentais no fomento das navegações portuguesas a partir daí153.
Qualquer empreitada portuguesa com a intenção de cruzar o Mar Tenebroso154 rumo a
novos destinos demandaria homens em grande quantidade. Desde o fomento da
indústria náutica e a construção de estaleiros, até o recrutamento das tripulações, uma
grande quantidade de homens seria demandada. A população rural não nutria interesse
pelas navegações, uma vez que eram conhecidos os sofrimentos a bordo das caravelas
que singravam mares.
152
"entre 1497 e 1653, o índice de naufrágios observados na Carreira da Índia foi da ordem de cerca de
19% das embarcações partidas de Lisboa. O prejuízo acumulado ao longo deste período foi de tal ordem,
que a partir de 1653, época de uma crise generalizada na Europa, a Carreira da Índia passa de principal
rota para um segundo plano, cedendo lugar à Carreira do Brasil, que por representar um investimento
mais rápido e seguro, desde início do século XVII, gradualmente, obtém cada vez mais um número maior
de investidores e voluntários dispostos a embarcar em seus navios."(RAMOS, 2000, p.83)
153
ver NOVINSKY, 1991, pp.65-75.
154
Expressão de cunho popular utilizada pelos navegantes, talvez na intenção de aumentar seus feitos,
que já eram fruto de enorme coragem.
82
Talvez um bom incentivo para as futuras tripulações das caravelas fosse o medo. É aí
que entra a Inquisição pela primeira vez. Fugir do Santo Ofício em Portugal ou na
Espanha não era tarefa fácil. Mesmo nos domínios de além mar, o T.S.O. se instalou ou
agiu pelas mãos dos familiares do Santo Ofício. Mas nas caravelas não havia a
Inquisição, ou pelo menos ela não era tão forte. Teriam, então estas, se tornado refúgio
aos mouros e judeus mais fieis ou aos cristãos novos mais desesperados? De qualquer
modo, já na viagem de Vasco da Gama haviam judeus a bordo, e na expedição de
Cabral que desembarcaria na costa do Brasil, outros judeus e mais tantos cristãos novos
também vieram.
Havia também a questão financeira que ligava a "gente da nação"156 diretamente
às empreitadas marítimas de Portugal. A ligação dos capitais das comunas judaicas com
o comércio local, regional e internacional é estrutural na economia europeia da Baixa
Idade-Média e posteriormente da Modernidade. Esta premissa é constantemente
demonstrada por medievalistas e foram encontrados vestígios disso nas cidades pré-
capitalistas da primeira revolução comercial157. Em Portugal, mesmo nos tempos de
economia essencialmente agrária, essa era a mesma tônica, e não foi diferente quando as
velas se inflaram para o comércio marítimo da especiaria africana. Assim que aos portos
de Lisboa ou Antuérpia (então domínio português) chegaram as primeiras mercadorias
asiáticas, mercadores judeus e seus capitais estiveram envolvidos no negócio, fosse na
distribuição das mercadorias, fosse no financiamento das navegações. Braudel, no seu
Mediterrâneo nos da pistas da participação sefardita no desenvolvimento do
capitalismo mercantil do século XVII. Outras gerações de historiadores analisaram
outros prismas desse mesmo assunto. Mesmo sem nos aprofundarmos demais sobre a
origem, formação e aplicação dos fundos financeiros dos mercadores sefarditas, se nos
155
RAMOS, 2000. pp.36-7
156
Desde a conversão forçada, os judeus que não se converteram passaram a ser chamados de "gente da
nação" em clara alusão à nação hebreia.
157
ver mais em LOPEZ, Robert S.; A REVOLUÇÃO COMERCIAL DA IDADE MEDIA 950-1350. 1ª
Edição. Rio de Janeiro: Editora PRESENÇA, 1980
83
158
Sempre que citamos os mercadores europeus da Idade Média, é bom lembrar que estes eram, em sua
enorme maioria, judeus, e os cristãos novos foram seus herdeiros naturais.
159
BRAUDEL, Opcit, 1966, p.445.
84
160
BRAUDEL, Opcit, 1966, p.448.
161
ALMEIDA, 2014. Disponível em [http://porterrassefarad.blogspot.com.br/2014/01/mercadores-
cristaos-novos-no-negocio-da.html] acessado em 12/11/2016.
85
emigram para as praças onde os negócios são mais rentáveis; assim não é de estranhar
que, por vezes, a diáspora sefardita siga de perto os circuitos monetários e comerciais,
além das praças de câmbios europeias. Não pretendo afirmar que um espaço defina o
outro, ou que estes cristãos-novos e judeus que fugiam da inquisição o faziam apenas
por lucro, mas é óbvio que uma ação levou a outra, e que, como em um desenho feito
por dominós, quando a primeira pedra caiu as outras seguiram seu destino.
O comportamento da moeda permanece em grande parte desconhecido e, como
fenômeno de grande respiração que é, assusta. Num mundo que permanece ptolemaico e
cujos contornos espaciais verdadeiros ainda se ignoram, a amplidão da circulação das
moedas devia deixar sem fôlego os mais avisados. O destino dos reais portugueses e dos
reales espanhóis, que eram cunhados com a prata americana, e que atravessam o
Mediterrâneo, o Império Turco, a Pérsia e atingem a Índia e a China, seria para estes
homens de finança, no mínimo, surpreendente. O dinheiro estava mudando as relações
comerciais internacionais, e mais rápido ainda, mudando as relações sociais na Europa.
Esta mobilidade da moeda e do comércio também é fruto de uma estrutura
familiar bem montada e ramificada pelas várias praças comerciais da Europa, onde cada
membro da família judaica agia na distribuição e comercialização dos produtos que
chegavam, cada vez em maior quantidade, todos os dias aos mercados. É bom lembrar
que, para cada novo produto que chegava às praças europeias, uma nova demanda
precisava ser criada. Consumir, desde fins do medievo, já era sinal de status.
162
GODINHO, 1967, pp. 314-16.
163
NOVINSKY, 1991, pp. 67-69.
86
produto que vinha em abundancia das Américas. Isso se dava porque judeus não podiam
nem imigrar nem viajar ao mundo ibérico livremente devido à ação da Inquisição. Os
cristãos-novos, por outro lado, emigravam constantemente para essas comunidades
judaicas, mantendo, ainda mais, a gama de parentes e membros do grupo hebreu
intimamente ligados aos seus consanguíneos no mundo ibérico, a quem os judeus
podiam recorrer. O historiador Daniel Swetschinski argumenta em sua obra que, dado
os grandes riscos em entrar em associações com contatos distantes, muitos dos quais
transcendiam as fronteiras do grupo, tais associações eram um privilégio de alguns
poucos mercadores, cujo crédito e reputação garantiam sua confiabilidade e os custos de
agenciamento cobrados por estes eram proporcionais a sua reputação164. Essa reputação
rendia sempre bons lucros aos mercadores que detinham o tão desejado produto oriundo
dos canaviais do Brasil. Tratando-se do caso judeu, seu sucesso nos negócios
contrastava com sua situação precária na vida social, haja vista a considerável ameaça
que pairava sobre eles de prisão pela Inquisição em Portugal e no Brasil. A prisão
implicava o confisco de todos os seus bens, incluindo os bens de terceiros em sua
posse165.
O sucesso dos mercadores de origem judaica é comumente atribuído a suas redes
mercantis de ordem familiar, mas, de fato não foram exclusivas as redes familiares
responsáveis pelo feito. Os mercadores de origem judia negociavam entre si em grande
quantidade, mas também negociavam com cristãos-velhos e com protestantes, sem
excluir árabes e persas de suas relações profissionais. A grande maioria dos parceiros,
entretanto, era formada mesmo por judeus e cristãos-novos, mantendo assim um grupo
forte e coeso no comércio marítimo. Em torno de 76% das transações comerciais
realizadas se davam entre grupos judeus ou cristãos-novos, 20% eram entre familiares e
os outros 7% se davam entre cristãos-velhos e outros grupos166. Essa conta era
conhecida dos reis e, principalmente, da Inquisição. O dinheiro estava nas mãos dos
judeus e cristãos-novos, mas os primeiros já não eram mais tão abundantes na península
Ibérica quanto os segundos. Judeus praticantes ainda existiam em Portugal e Espanha,
mas em um número cada vez menor. Já o grupo de marranos e cristãos-novos era
imensamente maior, e dentre essa multidão que atuava em diversas áreas como
boticários, artesãos, ourives e outras atividades, haviam os mercadores e comerciantes
164
SWETSCHINSKI, 1979, pp. 215-221, 273-74
165
AZEVEDO, 1989, pp. 57-111
166
STRUM, in Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, p. 4.
87
167
Reduzir-se significava deixar a fé inicial, o judaísmo, islamismo ou qualquer tipo de protestantismo, e
aceitar como verdadeira a fé católica. Para isso realizava-se um processo de redução, constituído por um
ou vários depoimentos da pessoa que se pretendia reduzir, a qual, em regra, ia acompanhada por um
elemento do clero secular ou regular que a tinha instruído e conduzido à Mesa do Tribunal. Sob
juramento e, o que se pretendia reduzir informava o inquisidor do seu nome, filiação, idade, estatuto
sócio-profissional, naturalidade e motivos pelos quais tinha decidido reduzir- se. A par destes elementos,
presentes na maioria dos casos, encontram-se ainda informações acerca dos motivos que tinham levado
estas pessoas a deslocarem-se e a fixarem-se em Portugal, bem como há quanto tempo e em que local
moravam. No caso de o indivíduo não falar português, havia um intérprete, frequentemente um religioso
da mesma nacionalidade do que se pretendia reduzir. Quando estávamos perante menores de 25 anos, era
nomeado um curador, normalmente o alcaide do cárcere, o porteiro da Mesa, ou outro qualquer
funcionário do Santo Ofício.(BRAGA, 2002, p. 264)
168
BRAGA, 2002, p.263.
88
poderoso Filipe II. Em 1640, Portugal volta a ser independente. Os judeus, no período
da união Ibérica, atingiram um número relevante principalmente nas colônias de além
mar, como o Brasil, tornando-os conspícuos, formando o que alguns chamaram de
nação hebréia, nação judaica, incomodando por sua visibilidade tanto o conquistado
como o conquistador.
Um dos erros mais frequentes quando se fala da participação dos judeus no
comércio internacional refere-se à participação financeira destes na WIC (Companhia
das Índias Ocidentais). Fundada em 1621, a WIC tinha por objetivo quebrar o
monopólio comercial do açúcar vindo das colônias pelas mãos das potências ibéricas e a
obtenção de parte do lucro proveniente desse comércio. Havia uma administração
central de dezenove diretores, os "Heeren XIX". Do capital inicial de três milhões de
florins para fundação da companhia, os judeus entraram somente com trinta e seis mil.
Em 1630 havia em Amsterdã cerca de mil judeus e apenas 21 eram considerados
ricos169.
A participação financeira de cristãos-novos em diversos empreendimentos
portugueses é notória. José Gonçalves Salvador narra que dois cristãos-novos que
emprestaram ao rei 300 mil cruzados, por influência do padre Antonio Vieira, foram
logo depois perseguidos e presos pela Inquisição170. A Companhia Geral do Comércio
do Brasil, que era uma tentativa de frear o crescimento da WIC, foi viabilizada graças
ao contato de Vieira com os cristãos-novos de Lisboa e os sefarditas portugueses de
Rouen, na França. Houve, como de se esperar, forte oposição do Santo Ofício, mas D.
João IV a criou formalmente a companhia em 1649.171
Até 1580, as embarcações flamengas transportavam mercadorias do norte da
Europa para Lisboa, daí levando o vinho e especiarias orientais vindas da Índia em
direção à África, onde trocavam diversos artigos por escravos que eram trazidos ao
Brasil e cambiados por pau-brasil e açúcar, produtos redistribuídos pela Europa. Essas
viagens triangulares não foram afetadas no início do domínio espanhol. Os oficiais e
marinheiros holandeses teriam então total conhecimento das regiões que iriam atacar,
sobretudo os portos da Bahia e Pernambuco, quando este comércio fosse interrompido
pela guerra travada entre Filipe II e as províncias rebeldes do norte172.
169
MÉCHOULAN, 1992, p. 106
170
SALVADOR, 1976, p.24.
171
SALVADOR, 1976, p.29
172
ver página 48 deste trabalho.
89
“Aos judeus …nem lhes faleciam motivos para recearem que o mais
infernal sistema de perseguição que jamais inventou a maldade dos
homens estivesse a ponto de ampliar-se a uma parte dos domínios
portugueses… A Inquisição prendera ultimamente no Porto quase
todos os mercadores de origem judaica… fora a superstição pretexto,
a cobiça motivo”. Frei Manoel Calado escreveu que o inimigo de tudo
sabia porque recebiam avisos dos cristãos-novos, mas pondera: “Nesta
guerra nunca faltaram traidores”.173
O Frei Manoel Calado se refere à antiga rusga dos portugueses com os cristãos-
novos de Pernambuco referente à suposta traição destes que teriam facilitado a ação do
holandeses. A deserção ou traição de mercenários era comum. Passaram-se para o lado
dos holandeses até sacerdotes católicos como o padre Manuel de Morais, frei Antonio
Caldeira, além dos muitos e ricos senhores de engenho que, "mais tarde, entraram para a
guerra no lado contrário, por muito endividamento com o governo holandês…”174. Uma
Companhia inteira de soldados contratados pela WIC, 280 ao todo, traiu os
holandeses175. A tentativa de subornar, corromper e o estímulo à traição eram freqüentes
nos dois lados. A delação era muito usada, inclusive pelos escravos negros, que por
diversos motivos ameaçavam contar sobre a existência de armas176.
Após a restauração de 1640, o governo português fazia diplomaticamente, como
convinha, o jogo duplo. Havia espionagem recíproca e guerrilha permanente com a
sequência de mortes, incêndios e pilhagens nos engenhos dos remanescentes judeus
holandeses, ensejando atrocidades mútuas.
Poucos judeus puderam comprar engenhos de açúcar antes do domínio holandês
em Pernambuco, porém de todo modo estavam envolvidos com o comércio açucareiro.
Também ocuparam ramos do comércio negligenciados pelos cristãos, tais como as
vendas a varejo, a corretagem e as cobranças de impostos. Os holandeses preferiam os
corretores judeus, que conheciam sua língua e eram mais confiáveis.
Quando o "Heeren XIX" resolveu que os escravos em Pernambuco só poderiam
ser vendidos por dinheiro, alguns judeus e cristãos-novos uniram-se comprando-os por
preço baixo e revendendo-os mais caro aos portugueses do sul do Brasil, aceitando tanto
o pagamento em prestações como em açúcar. Foram acusados desta feita de
especuladores quando as dívidas dos senhores de engenho da Bahia e do Rio de Janeiro
cresceram por causa da crise açucareira (1641-44). Todavia, o débito não era privilégio
173
SOUTHEY, 1965 - p 90
174
SOUTHEY, 1965 - p 92
175
WIZNITZER,1960, p.115
176
Ibidem, 116
90
dos flamengos ou dos cristãos-velhos. Alguns judeus foram presos e Moisés Abendana,
porque devia 12.000 florins, suicidou-se em 1642. Daniel Gabilho, fora condenado à
forca por dívidas e fuga; amigos conseguiram comutar a sentença mediante o
pagamento de 15.000 florins: foi banido para a ilha São Tomé por dez anos177.
Não se sabe ao certo quantos judeus ou cristãos-novos participaram da invasão
holandesa ou dos ataques diversos ocorridos na costa brasileira, nem quantos
participaram da milícia para proteger e defender os moradores destas regiões. Wiznitzer
chega ao número de 350, num total de 700, de acordo com o censo realizado em 1646.
Em 1536 passou a vigorar a Inquisição em Portugal e colônias d'além mar, tendo
ocorrido duas Visitações do Tribunal do Santo Ofício ao Brasil (1591 e 1618),a
primeira na Bahia e a segunda em Pernambuco. Não há portanto nada de antinatural na
adesão ou simpatia dos judeus e cristãos-novos a ação holandesa; contudo, além do
lucro visavam viver numa região em que pudessem professar sua religião, sem temor ao
confisco de bens, e/ou condenação à fogueira por judaizamento, traição, heresia,
apostasia e impureza de sangue. O número de judeus que habitaram o Brasil holandês –
fossem oriundos da Europa ou os cristãos-novos que como tal se declararam ou foram
considerados pelo Santo Ofício – também é assunto polêmico. Variam de um total de
cinco mil almas (D. Luis de Menezes) a 300 (Wolff)178.
Percebemos que, no século XVII, a chamada Nação Judaica estava inserida,
pelas atividades dos seus componentes, no tecido da sociedade, na economia e na
cultura do nordeste flamengo, desempenhando importante papel na história do sucesso e
do fracasso do Brasil holandês. Para a WIC, os judeus foram acionistas, aliados fiéis e
necessários pelo conhecimento das duas línguas e atuação no campo econômico. Muitos
pereceram no cerco, de fome ou nas guerrilhas, armas nas mãos. Diante dos reveses
militares, abandonaram a região. Regressaram empobrecidos para a Holanda ou
migraram para o Caribe, Suriname, Jamaica, Barbados e Nova Amsterdã – futura cidade
de Nova Iorque . Os cristãos-novos que não se haviam declarado abertamente, voltaram-
se para as forças portuguesas, na esperança de serem esquecidos e incorporados à
sociedade católica. Viviam em sobressaltos. Contudo, com o fim da distinção entre
cristãos-velhos e novos, decretado por Pombal em 1773, no reinado de D. José II,
esqueceram suas origens, pois haviam-se tornado bons católicos.
177
LEWIN, 2009, p. 78.
178
WOLFF, Egon -in Dicionário Biográfico - Judaizantes e Judeus no Brasil (1500 - 1808) - 1986
AONDE VAMOS? - Revista nº 643, p25.
91
Inquisição e capitalismo não são assuntos tão desconectos quanto podem parecer
a um olhar desatento. Fica muito claro o papel dos judeus e cristãos-novos no fomento
das grandes navegações e do surgimento e desenvolvimento do capitalismo mercantil a
partir do século XVI. Mas e a Inquisição? A ação do T.S.O., tanto na Espanha quanto
em Portugal, perseguindo e confiscando os bens dos judeus e cristãos-novos – que só
existiram graças à ação do Tribunal do Santo Ofício – foi fundamental para a construção
das redes mercantis sefarditas que atuaram nesse período, fomentando e desenvolvendo
o comércio internacional de mercadorias e escravos. Ora, sem o T.S.O. essas redes
permaneceriam ibéricas e não migrariam para o norte da Europa ou para a península
Itálica, como vimos que se deu.
Apesar do comércio português de longa distância se manter florescente nos
princípios do século XVII — tendo até registrado crescimento durante a ocupação
espanhola — a quase eliminação do Exército e Armada foi limitador do
desenvolvimento futuro de Portugal. Em 1640, com a volta da independência da coroa
portuguesa, veio então a dependência econômica face à Inglaterra. Os custos da
Restauração foram bastante elevados e a partir de então, e por muito tempo, Portugal, e
por tabela a colônia Brasil, passarão a ser colonizados pelos ingleses. E os custos desta
submissão são as vantagens econômicas sempre dadas aos ingleses em transações de
qualquer tipo em troca da proteção militar de que Portugal não dispunha para sustentar
uma guerra que permitisse manter e consolidar a sua independência, contra as incursões
espanholas em território nacional; oficiais e soldados ingleses combatem na península e
Portugal abandona, a nível internacional, o chamado Bloco Católico, iniciando um novo
sistema de alianças com o Bloco Protestante, sem o qual não pode subsistir face à
divisão da Europa de então. O que mantinha o país católico era a força do T.S.O. e sua
influência na sociedade e na coroa portuguesa.
Após a Restauração,
Sobretudo, após Methuen, Portugal demonstrava uma ausência total "… de instituições
socioeconômicas capazes de tornar economicamente rendíveis as remessas crescentes
de metais preciosos. Esta ausência é devida, em nossa opinião, à especialização de
Portugal na produção vinícola, como resultado das relações estabelecidas entre os dois
países… O preço pago por Portugal para manter o seu império foi o de permanecer
como país produtor de vinho, preço, aliás, que a classe dominante de bom grado
pagou, por lhe possibilitar a continuidade de uma vida de lazer" (SIDERI, 1978, p.
181.). É a aristocracia feudal — a mesma que dominava o T.S.O. — interessada na
cultura vinícola, uma das principais forças internas a impulsionar o Tratado de Methuen.
O Tribunal do Santo Ofício foi uma das poucas instituições que resistiram à
união das coroas ibéricas, e foi a grande mantenedora da fé católica em Portugal em
tempos de submissão econômica aos ingleses. Seu papel foi múltiplo nesse período e
sua importância fundamental para manter viva a essência da alma lusitana.
179
SIDERI, 1978, p. 174
93
CONCLUSÃO
em nome do Santo Ofício, os Açores e a Madeira e, pouco depois, entre 1596 e 1598,
seria a vez do padre Jorge Pedreira visitar o reino de Angola. Foi, portanto, em meio ao
processo de expansão atlântica da Inquisição de Lisboa que se inseriu a primeira
visitação ao Brasil.180
Ao chegar na Bahia, o Inquisitor foi recebido com grande pompa, recebendo os
juramentos do Governador, da Câmara Municipal e do bispo, além das reverências de
todos os fidalgos e da população em geral. Afixou, como de praxe, o Edital da Fé,
convidando a todos que delatassem os hereges e confessassem as heresias sabidas ou
praticadas, e fez ler o chamado Monitório, rol dos crimes ou indícios deles que cabia ao
Santo Ofício julgar181. Nele, despontava a heresia judaica ou criptojudaísmo, cujos
indícios podiam ser, entre outros, guardar o calendário judaico, observar seus ritos
funerários, abster-se de comer carne de porco, não trabalhar aos sábados, etc.182
As outras duas visitas que houveram, embora cada uma tenha suas
particularidades, não fugiram muito ao propósito da primeira. Cristãos-novos eram o
primeiro alvo, e depois deles sodomitas, hereges, protestantes, bruxas e feiticeiros.
Todos, em fim, pagaram seu quinhão à Inquisição. Os cristãos-novos, porém, pagaram
mais caro, pagaram por todos, já que o confisco de seus bens sustentava o Tribunal, por
serem mais abastados talvez, ou por serem mais numerosos, ou até mesmo por sua fé ser
mais antiga e representar um risco maior de contágio com as populações. Muitas serão
as leituras sobre a preferência da inquisição pelos cristãos-novos, porém uma coisa e
fato inegável: houve uma preferência! A este fato nos apegamos e com ele
argumentamos que a Inquisição existiu pelos cristãos-novos, e os cristãos-novos só
continuaram a existir por tanto tempo por causa da inquisição.
Nenhuma instituição dura tanto tempo sem o apoio do establishment. Uma
sociedade, por mais nova que seja, é responsável pelas políticas públicas de seus
governantes. Não quero dizer com isso que, por exemplo, toda a Alemanha de Hitler
têm em suas mãos o sangue dos judeus vítimas do holocausto, mas, longe disso,
também não os absolvo pela loucura daqueles tempos. Dessa mesma forma, a população
ibérica foi tão responsável pela Inquisição quanto a Igreja ou o Estado. As instituições
são filhas de seu tempo, e crias de seu povo. O povo, no final das contas, é vítima do
Leviatã que alimenta. A manipulação da opinião pública é fato tão velho quanto a
180
SALVADOR, 1976.
181
Idem, ibdem.
182
VAINFAS, 2002.
95
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