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SIMONE WEIL

Seleções dos Cadernos

TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS
SIMONE WEIL
Seleções dos Cadernos

TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS
NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

Esta é uma tradução das que considero serem as mais


importantes passagens dos cadernos de Simone Weil. Não
é uma tradução profissional. Foi realizada com o auxílio de
ferramentas de tradução da internet e a edição final foi rea-
lizada por um não-profissional. Ainda assim, foi feito um
esforço para que a tradução fosse de fácil leitura e seguisse
o mais possível as regras de bom português. Houve também
o cuidado de que a tradução se mantivesse fiel ao texto que
lhe serviu de base. Em alguns casos, existem seleções corta-
das de contextos maiores, mas de forma alguma foi por elas
o contexto violado. As referências bibliográficas são indica-
das no índice. Os números que aparecem entre parêntesis
referem-se aos números das páginas nesses textos.
ÍNDICE

1 Seleções dos Primeiros e Últimos Cadernos 1


Simone Weil: First and Last Notebooks
London: Oxford University Press, 1970
Richard Rees translation

2 Seleções dos Cadernos, Volume Um 203


The Notebooks of Simone Weil, Volume One
G. P. Putman’s Sons New York, 1956
Arthur Wills translation

3 Seleções dos Cadernos, Volume Dois 461


The Notebooks of Simone Weil, Volume Two
G. P. Putman’s Sons New York, 1956
Arthur Wills translation
“Num momento de intensa dor física, enquanto me es-
forçava para amar, mas sem desejar dar nome a esse amor,
senti, sem estar de forma alguma preparada… uma presença
mais pessoal, mais certa, mais real do que a de um ser hu-
mano, apesar de inacessível ao sentido e à imaginação, e pa-
recia o amor que irradia o sorriso mais terno de alguém que
amamos. Daquele momento em diante, o nome de Deus e
o nome de Cristo encontram-se cada vez mais irresistivel-
mente misturados com os meus pensamentos.
O resultado foi que a quantidade irredutível de ódio e
repulsa que acompanha o sofrimento e a aflição recaiu in-
teiramente sobre mim. E a quantidade era muito grande,
porque o sofrimento em questão estava localizado na raiz de
cada pensamento, sem exceção.”

– Simone Weil, Uma Antologia, p. 282


1
Seleções dos
Primeiros e Últimos Cadernos
(CADERNO PRÉ-GUERRA, 1933-[?]1939)

[Na margem] Valor do sofrimento –


Acredito no valor do sofrimento, desde que se façam todos os
esforços [legítimos] para fugir dele. (3)

Formas de poder – ou melhor, de busca de poder. Quando a luta


pelo poder tem resultados muito incertos e brutalmente ferozes, as
paixões são vivas e simples; nunca se perde o contato com as necessi-
dades naturais; a boa e a má fortuna são importantes, os tormentos
internos menos [Homero – Sófocles].
Sob o domínio de um poder estável, o principal método de do-
minação, para a massa de indivíduos em particular (exceto a popula-
ção trabalhadora), é o amor – portanto, é também uma época de ba-
julação… [Don Juan] [Racine].
Numa época bastante brutal, uma época de estupros e raptos…
o amor mais puro pode florescer [Andrómaca: “Heitor, tu és para
mim pai, mãe e irmã, assim como meu amado e marido”], precisa-
mente porque em tal época se desconhece a intriga amorosa.
Por outro lado, quando o amor se torna um instrumento de po-
der, essa pureza é quase impossível; é por isso que há algo tão frio e
falso nos casais idílicos de Racine. Enquanto que Roxane… “servil
em tudo, para se tornar mestre.”
O mesmo se aplica à amizade. (4)

1
Lista de tentações (a ser lida todas as manhãs).
TENTAÇÃO DA OCIOSIDADE (de longe a mais forte).
Nunca me entregar à passagem do tempo. Nunca adiar o que
decidi fazer.
Tentação da vida interior.
Lida apenas com as dificuldades que realmente te confrontam.
Permite-te apenas aqueles sentimentos que são realmente solici-
tados para uso efetivo ou então são exigidos pelo pensamento em
prol da inspiração. Corta implacavelmente tudo o que é imaginário
em teus sentimentos.
Tentação da autoimolação.
Subordinar aos assuntos externos e às pessoas tudo o que é sub-
jetivo, mas nunca o próprio sujeito – ou seja, o teu julgamento.
Nunca prometas e nunca dês a outro mais do que exigirias de ti
mesma se fosses ele. (?)
Tentação de dominar.
Tentação da perversidade.
Nunca reajas a um mal de maneira a aumentá-lo. (4-5)

A psicologia comportamental é a única que é boa, no expresso


entendimento de não se acreditar nela. Tudo o que se pode pensar
sobre a condição humana é expressável em termos de comporta-
mento – inclusive a liberdade [na margem: até o pensamento livre
(problemas), ou os sentimentos mais generosos (amor platônico...).
Tenta descrever todas essas coisas sem nunca mencionar a alma, es-
pírito, etc.]. A única coisa que escapa é aquilo que, uma vez que está
pensando, não pode ser pensado. (5)

Leis, a única fonte de liberdade. É por isso que, ao nível das


religiões primitivas, tudo o que é uma regra (fórmulas e ritos mágicos,

2
tabus) representa um grande avanço. (6)

Em comparação com a esperada civilização, o que agora possuí-


mos (ciência…, máquinas, ferramentas…) é como a crua ciência em-
pírica dos egípcios em comparação com o pensamento grego. É ne-
cessário algo como o “milagre grego”. (6-7)

Paradoxo: todas as imagens de uma linha reta estão igualmente


longe da linha reta perfeita. E, no entanto, estão mais ou menos próxi-
mos dela. Isso leva muito longe… (7)

Dependência do indivíduo da sociedade: em proporção à espe-


cialização.
Dependência da sociedade do indivíduo: em proporção inversa
à automatização das atividades necessárias. (7)

O que mostra que o trabalho – se não é desumano – nos é desti-


nado é a sua alegria, uma alegria que nem mesmo o nosso cansaço
diminui…
Os trabalhadores relutam confessar esta alegria – porque têm a
impressão de que pode levar a uma redução dos salários! (8)

A coletividade é mais poderosa do que o indivíduo em todos os


domínios exceto um: o domínio do pensamento. (8)

Amor físico e trabalho.


Trabalho: sentir com todo o teu ser a existência do mundo.
Amor físico: sentir com todo o teu ser a existência de outro ser?
Mas apenas se não houver desejo e, estritamente falando, nenhum

3
prazer sensual. Tanto quanto sei, certamente não é assim para nin-
guém. (Mesmo em Jules Romains...) Alegria, não prazer.
Mas eu…
Certamente, esta seria a única forma pura de amor físico. E deve
ser pelo menos teoricamente possível que o amor físico seja puro.
Seria muito amargo se até mesmo a criação de um novo ser humano
fosse uma contaminação… Contaminaria a vida toda. É reconfor-
tante poder imaginá-lo, pelo menos idealmente, sob um aspeto per-
feitamente puro. A vida não precisa mutilar-se para ser pura.
Ter consciência do ser amado em toda a sua superfície percetí-
vel, como o nadador tem do mar. Viver dentro desse universo que
ele é. É por acaso (um acaso providencial) que esta aspiração pro-
funda, que tem raízes na infância (gestação), coincide com o instinto
denominado sexual – que é alheio ao amor, exceto na medida em
que se pensa em filhos. É por isso que a castidade é indispensável ao
amor. Fica indignado assim que a necessidade e o desejo, mesmo recí-
procos, entram em ação. (9-10)

Definição de alegria (que está ausente em Spinoza): a alegria


nada mais é do que o sentimento da realidade…
A tristeza nada mais é do que o enfraquecimento ou o desapa-
recimento desse sentimento.
Os loucos não são alegres.
Quando alguém fica triste por muito tempo e continuamente,
fica um pouco louco. (…) (10)

Ilíada – A mola mestra da guerra é o desespero. A violência in-


fligida a si mesma pela alma que é constrangida a se adaptar a uma
situação em que todas as suas aspirações são pura e simplesmente ne-
gadas.

4
Uma situação como essa é estritamente inimaginável. Tudo o
que o não-combatente imagina sobre ela é falso.
Os objetivos da guerra foram esquecidos; se é levado ao ponto
de negar todos os objetivos. Quando persistem, não é apesar de, mas
por causa de serem absurdos.
Onde quer que o homem seja sacrificado, existe esse desespero.
(10)

Trabalho na linha de montagem de peças que consiste na repe-


tição de um único movimento: a atenção forçada a concentrar-se con-
tinuamente num gesto mecânico.
Infernal. Mas, para o trabalho absolutamente não qualificado,
não há outro sistema possível. Sem essa restrição, a atenção dispersar-
se-ia completamente. O resultado seria uma perda muito considerá-
vel não só de tempo, mas de qualidade do produto. As próprias má-
quinas seriam ameaçadas por essa falta de atenção.
Por outro lado, para trabalhos altamente qualificados, o traba-
lho de linha de montagem é prejudicial.
Um refinamento da tortura: restringir o pensamento de forma
a provar continuamente a escravidão do corpo! Só pode ser supor-
tado mutilando a alma. Caso contrário, a pessoa sente como se fosse
entregue viva, todos os dias, para ser esmagada. (12)

“Propos” sobre Prometeu, antes da guerra. Um homem que de-


tém o poder pode certamente colocar um homem justo na prisão
pelo resto da vida e depois não pensar mais nisso; se perde o poder e
começa a pensar, talvez se torne sábio, justo e santo… Mas o homem
justo na prisão não continuará justo por muito tempo, porque ficará
louco. Ou, de qualquer jeito, ficará débil, com o coração fraco, enco-
lhido (M…). Significa isso que o tirano tem poder de destruir não

5
apenas o corpo, mas também a alma, e que desfruta até de um privi-
légio moral sobre seus inimigos? Um pensamento insuportável.
Devemos pensar sempre em homens no poder como coisas peri-
gosas. Mantém-te longe deles, tanto quanto possível, sem covardia. E
se um dia fores obrigada, sob pena de perder o respeito próprio, a
enfrentar e ser quebrada pelo seu poder, considera-te como conquis-
tada pela natureza das coisas, e não pelos homens. Por exemplo: al-
guém pode estar na prisão, acorrentado – mas também pode estar
paralisado e cego; e não há diferença. (17)

O que é terrível no poder é que contém o ilimitado. É terrível


para o tirano, a quem enlouquece. Mas é terrível para o escravo tam-
bém. Existe um estoico no mundo que não poderia ser degradado
pelas crueldades mais simples, como fome e violência, se estivesse à
mercê de um capricho absolutamente sem lei? (“A Megera Domada.”)
Ainda bem que há uma ordem social. Grandeza das leis, mesmo as
mais desumanas.
Evita a todo o custo qualquer situação em que sejas reduzida a
um fantoche. Se caíres em tal situação, suporta-a passivamente como
a uma doença. (17)

O homem libertou-se em grande medida do cativeiro da natu-


reza. Até que ponto? Isso pode ser estimado pela proporção de seu
trabalho que não está diretamente relacionado com a satisfação das
necessidades básicas. Quanto maior a distância entre nossos atos e
esse tipo de satisfação, mais liberados estamos da natureza. A andori-
nha, que deve caçar insetos continuamente, é escrava da natureza.
Caça, coleta de frutas. Mas nossa libertação da natureza é compen-
sada pela escravidão à sociedade. Pois somos alimentados, vestidos,
etc. pela sociedade, como uma criança por seus pais; somos menores

6
eternos. Também aqui é necessário um equilíbrio.
Devemos aceitar que nossas ações estejam conectadas com a sa-
tisfação de necessidades básicas apenas indiretamente; mas deixemos
que os estágios intermediários sejam suficientemente poucos, para
que a relação entre causa e efeito, embora indireta, seja percetível.
Objetivo: que as condições de existência sejam tais que SE PER-
CEBAM O MAIS POSSÍVEL.
As pessoas costumavam sacrificar aos deuses, e o trigo crescia.
Hoje trabalha-se numa máquina e compra-se pão na padaria. A rela-
ção entre a ação e seu resultado não é mais clara do que antes.
É por isso que a vontade desempenha um papel tão pequeno na
vida hoje. Gastamos nosso tempo desejando.
Ambiguidade da palavra desejo… Elimina todo o desejo da vida
humana. Substitui pela vontade – e desiste de esperar qualquer coisa
que não seja uma recompensa do trabalho. Se receberes algo mais,
recebe-o como uma graça… Ambiguidade da palavra graça também (a
palavra mais bela…).
(O amor só pode ser puro na medida em que é, precisamente,
uma graça.)
Não sabemos mais como receber a graça. (19)

As leis são relacionamentos necessários…


Diferença entre escravo e cidadão (Montesquieu, Rousseau…): o
escravo está submetido ao seu amo e o cidadão às leis. Sem dúvida, o
amo pode ser muito gentil e as leis podem ser muito severas; não faz
diferença. Toda a questão reside na diferença entre capricho e lei.
Assim, o homem que pensa ser governado por uma natureza ca-
prichosa é um escravo, e o homem que sabe que é governado por
uma natureza determinada por leis rigorosas é um cidadão do mundo
(Marco Aurélio).

7
Se ao menos os homens pudessem entender isso – tanto a soci-
edade quanto o indivíduo, e o escravo também… Epicteto.
Por que é escravidão estar subordinado ao capricho? A razão úl-
tima está na relação entre a alma e o tempo. Quem é submetido ao
arbitrário está suspenso no fio do tempo; é obrigado a esperar (o es-
tado mais humilhante!...) por aquilo que o próximo momento trará;
e aceitar tudo aquilo que trouxe o momento presente. Não tem con-
trole sobre cada momento que passa; o presente não é para ele uma
alavanca pela qual possa agir sobre o futuro. (19-20)

O homem torna-se escravo na medida em que vontades alheias


se interpõem entre sua ação e seu resultado, entre seu esforço e a
tarefa a que se aplica.
Este é o caso em nossos dias tanto para o escravo quanto para o
amo. O homem nunca confronta diretamente as condições de sua
própria atividade. A sociedade constrói uma tela entre a natureza e o
homem. (20)

Ideia central de Marx: o próprio trabalho como princípio orga-


nizador (em contradição com a utopia do “comunismo como estágio
superior” – em que condição? Ambiguidade perigosa.) (21)

Haverá menos disciplina externa quanto mais disciplina interna


houver. (23)

IDEIA CENTRAL
No que diz respeito à natureza, o capitalismo conseguiu a liber-
tação da coletividade humana (aumento considerável do lazer (se…),
método, etc.). Mas, no que diz respeito ao indivíduo, essa mesma co-
letividade assumiu a função opressora anteriormente desempenhada

8
pela natureza.
Isso é verdade de uma forma concreta. Fogo, água, etc., etc., etc.,
– todas aquelas forças “que ultrapassam infinitamente os poderes do
homem” – foram possuídas pela coletividade.
Pergunta: será possível passar ao indivíduo essa libertação con-
quistada pela sociedade? (23)

Condições adequadas de trabalho. Para que haja o máximo de


liberdade, estão envolvidas 2 questões distintas:
1. Que o indivíduo necessite o menos possível da coletividade.
2. Que a coletividade necessite o mais possível do indivíduo, ou
seja, do pensamento (que é a única coisa que não pode ser abstraída
do indivíduo). (27)

Não existe tal coisa como pensamento coletivo. No entanto, a


nossa ciência é coletiva, como a nossa técnica. Especialização. Assu-
mimos não apenas resultados, mas também métodos que não entende-
mos. Na verdade, os dois andam juntos; porque os resultados algébri-
cos fornecem métodos para as outras ciências (por exemplo, cálculo
infinitesimal).
Assim, mesmo nesta esfera, o indivíduo é esmagado.
Isso está conectado, sem dúvida, com a mudança de valores na
ciência (generalidade – ou unidade – no lugar de clareza). Como isso
acontece? É porque o método nada mais é do que um instrumento.
Preocupação com a economia, etc. (28)

Dois estágios, por assim dizer, de degradação. Primeiro a ciência


– depois a técnica: mesmas causas e outras diferentes.
Mas, no fundo, a causa é sempre a mesma: oposição entre o âm-
bito infinito do pensamento e os limites do corpo (mesmo na ciência:

9
tempo, signos abstratos...). (28)

Uma vez que o pensamento coletivo não pode existir como pen-
samento, ele passa para as coisas (sinais, máquinas...). Daí este para-
doxo: é a coisa que pensa, e o homem é reduzido à condição de coisa.
Dependência do indivíduo da coletividade e do homem das coisas:
uma e a mesma coisa.
Relações sendo estabelecidas fora da mente. (28-29)

A reviravolta de valores é a mesma na ciência e no trabalho: o


cientista existe para o bem da ciência (para a incrementar), ao invés
da ciência para o do cientista (para torná-lo sábio). Além disso, o ci-
entista depende da ciência (ele parte da ciência estabelecida), e não a
ciência do cientista. O mesmo para as máquinas… (29)

Quantidade.
Método derrotado pela quantidade.
Nossa civilização baseia-se na quantidade.
A ideia de medida foi perdida em todas as esferas (por exemplo,
quebra de recordes no atletismo).
Tudo foi corrompido por ela. Inclusive a vida privada, porque a
temperança tornou-se impensável. Fora da esfera das observâncias ex-
ternas (formalidade burguesa), toda a tendência moral dos anos pós-
guerra (e mesmo antes) tem sido uma apologia da intemperança (surre-
alismo) e, portanto, em última instância, da loucura…
Conceção moderna de amor.
Conversa com Pierre: quando falam sobre paganismo, as pes-
soas esquecem que o próprio centro do paganismo é a ideia de tempe-
rança (que o cristianismo infelizmente a substituiu por privação; mas
o pretenso anjo tornou-se uma besta).

10
Infelizmente, numa atmosfera moral dominada pela intempe-
rança, é particularmente difícil viver por uma regra de temperança –
assim, em muitos aspetos, dificilmente será possível escapar da intem-
perança, exceto através de privação – mas os maiores perigos associa-
dos à privação desaparecem se for adotada, não como regra de con-
duta por si mesma, mas como último recurso provisório, e mesmo
assim apenas quando sentimos ser indispensável. Certamente é um
mal menor; pois embora privação e temperança estejam em oposição,
podemos privar-nos a nós mesmos e ainda ter a temperança como
objetivo – podemos atribuir limites à privação, mas não à intempe-
rança. (29-30)

A ideia grega de medida não faz absolutamente nenhum sentido,


exceto em relação às proporções do corpo humano.
Ainda que pareça que o homem domina aquelas forças que o
ultrapassam infinitamente, na verdade entregou-se a elas – perdeu até
mesmo a ideia da necessidade. (35-36)

A obsessão é o único sofrimento humano (uma dor de dente é


uma obsessão): uma dor que não é uma obsessão não é dor. (36)

É um erro querer ser compreendido antes de ter esclarecido algo


para si mesmo – é cultivar prazeres, e não merecidos, na amizade – é
algo ainda mais corrompedor do que o amor. Venderias a tua alma
por amizade… (37)

O progresso do mecanismo deveria ter estimulado na mente hu-


mana o progresso indicado por Descartes em seus versos sobre a es-
tatueta de Tântalo. (39)

11
[Trata a humanidade como um espetáculo, exceto onde estejas
presa por laços fraternais… e nunca busques a amizade… vive entre os
homens como eu fiz naquele vagão de comboio entre St. Étienne e
Le Puy… acima de tudo, nunca te permitas sonhar com a amizade:
tudo tem um preço… “confia apenas em ti mesma”.] (41)

Arte (de qualquer tipo) está relacionada a duas coisas: trabalho e


amor. Relação entre os dois?
[Na margem] O poema ensina-nos a contemplar os pensamentos
em vez de mudá-los.
Mas o amor só está presente na arte quando superado e até ne-
gado. Aula da obra de arte: é proibido tocar em coisas belas. A inspi-
ração do artista é sempre platônica.
Assim, a arte é o símbolo dos dois esforços humanos mais no-
bres: construir (trabalho) e evitar a destruição (amor superado). Pois
todo amor é naturalmente sádico; e modéstia, respeito, autocontrolo,
são a marca do humano. Não se apoderar do que se ama… não o
mudar de forma alguma… recusar o poder… (42)

Em todas as esferas em que a mente não esteja comprometida,


busca o benefício do anonimato (“segue as regras e os costumes”). [Tu
achas isto muito difícil.] Não tentes fazer-te entender… para quê?
Entender: isso é melhor. (43)

Tem sempre em mente que pontualidade, precisão, confiabili-


dade nas pequenas coisas (“na performance, nada é detalhe”) são as
condições da vida do homem na terra. O tempo não restringe o pen-
samento – pelo menos em certo sentido; mas é o próprio tecido da
ação. Na verdade, tu sempre conheceste a vida do ponto de vista de
um parasita... Aplica o inverso das palavras de Sócrates sobre o lazer.

12
(43)

Aprende a rejeitar a amizade, ou melhor, o sonho da amizade.


Querer amizade é um grande defeito. A amizade deve ser uma alegria
gratuita, como as alegrias proporcionadas pela arte, ou a vida (como
as alegrias estéticas). É preciso recusá-la para ser digno de recebê-la: é
da ordem da graça. “Afasta-te de mim, Senhor…” É uma daquelas
coisas que são dadas “além e acima de”. Todo sonho de amizade me-
rece ser destruído. [Não é por acaso que nunca foste amada…] Querer
escapar da solidão é covardia. A amizade não deve curar as tristezas
da solidão, mas duplicar suas alegrias. Não se deve procurar por, so-
nhar com, desejar a, amizade, mas antes exercida (é uma virtude).
Livra-te de toda essa espuma impura e turva de sentimentos… Ou
melhor (porque não se deve cortar muito) toda aquela parte da ami-
zade que não seja relação social real deve ser ponderada. Certamente
não há necessidade de ignorar a virtude inspiradora da amizade. Mas
o que deve ser estritamente proibido é sonhar com delícias sentimen-
tais. Isso é corrupção. E é tão tolo quanto sonhar com música ou
pintura. A amizade, como a beleza, não pode ser separada da reali-
dade. Como a beleza, é um milagre. E o milagre consiste simples-
mente no facto de que existe. Aos 25 anos, é chegada a hora de uma
rutura radical com a adolescência... (43-44)

Não poderias desejar ter nascido numa época melhor do que


esta, quando tudo está perdido. (47)

[Na margem da página] É uma fraqueza buscar daqueles que ama-


mos, ou desejar dar-lhes, qualquer outro conforto que não seja o das
obras de arte, que nos ajudam pelo simples facto de existirem. Amar e

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ser amado simplesmente torna a existência um do outro mais con-
creta, mais constantemente presente à mente (mas deve estar pre-
sente como fonte dos pensamentos, não como seu objeto). Se há al-
guma razão para querer ser compreendido, não é por nós, mas pelo
outro, de forma a existir para ele. (47)

Duas formas de destino: guerra (poesia épica: Homero, e tam-


bém Sófocles, Ésquilo) – paixão (Eurípides, Racine). [Shakespeare: as
2, Histórias, Tragédias] LOUCURA em ambos os casos (cf. Aga-
mémnon).
A ideia central de Ésquilo (que também está em Homero) é que
o sucesso, por sua própria essência, é um excesso. Platão.
O destino assume a imagem da paixão assim que a vida social,
graças a um forte poder, adquire uma estabilidade – puramente tem-
porária. Mas o amor (a menos que se eleve ao sublime) é sempre do-
minação ou servidão – e, o que é mais, sempre ambos ao mesmo
tempo.
“Afetei, a teus olhos, um falso orgulho –
É de ti que dependem a minha alegria e felicidade…”
[O que é extremamente fraco, em Racine são os casais idílicos…]
(47-48)

Profunda sabedoria contida nos contos populares sobre desejos.


O pescador que quer ser um Senhor, depois um Rei, depois um Im-
perador, depois o Papa, depois Deus... e encontra-se novamente
sendo um pescador. (O que é tão bom nesta história é que é sua es-
posa quem o pressiona. A ambição é principalmente feminina por-
que, enquanto o homem é estimado na medida em que luta com o
mar, a terra, os metais, etc., a mulher é estimada na medida em que
lhe agrada, o que é um objetivo sem lei nem medida. São sempre as

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mães que querem que seus filhos sejam os primeiros.) Em suma, é
precisamente a história de Napoleão. A lição é que a ambição é ilimi-
tada, enquanto que as possibilidades reais nunca são; e quem as ex-
ceder cairá.
Portanto, a única maneira de alcançar o infinito ao qual aspiram
os corações de todos os homens é ser justo, como Sócrates disse a
Alcibíades.
Toda a sabedoria humana está contida nas reflexões dos gregos
sobre “medida” e “excesso”. Sócrates. (48)

O poder tem limites que se devem (além de outros fatores) às


dificuldades de controlo, não só sobre áreas extensas, mas também –
e isto é importante – em profundidade. Camponeses russos. Mas, para
os trabalhadores de linha de montagem, o mesmo tipo de escravidão
é facilmente aplicado. Portanto: evita condições que permitam que a
escravidão seja imposta sem desperdício de poder.
Sempre haverá a compulsão da fome, a compulsão social, amor à
profissão. (49)

Sófocles escolheu as lendas mais horríveis (Édipo, Orestes), para


imbuí-las de serenidade. Suas tragédias ensinam que nada pode des-
truir a liberdade interior. Seus heróis experimentam aflição, mas não
obsessão. São mais alegres do que as lendas de Shakespeare…
Em nenhum de seus personagens existe o menor vestígio de lou-
cura, embora todos eles estejam em situações de enlouquecer: Filoc-
tetes – Édipo – Antígona (entre seu pai e seus irmãos! – seu nasci-
mento é impuro, mas sua piedade é pura) – Orestes – mesmo Ajax,
depois do seu delírio inconsciente, encontra-se maravilhosamente lú-
cido. Em nenhum momento a forma humana é quebrada. Electra: o
triunfo da pureza sobre a impureza… Serei sempre consolada ao ler

15
isto… (49-50)

A vida moderna entregou-se ao excesso. Tudo está imerso nele –


tanto o pensamento quanto a ação, a vida privada e também a pú-
blica. (Desporto: campeonatos – prazer a ponto de intoxicação e náu-
sea – cansaço a ponto de desmaiar – etc., etc., etc.). Daí a decadência
da arte. Não há mais equilíbrio em lugar nenhum. (O que significa
que os esforços de Le Corbusier são em vão...). O movimento no
catolicismo é uma reação parcial contra ele: pelo menos as cerimô-
nias católicas permaneceram intactas. Mas então, elas não estão rela-
cionadas com o resto da vida.
Buscar o equilíbrio entre o homem e ele mesmo, entre o homem
e as coisas.
Todo equilíbrio foi perturbado. Por exemplo: entre o trabalho e
os frutos do trabalho. Mesmo os camponeses foram corrompidos in-
diretamente pela especulação... Não há mais nenhuma relação visível
entre a ação e seus resultados, de modo que mesmo na ação o homem
se tornou passivo.
(Este estado de coisas deve até ser refletido – mas de que ma-
neira? – no amor.)
Curioso problema do materialismo histórico: por que o “amor
platônico” está tão ausente em nossos dias? Tribunais de amor...
Dante... Petrarca...
Magia. (Fausto) (50)

Respeitar aquilo que se deseja – esta é a fonte da piedade, da arte,


da contemplação… Platonismo.
Platão: existem apenas dois tipos de amor: o amor tirânico (Re-
pública IX) e amor “platônico” (Fedro).
Ama-se a alma quando não se deseja mais adquirir a posse da

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pessoa amada. Opor o amor pelo corpo ao amor pela alma é muito
rude – a verdadeira oposição é entre desejar a escravidão ou a liber-
dade para a pessoa que se ama. (52)

(CADERNO DE NOVA IORQUE, 1942)

A ressurreição é o perdão de Cristo para aqueles que o mataram,


a evidência de que ao lhe terem feito o maior mal possível, eles não
lhe fizeram mal. O mal é sentido apenas dentro de um ser puro; mas
nele não é mal. O mal é algo externo a si mesmo; e no lugar onde
está, não se sente. Sente-se onde não está. O sentimento do mal não
é um mal.
O mal sendo a raiz do mistério, a dor é a raiz do conhecimento.
A alegria da Páscoa não é a alegria que vem depois da dor, como a
liberdade depois da prisão, a saciedade depois da fome ou o reencon-
tro depois da separação. É a alegria que se eleva acima da dor e a
aperfeiçoa. No canto gregoriano, por exemplo, as próprias canções
deixam isso claro (Salve, festa dies…). Dor e alegria estão em perfeito
equilíbrio. A dor é o contrário da alegria; mas a alegria não é o con-
trário da dor. (69)

O homem que recebe e transmite a maldade não a deixa pene-


trar no seu âmago. Ele não a sente. Mas penetra no âmago do homem
em quem ela assenta, o homem que a retém. Torna-se uma maldição.
Para se tornar uma maldição, é necessário ser puro.
A plenitude da alegria é necessária para que um ser seja tão puro
que se torne uma maldição.
A dor e a alegria alternadas purificam um ser até que ele seja
puro o suficiente para se tornar uma maldição e ter tanto a plenitude
da dor dentro dele como a plenitude da alegria acima dele. (69)

17
Até corre com a ponta dos pés sobre as cabeças dos homens –
até que um homem a retém; então ela entra nele.
Na Ilíada, ninguém a retém.
Prometeu a retém.
A aflição passa sobre as pessoas comuns (isto é, as não redimi-
das) sem transfixá-las. E ainda assim muda-as. Quebra-as.
P., que sente sua aflição enquanto espera pelo elétrico.
J. B., mantida infantil pela aflição, como crianças que não cres-
cem porque são forçadas a uma tarefa excessiva. (69-70)

Desejo sensual e beleza. A necessidade de esmagar a impureza


interna contra a pureza. Mas o que é medíocre em nós resiste de
forma a salvar a sua vida, e assim precisa contaminar a pureza.
Obter poder é contaminar. Possuir é contaminar.
“Da água e do espírito” – fora de (composição) – seiva vegetal,
síntese da água e da energia ígnea do sol em virtude da clorofila, entra
em nós e se torna sangue (Timeu). Os hebreus pensavam que sangue
é vida. Temos de decompor a síntese, decompor a vida em nós, mor-
rer, voltar a ser água. Então, a energia sobrenatural se combina com
a água pela virtude da graça semelhante à clorofila, e se constitui em
vida sobrenatural. (70)

Uma ordem de homens e mulheres que iriam como prisioneiros


para prisões, etc.
Semente de romã que está irrevogavelmente ligada a Deus. Per-
cebê-la é tê-la comido. (70)

Beleza – a presença real de Deus.

18
Só o eterno é imune ao tempo. Só uma inspiração transcen-
dente pode produzir uma imagem que continuaria a sustentar um
prisioneiro em confinamento solitário.
O amor desceu a este mundo na forma de beleza.
Dor divina. Zeus e Prometeu.
A dor que abre a porta. (71)

Há um bem que é o oposto do mal; e há um que não é.


Contemplar o que não pode ser contemplado (a aflição do ou-
tro), sem fugir, e contemplar o desejável sem se aproximar – isso é o
que é belo.
Desenraizar outros. Uma forma substituta de descriação. (71)

No centro do mundo, há uma árvore em cuja proximidade nada


ecoa, em cuja proximidade nada que seja perfeitamente reto lança
uma sombra. (73)

Fenômenos de transferências e combinações psicológicas. Se al-


guém dissesse às pessoas: o que torna imperioso o desejo carnal em
vós não é o seu elemento carnal; é o facto de lá colocardes vossa parte
essencial – a necessidade de unidade, a necessidade de Deus – não
acreditariam. Para elas, parece-lhes óbvio que essa qualidade da ne-
cessidade imperiosa pertence ao desejo carnal como tal. Da mesma
forma, parece óbvio para o avarento que a qualidade da conveniência
pertence ao ouro como tal e não ao seu valor de troca. Leituras.
Essas combinações devem ser desfeitas, a própria alma deve de-
compor-se novamente em água e energia e nascer de novo a partir
daí.
Para tornar a fé cristã palpável, é preciso demonstrar que ela está
implicitamente presente, de forma degradada, mesmo nas paixões

19
mais básicas. Aquilo de que estamos falando é o que tu desejas de
toda a tua alma, agora, neste estado atual. Mas tu lhe dás um nome
falso. Não lhe dês o nome que sugerimos. Simplesmente não lhe dês
nenhum nome. Persiste nesse silêncio interior. E um dia ouvirás uma
voz que te dirá o nome verdadeiro. (73-74)

O belo vai além da nossa inteligência e, no entanto, tudo o que


é belo nos apresenta algo que devemos entender, não apenas em si
mesmo, mas também no nosso próprio destino. (75)

Caridade. Amar os seres humanos na medida em que são nada.


Isso é amá-los como Deus os ama. (77)

Coisas dadas “gratuitamente” – Deus as dá como recompensa e


como prova de amor. Quando o amo recompensa o escravo, é um
teste mais perigoso do que quando o deixa sem recompensa. Mas por
infinita misericórdia e como um aviso, ele retira as coisas se nos ape-
garmos a elas. Mas pouco a pouco, não de repente, para que o amor
não seja fácil para nós.
Daí a dependência que a tecnologia tem da ciência pura, que
não tem propósito tecnológico. A experiência russa. É um aviso.
A ciência – como toda atividade humana – contém uma forma
original e específica de amar a Deus. E este é o seu destino, mas tam-
bém a sua origem.
Nada pode ter como destino outra coisa senão sua origem.
A ciência pura é uma contemplação da ordem do mundo como
necessidade. (79)

A igualdade geométrica torna o homem igual a Deus. E aquele


pobre Cálicles, que só queria estar sempre adquirindo mais!

20
Um mau número, não um quadrado, como 17 por exemplo,
pode pensar que seria maior se fosse 18. Mas não sabe que o segredo,
o princípio criativo de toda grandeza não é outra coisa que 1. Tor-
nando-se 18 afasta-se ainda mais. Degrada o 1 reduzindo-o ao plano
dos números. Sua grandeza reside unicamente na sua identificação
com 1 por sua própria raiz, √17, que é mediação.
Cada número tem sua própria mediação dentro de si e fora de
si.
A direção para o 18 é má. A direção para o 1 é boa, verdade e
obediência.
“Ama a Deus.” Isto só pode significar a ordem do mundo e do
próximo, porque, até que ele desça e se mostre, não vemos a Deus.
(80-81)

Amor a Deus e “ação inativa”. Passagem em Tucídides.


Para Deus, a Criação consiste não em estender-se, mas em reti-
rar-se. Ele absteve-se de ordenar onde quer que tivesse o poder.
A Criação, a Paixão, a Eucaristia – sempre o mesmo movimento
de retirada. Esse movimento é amor. (81)

O homem é como um náufrago, agarrado a um mastro e sacu-


dido pelas ondas. Ele não tem controle sobre o movimento lhe im-
posto pela água. Do mais alto dos céus, Deus lança uma corda. O
homem ou a agarra ou não. Se o fizer, ainda estará sujeito às pressões
impostas pelo mar, mas essas pressões são combinadas com o novo
fator mecânico da corda, de modo que as relações mecânicas entre o
homem e o mar mudaram. As suas mãos sangram com a pressão da
corda, e às vezes é tão golpeado pelo mar que a solta e agarra de novo.
Mas se ele a afastar voluntariamente, Deus a retira. (82)

21
A aflição obriga o homem a perguntar continuamente “por-
quê?” – a questão para a qual essencialmente não há resposta. Então,
por meio dela, ouvimos a não resposta. “O silêncio essencial…”
Círculo. Dois pontos imediatamente contíguos. Eles tocam-se e
estão separados por toda a circunferência. Heráclito.
Círculo infinito. A circunferência é uma linha reta. As duas ex-
tremidades de uma linha infinita formam apenas um único ponto.
A minha vida é um segmento dessa linha. Sou parte da distância
entre o Pai e o Filho, essa distância que o Espírito Santo percorre. É
a minha própria miséria que me torna recetáculo do Espírito Santo.
Para me tornar algo divino, não preciso fugir da minha miséria, te-
nho apenas de aderir a ela. Meus próprios pecados me são uma ajuda,
desde que saiba ler neles toda a extensão de minha miséria. É no mais
profundo da minha miséria que toco em Deus. (82-83)

Um dos maiores prazeres do amor humano – servir quem se


ama sem o saber – só é possível, no que diz respeito ao amor de Deus,
por meio do ateísmo. (84)

O amor carnal é uma busca pela Encarnação. Queremos amar a


beleza do mundo num ser humano – não a beleza do mundo em
geral, mas a beleza específica que o mundo oferece a cada homem e
que corresponde exatamente ao estado de seu corpo e de sua alma.
(84)

O mar, um movimento na imobilidade. Equilíbrio como ordem


do mundo. Imagem da matéria primária. “Salve, cheia de graça.” Na
arte. Parece estar em movimento e está imóvel. Música, o movimento
toma posse de toda a nossa alma – e esse movimento nada mais é do
que imobilidade. Como no espetáculo de uma onda, o momento em

22
que ela começa a quebrar é o próprio momento de concentração da
beleza. O mesmo na música.
A explicação arqueológica da imobilidade das estátuas gregas
como um regulamento da guilda, um exemplo escolhido da estupidez
contemporânea. (84)

A amizade é idêntica à justiça sobrenatural. Cristo, mediador


entre os homens.
“Nós” – sentimento coletivo, falsa amizade, sem harmonia, por-
que aqui os termos envolvidos são do mesmo tipo, a mesma origem,
a mesma categoria.
Justiça sobrenatural, uma operação análoga à superação da pers-
petiva. Centro em nenhum lugar do mundo, apenas fora do mundo.
Renunciar, pelo amor de Deus, ao poder ilusório que ele nos deixou
e que diz “eu sou”. Não o transferindo para ele, como fazem alguns.
Pois o verdadeiro “eu sou” de Deus é infinitamente diferente do
nosso ilusório. Renúncia sem transferência. Esse é o amor de Deus.
Mas, uma vez que todo pensamento humano que é real tem algum
objeto concreto neste mundo, ele aparece primeiro como amor pela
beleza do mundo ou como amor pelo próximo. E a renúncia é o
abandono de todos os bens para seguir a Cristo. Os bens sociais nada
mais são do que reforços ao poder de dizer “eu”. Aceitação da po-
breza: “Aquele que se tornaria invisível…”
Harmonia aqui é unidade entre contrários. Contrários: eu e o
outro. Unidade somente em Deus. Justiça e amor (ao próximo) idên-
ticos.
Deus é mediação entre Deus e Deus, entre Deus e o homem,
entre o homem e o homem. A única harmonia. (87)

Necessidade, inimiga do homem que diz “eu”. Escrava nos seus

23
devaneios (ou pelo efeito da dominação social), torna-se um amo bru-
tal na aflição. Mas um equilíbrio natural aparece, perto de um ponto
de otimização, que é ação metódica. Este equilíbrio combinado com
a justiça natural seria a felicidade natural. O objetivo do legislador.
Mas esse equilíbrio é apenas uma aparência. O estado de fadiga
revela esse facto. A vontade humana também é uma coisa inerte.
Na experiência prática da necessidade, o exercício da vontade
sempre envolve ilusões. É somente quando considerada como teórica
e condicional que a necessidade é puro pensamento. Pois o elemento
humano está então ausente, exceto no próprio ato de pensar. Todo
conhecimento concreto de factos, incluindo aqueles humanos, é o
reconhecimento de uma necessidade neles presente, seja ela matemá-
tica ou algo análogo.
Desse modo, o homem passa a relacionar-se com a necessidade,
não como escravo e amo ou como igual, mas como quem olha para
uma foto. É olhando que nasce a faculdade sobrenatural do consen-
timento. O consentimento é dado, não à força como tal (porque essa
compele), mas à força como necessidade. A inteligência pura está na
interseção da natureza e do sobrenatural.
Este consentimento é uma loucura que corresponde à tripla lou-
cura de Deus (Criação, Encarnação, Paixão) mas, para começar, à pri-
meira das três.
Logos, nome da Necessidade dado ao Amado – Luz e chuva no
Evangelho, estoicismo.
Alguém consente à necessidade antes de saber que esse consen-
timento é o que perfura a casca. Deus consente por nós, dentro de
nós. A nossa parte natural permanece dentro do ovo.
O sentimento do belo – um sentimento que é percetível à parte
carnal da alma e até mesmo ao corpo, que essa necessidade que é
compulsão é também obediência a Deus.

24
O universo, massa compacta de obediência com pontos lumino-
sos. Tudo é belo. (88-90)

A única maneira de realmente compreender o universo e o des-


tino dos homens, e em particular o efeito da aflição sobre as almas
dos inocentes, é conceber que o universo foi criado para ser a cruz e
os homens para serem irmãos de Cristo crucificado. (91)

Cristo deve ter estado inteiramente presente onde quer que


houvesse aflição. Caso contrário, onde estaria a misericórdia de
Deus?
Sacramentos. Coisas, por hipótese, absolutamente puras, para
consumir impurezas.
Incrédulos, períodos de dúvida nos crentes. Recusa dar o teu
amor a qualquer outra coisa (loucura!).
Período provavelmente infernal para o cristianismo sob os An-
toninos, como resultado, por um lado, sem dúvida, de perseguições
anteriores, e por outro, da expectativa do fim do mundo. (91)

Poder da oração na alma. Se alguém acredita que receberá, o


próprio facto de pedir é um ato. Portanto, as próprias palavras são
atos. É por isso que são difíceis de pronunciar.
Prova pela primeira causa. A única prova legítima é que temos
essa ideia e essa necessidade estranha e absurda de uma causa pri-
meira.
Por que não um argumento análogo a partir da causa final?
E se provarmos que a causa primeira e o fim último são a mesma
coisa?
O que no homem é a própria imagem de Deus é algo dentro de
nós que está apegado ao facto de ser uma pessoa, mas que não é a

25
pessoa. É a faculdade de renunciar à pessoa. É obediência.
Entre os homens, o escravo não se assemelha ao amo pela obe-
diência. Pelo contrário, quanto mais submisso o escravo, mais difere
ele daquele que comanda.
Mas entre o homem e Deus, para se tornar, na medida do pos-
sível, inteiramente semelhante ao Todo-Poderoso, como um filho é
do pai, como a imagem é do modelo, a criatura só tem de se tornar
perfeitamente obediente.
Esse conhecimento é sobrenatural. (92)

O amor, em todas as esferas, só é real quando se dirige a um


objeto particular. É somente em virtude da analogia e da transferên-
cia que ele pode tornar-se universal sem deixar de ser real.
Isso é o que Platão quis dizer no Banquete. (93)

A misericórdia é um atributo especificamente divino. Não existe


misericórdia humana. A misericórdia implica uma distância infinita.
Não se sente pena do que está próximo.
A misericórdia desce do que não sofre para o que sofre.
Para ser misericordioso, é preciso ter um ponto de impassibili-
dade na alma.
E o restante exposto sem defesa aos perigos da fortuna.
A compaixão que se sente pelo aflito é a compaixão sentida, na
aflição, pela parte impassível da própria alma pela parte que sente. A
compaixão que Cristo sentiu por si mesmo quando disse: “Pai, se
quiseres, remove este cálice de mim… Meu Deus, por que me aban-
donaste?” A silenciosa compaixão do Pai por Cristo.
Essa compaixão por si é o que uma alma pura sente na aflição.
Uma alma pura sente a mesma compaixão pela aflição dos outros.
O amor que une o Cristo abandonado na Cruz ao Pai que está

26
a uma infinita distância, habita em cada alma santa. Há um ponto
nessa alma que está sempre com o Pai. “Onde estiver o teu tesouro,
ali estará também o teu coração.” A parte sensível está sempre exposta
à tortura da aflição. Em tal alma o diálogo do grito de Cristo e do
silêncio do Pai ecoa perpetuamente em perfeita harmonia.
Diante de um homem aflito, essa alma responde imediatamente
com a nota verdadeira. “Meu Pai, por que o abandonaste?” E no cen-
tro da alma o silêncio do Pai responde.
“Por que foi permitido que ele passasse fome?” Enquanto se
ocupa o pensamento com esta questão, procede ele automaticamente
a encontrar pão para lhe dar.
Quando o ato é realizado dessa maneira, o homem aflito é dis-
pensado da gratidão, porque é Cristo quem agradece.
“Pai, porquê…?” Deus se acusa da Paixão de Cristo. “Aquele que
me entregou a ti, tem maior pecado…”
Só se pode desculpar os homens pelo mal acusando a Deus. Se
alguém acusa a Deus, perdoa, porque Deus é o Bem.
Em meio à multidão daqueles que parecem nos dever algo, Deus
é nosso único devedor real. Mas nossa dívida para com ele é maior.
Ele nos libertará dela se o perdoarmos.
O pecado é uma ofensa oferecida a Deus por ressentimento com
as dívidas que ele tem e não nos paga. Ao perdoar a Deus, cortamos
a raiz do pecado em nós mesmos. No fundo de cada pecado está a
raiva contra Deus.
Se perdoarmos a Deus por seu crime contra nós, que é o de nos
fazer criaturas finitas, ele perdoará nosso crime contra ele, que é o de
sermos criaturas finitas.
Ao aceitar que somos criaturas, somos libertados do passado.
Assim como Deus, pela boca de Cristo se acusou da Paixão, tam-
bém devemos acusar a Deus por todas as aflições humanas. E assim

27
como Deus responde com silêncio, devemos responder com silêncio.
A compaixão pressupõe que a parte espiritual da alma se tenha
transportado para Deus e que a parte carnal fique nua, sem roupa
nem proteção, exposta a cada golpe. Por causa dessa nudez, a mera
presença de um homem em aflição a torna sensível à possibilidade
de aflição.
Os imperfeitos usam a parte espiritual de sua alma como roupa
para a parte carnal. Mas quando a parte espiritual se transporta para
Deus, a restante fica nua.
Cristo, pregado na cruz, exposto às lanças.
Não estar mais ciente de si mesmo, exceto como algo jurado de
obediência.
Viver nu e pregado na Árvore da Vida.
Agir apenas sob compulsão, ou por necessidade natural, ou por
uma obrigação estrita, ou por uma ordem irresistível de Deus, ou por
uma vívida inclinação natural. Então, o “eu” perecerá de inanição.
Onde nenhuma direção é imposta por necessidade ou por obri-
gação ou por Deus, segue a inclinação.
Cria o hábito de sempre fazer o que achas que és obrigada a
fazer.
Gostaria de conseguir isto sem esforço.
Pudera eu encontrar o ponto de origem da raiz dos erros e cortá-
la de golpe. Então, restaria apenas o doloroso trabalho de superar os
maus hábitos. E tem também a perversidade.
Só se pode amar o próximo com um amor compassivo. É o
único amor justo.
Ama os homens como o sol nos amaria se nos pudesse ver.
O sol como ser pensante é o modelo de perfeição.
Quantas maneiras Deus tem de se dar!
A compaixão faz o amor igual para todos. O desprezo pelo crime

28
e a admiração pela grandeza equilibram-se na compaixão.
O dogma da Trindade é necessário para que não haja diálogo
entre nós e Deus, mas entre Deus e ele mesmo em nós. Para que
possamos estar ausentes.
Deus habitando na comida. Cordeiro, pão. Na matéria moldada
pelo trabalho humano, pão, vinho.
Esse deve ser o centro da vida do camponês. Com o seu traba-
lho, se assim o deseja, o camponês dá um pouco de sua carne para
que se torne a carne de Cristo.
Deverá tornar-se um homem consagrado.
A santidade é uma transmutação como a Eucaristia.
Para que um homem seja realmente habitado por Cristo como
a hóstia após a consagração, a carne e o sangue desse homem deverão
primeiro tornar-se matéria inerte e, além disso, nutritiva para seus
semelhantes. Então, por uma consagração secreta, essa matéria pode
tornar-se carne e sangue de Cristo. Esta segunda transmutação é um
trabalho apenas de Deus, mas a primeira é parcialmente nossa.
É suficiente considerar a carne e o sangue como matéria inerte,
insensível e nutritiva para os outros.
Se eu emagrecer por causa do trabalho no campo, minha carne
realmente se torna trigo. Se esse trigo for usado como hóstia, ele se
torna a carne de Cristo. Quem quer que trabalhe com esta intenção
tornar-se-á um santo. (93-96)

Deus criou-me como um não-ser que aparenta existir, para que


por amor eu renuncie ao que penso ser a minha existência e, assim,
possa emergir do não-ser. Não existe um “eu”. O “eu” pertence ao
não-ser. Mas não tenho o direito de saber disso. Se soubesse, onde
estaria a renúncia? Nunca saberei disso.
Outras pessoas são ilusões de existência para si mesmas.

29
Esta maneira de considerá-las torna sua existência não menos,
mas mais real para mim. Pois as vejo tal como estão relacionadas com
elas mesmas, e não comigo.
Para sentir compaixão por alguém aflito, a alma deve ser divi-
dida em duas. Uma parte absolutamente removida de toda contami-
nação e de todo perigo de contaminação. A outra parte contaminada
até o ponto de identificação. Esta tensão é paixão, compaixão. A Pai-
xão de Cristo é este fenômeno em Deus.
A menos que haja um ponto de eternidade na sua alma que seja
à prova de qualquer contágio pela aflição, não se pode ter compaixão
pelos aflitos. Ou se afasta deles por diferença de situação e falta de
imaginação, ou então, se realmente se aproxima deles, a pena mis-
tura-se com horror, nojo, medo, repulsa invencível.
Cada movimento de pura compaixão numa alma é uma nova
descida de Cristo à terra para ser crucificado.
As almas que estão absorvidas em Deus sem sentir compaixão
pela miséria humana ainda estão subindo e não alcançaram o estágio
de descer novamente (mesmo que se empenhem em boas obras).
Um único pedaço de pão dado a um homem faminto é sufici-
ente para salvar uma alma – se for dado da maneira certa.
Não é fácil dar com a mesma humildade apropriada para rece-
ber. Dar no espírito de quem implora. (96-97)

É preciso ao mesmo tempo saber que não existimos e desejar


não existir.
A humildade é a raiz do amor.
A humildade exerce um poder irresistível sobre Deus.
Se Deus não tivesse sido humilhado na pessoa de Cristo, seria
inferior a nós. (97)

30
A fome (sede, etc.) e todo desejo carnal são uma orientação do
corpo para o futuro. Toda a parte carnal de nossa alma está voltada
para o futuro. A morte congela-a. A privação é uma semelhança dis-
tante da morte.
A vida da carne está voltada para o futuro. A concupiscência é
a própria vida. Desapego é morte.
“A escassez de comida e bebida desgasta o orgulho da carne.” É
o orgulho da carne acreditar que extrai sua vida de si mesma. A fome
e a sede obrigam-na a sentir sua dependência do que lhe é externo.
O sentimento de dependência torna-a humilde. (97-98)

Postulado: o inferior depende do superior.


Existe apenas uma única fonte de luz. A luz fraca não consiste
de raios vindos de outra fonte, que é fraca; é a mesma luz, degradada.
Da mesma forma, o misticismo deve fornecer a chave para todo
conhecimento e todos os valores.
A chave é a harmonia (Filolau).
Cristo é a chave.
Toda geometria procede da Cruz.
O belo é o contato do bem com a faculdade dos sentidos. (O
real é a mesma coisa.)
O verdadeiro é o contato do bem com a inteligência.
Todos os bens neste mundo, todas as belezas, todas as verdades,
são aspetos diversos e parciais de um único bem. Portanto, são bens
que precisam ser posicionados em ordem. Os jogos de puzzle são uma
imagem desta operação. Considerados todos juntos, da perspetiva
certa e corretamente relacionados, eles formam uma arquitetura. Por
meio dessa arquitetura, o bem único, que não pode ser apreendido,
torna-se apreensível.
Toda arquitetura é um símbolo, uma imagem disto.

31
O universo inteiro nada mais é do que uma grande metáfora.
Na astrologia, etc., vemos um reflexo degradado dessa compre-
ensão do universo como metáfora, e talvez uma tentativa – mas ilegí-
tima (parece-me) – de obter provas materiais disso. Alquimia tam-
bém. (98)

Suplicar, isso significa que se espera que a vida ou a morte sejam


decididas por algo externo a si mesma. Ajoelhada, com a cabeça in-
clinada para que o conquistador possa mais convenientemente ar-
rancá-la, as mãos tocando seus joelhos (mas, mais provavelmente, ori-
ginalmente erguidas acima deles) para receber de sua compaixão o
dom da vida, como a semente de um pai. Alguns minutos se passam
assim em silêncio. O coração se esvazia de todos os seus apegos, con-
gelado pelo contato iminente da morte. Uma nova vida é recebida,
que é feita puramente de misericórdia.
É assim que se deve orar a Deus.
Esperar pacientemente na expectativa é o fundamento da vida
espiritual.
A piedade filial é simplesmente uma imagem da atitude para
com Deus.
Se uma alma clamasse a Deus por causa de sua fome pelo pão
da vida, incessantemente, infatigável, como um recém-nascido cuja
mãe esqueceu-se de alimentar…
Que aqueles choros que gritava quando tinha uma ou duas se-
manas continuem incessantemente em mim por aquele leite que é a
semente do Pai.
O leite da Virgem, a semente do Pai – os terei, se chorar. O
choro é o primeiro recurso concedido ao ser humano. Choramos por
aquilo que nunca conseguimos pelo esforço. O primeiro alimento
flui da mãe e é dado em resposta ao choro da criança; não é questão

32
de esforço. (98-99)

O esforço da vontade, no sentido de virtude e cumprimento de


obrigações, tem valor, não em si mesmo, mas como oração muda,
oração em ato e em silêncio. (100)

Uma criança de alguns meses atraída por algum objeto brilhante


chora para que lhe seja dado. Ele estende a mão até que ela caia de
fadiga e, então, volta a estendê-la novamente por horas a fio. No final,
sua mãe vai perceber e não conseguirá resistir. Ela lhe dará o objeto.
Uma formiga sobe alguns centímetros pela lateral de um degrau
liso e depois desliza para trás; sobe novamente e desliza para trás, e
então novamente e volta a deslizar. Uma criança observa e diverte-se
com isso por dez minutos, mas depois já não aguenta mais; ela le-
vanta a formiga com um canudo até à próxima etapa.
Do mesmo modo, cansando a Deus com a nossa paciência, obri-
gamo-lo a transformar o tempo em eternidade.
A paciência capaz de cansar a Deus procede de uma humildade
infinita.
A humildade dá-nos poder sobre ele. Nada pode juntar-se com
o ser perfeitamente compacto, exceto a não-entidade perfeitamente
vazia. Somente pela humildade podemos ser perfeitos como nosso
Pai.
Isso exige um coração completamente humilde e quebrantado.
Uma prece em ação, como a da formiga que sobe e desce, é
ainda mais humilde do que uma prece falada ou até mesmo que gri-
tos não pronunciados ou uma orientação silenciosa de anseio. Signi-
fica saber que nada podemos fazer e ainda assim nos desgastar na-
quilo que reconhecemos como esforços inúteis e esperar humilde-
mente pelo dia em que, talvez, sejam notados pelo Poder que não

33
ousamos implorar.
Não há atitude de maior humildade do que esperar em silêncio
e paciência. É a atitude do escravo que está pronto para qualquer
ordem do amo, ou para nenhuma.
Esperar assim é expressar na ação a passividade do pensamento.
É a paciência que transmuta o tempo em eternidade. (101)

O orgulho da carne consiste em acreditar que tem controlo so-


bre o futuro, que tem o direito de comer assim que tenha fome, de
beber assim que tenha sede. A privação desengana-a e a faz sentir com
angústia que o futuro é incerto, que o homem não tem poder sobre
ele e é totalmente impotente mesmo em relação ao futuro próximo.
De uma forma ou de outra, o grito de orgulho é o de que “o
futuro é meu.”
A humildade é o conhecimento da verdade contrária.
Se só o presente é meu nada sou, porque o presente nada é.
O pão transcendente é o pão de hoje; portanto, é o alimento da
alma humilde.
Todos os pecados são uma tentativa de escapar do tempo. Vir-
tude é submeter-se ao tempo, pressioná-lo contra o coração até que
ele quebre. E então estaremos na eternidade.
A aflição congela a alma reduzindo-a ao presente contra sua von-
tade.
Humildade é consentir nessa redução.
A humildade é o consentimento para aquilo que horroriza a na-
tureza, o vazio.
Eu não sou e consinto em não ser; porque eu não sou o bem, e
desejo que apenas o bem seja.
Esse amor deixaria a Deus com ciúmes, se ele não o possuísse,
como Cristo, na perfeição.

34
Deus deseja ser, não porque seja ele mesmo, mas porque é o
bem. Por amor, o Pai faz com que o Filho seja, porque o Filho é o
Bem. Por amor, o Filho não deseja ser, porque só o Pai é o Bem.
Para o Pai, Deus é o Filho. Para o Filho, Deus é o Pai. Ambos
estão certos, e isso constitui uma única verdade. Portanto, eles são
duas Pessoas e um único Deus.
O Pai é criação do ser, o Filho é renúncia do ser; esta dupla
pulsação é um único ato que é Amor ou Espírito. Quando a humil-
dade nos faz participar dela, a Trindade está em nós.
Essa troca de amor entre o Pai e o Filho passa pela criação. Tudo
o que nos é pedido é consentir a sua passagem. Não somos nada mais
do que esse consentimento. (101-102)

Uma criatura não pode ser legitimamente objeto de qualquer


amor, exceto compaixão.
Nem pode Deus ser objeto de outro amor que não seja louvor.
Nossa miséria é o louvor de sua glória.
Compaixão por cada criatura, porque está longe do Bem. Infi-
nitamente longe. Abandonada.
Deus abandona todo o nosso ser – carne, sangue, sensibilidade,
inteligência, amor – à necessidade impiedosa da matéria e à cruel-
dade do diabo, exceto a parte eterna e sobrenatural da alma.
A criação é um abandono. Ao ter criado o que é diferente de si
mesmo, Deus necessariamente o abandonou. Ele cuida apenas da
parte da Criação que é ele mesmo – a parte não criada de cada cria-
tura. Essa parte é a vida, a Luz, a Palavra; é a presença aqui em baixo
do único Filho de Deus.
É suficiente se consentirmos nessa ordem das coisas.
Como esse consentimento pode estar unido à compaixão?
Como é um ato de amor único, quando parece irreconciliável com o

35
amor?
Deus está ausente do mundo, exceto naqueles neste mundo nos
quais vive seu amor. Portanto, eles devem estar presentes no mundo
por meio da compaixão. A sua compaixão é a presença visível de Deus
aqui em baixo.
Quando carecemos de compaixão, fazemos uma separação vio-
lenta entre a criatura e Deus.
Por meio da compaixão, podemos colocar a parte criada e tem-
poral de uma criatura em comunicação com Deus.
É uma maravilha análoga ao próprio ato da criação.
A crueldade dos judeus e dos romanos tinha tanto poder sobre
Cristo que o fez sentir-se abandonado por Deus.
A compaixão é aquilo que atravessa este abismo que a criação
abriu entre Deus e a criatura.
É o arco-íris.
A compaixão deve ter a mesma dimensão do ato da criação. Não
pode excluir uma única criatura.
Deve-se amar a si mesmo apenas com um amor compassivo.
Cada coisa criada é um objeto de compaixão porque é efêmera.
Cada coisa criada é um objeto de compaixão porque é limitada.
A compaixão dirigida a si mesmo é humildade.
A humildade é a única forma permitida de amor próprio.
Louvor a Deus, compaixão pelas criaturas, humildade para con-
sigo mesmo.
Sem humildade, todas as virtudes são finitas. Só a humildade as
tornam infinitas. (103-104)

Se alguém se comporta como se estivesse morto, o Senhor vem


e traz vida do alto.
Esperar é o extremo da passividade. É ser obediente ao tempo.

36
A obediência total ao tempo obriga Deus a conceder a eternidade.
Aceitar um sofrimento perpétuo ou privação é a porta para a
eternidade; ou, também, uma alegria perpétua: mas é mais difícil. Por
sua própria natureza, depois de certo tempo, o sofrimento ganha uma
cor de perpetuidade.
Aceitação do tempo – a parte da alma que aceita é removida do
tempo.
Pela descida do que pertence ao de baixo, o que pertence ao de
acima é elevado.
Não temos poder de elevação. Temos apenas o poder de rebai-
xar. É por isso que rebaixar-se é a única maneira de subir. (111)

Deus impessoal no Evangelho. “Não o julgarei, mas minha pa-


lavra o julgará.”
Deus deve ser impessoal, para ser inocente do mal, e pessoal,
para ser responsável pelo bem. (112)

Tudo aqui em baixo é escravo da morte. O horror da morte é a


lei de ferro que determina todos os nossos pensamentos e todas as
nossas ações.
Aceitar a morte é a única libertação.
O poder de se tornarem filhos de Deus – aqueles que acredita-
ram no seu nome, que foram gerados não pela vontade da carne ou
do homem, mas por Deus.
A vontade do homem – quando um homem diz a si mesmo: Eu
irei até minha esposa para ter um filho.
A vontade da carne – quando um homem é atraído pela luxúria
para ir a uma mulher. (112-113)

A cruz é o inferno aceito. O sofrimento é mover-se em direção

37
ao Nada acima ou em direção ao Nada abaixo. (117)

Santo Agostinho (contra Pelágio). Se um infiel veste o que está


despido, etc., ele está fazendo o mal, embora a obra seja boa. Pois os
frutos de uma árvore má são maus. E a árvore é má, porque “sem fé
não se pode agradar a Deus”.
Isso é diretamente contrário a Cristo, que disse: Conhecerá a
árvore pelos seus frutos – e não os frutos pela árvore. Na verdade, é
exatamente como a atitude dos fariseus para com Cristo. É idolatria
social, uma idolatria pela Igreja como a idolatria dos hebreus por Is-
rael. – Diretamente oposto à história do Samaritano (os hereges da
época).
É totalitarismo.
Como o cristianismo pode impregnar tudo sem ser totalitário?
Tudo em todos, e não totalitário?
Só se o sagrado for reconhecido como a única fonte de inspira-
ção para o profano, e a razão natural como uma forma degradada de
razão sobrenatural e a arte como uma forma degradada de fé. Ou se
não degradada, a mesma coisa mas em menor grau de iluminação.
A luz sobrenatural descendo à esfera da natureza torna-se luz
natural. Tudo bem, desde que o processo seja reconhecido. Mas, sem
a fonte sobrenatural de luz, logo haverá apenas escuridão, mesmo ao
nível da natureza. (117-118)

Holocausto: “sacrifício que arde a noite toda”. Quando os gre-


gos queimavam os mortos, eles os ofereciam a Deus? Eles os estavam
batizando em fogo? A Fênix também foi queimada.
Somente o fogo destrói completamente. O que é queimado
passa deste mundo para o outro, com Deus. (118)

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Roma e Israel introduziram no Cristianismo, misturado com o
espírito de Cristo, o espírito da Besta. Israel, que matou Cristo, é a
própria forma da Igreja como Santo Agostinho a concebeu. Não terá
pecado ele contra o Espírito quando condenou um infiel que ali-
menta um homem faminto? A Besta é a idolatria social, a idolatria
do grande animal de Platão. É a Besta que diz “… Que ele seja aná-
tema”. Mas “pelos seus frutos os conhecereis”, quer dizer, todo o bem
puro procede de Cristo. Todo bem tem sua fonte em Deus.
Esta é a verdade essencial e não reconhecida: tudo o que é bom
é de origem divina e sobrenatural e procede direta ou indiretamente
da fonte celestial e transcendental de todo bem.
Tudo o que procede de outra fonte, tudo cuja origem é natural,
é estranho ao bem.
Porque ele é o criador, Deus não é todo-poderoso. Criação é
abdicação. Mas ele é todo-poderoso neste sentido, que sua abdicação
é voluntária. Ele conhece seus efeitos e os deseja.
Ele quer dar o seu pão a quem pede, mas só a quem pede, e só
o seu pão. Ele abandonou todo o nosso ser, exceto aquela parte da
nossa alma que habita, como ele, nos céus. O próprio Cristo não
sabia disso até ser pendurado na cruz.
O poder de Deus aqui em baixo, comparado ao do príncipe
deste mundo, é algo infinitamente pequeno.
Deus abandonou a Deus.
Deus se esvaziou. Isso significa que tanto a Criação quanto a
Encarnação estão incluídas na Paixão. (120)

Existem algumas verdades que não se deve saber, ou não muito.


Por exemplo. que o resultado final da obediência a Deus é, sem dú-
vida, a beatitude. (122)

39
Deus é impotente, exceto para a distribuição equitativa e mise-
ricordiosa do bem. Ele não pode fazer mais nada. Mas isso é o sufici-
ente.
Ele tem o monopólio do bem. Ele está presente em tudo que
produz o bem puro. Tudo o que produz efeitos benéficos de ordem
inferior procede das coisas nas quais ele está presente. Todo bem au-
têntico, de qualquer ordem, deriva sobrenaturalmente dele. Tudo o
que não é direta ou indiretamente o efeito da operação sobrenatural
de Deus é mau ou indiferente.
O que não é bom pode igualmente ser legitimamente conside-
rado mau ou indiferente, segundo o ponto de vista a partir do qual é
considerado.
Deus só pode fazer o bem e só para quem o merece, e não o
pode negar ao homem que merece.
Exceto através da presença secreta e sobrenatural de Deus (uma
forma da qual é a ordem e a beleza do mundo), este mundo só pode
fazer o que é mau ou indiferente.
Pode causar todos os danos possíveis a tudo o que não é sobre-
naturalmente protegido pelo bem que emana de Deus.
A quantidade de dano que pode causar onde Deus está presente
é indicada com perfeita veracidade nos quatro Evangelhos.
Ser cristão não tem outro significado senão acreditar nisto.
A crença é despertada pela beleza dos textos e pelo esclareci-
mento que se obtém da condição humana ao meditar sobre eles.
Génesis separa criação e pecado original por causa das necessi-
dades inerentes de um relato composto em linguagem humana. Mas,
ao ser criada, a criatura preferiu ser Deus. Caso contrário, teria ha-
vido uma criação? Deus criou porque era bom, mas a criatura deixou-
se criar porque era má. Ela se redime persuadindo a Deus, pelo poder
da oração, a destruí-la. (122-123)

40
Se alguém tem fome come, não por amor de Deus, mas porque
tem fome.
Se um homem desconhecido, deitado na estrada, está com
fome, devemos dar-lhe comida, mesmo que não tenhamos o sufici-
ente para nós mesmos, não por amor de Deus, mas porque está com
fome.
Isso é amar o próximo como a si mesmo.
Dar “por Deus”, amar o próximo “por Deus” ou “em Deus”,
não é amar o próximo como a si mesmo. Nós nos amamos por um
efeito de sentimento animal.
Esse sentimento animal em si deve se tornar algo universal. E
isso é uma contradição. Milagroso. Sobrenatural.
Contradição, impossibilidade, é o sinal do sobrenatural.
Não nos amamos a nós mesmos “por Deus”, “em Deus”, mas
julgamos ser legítimo o amor-próprio que a natureza implanta no
fundo da alma, na medida em que se é criatura de Deus.
Acontece o mesmo com o amor ao próximo.
Todo ser pensante é digno de amor unicamente na medida em
que recebeu a existência pelo ato criativo de Deus e possui a capaci-
dade de renunciar a essa existência por amor a Deus. É unicamente
por isso que tenho o direito de amar a mim mesma ou outra pessoa.
Somente Deus é o bem, portanto somente ele é um objeto digno
de cuidado, solicitude, ansiedade, anseio e esforços do pensamento.
Só ele é um objeto digno de todos aqueles movimentos da alma que
estão relacionados a algum valor. Só ele tem afinidade com aquele
movimento em direção ao bem, com aquele anseio pelo bem, que é
o próprio centro do meu ser.
Quanto à criatura que chamo de “eu”, ela não é o bem e, por-
tanto, é tão estranha e indiferente para mim como qualquer outra

41
coisa no mundo.
Isto é realmente verdade.
Por que deveria estar interessada no que não é o bem?
E, no entanto, é insuportavelmente doloroso para mim desobe-
decer a Deus (embora seja tão frequente).
Qual a solução para isto?
É uma contradição irredutível e legítima.
A contradição é legítima quando a supressão de um termo en-
volve a destruição do outro ou esvaziamento de substância. Em ou-
tras palavras, quando é inevitável. A necessidade é o critério supremo
de toda lógica. É apenas a necessidade que coloca a mente em contato
com a verdade.
Se fizermos uma distinção em Deus (mesmo sem qualquer hi-
pótese absurda relacionada apenas ao pensamento humano) entre
misericórdia e justiça, vontade e poder, cometemos um absurdo ile-
gítimo extremamente grave.
Por exemplo: Deus pode fazer tudo. Ele poderia ter feito isso e
aquilo... Mas, na verdade, ele desejou ao invés isso e aquilo…
Absurdo. Os limites da vontade e do poder são os mesmos em
Deus. Ele deseja apenas o que pode, e se ele não pode fazer mais é
porque ele não deseja ser capaz de fazer mais. E assim por diante até
o infinito, num círculo. O círculo é a projeção da verdade divina.
O mesmo com misericórdia e justiça. Sua justiça exige que ele
conceda sua misericórdia, e todo o bem, a quem possa recebê-lo. Sua
misericórdia exige que ele retenha seu perdão e todo bem daqueles
que não o desejam.
É infantil distinguir entre a misericórdia de Deus e a justiça no
momento em que se pensa em Deus. E mesmo quando se pensa re-
lativa ao homem a distinção não é legítima, porque esse absurdo, ao

42
contrário de outros, não pode ser usado. Pelo menos é o que me pa-
rece.
Os atributos de Deus não se sobrepõem uns aos outros.
Todos eles têm o mesmo limite, a abdicação que é o ato criativo
de Deus.
Abolimos esse limite abdicando, por nossa vez, de nossa existên-
cia como criaturas. (123-125)

É impossível matar um homem, exceto por absoluta necessi-


dade, quando se compreende que todo homem contém a possibili-
dade de algo tão sublime. Uma vez que seu sangue foi derramado, ele
não pode mais rendê-lo livremente.
Só Deus sabe se a possibilidade continua após a morte. Ele quis
que não soubéssemos. (125)

O pobre coitado que se ajoelha e implora pela vida está dizendo,


sem saber: dá-me mais tempo para me tornar perfeito. Não acabes
comigo enquanto tiver uma participação tão pequena no bem.
Como pode alguém que ama a Deus não ouvir tal oração?
Só Deus sabe o que acontece se a oração do homem não é ou-
vida e acaba sendo morto.
A revelação a Noé: “Quem derramar o sangue de homem, da
sua vida o vou exigir.”
Fragmento de sabedoria pré-histórica. Deve conter um abismo
de significado insondável e profundo. Mas qual o significado? Para
ser meditado.
O impossível no raciocínio matemático (a demonstração pelo ab-
surdo, à qual todas as outras podem ser reduzidas) e o nunca na vida
moral transportam-nos do tempo para a eternidade.
A negação é a passagem para o eterno.

43
“Eu nunca farei isso.” Nessas poucas palavras, ditas em poucos
segundos, está contida uma duração perpétua.
[A palavra] Nunca possui essa propriedade, mas não [a palavra]
sempre. Na verdade, “Eu sempre farei isso” não tem nenhum signifi-
cado.
É por isso que é negativa a confissão justificativa no Livro Egípcio
dos Mortos.
O mesmo em matemática. Existe uma variedade ilimitada de
triângulos, mas nunca tem algum triângulo um lado mais longo do
que a soma dos outros dois.
Esta [palavra] nunca é a essência de todo teorema.
(E, no entanto, a prova pelo absurdo parece muitas vezes à pri-
meira vista bastante insatisfatória. Considera porquê.)
Todo conhecimento preciso das coisas transitórias origina-se de
uma daquelas proposições eternas que contêm um nunca.
As coisas são naturais, temporais; mas os limites das coisas vêm
de Deus.
É o que dizem os pitagóricos. Existe o ilimitado e o que limita,
e o que limita é Deus. Consequentemente, os limites são eternos.
Ele disse ao mar: “Não irás adiante.”
Disso, a matemática é a tradução e a garantia.
Só Deus é digno de interesse e absolutamente nada mais. Então,
o que devemos pensar sobre a multidão de coisas interessantes que
nada dizem sobre Deus? Devemos concluir que são exibições do di-
abo?
Não, não, não. Devemos concluir que elas falam sobre Deus.
Hoje em dia é necessário demonstrar isso com urgência.
É nisso que consiste o dever de levantar a serpente de bronze,
para que seja vista e quem a olhar seja salvo.
Na conduta de vida também está o limite, o “nunca”, que nos

44
transporta do tempo à eternidade.
Não deves comer dos frutos desta árvore. Os dias se sucederão
em infinita variedade, os preencherás com todo o tipo de coisas, mas
entre todas elas um ato fica excluído, o ato de comer aquelas frutas.
“Não deves abrir esta porta. Não deves pensar no urso branco.”
Propriedade sobrenatural do tabu. Hoje conhecemos essa pro-
priedade apenas numa imagem pervertida, a propriedade mágica.
Mas o pecado de Adão não foi desobedecer a uma ordem desse
tipo. Essa história é apenas uma tradução do pecado real para a lin-
guagem humana. Pois o tempo saiu do pecado e não o precedeu.
“Não comerás...”, “não abrirás...”, “não pensarás”.
Feliz aquele que é capaz de obedecer a tais ordens.
As privações voluntárias, se procedem da obediência, são desta
natureza e são um caminho para a eternidade.
Não são úteis se procedem de uma resolução. O efeito de uma
resolução dura um dia, ou oito dias, ou vinte anos, ou mais do que
uma vida humana, mas não para sempre. Nenhuma resolução nos
transporta para a eternidade.
Considerando que “não deves fazer isso” significa “nunca deves
fazer isso”, mesmo que viva cem séculos.
A obediência consentida transporta o centro da alma para a eter-
nidade.
É por isso que os votos religiosos só são úteis para a salvação se
forem a simples expressão de uma vocação; em outras palavras, uma
simples expressão de obediência, o “aqui estou!” de um servo cha-
mado por seu amo.
Se expressam a resolução de observar a castidade, a pobreza, a
obediência aos superiores, são inúteis e até prejudiciais para a salva-
ção.
Somente uma ordem de Deus é eterna.

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Somente o incondicional leva a Deus.
(Uma missa “oferecida por...”, uma oração, ou um sofrimento,
“oferecidos por…”, não são contatos com Deus.)
O incondicional é o contato com Deus. Tudo o que é condicio-
nal é deste mundo.
(Por exemplo, Jacó: Se... se... se... então será o Senhor o meu
Deus.)
O incondicional é o absoluto. (125-127)

O amor é sobrenatural quando é incondicional. Um amor in-


condicional é uma loucura. O amor de mãe é a melhor imagem dele
aqui em baixo. Mas é apenas uma imagem. Mesmo o amor de uma
mãe se esgota se todas as condições para sua renovação estiverem fal-
tando.
Somente o amor de Deus e o amor anônimo ao próximo são
incondicionais.
Podemos acrescentar o amor (amizade) entre dois amigos de
Deus que percorreram o caminho da santidade além do ponto onde
a santidade é algo definitivo. Porque a única condição dessa amizade
é a perseverança na santidade de ambos os participantes; mas visto
que seu estabelecimento na santidade é algo final e sua continuidade
não depende de nenhuma condição, pode-se considerar sua amizade
como incondicional.
Mas esse grau de santidade é muito raro; portanto, assim tam-
bém o é esse tipo de amizade.
É esta amizade que Cristo acrescentou como terceiro manda-
mento, ou seja, como terceiro amor perfeitamente santo ao lado do
amor de Deus e do amor ao próximo.
Todos os outros amores, embora possam ser garantidos por ju-
ramentos, são condicionais e se desgastam gradualmente quando as

46
condições falham.
[Quanto ao amor conjugal, se os dois são santos, é a amizade
dos santos – se apenas um é, então o único fator estável na sua relação
é o amor anônimo ao próximo, dirigido por esse ao outro. – Se ne-
nhum deles é, então, se as condições falharem, o amor conjugal se
desgasta e desaparece, apesar do sacramento.]
O ódio nunca é incondicional.
Todos os acontecimentos da vida, quaisquer que sejam, sem ex-
ceção, são por convenção sinais do amor de Deus, da mesma forma
que o pão da Eucaristia é a carne de Cristo.
Mas uma convenção com Deus é mais real do que qualquer re-
alidade.
Deus estabelece uma linguagem convencional com seus amigos.
Cada evento na vida é uma palavra desta linguagem. Essas palavras
são todas sinônimas, mas, como acontece nas belas línguas, cada uma
delas tem sua nuance completamente específica, cada uma é intradu-
zível. O significado comum a todas essas palavras é: eu te amo.
Um homem bebe um copo de água. A água é o “eu te amo” de
Deus. Ele está dois dias no deserto sem encontrar nada para beber.
A secura na garganta é o “eu te amo” de Deus. Deus é como uma
mulher importuna que se agarra ao amado, sussurrando no seu ou-
vido por horas sem parar: “eu te amo – eu te amo – eu te amo…”
Quem está começando a aprender esta língua pensa que apenas
algumas palavras significam “eu te amo”.
Quem conhece a língua sabe que ela tem apenas um significado.
Deus não tem palavras para dizer à sua criatura: “eu te odeio”.
Mas a criatura tem palavras para dizer “eu te odeio” a Deus.
Em certo sentido, a criatura é mais poderosa do que Deus. Ela
pode odiar a Deus e Deus não pode odiá-la de volta.
Essa impotência faz dele uma Pessoa impessoal. Ele ama, não

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como eu amo, mas como uma esmeralda é verde. Ele é “eu amo”.
E eu também, se estivesse no estado de perfeição, amaria como
uma esmeralda é verde. Seria uma pessoa impessoal.
É impossível ir além de certo ponto no caminho da perfeição se
pensarmos em Deus como sendo apenas pessoal. Para ir mais longe
é necessário – por força do desejo – imitar uma perfeição impessoal.
A perfeição do Pai cujo sol e chuva [espírito e água] são cegos
para o crime e para a virtude.
Este duplo aspeto – pessoal e impessoal – de Deus aparece, na
sua contradição, no Evangelho, em conexão com o papel de Deus
como juiz. “O Pai confiou todo o julgamento ao Filho.” Juiz supremo
pessoal. “Eu não o julgo; a palavra que eu disser, ela a julgará.” Juiz
supremo impessoal.
Os homens sempre sentiram necessidade, de forma a tornarem
sensível ao seu próprio amor os dois aspetos contraditórios desse
amor, de adorar a Deus numa coisa. Sol, pedra, estátua, pão da Eu-
caristia.
A adoração do sol, ou seja, de Deus através do sol, é uma forma
muito bela e tocante desse duplo amor.
Se olharmos para o sol tal como é – remoto, perfeitamente im-
parcial na distribuição da luz, absolutamente fixo num determinado
curso – e o imaginarmos como um ser sentimental e pensante, que
melhor representação de Deus se poderia encontrar? Qual modelo
melhor para imitar?
Se o sol pudesse ver os crimes e aflições deste mundo, que com-
paixão impotente e perfeitamente pura desceria dele…
Assim concebido, o sol é equivalente à Encarnação. Melhor em
alguns aspetos, mas menos bom noutros, porque está distante da
forma humana.
Platão propõe, não o sol, mas a ordem do próprio mundo e,

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sobretudo, das estrelas. Um ser, a ordem do mundo, cujo corpo é o
mundo e cuja alma é a perfeição.
Se alguém adora a Deus num homem, então esse homem deve
se tornar uma coisa em virtude da passividade e deve suportar uma
paixão e deve suportá-la em silêncio.
Ou então ele deve ser um sacerdote (Melquisedeque) restringido
pelas cerimônias a uma ordem tão fixa quanto a das estrelas.
Cerimônia é uma imitação da ordem do mundo e do silêncio
das coisas.
O Pai no céu, que abandona seu Filho e guarda silêncio; o
Cristo abandonado, pregado em silêncio; duas divindades impesso-
ais, refletidas uma na outra e formando um único Deus.
A imagem do poder indiferente de Deus é a obediência passiva
da criatura.
Deus cria a Deus, Deus conhece a Deus, Deus ama a Deus – e
Deus ordena a Deus, que lhe obedece.
A Trindade implica a encarnação – e consequentemente a Criação.
O amor incondicional da Igreja é idolatria.
Temos o direito de amar incondicionalmente apenas o que é
incondicional.
Ou seja, Deus e a presença infusa de Deus – seja ela atual num
santo ou potencial em cada criatura pensante.
Na Igreja há uma coisa incondicional, que é a presença de Cristo
na Eucaristia e nada mais. (127-130)

A fé não é um contato com Deus, caso contrário não seria cha-


mada de noite e véu. É a submissão daquelas partes que não têm
contato com Deus àquela que tem.
As especulações legítimas de condenar como heréticas são aque-

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las que diminuem a realidade das coisas divinas, velando, sob a apa-
rência de reconciliação, as contradições que constituem o seu misté-
rio.
Por exemplo, fazer do Filho um ser divino apenas pela metade.
Ou modificando o divino e o humano em Cristo de forma a recon-
ciliá-los. Ou reduzindo o pão e o vinho da Eucaristia a um mero sím-
bolo.
Os mistérios deixam então de ser objeto de contemplação; não
são mais úteis.
Este é um caso de uso ilegítimo da inteligência, e pode-se pensar
que a alma daqueles que alimentam essas especulações ainda não foi
iluminada pelo amor sobrenatural.
No entanto, esta não é uma razão legítima para excluí-los da
Igreja, porque a alma da maioria dos que se submetem ao dogma
também não foi iluminada pelo amor sobrenatural. É apenas uma
razão para excluí-los das funções de ensino.
A adesão incondicional e total a tudo o que a Igreja ensina, en-
sinou e ensinará, que Santo Tomás chama de fé, não é fé, mas idola-
tria social.
É certo que uma multidão de homens, a maioria deles imperfei-
tos, não pode formular a verdade que Deus transmite em segredo,
sob a forma de silêncio, a um ser perfeito em estado de contempla-
ção. (132-133)

Impossibilidade é aquilo que limita os possíveis; limite é a ne-


cessidade abstraída do tempo.
No que diz respeito às coisas visíveis, é a fonte de uma certeza
mais certa do que a visão.
A subordinação de possíveis temporais e mutáveis a limites fixos

50
é imagem e garantia da subordinação deste mundo ao outro; conse-
quentemente, é objeto de uma contemplação que é fonte de uma ale-
gria secreta e pura.
Minha própria alma, meu próprio eu, é um desses possíveis tem-
porais e mutáveis.
A subordinação de mim mesma, de minha alma, de meu corpo,
de todos os meus desejos, a limites inflexíveis é um objeto de con-
templação que é fonte de uma alegria secreta que é avassaladora.
De outros homens também, se neles me situar pela imaginação.
Essa subordinação também se torna percetível quando um de-
sejo é satisfeito, se os motivos de sua satisfação são claros e claramente
alheios ao desejo – de modo que a satisfação é sentida como precária.
Nesse caso, comer um pedaço de pão quando se está com fome
é uma comunhão com o universo e seu Criador.
A aflição torna essa subordinação muito mais percetível, desde
que o mecanismo causal seja claro. Daí vem a beleza brutal da aflição.
Isso é aprender a obediência como Cristo aprendeu.
Cristo foi acorrentado tal como o oceano.
A única parte de nossa alma que não está sujeita à aflição é a
parte que está situada no outro mundo. A aflição não tem poder so-
bre ela – porque talvez, como diz Meister Eckhart, ela não seja criada
– mas tem o poder de separar-se violentamente da parte temporal da
alma, de modo que, embora o amor sobrenatural habite na alma, sua
doçura é não sentida. É então que irrompe o grito: “Meu Deus, por-
que me abandonaste?”
Uma vez reconhecido a Deus como o bem supremo e real, eter-
namente satisfeito consigo mesmo, isso é o suficiente. Pode até supor
que ele não só não recompensa nem pune suas criaturas, mas tam-
bém que ignora seus esforços para obedecer-lhe, seus lapsos ou revol-

51
tas. No entanto, desejará, mais do que qualquer outra coisa, obede-
cer-lhe – com um desejo mais forte do que a fome, a sede, o fogo
sensual ou o anseio por alívio da tortura física. Ao mesmo tempo,
tudo parecerá sem importância, inclusive a própria posse de Deus,
diante da certeza de que ele se possui eternamente e perfeitamente.
Todo desejo que a natureza colocou na alma humana e que está
apegado a comida, bebida, descanso, conforto físico, prazeres dos
olhos e dos ouvidos, e a outros seres humanos, deve ser separado
dessas coisas e dirigido exclusivamente para a obediência a Deus.
As coisas deste mundo são legitimamente objetos de prazer e
dor, mas não de desejo e repulsa.
E a obediência a Deus, objeto único de todo desejo da alma, é
um objeto incognoscível. Não sei qual será a ordem de Deus amanhã.
Mas sei que, se recuso obedecer-lhe, ou se minha fraqueza me
torna incapaz de o fazer, continuo obedecendo, porque nada acon-
tece aqui em baixo a menos que ele queira.
Portanto, é certa a satisfação desse desejo. Já está satisfeito. É
uma fome que já foi saciada, que sempre será, e que, no entanto, grita
perpetuamente na alma como se nunca pudesse ser.
É um grito no vazio, um apelo eternamente sem resposta.
É este apelo que é o louvor da glória de Deus. Nossos gritos de
angústia louvam-no.
Cristo na cruz clamando “Deus meu, por que me abandonaste?”
– esse é o perfeito louvor da glória de Deus.
Chorar assim durante nossa breve e interminável estada neste
mundo e depois desaparecer no nada – é o suficiente; o que mais há
para pedir? Se Deus concede mais, é com ele; saberemos mais tarde.
Prefiro supor que, na melhor das hipóteses, ele não concede mais do
que isso. Pois isso é plenitude de realização – se apenas, de agora até
ao momento da minha morte, não pudesse haver outra palavra em

52
minha alma do que este grito ininterrupto no silêncio eterno.
Desobedecer a Deus é deixar de saber que ele é real. Então o
desejo imediatamente se apega às coisas terrenas. E queremos conti-
nuar a desobedecer para evitar o desapego. Mas, ao mesmo tempo,
nossa consciência de que somos obrigados a desapegar-nos coloca a
alma em agonia.
Na verdade, visto que Deus existe, até a minha desobediência
não tem importância; mas só sei disso quando obedeço. Assim que
desobedeço, minha desobediência adquire uma importância ilusória,
que para a eliminar só há duas maneiras – ou pelo retorno à obedi-
ência através da angústia e dor do desapego aos meus desejos, ou por
mentir para mim mesma.
Por meio desse mecanismo, impedimos que o conhecimento de
Deus nos leve ao relaxamento moral.
Mas onde existe tal relaxamento, o objeto amado sob o nome
de Deus é realmente outra coisa.
Para obedecer a Deus, devemos receber seus mandamentos.
Como foi que os recebi na adolescência, enquanto professava o
ateísmo?
Acreditar que o desejo pelo bem é sempre satisfeito – isso é fé,
e quem a tem não é ateu.
Acreditar num Deus que pode deixar nas trevas quem deseja a
luz, e reciprocamente, isso é não ter fé.
A fé é a certeza de um domínio diferente desta mistura inextri-
cável de bem e mal que constitui este mundo, um domínio em que o
bem produz apenas o bem e o mal apenas produz o mal.
Reconhecer algo bom como sendo bom e sustentar que sua ori-
gem é o mal é o pecado contra o Espírito que não é perdoado.
Bem e mal, esse é o cerne do problema, e a verdade essencial é
que eles não estão reciprocamente relacionados. O mal é o contrário

53
do bem, mas o bem não é o contrário de nada.
Relações não recíprocas na física moderna; um caso de fenôme-
nos pertencentes a dois domínios diferentes, com duas energias de
qualidade diferente embora a diferença não tenha sido reconhecida?
(Os cientistas acreditam na ciência da mesma forma que a mai-
oria dos católicos acredita na Igreja, a saber, como a Verdade cristali-
zada numa opinião coletiva infalível; esforçam-se nessa crença, apesar
das contínuas mudanças de teoria. Em ambos os casos, é por falta de
fé em Deus.)
Um católico dirige o seu pensamento, secundariamente para a
verdade, mas principalmente para a conformidade com a doutrina
da Igreja. Um cientista faz o mesmo, só que neste caso não há dou-
trina estabelecida, mas uma opinião coletiva em processo de forma-
ção; ele dirige seu pensamento ao longo de uma certa corrente, sen-
tida por intuição, mais ou menos corretamente e com mais ou menos
presciência.
Do ponto de vista da probidade intelectual é pior. É uma restri-
ção ainda pior da inteligência.
Só se pode escolher entre Deus e a idolatria. Não há outra pos-
sibilidade. Pois a faculdade de adoração está em nós e é direcionada
para algum lugar neste mundo ou no outro.
Se alguém afirma a Deus está adorando a Deus ou então a algu-
mas coisas deste mundo rotuladas com seu nome.
Se alguém nega a Deus, ou o está adorando sem saber, ou então
está adorando algumas coisas deste mundo na crença de que as vê
apenas como tais, mas na verdade, sem o saber, imaginando nelas os
atributos da Divindade.
Há um período no crescimento da alma em que a faculdade de
adoração fica dividida – parcialmente voltada para as coisas deste
mundo e parcialmente para o outro.

54
Este é o critério. São adoradores do Deus verdadeiro todos aque-
les que amam as coisas condicionais, sem exceção, apenas condicionalmente.
O Bem está fora deste mundo.
Graças à sabedoria de Deus, que imprimiu neste mundo a marca
do bem, na forma de beleza, pode-se amar o Bem por meio das coisas
deste mundo.
Esta docilidade da matéria, esta qualidade materna da natureza,
encarnou-se na Virgem.
A matéria densa está atenta, no entanto, à persuasão de Deus.
Por meio do amor, a matéria recebe a marca da Sabedoria divina
e torna-se bela.
É justo amar a beleza do mundo, porque é o sinal de uma troca
de amor entre o Criador e a criação.
A beleza é para as coisas o que a santidade é para a alma.
Os seres humanos verdadeiramente belos merecem ser amados.
Mas a concupiscência inspirada pela beleza de um rosto ou de um
corpo não é o amor que essa beleza merece; é uma espécie de ódio
que se apodera da carne quando se confronta com algo que é puro
demais para ela. Platão sabia disso.
Tal é a graça de Deus que às vezes nos faz sentir uma beleza na
nossa própria aflição. É então a revelação de uma beleza mais pura
do que conhecíamos antes. Jó.
Mas no início da aflição há sempre uma privação da beleza e
uma invasão da alma pela feiura. E então, a menos que mantenhamos
o nosso amor orientado, desafiando todo o senso comum, na mesma
direção, embora ele tenha deixado de ter um objeto, perdemos todo
o contato com o bem, talvez definitivamente.
Se, como creio ser possível, há um limite que se pode ultrapas-
sar, neste mundo, e além do qual não há mais esperança de salvação,
gostaria de acreditar que aqueles que o passaram são insensíveis, até

55
mesmo à dor física, ou quase.
Um sofrimento que sem uso possível seria puro mal, e de acordo
com Santo Agostinho o puro mal é nada.
É por isso que gostaria de acreditar que os animais não sofrem.
Deus permite-nos transmitir o nosso amor por ele de duas ma-
neiras: através da beleza ou no vazio.
Em tudo no passado devemos amar o cumprimento da vontade
de Deus. No futuro, devemos amar a esperança do puro bem, a ser
transmitida por Deus sob a forma de inspiração às suas criaturas pen-
santes. O presente está entre os dois. Não é um objeto de aceitação
nem de esperança, mas de contemplação. Contemplação da Sabedo-
ria divina na beleza do mundo, onde os dois contrários, a necessidade
e o bem, se unem. Os factos do passado foram necessários; esperamos
o bem que virá.
Deus é nosso credor; Deus também é nosso único devedor. Sen-
timo-nos enganados por todos os eventos que são contrários aos nos-
sos desejos.
Mas a remissão de dívidas mais difícil consiste em perdoar a
Deus por nossos pecados. O sentimento de culpa vem acompanhado
de uma espécie de rancor e ódio contra o Bem, contra Deus, e é o
efeito deste mecanismo que torna o crime prejudicial à alma.
Os crimes que não são acompanhados por um sentimento de
culpa, mesmo passageiro, não prejudicam a alma. Mas eles só podem
ocorrer em certos estados da alma que são eles próprios doenças mo-
rais.
Tais crimes tornam-se prejudiciais assim que há convalescença,
porque então o sentimento de culpa desperta e é reprimido. (135-
140)

O próprio Deus não pode impedir que aquilo que aconteceu

56
tenha acontecido. Que melhor prova de que a criação é uma abdica-
ção?
Que abdicação maior de Deus do que aquela representada pelo
tempo?
Estamos abandonados no tempo.
Deus não está no tempo.
Criação e pecado original são apenas dois aspetos, diferentes
para nós, de um único ato de abdicação de Deus. E a Encarnação, a
Paixão, também são aspetos desse ato.
Deus se esvaziou de sua divindade e nos encheu com uma falsa
divindade. Esvaziemo-nos dela. Fomos criados para esse ato.
Neste exato momento Deus, por sua vontade criadora, me man-
tém em existência, para que eu possa renunciar a ela.
Deus espera pacientemente até que, finalmente, esteja disposta
a consentir em amá-lo.
Deus espera como um mendigo imóvel e silencioso diante de
alguém que talvez lhe dê um pedaço de pão. O tempo é essa espera.
O tempo é Deus esperando como um mendigo por nosso amor.
As estrelas, as montanhas, o mar e todas as coisas que nos falam
do tempo transmitem-nos a súplica de Deus.
Ao esperar humildemente, tornamo-nos semelhantes a Deus.
Deus é apenas o bem. É por isso que está esperando em silêncio.
Quem se chega e fala usa um pouco de força. O bem que nada mais
é senão o bem só pode esperar.
Os mendigos modestos são imagens dele.
A humildade é um tipo de relação da alma com o tempo. É uma
aceitação da espera. É por isso que, socialmente, a obrigação de espe-
rar é a marca dos inferiores. “Quase tive de esperar”, é a palavra do
tirano. Mas na cerimônia, cuja poesia torna todos os homens iguais,
todos têm de esperar.

57
A arte é espera. A inspiração é espera.
Pela paciência dará frutos.
A humildade participa da paciência de Deus. A alma perfeita
espera o bem em silêncio, imobilidade e humildade como Deus.
Cristo pregado na cruz é a imagem perfeita do Pai.
Nenhum santo conseguiu obter de Deus que o passado não ti-
vesse existido, ou que ele mesmo crescesse dez anos num dia, ou en-
velhecer um dia em dez anos, ou que... Nenhum milagre pode fazer
nada contra o tempo. A fé que move montanhas é impotente contra
o tempo.
Deus deixou-nos abandonados no tempo.
Deus e a humanidade são como dois amantes que perderam seu
encontro. Cada um está lá antes do tempo, mas em lugares diferentes,
e esperam e esperam e esperam. Ele está imóvel, pregado no ponto
pelo todo do tempo. Ela está perturbada e impaciente. Mas, ai dela
se, ao cansar-se, vai embora. Pois os dois lugares onde esperam são o
mesmo na quarta dimensão…
A crucificação de Cristo é a imagem dessa fixidez de Deus.
Deus é atenção sem distração.
Devemos imitar a paciência e humildade de Deus.
É no tempo que temos o nosso “eu”.
A aceitação do tempo e de tudo o que ele possa trazer – sem
exceção – é a única disposição da alma que não é condicionada em
relação ao tempo. Inclui o infinito. Aconteça o que acontecer.
Deus deu às suas criaturas finitas o poder de se transportarem
para o infinito.
Se o conteúdo agradável ou doloroso de cada minuto (mesmo
aqueles em que nós pecamos) é considerado uma carícia especial de
Deus, de que forma o tempo nos separa do Céu?
O abandono de Deus é a sua maneira de nos acariciar.

58
O tempo, que é nossa única miséria, é o próprio toque de sua
mão. É a abdicação pela qual ele nos deixa existir.
Fica longe de nós, porque se ele se aproximasse nos faria desa-
parecer. Ele espera que vamos até ele e desapareçamos.
Na morte, alguns desaparecem para a ausência de Deus e outros
desaparecem para a presença de Deus. Não podemos conceber essa
diferença. É por isso que as representações do céu e do inferno foram
elaboradas, de modo a ter uma aproximação que a imaginação possa
captar. (140-142)

Essência da fé: É impossível desejar realmente o bem e não o


obter.
Ou reciprocamente: tudo o que é realmente possível desejar sem
o obter não é realmente o bem.
É impossível receber o bem quando não o desejamos.
Esse é o significado do preceito: limita teus desejos às coisas que
dependem de ti.
Mas isso não significa coisas que tenhas em ti mesma ou que
possas obter por tua vontade. Pois tudo isso é miserável e sem valor.
Significa um objeto de anseio humilde e desesperado, de súplica.
O bem é algo que nunca poderás obter por teu próprio esforço,
mas que também não poderás desejar sem o obter.
É por isso que nossa situação é igual à das crianças que choram
porque têm fome e recebem pão.
É por isso que suplicantes de todo o tipo são sagrados, a súplica
é sagrada.
Temos o dever de dar tudo, exceto o que temos o dever de recu-
sar.
Deus separou a força do bem neste mundo, e guardou o bem só
para si mesmo.

59
Seus mandamentos têm a forma de súplica. (142-143)

Tudo o que obtemos para nós por nossa própria vontade e nos-
sos próprios esforços, e tudo que é dado ou negado pelo acaso de
circunstâncias externas, é absolutamente sem valor. Pode ser mau ou
indiferente, mas nunca bom.
Deus nos deixa neste mundo expostos ao mal.
No entanto, se desejarmos que a parte eterna e não-sensível de
nossa alma seja preservada de todo o mal, assim será.
A única coisa em nós que não é condicional é o desejo. É apro-
priado que seja dirigido ao ser incondicional, Deus.
Nada pode ser produzido a menos que as condições para sua
produção sejam reunidas.
Tal e tal coisa exige tal e tal condição. Mas se pensarmos: tudo
pode ser produzido, dadas as condições, e assim tudo é equivalente…
Se alguém deseja uma coisa particular, torna-se escravo de uma
série de condições. (143)

Deves julgá-los pelos seus frutos. Não há mal maior do que fazer
o mal aos homens, e nenhum bem maior do que fazer o bem aos
homens.
Não se pode saber o que passa na mente de um homem quando
fala determinada palavra (Deus, liberdade, progresso…). Só se pode
julgar o que há de bom na sua alma pelo bem de suas ações ou pela
expressão de seus pensamentos originais.
Não se pode perceber a presença de Deus num homem, mas
apenas o reflexo dessa luz na sua maneira de conceber a vida terrena.
Assim, o Deus verdadeiro está presente na Ilíada e não no livro de
Josué.
O autor da Ilíada descreve a vida como só um homem que ama

60
a Deus pode vê-la. O autor de Josué como só um homem que não
ama a Deus pode vê-la.
Não é falando sobre Deus que se dá bom testemunho dele, mas
expressando, em ações ou palavras, o novo aspeto assumido pela cri-
ação após a alma ter experimentado o Criador.
Na verdade, esse é o único caminho.
Morrer por Deus não é prova de fé em Deus. Morrer por um
condenado desconhecido e repulsivo, vítima de uma injustiça, é uma
prova de fé em Deus.
Era isso que Cristo estava explicando: “Eu estava nu... Eu estava
com fome...”
O amor de Deus é apenas um intermediário entre o amor natu-
ral e sobrenatural das criaturas.
É somente por causa da crucificação que a fé em Cristo pode
ser, como diz São João, um critério. Aceitar a Deus como um conde-
nado comum, vergonhosamente torturado e condenado à morte, é
verdadeiramente vencer o mundo. (E nada diz sobre a ressurreição.)
É renunciar a toda segurança temporal. É aceitar e amar a necessi-
dade.
Mas quem hoje pensa em Cristo como um condenado comum,
exceto os seus inimigos? As pessoas adoram a grandeza histórica da
Igreja.
Deus está presente, Cristo está presente, onde quer que seja en-
cenado entre um homem e outro um ato de virtude sobrenatural.
A atitude da alma para com Deus não é algo que pode ser veri-
ficado, mesmo pela própria alma, porque Deus está noutro lugar, no
céu, em segredo. Se alguém pensa ter verificado, então é alguma coisa
terrena disfarçada sob o rótulo de Deus. O que apenas podemos ve-
rificar é se o comportamento da alma em relação a este mundo traz
a marca de uma experiência de Deus.

61
Da mesma forma, as amigas de uma noiva não entram na câ-
mara nupcial; mas quando é vista grávida, eles sabem que ela perdeu
a virgindade.
Não há fogo num tacho cozido, mas sabe-se que esteve no fogo.
Não é a maneira como um homem fala de Deus, mas a maneira
como fala das coisas do mundo que melhor mostra se sua alma pas-
sou pelo fogo do amor de Deus. Neste assunto, nenhum engano é
possível. Existem falsas imitações do amor de Deus, mas não da trans-
formação que ele efetua na alma, porque não se tem ideia dessa trans-
formação senão passando por ela mesma.
Quando a maneira de um homem se comportar com as coisas e
os homens, ou simplesmente sua maneira de os considerar, revela
virtudes sobrenaturais, sabe-se que sua alma não é mais virgem, ela
dormiu com Deus; talvez mesmo sem saber, como uma menina vio-
lada durante o sono. Isso não tem importância, é apenas o facto que
importa.
Ilíada. Só o amor de Deus pode capacitar uma alma a discernir
o horror da miséria humana com tanta lucidez e frieza, sem perder a
ternura nem a serenidade.
Aquele romano que morreu para salvar seus escravos da tortura
amava a Deus.
Aquele amo que acredita que seus escravos são seus iguais co-
nhece e ama a Deus. E reciprocamente.
De acordo com a conceção de vida humana expressa nos atos e
palavras de um homem, eu sei (quero dizer, eu saberia se tivesse dis-
cernimento) se ele vê a vida de um ponto neste mundo ou de cima,
no céu.
Por outro lado, quando ele fala sobre Deus, não consigo discer-
nir (mas às vezes consigo…) se está falando de dentro ou de fora.
Se um homem diz que esteve num avião e desenhou as nuvens,

62
seu desenho não constitui uma prova para mim; posso acreditar que
é uma fantasia. Se me trouxer uma vista aérea da cidade, é uma prova.
O Evangelho contém uma conceção da vida humana, não uma
teologia.
Se acender uma tocha elétrica à noite, ao ar livre, não julgo sua
potência olhando para a lâmpada, mas vendo quantos objetos ela ilu-
mina.
O brilho de uma fonte de luz é apreciado pela iluminação que
ela projeta sobre objetos não-luminosos.
O valor de um estilo de vida religioso ou, mais geralmente, espi-
ritual é apreciado pela quantidade de iluminação lançada sobre as
coisas deste mundo.
As coisas terrenas são o critério das coisas espirituais.
Geralmente isso é o que não queremos reconhecer, porque te-
mos medo de um critério.
A virtude de qualquer coisa se manifesta fora da coisa.
Se, a pretexto de que só as coisas espirituais têm valor, nos recu-
samos a tomar como critério a luz lançada sobre as coisas terrenas,
corremos o risco de possuir um tesouro inexistente.
Apenas as coisas espirituais têm valor, mas apenas as coisas físi-
cas têm uma existência verificável. Portanto, o valor do primeiro só
pode ser verificado como uma iluminação projetada sobre o segundo.
Deus, que desejou criar este mundo, desejou que assim fosse.
Se um homem pegasse minha luva esquerda, passasse atrás de
suas costas e a devolvesse para mim como uma luva direita, eu deveria
saber que ele teve acesso à 4ª dimensão. Nenhuma outra prova é pos-
sível.
Da mesma forma, se um homem dá pão a um mendigo de uma
certa maneira ou fala de uma certa maneira sobre um exército derro-
tado, sei que seu pensamento esteve fora deste mundo e se sentou

63
com Cristo ao lado do Pai que está nos céus.
Se um homem descreve para mim ao mesmo tempo dois lados
opostos de uma montanha, sei que deve estar em algum lugar mais
elevada do que o cume.
É impossível compreender e amar ao mesmo tempo os vencedo-
res e os vencidos, como a Ilíada o faz, exceto do lugar, fora do mundo,
onde habita a Sabedoria de Deus. (144-148)

Estado do homem que prostituiu sua esposa a Volpone e então


descobre que ele não é o herdeiro.
Por um bem esperado realizam-se atos que de outra forma se-
riam impossíveis.
Quando o bem não se materializa, fica-se com o impossível. As
ações foram realizadas; nunca poderão ser desfeitas. E ainda assim
elas eram impossíveis.
Um homem com uma jovem esposa, casta e bela, a quem ama,
não a prostituiria com um velho repulsivo sem motivo. É tão impos-
sível quanto levantar um peso sem ser levantado.
Mas se ele fez isso porque pensava que ganharia uma herança e
então descobre que nunca se colocou a hipótese de ele receber a he-
rança, então é como se tivesse feito o que fez sem motivo – como se
seu peso se tivesse levantado por si próprio.
Assim, a alma vive no impossível e não lhe pode escapar, porque
é uma impossibilidade consumada, uma impossibilidade passada.
Então, o único recurso que resta é se desenraizar de seu próprio
passado, que é o pior que pode acontecer a um homem.
O passado nos detém. É mais real do que o presente. E cada
homem tem seu próprio passado, que nada pode tocar.
A alma reencena em pensamento o que fez, mas sem o motivo.

64
Desejando incessantemente que sua esposa ainda estivesse in-
tacta, seu pensamento se volta para o tempo, ainda tão recente, em
que ela estava. Para voltar ao presente, seu pensamento deve passar
pelo sucedido. Mas o sucedido perdeu agora o motivo que sozinho o
tornou possível. Seu pensamento cai continuamente no passado e só
pode voltar ao presente passando pelo impossível.
O mesmo acontece com a ação cuja realização põe fim ao único
motivo que a tornou possível. Por exemplo, um assassinato devido à
raiva que cessa assim que o assassinato é cometido.
Embora fugindo de volta ao passado inocente, deve de novo pas-
sar pelo assassinato, mas sem sentir raiva. Mas essa é uma jornada
impossível.
As consequências de uma ação são mais duradouras do que seus
motivos. Quando são desastrosas, forçam a alma a refugiar-se no pas-
sado, antes de existirem, e a juntar-se ao presente passando por ações
sem motivo. É um tormento para o pensamento.
O mesmo acontece para qualquer motivo, seja qual for a sua a
natureza – sejam honrados ou vergonhosos.
O homem só pode escapar desse tormento realizando ações sem
motivo.
Pode ele fazer isso?
Somente se Deus descer e agir dentro dele e no lugar dele.
Como pode um homem fazer isso?
Implorando a Deus para descer.
A obediência a Deus é o único motivo incondicional e nunca
desaparecerá. Transporta a ação para a eternidade.
Supõe que alguém se diz a si mesmo: mesmo que o momento
da morte não traga nada de novo, que apenas põe fim à vida aqui em
baixo, sem ser o prelúdio de outra vida; mesmo que a morte traga

65
apenas o nada; e mesmo que este mundo esteja completamente aban-
donado por Deus; e ainda que esta palavra Deus não corresponda a
absolutamente nada real, mas apenas a ilusões infantis – ainda que
assim seja, prefiro, mesmo neste caso, fazer o que me parece orde-
nado por Deus a fazer outra coisa qualquer, embora isso me conduza
para os problemas mais terríveis.
Só um louco pensa assim.
Mas se alguém cai nessa loucura, pode estar perfeitamente certo
de nunca se arrepender de qualquer ação realizada em conformidade
com o pensamento acima.
A única dificuldade é que esse pensamento não fornece muita
energia – não a energia suficiente para realizar ações.
Como aumentar essa energia?
A oração vai aumentá-la.
A prática da obediência vai aumentá-la, porque toda ação reali-
zada por um motivo aumenta a energia desse motivo.
Ou então, é verdade, o esgota. Existem dois mecanismos possí-
veis e bastante distintos.
É de extrema importância distingui-los.
O que esgota um motivo é ir além do que o motivo nos incita a
fazer.
Portanto, a proporção de energia posta a serviço de Deus au-
mentará na alma se muito cuidado for tomado para nunca ir além
daquilo a que se sente quase irresistivelmente impelido pela obediên-
cia.
Caso contrário, ou o amor de Deus se esgota ou é substituído,
sob o mesmo nome, por outro amor.
Isso é muito importante – porque muitos amores carnais podem
insinuar-se sob esse nome… (148-150)

66
A oração só é dirigida a Deus se for incondicional. Orar incondi-
cionalmente é pedir em nome de Cristo. Essa é a oração que nunca
é recusada.
Seja feita a tua vontade – seja ela qual for.
Desce para cumprir a tua vontade em mim – seja ela qual for.
Fé significa acreditar que o que fazemos depois de tal oração
estará menos distante da obediência a Deus do que aquilo que fize-
mos antes.
Se uma ação parece ter sido comandada por Deus, podemos su-
plicar a Deus por ajuda para a realizar.
Mas só se fizermos esta reserva implícita: imploro a tua ajuda
para esta ação somente porque acredito que está de acordo com tua
vontade e somente se de facto assim o estiver.
Ao mesmo tempo, deve-se desejar o sucesso dessa ação com um
desejo tão violento quanto o de um avarento por ouro ou o de um
homem faminto por pão.
Pois podemos estar enganados quanto à vontade de Deus – mas
podemos ter certeza de que Deus deseja que façamos tudo o que acre-
ditamos estar em conformidade com a sua vontade.
São Francisco pensou que havia recebido a ordem de carregar
pedras para São Damião, e enquanto ele estava sob essa ilusão, Deus
queria que ele carregasse pedras.
Como é possível que surja na alma humana o sentimento de
que Deus deseja uma determinada coisa? É uma maravilha tão mila-
grosa quanto a Encarnação.
Melhor, é a própria maravilha da Encarnação. Uma alma perpe-
tuamente governada por esse sentimento, do nascimento à morte, é
Deus feito homem.
Sem esta maravilha, seríamos seres completamente terrenos. To-
dos aqueles – talvez a grande maioria – que nunca experimentaram

67
esta maravilha em si mesmos são seres completamente terrenos.
Como é que alguns o experimentam?
A nossa alma é uma balança. A direção da energia nas nossas
ações é o ponteiro da balança, marcando tal e tal figura. Mas as esca-
las são falsas.
Quando Deus, o verdadeiro Deus, ocupa numa alma todo o lu-
gar que lhe é devido, então a balança torna-se verdadeira.
Deus não diz que figura o ponteiro deve mostrar, mas porque
ele está lá, o ponteiro é preciso.
Não as figuras marcadas pelo ponteiro, mas aquilo pelo qual o
ponteiro marca as figuras precisas que marca.
Deus sofreu no lugar do homem – isso não significa que a afli-
ção de Cristo diminuiu de forma alguma a aflição dos homens, mas
que através da aflição de Cristo (tanto nos séculos anteriores quanto
nos seguintes) a aflição de qualquer homem aflito adquire o sentido
e o valor da expiação, desde que o deseje. A aflição então adquire um
valor infinito, que só pode vir de Deus.
Toda expiação implica que é Deus quem está expiando.
As dificuldades na ideia de redenção e os absurdos que a envol-
vem tornam necessário examinar mais de perto a própria ideia de
punição e sua relação com a ideia de sacrifício.
Tudo o que São Paulo diz sobre a redenção só é aceitável se con-
siderarmos a humanidade como um único ser vivo – que pecou nos
dias de Adão, que foi tutelado pela lei, que alcançou pureza e liber-
dade na morte e que ressuscitou.
A expectativa do fim iminente do mundo é essencial para o cris-
tianismo primitivo e explica muitas das anomalias. Sem dúvida foi a
parte mais popular da mensagem. (150-152)

O Juízo Final será assim. – A alma que acaba de passar pelo que

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chamam de morte torna-se subitamente, irresistivelmente, conven-
cida, sem qualquer possibilidade de dúvida, que todos os fins para os
quais todas as suas ações foram dirigidas durante a vida eram ilusões,
incluindo Deus. Inteiramente penetrada em todas as suas partes, in-
clusive na sensibilidade, por essa certeza, ela revive em pensamento
todas as ações de sua vida.
Depois disso, na maioria dos casos, é tomada de horror, deseja
ser aniquilada e desaparece.
Raros são os casos em que não se arrependa de nada, ou em que
pelo menos a alma possa fixar-se em algumas ações das quais não se
arrepende, porque não foram condicionais, foram pura obediência.
Não é tomada de horror, mas continua orientada, com amor,
para o bem.
Porém, sente sua personalidade como uma barreira que impede
seu contato perfeito com o bem, deseja dissolver-se e desaparece.
Talvez um único ato de pura obediência seja suficiente. Mas se
houve um, haverá muitos. (152-153)

Qual é a conexão entre punição e perdão? A reparação – o ofen-


dido só perdoa se o ofensor tiver sofrido pena e humilhação, seja por
consentir em submeter-se a ela (como era frequente na Idade Média)
ou por ser constrangido até que diga, como os escravos açoitados em
Roma: Perdoa-me, já sofri o suficiente.
Outra conexão é a cura – espera-se que a punição seja um remé-
dio para reformar o criminoso; uma vez que ele foi reformado, so-
mente este facto garantirá seu perdão.
São duas relações humanas, mas podem ser transpostas para a
relação entre Deus e o homem, desde que sejam observadas as regras
de tal transposição.
Quais são essas regras?

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O propósito da reparação não é curar o criminoso, mas a parte
lesada, que não pode esquecer a ofensa ou pensar nela sem angústia
até que tenha visto o criminoso sofrer.
Isso corresponde à necessidade de passar o sofrimento adiante.
O capitão que foi repreendido pelo coronel engole a reprimenda até
que ele possa, por sua vez, passar a reprimenda ao tenente.
Mas se alguém é ofendido por um inferior, ele devolve o sofri-
mento ao homem que o causou, e com juros.
O vaso de porcelana quebrado não pode ser consertado; mas
felizmente o escravo que o quebrou pode ser quebrado com o chicote.
Se o escravo se ajoelha, basta, às vezes, simplesmente tê-lo assim
em seu poder.
O escravo que foi açoitado – ou sofreu apenas a dor de implorar
por misericórdia – precisa, por sua vez, de encontrar uma compensa-
ção.
Todo mal incitado neste mundo passa de um homem a outro
até pousar num ser perfeitamente puro que o sofre na sua plenitude
e o destrói.
O Pai que está no céu não é afetado como o homem por nossas
ofensas. Mas por isso mesmo, toda ofensa cometida diretamente con-
tra ele recai sobre o ofensor como uma maldição; e daí em diante ele
não pode deixar de tentar livrar-se desse mal fazendo o mal a outras
criaturas. Ele põe em circulação um mal que passa continuamente de
uma criatura a outra.
Foi isso o que aconteceu com Caim – supondo que Caim sacri-
ficava com relutância.
O mal posto em circulação dessa maneira continua e continua
até cair sobre uma vítima que é perfeitamente pura.
Deus que está no céu não pode destruir o mal; ele só pode de-
volvê-lo na forma de uma maldição. É apenas Deus neste mundo,

70
tendo se tornado uma vítima, que pode destruir o mal sofrendo-o.
Assim, a ideia do mal como reparação conduz à ideia de reden-
ção, quando corretamente transposta.
O Pai que está no céu não envia o mal de volta, mas como não
pode de forma alguma ser tocado por ele, o mal retrocede.
O homem que se vinga imita a Deus Pai. Essa é a maneira errada
de imitar a Deus. O homem só pode imitar a Deus Filho. É por isso
que “Ninguém vem ao Pai senão por mim.”
Os homens sempre sentiram a necessidade de se purificar com
o sacrifício de seres inocentes – animais, crianças, virgens. Quando o
sacrifício é voluntário, é o mais alto grau de inocência.
O homem que sofreu o mal quer livrar-se dele colocando-o em
outro lugar: isso é o desejo de satisfação. Ele não quer abolir o mal,
mas eliminá-lo de sua própria vida e, portanto, lança-o em outro lu-
gar.
Mas para Deus não há outro lugar para onde lançar o mal; a
esfera de sua existência é totalmente inclusiva. Deus pode desejar ape-
nas abolir o mal. Mas é somente através do contato com Deus que o
mal desaparece.
Assim, a satisfação que o homem obtém para si mesmo ao se
livrar da ofensa consiste, para Deus, em submeter-se a ela.
Ao comer a maçã, Adão ofendeu a Deus, e esta ofensa voltou
novamente na forma de uma maldição porque não tocou em Deus.
Mas a ofensa daqueles que cravaram cravos na carne de Cristo não
voltou como uma maldição; tocou em Deus e desapareceu. (153-154)

Vazio
Aqueles que fizeram mal a um homem estão longe, fora de seu
alcance; aqueles que estão ao seu alcance mostraram-lhe bondade;

71
longe de ter qualquer queixa contra eles, ele lhes deve respeito e sor-
risos; e, no entanto, só consegue sorrir à custa de um esforço do qual
ninguém suspeita, porque esse comportamento parece simplesmente
natural.
Se alguém tem de fazer um esforço violento para se comportar
como naturalmente se espera que o faça – isso é o vazio, uma amar-
gura insondável.
O vazio – uma tensão interna à qual nada na situação exterior corres-
ponde.
Exemplo do vazio: punição do campo de concentração de mover
uma pedra de B para A, depois de A para B, depois de B para A, e
assim por diante, durante todo o dia. Muito diferente do mesmo es-
forço, mas no trabalho real.
R: “Se tivesse de trabalhar simplesmente para viver, não conse-
guiria. Só consigo trabalhar se for para melhorar a minha situação
continuamente.” (Vazio)
[O que R. falou sobre o roubo de batatas. “Basta pedir o que se
precisa.” “Ah, mas só consegues implorar por caridade, se tiveres esse
tipo de caráter.” Referindo-se ao velho J. “Eu não conseguiria humi-
lhar-me dessa maneira e submeter-me a colher uvas oito horas por
dia.” – “Mas supõe que tivesses?” – “Suponho tivesse? Suponho que
tivesse? Suponho que tivesse?... Bem, não o faria! Encontraria uma
saída.”]
O vazio só serve para a graça. Portanto, deve ser eliminado na
medida do possível da vida social, porque a sociedade não é composta
de santos. Sempre haverá o suficiente dele para os eleitos.
O vazio é melhor do que um equilíbrio psicológico alcançado
com a ajuda de coisas externas. Mas esse tipo de equilíbrio é melhor
do que aquele inventado pela imaginação.
A imaginação trabalha incessantemente para fechar as menores

72
rachaduras por onde a graça poderia entrar.
Existem também fatores de equilíbrio que são reais e imaginá-
rios ao mesmo tempo. Sorrisos de Luís XIV. Dinheiro.
Poder-se-ia listar uma hierarquia de fatores de equilíbrio diferen-
tes da graça, dos mais reais aos mais imaginários (sendo estes últimos
também aqueles que incluem a maior parte do ilimitado).
[R. queixando-se da cobrança compulsória do álcool vinílico pe-
los grandes proprietários de vinhas, o que significa que não lucra
mais do que se tivesse três vezes menos vinhas. – “Significa que estou
trabalhando para nada.”]
Motivos. Os pensamentos são fluidos, influenciados pela fanta-
sia, paixão, fadiga. Mas temos de trabalhar persistentemente, muitas
horas por dia, todos os dias. Portanto, são necessários motivos prote-
gidos da instabilidade dos pensamentos, isto é, da relação; em outras
palavras, são necessários absolutos ou ídolos.
A única alternativa é o pão sobrenatural, todos os dias.
Portanto, na Caverna as paixões idólatras são uma necessidade.
O que é necessário é encontrar os ídolos menos maus.
Cristo experimentou o vazio total por um momento antes de ser
ressuscitado.
Ele sofreu toda a miséria humana, exceto o pecado; mas tinha
tudo aquilo que faz um homem capaz de pecar. O que faz o homem
capaz de pecar é o vazio; todos os pecados são tentativas de preencher
vazios. Assim, a minha vida suja e miserável está muito próxima da
sua vida perfeitamente pura, e assim também estão as vidas mais vis.
Faça o que fizer, por mais baixo que seja, nunca estarei muito longe
dele. Mas se caísse bem fundo, não poderia mais estar ciente dessa
verdade. Só a graça renovada todos os dias me permite sabê-la todos
os dias.
Arrepender-se. Contemplar um mal cometido no passado e que

73
é irreparável, sabendo disso e não procurando desculpas; fazer isso é
suportar o vazio.
Ou se o mal é reparável, então o esforço de reparação não é re-
compensado, um trabalho no vazio.
Tudo é útil, até o pecado. Mas não acredites demasiado nisso,
porque é um pensamento que cura a amargura e preenche um vazio,
como a crença na imortalidade ou na ordem providencial dos even-
tos.
O vazio é a plenitude suprema, mas o homem não tem o direito
de sabê-lo; e a prova é que o próprio Cristo, por um momento, o
ignorou completamente. Uma parte do homem deveria saber, mas
não as outras, porque elas só o fariam de forma vil, imaginária, e as-
sim o destruiriam.
As minhas partes inferiores deveriam amar a Deus, mas não
muito, ou não seria o mesmo Deus.
A virtude negativa é trabalhar no vazio. Não fazer nada. Fazemos
um esforço e nada muda no exterior. Não colher o fruto.
Uma representação do mundo incluindo um vazio, para que o
mundo possa ter necessidade de Deus. Isso pressupõe algum mal.
E ao mesmo tempo o mundo, como manifestação de Deus, está
cheio. O mundo manifesta a Deus e oculta a Deus. (159-161)

Um bem soberano, ou seja, um bem que inclui todos os bens


possíveis. Essa é a hipótese do Filebo. Portanto, não se trata de incom-
patibilidade entre bens.
Isto significa que não se renuncia realmente a um bem parcial
ou secundário em nome do bem supremo.
Mas deve-se renunciar à busca e ao desejo de todos os bens que
não são o bem supremo – isto é, todos os bens representáveis, sem
nenhuma exceção:

74
Não só inclui o bem supremo todos os bens, mas esses são ape-
nas bens como sombras do bem supremo. (174)

Transposições. As sereias não ofereceram prazer a Ulisses, mas


conhecimento. É uma aposta segura a de que essa é também a isca
na conversa mais grosseira de sedução de qualquer garoto de 20 anos
para com uma garota de 16. É sempre o bem que é oferecido. Nin-
guém é mau voluntariamente. Este ditado indica, não uma identi-
dade, mas uma analogia entre pecado e erro.
Don Quixote. Irrealidade da aspiração pelo bem neste mundo.
(174-176)

A energia sexual humana não é sazonal. Esta é a melhor indica-


ção de que não se destina a um propósito natural, mas ao amor de
Deus. (176)

“Ninguém sabe se ele merece ser amado ou odiado.” Mas é inú-


til fazer essa questão. O drama da salvação desenrola-se por trás da
cortina. Se o amor de Deus existe em mim, é impossível verificar sua
presença. Não é um objeto de consciência. Pois é Deus dentro de nós
que ama a Deus, e Deus não é um objeto. Quanto ao próximo, ao
nos agradecer, Cristo não fará menção dos atos de caridade de que
nos lembramos, pois pelo facto de os lembrarmos já “recebemos a
nossa recompensa”. E quanto àqueles que não lembramos, por defi-
nição não sabemos se ocorreram.
Por outro lado, temos conhecimento com certeza do mal em
nós. Quando fazemos algo que acreditamos ser contrário à vontade
de Deus, é certo que somos culpados de desobediência, mesmo que
seja algo realmente inocente. Quando nos lembramos dos aflitos a
quem não ajudamos, temos a certeza de não os ter ajudado.

75
Portanto, devemos admitir em princípio que, se houver julga-
mento, seremos indubitavelmente condenados. Mas também não de-
vemos atribuir a isso qualquer importância; devemos a tal ser indife-
rentes, e desejar apenas ser perfeitamente obedientes a Deus durante
todo o tempo entre o momento presente e a morte. O resto não nos
diz respeito de forma alguma.
O momento da morte, intersecção do tempo e eternidade, onde
as duas traves da cruz se encontram. O que Cristo é para os homens,
este momento é para os outros momentos do tempo. Os olhos da
mente devem fixar-se neste momento, e não na vida mortal, nem na
eternidade, porque nossa ignorância sobre a eternidade permite que
a imaginação tenha licença total quando pensamos sobre ela.
Axioma: tudo o que me pertence não tem valor. Porque o ver-
dadeiro valor e propriedade são essencialmente incompatíveis. (176-
177)

Deixa o escravo aguardar o mestre até que se esgote toda a sua


força física.
A espera pode assumir a forma de alguma atividade cansativa. É
a alma que espera imóvel, que pode subsistir em meio à maior agita-
ção externa.
Pescar a noite toda e não apanhar nada. A paciência dos pesca-
dores é uma forma, uma bela imagem, de paciência… (a forma espe-
cífica de espiritualidade deles deve basear-se nela; a cada ocupação a
sua espiritualidade).
É errado dizer que Deus dá gratuitamente e que nada deve aos
homens. Tendo nos criado, ele nos deve tudo. E na verdade ele nos
dá tudo. Mas não nos obriga a receber. Ele pede-nos para consentir
em pagar sua dívida; e recusamos, ou consentimos apenas pela me-

76
tade. Visto que a criação é um ato de amor, é a criação de uma facul-
dade de consentimento livre.
O que ele nos deve é manter-nos na escravidão. O que temos de
consentir é em sermos escravos.
Se nos oferecesse alegria, poder e glória, não estaria em nosso
poder recusar seus presentes. Ele escolhe seus presentes de tal forma
que somos livres de recusá-los.
Está ao nosso alcance, é fácil recusar a cruz. (177-178)

A minha existência é uma diminuição da glória de Deus. Deus


a dá para que eu deseje perdê-la. (178)

Hino de Cleantes. O raio, esse objeto de terror – é o Espírito, o


Amor por meio do qual o mundo é persuadido por Deus e consente
ao seu domínio. Maravilhoso – extraordinário. Identidade da aflição
e do amor divino. Quando Deus parece usar compulsão – se olhar-
mos de perto, é persuasão.
Um escravo romano, arrancado de sua própria vida, colocado
nas mãos de um amo, maltratado e finalmente crucificado, deve ter
morrido com o coração cheio de ódio – e consequentemente conde-
nado – a menos que Cristo descesse nele. Portanto, se pensarmos que
Cristo veio apenas vinte séculos atrás, como perdoaríamos a Deus
pela aflição dos escravos romanos? (178)

A ideia de níveis sobrepostos verticalmente na vida da alma, o


mais alto deles estando acima da consciência e do psicológico – não
há nada mais importante. O que é verdadeiro num nível mais elevado
é falso mais abaixo e reciprocamente. Assim, é no segredo do nível
mais elevado que o amor de Deus e o amor ao próximo são um só
amor. Mais abaixo, na consciência, o amor autêntico de Deus aparece

77
como traição para com os homens (Hipólito) e o amor autêntico do
homem como traição para com Deus (Prometeu). Cristo une os dois.
Lenda russa de São Nicolau perdendo um encontro com Deus
ao ajudar um camponês a sair de um pântano.
[Segundo Filo, citado por Eusébio, Hist. Eccl., II, xvii, havia uma
seita no Egito perto de Alexandria, no século I, que vivia ascetica-
mente, com um “santuário” em cada casa, e dedicava seu tempo à
interpretação simbólica das Escrituras, com a ajuda de escritos antigos
que continham interpretações de símbolos alegóricos e que usavam
como modelos.
Eles compunham cantos religiosos, viviam castamente, comiam
apenas após o pôr-do-sol, ou mesmo apenas a cada três ou seis dias.
Consideravam a lei apenas como um corpo, sendo a alma o sig-
nificado oculto.
Renunciaram a propriedades e viveram fora dos muros da ci-
dade, os homens de um lado, as mulheres do outro.] (179)

O No japonês. É Buda quem faz as flores crescerem dos galhos


das árvores, para fazer os homens olharem para cima. É ele quem faz
a lua afundar sob as ondas, para que os aflitos saibam que Deus
desce. (181-182)

Humildade não é uma má opinião sobre minha própria pessoa


quando comparada com outras pessoas. É uma opinião radicalmente
má da minha própria pessoa em relação ao que em mim é impessoal.
Quando o impessoal se implanta numa alma e começa a crescer,
atrai a si todo o bem. A pessoa retém como sua propriedade apenas
o mal. Segue-se daí que, ao comparar-se com outros, a pessoa sempre
se acha inferior, porque os vê como uma mistura de bem e mal. (182)

78
Livro sobre o No, referente à dança: na arte, se algo bom se torna
enfadonho quando dura 5 minutos, não o reduzas para 2 m., mas
prolonga-o para 10 m., 20 m., uma hora (Waley).
Algo insuportável permite quebrar um teto.
Teatro – deixa o início e o fim darem a noção do tempo. (183)

A contemplação do tempo é a chave da vida humana. É o mis-


tério irredutível, do qual nenhuma ciência se pode apoderar. A hu-
mildade é inevitável quando não se sabe seguro de si mesmo em re-
lação ao futuro. Não há estabilidade a menos que se abandone o “eu”
sujeito ao tempo e modificável.
Duas coisas irredutíveis a qualquer racionalismo: tempo e be-
leza. Deve-se começar daí. (183)

Contos do Cáucaso.
O jovem que busca o país da vida eterna e finalmente o encon-
tra, e nele uma donzela imortal chamada Bela. Depois de um tempo,
ele deseja ver sua família novamente. Ela lhe diz: “Não irás encontrar
sequer os seus ossos” – “Porquê? Estive aqui pouco tempo” – “Desde
o princípio te disse que eras indigno da vida eterna”. Assim que chega
em casa, fica sabendo que mil anos se passaram e de repente enve-
lhece e morre. A história chama “A terra terá o que é seu”.
Um camponês e seu filho estão com sede, e ao verem uma fonte,
bebem, e dizem: “Ah! como tu és boa!” Imediatamente o diabo apa-
rece da fonte. (187-188)

Jejum, vigílias, etc. – como atos de piedade, são bons se forem


fáceis. Há algo de maravilhoso na facilidade, algo que se reflete nos
quintetos de Mozart e nas canções de Monteverdi. Quero sofrer vio-
lência de seres humanos e fazer-me violência em nome deles; mas por

79
Deus, gostaria de fazer apenas coisas fáceis. Exceto a orientação do
pensamento para Deus, que é a violência suprema e íntima que a
alma a si se faz. (188)

O fundamento da mitologia é que o universo é uma metáfora


das verdades divinas.
“Comer o Deus.” (191)

A ataraxia baseia-se no amor. É o amor que impede a pessoa de


perturbar-se. Mas quando nos perturbamos, é por amor. Portanto, é
simplesmente um amor mal direcionado. (193)

O amor de Deus é essencialmente um sentimento incondicio-


nal. Independente não só das desgraças, mas também dos crimes em
que possa cair a alma. Isso significa que o crime não deve impedir o
amor de Deus. Mas o amor de Deus deve prevenir o crime.
Os criminosos penitentes seriam muito privilegiados se compa-
rados aos inocentes, não fosse por estes últimos se “tornarem uma
maldição” pela aflição.
Em meio aos eventos azarados, a justiça é assegurada pelo facto
de que aqueles que estão acima do nível espiritual, onde a aflição não
causa dano, também estão abaixo do nível espiritual, onde a pessoa
se abstém de tratar os homens cruelmente quando as circunstâncias
permitem. Aqueles a quem se pode fazer mal, são aqueles que fariam
mal, se pudessem. Não podemos fazer mal àqueles que de maneira
alguma prejudicariam outros; embora seja possível colocá-los numa
condição em que se tornam uma maldição.
A base do sobrenatural é a assimetria, relações não recíprocas –
relações “não abelianas”.

80
A história de Cristo é um símbolo, uma metáfora. Mas era cos-
tume acreditar-se que as metáforas se produzem como eventos no
mundo. Deus é o poeta supremo. (194)

Todo o problema do misticismo e das questões afins é o grau de


valor das sensações de presença. (198)

Para os gregos, o sofrimento infernal – as Danaides etc. – é pura


e simplesmente o tempo, designado como punição pelo pecado. (198)

A santidade é a única forma de escapar do tempo.


Neste mundo, vivemos numa mistura de tempo e eternidade. O
inferno seria puro tempo. (198)

Nesta mistura de tempo e eternidade, a alegria corresponde a


um aumento do fator eternidade e a dor a um predomínio do fator
tempo. Então, por que passar pela dor nos torna mais percetivos da
beleza? (198)

Não precisamos acreditar na vida eterna – porque a única prova


dessa vida são os pressentimentos da eternidade que temos neste
mundo. E esses pressentimentos são por si mesmos suficientes. É ver-
dade que pressupõem a plenitude da vida eterna. Mas não necessari-
amente para nós.
A alegria fixa-nos na eternidade e a dor fixa-nos no tempo. Mas
o desejo e o medo acorrentam-nos ao tempo, e o desapego quebra as
correntes.
A busca da alegria apega-nos ao tempo. A alegria é a nossa fuga
do tempo.
A dor mantém-nos presos ao tempo, mas a aceitação da dor

81
transporta-nos para o fim do tempo, para a eternidade. Esgotamos a
extensão indefinida do tempo, a ultrapassamos.
Novo nascimento. A semente, em vez de engendrar outro ser,
serve para engendrar o mesmo ser uma segunda vez. Retorno sobre
si mesmo, circuito fechado, círculo.
O movimento circular é também o símbolo do aparente afasta-
mento, o que é realmente uma aproximação.
“Quem não nascer do alto não entrará no reino dos céus.” É
preciso descer do céu para poder voltar para lá.
“Da água e do espírito.” A primeira geração vem do sangue.
(198-199)

Aqueles que chegaram ao absoluto expressam-se apenas em


identidades, “o bem é o bem”, “eu sou eu” (Atman) – porque só uma
identidade expressa o incondicional.
Desapegar-se dos frutos da ação. Para isso, a alma precisa de uma
arquitetura em profundidade. Porque a parte da alma que atua pre-
cisa empenhar-se apaixonadamente pelos frutos da ação. A outra
parte tem de estar desapegada. (206)

Ideia de sacrifício – Ideia de dar algo a Deus, a quem tudo per-


tence… tudo o que lhe podemos dar é o consentimento. Esse consen-
timento vem de Deus. (206)

O propósito da vida humana é construir uma arquitetura na


alma. (208)

A eternidade é encontrada no final de um tempo infinito. Dor,


cansaço, fome dão ao tempo a cor do infinito. (208)

82
O grande obstáculo à perda da personalidade é o sentimento de
culpa. É preciso perdê-lo.
O objetivo é perder a personalidade. Uma vez que está insepara-
velmente ligada ao sentimento de culpa, o verdadeiro preço da vir-
tude é a abolição desse sentimento. Só se pode lutar contra o senti-
mento de culpa praticando a virtude.
A natureza humana é feita de tal forma que não há outra forma
de escapar do sentimento de culpa, que é idêntico, no seu centro, ao
sentimento de ser eu.
Dar puramente, de puro amor, implica que a pessoa deseja tam-
bém receber. Enquanto o orgulho nos impedir da disposição de rece-
ber, não teremos o direito de dar.
Não há bem dentro do universo, mas o universo é bom. (208-
209)

A alma coletiva é unidimensional. Não tem arquitetura. Só por


meio da cerimônia adquire ela profundidade, mas a cerimônia a re-
duz ao silêncio.
A propaganda é unidimensional. (209)

Compaixão é o reconhecimento da nossa própria miséria no ou-


tro. O reconhecimento da nossa própria miséria na aflição de outra
pessoa. O que o torna puro é o próprio mecanismo pelo qual La Ro-
chefocauld achava discernir sua impureza.
Um santo em aflição julga que sua aflição é uma coisa boa, mas
apenas com a parte de sua alma que não a sente.
E o remorso?
Quando a nossa ação é dominada pela sensibilidade, a ilusão do
“eu” ainda está intacta.
Deixa que as ações virtuosas sejam simplesmente um incidente

83
da contemplação.
Compaixão e humildade estão conectadas.
A humildade é a raiz de todas as virtudes autênticas. Castidade,
por exemplo. Temperança. Paciência.
A compaixão é natural ao homem se o obstáculo do sentimento
do “eu” for removido. Não é a compaixão que é sobrenatural, mas a
remoção desse obstáculo.
Só a humildade torna as virtudes ilimitadas.
Age como o sol o faria, se soubesse. Só não tem piedade porque
não sabe.
Justiça. Ser como a matéria inconsciente seria – se fosse consci-
ente.
Imagem de Deus. (209-2010)

O sentimento de culpa está sempre ligado a um espírito acusa-


dor. Colocamos a culpa por nossos fracassos e deficiências em outras
coisas e criaturas. No final, estamos acusando a Deus.
Se perdoarmos a Deus por nossos pecados, ele nos perdoará por
eles.
Todas as nossas dívidas são para com Deus, e Deus também é o
nosso único devedor (como poderíamos ficar com raiva de um ho-
mem que nos ofende sem ficar com raiva de Deus que permitiu a sua
ofensa?). Ao ofendermos a Deus, incorremos numa dívida infinita,
porque ele é infinitamente bom. Ao permitir que as pessoas nos ofen-
dam, ele contrai uma dívida infinita, porque é infinitamente pode-
roso. As dívidas cancelam-se.
O criminoso culpa a Deus por seus crimes. O homem inocente
sente-se culpado por suas aflições. (210)

Todos serão salgados pelo fogo. Tudo será queimado no fogo,

84
mas quem já se tornou fogo não sofrerá.
Todos serão destruídos pelo contato com Deus, mas aquele que
já morreu em espírito pelo amor será aperfeiçoado por esta destrui-
ção. (210)

A parábola dos trabalhadores da décima primeira hora mostra


que há apenas um único salário, e não diferentes graus de glória.
O filho pródigo pede sua parte ao pai e começa a consumi-la no
caminho da perdição. Conhece então a fome e trabalha como mer-
cenário, e continua com fome. E só então retorna a si novamente.
Sua porção era o livre arbítrio. É preciso esgotar a vontade na
busca pelo bem aparente neste mundo, e desejar em vão por muito
tempo, antes de retornar a si mesmo e lembrar-se de seu Pai. É para
os pródigos – aqueles que gastam toda a sua energia em busca do que
lhes parece ser o bem, e continuam desejando impotentemente de-
pois de esgotadas as suas forças – que retorna a memória da casa do
Pai. Se o filho vivesse economicamente, nunca pensaria em voltar.
“Dá-me a minha porção”, esse é o pecado original. Dá-me livre
arbítrio, a escolha entre o bem e o mal.
Não é a dádiva do livre arbítrio a própria criação?
O que é criação do ponto de vista de Deus é pecado do ponto
de vista da criatura.
Deus perguntou-nos, “Queres ser criado?”, e respondemos que
sim. Ele ainda nos pergunta a cada momento, e a cada momento
respondemos sim. Exceto por alguns cuja alma está dividida em duas;
embora quase toda a sua alma responda sim, há um ponto nela que
se desgasta em suplicar: não, não, não! Este ponto cresce à medida
que chora, e se torna um remendo que eventualmente se espalha por
toda a alma. (211)

85
Habacuque: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal,
e a iniquidade não podes contemplar…”
Todo contato entre Deus e o homem é uma dor para os dois
lados. Deus não pode olhar para o mal e o homem não pode olhar
para o bem. Prometeu e Hipólito. Seus tormentos são complementa-
res. Deus amando muito o homem, o homem amando muito a Deus.
O sacrifício é uma dádiva para Deus, e dar a Deus é destruir. É
justo, portanto, pensar que Deus abdicou para criar e que, destru-
indo, lhe estamos restituindo.
O sacrifício de Deus é criação; o sacrifício do homem é destrui-
ção.
Mas o homem tem o direito de destruir apenas o que lhe per-
tence; isto é, nem mesmo seu corpo, mas única e exclusivamente sua
vontade.
Antes de beber, despejamos uma gota; isso é dá-la a Deus. Uma
única gota de um copo, essa é a porção de sua vida que o homem
pode dar a Deus. Se tal conseguir dar, estará salvo.
A gota derramada é um gasto gratuito de energia. E cada gasto
gratuito de energia é uma dádiva para Deus e uma destruição de parte
da vontade.
Quando despejamos essa gota, nós a atiramos para fora deste
mundo, para além do horizonte, para além do céu.
Apenas uma gota, mas não pedimos nada em troca.
Da mesma maneira deu Cristo deu tudo de si.
Em que sentido Cristo expiou a humanidade? Expiar é restaurar
o que se tomou injustamente. A humanidade roubou o livre arbítrio,
a escolha entre o bem e o mal. Cristo o devolveu, aprendendo a obe-
diência. Nascer é participar do roubo de Adão. Morrer é participar
da restituição de Cristo. Mas só seremos salvos por essa participação
se consentirmos nela.

86
Salvação é consentir em morrer. (211-212)

Abel foi o primeiro homem morto. Não é Abel a primeira en-


carnação do Verbo? O primogênito dos mortos? (212)

O nascimento envolve-nos no pecado original, a morte redime-


nos dele. A Cruz de Cristo, como o modelo perfeito da morte, a
morte em si mesma no sentido de Platão, redimiu-nos a todos. Mas
se consentirmos em nascer e em não morrer, cometemos pessoal-
mente o pecado de Adão, para nossa destruição.
Só Deus pode nascer sem pecado original. Porque, para Deus,
nascer é renúncia. O nascimento de Cristo é já um sacrifício. O Natal
deveria ser um dia tão triste quanto a Sexta-feira Santa.
Todo homem, vendo-se do ponto de vista de Deus criador, con-
sideraria sua própria existência um sacrifício feito por Deus. Eu sou
a abdicação de Deus. Quanto mais eu existo, mais Deus abdica. Por-
tanto, se ficar do lado de Deus ao invés do meu, devo considerar
minha existência como uma diminuição, um decréscimo.
Quando alguém consegue fazer isso, Cristo vem habitar na sua
alma.
Quanto a mim, devo repetir no sentido contrário a abdicação
de Deus, devo recusar a existência que me foi dada, recusá-la porque
Deus é bom. Quanto às outras pessoas, devo imitar a própria abdica-
ção de Deus, consentir em não ser, para que elas sejam; e isso apesar
de serem más.
É por isso que devemos servir às necessidades físicas dos outros,
na medida em que são legítimas. Pois é preciso servi-los como seres
criados. Não cabe ao ser criado induzir outro a renunciar à sua exis-
tência como criatura. Para esse fim, o melhor que podemos fazer é

87
servi-los gratuitamente nas suas necessidades de criatura. Cristo cu-
rou e alimentou. A relação entre criaturas que leva uma alma à ami-
zade com Deus é a pura troca de compaixão e gratidão.
Tudo o que é dado gratuitamente a uma criatura é dado a Deus,
como uma gota de vinho derramada de um copo no chão.
Se alguém pensa que deu algo gratuitamente, esse próprio pen-
samento é um preço, uma recompensa.
Portanto, nunca podemos saber se demos ou não gratuita-
mente.
Deve ser feita uma lista das coisas que são verdadeiras, desde
que não as pensemos e se tornem falsas assim que as pensamos.
Como o cretense – “Sou um mentiroso”. No momento em que
o pensa, não é um mentiroso. Esse sofisma é muito profundo.
Todo o bem e mal que alguém pensa de si é falso no momento
de pensá-lo. É por isso que se deve pensar apenas mal de si mesmo.
E não se deve saber que é falso. (212-213)

Em certas tribos negras, cada homem tem seu fetiche pessoal;


mas eles também acreditam em Deus. Se um deles tivesse a ideia de
proclamar que seu fetiche era o próprio Deus, seguir-se-ia que ele de-
veria reinar sobre todo o universo. Foi assim que Israel deu ao seu
fetiche nacional – que não era representado por uma imagem, mas
isso não faz diferença – o nome de Deus.
É por isso que Moisés proibiu imagens. Para que Israel conti-
nuasse a acreditar que seu pequeno ídolo nacional era o próprio
Deus, o criador do universo. Eles não teriam acreditado se o pequeno
ídolo fosse uma estátua. Moisés queria que eles acreditassem, pelo
bem da grandeza temporal de Israel.
Cristo, pelo contrário, fez de Deus seu único ídolo. Pode parecer
a mesma coisa, mas fazer de Deus o seu ídolo e fazer de um ídolo o

88
seu Deus são dois movimentos contrários. Assim como existem duas
conceções contrárias de realeza: fazer dos meus desejos a lei, ou fazer
da lei o meu desejo.
Os árabes, que também aspiravam à dominação temporal em
nome da religião, continuaram com a proibição das imagens.
As imagens são uma garantia contra um certo tipo de idolatria.
É impossível ficar diante de um pedaço de madeira entalhada e dizer:
“Tu criaste os céus e a terra.” Mas os hebreus, exaltados pela presença
de sua própria alma coletiva, podiam muito bem tratá-lo dessa ma-
neira, porque, não sendo um objeto material, não podia ser obvia-
mente visto como uma coisa criada.
Roma queria suprimir todo pensamento sobre Deus e permitir
que os homens adorassem apenas o poder do Estado. Mas é impossí-
vel para os homens se esquecerem totalmente de Deus.
Os hebreus chamavam sua própria alma coletiva de Deus; pre-
tenderam e convenceram-se de que era o criador e governante do céu
e da terra. Nem sempre foi fácil acreditar nisso… No entanto, parece
ter-lhes dado uma força extra. Quanto aos povos vizinhos, deveriam
ser conquistados antes de serem convencidos disso.
Seus vizinhos não estavam dispostos a associarem-se a eles, ex-
ceto em termos que os obrigassem a praticar a idolatria, porque sua
reivindicação de possuir Deus como um fetiche nacional e possuí-lo
exclusivamente implicava uma perspetiva terrivelmente imperialista.
Sendo um povo ainda fraco e sem experiência militar, quebrado
pela escravidão, tal atitude dificilmente poderia ter sucesso. Com os
muçulmanos, correu muito melhor.
Mas a pretensão infrutífera para os hebreus teria servido aos ro-
manos excelentemente uma vez estabelecido o Império. E os roma-
nos de facto queriam adotar a religião judaica. Mas uma religião na-
cional não pode passar de um povo a outro como um terno. É por

89
isso que os romanos escolheram a forma não-nacional da religião ju-
daica, a forma cristã. A religião judaica, com a adenda transferindo o
privilégio de Israel aos gentios batizados, tornou a religião perfeita-
mente apropriada para o Império Romano. O Antigo Testamento,
mais as passagens de São Paulo sobre a transferência da Aliança, mais
o “ide e ensinai todas as nações”.
É por isso que o Antigo Testamento foi preservado.
Infelizmente para Roma, aconteceu tarde demais. Na época de
Constantino, já estava colapsando. A transferência foi atrasada por
preconceito e conservadorismo até que era tarde demais para salvar
o Império.
A “Cidade de Deus” de Santo Agostinho marca a segunda trans-
ferência. O Império sucedeu a Israel, a Igreja sucedeu ao Império.
Se todos os que morrem fora da Igreja estão condenados, o po-
der da Igreja pode ser muito mais totalitário que o do Império.
Mas a Igreja não teve sucesso porque não ousou assumir aberta
e diretamente a realeza temporal. Em vista do Evangelho, isso era
difícil de fazer. É esse o significado de “as portas do inferno não pre-
valecerão contra ela”? Muito possivelmente.
Os judeus foram perseguidos porque, uma vez que a Igreja ane-
xou o seu privilégio, sua alegação de que ainda o tinham deixava-os
bastante embaraçados.
A religião, no verdadeiro sentido da palavra, nunca esteve em
questão. De ambos os lados, foi uma obstinação inspirada em moti-
vos puramente temporais.
Hitler persegue os judeus pela mesma razão. Gostaria de imitá-
los chamando a alma coletiva alemã de Wotan e dizendo que Wotan
criou os céus e a terra.
É bem verdade que, sob seu disfarce cristão, Jeová, o Deus dos
exércitos, conquistou o mundo inteiro. Wotan está agora tentando

90
suplantar a Jeová. De qualquer forma, não precisa sentir-se envergo-
nhado pelo Evangelho.
Seria este o momento de deixar clara a diferença entre a alma
coletiva e Deus.
Neste mundo, Deus é um dissolvente. A sua amizade não con-
fere poder, mas enquanto estiver presente em sua verdade nos pensa-
mentos dos homens, nenhum poder terreno será estável.
A ideia de Augusto (se é que era dele?) de trazer os mistérios de
Elêusis para Roma mostra que no Império Romano a espiritualidade
era um problema.
Nenhuma vitória, absolutamente nenhuma vitória do mal pode
alterar o facto de que o mal ainda é mal.
Por outro lado, uma derrota total do bem pode fazer com que o
bem deixe de ser bom.
Mas, enquanto o mal for julgado como mal, o bem não terá sido
totalmente vencido.
Um ladrão crucificado volta-se para Cristo, que também é cru-
cificado. Isso é suficiente; o bem não foi totalmente destruído.
Um grão de bem do tamanho de uma semente de romã é o su-
ficiente.
O cristianismo deve ser expurgado da herança israelita.
Havia uma fome do temporal entre os cristãos, por causa da per-
feita pureza espiritual do cristianismo, perfeita demais para eles. Essa
fome foi a princípio aplacada pela expectativa da Segunda Vinda imi-
nente.
Então, quando essa expectativa se esgotou, foi amenizada pelo
Império. E então, após o saque de Roma, pela Igreja.
Para os protestantes, que não têm mais a Igreja, a religião tor-
nou-se em grande parte nacional. Daí a importância reavivada do An-
tigo Testamento. (213-216)

91
Aquele que, no momento em que pensa em Deus, não renun-
ciou a tudo sem exceção, está dando o nome de Deus a um de seus
ídolos. (217)

Morrer realmente, no sentido moral, significa consentir em sub-


meter-se a tudo o que o acaso possa trazer. Porque o acaso pode privar-
me de tudo o que chamo de “eu”.
Consentir em ser uma criatura e nada mais. É como consentir
em perder toda a existência.
Nada somos além de criaturas. Mas ao consentir em ser apenas
isso, consentimos em nada ser. Sem o sabermos, este ser que Deus
nos deu é não-ser. Se desejamos o não-ser, já o temos, e tudo o que
temos de fazer é estar cientes desse facto.
Nosso pecado consiste em querer ser, e nossa punição é acredi-
tar que possuímos o ser. A expiação consiste em querer deixar de ser;
e a nossa salvação consiste em perceber que não somos.
Adão fez-nos acreditar que somos; Cristo nos mostrou que não
somos.
Para nos ensinar que não somos, Deus se fez não-ser.
Para Deus, sacrifício consiste em deixar o homem acreditar que
é. Para um homem, o sacrifício consiste em reconhecer que não é.
Deus confia ao mal a obra de nos ensinar que não somos.
O desejo das criaturas de ser, e sua ilusão de que são, incita o
mal; e o mal ensina-lhes que não são. Deus não participa desse estágio
elementar de ensino.
Aqueles que reconheceram plenamente seu próprio não-ser pas-
saram para o lado de Deus. Longe de ensinar o não-ser a outras cria-
turas, eles as tratam na suposição fictícia de que são.
A criação é uma ficção de Deus.

92
A quantidade de mal no mundo é precisamente igual à quanti-
dade necessária de punição. Mas atinge ao acaso.
Sofrer o mal é a única maneira de destruí-lo.
Nenhuma ação destrói o mal, mas apenas seu sofrimento apa-
rentemente inútil e perfeitamente paciente.
A existência imaginária de criaturas pensantes que acreditam
que existem é o que ressoa na forma de mal. O mal é ilusório, e quem
escapou da ilusão foi libertado de todo o mal. Além disso, o mal é
uma ilusão que pode, por si mesma, em certas condições, estimular
o homem a escapar da ilusão.
O inferno consiste em alguém perceber que não existe e recusar-
se a consentir nesse facto.
A pureza atrai o mal, que para ela se apressa como mariposas
para a chama, para ser destruído.
Tudo tem de passar pelo fogo. Mas aqueles que se tornaram cha-
mas sentem-se em casa no fogo. Mas para se tornar fogo é necessário
ter passado pelo inferno.
A maneira de fazer uso da dor física. Quando em sofrimento,
não importa o grau de dor, quando quase toda a alma grita interior-
mente: “Pára, não aguento mais”, uma parte da alma, mesmo que
seja uma parte infinitesimalmente pequena, deve dizer: “Eu consinto
que continue pelo todo do tempo, se assim o ordenar a sabedoria
divina.” A alma é então dividida em duas. Pois a parte senciente da
alma é – pelo menos às vezes – incapaz de consentir na dor. Essa
divisão da alma em dois é uma segunda dor, espiritual, e ainda mais
aguda do que a dor física que a causa. Um uso semelhante pode ser
feito da fome, do cansaço, do medo e de tudo que obrigue imperati-
vamente a parte senciente da alma a gritar: Não aguento mais! Pára!
Algo em nós deve responder: Consinto que continue até o momento
da morte, ou que não termine aí, mas continue para sempre. É nesse

93
momento que a alma é como que dividida por uma espada de dois
gumes.
Essa maneira de usar os sofrimentos que o acaso nos inflige é
melhor do que disciplina autoimposta.
Os sofrimentos possíveis de evitar estão na mesma categoria se
houver uma obrigação muito clara de não os evitar. Tal como a obri-
gação de se comportar justamente com os outros. Por exemplo, um
homem obrigado, por falta de dinheiro, a ficar sem comida o dia
todo ainda está sob obrigação, mesmo que haja uma oportunidade
de conseguir alguma roubando. Porque o roubo nunca é possível a
um homem honesto.
Mas, em vista da condição geral e permanente da humanidade,
pode muito bem ser que comer até se fartar seja sempre uma espécie
de roubo.
Não devemos considerar a privação um exercício espiritual, ou
uma oferta a Deus, ou uma condição para atos de caridade voluntá-
ria, mas uma obrigação social estrita, isto é, o equivalente a uma ne-
cessidade. E a parte superior da alma não está de forma alguma en-
volvida, exceto que, quando a sensibilidade clama que não pode du-
rar mais, ela responde: “Consinto que assim continue para sempre.”
O ponto que é a parte superior da alma não tem função com
relação à vida no mundo, exceto contemplar cada momento que
passa e, qualquer que seja seu conteúdo, dizer: “Consinto que pare
imediatamente, e consinto que dure para sempre.”
Quando se esgotam todas as reservas de energia suplementar e
a energia vegetativa, que mantém a própria vida, é ativada e começa
a esgotar-se, então toda a alma terrena grita: “Chega!” Porque tornou-
se insuportável. A vontade que tornava possível a resistência desapa-
receu. A carne viva é atacada e devorada. É então impossível para a

94
alma terrestre não gritar: “Chega!” A quem dirige este grito ou sú-
plica? Não sabe, mas não consegue deixar de gritar. Mas se a parte
eterna da alma responde, falando com o verdadeiro Deus: “Para sem-
pre, se for a tua vontade”, então a alma é cortada em dois. A parte
que alguém sente como sendo ele mesmo é a que grita, “Chega!”, e
ainda assim ele apoia a outra voz. Isso realmente é renunciar a si
mesmo.
Parte de nossa energia está no nível do tempo. Esta é a energia
animal. Permite-nos dizer: “Isso não durará mais de uma hora.” Per-
mite que o pensamento viaje pelos períodos de tempo. É a nossa
energia suplementar e sustenta o desejo e a vontade.
A energia vegetativa, pela qual os mecanismos químico-biológi-
cos necessários à vida são preservados, está abaixo do nível do tempo.
Quando se esgota a primeira energia e a energia vegetativa tem de ser
usada em algo diferente das funções biológicas às quais se destina,
um quarto de hora parece uma duração infinita. É então que o grito,
“Chega!” invade a alma, e divide-se em duas se não endossa aquele
grito. É então que se vai a própria seiva da vida e o homem torna-se
madeira morta estando ainda vivo.
Nesse estado um quarto de hora é realmente equivalente a uma
duração infinita de esforços voluntários, e após esse quarto de hora
a parte da alma que se recusou a gritar, “Chega!” viajou por um perí-
odo indefinido de tempo e passou além do tempo, para a eternidade.
Isso só acontece com o homem que se enraizou no amor.
Mitologia de mulheres transformadas em árvores.
O único movimento de uma árvore é para cima. Símbolo do
estado de pura contemplação.
A condição essencial é quando se esgota a energia suplementar.
Existem certos estados de alma em que essa energia fornece ao ho-

95
mem a força de vontade para suportar as mais terríveis torturas. Cri-
minosos na Idade Média que foram torturados sem confessar. Mas
em tais casos, nenhuma quantidade de sofrimento ou resistência ao
sofrimento tem a menor utilidade para a salvação.
O espírito desportivo competitivo permite ao homem suportar
tudo, sem qualquer virtude real. Entre os romanos, o estoicismo de-
generou em nada mais do que isso.
A energia suplementar que um homem dirige como lhe agrada
para o que pensa ser bom para si mesmo é a porção do filho pródigo.
Ela precisa ser despendida totalmente antes que a alma possa dar um
único passo em direção à eternidade. Se a energia reviver novamente,
como costumeiramente acontece, precisa ser despendida mais uma
vez. Quando o filho pródigo se reconcilia com seu pai, recebe mais
dinheiro e parte novamente; e volta novamente, e depois novamente
e novamente, e a cada retorno seu pai mata o bezerro cevado. Mas as
suas ausências foram ficando cada vez mais curtas.
Não faz diferença se essa energia é despendida na busca de bens
mundanos ou de Deus; porque, se buscarmos a Deus antes que se
esgote por completo essa energia, será um Deus falso, ainda que se
assemelhe ao verdadeiro em todos os sentidos. O filho à deriva deve
inevitavelmente desperdiçar sua porção com prostitutas. Não faz di-
ferença se uma delas afirma vir de seu pai ou não. Não dará um passo
em direção ao pai enquanto ainda tiver um centavo.
O importante é que ele gaste e não ganhe dinheiro. Se, em vez
de gastar o dinheiro com prostitutas, o investe com juros, nunca mais
retorna à casa do pai.
A energia voluntária deve ser despendida de tal forma que não
possa ser recuperada, que se esgote. Isso significa que a vontade deve
ser direcionada para coisas fora de seu alcance. Pouco importa o que
são, desde que a vontade se estique e se esforce sem nunca as alcançar.

96
Deve ser levada a sentir seus limites e a continuar lutando contra eles.
Deve sentir que tudo o que obtém carece de valor; deve parecer-lhe
que sempre que despende energia nunca recebe nada bom. Deve ha-
ver fracasso ou então sucesso que é considerado sem valor assim que
é alcançado.
Se valorizamos os bens deste mundo, deles tiramos algo que re-
nova a energia despendida em sua busca.
Mas se alguém deseja coisas mundanas (pois ainda não tem ne-
nhuma conceção do céu) que são, no entanto, impossíveis, então sua
energia é despendida sem se renovar.
O homem que é capaz de se contentar com algo possível, mesmo
que seja nada menos do que ser imperador do mundo, não despen-
derá a porção que lhe foi dada quando saiu da casa de seu pai.
Uma vez esgotada a energia voluntária, o desejo – que agora se
tornou impotente – ainda é direcionado para os mesmos objetos ter-
renos (não importa que por vezes carreguem rótulos celestiais) que
eram antes visados pela vontade. A alma chora pelas coisas que deseja
como uma criança que ainda não aprendeu a andar. Este é o primeiro
estágio para se tornar como uma criança novamente. Mas ninguém
comparece. Chora e chora num mundo desatento. Quando se cansa
de chorar, olha.
E então talvez se lembre de que existe outro tipo de bem, no
qual até as coisas inanimadas participam abundantemente.
Como pode tal lembrança entrar numa alma terrena?
Nesse momento, quando a energia voluntária se esgota e a ener-
gia vegetativa fica exposta, a alma escolhe entre o inferno e o céu. E
não sabe que está escolhendo.
Talvez esteja apenas refazendo uma escolha decidida desde a fun-
dação do mundo.

97
Aqueles que morrem sem esgotar a sua energia voluntária, mor-
rem sem terem feito essa escolha – não importa se viveram uma vida
virtuosa ou criminosa. O que acontece com eles depois da morte é
um mistério.
É realmente assim?
Se no momento em que correm o perigo iminente de final-
mente esgotar a energia voluntária, decidirem investi-la com juros em
vez de a despender – pode dizer-se que escolheram mal.
O desejo, impotente, desprende-se dos seus objetivos e volta-se
contra si mesmo. Entra então na alma a ideia do bem puro e incon-
dicional, uma ideia inexprimível. Aí, a alma apega-se a ele ou não.
Essa escolha é um mistério.
Se a alma se amarra à ideia do bem puro, implora para nunca
mais ter de escolher.
A partir de então, seu problema é devotar toda a sua energia a
esse bem, do qual nada sabe, exceto o nome.
Se as circunstâncias restaurarem ao organismo parte da energia
que alimenta a vontade, essa energia deve ser despendida sem usar a
vontade. Deve ser despendida da mesma forma que despendemos
uma soma que nos foi confiada por outra pessoa para um propósito
específico; sendo a obrigação assim estabelecida usada para comple-
tar a necessidade sempre que esta não seja suficientemente imperi-
osa.
Se depois da reconciliação com seu pai, o pródigo volta para a
cidade com dinheiro não é mais como um filho com sua porção para
gastar, mas como um escravo encarregado por seu amo de fazer com-
pras das quais nada receberá e pelas quais ninguém lhe agradecerá. Ir
à cidade, de loja em loja, fazendo as compras prescritas até que o
dinheiro se esgote, voltar carregando encomendas ou ir para os cam-
pos sem dinheiro e passar o dia trabalhando – para um escravo dá no

98
mesmo. Se gastar o dinheiro honestamente nas compras prescritas,
não receberá agradecimento ou recompensa. Talvez até seja culpado
por não ter ido às lojas mais baratas. Se guardar um centavo ou gastar
consigo mesmo, é espancado.
É assim que a energia suplementar voluntária deve ser utilizada
até a exaustão no desempenho de tarefas obrigatórias.
Ou então deve ser queimada em contemplação.
O importante é não sobrar uma fração dela, seja para satisfazer
um capricho ou para o exercício da vontade. Se permanecer uma fra-
ção, é roubo.
(Nunca cessei de roubar.)
Quando a energia vegetativa é exposta aos ataques das circuns-
tâncias e começa a ser consumida, ela mesma deve desenvencilhar-se
das funções biológicas que sustenta e devotar-se a Deus. Esta é a
morte espiritual, que também é uma operação física. O homem ofe-
rece-se como alimento para as criaturas de Deus.
Mas essa energia não é móvel; é vegetativa. Não pode direcionar-
se a si mesma. É apenas um ponto da alma no polo oposto que pode
dizer: consinto que minha carne seja devorada até à morte – ou além
dela: durante o todo do tempo.
Então, há como se fosse uma transferência da dor da parte ter-
restre da alma, que pecou, para a parte eterna, que é inocente.
A alma divide-se em duas, uma parte inocente e a outra culpada,
e a parte inocente sofre pela culpada e a justifica.
A alma divide-se em parte ilimitada e parte que limita. O com-
posto que era no plano do finito deixou de existir. Existe agora um
microcosmo no qual o caos original, a água original sobre a qual o
Espírito se move, é reproduzido. Uma parte da alma sofre num nível
abaixo do temporal, e cada fração de tempo parece continuar perpe-
tuamente. A outra parte sofre num nível acima do temporal e vê a

99
perpetuidade como algo finito. A alma está dividida em duas, e entre
as duas partes está o todo do tempo. O tempo é a espada que corta a
alma em duas. (Em outro sentido, a espada é o Amor.) A parte senci-
ente da alma está no inferno, a parte que está no céu não sente nada,
exceto pelo contágio da outra parte.
Depois, há uma nova criação, que a alma aceita – não para exis-
tir, pois seu desejo não é existir, mas unicamente por amor às criatu-
ras, da mesma forma que Deus consente em criar.
Consente em ser criada, como Deus consente em criar – pelo
amor de outras criaturas.
Esta nova criação é como uma encarnação. A segunda criação
não é criação, mas geração. Cristo entra na alma e a substitui por si
mesmo.
Aqueles que nasceram do alto não são os adotados, mas os ver-
dadeiros filhos de Deus. Mas o Filho é único. Portanto, é ele quem
entra nas almas.
Mas, nesse caso, o maior dos santos não verá o reino dos céus.
Pois quase todos eles fizeram ou disseram coisas que, ao que parece,
Cristo não teria dito ou feito.
Afinal, talvez apenas um homem seja salvo numa geração.
Para os restantes, aqueles que não estão definitivamente perdi-
dos, deve-se imaginar algo equivalente às ideias de purgatório, reen-
carnação, etc.
Nascer do alto, da água e do espírito, da água e do sopro.
Nascer do alto, nascer da água e do sopro – isto é, após a disso-
lução da alma – um microcosmo dentro do caos primordial – isso é
ser perfeito.
O batismo é apenas o desejo por um novo nascimento. Quando
uma criança é batizada, aqueles que a amam expressam seu desejo de
que um dia nasça do alto. Quando um adulto é batizado, ele próprio

100
expressa esse desejo. Há sempre uma virtude eficaz no desejo pelo
bem. E ainda mais na expressão de tal desejo, seja qual for a forma
que possa assumir. Uma forma ritual é talvez eminentemente eficaz.
Mas, nesse caso, precisa ser incondicional e não implicar submissão
a uma organização social. (217-225)

A matéria, que foi a ruína do homem, também busca a salvação.


É a lança cujo contato começa a curar a própria ferida que fez. Cf. a
história do Graal.
O corpo é uma alavanca pela qual a alma age sobre a alma. Por
meio da disciplina imposta ao corpo, a energia errante da alma es-
gota-se automaticamente. Se uma cabra está amarrada, ela puxa a
corda, dá voltas e mais voltas, e continua puxando por horas e horas;
mas, finalmente, quando se cansa, deita-se. Acontece o mesmo com
a parte errante da alma, quando o corpo está fixo. Agita-se e dá voltas,
mas, e apesar de si mesma, volta ao corpo, e no final esgota-se e des-
vanece.
A alma precisa dividir-se em duas antes que uma parte possa
usar o corpo contra a outra parte.
Não apenas isso, mas o corpo deve ser obediente à parte eterna
da alma.
Nenhuma violência precisa ser usada, porque o corpo consente
nessa dominação.
Quando a parte eterna da alma concebe uma ordem, o corpo
não consegue fazer outra coisa senão obedecer.
Se não obedece, então a ordem não veio da parte eterna da
alma, ou então foi dada sem atenção suficiente.
O corpo é uma prisão. A parte espiritual da alma deve usá-lo
para encerrar e aprisionar a parte carnal. O corpo é uma tumba. A
parte espiritual da alma deve usá-lo para matar a parte carnal.

101
Que o meu corpo seja um instrumento de tortura e morte para
tudo o que há de medíocre na minha alma.
Devemos por vezes violentar o próprio pensamento, às vezes de-
vemos pregar o corpo e deixar o pensamento exaurir-se. Mas o corpo
deve ser treinado para ouvir apenas a parte superior da alma. Como?
Trata a parte inferior da alma como uma criança que se deixa a
chorar até se cansar e parar. Nada lhe dá atenção em todo o universo.
Ao passo que Deus está atento até mesmo ao silêncio que a parte
eterna da alma lhe dirige.
“Não te dês ouvidos.”
Reduz ao silêncio aqueles animais dentro de mim cujos gritos
impedem a Deus de ouvir-me ou falar-me. A melhor maneira de os
silenciar é fingir que não os ouvimos. Quando algum deles percebe
que não está sendo ouvido, acaba por se cansar e para. Esses animais
dentro de mim não serão ouvidos por ninguém, a menos que eu em-
preste a minha voz. Mais do que isso, eu própria não devo ouvi-los,
ou pelo menos não devo dar sinais de que os estou ouvindo.
Eles devem sempre saber que, quando começarem seus gritos,
não serão ouvidos por nada no mundo – nem pelas coisas, nem pelos
homens, nem por Deus, nem por mim.
São esses animais dentro de mim que, incessantemente, em di-
versos acentos de tristeza, exultação, triunfo, ansiedade, medo, dor e
todas as outras nuances emocionais, continuam gritando “eu, eu, eu,
eu”.
É um grito sem sentido e não deve ser ouvido por nada nem
ninguém.
Esses animais choram o dia todo e a noite toda, mesmo durante
o sono, sem parar.
Não lhes devemos dar voz para se expressarem.
Precisamos silenciá-los ocasionalmente por alguns momentos.

102
Em seguida, devemos treiná-los para ficar em silêncio com cada vez
mais frequência e por períodos mais longos. E então, se possível, fazer
com que fiquem totalmente em silêncio. Se morrerem antes que do
corpo morrer, isso é o melhor.
Enquanto o corpo lhes obedece, eles acreditam que estão em
comunicação com o universo. Porque sempre que o corpo se move
dez passos, o efeito da perspetiva altera o aspeto do universo. Mas se
o corpo não lhes obedecer e não forem traduzidos em linguagem, são
obrigados a reconhecer que nada no mundo os escuta. Quando se
lhes impressa isso muitas vezes, uma nota de desespero emerge nos
seus gritos; já estão cansados ainda antes de começarem a chorar.
Mas quanto à parte eterna, cujo grito ou murmúrio ou silêncio
é ouvido, como poderia cansar-se?
Os animais são muito astutos em obter a obediência do corpo
por meio de pretextos que não parecem vir deles. Para ter a certeza
de que o corpo lhes desobedece, é preciso impor incondicionalmente
algo sobre eles, seja por um longo tempo ou em intervalos repetidos.
Certamente esses animais, sendo voláteis e caprichosos, mais cedo
ou mais tarde vão desejar outra coisa. De modo que, se perseverar-
mos por tempo suficiente, podemos ter certeza de que os frustrare-
mos no final.
Mas, para isso, é essencial não manter registos. Os animais que
dizem “eu” são estimulados pela ambição de quebrar o recorde e, as-
sim que entra em jogo, nenhuma ação e nenhuma abstenção de ação
têm mais valor. Se alguém se disser, “eu fiz isso e aquilo por tanto
tempo”, seria melhor não ter feito.
A proibição de registar censuras é talvez a memória da palavra
de um homem sábio baseada em tal observação? Existem alguns bens
que são destruídos ao serem avaliados.
Isso realmente mostra que somente Deus pode salvar por sua

103
graça.
O que deixa perfeitamente claro que a misericórdia de Deus é a
única salvação é que as regras mais importantes para o bem da alma
são regras que não podemos querer observar, porque o próprio facto
de pensar nelas é já uma violação delas. Só podemos implorar a Deus
que remova tais pensamentos de nosso coração.
Deus fez-nos de tal maneira que somos obrigados a recorrer a
ele como suplicantes.
E dá no mesmo se não queremos reconhecer a Deus. Alguém
diz, “Que eu deixe de ter tais pensamentos!”; mas assim que alguém
fala no modo optativo, é uma súplica.
Alcançar menos do que os outros, com conhecimento de causa
e sem desejar fazer tanto quanto eles, é uma forma de quebrar a am-
bição de bater recordes. Ou pelo menos é assim para alguém orgu-
lhoso o suficiente para sentir que nada menos do que os outros te-
nham carece de valor… Pois existe uma maneira de usar o orgulho a
serviço da humildade.
Depois de abolida a ambição de bater recordes, pode-se então
adotar alguma prática diária de forma constante, ou dizer-se, “Farei
tal e tal coisa tantas vezes” e apegar-se a ela, e certamente que os ani-
mais na alma ficarão irritados e chorarão e uivarão e perceberão a sua
impotência para se fazerem ouvir. Pois o corpo não lhes irá obedecer
se a resolução de vier do centro da alma. Este é um efeito da miseri-
córdia de Deus.
Se não é contra uma resolução nossa que os animais uivam, mas
contra uma compulsão externa, isso é ainda melhor. Só é necessário
que a parte eterna da alma consinta que a compulsão dure indefini-
damente e sem qualquer recompensa, mesmo espiritual. Por contar
com uma vantagem espiritual, só estaremos dando esse nome a algo
que é alimento para os animais que gritam “eu!”

104
Tudo o que é condicional pertence à esfera desses animais. Ape-
nas o incondicional lhes escapa.
É a energia suplementar que coloca a alma na esfera do condi-
cional. Alguém diz, “Estou preparado para andar dois quilómetros se
conseguir um ovo.” E então tem força para dois quilômetros apesar
do cansaço. Mas o sentimento de cansaço total é: “Não consigo andar
dez metros, nem para salvar a minha vida.” Isto corresponde a um
estado em que a energia vegetativa é tudo o que resta, em que cami-
nhar consumiria uma energia indispensável para a manutenção das
próprias funções vitais.
Na verdade, uma vez que o sentimento não é um indicador con-
fiável, pode sentir-se a exaustão antes ou depois do início do estado
de exaustão. Mas, psicologicamente, não há dúvida de que é o senti-
mento que conta.
No estado de exaustão, desejos e intenções que permitem flexi-
bilidade na sua realização são substituídos por necessidades imedia-
tas e incondicionais. É então que a alma grita “Eu preciso…!”
Eu preciso ver tal e tal! Eu preciso descansar! Eu preciso comer!
Eu preciso beber! É preciso um alívio momentâneo da dor!
Devemos então responder com frieza e cinismo, como Talley-
rand ao mendigo: Não vejo necessidade.
E acrescentar por amor: Consinto que esta necessidade, na sua
presente intensidade, ou ainda maior, permaneça insatisfeita, sem
qualquer compensação, para sempre ou até que a minha alma e meu
corpo desapareçam.
O próprio consentimento é a compensação. Mas não deve ser
assim avaliado, ou perderá todo o seu valor.
Alguns conseguem investir um objeto externo com tanta de sua
energia suplementar que, enquanto esse objeto existir, nunca serão,
mesmo quando às portas da morte, reduzidos a uma vida suspensa

105
na energia vegetativa. Tais são os gigantes que esconderam suas vidas
no fundo de um lago.
Tais homens não podem dar um passo em direção à eternidade.
Os soldados de Napoleão eram assim.
E talvez os mártires, ou aqueles cuja morte não foi como a de
Cristo? Em qualquer caso, o Polieucto de Corneille era assim.
Quando a energia vegetativa está exposta e tem de ser utilizada,
o universo desaparece e a necessidade torna-se o universo. Todo o
universo está concentrado no grito da alma: “Tenho fome!” “Estou
com dor!” “Isso tem de parar!” Não há mais, em lugar nenhum, nada
de bom, exceto na satisfação imediata dessa necessidade.
Nesta altura, responder, “Não vejo necessidade” é arrancar vio-
lentamente a parte eterna da alma do eu e fixá-la no não-eu.
Visto que a necessidade é incondicional, o consentimento para
ser dela privado indefinidamente também é incondicional. O con-
sentimento de alguém não envolve nenhuma compensação oculta,
nenhuma barganha tácita, porque em todo o universo não há nada
de bom, para ninguém, além da satisfação imediata da própria neces-
sidade.
O consentimento da ausência total e perpétua de todo o bem é
o único movimento incondicional da alma.
É o único bem.
Só poderá vir num momento em que toda a alma grita de ne-
cessidade de tal forma que a pessoa acredita que em todo o universo
não há nada bom para ninguém além da satisfação imediata de sua
própria necessidade. Então, o consentimento para permanecer insa-
tisfeito é incondicional.
Outras vezes, o consentimento à ausência do bem não passa de
um movimento de fadiga; e por trás do pretexto da renúncia, o bem
que se busca realmente é o descanso. Nesse caso, o consentimento é

106
apenas aparente e condicional.
O consentimento verdadeiro está relacionado com a vontade da
mesma forma que a contradição num mistério está relacionada com
a inteligência. É um absurdo.
É consentimento para não ser.
Consentir em não ser é consentir em ser privado de todo o bem,
e esse consentimento é a posse do bem total. Apenas não sabemos
disso. Se soubermos, o bem desaparece. Orfeu perde Eurídice
quando olha para ela. Quando Níobe se gabou do número de seus
filhos, viu-os morrer.
Mas, quando somos reduzidos ao nível da energia vegetativa,
não existe perigo de matar o bem por estarmos cientes dele. A alma
está inteiramente ocupada com seu grito de privação e dor.
Quando a alma inteira está gritando “Eu preciso...!”, exceto por
um ponto nela que responde “Porquê?” e “Consinto no contrário…”,
nesse momento está carregando a sua cruz. Mas Cristo disse que de-
vemos fazer isso todos os dias. Como isso é possível? Devemos estar
dispostos a sofrer tanto a cada dia?
Possivelmente.
Quando existe uma alegria intensa e pura, a pessoa está igual-
mente vazia de bem, porque então todo o bem reside no objeto.
Há tanto sacrifício e renúncia na base da alegria quanto na base
da dor. (230-235)

As paixões – avareza, ambição, devoção a uma pessoa ou a um


grupo, vícios – juntam a energia de um homem a algum objeto ex-
terno que atua como estimulante, de modo que, a menos que o
objeto seja destruído, nunca se verá reduzido ou cairá na energia ve-
getativa, até mesmo pelos piores desastres. É por isso que as paixões

107
são mortais. O homem que a elas se entrega a não é o filho que des-
perdiça sua herança com prostitutas, é aquele que a põe no banco.
Ele não passará fome; não voltará para o seu Pai.
Só a meticulosidade pode salvar alguém desse perigo. Se penso
haver bem em Napoleão, como poderia deixar de lhe dedicar parte
da minha energia? Mas, se perceber que ele não é bom o suficiente
para mim, a energia que lhe dediquei terá sido desperdiçada.
Nesse ponto, terei de fazer uma escolha. Ou enfrentar a perda;
ou então disfarçá-la mentindo e convencendo-me de que realmente
era bom o suficiente para mim.
As coisas deste mundo podem servir de banco para a parte da
energia à nossa disposição – pode ser armazenada e até mesmo incre-
mentada por especulações afortunadas – mas ao preço de mentirmos
a nós mesmos.
Quando a porção quase se esgotou e a pessoa está à beira da
miséria total, a tentação de recorrer a tal banco, para economizar pelo
menos alguns centavos, é quase irresistível. É por isso que uma vida
restrita e obscura muitas vezes degrada a alma mais do que a riqueza
e o poder.
O filho pródigo gastou seus últimos centavos.
Para retornar ao Pai, temos de perder tudo.
Se restar ainda algo quando retorna ao Pai, então está olhando
para outro com o nome dele.
Seja eu como um de seus trabalhadores contratados. Isto é, es-
teja eu inteiramente sujeito à tua vontade, como os objetos inertes.
“Nunca me deste nada.” “Porque tudo o que tenho é teu.” Para
ser igual a Deus, basta não ter livre arbítrio.
Se for honesto, verá que todo gasto de energia é uma perda de
energia, desde que a energia seja a sua. Só mentindo para si mesmo
é que a pode investir para obter lucro.

108
Mas com a energia emprestada por Deus é diferente. Esse em-
préstimo deve ser investido com lucro. (235-236)

Lúcifer queria ser Deus. O que poderia ser mais natural? Só o


amor pode nos fazer consentir em não ser Deus. O amor faz-nos con-
sentir em ser não importa o quê, ou nada. O amor satisfaz-se perfei-
tamente com o pensamento de que Deus existe. Devemos amar dessa
maneira, ou então como Lúcifer; qualquer outra coisa é servilismo.
(239)

Se o céu fosse como o descrevem, seriamos mais infelizes lá do


que na terra; porque na terra podemos esperar chegar mais cedo ou
mais tarde a qualquer grau de perfeição, enquanto que no céu, tal
como eles o descrevem, alguns valem menos do que outros e, conse-
quentemente, todos valem menos do que poderiam ter sido, e ainda
assim sabemos que não haverá mais progresso.
A que ponto deve o Cristianismo ter sido envenenado pelo Im-
pério Romano para que pudessem descrever o paraíso como a corte
de um soberano! (239)

Numa aldeia do interior poderia haver um tema para o sermão


dominical todas as semanas desde a época da semeadura até a co-
lheita, baseado na parábola do Semeador, que espalha a semente e
depois a deixa porque cresce sozinha e sem ajuda de ninguém. Este
único pensamento será suficiente, se estiver presente toda vez que se
olha para o trigo em crescimento. (239)

A ausência do bem, ou melhor, o sentimento de sua ausência, é


aflição. Sendo o sol em Platão o bem, a escuridão representa a aflição
no mito da caverna. A primeira escuridão, quando o cativo libertado

109
de suas correntes está ainda dentro da caverna, é a terrível sensação
de sua própria miséria que a alma tem quando começa a retirar-se
para si mesma e a reconhecer a falsidade das coisas que antes pensava
serem boas. A segunda escuridão, resultado da tontura ao sair da ca-
verna, é a sensação de aflição na alma do homem que possui o bem
sem saber que o possui. É a noite escura do espírito de São João da
Cruz. Com o tempo, os olhos acostumam-se e a sensação de luz apa-
rece; mas então os olhos são erguidos para um novo objeto e mais
luminoso e mais uma vez ficam ofuscados. Esta é a alternância que
São João da Cruz nota entre a sensação de condenação e a sensação
de salvação. A alternância recorre a cada degrau ascendente e, por-
tanto, dura tanto mais quanto mais alto o homem se eleva na escala
de objetos cada vez mais luminosos; e ainda mais para o que acaba
olhando para o próprio sol, como é em si mesmo. Da mesma forma,
São João da Cruz diz que o estado da noite escura do espírito, com
suas alternâncias, dura tanto mais quanto mais a alma está destinada
a progredir no caminho da perfeição.
Quando o cativo está nas trevas, tem a sensação de possuir visão,
mas está rodeado de trevas; o que é verdade. Mas quando emerge na
luz, pensa ser cego. Isso é o que São João da Cruz chama de senti-
mento de condenação.
Sendo o Sol o Bem, a visão é a faculdade de amor na alma, e a
luz nada pode ser exceto Amor. Se Platão o chama de verdade, então
o faz da mesma forma que o Espírito Santo, que é Amor, foi chamado
por Cristo de Espírito da Verdade. Os objetos iluminados são a be-
leza. O último deles é a lua, que é pura beleza em Deus, a Palavra.
Esta analogia próxima entre Platão e São João da Cruz, que cer-
tamente não se deve a derivação imediata e provavelmente nem a
derivação indireta, mostra que a verdade mística é só uma, como a
verdade aritmética ou geométrica. (242-243)

110
Exemplo de oração.
Diz a Deus:
Pai, em nome de Cristo, concede-me isto.
Ser incapaz de desejar qualquer movimento corporal, ou mesmo
qualquer tentativa de movimento, como um paralítico total. Ser in-
capaz de qualquer sensação, como alguém completamente cego,
surdo e privado de todos os sentidos. Não conseguir fazer a menor
conexão entre dois pensamentos, mesmo o mais simples, como um
daqueles idiotas que não só não sabem contar ou ler, mas nunca
aprenderam a falar. Ser insensível a todo o tipo de dor e alegria, e
incapaz de qualquer amor por qualquer ser ou coisa, e nem mesmo
por mim, como os idosos no último estágio da decrepitude.
Pai, concede-me realmente tudo isto em nome de Cristo.
Que este corpo se mova ou não, com perfeita flexibilidade ou
rigidez, em contínua conformidade com a tua vontade. Que minhas
faculdades de audição, visão, paladar, olfato e tato registem a impres-
são perfeitamente precisa de tua criação. Que esta mente, em plena
lucidez, conecte todas as ideias em perfeita conformidade com a tua
verdade. Que esta sensibilidade experimente, na sua maior intensi-
dade possível e em toda a sua pureza, todas as nuances da dor e da
alegria. Que este amor seja uma chama absolutamente devoradora do
amor de Deus por Deus. Que tudo isto seja arrancado de mim, devo-
rado por Deus, transformado na substância de Cristo e dado como
alimento a homens aflitos, cujo corpo e alma carecem de todo o tipo
de alimento. Deixa-me ser uma paralítica – cega, surda, estúpida e
totalmente decrépita.
Pai, efetua esta transformação agora, em nome de Cristo; e em-
bora eu a peça com fé imperfeita, concede esse pedido como se fosse
feito com fé perfeita.

111
Pai, já que tu és o Bem e eu sou a mediocridade, arranca de mim
este corpo e alma para transformá-los em coisas de teu uso, e de mim,
para sempre, nada deixes ficar, exceto este próprio arrancar, ou então
nada.
Palavras como essas não são eficazes a menos que sejam ditadas
pelo Espírito. Ninguém pede essas coisas voluntariamente. Se vai até
elas apesar de si mesmo. Apesar de si mesmo, e ainda assim vai. Não
se consente com abandono, mas com uma violência exercida pela
alma inteira sobre a alma inteira. Mas o consentimento é total e sem
reservas, dado por um único movimento de todo o seu ser.
Se terá retirado daí a metáfora do casamento? Essa relação entre
Deus e a alma assemelha-se à relação entre o noivo e uma noiva ainda
virgem na sua noite de núpcias. O casamento é um estupro consen-
tido. E assim é a união da alma com Deus. A alma sente frio e não
tem consciência de amar a Deus. Ela não sabe, por si mesma, que, a
menos que o amasse, não consentiria. Mas a união conjugal está
sendo preparada, e por meio dela a pessoa do homem se tornará sim-
plesmente um intermediário entre sua carne e Deus.
Algumas almas amam a Deus como a mulher ama o seu amado.
Mas amores desse tipo não duram. Somente os casais que estão casa-
dos são uma só carne para sempre. (243-245)

Deus visita a alma, mas ela está adormecida. Se estivesse acor-


dada, o casamento espiritual ocorreria sem esforço, sem nenhuma
provação. Talvez tenha sido assim para alguns dos santos?
Ele vai embora, deixando um rastro de sua passagem, fazendo-
nos sentir que nos espera. Temos de passar pelo extremo limite do
mal para alcançá-lo novamente. Atacamos nosso pecado, caceamos e
cortamos; mas cresce ainda mais rápido. Não há esperança neste mé-
todo.

112
A única maneira é passar por cima de nosso pecado. É um mé-
todo doloroso e lento, mas possível. Faz-se um verdadeiro avanço e
chega-se ao fim.
O que significa este método de avanço acima do nível do mal,
como um homem caminhando de topo de árvore a topo de árvore?
Significa não tentar abolir o mal em si mesmo, mas avançar até
o fim.
Apesar de todos os pecados, mantém o bem em mente. Não
penses no mal a destruir, mas no bem.
Medita mais sobre esta imagem da floresta. (246)

O sal é o símbolo da eternidade. “Tudo será salgado no fogo.”


O fogo transporta para a eternidade o que oblitera deste mundo.
Todos os outros tipos de destruição são transformações. Só o
fogo aniquila.
O fogo é a luz que destrói. Transforma as coisas em luz. Ao cres-
cer, a árvore recebe e armazena uma luz que a faz subir e dar frutos,
e que acabará por se transformar inteiramente em luz. (250)

O espírito da primeira parte de Gênesis opõe-se ao do restante


do Pentateuco. Aquele que Deus ama morre prematuramente por
uma morte violenta, sem problema. Aquele que Deus odeia tem uma
vida longa e numerosa posteridade, e constrói uma cidade. Deus não
impediu que o homem que amava fosse morto. (250-251)

O sacrifício de Abel, que é tão agradável a Deus, é a sua morte.


(255)

Através do monopólio do templo, os sacerdotes hebreus tenta-


ram fazer da religião uma coisa puramente social. Era Israel, e não

113
este ou aquele israelita individual, que tratava com Deus.
É por isso que só através do exílio, que destruiu completamente
o povo, eles puderam encontrar a Deus, o Deus da alma solitária, o
Pai que está em segredo. Daniel orou sozinho no seu quarto. O culto
tornara-se secreto. (259)

Osíris não foi apenas morto, mas torturado. Foi encerrado num
cofre, onde morreu sufocado, lentamente e de terror. A morte de
Antígona foi do mesmo tipo.
O cofre é como o espelho de Zagreu [nota do tradutor do texto
em inglês: “cf. o mito de Dionísio entrando num espelho e o mito de
Narciso”]. Osíris deixou-se ser medido.
É o símbolo da Criação. A Paixão é o castigo pela Criação. O
diabo aprisiona Deus pela atração da Criação, que o seduz por meio
do amor. Mas por isso mesmo ele não está realmente preso, porque
ele mesmo nada mais é do que amor.
A fé consiste em acreditar que Deus é amor e nada mais.
Mas essa ainda não é a maneira certa de o colocar.
A fé consiste em acreditar que a realidade é amor e nada mais.
Como uma criança brincando, escondendo-se da sua mãe atrás
de uma cadeira, Deus brinca ao se separar de Deus por trás da cria-
ção.
Nós somos esta piada de Deus.
Acredita que a realidade é amor, embora ainda a vejas exata-
mente como é. Ama o que é intolerável. Abraça o que é feito de ferro,
pressiona a tua carne contra a aspereza fria e metálica.
Isto não é nenhum tipo de masoquismo. O que excita os maso-
quistas tem apenas a aparência de crueldade, porque eles não sabem
o que é crueldade. Seja como for, o que devemos abraçar não é a
crueldade, mas indiferença cega e brutalidade. Só assim o amor se

114
torna impessoal.
Se o amor não encontra objeto, o amante deve amar seu próprio
amor, percebido como algo externo. Então encontrou a Deus.
“Amei amar.” [Santo Agostinho] Se ele se apegou a isso, encon-
trou o caminho. (260-261)

Como os hindus perceberam, a grande dificuldade em buscar a


Deus é que o temos dentro de nós, no centro de nós mesmos. Como
me aproximo de mim mesma? Cada passo que dou afasta-me de mim
mesma. É por isso que não podemos buscar a Deus.
A única maneira é sair de si mesmo e contemplar-se de fora.
Então, de fora, a pessoa vê no centro de si a Deus, tal como ele é.
Mas sair de si mesmo significa a renúncia total de ser alguém e
consentimento total em ser apenas uma coisa.
Muitos seres humanos, exaustos pela aflição, tornaram-se nada
mais do que uma coisa aos seus próprios olhos, mas sem seu consen-
timento. Em tais casos, talvez não haja mais nada a fazer, porque não
pode consentir em tornar-se o que já é apesar de si próprio.
Sob a influência do amor verdadeiro – mas só podem ser ama-
dos por um milagre – podem tornar-se alguém novamente, mesmo
que apenas por alguns momentos, e assim ter uma chance, por me-
nor que seja, de ganhar a eternidade consentindo em voltar ao estado
de ser uma coisa.
Assim, o homem que dá um pedaço de pão sem dizer uma pala-
vra, se sua maneira de o dar for correta, às vezes dá ao mesmo tempo
a vida eterna. Um gesto desse tipo pode ter um valor redentor maior
do que muitos sermões.
Cristo fez isso por nós. Ao tornar-se alimento para nós, nos con-
vence de que somos alguém e, assim, possibilita que desejemos, como
ele, simplesmente nos tornarmos uma coisa.

115
Dar um pedaço de pão é mais do que pregar um sermão, como
a Cruz de Cristo é mais do que suas parábolas.
Pedir um pedaço de pão também é algo considerável.
A caridade para com um pobre faminto é dar-lhe pão. A cari-
dade para com um rico bem alimentado é pedir-lhe pão.
Melhor de tudo é ser um mendicante faminto, mendigar e dar
um pouco do que se recebe.
Talvez São Francisco devesse ter fundado uma ordem secreta,
sem voto exceto o de sigilo.
É muito fácil falar sobre essas coisas sem fazê-las.
Não podemos sair de nós mesmos apenas por desejá-lo. Quanto
mais desejamos, mais somos nós mesmos. Só podemos desejar e su-
plicar. (261-262)

No que diz respeito ao vertical, no sentido de movimento ascen-


dente, somos iguais a uma criança antes de poder andar, no que diz
respeito ao horizontal.
Entender isso é tornar-se humilde novamente como uma cri-
ança.
Estamos mais perto do céu no topo de uma montanha do que
na planície. Mas não estamos mais perto de voar. Estamos exata-
mente tão longe quanto antes.
É por isso que o orgulho é um erro.
Quando voamos, se realmente estamos voando, saímos de nós
mesmos e não há mais orgulho.
O bem começa naquele ponto fora do alcance da vontade, assim
como a verdade começa naquele ponto fora do alcance da inteligên-
cia.
Além da inteligência e, portanto, além da lei.
A verdadeira lei é uma lei não escrita, como Sófocles sabia. Pois

116
a letra mata. Portanto, Moisés não veio de Deus.
Israel era aquela sociedade de bandidos, descrita por Platão, que
tenta estabelecer uma justiça interna própria.
Roma, com sua lei romana, era da mesma espécie.
Embora o mal seja o oposto do bem, contém obrigatoriamente
uma imagem dele. Pois tudo testemunha do bem. Caim dá testemu-
nho assim como Abel, Judas assim como Cristo. Mas um deseja tes-
temunhar, o outro o faz como por engano.
Assim como Cristo, fomos todos colocados neste mundo para
testemunhar da verdade; e em tudo o que fizermos, daremos teste-
munho dela.
Uma vez entendido isso, não podemos mais ter medo de deso-
bedecer a Deus.
E, no entanto, a ansiedade continua numa parte da alma.
Que alegria é ter a certeza de que obedeceremos a Deus de qual-
quer maneira, incondicionalmente e até apesar de nós mesmos, por-
que tudo lhe obedece. Se nossa alma não consentir em lhe obedecer,
nossa carne consentirá; e nossa obediência se conformará então à lei
mecânica.
Quando um homem consente em obedecer a Deus, o espírito
dentro dele obedece, isto é, fica sujeito às leis dos fenômenos espiri-
tuais; e por um mecanismo do qual nada sabemos, o restante de seu
ser adapta-se ao espírito o suficiente para que essas leis operem.
Quando um homem não consente em obedecer a Deus, então dentro
dele não há espírito. Mas a alma carnal e a carne que compõem todo
o seu ser são obedientes; isto é, estão sujeitos à lei mecânica.
O próprio diabo quis desobedecer, mas não conseguiu. (262-
263)

117
Duas verdades incondicionais que nem meus pecados nem mi-
nhas aflições alteraram, alteram ou podem alterar de alguma forma:
O Bem é real.
O universo inteiro e todas as suas partes, eu incluída, são per-
feita e exclusivamente obedientes ao Bem.
Deus é nosso único devedor; pois nenhuma coisa criada pode
prejudicar-nos ou privar-nos de qualquer bem, exceto com sua per-
missão. Perdoar a sua dívida é reconhecer que ele sempre e incessan-
temente nos dá o bem que consentimos em receber.
O grande crime de Deus contra nós é ter-nos criado, é o facto
de nossa existência. E a nossa existência é o nosso grande crime con-
tra Deus. Quando perdoamos a Deus por nossa existência, ele nos
perdoa por existirmos.
Temos de saber que somos nada, que a impressão de sermos al-
guém é uma ilusão, e temos de ser submissos ao ponto de consentir
não apenas nada ser, mas, e ao mesmo tempo, em estar sob a ilusão
de ser alguém. Então a roda da obediência completa a volta; e volta-
mos, aparentemente, ao lugar onde começamos, ao lugar daqueles
que não amam a Deus. E então Deus nos perdoa por existirmos.
Se estivermos dispostos a existir apenas na medida em que Deus
deseja a nossa existência, ele perdoa-nos por existirmos.
Podemos existir apenas como criminosos.
Quando o crime impregnou a alma ao ponto de ficar totalmente
envenenada, o arrependimento implica um afastamento total de si
mesmo; e sem santidade não pode haver tal arrependimento. Mas
isso só acontece com criminosos aflitos. Os prósperos não têm seu
crime profundamente enraizado na alma.
Precisa ser elaborada uma teoria da punição humana.
Por que nunca houve, em toda a era cristã, um legislador inspi-
rado por Deus? Por que nenhum santo jamais formulou qualquer

118
legislação?
A inspiração cristã nunca foi capaz de relacionar-se com as coisas
deste mundo. Assim, a Encarnação parece um evento culminante,
uma conclusão, em vez de um início.
Quando todos consideravam a semente uma imagem do reino
de Deus, toda a vida de um camponês poderia ser uma oração e sua
paciência a paciência que é uma virtude sobrenatural.
Deveria haver um almanaque espiritual para camponeses, com
um tema para meditação o ano todo.
Hora da sementeira – quando a semente do semeador cai sobre
as pedras, ou em solo estéril ou solo fértil.
Ou seja, Deus dá a totalidade do bem a todos a cada momento,
mas só recebemos o que escolhemos.
Arar a alma como se ara a terra para prepará-la para a semente.
Lavrar o solo de si mesmo.
Este tema deve continuar durante todo o período de preparo do
solo e finalizar na semeadura.
E então “A menos que um grão de trigo caia na terra e morra”.
É um tema que pode durar desde a colheita, quando o trigo é cortado
e morto, até a próxima semeadura. Arar os campos é a preparação
para um enterro.
Pede a Deus que nos mate e enterre espiritualmente enquanto
estamos neste mundo. Enterro em total silêncio e renúncia.
Especialmente Marcos 4:26.
“O reino de Deus é assim como se um homem lançasse semente
à terra. E dormisse, e se levantasse de noite ou de dia, e a semente
brotasse e crescesse, não sabendo ele como. Porque a terra por si
mesma frutifica, primeiro a erva, depois a espiga, por último o grão
cheio na espiga. E quando já o fruto se mostra, mete-se-lhe logo a
foice, por está chegada a ceifa.” (Logo em seguida vem a parábola do

119
grão de mostarda.)
Assim que o terreno está bem preparado, e recebe apenas a se-
mente e essa fica protegida de interferências, cresce sozinha. A luz e
a água que caem do céu a fazem crescer.
Um tema para meditação entre a semeadura e a colheita. De
dia, fazendo o que quer que seja; à noite, antes de ir para a cama; de
noite, se acordares; diz a ti mesmo vez por outra: durante esse tempo
todo a semente estava crescendo. E embora o camponês nem sempre
pense nisso, algo nele tem sempre a feliz certeza de que a plantação
está crescendo.
Quando a alma recebe de uma vez um átomo do amor de Deus,
não há nada a fazer senão esperar e deixá-la crescer.
Basta vigiar, assim como o camponês vigia o seu campo.
Pede a Deus para plantar uma semente na alma e enviar luz e
chuva.
A colheita é a morte espiritual. Quando a semente cresce e se
forma a espiga de trigo, no seu tamanho máximo, Deus intervém
para transformar o bem finito em bem infinito. Envia a morte espi-
ritual, a morte após a qual um homem não vive mais, mas Deus vive
nele.
Tempo da colheita.
Pede a Deus a morte espiritual.
Pede que assim como se corta o milho, sejas cortado de ti
mesmo e de tudo que nos é querido e de tudo que pensamos possuir.
Na debulha – infelizmente não há comparação para o mangual
ou o debulhador; mas pode-se meditar sobre o destino do trigo, que
é fazer pão.
Os camponeses deveriam guardar um pouco de grão para moer
e fazer pão eucarístico para si durante todo o ano.

120
Devemos explicar-lhes que o trabalho consome e queima literal-
mente a carne e, portanto, em certo sentido, sua própria carne foi
transformada nesse pão. Ao consagrar esse pão fazem dele a carne de
Cristo. Ao comê-lo e digeri-lo, a carne de Cristo torna-se a carne de-
les. O ciclo está concluído.
Pede que possamos transformar-nos em Cristo e Cristo em nós.
Pede a Deus que transforme a nossa carne na carne de Cristo,
para que sejamos alimento para todos os aflitos.
Colocadas umas após a outras, as parábolas completam o ano.
A alma do homem é arada pelo seu trabalho sobre si mesmo e
pelos assédios do acaso. Está pronta para a semeadura. Nela cai uma
semente infinitamente pequena de bem, sem que o próprio homem
perceba; só percebe isso mais tarde. Ela cresce sozinha. Quando está
madura, Deus manda morte espiritual. Então a espiga de milho é
lançada no chão e enterrada, e dá frutos no tempo devido. Ou então
é moída e transformada em pão. O homem não vive mais em si
mesmo, mas Cristo vive nele; a sua carne tornou-se a carne de Cristo
e é comida pelos aflitos. Portanto, o ciclo da vida humana é como o
do ano. É tudo trabalho até a semeadura.
A cada golpe do destino, a cada dor, pequena ou grande, diz a
ti mesmo: “Estou sendo trabalhado.”
Junto com esses temas de meditação espiritual, devem ser apre-
sentados em correlação as ideias científicas atuais de transformação
da energia no crescimento das plantas, na alimentação e no trabalho.
Acrescenta a isso um conspecto do conhecimento elementar e essen-
cial de astronomia, mecânica, física, química e biologia, e relaciona o
todo com a sequência das parábolas.
Isto pressupõe um grupo de estudo.
Deve haver missas especiais, no domingo ou na semana, para os

121
integrantes desse grupo, com textos das parábolas agrícolas corres-
pondentes à estação, de forma a pontuar a sequência dos estudos.
Deve haver uma ordem cujos membros vivam como lavradores
e iniciem e conduzam esses grupos de estudo. Seriam leigos, mas pre-
gariam nas missas especiais.
Precisariam ser homens de vasta cultura.
Embora em certo sentido seja verdade que a carne, que é consu-
mida no trabalho, passa ao produto, também é verdade que não é o
trabalho que produz o trigo. O que o trabalho faz é apenas fornecer
algumas das condições necessárias. O próprio céu é quem dá de sua
própria substância, na forma de luz e água, e desce para se transfor-
mar em espiga de trigo.
Outro tema para meditação durante o preparo do solo e a seme-
adura é: “Observem os pássaros do céu, que não trabalham nem se-
meiam.”
Não trabalham nem semeiam e, no entanto, têm alimento.
Alguém pode trabalhar e semear e ainda assim morrer de fome.
Não há garantia.
Deve-se trabalhar e semear, não para colher, mas por pura obe-
diência. Age enquanto renuncias aos frutos da ação.
Todos esses temas são apropriados para qualquer cultura de ce-
reais.
Sempre que estiverem envolvidas mãos extras, lembra-te da pa-
rábola dos trabalhadores da décima primeira hora.
Para todos os que foram contratados, todos os que foram con-
vocados e disseram sim e vieram à vinha e começaram a trabalhar,
embora tivessem apenas dois dias de vida, o pagamento é o mesmo.
O pagamento é Deus. Ele não tem grau.
Para jovens meninas, a parábola das virgens sábias. Toda jovem

122
vive provisoriamente, em estado de expectativa, pronta para o mo-
mento em que deixará o teto paterno para começar uma vida nova e
desconhecida.
E assim é com toda a alma humana. A chegada do noivo corres-
ponde a graça ou morte. Mas mais a graça.
As donas de casa muitas vezes procuram febrilmente por algo
que parece esconder-se deliberadamente. Nessas ocasiões, lembra-te
da metáfora da moeda de prata perdida. Assim como minha busca é
febril e desesperada, também o é a busca de Deus por mim, e eu me
escondo para evitar ser encontrada.
Existem na mitologia e no folclore muitas parábolas semelhan-
tes às do Evangelho; só precisam ser escolhidas.
E podemos inventar novas. (Com inspiração do Espírito Santo.)
Deveria haver uma parábola apropriada e específica para ligar a
Deus todas as atividades da vida em todas as condições sociais; para
que toda a vida humana pudesse ser simplesmente uma parábola.
Cada vida perfeita é uma parábola inventada por Deus.
Para todo o tipo de vida humana deve haver a possibilidade de
vivê-la em perfeita santidade. Se há alguma condição social em que
isso seja impossível, essa condição deve ser abolida.
Para julgar uma condição social deste ponto de vista é necessário
ter uma conceção concreta de todas as modalidades possíveis de pro-
gresso em direção à perfeição.
Essa conceção também é monopólio do Espírito Santo.
Toda ação que implique a relação de um ser humano com ou-
tros seres humanos, ou com as coisas, envolve verdadeiramente uma
relação original e específica com Deus, que deve ser descoberta.
É isso que os pitagóricos chamavam de “número”.
Como etapa do caminho, é bom que em qualquer atividade haja
uma parte da alma que permanece recolhida e concentrada em Deus,

123
mas não é o fim do caminho. Uma relação muito diferente é neces-
sária entre as atividades mundanas e a parte espiritual da alma. Cada
atividade mundana deve ser realizada de modo a que apareça nela o
significado com que Deus a criou.
A parte da alma feita para Deus deve primeiro retirar-se do uni-
verso, mesmo enquanto o resto da alma é tomada pelas coisas mun-
danas, a fim de tentar ver a Deus; mas deveria então voltar para ver a
superfície das coisas deste mundo, a superfície que elas apresentam
a Deus. Só assim é toda a alma restaurada a Deus.
Em relação a Deus, somos como o ladrão que roubou a casa de
um chefe de família e foi autorizado a ficar com algum ouro. Do
ponto de vista do legítimo proprietário, esse ouro é um presente; do
ponto de vista do ladrão é um roubo. Deve voltar devolvê-lo. É a
mesma coisa com nossa existência. Roubamos um pouco do ser de
Deus para torná-lo nosso. Deus fez disso um presente. Mas nós o rou-
bamos. Devemos devolvê-lo.
A alma que conseguiu ver a luz deve emprestar sua visão a Deus
e ligá-la ao mundo.
O eu, à medida que desaparece, deve tornar-se um espaço vazio
através do qual Deus e a criação se contemplam.
Então, a parte da alma que viu a Deus deve transformar toda a
relação com um ser ou coisa criadas numa relação entre esse ser, ou
coisa, e Deus.
Toda relação entre duas ou várias coisas criadas – sejam seres
pensantes ou matéria – é um pensamento de Deus. Devemos desejar
uma revelação do pensamento de Deus correspondente a cada rela-
ção com nossos semelhantes ou com os objetos materiais com os
quais estamos envolvidos.
Abster-se de conceber essas relações como relativas a nós é ape-

124
nas um passo no caminho. O fim é conceber cada uma delas, especi-
ficamente, como um pensamento de Deus.
E isso é um milagre; porque é uma contradição falar de Deus
tendo um pensamento particular. Uma contradição só pode tornar-
se um facto por milagre.
“Para Deus todas as coisas são possíveis” é, em si, uma frase sem
sentido; significa simplesmente que “todas as coisas são possíveis”,
que é um pensamento absolutamente vazio de conteúdo. O verda-
deiro significado é: na dimensão do transcendente contradições são
possíveis.
Um pensamento particular de Deus. Esta é uma daquelas con-
tradições que não são falácias, mas aberturas para o transcendente;
são como portas nas quais é preciso bater repetidas vezes, porque no
final se abrirão.
Essa contradição pode ser reconhecida como uma dessas portas
porque é inevitável. Sabemos por experiência que a verdade é sempre
e apenas universal e que a realidade é sempre e apenas particular, mas
as duas são inseparáveis; são de facto uma e a mesma coisa. Não há
como escapar disso.
Quando é impossível resolver uma contradição exceto por uma
mentira, então sabemos que é realmente uma porta. É preciso fazer
uma pausa e bater, e continuar batendo incansavelmente, num espí-
rito de expectativa humilde e insistente. A humildade é a virtude
mais essencial na busca da verdade.
A criação é o tecido de pensamentos particulares de Deus. Cada
um de nós é um nó desses pensamentos. Quando entendemos que
de nós mesmos nada somos, ainda não demos o primeiro passo. Te-
mos de nos tornar tais cujo cada um de nossos pensamentos – isto é,
cada relação de nossa alma com tudo o que está relacionado a ela por
qualquer relação no passado, presente ou futuro – coincida com um

125
pensamento particular de Deus.
No decorrer de 2000 anos, o Antigo Testamento tornou seus
leitores tão sugestionáveis que acabaram por ver tudo do ponto de
vista de Israel. Os historiadores latinos fizeram o mesmo com Roma
e assim por diante.
Um homem pode ser persuadido a fazer o julgamento mais ab-
surdo se for colocado, por sugestão, num ponto a partir do qual esse
julgamento parece verdadeiro. Tendo-o adotado, o manterá se perma-
necer onde foi colocado ao invés de caminhar ao redor do objeto em
questão. Este poder de sugestão é eloquência. Todos nós, quase sem-
pre, dirigimos um poderoso fluxo de eloquência sobre nós mesmos.
E, em circunstâncias favoráveis, a eloquência também é muito eficaz
com outras pessoas.
O ponto de vista fixo é a raiz da injustiça.
A geometria plana é um exercício de pensamento sem ponto de
vista. Tudo está num plano.
Em cada esfera, colocar o assunto num plano é uma purificação
essencial do pensamento, eliminando qualquer ponto de vista, pelo
uso da inteligência dedutiva.
Mas várias seções transversais devem ser feitas, como num dese-
nho mecânico. Uma única seção transversal leva ao erro. (263-270)

História do sapateiro. Tentativa de traduzir uma experiência es-


piritual.
A impressão de se pendurar numa corda e passar, de mão em
mão, pelo abismo do inferno (a corda é a recitação diária do Pai
Nosso em grego); isso é muito parecido com a imagem do sapateiro
cruzando uma floresta do topo de uma árvore a outra.
É o mal em nós que nos esconde o Bem absoluto. Mas, en-
quanto estivermos pensando sobre a luta contra o mal, cada pedaço

126
de mal que destruímos cresce novamente como antes. Nosso pensa-
mento deve ser orientado através do mal, com anseio, para o bem
infinitamente distante.
Mas é verdade que a conceção negativa da virtude é a correta.
Por causa da traição de sua senhoria, o sapateiro adormeceu no
local designado de encontro. Não devia ter contado à senhoria que a
princesa marcara com ele um encontro.
Não devemos deixar a parte inferior da alma saber que temos
tal encontro. Devemos mantê-lo em segredo até de nós mesmos. Ou
melhor, acima de tudo, de nós mesmos. O diabo não tem poder so-
bre coisas que mantemos em segredo de nós mesmos. O diabo não
entra no que está em segredo. Aí é onde mora o Pai celestial.
É por isso que talvez seja melhor que as virtudes sobrenaturais,
fé, caridade, sejam implícitas em vez de explícitas.
Romper o sigilo só é legítimo quando existe uma estrita obriga-
ção de testemunhar.
Antes do encontro, deve haver sigilo total. Depois, não é tão
rigorosamente necessário. Mas ainda deve haver sigilo, a menos que
haja a obrigação de quebrá-lo.
As virtudes sobrenaturais devem sempre ser implícitas por um
tempo; e aquelas pessoas, se houver, em quem permanecem implíci-
tos até a morte são talvez as mais privilegiadas. (270-271)

História albanesa da princesa casada com uma cobra. Variante


da história da Psique. Desse tipo, existem duas variedades de histó-
rias. Numa, a princesa é Deus e o homem-animal é a alma; noutra, é
o contrário. As duas variedades costumam fundir-se na mesma histó-
ria. Este é da segunda variedade. A cobra é filha de um rei do sub-
mundo. Ela deseja vir à Terra sob a forma de um príncipe maravilho-
samente belo. Mas só pode assumir essa forma de noite. As meias-

127
irmãs queimam a sua pele de cobra e por conseguinte deve desapare-
cer. Para encontrá-la novamente, a princesa desce ao submundo. E
obtém permissão para trazê-la de volta à terra.
Mas primeiro deve dirigir-se a uma bruxa e pedir-lhe água; e
qualquer bebida repugnante que a bruxa lhe dê, deve bebê-la e dizer
que é deliciosa.
Isso é amor ao destino.
Ela só consegue encontrar seu noivo novamente porque uma
escama permaneceu intacta entre as cinzas de sua pele.
Este é o símbolo do Banquete, o sapatinho de cristal da Cinderela,
a fita da princesa na história do sapateiro. Quando Deus veio encon-
trar-nos e foi embora novamente, deixou um sinal de si mesmo. Sem
isso, o buscaríamos em vão.
O príncipe só pode assumir sua forma principesca à noite, e
apenas para a sua noiva. No resto do tempo, é uma cobra. Compara
com a história de Hércules em Heródoto. Deus só pode aparecer dis-
farçado.
Quando uma raça estava substituindo outra no alvorecer da his-
tória (por exemplo, quando o “homo sapiens” do paleontólogo subs-
tituiu os tipos anteriores), os conquistados podem ter parecido aos
conquistadores mais animais do que humanos. [Mesmo hoje, muitos
americanos pensam assim em relação aos japoneses, e talvez seja recí-
proco.] Mas um dos derrotados pode ter sido Deus encarnado. Talvez
esta seja uma das origens da imagem de Deus disfarçado de animal.
A história albanesa é baseada numa mitologia na qual a cobra é
Deus; a cobra é o que o Cordeiro é para os cristãos.
Em outras histórias semelhantes, existe um touro em vez da co-
bra. Cobra e touro são animais lunares.
Um dragão é a mesma coisa que uma cobra.
A serpente de bronze também é Deus.

128
Problema: por que era correto fazer uma serpente de bronze e
era criminoso fazer um bezerro de ouro?
Essa serpente de bronze continuou sendo um objeto de culto
até um período muito tardio.
Moisés achava que os judeus não podiam viver sem um animal
feito de metal.
1 Reis, 19: “Sai e fica no monte, na presença do Senhor, pois o
Senhor vai passar. Então veio um vento fortíssimo… diante do Se-
nhor; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um
terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terre-
moto houve um fogo, mas o Senhor não estava no fogo. E depois do
fogo veio uma voz suave.”
Um toque eletrizante. Um toque isolado de misticismo entre
essas histórias horríveis.
O único objetivo de Moisés parece ter sido estabelecer um poder
forte. (271-273)

Uma história albanesa. Um príncipe constrói um templo que o


mundo inteiro admira. Um velho olha para ele e não diz nada. Ao
ser questionado, diz: “Falta uma coisa para torná-lo perfeito. – O quê?
– O rouxinol chamado Gizar. – Onde posso encontrá-lo? – Isso eu
não sei. Só sei que seu canto é o mais belo que já se ouviu.” O prín-
cipe vai em busca do rouxinol.
Esplêndido.
O rouxinol é o Espírito Santo. Carece realmente de algo o tem-
plo que não o tenha.
Nos contos populares e de fadas, sabemos imediatamente quais
personagens estão do lado do bem e temos certeza de que serão com-
pletamente bem-sucedidos no final, atravessando todos os desafios.
Isso expressa exatamente a verdade no domínio espiritual ao qual as

129
histórias se referem. Quando aplicadas aos assuntos deste mundo,
tornam-se simplesmente ridículas.
O terceiro filho nas histórias, que é um idiota e vive aventuras
maravilhosas, é o filósofo do Teeteto, um idiota nos negócios deste
mundo; como o ingênuo, no Evangelho.
Os contos populares contêm um tesouro espiritual de incalculá-
vel antiguidade. Sem dúvida, mais antigo que as mitologias.
Nos contos, quando alguém sai para conquistar uma princesa,
ou qualquer tesouro, sem saber até mesmo onde procurar, se aban-
dona tudo por causa dessa busca e não pensa voltar atrás, é incansá-
vel, destemido diante de qualquer perigo, então temos absoluta cer-
teza de que terá sucesso.
O que prova que, nessas buscas, é sempre Deus quem busca ou
é buscado.
O casamento com o qual as histórias terminam é o casamento
espiritual entre Deus e a alma. É por isso que não há mais nada a
dizer, exceto “viveram felizes e tiveram uma grande família”. (273-274)

O bem puro e autêntico está completamente escondido tanto


no microcosmo como no macrocosmo, na alma como no universo.
Portanto, estamos sempre certos se nos condenamos a nós mesmos.
Se existe algum bem verdadeiro num homem, só pode ser desconhe-
cido para ele.
Se fiz algum bem a um ser humano, e o recordo depois – mesmo
que por um momento e quando estou sozinha – isso é suficiente para
reverter a dívida, de modo que ele agora se torna na verdade o credor
e eu a devedora.
Da mesma forma, sem dúvida, se alguém me fez mal.
Se tenho devedores, só pode ser sem que eu saiba. Então, como
posso encontrar algum devedor para perdoar?

130
Quanto a mim, não tenho dívidas, eu mesma sou uma dívida.
Meu próprio ser é uma dívida. Deus só pode perdoar essa dívida fa-
zendo-me deixar de existir – cessar enquanto ainda estou viva neste
mundo – e depois vendendo o que resta, depois de minha pessoa ter
sido aniquilada, de modo a fornecer alimento às suas criaturas.
Vende tudo o que tens; e isso inclui a própria pessoa. Não ven-
deste tudo se ainda não te vendeste como escrava. Mas não te podes
vender a ti mesma; antes, és vendida.
Amar significa amar os seres e as coisas criadas como a Palavra
divina as amou no momento em que se esvaziou para se tornar es-
crava; e significa amar a Deus como Cristo o amou no momento em
que clamou na cruz, “Deus meu, por que me abandonaste?” Ama este
mundo como a Palavra divina o amou quando, por amor ao mundo,
separou-se de Deus. Possui esses dois amores ao mesmo. Esse amor
duplo, do qual cada parte é impossível e sua combinação impossível
ao segundo grau, é o amor de Cristo que excede todo o conheci-
mento.
Esse amor consiste de certa atitude em relação às coisas deste
mundo.
Deus está sempre ausente do nosso amor, assim como está do
mundo; mas ele está secretamente presente em puro amor.
Quando a presença de Deus é visível no amor, então é a pre-
sença de algo diferente de Deus. O Pai celestial mora apenas em se-
gredo.
O significado de todos esses casamentos principescos nos contos
populares está contido na copla espanhola: “Amores possíveis – são
para tolos – os sábios sentem – amores impossíveis”. (274-275)

O pensamento da morte dá uma cor de eternidade aos eventos


da vida. Se nos fosse concedida a vida eterna neste mundo, nossa vida

131
terrena, ao ganhar perpetuidade, perderia aquela eternidade cuja luz
brilha através dela.
“Através do desapego, alimenta-te dessa totalidade.” É o desa-
pego que faz todas as coisas se tornarem eternas. (275)

O amor divino é amor incondicional. Amar um ser humano em


Deus é amá-lo incondicionalmente. Só podemos amar um ser incon-
dicionalmente se amarmos um atributo seu que é indestrutível.
Num ser humano comum, há apenas um atributo indestrutível
– o facto de que ele é uma coisa criada.
Naqueles que nasceram duas vezes, que nasceram do alto pelo
espírito, que passaram pela morte e ressurreição de Cristo, existe um
segundo atributo indestrutível – o de ser filho de Deus.
Portanto, existem dois amores incondicionais pelos seres huma-
nos. Um expressa-se no preceito “ama o próximo como a ti mesmo”,
o outro no preceito “amem-se uns aos outros”.
O que pedimos do amor humano é uma impossibilidade, uma
contradição viciosa. Não desejamos ser amados condicionalmente.
Repelimos com raiva qualquer um que diga: “Amar-te-ei enquanto
estiveres com boa saúde. Quando estiveres doente, não mais te ama-
rei.” Mas, ao mesmo tempo, não queremos um amor que nos amon-
toe com uma massa de outras pessoas. Repelimos quem disser “amo
todas as loiras e a ti nem mais nem menos que as outras” ou “amo
todas as Parisienses”. O que queremos é uma preferência incondicio-
nal. Mas todos os atributos que nos distinguem de outras pessoas são
condicionais e podem desaparecer. Merecemos incondicionalmente
apenas a quantidade de atenção devida às criaturas mais destituídas;
em outras palavras, a algo infinitamente pequeno.
E, no entanto, é verdade que merecemos não apenas ser preferi-
dos, mas amados de forma única, exclusiva. Mas aquilo em nós que

132
tal merece é a parte não criada da alma, que é idêntica ao Filho de
Deus. Quando é destruído o eu, que é um composto de atributos, e
emerge a parte não criada, então “não vivo mais em mim, mas Cristo
vive em mim”; qualquer que ame um homem nesse estado e porque
está nesse estado está amando a Cristo na forma desse homem. É um
amor impessoal.
Amar em Deus é amar uma pessoa impessoalmente.
“Ama o próximo como a ti mesmo” – isso significa amá-lo in-
condicionalmente; pois o amor a si mesmo é incondicional. Alguém
pode-se achar horrível, mas ainda se ama.
O objeto do amor é o bem. Amar um ser humano comum in-
condicionalmente, é necessário ter percebido nele um bem incondi-
cional.
Não há bem incondicional em homem algum que não tenha
alcançado o estado de união mística, exceto a possibilidade de al-
cançá-la.
Para amar os homens incondicionalmente, deve perceber-se ne-
les pensamentos sujeitos a mecanismos materiais, mas cuja vocação é
para o bem absoluto.
A aspiração pelo bem existe em todos os homens – pois todo o
homem deseja, e todo desejo é desejo pelo bem – e esta aspiração
pelo bem, que é o próprio ser de cada homem, é o único bem que
está sempre incondicionalmente presente em cada homem.
Deve-se amar em todos os homens seu desejo ou sua posse do
bem, conforme o caso.
Ou, usando um vocabulário diferente, deve-se amar em todos os
homens seu desejo ou sua posse de Deus.
Isso é amar incondicionalmente. Isso é amar os seres humanos
em Deus.

133
No inferno, por definição, não existe mais desejo pelo bem. Por-
tanto, é impossível que alguém sofra lá.
O que amamos em outros seres humanos é a aguardada satisfa-
ção de nosso desejo. Nós não amamos seu desejo. Se o que amásse-
mos neles fosse seu desejo, deveríamos amá-los como a nós mesmos.
Porque não amamos um bem dentro de nós, mas aderimos a um de-
sejo que lá está.
O desejo sempre sofre porque está insatisfeito. Reciprocamente,
todo sofrimento é causado pelo desejo insatisfeito. O amor que adere
ao desejo do outro é compaixão.
É impossível sentir compaixão por todos os desejos, a menos
que se tenha contemplado as ideias puras e universais de desejo e do
bem; em outras palavras, a menos que alguém tenha contemplado a
Deus.
Se contemplamos o Bem, vemos todo desejo, mesmo o mais
horrível, como uma aspiração ao bem, ainda que errôneo.
Em vez de amar um ser humano por sua fome, nós o amamos
como alimento para nós mesmos. Amamos como canibais. Amar pu-
ramente é amar a fome num ser humano. Então, como todos os ho-
mens sempre têm fome, sempre amamos todos os homens. A fome
de alguns homens é parcialmente satisfeita; deve-se amar neles tanto
sua fome quanto sua satisfação.
Mas a maneira como realmente amamos é muito diferente. Gra-
ças à sua companhia, palavras ou cartas, recebemos conforto, energia
e estímulo das pessoas que amamos. Afetam-nos como uma boa re-
feição o faz após um dia duro de trabalho. Então, as amamos como
comida. Na verdade, é um amor antropófago.
E o nosso ódio, a nossa indiferença, são antropófagos também.
Estavas com fome e me comeste.
E realmente deves comer.

134
Será esse tipo de afeto legítimo para com aqueles que já não são
eles próprios, aqueles em quem Cristo vive?
Certamente, para com eles e apenas para com eles.
Porque neles o desejo e a satisfação e o alimento que proporcio-
nam aos outros são uma e a mesma coisa.
Mas quando o amor lhes é dirigido, não pode ser um amor pos-
sessivo. Assim como um homem que compra uma estátua grega não
pode sentir que é o seu proprietário – a menos que seja um bruto –
embora tenha pago por ela. O bem puro ilude todos os relaciona-
mentos particulares.
À parte desse tipo de amor, todos os relacionamentos humanos
são vampíricos. Amar alguém significa amar beber seu sangue.
Sempre que o afeto é violento, significa que a vida está em jogo.
Só se pode amar puramente quando se renuncia à vida.
Quem ama sua vida ama seus parentes e amigos como Ugolino
amava seus filhos. Nada é real para o homem que ama dessa maneira.
A realidade só se torna percetível para o homem que aceita a
morte.
Que maior presente se poderia ter oferecido aos seres criados do
que a morte?
É apenas a morte que nos ensina que não temos existência, ex-
ceto como uma coisa entre muitas outras coisas. (282-285)

Tanto nosso amor quanto nossa razão estão sujeitos a este para-
doxo: que são faculdades universais que só podem responder a obje-
tos particulares.
Concebe essa observação como um teorema.
Só Deus combina na unidade o universal e o particular. Deus é
uma pessoa universal. Alguém que é tudo.
Não amamos a humanidade, amamos um determinado homem.

135
Não é um amor legítimo; legítimo é amar a humanidade.
Mas amar a divindade e a Deus em particular é um só amor.
Em Deus, o universal e o particular são idênticos. Neste mundo,
eles estão unidos por uma harmonia. Essa harmonia é a Encarnação.
Nós mesmos devemos viver por essa harmonia. É a verdadeira vida.
Poder amar no próximo a fome que o consome e não a comida
que oferece para aplacar a nossa própria fome – isso implica um de-
sapego total.
Implica que a pessoa renuncia a alimentar-se do homem e de-
seja, no futuro, alimentar-se apenas de Deus.
Mas a substância de Deus apenas alimenta, de qualquer maneira
no início, um ponto na nossa alma que está tão profundamente en-
raizado no centro que não temos consciência de sua existência.
O resto da alma está com fome e quer alimentar-se do homem.
Só podem ser salvos aqueles que são impedidos por algo que age
contra o impulso de se aproximarem daquilo que amam; são aqueles
em quem o sentimento pela beleza deu origem à contemplação.
Talvez seja por isso que Platão diz que apenas a beleza desceu do
céu à terra para nos salvar.
Aqui em baixo, olhar e comer são duas coisas diferentes. Temos
de escolher ou uma ou outra. Ambas são chamadas de amar. As úni-
cas pessoas que têm esperança de salvação são aquelas que ocasional-
mente param e por um tempo olham, em vez de comer.
“Um come a fruta, o outro olha.”
A parte eterna da alma alimenta-se de fome.
Quando não comemos, nosso organismo consome sua própria
carne e a transforma em energia. Acontece o mesmo com a alma. A
alma que não come consome-se a si mesma. A parte eterna consome
a parte mortal da alma e a transforma.
É difícil suportar a fome da alma, mas não há outro remédio

136
para a nossa doença.
Fazer que a parte perecível da alma morra de fome enquanto o
corpo ainda está vivo. Desta forma, um corpo de carne passa direta-
mente para o serviço de Deus.
Platão, Leis: “Na medida do possível, por meio do trabalho, faz
com que o poder dos prazeres sensuais se atrofie desviando seu fluxo,
e aquilo que o alimenta, para outras partes do corpo.”
Bastante preciso. A energia da semente é alimento para os ór-
gãos sexuais e sua atividade, mas também para outros órgãos e sua
atividade. Se outros órgãos consomem essa energia, a sexualidade
morre de inanição.
Podemos projetar a sexualidade sobre qualquer tipo de objeto:
passatempo de colecionador, dinheiro, poder, pertença a um grupo,
gato, canário, Deus (mas neste caso não será o verdadeiro Deus).
Ou podemos matar a sexualidade e efetuar uma transmutação
da energia nela contida.
Essa operação é o desapego.
Todo apego é da mesma natureza que a sexualidade. Nesse sen-
tido Freud estava certo (mas apenas nesse).
Deus depositou em nós uma energia suplementar. É o talento
da parábola. Alguns a exploram automaticamente, com o acompa-
nhamento do prazer sensual. Outros a dão como alimento para a
melhor parte de sua alma.
Marcos: “A terra dá fruto por si mesma”, “automatë”. Daí o au-
tomatismo. Esta passagem mostra, da maneira mais clara e precisa
possível, que existe uma mecânica espiritual com leis tão rigorosas
quanto a nossa, só que diferente.
O semeador; a mesma palavra é usada para o homem que engra-
vida a mulher. As parábolas no Evangelho sobre a semente têm cer-
tamente esse duplo significado. “A semente é a palavra de Deus.” A

137
semente é sopro de fogo, pneuma. A semente que entrou na Virgem
foi o Espírito Santo. O Espírito Santo também é a semente que cai
sobre todas as almas. Para recebê-lo, a alma deve tornar-se simples-
mente uma matriz, um vaso; algo plástico e passivo, como água. En-
tão a semente torna-se um embrião e, por fim, uma criança; Cristo
nasce na alma. O que costumava ser chamado de “eu” e “mim” é
destruído, liquefeito; e no seu lugar há um novo ser, crescido da se-
mente que caiu de Deus na alma. Isso é nascer de novo; nascer do
alto; nascer da água e do espírito; nascer de Deus e não da vontade
do homem ou da vontade da carne. Após esta operação, “eu não vivo
mais, mas Cristo vive em mim”. Um ser diferente foi gerado por
Deus, um “eu” diferente, que dificilmente é um “eu”, porque é o
Filho de Deus. Não existem “filhos adotivos”. Não há adoção senão
no sentido de que, assim como um parasita põe seus ovos na carne
de um animal, Deus coloca um esperma em nossa alma que, quando
crescer, será seu Filho. É assim que a Afrodite celestial, que é Sabe-
doria, emerge do mar. Nossa alma não deve ser nada exceto um lugar
de boas-vindas e alimento para este germe divino. Não devemos ali-
mentar nossa alma. Devemos antes dar nossa alma como alimento
para esse germe. Depois disso, ele próprio obterá nutrição direta de
tudo o que antes nutria nossa alma. Nossa alma é o ovo dentro do
qual esse germe divino se transforma num pássaro. Como embrião,
o pássaro alimenta-se do ovo; depois de crescer, quebra a casca,
emerge e sai bicando em busca de grãos. Nossa alma está desligada
de toda realidade por uma pele envolvente de egoísmo, subjetividade
e ilusão; o germe de Cristo, colocado em nossa alma por Deus, ali-
menta-se disso; quando cresce o bastante, quebra a alma, explode
com ela e entra em contato com a realidade. Isso é amor no micro-
cosmo. Mas quando crescem suas asas douradas, quebra o ovo do
mundo e passa para o lugar além do céu, isso é amor no macrocosmo.

138
As esposas dos fazendeiros que criam galinhas devem ser infor-
madas sobre esses símbolos e seu significado.
O batismo é um ato de magia simpatético. Assim como a água
é borrifada para trazer chuva, o batismo é um ato representando um
novo nascimento com o objetivo de levar a um novo nascimento real.
Passar pelo batismo acreditando que ele levará a um novo nasci-
mento é testificar que realmente o desejamos; e, portanto, devemos
recebê-lo.
Ter um filho batizado é testificar que se lhe deseja um novo nas-
cimento. Portanto, deve-se ajudá-lo a alcançá-lo.
Esses resultados somente acontecerão se estivermos realmente
pensando no novo nascimento e realmente acreditarmos na eficácia
do sacramento.
Apenas uma forma externa, seja ela qual for, cuja eficácia em si
mesma, como forma em que se acredita, permite à alma exercer uma
ação igualmente real sobre si mesma, tanto no plano espiritual como
no plano das obrigações. O corpo é o intermediário indispensável
por meio do qual a alma age realmente sobre si mesma. Suponhamos
que uma grande soma de dinheiro me seja confiada em depósito.
Gostaria de ficar com ela. Mas seu retorno é necessário. Ainda gosta-
ria de ficar com ela; mas meu corpo vai com o dinheiro para o lugar
designado, deixa-o lá e volta sem ele. Depois de um tempo, esqueço.
Minha alma desapegou-se dele.
Posso aproximar o meu corpo do bem além do ponto em que se
encontra atualmente a minha alma; então o corpo arrasta a alma con-
sigo.
Essa operação é realizada continuamente no plano das obriga-
ções, e qualquer outra forma de procedimento é imaginária.
Mas, no plano espiritual, a mesma operação só é possível se ti-
vermos certeza de que certa forma física de comportamento possui

139
eficácia espiritual. Pode ter qualquer forma, mas deve ser uma forma
definida. Tudo o que é fisicamente sensível deve necessariamente ter
uma existência particular. A escolha da forma é arbitrária; mas uma
escolha deve ser feita; e não deve parecer arbitrária, ou até que houve
uma escolha.
Sempre o mesmo paradoxo na relação entre universal e particu-
lar.
A forma escolhida é uma convenção entre homens, mas cele-
brada por causa do bem e consequentemente ratificada por Deus.
Para que a forma possa ser um objeto de certeza, deve-se acredi-
tar que ela foi estabelecida por um homem inspirado por Deus ou,
de preferência, pelo próprio Deus encarnado no mundo.
É bom ou mau que os sacramentos estejam sujeitos a condições
sociais?
Parece-me que é totalmente mau, e que os padres não deveriam
oferecer um sacramento. Deveriam simplesmente advertir os fiéis de
que o sacramento é uma prova e envolve um risco.
Parece-me que um sacramento sujeito a condições sociais já não
é um sacramento.
O diabo, dono de tudo que é social neste mundo, interpõe-se
entre o homem e Deus. (285-289)

Uma parte da alma deseja cumprir uma obrigação, como devol-


ver um depósito; outra parte não deseja. Elas lutam. O corpo é o
árbitro. Só o corpo pode ser a balança sobre a qual a alma é pesada
contra si mesma. Em certo sentido, o corpo é o juiz, assim como a
balança julga entre peso e peso. Assim como a Cruz é a balança entre
o céu e a terra, o corpo também é a balança entre a alma e a alma.
É esta a dignidade eminente do corpo.
É o corpo que come, mas também é o corpo que jejua. É a carne

140
que dorme, mas também é a carne que vigia.
Obrigações implicam ação, e o corpo é o árbitro apropriado dos
conflitos da alma sobre a ação.
Mas há um conflito mais profundo – o conflito sobre a regene-
ração da alma. Uma parte da alma deseja a luz que regenera, outra
parte não a deseja. A regeneração espiritual não é uma ação, não é
uma série de movimentos, não é algo que a vontade possa dominar.
Mesmo assim, o corpo é a única balança que pesa a alma contra a
alma.
Portanto o conflito permanecerá indeciso, a escolha não será
feita, a menos que haja algum ato corporal que esteja ligado, por con-
venção, à regeneração da alma da mesma forma que o ato corporal
de levar o dinheiro depositado de volta ao seu dono está ligada, por
natureza, à honestidade. Deve ser uma convenção com Deus, entre
Deus e o homem. Isso é chamado de sacramento.
Uma vez que a regeneração espiritual é uma mudança que é so-
frida por qualquer um que a deseja, e não uma ação voluntária, é
apropriado que o rito corporal que lhe está convencionalmente li-
gado seja algo conferido por outrem quando solicitado.
Isso também faz parte da definição de sacramento.
Mas não deve haver condições vinculadas além do facto de pedi-
lo. A regeneração espiritual não está sujeita a nenhuma condição,
exceto um desejo verdadeiro. Pedir, que é a imagem sensível do de-
sejo, deve ser a única condição para receber a imagem sensível da
regeneração.
Se um homem realmente acredita que o rito realmente trará sua
regeneração, o facto de pedi-lo implica fazer tal violência ao mal den-
tro dele que todas as outras circunstâncias que acompanham seu pe-
dido são insignificantes em comparação. Ajoelhar-se na neve por três
dias e três noites não acrescentaria nada à dificuldade. Condenar à

141
morte o mal dentro de nós mesmos é tão difícil que chega ao limite
extremo da possibilidade. Nada pode ser mais difícil.
Mas fazer um pedido desse tipo só atinge o limite extremo da
dificuldade se tivermos certeza de que o rito que se está pedindo en-
volverá a morte do mal dentro de nós.
É por isso que a fé é um intermediário indispensável para fazer
do corpo um árbitro no conflito espiritual da alma consigo mesma.
A fé cria a verdade à qual adere. A certeza de que um rito ou
cerimônia dá regeneração espiritual confere ao mesmo essa eficácia;
e isso não é o efeito de um fenômeno de sugestão, que implicaria
ilusão e falsidade, mas do mecanismo aqui analisado.
O domínio da fé é o domínio em que a fé é legítima e é uma
virtude. Uma virtude criadora da verdade.
É necessário discriminar este domínio. (290-291)

Se alguém faz algo com a certeza de que está obedecendo a Deus


e sem outro motivo ou intenção além dessa obediência, é certo que
está obedecendo a Deus.
Mas significa isso que, com essa intenção, alguém pode fazer o
que quiser?
Esse é o grande problema; é o problema no Gita.
Eu ainda não o entendi direito.
Existem neste mundo três mistérios, três coisas incompreensí-
veis. Beleza, justiça e verdade.
São as três coisas reconhecidas por todos os homens como pa-
drões para tudo no mundo. O incompreensível é o padrão para o
conhecido.
Não admira que a vida terrena seja impossível!
Somos como moscas apanhadas dentro de uma garrafa, atraídas
pela luz e incapazes de ir na sua direção.

142
No entanto, é melhor ficar preso dentro da garrafa pelo todo do
tempo do que se afastar da luz por um único momento.
Terás piedade, ó Luz, e quebrarás o vidro no final desta duração
perpétua?
Mesmo que não – é preciso ficar pressionado contra o vidro.
É necessário ter percorrido a duração perpétua do tempo dentro
de um período finito de tempo. Para que esta contradição seja possí-
vel é necessário que a parte da alma que está no nível do tempo – a
parte que raciocina discursivamente e avalia – seja destruída.
Só pode ser destruída por uma aflição aceite ou por uma alegria
tão intensa que a mergulhe em pura meditação. Ou ainda existem
outras maneiras?
Para a parte da alma abaixo do nível do tempo, uma duração
finita é infinita. Da mesma forma que existe uma infinidade de pon-
tos no comprimento de um quintal.
Se a camada inferior da alma fica desnuda e exposta devido à
destruição da parte discursiva, e se desta forma a duração perpétua é
percorrida num lapso de tempo finito, e se durante essa perpetuidade
a alma permanece voltada para a luz eterna, então talvez no final a
luz eterna tenha piedade e envolva toda a alma na sua eternidade.
Quando a camada inferior da alma fica desnuda e voltada para
a luz eterna, isso é a separação e reunião da água e do espírito de fogo;
é a transformação da qual o batismo é o símbolo. (291-293)

A parte intermediária da alma, que perturba toda alma que é


um mau composto de água e do espírito, deve ser destruída para dei-
xar a parte vegetativa diretamente exposta ao espírito de fogo que
vem de além dos céus.
Desnuda-te de tudo que está acima da vida vegetativa. Desnuda
o nível vegetativo e vira-o à força para a luz celestial.

143
Destrói tudo aquilo na alma que não esteja intimamente ligado
à matéria. Nua expõe à luz celestial aquela parte da alma que é pouco
mais do que matéria inerte.
A perfeição que nos é proposta é a união direta do espírito di-
vino com a matéria inerte. Uma imagem perfeita da perfeição é a da
matéria inerte considerada como matéria pensante.
Esta é a justificativa para o que os hebreus chamam de idolatria.
Mas melhor que um ídolo esculpido é algo sem rosto humano:
como uma pedra, um pão ou uma estrela.
Se imaginarmos um espírito combinado com o sol, essa é uma
imagem perfeita da perfeição.
É por isso que este universo feito de matéria inerte é belo. Mais
belo que os mais belos seres humanos.
A inércia da matéria corresponde à justiça do pensamento di-
vino.
Um pensamento humano pode residir na carne. Mas se um pen-
samento reside na matéria inerte, só pode ser divino.
Portanto, se um homem é transformado num ser perfeito e seu
pensamento é substituído pelo pensamento divino, sua carne, sob
seu aspeto de carne viva, torna-se em certo sentido um corpo morto.
Um homem tem de morrer e seu cadáver ser reanimado por um
sopro vivo que vem diretamente do céu.
Se Deus pode encarnar num homem comum num determinado
momento de sua vida, por que não numa semente dentro do corpo
de uma mulher?
Ideias baseadas na encarnação de Deus implicam que o renasci-
mento espiritual é Deus tomando posse de um homem. Isso implica
uma quebra de continuidade. Ideias além desta não vão além do nível
da obrigação e da lei.

144
Colocar a divindade ao nível da obrigação é transformar a soci-
edade num ídolo. É por isso que o protestantismo, que coloca a mo-
ral em primeiro plano, declina irresistivelmente numa religião nacio-
nal. Coloca a moralidade em primeiro lugar porque se enfraqueceu
a ideia de sacramento.
A Reforma enfraqueceu a ideia de sacramento porque os sacra-
mentos foram usurpados. Quando uma sociedade obtém monopólio
dos sacramentos e os concede apenas sob certas condições, há usur-
pação.
Quando o diabo ofereceu a Cristo o reino deste mundo, ele re-
sistiu à tentação. Mas sua noiva, a Igreja, cedeu a ela. E não prevale-
ceram contra ela as portas do inferno?
Mas o texto do Evangelho, o Pai Nosso e os sacramentos ainda
mantêm o seu poder redentor. Apenas neste sentido é que o inferno
não prevaleceu.
A palavra de Cristo não garante nada mais do que isso e, em
particular, de forma alguma garante a perpetuidade do cristianismo.
(Se o cristianismo desaparecesse, seria sucedida em poucos sécu-
los por outra religião, e surgiria essa religião de nova encarnação?)
Hoje, se um filho de pais judeus ou ateus é batizado, significa
que está ingressando num grupo social, a saber, a Igreja, da mesma
forma que alguém por possuir um cartão de partido político torna-se
membro do partido.
Tal é usurpação. A noiva de Cristo comportando-se como Cli-
temnestra. Uma esposa usurpadora e adúltera.
A parábola do semeador indica que Deus derrama continua-
mente a sua graça com absoluta imparcialidade sobre todos os ho-
mens; a parábola dos trabalhadores da décima primeira hora indica
que Deus concede recompensa absolutamente igual a todos aqueles
que respondem ao seu chamado, e que lhe dedicam seus corpos em

145
obediência. Depois destas coisas, como podem as pessoas ousar con-
ceber inequalidade nas coisas espirituais? É verdade que a encontra-
mos neste mundo; mas a razão disso está com os homens, e Deus a
elimina naqueles que ele esconde dentro de si.
Deus é concebido como a causa indireta de tudo, e como a causa
direta apenas do que é puramente espiritual. Portanto, com relação
à causalidade indireta, é todo-poderoso; mas essa onipotência define-
se como uma abdicação em favor da necessidade. No que diz respeito
à causalidade direta, o poder de Deus no mundo é algo infinitamente
pequeno.
Tudo que é puro bem é ordenado por Deus. Tudo o que ocorre,
sem distinção, é permitido, ou seja, consentido por Deus. Mas esse
consentimento é uma abdicação. Portanto, não é o exercício de poder
como um rei.
“Teu reino” é o puro bem. “Venha o teu reino” significa deixar
o mal desaparecer. O que esta petição pede é o fim do mundo.
“Seja feita a tua vontade”; mas a vontade de Deus é abdicar em
favor da necessidade. Portanto, esta petição implica o consentimento
da existência do mundo.
Que venha o teu reino; e ainda assim, uma vez que não é a tua
vontade reinar aqui em baixo, seja feita a tua vontade.
Pedimos o desaparecimento do universo e consentimos na sua
presença.
Mais adiante, pedimos perdão a Deus por nossa existência e o
perdoamos por nos ter feito existir.
Consentimos em existir, mas ao mesmo tempo pedimos para ser
libertados do mal e, consequentemente, da existência.
Santificado seja o teu nome.
Deus colocou os céus entre ele e nós, para se esconder; permite-
nos ter apenas uma coisa, que é seu nome. Este nome realmente nos

146
foi dado. Podemos fazer o que quisermos com ele. Podemos anexá-lo
como um rótulo a qualquer coisa criada. Mas, ao fazer isso, nós o
profanamos e ele perde sua virtude. É apenas quando o falamos sem
imaginar qualquer representação sua que tem virtude.
A criação é a palavra que Deus nos fala; e é também o nome de
Deus. Relação, que é Sabedoria divina, é o nome de Deus.
Um homem perfeito é nome de Deus. (Microcosmo.) Sua inten-
ção de ser santificado é tornar-se uma maldição ao ser pendurado na
cruz.
A própria conceção de Microcosmo implica Encarnação. Um
ser humano cuja alma é a Alma do Mundo.
Na ordem material, coisas entre as quais não há diferença po-
dem ser diferentes. Por exemplo, podemos conceber abstratamente
duas pedras idênticas.
Mas na ordem do bem, o que é idêntico é um; e duas coisas são
apenas duas se forem diferentes uma da outra.
Portanto, um homem perfeito é Deus.
Mas na ordem do bem existe apenas descida e nenhuma ascen-
são. Então Deus desceu para habitar neste homem.
A única maneira de desempenharmos um papel nesta operação
é por um método semelhante à magia simpatética. Feiticeiros austra-
lianos jogam água no chão para trazer chuva. Da mesma forma, po-
demos descer para induzir Deus a descer até nós. Isso é a virtude da
humildade.
Os movimentos descendentes são os únicos ao nosso alcance.
Os movimentos ascendentes são imaginários.
A distinção entre a ordem do bem e a ordem da existência lança
luz sobre todos os mistérios acerca de Deus.
Possuímos um pouco de poder. Ao dele abdicar e a tudo con-
sentir, nos tornamos todo-poderosos. Pois nada pode acontecer sem

147
o nosso consentimento.
Será esse o significado oculto das palavras “Todas as coisas são
possíveis ao homem que tem fé”?
A conexão entre fé e poderes específicos (curar, golpear uma fi-
gueira) exposta no Evangelho é uma ideia tão grosseira que é intole-
rável se tomada literalmente. Ou assim me parece.
Deus abdicou de sua divina onipotência e se esvaziou. Ao abdi-
car de nosso pequeno poder humano, tornamo-nos, no que diz res-
peito ao vazio, iguais a Deus.
A Palavra divina era igual a Deus em divindade. Esvaziou-se e
tornou-se um escravo. Podemos ser iguais à Palavra divina em vazio e
escravidão.
“Ninguém vem ao Pai senão por mim”, ou seja, a humildade é
o único caminho.
A Encarnação é simplesmente uma figura da Criação. Deus ab-
dicou dando-nos existência. Ao recusá-la, abdicamos e tornamo-nos,
dessa forma, semelhantes a Deus.
Deus criou-nos à sua imagem, isto é, deu-nos o poder de abdicar
a seu favor, assim como ele abdicou por nós.
A virtude da humildade é incompatível com o sentimento de
pertencer a um grupo social escolhido por Deus, seja uma nação (he-
breus, romanos, alemães, etc.) ou uma Igreja.
Como podem os sacramentos ser resgatados de uma organiza-
ção social usurpadora? Matando o dragão que guarda o tesouro?
A ideia da virtude incondicional dos sacramentos possui beleza
perfeita. Mas nunca deveria ser possível impedir um sacramento.
Administrar os sacramentos de maneira que ninguém possa ter
motivo para se afastar deles, exceto por ódio e medo do bem. Isso
está longe de ser o caso agora. É possível que sejam impedidos por
razões legítimas. O que é um escândalo.

148
Se o Pai celestial dá luz do sol e chuva tanto aos justos quanto
aos injustos, certos sacramentos devem ser concedidos sem qualquer
tipo de discriminação.
A discriminação só é exigida no sacramento da ordenação, por-
que ser ordenado sacerdote envolve responsabilidade.
A Igreja tenta usar o Paraíso para chantagear e condenar qual-
quer um que rejeite sua infalibilidade.
Só se tornará santa se abdicar, renunciando ao poder de impedir
os sacramentos.
Mesmo a absolvição deve ser concedida a qualquer um que a
pedir, embora deva ser avisado de que, se a receber sem verdadeiro
arrependimento, isso levará à sua condenação, e deve ser encorajado
a solicitar tal penitência que levará o arrependimento como um
prego na sua alma. Mas após este aviso, deve receber o que deseja.
Dá tudo o que for pedido. Essa facilidade é justamente o que
poderia inspirar na alma das pessoas um temor sagrado.
Exercer autoridade espiritual só quando uma diretiva espiritual
for solicitada; e então exercita com severidade. Incentiva as pessoas a
buscarem orientação espiritual.
Nunca deve haver qualquer elemento de restrição social. Toda
obediência deve ser consentida livremente.
Cristo proibiu expressamente seus seguidores de buscar autori-
dade e poder. Portanto, sua Congregação (a Igreja) não deve ser uma
sociedade.
Se a pessoa está só, fechada no seu quarto, ela é ouvida pelo Pai
em secreto. Se dois ou três estão reunidos em nome de Cristo, ele
está lá. Aparentemente, não deveria haver mais de três.
Uma criança que é travessa e desobediente e faz coisas tolas di-
ante da mãe – porque sente que enquanto ela está ali, está a salvo das
consequências – fica alarmada com sua liberdade quando está longe

149
dela.
Da mesma forma, se aos fiéis sempre fosse concedido tudo o que
pedissem, em questões espirituais, eles começariam a assustar-se e a
buscar refúgio em Deus.
Ao impor condições à comunhão, o terror e a majestade que
deveriam acompanhar este mistério são eliminados. Moisés levantou
a serpente de bronze e quem foi mordido podia olhar para ela.
Foi por falta de fé que os sacramentos foram cercados de condi-
ções.
Ou isso muda ou o cristianismo perecerá.
Em qualquer caso, uma nova religião é necessária. Ou um cris-
tianismo tão modificado que se torna uma coisa diferente; ou alguma
outra coisa. (294-299)

Um poder reside em qualquer objeto que tenha sido abordado


com sentimento intenso por um grande número de homens. Adorar
esse poder é idolatria. A verdadeira adoração consiste em contemplar
tal objeto com o pensamento de que se tornou divino por uma con-
venção ratificada por Deus.
Mas os judeus que oravam no Templo e em nenhum outro lugar
eram tão “idólatras” quanto os pagãos.
Assim como qualquer coleção de sílabas pode ser, por conven-
ção, o nome de Deus, qualquer pedaço de matéria pode, por conven-
ção, conter a presença de Deus. Assim, pode-se por convenção falar,
ouvir, ver, tocar e comer a Deus.
Só assim é que o corpo pode arbitrar, como uma balança, no
conflito entre a parte da alma que deseja a presença de Deus e a parte
que sente horror dela.
A revolta de toda a parte medíocre da alma é um sinal de que a
presença de Deus é real.

150
A presença de Deus corta a alma em duas; o bem de um lado, o
mal do outro. É uma espada. Nada mais pode produzir esse efeito.
Portanto, a presença de Deus pode ser provada.
Deus é o Bem. Ele não é uma coisa, nem uma pessoa, nem um
pensamento. Mas, para apreendê-lo, temos de concebê-lo como uma
coisa, uma pessoa e um pensamento.
O amor consente em todas as coisas e comanda apenas aqueles
que estão dispostos a obedecer. O amor é abdicação. Deus é abdica-
ção.
O bem nunca é um produto do mal, mas o mal é, em certo sen-
tido, produzido pelo bem.
O mal está entre Deus e nós; o amor tem de passar por ele.
Deus permite que o mal exista. Devemos fazer o mesmo com
todo mal que não temos meios de destruir. Devemos permitir que o
mal exista fora de nós. Mas apenas fora de nós. Quer dizer, além de
nosso poder de controlo. (299-300)

É impossível que toda a verdade não esteja presente em todos os


momentos e em todos os lugares, disponível a todos aqueles que a
desejam. “Quem pede pão.” A verdade é pão. É absurdo supor que
durante séculos ninguém ou quase ninguém desejou a verdade, e de-
pois, nos séculos seguintes, foi desejada por povos inteiros.
Quando as pessoas careciam da verdade, como os judeus antes
de Nabucodonosor, os romanos e outros, era porque a recusavam.
Os judeus e os romanos juntos crucificaram a Cristo. Mas ainda
lhe fizeram pior quando o Cristianismo se tornou a religião do Im-
pério com o Antigo Testamento como livro sagrado.
Tudo o que não esteve disponível em todos os momentos e lu-
gares para quem deseja a verdade é em si algo diferente da verdade.

151
É devida à insuficiência de fé que se considera necessário acres-
centar a crença social. Por isso se aceitou a usurpação social da Igreja.
A Inquisição protege todos contra a tentação da dúvida. Sabendo que
duvidar significará morte, sabe-se que não se deve duvidar.
Exceto para as naturezas rebeldes, sobre as quais tem o efeito
oposto. Mas o que as tornou tão rebeldes?
O constrangimento social produz uma imitação muito boa de
todos os efeitos da fé – e com a vantagem de não salvar a alma!
Talvez o fruto proibido, para as almas que não nasceram, seja o
espetáculo do amor carnal. Estão proibidas de descer até ele – mas
descem – e se encarnam. Talvez seja isso a escolha transcendental.
Talvez o estado de alma de dois amantes no momento de união
seja a forma instantânea de um destino que se desenrolará por toda
a vida.
(Se Deus está entre o casal, como uma espada de dois gumes, no
momento real da união, a criança é santa desde o nascimento. É pos-
sível?)
Se nascemos em pecado, é evidente que o nascimento constitui
um pecado.
A alma desce e encarna-se para conhecer o bem e o mal. No alto,
só conhece o bem (tradição Cátara).
É este o significado da porta proibida em tantos contos popula-
res?
A parábola da boa semente e do joio é absolutamente manique-
ísta. Deus só plantou boa semente. O diabo é quem semeia joio. Deus
permitiu que os dois crescessem juntos até que o bem amadurecesse,
porque estão tão entrelaçados que seria impossível destruir um sem
destruir o outro. A colheita é o fim do mundo.
Deus tendo produzido o bem puro, o diabo mistura-lhe o mal

152
de tal forma que Deus não pode mais separá-los sem destruir a am-
bos.
Histórias de testes e eliminação nos contos populares.
Deus não pode tornar este mundo melhor. Só pode destruí-lo.
Opta por deixá-lo permanecer, para que o bem possa amadurecer.
E porque não? O mal nada pode contra o que é bom. Fere ape-
nas os medíocres.
A cruz fere o ladrão impenitente, mas não o bom ladrão, nem a
Cristo. (302-304)

Biologia. Um produto que inibe uma reação é um produto se-


melhante ao agente catalítico dessa reação.
Tal como as serpentes do deserto e a serpente de bronze, etc.
Admirável.
Acho que a ciência deve consistir inteiramente de tais imagens.
A ciência deve ser tão estimulante de explorar quanto o folclore.
Esta linguagem simbólica de Deus é tão valiosa quanto qualquer
Escritura Sagrada.
Deus pode tornar-se um pedaço de pão, uma pedra, uma árvore,
um cordeiro, um homem. Mas não pode tornar-se um povo. Nenhum
povo pode ser uma encarnação de Deus.
O diabo é o coletivo. (O que em Durkheim é a divindade.) Isso
é claramente indicado no Apocalipse por aquela fera que é tão obvi-
amente a Grande Fera de Platão.
Orgulho é o atributo característico do diabo. E o orgulho é uma
coisa social. O orgulho é o instinto de conservação social. Humildade
é a aceitação da morte social.
Nenhum povo jamais foi assimilado a Deus. (304-305)

153
O diabo é o pai de todo prestígio, e o prestígio é social. “Opi-
nião, a rainha do mundo.” Portanto, a opinião é o diabo. O príncipe
deste mundo. (305)

Tântalo – cercado por comida e bebida que nunca pode alcan-


çar, apesar de todo seu esforço desesperado.
Acontece o mesmo com os homens e o bem. Estamos cercados
de todos os lados e somos continuamente solicitados pelo bem, e no
entanto a vontade mais vigorosa e os esforços mais violentos não po-
dem sequer obter para nós uma pequena parte sua.
Não faças nenhum esforço, fica imóvel, implora em silêncio.
Se Tântalo tivesse ficado imóvel entre as frutas e as vivas fontes,
Zeus acabaria por sentir pena e lhe daria comida e bebida.
Pela paciência, esgota a paciência de Deus.
A quem fica imóvel, esperando com igual docilidade o bem ou
o mal ou a ausência de ambos, Deus só pode fazer o bem.
Tântalo é estúpido demais para aprender, mesmo depois de pas-
sado tempo infinito, que, uma vez que seus esforços são certamente
inúteis, a imobilidade seria mais apropriada.
Uma vontade vigorosa pode obter muitas coisas. Por exemplo,
Napoleão. Muitas coisas, mas não o bem. Nem mesmo um átomo do
bem.
A humanidade como um todo é o Tântalo.
A história de Tântalo, filho de Zeus, o primeiro assassino (cf.
Caim), representa na mitologia grega uma versão da história do pe-
cado original. A história de Níobe é outra versão. Em alguns relatos,
ela é filha do primeiro homem. Sua culpa era acreditar que seus fi-
lhos lhe pertenciam.
Domado pela experiência, Tântalo desvia os olhos e cerra a
boca, mordendo os lábios, quando os ramos carregados de frutas se

154
curvam na sua direção. Mas quando a fruta está realmente roçando
seus lábios, não resiste a tentar agarrá-la. Em seguida, o galho balança
para longe, para o céu; e Tântalo, num frenesi de sede furiosa, bebe
do riacho mais próximo, que enche sua boca de poeira.
Muitas vezes sou assim.
Em que sentido é a punição de Tântalo eterna? Assim é porque
Tântalo é incapaz de um movimento de amor. Mas se por amor à
vontade de Zeus desistisse de tentar aplacar sua fome e sua sede, o
tormento algum dia chegaria ao fim.
Que Deus é o bem é uma certeza. É uma definição. E é até uma
certeza que Deus – de uma forma que não sei – é a realidade. É uma
certeza e não uma questão de fé. Mas é um objeto de fé que todo
pensamento meu que seja um desejo pelo bem, aproxima-me do bem.
Apenas pela experiência posso testar isso. E mesmo depois da expe-
riência ainda não é um objeto de prova, mas apenas de fé.
Possuir o bem consiste em desejar o bem; portanto, o artigo de
fé relevante – que é o único artigo de fé verdadeira – concerne a fe-
cundidade, com a faculdade multiplicadora de todo desejo pelo bem.
Do mero facto de que uma parte da alma deseja verdadeira, pura
e exclusivamente o bem, segue-se que, em dado momento posterior
no tempo, uma parte maior desejará o bem – a menos que se recuse
a consentir nesse desenvolvimento.
Acreditar nisso é ter fé.
Mesmo os materialistas colocam em algum lugar fora de si mes-
mos, um bem que vastamente os ultrapassa, que os ajuda de fora, e
para o qual seu pensamento se dirige num movimento de desejo e
oração. Para Napoleão foi a sua estrela. Para os marxistas é a História.
Mas eles colocam-no neste mundo, como os gigantes do folclore que
colocam seu coração (ou sua vida) dentro de um ovo, dentro de um
peixe, num lago guardado por um dragão; e que morre no final. E

155
embora suas orações sejam frequentemente atendidas, temo que se-
jam orações dirigidas ao diabo.
Nenhum ser humano escapa da necessidade de conceber algum
bem fora de si mesmo, para o qual seu pensamento se vira num mo-
vimento de desejo, súplica e esperança. Consequentemente, a única
escolha é entre adorar o Deus verdadeiro ou um ídolo. Todo ateu é
um idólatra – a menos que esteja adorando o Deus verdadeiro em
seu aspeto impessoal. A maioria dos piedosos são idólatras.
Para cada mente criativa (poeta, compositor, matemático, físico,
etc.…), a fonte desconhecida de inspiração é esse bem ao qual dirige
um desejo suplicante. É a experiência contínua de cada um a de que
está recebendo inspiração.
Mas algumas elas concebem a fonte de inspiração como estando
acima do céu, e outras abaixo. Não que o expressem dessa maneira
para si mesmos; ou se o fazem, sua maneira de explicar a si mesmos
ou a outros nem sempre corresponde ao seu pensamento. Mas sejam
quais forem as palavras que usem, ou se não usam nenhuma, estão
na verdade olhando com expectativa, desejo e súplica para uma fonte
que está acima ou abaixo do céu. Se estiver acima, existe um gênio
autêntico. Se estiver abaixo, há uma imitação mais ou menos bri-
lhante do gênio, às vezes muito mais brilhante do que o próprio gê-
nio. Se a fonte de inspiração está acima ou abaixo do céu, depende
da natureza do bem que é concebido estar contido na inspiração.
Inspiração de uma fonte acima do céu é concebida como nada mais
do que obediência. Nesse caso, a inspiração não é desejada para que
se possa produzir coisas belas, mas existe o desejo de produzir coisas
belas porque a inspiração é a fonte das coisas que são verdadeira-
mente belas. Busca primeiro o reino e a justiça do Pai celestial e, en-
tão, recebe tudo o que te for dado.
Assim, é o lugar ocupado na sua alma pelo desejo de inspiração,

156
totalmente independentemente das opiniões que possa vir a proferir,
que decide se a atitude de um artista ou de um cientista é religiosa
ou idólatra.
Da mesma maneira, pode-se dizer que uma imagem é de inspi-
ração piedosa ou idólatra, totalmente independente de seu tema.
Saber que Deus é o bem ou, simplesmente, que o bem absoluto
é o bem, e ter fé que o desejo pelo bem se multiplica na alma, desde
que a alma não negue o consentimento da operação – essas duas coi-
sas simples são suficientes. Nada mais é necessário.
Apenas é necessário manter uma vigilância constante para evitar
recusar consentir na incrementação interna do bem – prevenir-se in-
condicionalmente, aconteça o que acontecer.
Esta certeza, esta fé e esta vigilância – são tudo o que é necessário
para a perfeição.
É infinitamente simples.
Mas é nesta simplicidade que reside a maior dificuldade. Nosso
pensamento carnal precisa de variedade. Quem aguentaria uma hora
de conversa com um amigo, se esse só repetisse: Deus, Deus, Deus…
Mas variedade significa diferença, e tudo o que difere do bem é mau.
A parte carnal da alma, que precisa de uma variedade de coisas,
deve ocupar-se com os diversos assuntos deste mundo. Mas, através
de todas essas coisas, a parte fixa da alma deve manter seu olhar no
ponto fixo onde Deus habita.
Se uma esfera oca gira, há apenas dois pontos imóveis e tudo o
mais, absolutamente tudo, se move. Os intermediários entre os dois
pontos giram e, no entanto, a relação entre eles é imóvel.
Um dos dois polos deve ser Deus, e o outro o ponto fixo na
alma, ou seja, a presença de Deus na alma.
Porque nossas vidas são falsidade, aquilo que chamo de “eu” não

157
está no centro da minha alma. É por isso que tudo aquilo que con-
cerne diretamente ao centro da minha alma é externo ao que chamo
de “eu”.
E é por isso que todos os que são inspirados, não importa o tipo
de inspiração – pode ser puramente mundana, como uma invenção
mecânica – sentem a inspiração como algo externo a si mesmos.
Ou, novamente, pode-se argumentar da seguinte maneira: como
pode proceder de mim maior quantidade de bem do que aquela que
há em mim? Se progredir no bem, deve ser por meio da influência
de algum bem externo.
Se o desejo pelo bem é igual à posse do bem, o desejo pelo bem
é o produtor do bem, isto é, produz o desejo pelo bem.
Fora de mim existe um bem que me é superior e que me influ-
encia para o bem toda vez que desejo o bem.
Uma vez que não há um limite possível para essa operação, esse
bem externo é infinito; é Deus.
E mesmo aqui não é uma questão de crença, mas de certeza. O
pensamento do bem envolve inevitavelmente todos esses pensamen-
tos, e é impossível não pensar no bem.
Uma vez que não há um limite para esta operação, a alma deve
finalmente deixar de existir, por meio da assimilação total a Deus.
Em cada estágio da transformação, a alma pode recusar um es-
tágio posterior. Nesse caso, talvez permaneça por um tempo no está-
gio que atingiu. Mas só por um tempo. Então recua – e progressiva-
mente, da mesma maneira que subiu. Mas, enquanto o desejo puro
pelo bem não se desvanecer completamente, enquanto permanecer
ainda que só uma partícula sua, a alma pode recuperar e levantar-se
novamente. Subirá mais alto do que da primeira vez. Mas se, tendo
subido mais alto, recua novamente, então todo o processo se repete.
Uma alma pode atingir, por meio desse progresso oscilante,

158
qualquer altura; mas é uma maneira miserável de progredir.
É possível atingir, neste mundo, um ponto do qual não se volta
a cair?
Não faço ideia.
Gostaria de acreditar que sim.
Perder, neste mundo, a capacidade de escolher entre o bem e o
mal que adquirimos pelo pecado original – que poderia ser mais de-
sejável?
A única escolha da alma é entre viajar para o nada através de
mais e mais do bem ou através de mais e mais do mal. O nada é limite
do bem e do mal. Mas não é indiferente se alguém chega ao nada
pelo bem ou pelo mal.
Pelo contrário, é a única coisa que importa e tudo o mais é in-
diferente.
E por que isso importa?
Por nenhuma razão. É importante por si só. É a única coisa de
importância incondicional.
Mas num nível ainda mais alto, absolutamente nada importa.
Pois, se eu cair nas profundezas do mal, isso não afeta o bem.
Porque vivemos na falsidade, temos a ilusão de que a felicidade
é a coisa incondicionalmente importante.
Se alguém diz: “Como gostaria de ser rico!”, seu amigo pode
responder: “Porquê? Isso te faria mais feliz?” Mas se alguém diz:
“Quero ser feliz”, ninguém responderá “Porquê?”
Diz-me teus motivos para querer ser feliz.
Ou se alguém está magoado e quer ajuda. Diz-me tuas razões
para querer ajuda.
Perguntas frívolas. Quem as ousaria perguntar?
Mas devemos fazê-las a nós mesmos e refletir que, em primeiro
lugar, não se tem razão para querer ser feliz, e depois que a felicidade

159
não é algo que se deva desejar sem razão, incondicionalmente; pois
só o bem deve ser desejado dessa maneira.
Esse é o fundamento do pensamento de Platão.
É um pensamento tão contrário à natureza que só pode surgir
na alma inteiramente consumida pelo fogo do Espírito Santo, como
sem dúvida a eram os pitagóricos.
Portanto não foi compreendido, ou mesmo percebido, nas
obras de Platão.
A mesma crítica se aplica à felicidade quando glorificada como
felicidade eterna, vida eterna, Paraíso, etc. Felicidade de todo o tipo
deve ser criticada dessa maneira, assim como a satisfação de todo o
tipo.
São João não diz: seremos felizes porque veremos a Deus; mas:
seremos como Deus, porque o veremos tal como ele é.
Seremos puro bem.
Não existiremos mais. Mas nesse nada no limite do bem, sere-
mos mais reais do que em qualquer momento de nossa vida terrena.
Ao passo que o nada no limite do mal não tem realidade.
Realidade e existência são duas coisas, não uma.
Esse também é um pensamento central de Platão, e igualmente
pouco compreendido.
(Justino, Santo Agostinho, etc., disseram que Platão aprendeu
de Moisés que Deus é o Ser. Mas de quem ele aprendeu que Deus é
o Bem, e que o Bem é superior ao Ser? Não de Moisés.)
Sempre que dermos por nós pensando este tipo de coisas: “pre-
ciso de encontrar a felicidade”, “preciso de comer”, “preciso livrar-
me desta dor”, “preciso evitar esse perigo”, “preciso receber notícias
de tal e tal amigo”, e todos os outros pensamentos que envolvem
“preciso”, devemos responder a nós mesmos friamente, “Não vejo
necessidade”.

160
E ainda mais quando o pensamento é “No entanto, preciso…”
É fácil dar essa resposta mas não é tão fácil estar tão completa-
mente convencido disso quanto Talleyrand estava quando chegou ao
mendigo.
No entanto, por que não conseguiria eu, por amor a Deus, amar-
me tão pouco quanto Talleyrand, por dureza de coração amou o men-
digo?
Pode o amor a Deus ter menos poder sobre a nossa sensibilidade
do que o egoísmo? (306-312)

Louvor a Deus e compaixão pelas criaturas. Não há contradição


quando refletimos que, ao criar, Deus abdicou. Devemos aprovar a
abdicação criativa de Deus e alegrarmo-nos por ser uma criatura, uma
causa secundária, com direito a realizar ações neste mundo.
Uma vítima do infortúnio está caída na estrada, quase morta de
fome. Deus tem pena dela, mas não pode enviar-lhe pão. Mas estou
ali e felizmente não sou Deus; posso dar-lhe um pedaço de pão. É o
meu único ponto de superioridade sobre Deus.
“Estava com fome e alimentaste-me.” Deus pode implorar pão
para os aflitos, mas não pode dá-lo a eles. (312)

No Império Romano, as pessoas estavam tão desesperadas, de-


senraizadas, submersas no tédio e na repulsa, que só um pensamento
as atraía: a iminência do fim do mundo. Esse pensamento, essa ex-
pectativa, estimulada por várias profecias, deve ter existido por todo
o Império. Mas apenas os cristãos pareciam ter uma prova palpável.
Após a destruição de Jerusalém, a certeza parecia ainda maior.
Tanto o seu sucesso quanto sua reputação como criminosos cer-
tamente se deveram à sua mensagem sobre o fim do mundo.
Naquela época as pessoas cometiam suicídio com extraordinária

161
facilidade; mas os fundamentos da vida social estavam tão apodreci-
dos que o suicídio não bastava; deixou muito do horror intacto. A
expectativa do fim do mundo era coletiva, um equivalente cósmico
do suicídio.
Realmente acreditavam que o fim do mundo estava próximo e
chamavam isso de “as boas novas”.
“Meu Senhor, que manhã – quando as estrelas começam a cair!”
Eram quase tão felizes quanto os escravos negros americanos.
Não é de se estranhar que essas boas novas tivessem tanto su-
cesso entre os escravos. (312-313)

Atreu, em Sêneca: “Ao homem humilde se dirige com frequên-


cia o elogio genuíno; apenas os poderosos recebem falsa bajulação.”
Portanto, a falsidade é a vantagem do poder. É por isso que é um
presente do diabo. (313-314)

Deus perdoa-nos o que pedimos que perdoe.


Quem pensa que seus pecados são poucos, pouco pede a Deus
e pouco ama.
Mas a prostituta barata não consegue deixar de saber que seus
pecados são muitos, porque a sociedade não lhe permite esquecê-los.
Se um homem que viveu sem culpa, sente dentro de si as raízes
de todos os crimes possíveis e pede perdão a Deus, embora não tenha
cometido crimes, tem o privilégio de amar a Deus tanto quanto uma
prostituta.
Nada podia ser mais puro que sua ação, que envolve completo
esquecimento de si mesma. Esqueceu até que seu contato foi uma
poluição.
Para dessa maneira se voltar para o bem, sem qualquer conside-
ração por si mesmo, é preciso sentir nos próprios ossos a miséria da

162
condição humana e a degradação a que a carne está sujeita ou ex-
posta.
A alma precisa ser perfurada pela amargura da miséria humana,
a ponto de a vida não ter mais esperança.
Então, as lágrimas que brotam das profundezas da vergonha são
um puro tributo ao bem.
Quando todo o meu pensamento é vergonha, todo o meu pen-
samento vai para o bem que está fora de mim. Minha alma e meu
corpo seguem meu pensamento, e nem estou consciente disso. Nem
estou sequer consciente de que insulto o bem ao dele me aproximar.
No impulso sem hesitar que a leva a tocar em Cristo, há perfeita
humildade.
O amor é proporcional ao perdão da dívida, mas quem entende
sabe que há uma dívida infinita a ser perdoada. (314-315)

Se afastar o meu desejo das coisas deste mundo, que são falsos
bens, tenho a certeza absoluta e incondicional de estar de acordo com
a verdade. Sei que não são bens e que nada neste mundo pode ser
considerado um bem, exceto pela mentira; sei que todos os objetivos
neste mundo se anulam a si mesmos.
Afastar-me deles – isso é tudo. Nada mais é necessário. Essa é a
virtude da caridade na sua plenitude.
A razão para me afastar deles é a consideração deles como falsos
quando comparados à ideia do bem. Portanto, abandono a totalidade
das coisas mundanas em prol do bem. Afasto todo meu desejo e amor
das coisas do mundo de forma a direcioná-los para o bem.
Mas – perguntar-se-á – esse bem existe? Que importa? As coisas
deste mundo existem, mas não são o bem. Quer o bem exista ou não,
não há outro bem além do bem.
E o que é esse bem? Não faço ideia – mas que importa isso? É

163
aquele cujo nome apenas, ao lhe juntar meu pensamento, me dá a
certeza de que as coisas deste mundo não são bens. Se souber apenas
o nome, não preciso de saber mais nada, desde que saiba como usá-
lo dessa maneira.
Mas não será ridículo abandonar o que existe por algo que talvez
não exista? De maneira nenhuma, se o que existe não é bom e se o
que talvez não exista é o bem.
Mas por que dizer “o que talvez não exista”? O bem certamente
não possui uma realidade à qual se acrescente o atributo “bem”. Não
tem outro ser senão este atributo. Seu ser consiste unicamente em ser
o bem. Mas possui plenamente a realidade desse ser. Não faz sentido
dizer que o bem existe ou que o bem não existe; só podemos dizer: o
bem.
As coisas deste mundo existem. Portanto, não separo delas as
faculdades relacionadas com a existência. Mas, uma vez que as coisas
deste mundo não contêm o bem, simplesmente separo delas a facul-
dade que se relaciona com o bem, isto é, a faculdade do amor.
Sexualidade. Existe em nosso corpo um mecanismo que, ao ser
acionado, faz-nos ver o bem nas coisas deste mundo. Devemos deixá-
lo enferrujar até desaparecer.
Embora saiba que as coisas deste mundo são indignas de meu
desejo, descubro, no entanto, que meu desejo está apegado a elas e
falta-me energia para arrancá-lo.
Esforços de vontade são ilusórios.
Se os fizer, minha alma descrerá de mim.
Tudo o que posso fazer é desejar o bem. Mas ao contrário de
todos os outros desejos que são umas vezes eficazes e outras vezes não,
de acordo com as circunstâncias, esse desejo é sempre eficaz. A razão
é que, enquanto o desejo por ouro não é a mesma coisa que o ouro,
o desejo pelo bem é em si um bem.

164
Se chegar o dia em que todo o desejo de minha alma estará se-
parado das coisas deste mundo e dirigido total e exclusivamente para
o bem, então, nesse dia, possuirei o bem soberano.
Dir-se-á que ficarei sem um objeto de desejo? Não, porque o de-
sejo em si será o meu bem. Então, dir-se-á que ainda terei algo a de-
sejar? Não, porque possuirei o objeto de meu desejo. O desejo em si
será meu tesouro.
É por isso que as Escrituras fazem uso de duas imagens: “Quem
beber desta água voltará a ter sede” e “Quem beber desta água nunca
mais terá sede”. Essa água é o bem.
É porque tudo no nosso mundo está ao contrário que os atribu-
tos de Deus aparecem para nós como negações (sem limites, etc.) e a
posse nos aparece disfarçada de desejo. O que chamamos de desejos
constitui na realidade posse. A posse usa a máscara do desejo, como
a princesa das histórias vestida de empregada.
Reconhecer esse facto é descobrir, nas palavras do Upanishad,
o lugar dos desejos que são realidade, o lugar escondido atrás do véu
da falsidade. Quando o desejo é realidade, é posse.
Quando desejo ver um amigo, não é o encontro com ele que
desejo, mas o bem que suponho ser-lhe inerente. Se desapego esse
desejo, o arranco de seu objeto e o direciono para o bem puro, ele
torna-se um bem muito maior do que aquele que eu esperava ao ver
meu amigo.
É por isso que “tudo o que alguém abandonar por minha causa,
receberá cem vezes mais neste mundo”.
O abandono em si é o cem vezes.
Ao abandonar um pai por Cristo, possui cem vezes mais do bem
do que teria no pai; e assim por diante.
Mas isso não significa que receba cem vezes mais, ou mesmo a
menor fração, de satisfação, prazer, etc., que estão associados às coisas

165
que abandona.
Posse não é satisfação. As duas coisas não estão relacionadas.
Satisfação, prazer, alegria, felicidade, são todas parte das coisas
deste mundo, que não são bens.
Se a palavra alegria ou felicidade são usadas para falar do outro
mundo, é apenas como metáforas, ao invés de falarem do bem.
Da mesma forma que ‛existe’ e ‛não existe’ não têm sentido re-
lativo ao bem, a privação e a satisfação não têm sentido relativo ao
desejo pelo bem. Este desejo não se satisfaz, pois ele próprio é o bem.
Não fica insatisfeito, uma vez que ele próprio é o bem.
É o nosso desejo pelas coisas deste mundo, que não são bens,
que é satisfeito ou não. Sentimos privação ou satisfação da mesma
forma que sentimos dor física ou bem-estar. São sensações animais.
Mas devemos arrancar delas nosso desejo.
Visto que a satisfação não possui nenhum bem, a privação não
possui nenhum mal. O bem não tem contrário. Mas podemos cha-
mar de mal o ter o desejo apegado às coisas deste mundo, porquanto
o desejo está assim apegado, a pessoa tem a ilusão de um par de con-
trários: o bem-mal.
O desejo é em si o bem. Mesmo quando mal dirigido, ainda é a
potencialidade do bem.
É por isso que o inferno só pode ser o nada. Onde não há pos-
sibilidade de bem, não há desejo e não há criatura pensante.
Quando todo o seu desejo está voltado para Deus, a pessoa não
tem vontade de comer quando está com fome. No entanto, além dos
exercícios de ascetismo, faz tudo o que pode para arranjar comida.
Porquê? Nenhum motivo é necessário. Acontece de a energia do
corpo estar assim direcionada.
Se alguém vê um homem faminto, não deseja que ele receba
comida, mas faz tudo o que pode para obtê-la para ele, mesmo que

166
isso signifique privar-se de suas necessidades.
Porquê? Esse é o grande mistério.
A própria sensibilidade física, uma vez arrancado o desejo dela,
adquire uma qualidade universal.
É possível entender esse mistério? A sensibilidade física, consu-
mida no fogo do amor divino, o Espírito Santo, torna-se universal.
Só a compaixão torna possível contemplar a aflição. Sendo pul-
verizada pela própria aflição, não posso contemplá-la; e só consegui-
rei ver a aflição de outra pessoa como aflição se tiver compaixão por
ela.
Nossa sensibilidade é por natureza universal, mas torna-se ego-
ísta porque nosso desejo envolve-se nela.
Quando dirigimos todo o desejo para o Bem infinito fora de
nós, não pode haver consideração por nós mesmos e, consequente-
mente, nenhum egoísmo.
É porque se pensa na aflição como um mal que se sufoca a com-
paixão natural.
A compaixão é natural, mas é sufocada pelo instinto de autopre-
servação. Só a posse de toda a alma pelo amor sobrenatural reaviva a
atividade da compaixão.
Mas ainda não entendo realmente esse mistério.
É um mistério análogo ao mistério da beleza. (315-319)

Não há homem, por mais insensível que seja, que não sinta com-
paixão pelas aflições apresentadas no teatro. Isso ocorre porque está
desinteressado; não tem nada a ganhar e nenhum medo de perigo ou
contaminação. Assim pode perder-se nos personagens da peça. Dá
rédea solta à sua compaixão, porque sabe que a situação é irreal. Se
fosse real, tornar-se-ia tão frígido quanto o gelo.

167
Muitos dos cristãos ao longo dos séculos que choraram pela cru-
cificação de Cristo não teriam ficado comovidos se o tivessem visto
na cruz. Suas lágrimas não lhes fizeram bem.
O homem que devotou todo o seu desejo ao bem é tão livre-
mente compassivo em todos os momentos quanto o espectador no
teatro.
Seu pensamento não foge da visão da aflição, porque sabe que
a aflição não é um mal. Mas sofre, porque sabe que a aflição é dolo-
rosa. E o sofrimento o impele a tentar remediá-la.
Isso é tudo o que é. Nada mais. É tão simples que mesmo no ato
sua mão direita não percebe o que a esquerda está fazendo. (319)

O arco-íris de Noé (ocorre também na prosa Eda) é uma media-


ção entre o céu e a terra, um caminho de salvação. Assim também o
era talvez a Torre de Babel; mas começou da terra em vez do céu e,
portanto, estava errado.
O arco-íris é um limite da ira de Deus.
“Quem derramar sangue de homem, pelo homem terá o seu
sangue derramado: porque Deus o fez à sua imagem.”
A pena de morte por assassinato é uma testemunha do destino
divino do homem.
Para que a própria lei não seja poluída por assassinatos, deve ser
divina.
Na antiguidade, as leis eram consideradas divinas. (320)

“…Muito mais amados pelos abutres do que pelas suas esposas.”


[Nota do tradutor na versão em inglês: “Os cadáveres dos mortos, na
Ilíada.”] Tal é o amor humano. Ama-se apenas o que se pode comer.
Quando uma coisa não é mais comestível, é deixada a qualquer que
possa ainda nela encontrar alimento. O amor humano opera apenas

168
dentro de limites. Poderia dar-se alguma mudança em mim de modo
tal que, daqueles que me amam, nenhum me prestaria mais atenção.
Não sou eu que sou um bem para quem me ama; eu forneço mera-
mente a ocasião para que desfrutem de algo que não sou eu.
Se esse algo é lama ou Deus depende apenas do meu desejo.
O amor humano não é incondicional. Amo uma fruta, mas não
a amo mais quando está podre.
Posso tornar-me muito mais amada pelos abutres do por qual-
quer ser humano, e qualquer ser humano, até o mais estimado, pode
tornar-se muito mais amado pelos abutres do que por mim.
Duas linhas na Ilíada expressam com incomparável poder a mi-
serável limitação do amor humano. Esta é uma:
“…no chão descansam, muito mais amados pelos abutres do que
pelas suas esposas.”
E esta é a outra:
“Depois que ela (Níobe) se cansou de chorar, pensou em co-
mer.”
Não é verdade que o amor humano é mais forte que a morte. A
morte é muito mais forte. O amor está subjugado à morte.
É fácil amar o que está vivo. É difícil amar o que está morto. O
amor por um homem morto não está sujeito à morte, porque seu
objeto não pode morrer. Mas tal amor, se realmente é amor e não
devaneio, é sobrenatural. O amor de Níobe é humano, o de Electra
é sobrenatural. E ainda assim Electra também se lembrou de co-
mer…?
A morte de alguém que amamos é horrível porque expõe a ver-
dade sobre o tipo de amor que por ele sentimos. Porque revela que
nosso amor por ele não era mais forte do que a morte.
O amor pelo que não existe é mais forte que a morte.
Mas amar o que não existe – que absurdo! É uma loucura. E é a

169
salvação da alma. Pode provar-se que não há baixeza a que não pos-
sam as circunstâncias, em certos casos, reduzir uma alma incapaz de
amar o que não existe.
Amar aquilo que não existe, sabendo que não existe, é um tor-
mento para a alma.
Amar aquilo que está ameaçado de extinção, sabendo que está
exposto a essa ameaça.
É a ordem do mundo, essa necessidade, seu amo soberano e que
os reduz à existência condicional, que torna as coisas que amamos
indignas de serem amadas. A necessidade faz todo o nosso amor ficar
sem objeto. É nossa única inimiga. É por isso que devemos amar a
própria necessidade.
Dois objetos existem para nós amarmos. Primeiro, aquilo que é
digno de amor, mas que, em nosso sentido da palavra existência, não
existe. Isso é Deus. E em segundo lugar, aquilo que existe, mas no
qual não há nada que seja possível amar. Isso é a necessidade. Deve-
mos amar ambos.
O amor requer que seu objeto exista (neste mundo) e seja amá-
vel. Mas não existe tal objeto para o nosso amor. Mas, por outro lado,
o nosso amor é o nosso próprio ser, que nada pode erradicar de nós.
Podemos pretender que algumas coisas terrestres são amáveis.
Ou podemos pretender que está neste mundo aquilo que é realmente
amável. Ou podemos desgastar e esgotar uma parte do nosso amor,
enquanto a outra parte azeda e torna-se ódio.
Mas se recusamos fazer qualquer uma dessas coisas, sofremos
uma mudança maravilhosa, que revela o segredo. Amamos as duas
coisas que é impossível amar: o que não existe e o que não é amável.
A existência e a amabilidade (a qualidade de poder ser amado)
são condições para o amor. Se amar algo que carece da primeira qua-
lidade e também algo que carece da segunda – e é essencial amar as

170
duas coisas – então estarei amando incondicionalmente.
O amor é uma coisa divina. Se entra num coração humano,
quebra-o.
O coração humano foi criado para ser quebrado dessa forma. É
o mais triste desperdício se é quebrado por qualquer outra coisa. Mas
prefere ser quebrado por qualquer coisa do que pelo amor divino.
Porque o amor divino quebra apenas os corações que consentem ser
quebrados; e é difícil dar esse consentimento.
A parábola do Evangelho do rei que faz convites para uma festa
e se depara com recusas disfarçadas sob todos os tipos de pretextos é
uma prova de que as razões de nossa alienação de Deus não são cau-
sas de, mas pretextos da nossa alienação. Pelo menos isso é verdade
acerca daqueles que ouviram o convite, mesmo que apenas por meio
segundo e com meio ouvido. Um oficial não negligencia a Deus por-
que está absorvido em esquemas para progredir na carreira, mas ab-
sorve-se em esquemas para evitar pensar em Deus. E pode até haver
membros de ordens monásticas, alguns canonizados e aparentando
merecer sua reputação de santos, que encontraram um pretexto pie-
doso para recusar o convite.
No primeiro momento, quando escuta o convite quase que in-
conscientemente, a alma é toda ela medíocre, porque o traço infini-
tesimal de pureza está apenas começando a aparecer. E o medíocre
evita e foge da luz. Como suportaríamos expor-nos inteiramente à luz
sendo medíocres? Preferimos antes direcionar nosso desejo e nossa
energia para os assuntos mais abjetos.
E ainda assim, aqueles que são loucos o suficiente para se expo-
rem tornam-se luz. Pois tudo o que é manifestado é luz. Mas eles não
sabem isso de antemão.
Portanto, é impossível chegar-se à luz a menos que se sinta atra-

171
ído pelo seu brilho a ponto de esquecer por completo que é medío-
cre. Como a prostituta aos pés de Cristo.
Mas se nos voltamos para Deus com o pensamento de que não
somos medíocres, e se este pensamento não é corrigido rápida e es-
magadoramente, então não é realmente para Deus que nos voltamos.
Pois Deus é uma pedra de toque que mostra ser todo ouro humano
ouro falso; mas, ao mesmo tempo, transforma ouro falso em ouro
real e divino, que só brilha em segredo. Esta pedra é também uma
pedra filosofal.
Uma criança que vê algo brilhante fica tão absorta em seu amor
pelo objeto brilhante que todo o seu corpo para ele se inclina, esque-
cendo que está fora de seu alcance. Então sua mãe pega-o e coloca-o
perto dela. É dessa maneira que devemos tornar-nos como crianças.
É no poder e na fixidez de nosso desejo que devemos tornar-nos
como crianças. Uma criança estende as mãos e todo o corpo na dire-
ção de um objeto brilhante, mesmo que este seja a lua. Se uma cri-
ança tem fome, chora com a voz e com todo o corpo, incansavel-
mente, para receber leite ou pão; e os adultos comovem-se e sorriem,
mas ela está falando a sério. Todo o corpo e alma estão concentrados
no único facto do desejo. Nada é menos pueril do que uma criança.
São os adultos, que com ela brincam, que são pueris.
Uma criança não usa a vontade para obter o objeto brilhante ou
o leite, não planeia obtê-los; simplesmente deseja e chora. A vontade
e a inteligência discursiva que faz planos são faculdades adultas. De-
vemos usá-las. Devemos destruí-las, desgastando-as. Pouco importa se
possuímos uma grande ou pequena parcela dessas faculdades. O que
importa é perseverar até o fim e esgotá-las completamente.
A vontade pode ser destruída pela realização de tarefas impossí-
veis. Provas sobre-humanas em contos populares.
Não importa a tarefa que escolha, desde que esteja além da força

172
de minha vontade. Supõe que minha vontade seja tão fraca (e no
meu caso é muito fraca) que varrer o quarto todos os dias seja mais
do que posso fazer. Nesse caso, tudo o que tenho a fazer é querer
varrer meu quarto todos os dias. Haverá dias em que irei sucumbir e
deixá-lo sem varrer. No dia seguinte, continuarei, com renovado es-
forço de vontade. E vou sucumbir novamente. E assim por diante.
(322-326)

Não gostamos de ver a aflição porque ela obriga-nos a ver o que


é que amamos quando nos amamos a nós mesmos. É contra a natu-
reza amar alguém que está aflito. Mas a aflição compele-nos a fazer
isso; porque quando alguém está em aflição, é obrigado a amar uma
pessoa aflita ou então a deixar de amar a si mesmo.
A verdadeira compaixão é um equivalente voluntário e consen-
tido da aflição.
A piedade natural consiste em ajudar alguém em desgraça de
forma a não ser obrigado a pensar mais nele, ou pelo prazer de sentir
a distância entre ele e si mesmo. É uma forma de crueldade contrária
à crueldade no sentido comum apenas nos seus efeitos externos. Essa
era, sem dúvida, a clemência de César.
A compaixão consiste em prestar atenção a um homem aflito e
em identificar-se com ele em pensamento. Segue-se que o alimenta-
mos automaticamente se estiver com fome, assim como nos alimen-
tamos a nós mesmos. O pão dado desta forma é o efeito e o sinal da
compaixão. É por isso que Cristo nos agradece.
Porque, assim como a dádiva do pão é simplesmente o efeito e
o sinal da compaixão, a própria compaixão é o efeito e o sinal da
união com Deus pelo amor. A visão de um homem aflito assusta todo
o tipo de atenção, exceto aquela que fez contato com Deus.
Só Deus pode prestar atenção a um homem aflito. (326-327)

173
O livro de Jó é um milagre porque expressa de uma forma per-
feita coisas que uma mente humana só pode pensar e conceber sob
o tormento de um sofrimento intolerável, mas que no momento são
informes e que desaparecem e são irrecuperáveis quando o sofri-
mento diminui.
A composição do livro de Jó é um exemplo particular do milagre
da atenção dada à aflição.
A atenção foge da aflição como foge do verdadeiro Deus, e pelo
mesmo instinto de autopreservação; porque uma e outra obrigam a
alma a sentir o seu nada e a morrer enquanto o corpo ainda está vivo.
A única alma que pode fixar sua atenção na aflição é aquela que
foi morta por um contato verdadeiro com o Deus verdadeiro (não faz
diferença se, por um erro de linguagem, acredita ser ateu).
Nem pode um homem aflito prestar atenção à aflição; se a sua
condição o impede cuidar de qualquer outra coisa, não presta aten-
ção a nada. Nos casos de extrema degradação social (prostitutas, rein-
cidentes) há uma total incapacidade de concentração e perseverança.
Essa incapacidade é tanto a causa como o efeito de sua degradação.
A mesma incapacidade de prestar atenção à aflição que inibe a
compaixão naquele que vê um homem aflito também inibe a grati-
dão no homem aflito que é auxiliado. A gratidão pressupõe a capaci-
dade de sair de si próprio e contemplar a própria aflição, de fora, em
toda a sua hediondez. Isso é horrível demais.
É apenas o amor incondicional que pode compelir a alma a ex-
por-se à morte moral, e o amor incondicional não tem outro objeto
senão o bem incondicional, que é Deus. Portanto, é certo que só uma
alma que foi morta, sabendo ou não, pelo amor de Deus, pode real-
mente prestar atenção à aflição dos aflitos.
A aflição é o critério. É essa a sua função providencial?

174
Cristo na cruz, o corpo e alma abandonados. Nessa condição,
só ele poderia amar o Pai. Só o Pai poderia amá-lo nessa condição.
(327-328)

É o tempo que nos tortura. Todo o esforço do homem é no sen-


tido de fugir dele, ou seja, fugir do passado e do futuro incorporando-
se ao presente, ou então inventando um passado e um futuro que lhe
sirvam.
Foge do tempo permanecendo abaixo dele – a carne provê o
método – ou passando acima dele, para a eternidade. Mas, para pas-
sar acima, temos de percorrer o todo do tempo, na sua extensão infi-
nita, embora nossas vidas sejam apenas um momento. Para aqueles
que o amam, Deus provê o método.
O único homem que sente toda a amargura da aflição, comple-
tamente e no centro de sua alma, é o homem que tenta, como Jó,
continuar a amar a Deus nas profundezas da aflição. Se deixasse de
amar a Deus, não sofreria tanto. Foi assim com Prometeu. Nesse es-
tado a alma é dilacerada, pregada aos dois polos da criação: matéria
inerte e Deus. Essa laceração é uma cópia, dentro de uma alma finita,
do ato criativo de Deus. Talvez seja necessário passar por isso para
sair da criação e voltar à origem.
Quem é dominado pela aflição antes mesmo de começar a amar
a Deus é destruído.
Podemos considerar esse desastre equivalente a uma morte pre-
matura. Seus resultados são desconhecidos.
Pode ser que até mesmo a nossa maior crueldade não possa re-
almente fazer mal a outra alma, mas se assim for, não sabemos e não
temos o direito de saber.
Zagreu. Narciso.
Zagreu dirigiu-se para o espelho como uma armadilha. Narciso

175
também. Zagreu e Narciso são o mesmo ser. A Palavra divina.
Esse espelho é a criação. Deus fica preso ao mal quando con-
templa o que criou. É capturado e submetido à Paixão.
Ao criar, por meio de uma superabundância de bem, Deus deu
oportunidade ao mal de existir.
A única razão para pensar que o universo é bom é que Deus,
embora eternamente ciente de que o mal surgiria, desejou eterna-
mente criá-lo.
Deus não é provado pela bondade do universo, mas a bondade
do universo por Deus; ou melhor, é uma questão de fé.
Mas o universo é belo, inclusive o mal, que, como parte da or-
dem do mundo, possui uma espécie de beleza terrível. Sentimos isso.
(328-329)

Colocar-se no lugar do outro significa desejar-lhe consolo mate-


rial, se essa for sua preferência, ao invés de progresso espiritual.
No entanto, não se deve colocar no lugar do outro quando esse
deseja fazer mal ao próximo.
Mas não é compaixão desejar o progresso espiritual para alguém
que não o deseja.
E talvez, a longo prazo, a compaixão possa fazer mais para ajudar
no seu progresso. (329)

Possa o acaso dos acontecimentos privar-me, sem qualquer ação


de minha parte, de tudo aquilo a que outros renunciaram por amor
a Deus; e que, quando acontecer, eu esqueça que alguma vez desejei
tal coisa. (330)

O corpo é uma alavanca para a salvação. Mas de que maneira?


Qual a maneira certa de o usar?

176
A vida monástica foi um avanço material para aqueles que vi-
nham das classes mais pobres. Os pastores costumavam dormir no
chão frio, comer pão seco ou peixe salgado quando podiam, e beber
água; lavavam-se no rio.
Na aflição, o amor divino é a única ajuda.
Um eremita que não via um homem há dez meses encontra um
pastor que não via um homem há onze meses.
É impossível para homens que se privam voluntariamente atin-
gir o grau de miséria a que alguns homens são reduzidos pela aflição.
(330)

Deixa que Deus vingue as ofensas que recebemos, ofereçamos o


nosso ódio a Deus; se o nosso Deus for o Deus verdadeiro, esse ódio
será queimado pelo contato com o Bem. Do contrário, estaremos fa-
zendo de nosso ódio um objeto de idolatria.
Uma vez feito o contato, através da renúncia total, com o Deus
verdadeiro, é então desejável voltar todos os desejos em oração, sem
exceção, para Deus; pois este contato queima todo o mal neles esteja
e transmuta a energia que os sustentava em sustento para o amor de
Deus.
Foi assim que Cristo, na noite do Getsémani, voltou o seu medo
físico para Deus. (331)

Filhos por adoção, filhos adotivos de Deus – o que significa isso?


Nada, ou então isto: que nenhum ser humano é filho de Deus, exceto
quando a Palavra, o Filho unigênito de Deus, entra nele e dirige a
Deus a palavra “Pai” através de sua boca.
Pedir algo em nome de Cristo significa pedir em seu favor; sig-
nifica que Cristo usa a boca de um homem para pedir algo a seu Pai;

177
e de facto lhe é sempre concedido. Pois tal pertence à esfera da per-
suasão sábia exercida pelo Amor sobre a necessidade (Timeu).
O Homem Justo de Isaías, “Parecia tão desfigurado que não pa-
recia mais humano.”
Isaías: “O Eterno viu com grande indignação que não havia
mais julgamento. E ele viu que não havia mais homem, e maravilhou-
se de que não havia intercessor; portanto, seu braço trouxe-lhe a sal-
vação; e a sua justiça o sustentou.” Gita: “Para o restabelecimento da
ordem, assumi um ego...” (332)

(CADERNO DE LONDRES, 1943)

O método próprio da filosofia consiste em conceber claramente


os problemas insolúveis em toda a sua insolubilidade e então em sim-
plesmente contemplá-los, fixa e incansavelmente, ano após ano, sem
esperança, esperando pacientemente.
Por este padrão existem poucos filósofos. E dificilmente se pode
dizer poucos.
Não há entrada no transcendente até que as faculdades huma-
nas – inteligência, vontade, amor humano – tenham chegado a um
limite, e o ser humano tenha de esperar nesse limiar, que é incapaz
por força sua de cruzar, sem voltar atrás e sem saber o que quer, com
atenção fixa e inabalável.
É um estado de extrema humilhação e é impossível para quem
não consegue aceitar a humilhação.
Genialidade é a virtude sobrenatural da humildade no domínio
do pensamento. Isso é demonstrável.
Enquanto o pensamento do homem ainda se move na esfera
habitada pelas mentes humanas mais refinadas e sutis, é suscetível ao
controle humano e é limitado por julgamentos humanos.

178
Uma vez elevado acima dessa esfera, não consegue mais olhar
para qualquer controle ou limite humano.
Nesse momento, a tentação do orgulho é mais forte do que an-
tes.
Quem se encontra nessa situação só consegue evitar aberração,
ilusão ou falsidade, pela graça de Deus, se implorar a Deus de todo o
coração e com total fé e humildade.
Falhando isso, ou desce novamente um pouco ao nível de pen-
samento de seus amigos, ou então se deixa capturar pelo diabo.
Em qualquer destes casos pode criar a ilusão de genialidade, de
modo a fazer seu nome glorioso por séculos.
No entanto, é blasfêmia dar o nome de genialidade aquilo que
é incapaz de verdade.
A conexão entre humildade e verdadeira filosofia era conhecida
na antiguidade. Entre os filósofos socráticos, cínicos e estoicos, con-
siderava-se parte de seu dever profissional tolerar insultos, golpes e
até mesmo agressões no rosto sem a menor reação instintiva de dig-
nidade ofendida.
Visto que o apostolado cristão era uma profissão semelhante ou
idêntica, o preceito de Cristo aos seus discípulos de “oferecer a outra
face” deve ser visto dessa forma, como uma obrigação pertencente a
uma função particular e não como uma obrigação da vida cristã. (335
-336)

A realização pura e simples de ações prescritas, e nem mais nem


menos, ou seja, obediência, é para a alma o que a imobilidade é para
o corpo. Esse é o significado do Gita.
Como saber se uma ação é prescrita?
Devemos cumprir as nossas obrigações humanas dentro do con-

179
texto social em que estamos inseridos, a menos que Deus ordene es-
pecificamente que nos afastemos dele.
A falha de Arjuna foi ter dito que não lutaria, em vez de implo-
rar a Krishna – não naquele momento, mas muito antes – que pres-
crevesse o que deveria fazer.
Quem sabe qual teria sido a resposta?
O Gita e a Antígona aparentam ter significados opostos, mas na
realidade possuem o mesmo espírito. Complementam-se. (336)

Por um arranjo providencial, tanto a verdade quanto a aflição


são mudas.
Por causa dessa falta de voz, a verdade sofre aflição. Pois apenas
a eloquência é feliz neste mundo.
Por meio dessa ausência de voz, a aflição possui a verdade. Não
tem como mentir.
Existe outro arranjo providencial por meio do qual tanto a ver-
dade quanto a aflição possuem beleza.
Consequentemente, embora sejam mudas, a atenção pode resi-
dir neles.
É realmente e literalmente verdade, como Platão faz Sócrates di-
zer no Fédon, que a Providência e não a necessidade é a única expli-
cação do universo. A necessidade é uma das dispensações eternas da
Providência. (336)

Postulado:
Este universo é uma máquina para realizar a salvação de quem
consente na sua existência.
(É isso que diz São Paulo: Todas as coisas concorrem para o bem
daquele que ama a Deus.) (337)

180
Na cruz Cristo teve compaixão de seu próprio sofrimento, como
sendo o sofrimento da humanidade em si.
Seu grito, “Deus meu, por que me desamparaste?” era nele o
clamor de todos os homens.
Quando esse grito surge no coração de um homem, a dor des-
pertou nas profundezas de sua alma a parte onde mora, enterrada
sob os pecados, uma inocência igual à de Cristo. (337-338)

Lear: “É por alguma causa na natureza que estes corações são


duros?”
É a substância do grito de Cristo. (338)

A respeito do inferno:
Cristo disse: “Não há nada escondido que não venha a ser ma-
nifestado.”
Ou melhor –
“Não há nada escondido que não deva ser manifestado.”
E São Paulo disse:
“Todas as coisas que se manifestam tornam-se luz”.
Portanto, no dia do Juízo Final, quando a criação é vista nua à
luz de Deus, que a manifesta totalmente, ela torna-se nada mais do
que luz. O mal não existe mais.
(Isto também é uma ideia Maniqueísta.)
O diabo e os condenados sofrem durante o todo do tempo, mas
a chegada da eternidade põe fim ao tempo.
Mas nestas questões tudo é impenetrável e impensável; é melhor
não ter nenhuma opinião.
Entretanto, uma coisa parece certa. Quando a semente divina
colocada no ser criado amadurece, todo o mal que nele está é abolido
e todo o bem desaparece ao fundir-se com Deus.

181
Como ousam as pessoas julgar que as almas dos bem-aventura-
dos sejam distintas de Deus ou estejam separadas dele, quando Cristo
nos ordenou, “Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito”?
Mas os teólogos assim julgaram porque se as pessoas ouvissem
que a escolha é entre a aniquilação, por um lado, e o desapareci-
mento pela fusão com Deus, por outro, não discerniriam diferença
suficiente entre as duas de forma a fazer valer a pena a escolha do
bem.
Ao passo que, mostrando-lhes um castigo sem fim de um lado e
um suprimento inesgotável de açúcar do outro, se obtém dóceis fi-
lhos da Igreja.
Os métodos educacionais dos escravistas romanos – promessas
e ameaças – projetados além da morte.
O Polieucto de Corneille é um bom exemplo. “Mas já no céu a
palma está preparada.” Um cachorro pulando por um torrão de açú-
car. (338-339)

“Quem é o escravo a quem o seu senhor fez governante de sua


casa?”
Deus confiou a cada ser humano a função de tratar todas as
criaturas da mesma maneira que Deus.
“Ele o fará governante sobre todos os seus bens.”
A recompensa é certamente uma identificação total com Deus.
(340)

“Amai vossos inimigos”, etc., nada tem a ver com pacifismo e


com o problema da guerra.
“Vossos inimigos” pode ter dois significados diferentes.
Pode significar aqueles que fazem mal à tua pessoa e àquilo que
pessoalmente prezas.

182
Na medida em que sofri pessoalmente na minha vida por causa
dos alemães, na medida em que coisas e pessoas a quem estou pesso-
almente apegada foram por eles destruídas ou feridas, tenho a obri-
gação especial de amá-los.
Ou “vossos inimigos” podem significar inimigos da fé.
Se estou preparada para matar alemães em caso de necessidade
militar, não é porque sofri com seus atos. Não é porque odeiam Deus
e Cristo. Mas é porque são os inimigos de todos os países do mundo,
incluindo o meu, e porque, apesar de grande pesar e extremo arre-
pendimento, é impossível impedi-los de causar danos sem matar um
certo número deles. (340)

Há uma verdade muito profunda nos sofismas gregos provando


que é impossível aprender.
Entendemos pouco e mal. Precisamos ser ensinados por aqueles
que entendem mais e melhor do que nós.
Por exemplo, por Cristo.
Mas como não entendemos nada, também não os entendemos.
Como podemos saber se estão certos? Como poderíamos, para come-
çar, dar-lhes a devida atenção que é necessária antes que possam co-
meçar a ensinar-nos?
É por isso que os milagres são necessários.
Por isso, graças a uma providencial dispensação, a sabedoria so-
brenatural às vezes vem acompanhada de certos poderes raros entre
os homens, mas também encontrados em homens medíocres e maus.
Cura de doenças físicas, ler pensamentos, etc.
Mas o principal de todos os milagres desse tipo é a beleza.
Sempre que alguém reflete sobre o belo esbarra contra uma pa-
rede em branco. Tudo o que foi escrito sobre o assunto é miseravel-
mente e obviamente inadequado, porque é um estudo que deve ter

183
Deus como ponto de partida.
A beleza é uma dispensação providencial pela qual a verdade e
a justiça, embora ainda não reconhecidas, clamam silenciosamente
por nossa atenção.
A beleza é realmente, como diz Platão, uma encarnação de
Deus. (341)

Silêncio da menina na história de Grimm que salvou os sete


cisnes, seus irmãos. Silêncio do Justo de Isaías. “Foi oprimido e afli-
gido, mas não abriu a boca.” Silêncio de Cristo.
Existe uma espécie de convenção divina, um pacto entre Deus e
ele mesmo, que condena ao silêncio a verdade neste mundo.
“Todo este poder e toda a sua glória me foram entregues”, disse
o Pai das Mentiras.
O diabo também fabrica uma imitação da beleza, de modo que
também este critério só se distingue por meio de extrema atenção.
Mas há uma coisa que acho que o diabo não pode fazer.
Ele não pode inspirar um artista a pintar um quadro que, se
colocado na cela de um homem confinado em estrito confinamento
solitário, ainda o confortaria depois de vinte anos.
A duração discrimina entre o diabólico e o divino.
Esse é o significado da parábola do trigo e do joio. (341-342)

Ponto essencial do cristianismo – (e do platonismo) –:


Só o pensamento da perfeição produz algum bem – e esse bem
é imperfeito. Se alguém almeja o bem imperfeito, pratica o mal.
Não podemos realmente almejar a perfeição, a menos que seja
realmente possível; assim isto é a prova de que a possibilidade de per-
feição existe neste mundo. (342)

184
Ioga respiratório – talvez não seja tanto uma técnica, mas uma
forma de fazer da própria respiração um sacramento? (342)

Não há em absoluto nenhuma solução possível para os proble-


mas de origem (a origem da linguagem, das ferramentas, etc.), exceto
a de sua instituição por Deus. Isso é óbvio. A linguagem não surge
da não linguagem. A criança aprende a falar, mas isso porque ela é
ensinada. E ele tem de aprender a trabalhar, etc.
Implica a instrução divina uma encarnação original?
Parece provável. Corresponde às tradições.
A tradição a respeito de Osíris é a de uma Encarnação tanto
para instrução quanto para redenção.
E a segunda função era também uma memória histórica do pas-
sado ou um pressentimento do futuro?
Talvez não tenhamos sequer os dados necessários para formar
uma suposição sobre esse assunto.
A Virgem é como uma réplica da infância de Cristo; pura ino-
cência.
Cristo foi perfeitamente obediente desde infância; e, no en-
tanto, “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu”. (342)

Para compreender o valor simbólico, aos olhos de São João, da


água e do sangue que saíam do corpo de Cristo, precisaríamos saber
mais sobre o significado dessas crenças tibetanas sobre os efeitos da
virgindade perfeita, que faz fluir nas veias um líquido incolor (o di-
vino “icor”?).
Segue-se dessa crença que o sangue normal num ser perfeita-
mente virgem é sinal de união em amor com Deus? E testemunha da
virgindade perfeita a presença da água com o sangue?

185
Certamente não é por acaso que a parte biográfica do Evange-
lho de São João começa com a água transformada em vinho e termina
com aquele fluxo de água e sangue.
É preciso voltar a ser água, para que o Espírito transforme essa
água em sangue.
Torna-te nada mais que passividade completa, inerte como um
cadáver, e deixa o Espírito de Deus criar vida a partir dessa energia.
Nessa terminologia que usaram, quanto dela são imagens sim-
ples e quanto dela é teoria biológica-mística? É difícil conjeturar para
já. (343)

Na natureza existe energia térmica, energia mecânica, energia


vital, energia vivificante na semente, energia radiante na luz.
Nossa ciência conhece apenas as duas primeiras.
As duas últimas são idênticas? Parece que foram consideradas
assim na antiguidade. (343)

Ésquilo diz, evidentemente citando uma fórmula sagrada dos


Mistérios: Sabedoria através do sofrimento (transmitida por Deus ao
homem). Mas não diz em que consiste a sabedoria transmitida. Des-
cobrimos isso quando lemos a mesma fórmula completada em São
Paulo: aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu.
Essa sabedoria é obediência.
Mas então chegou a desobedecer?
Existe uma versão secreta em que, correspondendo à desobedi-
ência humana por falta de amor, haja desobediência divina por ex-
cesso de amor? – Deus se desobedecendo por pena dos homens? Esse
seria exatamente o mito de Prometeu.
Deus desobedecendo a Deus e trazido de volta à obediência por
meio da expiação. (344-345)

186
Além da morte, a punição do homem em Gênesis consiste ape-
nas em submissão imposta. Trabalho e morte; passividade da mulher
no amor e no parto.
O trabalho é algo semelhante à morte. É submissão à matéria.
Mas a beleza é a armadilha de Deus para obter nosso consenti-
mento à obediência para a qual nos constrange.
O castigo humano deve imitar o método de Deus.
Reduzir o criminoso à obediência por constrangimento, ofere-
cendo-lhe tentações que um dia obterão seu consentimento.
É sempre um fracasso se um culpado morre sem nunca ter sen-
tido uma única vez que sua condenação foi sua maior sorte.
Dor física e moral são coisas que oprimem a alma; certamente
que não devemos abster-nos de usá-las? Por que deixar esses preciosos
dons de Deus perderem-se? Mas perverter seu uso é terrível.
Se alguém julga um criminoso incurável, então não tem o di-
reito de puni-lo; deve apenas impedi-lo de causar danos. A imposição
de uma punição é uma declaração de fé de que nas profundezas do
culpado há um grão de puro bem.
Punir sem essa fé é fazer o mal pelo mal. (345)

Mecanismo indireto de um crime.


Meu erro criminoso, antes de 1939, no que diz respeito aos cír-
culos pacifistas e sua atividade, deveu-se à incapacidade causada pela
devastação da dor física por tantos anos. Não estando em condições
de observar suas ações de perto, sem me encontrar e conversar com
eles, não consegui detetar sua propensão à traição. Mas poderia facil-
mente ter refletido que o estado em que me encontrava desqualifi-
cava-me para responsabilidades sérias e tornava obrigatório abster-me

187
delas. O que me impediu de ver isso foi o pecado da preguiça, a ten-
tação da inércia. Desejei tão intensamente abster-me desse tipo de
responsabilidade que não ousei considerar imparcialmente as razões
legítimas para me abster; como um aluno do seminário torturado por
violentos desejos carnais que nem se atreve a olhar para uma mulher.
Tinha tantas vezes sucumbido à preguiça e à inércia nas peque-
nas coisas que, quando me deparei com algo importante, senti que
deveria resistir cegamente à tentação da inércia – em vez de examinar
friamente as possíveis vantagens e desvantagens da ação ou da inér-
cia.
Assim, a fraqueza de não escrever uma carta, ou de não fazer a
cama num dia em que me sentia cansada, acumulada no decorrer de
muitos dias, levou-me finalmente ao pecado da negligência criminosa
para com o meu país.
Este é um exemplo de mecanismo universal.
Uma vez que tenhamos entendido como isso transforma dimi-
nutas falhas pessoais em crimes públicos, então nada é mais uma fa-
lha pessoal diminuta. As pequenas falhas só podem ser crimes.
O que é terrível, porque cometemos falhas.
Jamais devemos deixar de nos sentir criminosos enquanto nos
faltar a perfeição, e devemos implorar silenciosamente de toda a alma
para obtê-la, até que a morte ponha fim a este tormento ou até que
se esgote a paciência de Deus e ele nos conceda a perfeição.
Uma vez atingido esse grau de entendimento, se é realmente o
mais criminoso dos homens – exceto para aqueles que têm o mesmo
entendimento. Pois todas as nossas pequenas falhas são realmente
crimes quando a razão obriga a vê-las claramente como tais. Grandes
criminosos cometem poucos crimes. Cometemos muitas falhas pe-
quenas; mas isso significa que, depois de aprendermos a vê-las pelo
que são, cometemos muitos crimes todos os dias.

188
O único remédio é sofrer tal na miséria até que Deus tenha pi-
edade. Porque a vontade humana, por mais que se esforce, não chega
mais perto da perfeição. (345-346)

Hoje, se um homem se vendesse como escravo a outro, o con-


trato seria juridicamente inválido porque a liberdade, sendo sagrada,
é inalienável.
Se as palavras têm significado, quando os homens de 1789 de-
clararam sagrada a propriedade, junto com a liberdade, eles a defini-
ram como inalienável e a retiraram da esfera do comércio.
Mas os factos demonstraram que as palavras não têm signifi-
cado. (346)

Quando a ciência é concebida como é hoje, quais podem ser


seus motivos? E desse ponto de vista, é bom ou mau, ou misto, e em
quais proporções?
Análise do bem e do mal baseada nos motivos.
Aplica este método em todas as esferas.
Um método universal de discriminação para educar a si mesmo,
aos outros e a todo um povo.
Não tentes realmente discernir os motivos pela observação ou
pela introspeção – que são sempre mais ou menos enganosas – mas
primeiro estabelece teoricamente a lista de possíveis motivos para
uma ação particular, à luz de sua ideia originária. (347)

A dificuldade sobre a ciência só pode ser resolvida pela ideia de


um Deus impessoal.
O objeto de estudo da ciência é a Providência impessoal de
Deus. (347)

189
Parábola do semeador (Lucas 8:5). Na primeira categoria estão
aqueles que recusam seu consentimento. Na quarta estão os eleitos.
O solo contém uma certa quantidade de alimento para as plan-
tas. Se uma grande parte vai para os espinhos, o trigo não pode cres-
cer por falta de alimento. Da mesma maneira, quando uma grande
parte da energia da alma é dada a coisas mundanas, a parte eterna
não pode receber a energia indispensável para seu crescimento.
Mas o caminho para passar da terceira categoria para a quarta é
imediatamente óbvio. É feito arrancando as ervas daninhas, arran-
cando os espinhos. Em outras palavras, é desapego, e o método foi
amplamente estudado pelos místicos. Tudo isso é claro e familiar.
Mas e a segunda categoria?
Pedra. Os espinhos não crescem de pedras. Há almas que não
estão interessadas nas coisas deste mundo, mas também não têm
energia para colocar a serviço de Deus; e assim permanecem estéreis.
Esse é exatamente o meu caso.
Pode concluir-se que existem algumas almas com uma deficiên-
cia natural que as incapacita irremediavelmente para o serviço de
Deus. E eu sou uma delas.
Existe algum remédio?
Existe alguma maneira de fazer o trigo crescer das pedras?
Se uma semente caiu num buraco na pedra, a única maneira é
regá-la e continuar fazendo isso sempre que a água evaporar.
Devemos, portanto, expor-nos aos estimulantes terrenos, tanto
quanto possível, sem violar as nossas obrigações, e oferecer a energia
assim adquirida como alimento para a semente divina alojada secre-
tamente no coração.
Isso foi mais ou menos o que fiz instintivamente até agora.
Implica uma dívida imensa de gratidão para com todos os seres
humanos que atuaram como estimulantes.

190
É um método que talvez deva ser comunicado a outras pessoas
cuja aflição seja semelhante à minha?
Felizmente, existem outras almas que são como o solo bom. Ou
melhor, devemos esperar que sim. Pois é doloroso que o crescimento
da semente tenha de ser precariamente mantido, em perigo cons-
tante, em face de dificuldades quase impossíveis, e com uma ansie-
dade que continua até o fim. Mesmo até ao fim, o caule murchará se
ficar algumas horas sem água.
E aqui o desapego é ainda mais rigorosamente necessário do que
para aquelas almas em bom solo. Pois se o espinho e a erva daninha
absorverem algumas gotas da água que deve ser renovada continua-
mente, o trigo inevitavelmente murchará.
Devemos adquirir energia de coisas mundanas, mas não permi-
tir que um átomo seu seja usado para coisas mundanas.
Literalmente, é pureza total ou morte.
Para uma alma desse tipo, parece que o estado de perfeição lhe
está impedido, exceto no momento da morte.
Que alegria saber que essas não são condições universais de bem
espiritual para todos os homens! Se tivesse sempre de ser comprado
a preço tão doloroso, seria um esforço difícil desejá-lo para aqueles
que amamos.
É preciso lembrar que uma planta vive de luz e água, não apenas
de luz. Portanto, seria um erro contar apenas com a graça. A energia
deste mundo também é necessária.
Mas quando se está totalmente privado da energia deste mundo,
morre-se. Enquanto meu coração, meus pulmões e meus membros
puderem funcionar, esta é a prova experimental de que ainda há uma
gota de água na pedra para nutrir o trigo celestial.
Certifica-te de que recebe água, mesmo que signifique a morte
da carne por inanição.

191
Se ao menos minha carne e meu sangue secassem antes do caule
divino, nada mais importaria.
Não importa se não fruir nem receber nenhum salário. Existem
frutos maravilhosos e recompensas maravilhosas para os outros.
Mas onde encontrar coragem para privar a carne e o sangue da
última gota de água e dá-la ao caule divino? Apenas sob compulsão
se pode fazer tal coisa. É o tipo de coisa que pode ser feita por escra-
vos que foram treinados sob o chicote.
Portanto, a única esperança é que a misericórdia divina mergu-
lhe a pessoa na escravidão e seja treinada pelo chicote.
Tive um pouco de treinamento, mas não o suficiente. Poderia
ter mais se desejasse. A dificuldade é tornar o desejo real. (347-349)

Deus é o único bem. Todos os bens contidos nas coisas têm seu
equivalente em Deus. Deus é a única escala de valor. (349)

Este universo é uma armadilha para capturar almas, a fim de


entregá-las, com seu consentimento, a Deus.
É o modelo eterno de punição. (349)

O amor verdadeiro deseja possuir um objeto real, sobre ele saber


a verdade e amá-lo na sua verdade tal como realmente é.
É um erro falar sobre o amor pela verdade; deve ser um espírito
da verdade no amor. Este espírito está sempre presente no amor ver-
dadeiro e puro.
O Espírito da verdade – o sopro de fogo da verdade, a energia
da verdade – é ao mesmo tempo Amor.
Existe outro amor, que é falso.
Aqui em baixo só se pode amar os homens e o universo, ou seja,
a justiça e a beleza. Portanto, a verdade é algo que qualifica o justo e

192
o belo.
Pneuma, o sopro de fogo. É a energia evocada pelo amor. Que
maravilha, portanto, esta palavra aplica-se tanto ao sêmen genital no
amor carnal como à geração do bem pelo amor entre Deus e a alma
humana!
A autêntica ioga respiratória baseia-se, sem dúvida, na ideia de
pneuma. É o que se chama de sopro de vida. Mas qual é exatamente
a relação entre essa ideia e a respiração? Pneuma também está ligada
à respiração. E a respiração é uma forma de combustão. Uma vela é
a imagem da vida humana. Isso sempre foi conhecido.
Heráclito falava apenas de fogo. Pneuma aparece apenas com os
estoicos. Será assim porque o Ioga penetrou na Grécia vindo da Índia
depois de Alexandre? Mas, por outro lado, não acreditavam os pita-
góricos que o sêmen genital é um pneuma, segundo Diógenes Laércio?
A vela é a imagem de um ser humano que a cada momento ofe-
rece a Deus o contínuo consumo interno pela queima que constitui
a vida vegetativa.
Isso é oferecer tempo a Deus.
É a própria salvação.
Os exercícios respiratórios da ioga respiratória autêntica prova-
velmente não passam de um método pedagógico e mnemotécnico
para imprimir na alma o voto de fazer essa oferenda. Assim também
com a prática de “repetir o nome do Senhor” e muitas outras práticas
semelhantes. (349-350)

Participar de um sacramento num estado de indignidade preju-


dica tanto a alma quanto o corpo.
A presença de Cristo na terra em carne e osso é como uma co-
munhão oficiada pela própria humanidade.
Foi um sacramento indigno porque Cristo foi assassinado.

193
A raça humana caiu no mesmo estado de um indivíduo que par-
ticipou da comunhão num estado de indignidade.
O critério para as coisas que vêm de Deus é que apresentem
todas as características da loucura, exceto a perda da capacidade de
discernir a verdade e amar a justiça. (350-351)

A humildade é acima de tudo uma das qualidades da atenção.


(351)

O primeiro de todos os problemas políticos é a maneira como


os homens encarregados do poder passam seus dias. Se os gastam em
condições que tornam impossível um esforço prolongado de atenção
em alto nível, não é possível que a justiça seja mantida.
Têm sido feitas tentativas para encontrar mecanismos de manu-
tenção da justiça que dispensem a atenção humana. Isso não pode
ser feito. A Providência de Deus opõe-se a isso.
Apenas a atenção humana pode exercer legitimamente a função
judicial. (351)

O crime de Níobe foi contar seus filhos. Na história budista so-


bre a repetição do nome do Senhor, o velho é salvo assim que para
de contar suas repetições.
São João da Cruz descreve a mesma transformação quando diz:
“Não sabia mais... Perdi o meu rebanho...”
Devemos derivar daqui uma ideia do papel desempenhado pelo
dinheiro numa sociedade perfeita. (351)

Ilustração perfeita das diferentes faculdades da alma em Marcos


13.34:
“Como um homem viajando para longe, que saiu de casa e deu

194
autoridade aos seus escravos, a cada um a sua própria obra; e ordenou
ao porteiro que vigiasse.”
A alma é essa casa, as suas várias faculdades são os escravos e o
porteiro é o amor. (351-352)

Mateus 11.27: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e nin-


guém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o revelar.”
Portanto, os homens conhecem a Deus, por meio de Cristo; mas
não conhecem a Cristo. (352)

Há uma grande diferença entre uma verdade que é reconhecida


como tal e introduzida e recebida na mente como tal, e uma verdade
que está ativa na alma e está dotada do poder de destruir dentro dela
aqueles erros que são claramente incompatíveis consigo.
Alguém pode pensar que não há diferença entre as duas. Mas
na realidade não é assim. Ao observar a humanidade, encontramos
a diferença confirmada a cada dia.
O poder ativo na verdade é sopro de fogo, a energia divina. (352)

É de pouca utilidade possuir uma grande quantidade de verdade


inerte na mente.
Mas, gradualmente, um grão infinitesimal de verdade ativa des-
trói todos os erros.
“Um grão de mostarda é a menor de todas as sementes…”
A mesma distinção se aplica à falsidade. Há um erro inerte e há
um erro ativo, que destrói a verdade. É o diabo.
Não pode haver numa alma, ao mesmo tempo, verdade ativa e
falsidade ativa. Mas a atividade da verdade desperta da inércia a falsi-
dade e evoca reações defensivas; é assim que nascem as tentações dos
santos.

195
Em algumas almas existem apenas a verdade inerte e a falsidade
inerte. São a maioria.
Mas hão de haver alguns em que a falsidade, – e outros em que
a verdade – existe num estado ativo. Os últimos estão no caminho
direto da santidade. (354)

A troca de amor entre Deus e a criatura é um jato vertical de


fogo como um relâmpago. Atinge em linha reta desde o ponto mais
alto do céu até a profundidade mais baixa do abismo. (353)

Humildade total significa consentir em morrer, o que nos torna


um nada inerte.
Santos são aqueles que realmente consentiram em morrer en-
quanto ainda estavam vivos.
O Evangelho de São João indica uma teoria do mal diferente da
do pecado e da expiação. Isso implica outra teoria da Paixão e da
Redenção; há uma indicação dessa outra teoria em São Paulo
(“…para que ele possa ser o primogênito entre muitos irmãos”). (353)

“Pai, dá-me a minha parte” (parábola do filho pródigo).


Minha parte consiste em autonomia. Desperdiço-a com prosti-
tutas.
“Os escravos na casa de meu Pai têm pão.” O pão é o bem. Os
escravos são a matéria inerte. Desejamos ser matéria inerte de forma
a finalmente deixar de ser desobediente.
Só se chega a esse ponto após um processo de exaustão que leva
tempo. O filho pródigo gasta primeiro todo o seu dinheiro e só de-
pois de perder tudo é que começa a sentir fome e deseja ser um dos
escravos do pai.

196
Da mesma forma, só depois de esgotarmos todas as nossas facul-
dades naturais (a vontade, a inteligência, a tendência natural para o
amor) no esforço de produzir o bem, e reconhecer que somos inca-
pazes de qualquer bem, caímos prostrados diante de Deus.
“Somos escravos inúteis.” Esse é o ponto mais alto que uma cri-
atura humana pode atingir. Para o vidro, nada melhor do que trans-
parência absoluta. Para o ser humano, nada melhor do que ser nada.
Todo o valor num ser humano é realmente um valor negativo. É
como uma mancha opaca no vidro. Se um pedaço de vidro estiver
coberto de manchas, pode facilmente acreditar que é algo e que é
muito superior a um vidro perfeitamente transparente através do
qual a luz passa como se não nada houvesse ali. É por isso que “Todo
aquele que se exaltar será humilhado; e todo aquele que se humilhar
será exaltado.” Não há necessidade de ver isso como um processo
compensatório. Simplesmente nascemos com uma deformação con-
gênita no senso de direção, que nos dá a impressão de uma descida
quando subimos e de uma subida quando descemos.
É como o caso dos números negativos. Se passarmos de -20 a -
10, há uma diminuição do ponto de vista da quantidade absoluta, e
quem está ciente apenas das modificações dessa quantidade vai acre-
ditar que está diminuindo. Mas na série total de números, a passagem
de -20 para -10 é um aumento.
Nascemos muito abaixo de zero. Zero é o nosso máximo, o li-
mite que só podemos atingir depois de termos passado por uma série
que possui um número ilimitado de termos (por exemplo -1/2n). E
zero é o estado em que se é um escravo inútil. (354)

Existe algo de misterioso no universo que está em cumplicidade


com aqueles que não amam senão o bem. (355)

197
Zodíaco:
Sagitário (o amor como o arqueiro), Deus que perfura o coração
de sua criatura com uma flecha.
Depois, a plenitude de Deus.
A história deve começar com o Touro. Sacrifício de Deus. Pe-
cado e queda da criatura. Mal. Força bruta. Justiça. Equilíbrio. A cri-
atura vai imolar-se em Deus. Deus ferindo sua criatura com amor,
com uma flecha em seu coração. Plenitude de Deus. Criação (nova?).
Encarnação. Sacrifício de Deus. E tudo começa de novo. O sacrifício
de Deus é o início e o fim da história. (356-357)

Quando Deus nos quer dar alguma coisa em particular, ele diz-
nos para lhe pedirmos e até para sermos importunos. Se obedecer-
mos, nos dará essa coisa. Pelas nossas súplicas, obrigamo-lo a fazer o
que quiser connosco; e só faz o que quer connosco se lhe pedirmos.
(357)

Rosário – método para libertar a alma da escravidão ao número.


O dinheiro deve desempenhar a mesma função. (357)

Para poder livrar-se do mal, esse deve ser transferido. Só Deus


pode realmente destruí-lo. Para destruir o mal, temos de transferi-lo
para Deus. Por exemplo, fazemos isso quando contemplamos o Santo
Sacramento. (358)

Prazer é a ilusão de que existe algum bem vinculado à própria


existência.
É uma ilusão permanente e até a tristeza se mistura com algum
prazer.

198
Mas em certos momentos, provocados por um excesso de sofri-
mento físico, a ilusão desaparece por completo. A pessoa vê então
sua existência nua, como um mero facto em que não há bem algum.
Isso é assustador. E essa é a verdade.
(Portanto, experimente eu muitos desses momentos e nunca me
esqueça da lição que ensinam.) (358)

Um motivo carnal de baixo nível, mas de certa forma honroso,


como camaradagem militar, que faz um homem querer compartilhar
o perigo de morte com seus companheiros, torna mais fácil sacrificar
a própria vida. Porque o facto de ser carnal disfarça a realidade. Sob
sua influência, pode enfrentar o que se sabe ser morte certa, mas sem
a ver.
Por outro lado, ir para a sua morte por pura obediência a Deus
é ir nu para a morte. A obediência não disfarça nada. É perfeitamente
transparente.
É por isso que Cristo temia a morte mais do que os outros ho-
mens. (358-359)

Conto popular: “o rouxinol chamado Gizar: – onde pode ser


encontrado? – Isso eu não te sei dizer. Só sei que sua música é a mais
bela que o ouvido do homem já ouviu.”
Maravilhoso. Um ser do qual se conhece apenas seu nome e sua
perfeição, e absolutamente nada mais; e isso é suficiente para permi-
tir que alguém o encontre. É Deus. (359)

Primeira metade do Pai Nosso.


“Santificado seja o teu nome”
Usando o nome de Deus, podemos orientar nossa atenção para
o Deus verdadeiro, que está além do nosso alcance e é inconcebível

199
por nós. – Sem o dom deste nome, teríamos apenas um falso Deus
terreno, concebível por nós. Apenas este nome torna possível ter um
Pai nos céus, do qual nada sabemos.
“Venha o teu reino”
Possa a tua criação desaparecer absolutamente, começando por
mim e tudo à qual esteja de alguma maneira apegada.
“Seja feita a tua vontade”
Tendo renunciado absolutamente a todo o tipo de existência,
eu aceito a existência, não importa de que tipo for, unicamente pela
conformidade com a vontade de Deus.
“Na terra como no céu”
Aceito o decreto eterno da Sabedoria divina e todo o seu desdo-
bramento na ordem do tempo. (360)

Toma Cristo como teu modelo. Mas não dizendo: Ele fez isso e
aquilo, e portanto eu…
É o mau pintor que olha para a modelo e diz “ela tem a testa
alta e sobrancelhas arqueadas; portanto, devo colocar uma testa alta
e sobrancelhas arqueadas na tela”, e assim por diante.
Um verdadeiro pintor, ao prestar atenção, torna-se aquilo que
olha. E enquanto está nesse estado, sua mão move-se, com a escova
acoplada. Isso é ainda mais claramente visto nos desenhos de Rem-
brandt.
Isso é mais evidente nos desenhos de Rembrandt. Ele pensa em
Tobias e no anjo, e sua mão move-se.
É assim que Cristo deve ser nosso modelo.
Devemos pensar Cristo – o próprio Cristo e não nossa imagem
de Cristo.
Pensar Cristo de toda a alma. – E enquanto a pessoa está nesse
estado, a inteligência, a vontade, etc., e o corpo, executam atos.

200
Dessa maneira, o mal não é imediatamente eliminado. Mas o é
progressivamente.
Para fazer isso, deve-se pensar em Cristo como homem e como
Deus.
Talvez qualquer pensamento seja igualmente eficaz, desde que
realmente nos afaste de nós mesmos em direção a Deus? (Qualquer
pensamento que contenha o perfeito?) (362)

História irlandesa – geleia de morango


A história irlandesa (“Um bando de pássaros”?) em que a irmã
de um jovem executado volta para casa e, num surto de vitalidade,
para livrar-se do efeito de sua morte, devora um pote inteiro de geleia
de morango – e pelo resto da vida não consegue suportar nem mesmo
ouvir falar em geleia de morango.
Se um adolescente romântico fabricou uma tragédia a partir de
algum grande amor imaginário, isso não poderia modificar sua ati-
tude em relação à geleia de morango.
Transferência. Somente os sentimentos reais possuem esse po-
der de se transferir para a matéria inerte.
Para o homem vivo aqui em baixo, neste mundo, a matéria sen-
sível – isto é, a matéria inerte e a carne – é como um filtro ou peneira;
é o teste universal do que é real no pensamento, e isso aplica-se a todo
o domínio do pensamento, sem exceção. A matéria é o nosso juiz
infalível.
Desta aliança entre a matéria e os sentimentos reais surge o sig-
nificado das refeições em ocasiões solenes, em festas e reuniões fami-
liares ou amistosas, mesmo entre dois amigos, e assim por diante
(também doces, guloseimas, beber juntos...). E o significado de pratos
especiais: peru de Natal e pudim de ameixa – Bolinhos de Candelária
em Marselha – Ovos da Páscoa – e mil costumes locais e regionais

201
(agora quase desaparecidos).
A alegria e o significado espiritual da festa estão situados dentro
da iguaria especial associada à festa. (363-364)

202
2
Seleções dos
Cadernos, Volume Um
Há certas coisas por si só não causam sofrimento, mas fazem-
nos sofrer como sinais. Sinais de quê? De um estado de coisas que,
por si só, raramente (ou nunca?) nos faz sofrer, sendo por si só muito
abstrato para constituir uma aflição. Mas seus sinais fazem-nos sofrer,
embora não sejam dolorosos em si mesmos.
Daí a derrota (cf. Fenillets de Gide) e a visão de um soldado
alemão de uniforme.
Daí o cartão de identidade na Renault.
Se houver muitos desses sinais todos os dias, haverá aflição.
Outras coisas são por si mesmas causas de sofrimento. Sofri-
mento físico neste caso. Humilhação (é um sofrimento físico).
Ainda outros por si mesmos e como sinais (humilhação). Esses
são os mais dolorosos.
Problema: a derrota não é sentida como dor em certos momen-
tos (belo dia, bela paisagem).
Um homem com um uniforme verde-cinza não é causa de sofri-
mento (por exemplo, antes das hostilidades, adidos militares…).
Tendo ocorrido a derrota, um soldado alemão só precisa apare-
cer na paisagem e o sofrimento é gerado.
Dor nascida do vínculo (do sinal à coisa significada) entre duas
coisas que, fora desse vínculo, não são dolorosas. E essa dor é sentida
pelo corpo (pode até causar lágrimas).
É o mesmo no caso da alegria? Sensação estética, festas…? Orna-
mentos de uma festa, por exemplo. (1)

203
Descrever a diferença entre uma coisa bela (obra de arte) e o
resto, deixando de lado a beleza por completo. Dessa forma lançaría-
mos luz sobre algo instrutivo. (2)

Aflição – define-se: pela dor física – pelo simbolismo (cf. página


1) – pela vinculação dos momentos, pelo fluxo da duração.
Fragmentar o tempo, o maior mal que podemos fazer a um ho-
mem.
A beleza é o único critério de valor na vida humana. O único
que é possível aplicar a todos os homens. Do contrário, só resta o bem-
estar... As condições de uma vida plena são equivalentes para todos
os homens, mas sob formas que são, naturalmente, diferentes.
Beleza – enraizamento – pacto entre si e suas próprias condições
de existência – círculo de tempo.
Faz com que o tempo seja um círculo e não uma linha.
Pecado: diversão – intoxicação – licenciosidade.
O pecado também pode manifestar-se em termos de tempo. Por
exemplo: licenciosidade = imediatismo. Intoxicação: estado de sus-
pensão (passivo) em relação ao futuro próximo, desejo indefinido,
Danaidas.
O mal tem duas formas, pecado e aflição. (Sócrates as reconhe-
ceu [não fazer o mal nem sofrer o mal] e até mesmo os estoicos [preferí-
veis].) Pecado, aflição, bem.
Conexão entre o pecado e a aflição dos outros. Essencial ou aci-
dental? [Ama o teu próximo como a ti mesmo. Demônio do ópio que
busca transformar toda a sua comitiva em viciados no ópio…] O pe-
cado é o ilimitado, o subjetivo (coordena isso com as suas características
em relação ao tempo). Outros constituem um limite e uma existência
fora de nós, a única, pois a matéria… 3ª dimensão. Respeito.
Não perdemos a mesma coisa tanto no caso do pecado como no

204
da aflição? Isto é, o mundo. Como distinguir então uma coisa da
outra? Não se reproduzem elas num ciclo recíproco?
Punição. Parece então que, se deve haver cura para o pecado, a
punição não deve ser considerada uma aflição. Uma experiência do-
lorosa, sim, certamente. Uma invasão. Que tipo de invasão?
Até que ponto o pecado triunfante se parece com a aflição?
Inadequação da República. Lá, Platão analisa o pecado, mas não
a aflição. Electra.
Aspiramos a escapar da aflição; não aspiramos a escapar do pe-
cado; assim, ao transformar o pecado em aflição, damos à alma o
desejo de salvação; esta seria a justificação da punição. Mas, quando
alcançamos um certo grau de aflição, aspiramos escapar dela? Além
disso, isso pressupõe uma ligação evidente, não acidental, entre pe-
cado e punição.
A aflição é um mal, mas a dor pode ser um bem.
Existe sempre dor na aflição? Escravidão, prisão.
Haverá algum caso em que a morte iminente, conhecida como
tal (risco de morte, morte certa) constitua uma aflição?
Malheur, palavra admirável, sem equivalente em outras línguas.
Não extraímos dela tudo o que podíamos.
Phèdre: ambiguidade entre a desgraça e o pecado. (3)

Que poder tem um homem de livrar-se da aflição? Esse poder é


necessariamente físico. Pode, portanto, ser privado dele. A questão é
saber se podemos privá-lo dele sem o matar.
Que poder ele tem sobre sua própria duração?
Que poder sobre o simbolismo que transforma certas coisas sen-
síveis em sinais de aflição?
E sobre aquilo que transforma certas coisas sensíveis em sinais
de alegria?

205
Se acredito que o homem não está à mercê das circunstâncias,
ajo sobre os outros sem consideração.
Se acredito que o homem está à mercê das circunstâncias, aban-
dono-me pessoalmente a elas. O que traz, entre outras coisas, a con-
sequência anterior. Além do mais, ação recíproca. Essas duas crenças
levam ao mesmo estado. Portanto, o comportamento correto implica
uma contradição.
Não é verdade que o bem não tem seu lado contraditório, que
só o mal é contraditório. A virtude pode muito bem ser, talvez, me-
nos lógica do que o pecado.
Quais as contradições que são legítimas e quais as que não são?
Uma lógica bem diferente.
Dores físicas. Algumas delas, enquanto duram, fazem-nos “per-
der” o mundo: por ex. dentista. Outras constituem um contato com
o mundo: por ex. recolhendo feixes cheios de espinhos nos braços.
O mesmo com a fadiga oriunda do trabalho; é de dois tipos.
O mesmo com “voluptuosidade”. Existem também dois tipos de
“voluptuosidade” (de prazer).
Critério: sentimento de realidade.
Dois tipos de fome.
Dois tipos de obediência.
Dois tipos de morte. Etc. (3-4)

Bem e mal. Realidade. O que confere mais realidade aos seres e


às coisas é bom, o que lhes retira é mau.
Os romanos levaram a cabo o mal roubando as estátuas das cida-
des gregas, porque as cidades, os templos e a vida dos gregos tinham
menos realidade sem as estátuas, e porque as estátuas não podiam ter
tanta realidade em Roma como na Grécia.

206
Súplicas humildes e desesperadas dos gregos para conservar al-
gumas estátuas. Súplica: uma tentativa desesperada de fazer a nossa
noção de valores passar para a mente dos outros. Entendida assim,
nada há de baixo nela. Mas é quase necessariamente ineficaz. O dever
de compreender e pesar o sistema de valores das outras pessoas com
o nosso, na mesma balança – forjar a balança. (8)

Se escolhemos viver – assumindo a possibilidade de tal escolha,


em nenhum momento da nossa vida podemos escolher (exceto em
certos casos que dizem respeito a graus de prudência). Dadas as cir-
cunstâncias e o caráter em determinado momento, apenas uma ma-
neira de reagir garante a preservação máxima (1) da vida e (2) na me-
dida em que a preservação da vida o torna possível, do caráter. Uma
existência orientada para a vida nunca pode tomar, em nenhum mo-
mento particular, senão uma direção particular – nota que uma exis-
tência orientada para a vida pode admitir o risco ou mesmo a aceita-
ção da morte, mas apenas por razões externas – fama, desporto.
Não é por acaso que doutrinas de conteúdo místico são mais ou
menos orientadas para a morte. Cátaros. T. E. Lawrence.
Ambiguidade da morte. A morte é o destino do ser limitado; o
pensamento da morte é uma humilhação. “Eles fizeram-me ver o so-
frimento e a morte.” “Nasceste mortal.” [Nota do tradutor na versão
em inglês: “Sófocles, Electra, 1171”.) Mas a morte é também a aniqui-
lação do ser limitado. (10)

Notas sobre o Testamento Espanhol de Koestler.


Irrealidade da guerra – Pina [nota do tradutor na versão em in-
glês: “Pina: aldeia em Aragão onde um pequeno grupo de milicianos
pertencentes à coluna de Durruti, da qual Simone Weil fazia parte,
cruzou o Ebro durante a Guerra Civil Espanhola (agosto de 1936)”]

207
– Porquê?
Tempo. Futuro. O “Testamento Espanhol”: resolução de morrer
em 12 horas e serenidade (trégua de 12 horas?).
Tempo que passa rápido na prisão e ausência total de incidentes
(rápido depois de passado).
“Solitário é o tempo inesquecível durante o qual se esquece do
tempo.”
Pode-se morrer consciente? A descrença na morte aumenta com
sua proximidade? Desinfeção da agulha de morfina. Sócrates?
“Ao escrever isto, tenho a impressão de que se trata de uma dis-
sertação teórica e que não me diz respeito diretamente.” Uma vez por
dia (pelo menos) acredita por um minuto na morte; então medo ani-
mal.
“…como minha autoconfiança aumentou desde que ganhei al-
gum dinheiro.”
“Na prisão, situações e pensamentos reproduzem-se perpetua-
mente. Vives dentro de um círculo.”
Milicianos no pátio: “Recusavam manifestações entre si, sem ne-
nhum sentimentalismo e às vezes até sem piedade.” Vitórias inventa-
das. “Mentiram a si mesmos para conseguir morrer.” “Não suporta-
vam a ideia de morrer por uma causa perdida.”
“Perguntam porquê... Todos nós nos perguntávamos, esperando
[pela morte] com medo, quem estava sendo servido, quem estava
sendo honrado por termos sofrido desta forma; qual era o significado
evidente e secreto de tudo isso... Queríamos quebrar a cabeça…” [Res-
posta (Ilíada): por que não?]
Tudo o que agita o homem agita-o no seu sentimento do tempo.
Controle sobre si mesmo = controle sobre a maneira como se sente
o tempo: por exemplo o futuro. Se for fuzilada amanhã, saber como

208
alterar as dimensões da duração de modo a ter um futuro para preen-
cher.
Existe outro método, que é pensar no futuro de algo diferente
de nós mesmos. Aqueles que morrem por outra coisa, por algo que
sentem que deve perdurar e prevalecer, conseguem fazê-lo facilmente:
por exemplo, “Vida longa ao Imperador.” Mas isso revela uma certa
baixeza, vendo que essa “outra coisa” é menor que o universo com-
pleto.
Deixa que a vida seja semelhante a uma peça musical perfeita
ou a um poema – apesar dos eventos serem em parte trazidos de fora
e sem ritmo – mas como? Esse é o problema. Fazer do tempo uma
imagem em movimento da eternidade, pois não a é por natureza. (11-
12)

Narciso. Não é isso a que os amantes aspiram? Ser um, fazer o


amado entrar em mim mesma, fazer o amado tornar-se eu mesma.
Bem, Narciso assim o tinha, e encontrava-se ainda mais infeliz – mais
longe ainda daquilo que amava; aí reside o paradoxo. Ele amava um
corpo sem alma, porque não podia amar sua própria alma. Ou será
necessário, talvez, que todo o universo, o céu, as estrelas, o mar, seja
o corpo correspondente? (Mas então não seria a sua própria alma.)
Estrelas e árvores frutíferas em flor. A permanência completa e
a fragilidade extrema dão igualmente a sensação de eternidade. (12-
13)

Upanishads
O Atman – que a alma de um homem considere todo o universo
como seu corpo. Que sua relação com todo o universo seja como a
do colecionador com sua coleção, ou a de um dos soldados que mor-
reu gritando a Napoleão, “Viva o Imperador!” A alma se transporta

209
fora do corpo atual para outra coisa. Que ela, portanto, se transporte
para todo o universo.
Não é apenas seu dever, mas também sua natureza. Demonstra-
ção: amamos aquilo que é nosso apenas (o eu é o único valor). [Por-
tanto] o eu não pode ser finito, a sua dimensão é a do mundo.
O eu é tão grande quanto o mundo; todos os sons se encontram
no ouvido, etc.
Devemos identificar-nos com o próprio universo. Tudo o que é
menor que o universo está sujeito ao sofrimento [sendo parcial e con-
sequentemente exposto a forças externas].
Mesmo que eu morra, o universo continua. Isso não me consola
se eu for diferente do universo. Se entretanto o universo é, por assim
dizer, outro corpo da minha alma, minha morte deixa de ter mais
importância para mim do que a de um estranho. O mesmo se aplica
aos meus sofrimentos.
Que todo o universo seja para mim, em relação ao meu corpo,
o que a vara é para um cego, em relação à sua mão. A sua sensibili-
dade realmente não reside mais na sua mão, mas no fim da vara. (19)

[Leitura]
É necessário um aprendizado.
Na verdade é uma questão de perda de perspetiva. (As preocu-
pações chinesas com a levitação e a perspetiva aérea na pintura não
correspondem também a isso?)
Mas como, então, continua alguém a agir como indivíduo?
Tema do Gita.
O sofrimento realmente faz-nos perder o universo (por exem-
plo, sofrimento físico). Mas sabemos que ele continua existindo. Sa-
bemos disso, mas não temos certeza. É uma questão de nos tornar-
mos tais que tenhamos certeza. Nada mais. Isso é suficiente.

210
“Os desejos que são realidade são velados pela irrealidade; eles
existem, mas a irrealidade os oculta. Assim é que um homem, quando
um membro de sua família morre, não pode mais vê-lo. Mas todos os
membros de sua família, vivos ou mortos, todos os seus desejos não
realizados, tudo isso, encontrará se entrar em si mesmo; pois é lá que
existem os desejos que são realidade, mas que estão velados pela irre-
alidade.”
Se entrarmos profundamente em nós mesmos, descobriremos
que possuímos exatamente o que desejamos.
Se ansiamos por um certo ser (que está morto), desejamos um
ser particular, portanto mortal; e ansiamos por aquele ser especial
“que”…, “a quem”…, etc., em suma, aquele ser que morreu em tal e
tal hora, em tal e tal dia. E nós possuímos esse ser – morto.
Se desejamos dinheiro, desejamos um meio de troca (institui-
ção), algo que só pode ser adquirido por…, por…; portanto, dese-
jamos apenas “na medida em que”… Bem, e nessa medida nós o te-
mos.
Em tais casos, o sofrimento e o vazio são o modo de existência
dos objetos de nosso desejo. Precisamos apenas afastar o véu da irre-
alidade e veremos que nos são dados dessa maneira.
Quando vemos isso, ainda sofremos, mas somos felizes. (20)

Encontra o Atman “envolvido nas complexidades escuras (?) do


corpo.”
“Não existe pluralidade.
Quem pensa que vê pluralidade no universo
Só corre de morte em morte.” (20)

Grécia.
As palavras de Platão: “não devemos ser rápidos em realizar o

211
Uno” também se aplicam à busca do Bem (de Deus, do Atman, do
Tao, etc.)
Não devemos realizar o Uno sem primeiro reconhecer os muitos.
Na Índia também, certamente, o reconhecimento dos muitos.
O que isso representa?
“Aquele espaço dentro do coração – é lá que Ele habita, mestre
de tudo, soberano de tudo, senhor de todos. Não se torna maior com
as boas ações nem se torna menor com as más.”
Além do bem e do mal. Isso, sem dúvida, deve ser interpretado
de acordo com o princípio taoista: quem possui a verdadeira virtude
não tem nenhuma virtude, e é assim que possui a virtude. Aquele
que possui uma virtude comum tem alguma virtude e, portanto, não
possui nenhuma virtude.
Devemos também desligar-nos da virtude – perder a consciência
dela.
Um bem soberano negativo.
Amamos um marido, uma esposa, etc., todas as coisas por nós
mesmos. Ideia fundamental:
Restringir nosso amor ao objeto puro é o mesmo que estendê-lo a todo o
universo.
Coisas preciosas são, com razão, metaxú [nota do tradutor em
inglês: intermediários].
Que este objeto seja o universo, as estações, o sol, as estrelas.
Sentir o espaço –
Brahman é o espaço –
Se não nos desapegamos, mudamos nosso apego. Devemos ape-
gar-nos ao Todo.
O que agora odiamos, conseguiremos amar. Devemos sentir o
nosso ódio até o limite; saber o que é aquilo que odiamos.
Descer através de cada sentimento, para juntar-se ao Atman.

212
Quem é aquele que odeia?
Não sou eu quem está aqui. É verdade. Não sou eu. Não sou eu
que estou neste ponto específico do espaço.
Através e além de cada sensação, devemos sentir o universo. O
que importa então se é prazer ou dor? Se nossa mão é apertada por
um amado que não vemos há muito tempo, que importa se a aperta
com força e nos machuca?
Ao atingir um certo grau de dor, perdemos o mundo. Mas de-
pois vem a paz, quando o encontramos novamente. E se o paroxismo
retorna, o mesmo acontece com a paz que o segue.
Esse contato é alegria. (21-22)

Leitura. Tudo o que recebemos (em certo sentido) são sensações


e, seja o que for que façamos a respeito, nunca, nunca podemos pen-
sar em outra coisa (em certo sentido) a não ser sensações. Mas nunca
podemos realmente pensar sensações; nós lemos através delas, como
por através de um meio. O que lemos? Não qualquer coisa, de acordo
com a inclinação. Nem, certamente, algo que não dependa de forma
alguma de nós mesmos.
O mundo é um texto que contém vários significados, e passa-
mos de um significado para outro através de um esforço – um esforço
do qual o corpo participa sempre, assim como quando estamos
aprendendo o alfabeto de uma língua estrangeira, este alfabeto deve
entrar em nossa mão por força da formação de símbolos.
Além disso, qualquer mudança na maneira de pensar é ilusória.
(23)

Amar nosso próximo como a nós mesmos não significa que de-
vemos amar todas as pessoas igualmente, pois não amo igualmente
todos os modos de minha existência. Tampouco significa que nunca

213
o devemos fazer sofrer, pois recuso fazer-me sofrer. Mas devemos ter
com cada pessoa a relação de uma conceção do universo com outra
conceção do universo, e não com uma parte do universo. Um ho-
mem a dez passos de mim é algo separado de mim por uma distância
(dez passos), mas também outro ponto de vista sob o qual todas as
coisas aparecem. A minha relação com esse homem nunca pode ser
análoga à relação do cego com a sua bengala, nem à relação inversa;
é por isso que a escravidão é contrária à natureza e à razão.
A guerra é uma forma de impor outra leitura das sensações, uma
pressão sobre a imaginação dos outros.
As sensações nos são impostas de fora, e também podemos ofe-
recer algumas a nós mesmos – sempre, em qualquer situação – de
forma não imediata.
A leitura das sensações, o que lemos por e através delas, também
é imposta; mas aí, novamente, temos sobre elas um poder não imedi-
ato, por meio do esforço e do costume fornecido pelo corpo.
Mas, a este respeito, precisamos distinguir entre dois poderes, o
de nos encontrarmos ou não numa determinada situação (por exem-
plo, estar diante de uma máquina, numa prisão, com uma faca em
nossa garganta, ou em nossas mãos, com ou sem dinheiro em nosso
bolso, etc.) que depende de nós em certa medida, mas apenas em
certa medida; e a de, quando realmente em determinada situação, a
lemos de uma maneira ou de outra.
Existem certas frases (combinação de palavras) que um homem
de tipo superior não pronuncia, apenas um homem de tipo inferior.
Existem outras que tanto um homem de tipo superior quanto um
homem de tipo inferior pronunciam, mas dando-lhes um significado
diferente. Estritamente falando, provavelmente não há nenhuma que
só um homem de tipo superior seja capaz de pronunciar, exceto pela

214
primeira vez (pois outros homens podem sempre repetir o que ouvi-
ram).
Dá-se exatamente o mesmo no caso das ações – mas com uma
diferença devido ao facto de que a ação é única e indefinidamente
variável.
Existem duas maneiras de mudar nas outras pessoas a maneira
como leem as sensações, a sua relação com o universo: força (do tipo
cuja forma extrema é a guerra) e educação. São duas ações exercidas
sobre a imaginação. A diferença entre elas é que as pessoas não se
associam à primeira (apenas reagem), ao passo que se associam à se-
gunda.
Alguém pode ser capaz pelo uso da força de degradar outras pes-
soas ou impedir que sejam degradadas; mas só se pode elevá-las por
meio da educação.
Existe uma terceira via, a beleza (exemplo).
Podemos combinar a primeira com uma das outras duas?
(Talvez) seja permitido apenas fazer um uso negativo da força.
Diferença entre o espírito do Bhagavad-Gita e aquele da história
de Joana D’Arc, uma diferença fundamental: ele faz guerra apesar de
inspirado por Deus, ela faz guerra porque inspirada por Deus.
(Pensar em Deus, amar a Deus, nada mais são do que certa ma-
neira de pensar sobre o mundo.)
A guerra é a forma suprema de prestígio. O manejo de armas
pode ter por objetivo acabar com o prestígio (Maratona), ou estabe-
lecer um prestígio duradouro (Império Romano) – no primeiro caso
existe uma contradição interna, no segundo não – uma vez a espada
desembainhada, o domínio do prestígio é estabelecido; a não resis-
tência não é um meio de o evitar; o próprio Cristo foi, por um mo-
mento, privado de Deus. O contato com a força, seja qual for o lado
pelo qual o contato é feito (o punho da espada ou a ponta da espada)

215
priva a pessoa, por um momento, de Deus. Daí o Bhagavad-Gita. Os
Evangelhos e o Bhagavad-Gita completam-se.
É por isso que existe algo essencialmente falso no Antigo Testa-
mento (certas partes), como também na história de Joana d’Arc: suas
vozes estão vinculadas ao prestígio. Jeová também.
Por mais justa que seja a causa do conquistador, por mais justa
que seja a dos vencidos, o mal causado, seja pela vitória ou pela der-
rota, é, no entanto, inevitável. É inútil ter esperança de escapar dele.
É por isso que Cristo não desceu da cruz e nem sequer se lembrou,
no momento de suprema angústia, que voltaria à vida. Por isso o ou-
tro não largou as armas e parou a batalha. [Nota do tradutor na ver-
são em inglês: “Arjuna, o herói do Bhagavad-Gita.”]
Não é verdade que a conquista nada mais é do que uma má
maneira de buscar o Atman idêntico a Brahman? O homem precisa
estar sozinho no universo para ser idêntico ao universo. (Mas se está
sozinho por suprimir os outros, a sua perspetiva é a única.) Tenho o
direito de me apropriar de todas as coisas, mas os outros são um obs-
táculo no caminho. Devo pegar em armas para me livrar desse obstá-
culo. Mas essa apropriação pode ser considerada infinita – ou finita,
se algo finito, por exemplo, um campo, fornece o equivalente do uni-
verso. Neste último caso, não tenho razão para não querer que outros
também possuam o universo na forma de um objeto finito, visto que
tais objetos finitos devem estar em relacionamento harmonioso entre
si. Só quero, portanto, infligir um dano limitado ao inimigo; mas
não posso fazer isso, pois o uso de armas necessariamente acarreta o
ilimitado.
O infinito que está no homem está à mercê de um pedacinho
de ferro; tal é a condição humana; espaço e tempo são a causa. É
impossível manejar este pedaço de ferro sem reduzir repentinamente
o infinito que está no homem a um ponto na ponta, um ponto no

216
cabo, à custa de uma dor terrível. E é impossível não o manejar. Por
um momento, todo o ser é atingido; não sobra lugar para Deus,
mesmo no caso de Cristo, para quem o pensamento de Deus não era
mais do que o de privação. Este estágio deve ser alcançado se houver
encarnação. Todo o ser se torna privação de Deus: como proceder
além disso? Não há nada além disso, exceto a ressurreição. Para che-
gar até aqui é necessário o toque frio do ferro nu.
Ao pegar em armas, devemos pensar em tudo aquilo que perde-
remos se formos derrotados e que, se vencermos, faremos outros que
amamos como a nós mesmos perderem exatamente o mesmo. Assu-
mir essa perda sobre nós mesmos, deixando o inimigo livre, é inad-
missível. Cristo o fez, mas na posição de simples sujeito condenado
pelas autoridades legítimas. Mas se sentirmos o toque frio do ferro,
nos limitaremos a nós mesmos, mesmo à custa de sérios riscos, e o
deixaremos de lado assim que a ameaça seja removida por um pouco.
Ao toque do ferro deve haver um sentimento de separação de
Deus como aquele que Cristo experimentou, caso contrário, é outro
Deus. Os mártires não se sentiram separados de Deus, mas era outro
Deus, e talvez fosse melhor não ser mártir. O Deus de quem os már-
tires gozavam na tortura ou na morte se assemelha muito àquele que
foi oficialmente adotado pelo Império Romano e depois imposto por
meio de extermínios. (23-26)

Aflição: O tempo carrega o ser pensante, contra a sua vontade,


para aquilo que não pode suportar e que virá do mesmo jeito. “Afasta
de mim este cálice.” (Cada segundo que passa aproxima algum ser no
mundo de algo que não pode suportar.)
Diferença infinita entre três horas passadas numa máquina tra-
balhando por peça e três horas passadas em frente a um afresco de
Giotto. A relação entre o tempo e eu é o material de que minha vida

217
é tecida, e é possível estabelecer nela uma diferença infinita. Uma
fuga de Bach é um modelo. (27)

Com os gregos, a ciência da natureza era ela própria uma arte,


com o mundo para material e a imaginação como instrumento, e
consistia, como as outras artes, de uma combinação do limitado e do
ilimitado. Daí o acordo entre ciência e arte. Connosco, oposição,
porque nossa ciência analisa.
Fazer do universo a obra de Deus. Fazer do universo uma obra
de arte.
Esse é o objeto da ciência grega.
O da ciência clássica é “fazer-nos senhores e possuidores da na-
tureza” (assimilação a Deus, muito diferente da anterior) por meio de
um conhecimento que encontramos em nós mesmos. (Reconstrução
a priori, análoga à decifração de uma mensagem codificada num có-
digo desconhecido.)
O da ciência contemporânea: expressar em termos algébricos as
regularidades da natureza, para poder usá-las.
Descendo cada vez mais.
Onde há progresso, o nível é necessariamente baixo. “A arte é
longa, a vida é curta.” (27)

A aflição é ilimitada, a crueldade também. A tragédia capta esse


ilimitado como uma rede; é necessário que permaneça ilimitado e,
no entanto, deixe de sê-lo. As relações de força têm de aparecer num
flash, no meio do qual o homem se perde a si mesmo, a Deus, o
universo, e tudo. Phèdre é assim, e nada mais no teatro francês. Lear,
Otelo. (27)

Perder alguém: sofremos ao pensarmos que o morto, o ausente,

218
possa ter-se tornado algo imaginário, algo falso. Mas o desejo que te-
mos por ele não é imaginário. Precisamos descer dentro de nós mes-
mos, onde reside o desejo que não é imaginário. Fome; imaginamos
alimentos diferentes; mas a própria fome é real; devemos agarrar-nos
à fome.
A perda de contato com a realidade – aí reside o mal, aí reside
a tristeza. Existem certas situações que trazem essa perda, privação,
sofrimento. O remédio é usar a própria perda como um intermediá-
rio para alcançar a realidade. A presença do morto é imaginária, mas
sua ausência é muito real; doravante é a sua maneira de aparecer. (28)

O tempo nos faz violência; é a única violência. “Outro te cingirá


e te levará para onde não queres”; o tempo leva-nos aonde não que-
remos ir. Se for condenada à morte, não serei executada se, nesse
intervalo, o tempo parar. Seja qual for a coisa assustadora que acon-
teça, podemos desejar que o tempo pare, que as estrelas permaneçam
no seus cursos? A violência do tempo rasga a alma: pela renda entra
a eternidade.
Fugir do tempo – isso é pecado. (28)

Sendo a guerra uma ação sobre a imaginação, a primeira dificul-


dade é libertar-se dos efeitos da imaginação, ter à disposição (como
num problema de geometria) os vários meios de combinar as partes
constituintes, os dados. Deixa uma situação concreta aparecer num
relacionamento diferente. (Liberta-te dos efeitos da irrealidade: no
mundo imaginário, um único sistema de relações.)
Mundo. Várias leituras simultâneas. Partição. (30)

Outros. Vê cada ser humano (imagem de ti mesma) como uma


prisão habitada por um prisioneiro, cercado por todo o universo. (30)

219
Existe tal coisa como uma vida – no mundo, não em algum tipo
de solidão – que seja pura, bela e completa como uma estátua grega?
Ou uma única ação que assim o seja?
O comportamento de Sócrates perante os tribunais? [Regra de
Sócrates na vida: não defender a justiça, a verdade; mas não para co-
meter injustiça, não trair a verdade. Tampouco cessar, é verdade, de
seguir sua própria vocação.]
São Francisco atirando suas roupas a seu pai? (30-31)

Guerra
O contato com a força é hipnotizante; mergulha a pessoa num
sonho. Devemos estar bem despertos quando a força nos fizer sofrer,
manuseá-la totalmente despertos – mas cuidado, pois existe, entre
outros aspetos do estado de sonolência, uma ilusão de extrema luci-
dez que não é vigília. Quanto às outras pessoas, se as mergulharmos
num sonho, devemos cuidar de que seja o tipo de sonho angustiante
que provoca o desejo de despertar (mas não horrível o suficiente para
eliminar até mesmo esse desejo) e que a possibilidade de assim des-
pertar lhe seja deixada.
Critério: medo e gosto de matar. Evitar cada um deles – como?
Na Espanha, isso pareceu-me um esforço de partir o coração, impos-
sível de manter por muito tempo. Então torna-te tal que sejas capaz
de o manter.
Assim como ao compor uma música ou uma poesia tens em
vista um certo silêncio interior da alma e dispões os sons ou as pala-
vras de forma a tornar percetível aos outros o desejo ardente por esse
silêncio – assim também no caso das armas e no desejo de paz.
A arte das armas é, dessa forma, uma arte.
“A guerra é a continuação da política de paz por outros meios.”

220
O uso de armas tem um fim; deve ser modelado com base nesse fim.
1. Esse fim é composto de uma de três coisas. Ou para criar no
inimigo a disposição de obedecer aos desejos do Estado particular em
questão, sempre, quaisquer que sejam esses desejos (guerra para ex-
terminar o inimigo, à moda romana).
2. Ou para obter certas vantagens limitadas e definitivas que
não se pôde obter por negociação; o combate representa então ape-
nas um momento na negociação; deve causar ao inimigo maior dano
do que a perda das vantagens disputadas, sem provocar terror ou um
ressentimento inexpiável (guerras do século XIX, Sadová, 1870?).
3. Ou para criar no inimigo o desejo de paz (guerra defensiva).
Passa-se facilmente da 3 para a 1 (às vezes da 2 para a 1); mas
não se deve.
O alvo é mudar a mente do inimigo; a morte é apenas um meio.
Matar o menos possível. (Lawrence)
Que a guerra seja apenas um dos meios de persuasão (em todos
os três casos).
O desejo de paz, de segurança, de vida – podemos aplicar-lhes
[o texto], “desejos que são realidades estão escondidos atrás do véu
da irrealidade”. Não renunciar a isso, mesmo que se tenha quase cer-
teza de ser morto: devemos lamentar o último, e abolir em nós mes-
mos o anseio pelo sonho de segurança; desce entrando em ti mesmo
até onde está o verdadeiro desejo. Então, coragem sem crueldade…
Similarmente para o caso da necessidade de matar; mas aqui, grande
perigo.
Manter intacto dentro de nós o amor pela vida (não como Aqui-
les); nunca infligir a morte sem aceitá-la para nós mesmos.
Supondo que a vida de uma determinada pessoa estivesse ligada
à nossa a ponto das duas mortes serem simultâneas, ainda desejaría-

221
mos que essa pessoa morresse? Se de todo o corpo e de a alma dese-
jamos a vida e, mesmo assim, sem mentir, respondemos “sim”, então
temos o direito de matar essa pessoa.
De outra forma, não.
Mas é isso suficiente? Devemos também desejar que a outra pes-
soa viva, embora a necessidade se oponha a isso.
Consoante estejamos no caso 1, 2 ou 3, o método de fazer guerra
não é o mesmo. Portanto, não precisamos copiar o inimigo.
Minha ideia essencial de 1934: Não é o fim que importa, o que
importa são as consequências implícitas pelo próprio mecanismo dos
meios postos em funcionamento.
Isso é verdade, se os meios não estiverem, na sua estrutura, em
seu mecanismo, adaptados a seu fim.
Mas têm de estar.
Exemplo: uma vitória do tipo n.º 1 não será duradoura a menos
que se esteja preparado para exercer sobre o país inimigo um domínio
de amo para escravo. Obtê-la não é, portanto, um sucesso. Hannibal.
1918?
Se estivermos no caso 3, táticas e estratégias da categoria 3 são
as desejáveis. (32-33)

Causa das guerras: Existe em cada homem e em cada grupo de


homens um sentimento de que têm o direito justo e legítimo de se-
rem senhores do universo – de possuí-lo. Mas essa posse é mal com-
preendida, porque não entendem que cada um tem acesso a ela (na
medida em que isso é possível a um homem nesta terra) através do
seu próprio corpo (através da parte finita de si mesmo).
Alexandre e um proprietário camponês, como Don Juan e um
marido feliz no casamento. (33-34)

222
Relações humanas. Todas aquelas que têm algo de infinito são
injustas. Ora, embora tudo o que se relaciona com o homem seja
finito e mensurável, não obstante, depois de atingir certo grau, o in-
finito entra em jogo.
[Por exemplo. se toda a comida que dois homens comem por
dia for, num caso, 1 libra de pão e, no outro caso, 18 onças, a dife-
rença é finita; se um deles tem 1/4 libras, e o outro 6 libras, a dife-
rença é infinita, pois o que é tudo para um é desprezível para o outro.]
Como em física, a noção do insignificante forma a passagem
entre o finito e o infinito. (34)

Coragem. Temos mais ou menos tendência a ter medo. Não de-


vemos tentar suprimir o medo, mas direcioná-lo. Um covarde talvez
aguente uma injeção, uma operação, etc., melhor do que um homem
mais corajoso, se sua mente estiver suficientemente absorvida pelo
medo de morrer de doença.
Da mesma forma, no caso de um soldado, por medo de ser pu-
nido ou simplesmente desobedecer [“Senti que tudo o que me man-
dassem fazer, o faria, visto que era soldado raso, mas não teria feito
nada voluntariamente; simplesmente não podia”]. O treinamento de
soldados baseia-se nesta qualidade móvel possuída pelo medo que o
torna transportável. Devemos usar esse efeito em nós mesmos, cons-
cientemente. Escolher o que queremos temer. Mas escolher não é
suficiente: devemos ter medo dessa coisa particular.
Certas coisas que não se qualificam imediatamente para provo-
car medo, no entanto, causam medo imediatamente (leitura, bengala
de cego). Devemos atingir o estado em que as coisas que queremos
temer causem medo imediatamente, enquanto outras causam muito
menos.
Um homem doente ou ferido, que tem muito medo de morrer,

223
mas que se está submetendo a um tratamento muito doloroso, pode,
depois de atingido um certo grau, passado um certo tempo, esquecer
o medo da morte e desejar apenas que o deixem em paz. [Ele não tem
medo suficiente.] Anteriormente, por outro lado, seu medo da morte
neutralizava seu medo da dor.
Levar o corpo ao ponto de temer a desonra (no sentido mais
íntimo da palavra) mais do que a morte, a mutilação, a dor, etc. – e
isso de forma imediata. (35)

Nenhuma ação sendo boa ou má em si mesma, mas depen-


dendo das circunstâncias, em qualquer dado momento, por meio de
aparências sensoriais de qualquer tipo, podemos sempre imaginar
(ler) uma situação a respeito da qual (se ao menos existisse) tal e tal
ação seria justa. Mais tarde, a lemos de forma diferente, mas a ação
já foi realizada.
Assim, sem controle sobre a imaginação, podemos fazer qual-
quer coisa.
Como devemos controlá-la, em vista do quê, em virtude de quê?
A culpa não está na ação, mas na leitura.
Ter consciência de que se está lendo: já é muito difícil. Visar
uma boa leitura – e o que significa isso?
Ler de forma que o desejável pareça bem.
Ler de maneira que o que está bem pareça desejável.
Quando nos elevamos à noção de leitura, surge a arbitrariedade.
(36)

Existem certas formas de esforço que são exaustivas, e existem


outras que fornecem novas energias; de onde se origina a primeira?
O mecanismo pelo qual uma situação muito difícil degenera é
que a energia fornecida por sentimentos elevados é – geralmente –

224
limitada; se a situação exige que ultrapassemos esse limite, temos de
recorrer a sentimentos básicos (medo, cupidez, desejo de bater o re-
corde, honras externas), mais ricos em energia (descobrir porquê?).
Essa limitação é a chave para muitas reversões.
Riqueza infinita da noção de energia aplicada à existência hu-
mana: fonte ainda inexplorada. (36)

Em tal e tal situação, ages de uma maneira da qual te envergo-


nhas depois; prometes a ti mesma não fazer de novo. Mas quando
surge uma situação semelhante, não reconheces a semelhança; por-
que não se assemelha à lembrança que tinhas dela; assemelha-se a ela
mesma.
Só depois...
Qual o remédio? Em primeiro lugar, saber em que diferem a
situação e a lembrança (ou expectativa) dela. [Leitura.] (38)

O mal não pode ser contemplado: escuridão. Nem o bem: sol.


Apenas a combinação opaca dos dois. (38)

Estátuas gregas, seres imóveis feitos por seres imóveis.


Ler em todos os aspetos esternos que o mundo existe.
Ler em todos os aspetos externos – Deus.
Nada menos. (40)

O que desenhas enquanto pensas numa linha reta faz-te pensar


numa linha reta quando olhas para ela. O mesmo se aplica à arte. O
mesmo se aplica à ação. Milagre. (40)

Gita. Dois significados possíveis? Matar em si mesmo professo-


res, amigos, pais? Morte interior. (40)

225
Matar é sempre matar-se a si mesmo. Duas formas de matar-se a
si mesmo, suicídio (Aquiles) ou desapego.
Existe uma terceira forma de matar, que é não saber que aqueles
que estamos matando existem – exceto se forem como coisas a serem
mortas. (Resto da Ilíada; Espanha.)
Matar em pensamento tudo o que amamos; única maneira de
morrer. Mas só o que amamos.
Não desejar que aquilo que amamos seja imortal.
Aqueles que matarei são mortais.
Estar na frente de um ser humano, seja quem for – não o desejar
imortal ou morto. (40)

Agir no sentido de não ler um único motivo na razão de assim


agir. Isso é o mais angustiante. Angústia extrema. “Por que agiste...”
No entanto, é a única alavanca (uma das alavancas?) para mudar de
nível – remédio para a desolação interior.
Quando o resultado de uma ação é uma situação que impõe um
modo de ser tal que não se pode mais ler o motivo da ação pelas
aparências externas.
Muito difícil não confundir com a forma inexperiente, arbitrá-
ria e estéril de ascetismo. É necessário ter um motivo. (41)

Desapego em relação ao que foi (“Que o passado seja passado”)


e ao que será. Esperar o que se fará, como se comportará, como algo
instrutivo sobre si mesmo. (41)

Por que, em ciência, o conceito de causa ocupa um lugar tão


proeminente? (Porque se não é pelo aspeto técnico!) Por que não con-
dições de existência?

226
Nós lemos, mas também somos lidos por outros. Interposições
de tais leituras. Forçar alguém a ler-se a si mesmo como tu o lês (es-
cravidão). Forçar os outros a lerem-te como tu te lês (conquista).
Mecanismo?
Na maioria das vezes, diálogo entre surdos. (43)

Justiça. Estar continuamente pronto a admitir que outra pessoa


é algo diferente do que lemos quando está presente (ou quando pen-
samos nela). Ou melhor: ler nela também (e continuamente) que cer-
tamente é algo diferente do que lemos – talvez algo totalmente dife-
rente.
“Não fiz ouvidos moucos a palavras justas e verdadeiras.”
Cada ser grita silenciosamente para ser lido de outra forma.
Não ser surda a tais gritos. (43)

De que maneira pode uma ação realizada por alguém fazer mal,
ou bem, a si mesmo? Poder indireto sobre si mesmo, de si mesmo no
presente sobre si mesmo no futuro.
Um ato que faz com que a pessoa minta para si mesma. Ex.?
É a ação ou a situação dela resultante?
Mentir para si mesmo surge de uma necessidade vital, quando
ainda não se decidiu morrer. (43-44)

Equivalência entre coisas diferentes e até opostas, mas que per-


manecem no mesmo nível, expressando as mesmas necessidades de
maneiras diferentes. Centenas de exemplos na vida de um ser hu-
mano. Na composição de uma obra escrita. Em comunidades sociais.
Ex. o sistema das grandes fábricas e, de um lado, a desordem, a de-
composição, a propaganda subversiva e, de outro, a ordem totalitária.
O mais elevado: Apenas o presente. Momentos de pura música

227
(escutar com atenção Bach, etc.).
O mais baixo: Trabalho por peça numa fábrica.
Dois extremos.
Noção de alavanca aplicada à vida interior (de acordo com a no-
ção de energia) – por falta de alavanca, em vez de mudarmos na dire-
ção de um valor superior, mudamos no mesmo nível. (44)

Como nos reconciliar com a contradição entre aceitar antecipa-


damente tudo o que é possível, sem exceção, no caso de acontecer –
e, num dado momento, em dada situação, ir quase além do limite do
que somos capazes de fazer de forma a evitar que alguma coisa espe-
cífica aconteça?
A chave está certamente na distinção entre presente e futuro.
Os eventos reais não se movem mais rápido do que as estrelas em
seus cursos. A duração que separa um evento futuro do presente é
real.
Preparamo-nos para aceitar um dia, no futuro, tal e tal possível
aflição, quando se tiver tornado já passado, mas não a confundimos
com o passado.
Um ser que amo; ele é mortal. Algo dentro de mim deve prepa-
rar-se para aceitar sua morte quando esta se inscreve no mundo, não
na medida em que é sua morte, mas na medida em que é algo inscrito
no mundo. Mas supondo que esteja em perigo mortal e que, esten-
dendo minha mão, possa salvá-lo? Este poder que possuo faz parte da
realidade, da matéria (situação do meu corpo no espaço, energia me-
cânica que contém). Quanto a ele, é sua vida, não sua morte, que é
um facto. Meu desejo de que ele vivesse também é um facto.
É este um desejo que acertei em permitir que crescesse dentro
de mim, embora sem me apegar a ele? Ao nos desapegarmos dos de-
sejos, alguns deles são tolerados em seu nível inferior, outros não. A

228
mesma questão se coloca.
Os desejos limitados estão em harmonia com o mundo; desejos
que contêm o infinito não estão.
Um desejo limitado que pode estar em consonância com meus
outros desejos e com os desejos de outros homens (seus desejos limi-
tados).
Desejar que um ser humano viva é desejar-se a si mesmo como
sendo limitado. Um bom desejo, se não for incondicional.
Desejar a morte de um ser humano – esse desejo quase sempre
(ou sempre?) contém o ilimitado.
Devemos colocar-nos no centro de onde o ilimitado ordena to-
dos os valores – ler: o nosso próprio sistema de valores – separar-nos
dele. E assim (sendo o pensamento ilimitado) desejamos nossa pró-
pria morte. Podemos então legitimamente...?
Mas inquisidores, talvez, no caso dos hereges...?
Não.
O que é mau destruir? Não o que é baixo, pois isso não importa.
Não é o que é elevado, pois mesmo que queiramos, não conseguimos
tocar nisso. Os metaxú. Os metaxú formam a região do bem e do mal.
Se criarmos para nós mesmos intermediários na própria vida or-
gânica, não podemos perdê-los enquanto permanecermos vivos. Sim,
mas…
Nenhum homem deve ser privado de um único de seus interme-
diários. Será isso possível – quando as pessoas podem ter alguns que
são, realmente, mutuamente exclusivos? Por exemplo, um ser hu-
mano que funciona como intermediário para vários outros seres hu-
manos?
Podemos ser obrigados, finalmente – mas nunca é tarde – a re-
correr a considerações de quantidade. Quando uma escolha tem de

229
ser feita entre dois seres humanos, [escolher] aquele que provavel-
mente receberá o maior benefício (do ponto de vista dos intermediá-
rios). Isso, por sua vez, provavelmente será benéfico para um número
maior de seres humanos.
Ou existe alguma harmonia providencial? Parece que não. Re-
cusar-me a querer saber disso.
A menos que se seja um eremita que vive no mato e não de-
pende de nenhum ser humano para as necessidades da vida, é inútil
tentar se elevar acima dos intermediários, permanece na esfera do bem
e do mal pelas relações que estabelece com as das outras pessoas que
estão lá também. É impossível, portanto, que o problema do bem e
do mal desapareça no movimento de ascensão. (47-49)

Mândûkya Upanishad. Quatro estados.


Estado de vigília, consciência voltada para as coisas exteriores.
Sonhando, consciência voltada para as coisas interiores. Sono pro-
fundo, sem desejo ou sonho, consciência absorta em si mesma, cons-
ciente nem das coisas exteriores, nem interiores, nem das duas jun-
tas; nem consciente ou inconsciente, apenas consciente de si mesma
(???) – fora de alcance: o Atman.
Representado por A.U.M. e uma combinação dos 3. (50)

Tenho o direito de realizar uma ação apenas se puder realizá-la


sem me degradar. Sim, mas supõe que assim prejudicas os outros?
Mas, precisamente, saber (saber de toda a alma) que outros real-
mente existem constitui o que há de mais precioso e desejável.
Fecho-me na garrafa ao limitar meus esforços à luta contra os
fantasmas internos ou ao colocá-la em primeiro lugar. Esses fantas-
mas são apenas véus.
Níveis de leituras, leituras sobrepostas.

230
Por qual dispensação da Providência supomos que aquelas mi-
nhas ações que causam dano a outros (na forma de aflição) causam
dano a mim também (na forma de pecado)?
Minhas ações aumentam ou reduzem a espessura do véu que me
separa do universo e das outras pessoas. Como o tipo de movimento
que faço ao manusear uma ferramenta.
Devemos traduzir em atos, imediatamente se a oportunidade se
apresentar, tanto quanto possível (mas dentro de certos limites), os
vislumbres que a mente recebe da verdadeira existência do mundo e
dos homens. Tais ações representam o uso da bengala do cego.
Devemos nos abster, se possível, de qualquer ação naqueles mo-
mentos em que um véu espesso envolve a garrafa; espera por uma
oportunidade mais favorável, como quando queremos olhar uma es-
tátua grega. Ou ainda – segundo expediente – se possível, agir nesse
caso de acordo com os pensamentos que tivemos em melhores mo-
mentos, embora não estejam mais presentes na mente e que avance-
mos na escuridão, contra os ditames do nosso próprio coração, con-
tra as evidências diante de nós. Quando nenhuma forma de ação for
possível, devemos agir sabendo muito bem que estamos agindo de
forma errada e preparados para nos arrepender disso.
Vários tipos de pecados muito diferentes. Catálogo de tais?
Deste tipo – inconsciência completa. Participar com naturali-
dade e despreocupação em algum ato reconhecido de injustiça. Qual
o remédio?
Deste tipo – palavras faladas para si mesmo no exercício da vigi-
lância, caixa aberta, urso polar, pecado original, etc. – da natureza
das obsessões; atração exercida por algo proibido, mesmo que a pró-
pria pessoa se tenha proibido a si mesma dela. Remédio?
Deste tipo – impotência para encontrar em si mesmo uma fonte
de energia para a realização de ações que exigem energia. Além disso,

231
a sensação de que não se consegue. E, no entanto, a energia está, sem
dúvida, lá, se a pessoa souber reuni-la em si mesma, habilmente, de
forma a obter para si os motivos necessários. (Ociosidade, etc.) – Ou-
tro pecado: extrair energia de uma fonte inferior, à qual se confor-
mam os pensamentos. São espécies aparentadas a covardia diante do
tempo e permitir que o tempo flua sem uma resolução interferir num
de seus momentos. Relacionamento defeituoso com o tempo. Remé-
dio?
Deste tipo – mentir para si mesmo; adaptando sua ação às ne-
cessidades inerentes à preservação da vida física e do caráter indivi-
dual, adaptando seu pensamento a tal ação. Único remédio, consen-
timento real e perpétuo para a morte e para a perda de todos os bens
perecíveis, sem exceção.
Outros tipos?
É impossível pensarmos sem movimento. Consequentemente,
matamos em nós próprios pensamentos que não expressamos por
meio de ações, todas as vezes que é possível expressá-los. Uma vez que
o corpo em qualquer momento pode ter apenas uma única atitude,
cada um de nossos atos é um matador de pensamentos, pois cada
ação exclui um número infinito de outras ações e torna impossível
naquele momento particular que os pensamentos que lhes são cor-
respondentes alcance um estado de existência. Devemos abster-nos
de matar pensamentos que são preciosos, abster-nos de trazer ao
mundo pensamentos que são vis, baixos e contaminados pela irreali-
dade.
Tal e tal pensamento que implica um contato com a realidade.
Não consigo expressá-lo sem me prejudicar – ou seja, diminuindo
minha energia vital, prosperidade material, estima pessoal, chances
de..., de..., ou mesmo de colocar em perigo ou acabar com minha
vida. Devo pesar juntos esse dano e o que posso perder matando esse

232
pensamento específico e, tendo feito isso, agir.
E se for uma questão de fazer mal a outras pessoas? O mesmo se
aplica?
Devemos dar aos pensamentos reais uma existência real, manter
os pensamentos imaginários dentro dos limites da imaginação vazia.
Portanto, é sempre uma questão de leitura.
E se houver dois pensamentos reais? Devemos contemplá-los
juntos, pesá-los numa verdadeira balança e então agir.
Balança interna. Por qual arte pode ser tornar-se verdadeira?
A ação é como o elevador de uma aeronave. Mas será que só
consegue baixar ou não baixar, e não consegue subir? Talvez a última
só a atenção seja capaz de realizar?
(O mesmo se aplica ao uso da força em outras pessoas.)
Ações suscetíveis de tornarem verdadeira a balança interna. Co-
locarmo-nos o mais possível numa situação em que possa ser verda-
deira.
[Cf. Rousseau e testamentos jurídicos.]
“Não é o Atman que atua, é a natureza.” Cada ação realmente
ocorrida pode ser reduzida a um jogo de causas necessárias, sem dei-
xar nenhum resíduo que represente a participação nela do eu (tal-
vez?). Mas, ou entendeu esse jogo, ou então não entendeu.
Aquele que entendeu age de outra maneira. Várias combinações
de jogo.
Se Lawrence não tivesse ponderado na sua tenda…
O vento, a corrente, as ondas, o leme, as velas – por si só deter-
minam o progresso do navio. Mas aquele cujo timoneiro entendeu
move-se de outra forma através das águas.
Olhando para o navio, não podes afirmar com certeza que o
timoneiro entendeu, mas se surgirem certas circunstâncias, podes
afirmar com certeza que não entendeu.

233
Gita. A explicação talvez seja que não tem mais escolha. Os dois
exércitos estão enfrentando-se um ao outro. Sua responsabilidade
para com seu próprio povo o proíbe de deixá-los entregues ao destino
nas mãos do inimigo (porquê?). Seu desejo de não lutar é totalmente
irreal, não pode (não pode mais?) colidir com o real na forma de ação.
Numa dada situação, certos desejos (certos pensamentos) po-
dem, tomando a forma de ação, afetar o mundo; outros que não, mas
só podem ter consequências diferentes das pretendidas. (Por exem-
plo, não simplesmente não lutar, mas lutar mal.)
Procura exemplos (existem muitos).
Nunca deve haver qualquer deliberação exceto entre os primei-
ros. Os outros devem ser lançados de volta para o reino do imaginário
(reais apenas naquele lugar onde estão os desejos reais por trás de um
véu de falsidade). Mas então Retz: é o sinal de uma grande mente
saber distinguir “o extraordinário do impossível”.
As situações de que fala Retz, nas quais, diz ele, só te colocas por
culpa tua, mas nas quais, uma vez encontrando-te nelas, o que quer
que tentes fazer, só podes fazer o mal. O Gita tem, aparentemente, a
ver com uma situação desse tipo. Ele ensina que, mesmo em tal situ-
ação, é nela que reside a tua salvação, se, enquanto estiveres agindo,
colocas a ação abaixo de ti, e amas a Krishna.
Krishna dificilmente perde tempo provando a Arjuna que deve
lutar, porque antes que a conversa entre eles aconteça, não há dúvida
de que Arjuna lutará. Deliberação interior, da qual existem muitos
exemplos. O momento de escolha para Arjuna já passou. Qual é o
momento da escolha?
Quase sempre, o momento de deliberação não coincide com o
momento de escolha. Deliberamos quando já fizemos nossa escolha,
ou talvez, mais raramente, quando ainda não estamos em posição de
fazer uma escolha.

234
Não és tu, é a Natureza que mata essas pessoas. (Talvez tudo o
que tenha havido seja má direção?) Não devamos tirar daí a conclu-
são: tudo é permitido. (Porquê?)
Existem certas ações que podemos realizar sem desejar sucesso
e outras que não podemos realizar dessa forma? Este critério nos per-
mite distinguir entre as ações? Não é tão certo.
Podemos atribuir uma parcela à injustiça limitada, exigida pela
ordem social. Mas quão grande é a participação? Essa é toda a ques-
tão. (51-54)

Gita. Nota que o dharma, uma vez que depende da casta, e por-
tanto do nascimento, e portanto da encarnação anterior, depende de
uma escolha antecedente. Não é que a pessoa não tenha escolha, mas
que, se a pessoa se situar em determinado momento do tempo, não
terá mais escolha; é inútil sonhar fazer outra coisa; mas é bom elevar-
se acima do que se está fazendo no momento. Com isso escolhe-se,
para mais tarde, algo melhor.
O momento de piedade de Arjuna – pertence à ordem dos so-
nhos. Sua exibição de fraqueza antes de prosseguir matando é com-
parável à exibição de fraqueza ao se aproximar da morte. Num deter-
minado momento, não se está livre para fazer nada. E é preciso aceitar
essa necessidade interna; aceitar o que se é, em determinado mo-
mento, como um facto, até mesmo sua vergonha.
Teatro. O teatro deve tornar as necessidades externas e internas
sensíveis à mente.
Devemos orientar-nos, não para outro modo de vida, mas para
a morte. (56)

Gravidade.

235
Apenas a vertical dá significado aos ângulos. Direção por excelên-
cia.
E ainda assim a terra é redonda. Abraçar os dois factos em pen-
samento, ao mesmo tempo…
Gravidade, protótipo de todas as formas de restrição. (57)

Vida e morte de outros. Ficar feliz por existirem outros seres


pensantes além de mim mesma; forma essencial de graça. Desejar a
morte de um ser humano é rejeitar esta forma de graça (cf. Creonte).
– Mas ficar feliz também por ser mortal, por serem mortais; tanto
por mim como por eles, no mesmo grau. Nunca desejar a própria
morte, mas aceitá-la.
O suicídio só é lícito quando é aparente, quando há constrangi-
mento e se está plenamente consciente de tal constrangimento. Da
mesma forma no caso do uso da força. É restrição, não graça; prakrti,
não Atman.

Escolha ilusória. Quando pensamos que temos escolha, é por-


que estamos inconscientes, rodeados pela ilusão, e então somos ape-
nas marionetas. Deixamos de ser marionetas quando nos elevamos
acima da ilusão até à necessidade, mas então não há mais escolha;
determinada ação é imposta pela própria situação, claramente perce-
bida. A única escolha que resta é prosseguir para cima.
Browning não teve escolha.
Necessidade em ambos os casos, mas não do mesmo tipo.
Uma ação realizada desta forma funciona como uma alavanca.
É possível que conduza a melhores condições – nas quais o dever se
mistura menos com o mal. Apenas possível.
Não somos contaminados por ações das quais estamos ausentes

236
desta forma (desta forma, pois há outra forma de estar ausente), ape-
sar do facto de estarem misturadas com o mal.
Devemos igualmente estar ausentes do bem.
Age não por um determinado objeto, mas porque não podemos fa-
zer de outra forma.
Um verdadeiro equilíbrio: o corpo é o equilíbrio, pois a cada
momento só pode realizar uma ação. É um verdadeiro equilíbrio
quando a atenção é uniforme.
Manutenção da paz representa uma ação metódica sobre a ima-
ginação dos homens. Quando essa ação não foi realizada, a paz não
existe mais, e nosso desejo por ela é um desejo falso, a menos que
esteja situado naquela parte de nosso ser em que os desejos reais estão
envoltos em falsidade. A única questão é que atitude devemos assu-
mir a respeito. Essa atitude depende do carma.
É fácil cometer um erro aqui, assim como é fácil colocar a pala-
vra errada no ponto culminante de um poema; e o erro traz uma nova
forma de carma.
Aquele que está presente no mal que faz, estará presente tam-
bém no mal que sofre. Aquele que não está presente no mal que faz
estará, em certo sentido, ausente do mal que sofre, mesmo enquanto
suando gotas de sangue, implorando em vão e na agonia de ter sido
abandonado.
Sofrer o mal é atroz quando se está presente nele. Ovídio. In-
ferno.
O contrário também é verdade: quem está presente no mal que
sofre, estará presente também no mal que faz.
Devemos dedicar-nos mentalmente ao bem público da mesma
maneira que nos dedicamos mentalmente a uma figura geométrica.
Lawrence. Platão. Cidade verdadeira; não uma cidade de sonho (ci-
dade de pesadelo).

237
A mesma Necessidade que faz existir o mal, sem que possamos
culpar a Deus, também introduz o mal em todas as ações do homem
mais justo. (57-58)

“Não pensar no urso polar.” Qualquer pensamento que se im-


põe a si mesmo, que sempre regressa, pode servir de urso polar – se
é um pensamento desse tipo que se quer deixar de lado, e não pelo
contrário, ponderá-lo mais profundamente.
Assim, a dor, a humilhação, os golpes na autoestima, os senti-
mentos feridos – todos os vãos sofrimentos podem, por sua própria
vaidade, servir de urso polar, o que representa uma forma de usá-los.
As obsessões são necessárias para serem postas de lado (há um
ponto ótimo nesta conexão); é por isso que se cria uma obsessão di-
zendo: “Não penses no urso polar.” [Isso não altera o facto de que
devem ser evitados (?)]
Não precisamos ter medo de ficar sem um urso polar, e são dis-
tintos sem diferença – a angústia da alma que acompanha a cessação de
pensar em algo é o protótipo do bem.
Ilusão – Não é tanto que as coisas nos façam acreditar que são
reais, pois em certo sentido são reais. Mas elas fazem-nos acreditar
que são reais de uma forma diferente daquela que realmente são.
Em especial, fazem-nos acreditar que alguns existem em maior
ou menor grau do que outros.
Que todo o universo, desde o seixo nos meus pés até às estrelas
remotas, com tudo o que existe entre eles, exista para mim incessan-
temente tanto quanto Agnes para Arnolfo, ou o baú do tesouro para
Hárpago.
Segundo corpo – A bengala do cego é um exemplo; o baú do
tesouro de Hárpago é outro.
Que todo o universo se torne para mim um segundo corpo em

238
ambos os sentidos.
Mas só se consegue isso por meio de uma transformação metó-
dica de si mesmo.
É pela ação – um certo tipo de ação não imediata, exigindo um
aprendizado – que a bengala do cego se torna um prolongamento do
corpo.
É através do desejo (eros) que o baú do tesouro de Hárpago se
torna um prolongamento do corpo.
Desejo não saciado, insaciável por si mesmo. A impossibilidade
de saciá-lo é a sua verdade, a esperança de saciá-lo é a mentira. Coisas
belas fazem essa impossibilidade atingir nossos corações. Possuir todo
o universo e cada coisa como Hárpago o seu baú do tesouro, ao
mesmo tempo que permaneço por eles insaciável. Então, possuímos
a não-saciedade. (E ao mesmo tempo possuir todo o universo e cada
coisa como o capitão de um navio o seu navio.) A forma essencial de
não-saciedade consiste num contato com outra realidade, uma posse
de outra ordem.
Cada desejo, se lhe dermos nossa atenção, seja satisfeito (relati-
vamente) ou não, é um caminho que leva à não-saciedade. (59-60)

Passagem dupla da morte. Privação de semelhantes; privação do


ser separado, ausência de Deus.
Aqueles que matam o Atman. Aquele que deseja que o que é
não seja (Marco Aurélio). O que mais além disso? Todos os desejos
matam o Atman.
Shankara, ignorância: ligação entre as paixões, as afeições terre-
nas – exatamente como em Platão. Estes são os véus (nuvens) na au-
sência dos quais o Atman brilha de longe com seu próprio esplendor.
(61)

239
Mudança de nível. Não mais amor, mas outro tipo de amor; não
mais conhecimento, mas outro tipo de conhecimento, etc.
Isso ocorre porque num determinado nível o ser humano é li-
mitado. Por exemplo, ele é incapaz de conter mais do que um certo
número (por assim dizer) de noções físicas. Só ultrapassamos este li-
mite elevando-nos ou degradando-nos.
Da mesma forma, tudo o que diz respeito ao homem, conside-
rado a um certo nível, está sujeito a certo limite, e quem quiser ir
além desse limite deve elevar-se – ou então degradar-se.
Nós nos degradamos se prezarmos a quantidade. Ao apreender
com atenção tanto o nível quanto o limite, podemos furar um teto.
Poesia. Imagens e palavras que refletem o estado mental sem
imagens ou palavras. Música. Sons que refletem o estado mental sem
sons. Palavras e sons equivalentes ao silêncio.
A unidade de várias formas não é uma forma.
A apresentação de várias formas no mesmo objeto eleva o espec-
tador (o leitor) acima da forma.
Por esse meio alcançamos o sem forma que está acima da forma;
pois sempre existe o perigo de cair abaixo da forma.
O que está abaixo é como o que está acima – no sentido inverso.
Cada estado é um metaxú para um estado semelhante ao que está
abaixo do primeiro, apenas transposto.
É impossível conceber apenas o divino sem a necessidade, ou
apreendê-lo ou participar dele de qualquer outra forma.
Devemos buscar a causa divina tendo a felicidade como objeto,
e a causa necessária tendo a causa divina como objeto; reproduzir um
movimento que concebemos, tal como o concebemos.
Mas, no nível da arte, concebe-se uma ausência de movimento,
de atitude, e o movimento, a atitude, imita essa ausência. Mas de que
maneira?

240
Quando algo parece impossível de obter, por mais que se tente,
isso indica um limite insuperável nesse nível particular e a necessi-
dade de uma mudança de nível, uma rutura no teto; consequente-
mente, degrada-se quem tenta esgotar-se nesse nível. É melhor aceitar
o limite, contemplá-lo e saborear toda a sua amargura.
Mal. e R .: compartimentos estanques. Não devemos pesar tudo
na mesma balança; precisamos é de uma única balança. Grande ten-
tação é tirar algo da balança; resulta em injustiça. Não devemos reco-
nhecer as mesmas coisas em lugares diferentes, por causa da diferença
de nomes e formas; devemos elevar-nos acima dos nomes e formas.
(63-66)

O tempo, estritamente falando, não existe (exceto o presente,


como um limite), mas é aquilo a que estamos submetidos. Essa é a
nossa condição. Estamos sujeitos àquilo que não existe. Seja uma questão
de duração suportada passivamente – dor física, espera, arrependi-
mento, remorso, medo; ou de tempo ativamente manipulado – or-
dem, método, necessidade – em ambos os casos, aquilo a que estamos
sujeitos não existe de facto. Mas nossa sujeição existe. Estamos real-
mente presos por correntes irreais. O tempo, ele mesmo irreal, cobre
tudo, incluindo a nós mesmos, com um véu de irrealidade.
A analogia fundamental entre o mundo e o pensamento é a re-
lação entre o alto e o baixo dependendo da gravidade. A gravidade é
o exemplo notável de força – e existe, estritamente falando, algum
outro tipo? Tudo o que sugere um movimento ascendente sugere um
aumento em valor.
De um ponto elevado, ordena-se uma vasta extensão; lugares
que quem está na planície só consegue ver sucessivamente, quem está
nas alturas pode ver de relance, ao mesmo tempo. Isso é literalmente
verdade; não-literalmente também. Por qual coincidência?

241
A terceira dimensão também tem um caráter curioso de longo
alcance.
Energia é a capacidade de subir (mesmo uma bola na mesa, ao
cair, faria com que outra bola subisse).
Alavanca. Elevando enquanto abaixa. Talvez esta seja a única
forma de ascensão que nos foi dada.
Essas correspondências estão essencialmente relacionadas à be-
leza, mas de que maneira?
Gravidade na arquitetura, na escultura. Também a 3ª dimensão
– a 3ª dimensão na pintura – alto e baixo (e 3ª dimensão?) na música.
Escultura – cada coisa desce de acordo com a gravidade (pedra
fluida) e no entanto o todo sobe.
Luz na pintura, tornando sensível a 3ª dimensão.
“Degradação de energia”, este termo implica a analogia com a
oposição entre alto e baixo.
A gravidade é a restrição à qual estamos sujeitos, a cadeia; subir
é sobrenatural; o céu, onde nós não vamos.
Do céu veríamos todas as coisas, mas sem poder distinguir nada
(Taoistas).
Distância – significado da distância.
A espada é um instrumento simples (tal como é o prego), con-
centrando a energia para o golpe numa superfície extremamente pe-
quena (a lâmina); atacas de cima a baixo; a gravidade transformada
por um simples instrumento. Essa é a diferença entre o homem ar-
mado e o homem desarmado, Aquiles e Licão. E a alma sob gravidade,
o que acontece com ela? Como alguém em cima de uma rocha, que
tem medo de cair. Suspensão total do pensamento.
Velocidade, efeito da gravidade. (Mas e acerca da compressão,
elasticidade?)
Aquele que suspende a gravidade sobre outras pessoas tem uma

242
sensação de elevação. Ilusão de elevação. Falsa exaltação (poder, as-
sassinato, possessão sexual) – [história de T.]. Tentação de possuir to-
dos os mundos.
Gravidade e tempo – gravidade inseparável do tempo – de que
maneira?
Aplicação da noção de energia à vida humana, energia análoga
àquela que está relacionada à gravidade.
Analogia entre o mundo e os valores por meio da gravidade, o
que nos torna sensível a ordem dos valores. Se a ordem dos valores
não nos fosse sensível por analogia, não conseguiríamos concebê-la
de forma alguma.
Motivos baixos contêm mais energia do que os de cima (filas –
assim como é mais fácil esquecer algo sob o choque da dor ou do
prazer do que não “pensar no urso polar”, etc.). – Assim como au-
menta a energia cinética de um corpo em queda – devemos direcio-
nar de cima a energia dos motivos baixos; moldar os motivos baixos
de forma a nos levarem aonde queremos ir. Pressão nas rédeas ou no
leme – (rédeas, manas, cavalos, dez faculdades de sensação e de ação,
carro, corpo). Mas devemos saber que são eles que nos carregam.
O mundo é necessariamente tal que podemos conceber tudo o
que é mais puro por analogia.
Outra analogia com o mal: impureza, contaminação, mistura.
Impureza e baixeza. Pureza das estrelas, do céu. Pureza e vazio,
vazio e céu – nuvens e véu – [pureza da água] [água e luz].
Como aquele que é movido pela música mais elevada sem o sa-
ber. Como aquele que presta atenção à música.
No mundo interpretado simbolicamente, o sujeito não está au-
sente. (71-73)

No caso do homem – o amor tende a ir cada vez mais longe.

243
Mas há um limite. Quando o limite é ultrapassado, o amor trans-
forma-se em ódio – é necessário, para evitar tal mudança, que o amor
se transforme.
É a contemplação desse limite que o transforma. A ignorância
desse limite o transforma em ódio. (82)

O vazio é Deus, o vazio é primordial.


Isto é pleno, aquilo é pleno. (82)

Existe uma qualidade infinita no extermínio total de um povo.


Em certo sentido, é verdade, ele contém algo de desinteressado, visto
que não há saque, nem escravos, nem pessoa sujeita, nem benefici-
ada. Mas há uma espécie de onipotência, a destruição de séculos após
séculos num único momento.
“Por uma necessidade da natureza, todo ser, tanto quanto pode,
exerce todo o poder à sua disposição.” Terrível pronunciamento.
Em determinadas circunstâncias, um ser reage de forma a pre-
servar-se e expandir-se ao máximo. Não há escolha.
Ilusão fácil, confundir expansão com altura, porque em ambos
os casos há grandes espaços diante de nós.
Um amor profundo muda uma vida. Muda um grande número
de coisas superficiais. O que é profundo está relacionado com o que
é superficial, o que é elevado está relacionado ao que é baixo; o baixo
e o superficial estão no mesmo nível. Ele ama violentamente, mas de
forma baixa. Uma frase possível. Ele ama profundamente, mas de
forma baixa. Uma frase impossível.
Um dos vícios da metáfora freudiana do subconsciente. A re-
pressão é, na verdade, uma coisa excelente. O que é mau é a repressão
associada à mentira interior. Mandar os pensamentos maus para o
fundo do eu é retirar seu conteúdo maligno – mandá-los para o lugar

244
onde estão os desejos que são realidade. Mas mantemo-los à superfí-
cie enquanto os cobrirmos com um véu de mentiras. (83-84)

Valéry – “No seu ponto mais elevado, o amor é a determinação


de criar o ser que tomou por objeto.” (85)

Desejo e ilimitabilidade. Há sempre alguma ilimitabilidade no


desejo. Conquistar apenas o globo terrestre? Viver apenas cem anos?
Obter apenas 40% de lucro sobre o dinheiro investido?
O desejo é ilimitado por natureza, e isso é contrário à natureza,
porque o infinito não está no seu lugar certo ao nível do desejo. No
mundo dos objetos de desejo, que é o mundo manifestado, o infinito
não existe. (88)

Comunhão católica. Deus não se tornou carne apenas uma vez;


a cada dia ele torna-se matéria para dar-se ao homem e ser consumido
por ele. Inversamente, por meio do cansaço, da aflição, da morte, o
homem torna-se matéria e é consumido por Deus. Como recusar essa
reciprocidade?
[Na forma de trigo, devoramos o sol e, ao mesmo tempo, o espí-
rito humano.]
A chuva, sacrifício da verdadeira soma pelos deuses, passa para
a comida; assim, a divindade e o homem estão diariamente ligados
por um sacrifício recíproco. (Upanishads.)
Se os homens pudessem sentir continuamente as fadigas do tra-
balho e da vida como forma recíproca de comunhão... (99)

Saber-se limitado na medida em que se é diferente de Deus. A


dificuldade reside no “na-medida-que”. (99)

245
Relação, negação do absoluto. O desejo projeta a mente para o
absoluto como para o ilimitado.
O desejo é mau e enganoso; no entanto, sem desejo, não busca-
ríamos o verdadeiramente absoluto, o verdadeiramente ilimitado. Te-
mos de passar pelo caminho do desejo. Aflição daqueles seres que
estão privados pela fadiga daquela energia suplementar que é a fonte
do desejo.
Aflição também daqueles que estão cegos pelo desejo.
Devemos atrelar nosso desejo ao eixo dos polos. (100)

O movimento cessa com a transformação da energia mecânica


em calor. Da mesma maneira, o desejo e toda atividade dele proce-
dente cessa por meio da fadiga. O desejo é, portanto, contraditório,
ilimitado no seu objeto, limitado no seu princípio. Todos os homens
experimentam amargamente essa contradição a cada passo, e nunca
cessam de mentir de forma a ocultá-la de si mesmos.
Mentir é a forma que a mente humana tem de alçar voo diante
de uma contradição essencial e irreparável.
Tudo o que pela violência – pois aqui a violência é necessária –
nos obriga a olhar a contradição de frente, atua como remédio contra
a mentira – remédio sempre doloroso. Coisas belas, um quadro, uma
estátua, uma canção, um poema, tão obviamente eternas que ao pri-
meiro toque de beleza queremos nelas fixar nossa atenção para sem-
pre, mas sabemos de imediato que nos cansaremos delas; inesgotá-
veis, mas sabemos que a contemplação se esgota – e por qual mistério
quem que as faz, fazendo-as num tempo limitado, e com uma atenção
finita, consegue introduzir nelas o inesgotável? – Amor (Lucrécio) –
Morte.
Se alguém entende o uso da morte para o homem, deve enten-
der como ela deve ser submetida e como deve ser infligida.

246
O medo, tal como o desejo – que é para o desejo o que a dor é
para o prazer – contém o ilimitado – Abhaya, não-terror (não-angús-
tia), atributo de Brahman. Ou melhor, contém o absoluto, o falso
absoluto. O desejo contém uma ilusão de ser todo-poderoso; o medo,
a de uma impotência fundamental. Quando o desejo encontra o seu
limite, o medo aparece. Angústia, mistura de desejo e medo, na fome
por exemplo. O medo nos escravos de Plauto: estou morto, sou nada.
Negação por um ser de sua própria existência; isso também contém
uma contradição. Balançando miseravelmente entre desejo e medo.
O medo desaparece quando a energia interior (mecanismo de onde
procede o desejo) é novamente reunida. Seres que quase sempre an-
dam com medo; escravos.
Como colocar um ser humano frente a frente com a morte sem
assustá-lo? As pessoas têm mais medo da morte pela mão do homem
do que da morte na forma natural. É possível cercá-lo de formas que
o tornem menos amedrontado; transformá-la num cerimonial?
A visão da Necessidade é um remédio tanto para o desejo
quanto para o medo.
A morte deve parecer ao homem o resultado de um mecanismo
cego ou do carma. As expressões arbitrárias de vontade por parte de
outros homens aparecem como um mecanismo cego para aqueles
que sabem, não para aqueles que não sabem. É um crime engrossar
a ignorância de quem não sabe. A morte por violência, se for permi-
tida, deve ser apenas a própria violência autoinfligida, seja como re-
sultado de uma condenação judicial, ou então numa guerra quando
seu ataque é repelido.
As primeiras objeções formuladas por Krishna a Arjuna. Não se
deve realizar uma ação que, dadas as circunstâncias em que é reali-
zada, esteja fadada a não ser entendida por ninguém. Isso engrossa a
ignorância circundante. O significado de uma ação, como o sabor de

247
um poema, deve ser percebido.
Na sociedade civil, a morte penal, se a morte for usada como
punição, deve ser algo belo. Cerimônias religiosas seriam necessárias
para que isso acontecesse. E deve haver algo que faça sentir que o
homem que está sendo punido, ao receber a morte, realiza algo ele-
vado; contribui, tanto quanto pode para a situação em que se colo-
cou, para o estado ordenado da comunidade.
Que permaneça na sua cela até que ele próprio aceite morrer?
(100-101)

O extermínio como remédio, a crença em qualidades ocultas. A


crença de que podes suprimir a idolatria matando os idólatras. O que
realmente suprimes é tudo o que existe que seja único, precioso e
insubstituível…
Matar homens que não pensam como tu. Em última instância,
permaneces sozinho. Imitação da solidão de Deus; essa é a pior forma
de idolatria.
Moisés, Josué, Samuel. O ponto em questão era forjar, sem uma
conceção da Encarnação, um povo inteiro monoteísta, que pensa em
Deus na sua totalidade sem qualquer intermediário. Pensar em Deus,
e no entanto sem nenhuma “realização metafísica”, pois tal não é
concedida a um povo por inteiro. Pensar em Deus com manas. Esse
é um estado violento, contrário à natureza. Apenas a violência ex-
trema poderia conseguir atingi-lo. Por falta de metaxú, a espada de-
sempenhou o papel de metaxú; terror e expectativa, atos horríveis e
sangrentos e o fluir de leite e mel. Não havia possibilidade de ser
diferente. Haviam sido treinados pelos massacres que foram convo-
cados a realizar por aqueles que lhes foram infligidos pessoalmente.
Severidade e costumes licenciosos têm parte nesta história.
A relação de Deus com a sociedade civil, de Deus com o povo,

248
é um problema que foi levantado por todas as sociedades da antigui-
dade e que todas resolveram de maneiras diferentes. Problema que
guarda analogia com o papel do metaxú no caso do indivíduo. (102)

Os dois tipos de carma na Ilíada – pois a ira de Aquiles o impele


a uma ira maior. Mesmo no canto XXIV, ainda não se havia recupe-
rado, pois Príamo foge dele no meio da noite. Só a morte porá fim a
isso. Ainda assim, a certeza de que vai morrer tem um certo efeito
pacificador sobre ele.
A morte é a coisa mais preciosa que foi dada ao homem. É por
isso que a suprema impiedade é fazer uso dela de modo impróprio.
Morrer mal. Matar mal. (Mas como escapar ao mesmo tempo do sui-
cídio e do assassinato?) Depois da morte, amor. (103)

Brahd-Ar.-Up. I, 4, 2 – O que há para temer, quando se está sozi-


nho? Se apenas passando por Deus passamos do solipsismo ao co-
nhecimento da realidade, como em Descartes, onde pode o mal pe-
netrar? A não-dualidade é ao mesmo tempo não-terror, não-angústia.
Temos medo quando estamos sozinhos, mas é um medo equi-
vocado. O medo é de outra coisa. A solidão absoluta é sem terror,
quem me faria mal? Sem terror, sem angústia, paz, felicidade. (106)

Ama teus inimigos, os ímpios, os ingratos, etc., como teu Pai ce-
lestial (não de outra maneira); compara com a não-ação chinesa.
Santo Tomás sobre o sofrimento de Cristo. Não procurar evitar
sofrer, ou sofrer menos (na aflição), mas procurar não ser afetado
pelo sofrimento.
“Todo aquele que faz coisas medíocres odeia a luz.” Não se trata do
mal. Trata-se do que é insignificante. Quem se ocupa com coisas me-
díocres odeia a luz.

249
Um acordo comum entre vários homens contém um senti-
mento de realidade. Também contém um sentimento de dever. Qual-
quer divergência com respeito a tal acordo comum parece ser da na-
tureza de um pecado. (106-108)

LEITURA. – Mal, outra leitura. Passagem do mal para o bem,


como quando se vira um livro para o outro lado.
No plano não-sobrenatural, a sociedade é o que nos separa do
mal (de certas formas de mal) como por uma barreira; uma sociedade
de criminosos ou pessoas perversas, mesmo que composta de apenas
alguns homens, abole essa barreira.
Mas o que induz as pessoas a entrarem em tal sociedade? Ou
necessidade, ou negligência, ou, mais frequentemente, uma mistura
das duas; não reconhecem que se estão comprometendo, pois não
sabem que, à parte do sobrenatural, só a sociedade evita que alguém
caia naturalmente nas formas mais horríveis de vício ou crime. Não
sabem que vão ser transformadas, pois não sabem até que ponto se
estende nelas o domínio daquilo que pode ser modificado pelo am-
biente externo. Sempre se comprometem sem saber.
Até mesmo permitir que a imaginação se concentre em certas
coisas como sendo possíveis (o que é bem diferente de formar uma
conceção clara de sua possibilidade, um elemento essencial no caso
da virtude) é já ter se comprometido. A sua causa é a curiosidade.
Devemos recusar-nos a permitir certos pensamentos; não devemos
pensar sobre. As pessoas supõem que o pensamento não as compro-
mete, mas por si só compromete, e a licenciosidade de pensamento
contém todas as formas de licenciosidade. Não pensar sobre – facul-
dade suprema. Pureza, uma virtude negativa. Se aquilo que é mais
elevado só pode ser expresso na nossa língua por meio da negação,

250
da mesma forma só podemos imitá-la de maneira negativa. Se, ha-
vendo permitido que a nossa imaginação se demorasse em algo mau,
nos encontrássemos com outros homens que tornassem essa coisa
objetiva por meio de suas palavras e ações (quando já se tivesse en-
trado em relações sociais com eles) e, assim, se abolisse a barreira er-
guida pela sociedade, estaríamos já quase perdidos. E o que é mais
fácil? Se não há um qualquer impedimento repentino; quando vês a
fosso, já nele caíste. No caso de Bem, é o contrário; vês o fosso no
momento em que tens de pular, no momento de separação e angús-
tia. Não se cai no Bem. A palavra “baixeza” expressa essa propriedade
do mal.
Curiosidade e desejo de poder – rajas; tendência de se alargar a
si mesmo. Parece inocente. O mal não aparece no movimento do
pensamento que está na origem do mal. Permitir que a imaginação
se detenha no que é mau implica uma espécie de covardia; espera-se
receber prazer, conhecimento e aumento por meio do irreal. (Há tam-
bém o facto de que não pensar sobre é uma arte, e muito pouco co-
nhecida.)
Mesmo quando realizado, o mal retém essa marca característica
de irrealidade; de onde talvez venha a simplicidade dos criminosos;
tudo é simples no estado de sonho. (Simplicidade que forma um pen-
dente àquilo que caracteriza a virtude suprema.)
[Marca característica do fluxo do tempo no mal, a ser estudada. Ins-
tabilidade de criminosos e prostitutas, associada a obsessões.]
Conceber a noção e a possibilidade do mal sem imaginar o mal;
este é o significado por trás de Ulisses amarrado e sua tripulação com
as orelhas cheias de cera.
Não é esse o caso (?) com o Bem. Se o concebemos claramente,
e concebemos claramente a sua possibilidade, nós o realizamos. Essa
é a graça concedida ao homem.

251
Essa diferença constitui um critério do Bem (?), critério aplicável apenas
se soubermos o que é conceber sem imaginar. LEITURAS. (109-111)

Artistas – um ser humano dotado de uma arte particular atinge


um grau de excelência exatamente na proporção da sua capacidade
de não pensar sobre.
O mesmo se aplica a esta arte que é vida.
(Gilles – não-pensar-sobre parece-lhe muito difícil, e aparece
como a sua única possibilidade de salvação, pois acontece que em
várias ocasiões surgem desgraças que correspondem aos seus próprios
maus pensamentos. Mas por qual angústia de espírito a alcança ele
no final? Pois tem de passar vários dias sem maus pensamentos.)
Se concebes claramente duas formas possíveis de ação, com a mente
suspensa por um momento entre os duas, num ponto de apoio mais elevado,
aquela que realizas representa o Bem (se as concebes claramente – de um
número infinito de pontos de vista de uma vez – e enquanto possível,
realmente possível).
Obsessões – sua recorrência. História de Moussa. O que quer
que deixe uma marca no ser humano provoca reações e a vontade de
autopreservação passa pela busca de circunstâncias que correspon-
dam a essas reações, mesmo que isso represente aflição. A marca dei-
xada no homem pelo que faz e pelo que suporta – qual é a sua natu-
reza?
O homem só é real, em seu ser mais íntimo, quando forma o
elo de ligação entre o passado e o futuro. Quem o priva de um destes
(ou de ambos), causa-lhe o maior dano possível. Abolir completa-
mente o que foi significa: desenraizamento, degradação social, escra-
vidão; e, quanto ao futuro, sentença de morte. (E, no entanto, a pos-
sibilidade de ambos acontecerem representa um bem.) – Eliminar
séculos passados na destruição de uma cidade inteira, é ainda mais

252
horrível.
A possibilidade do mal é um bem.
Possibilidade, noção insondável. (111-112)

Jaffier. Gilles. É preciso alcançar esse ponto que nos dá por um


momento a sensação de que é o bem que é anormal. E de facto, esse
é realmente o caso, neste mundo. Não temos consciência disso; dei-
xemos que a arte nos dê consciência dele. Anormal, mas possível e
constituindo o bem.
É preciso também fazer o mal parecer vulgar, monótono, seco e
enfadonho. (113)

Assim que se pratica o mal, o mal surge como uma espécie de


dever. A maioria das pessoas tem o sentimento de dever no caso de
certas coisas más e de certas coisas boas. O mesmo homem sente que
é um dever vender pelo mais caro que puder e não roubar, etc. – para
essas pessoas, o bem está ao mesmo nível do mal, um bem privado
de luz – o tipo de mal que não é depravado, mas é sempre capaz de
se tornar tal.
Se for verdade que o mesmo sofrimento é muito mais difícil de
suportar por um motivo elevado do que por um motivo baixo – as
pessoas que ficavam imóveis, da 1h às 8h, no inverno, teriam achado
muito difícil fazê-lo para salvar uma vida humana ou para o benefício
do país; faziam isso mais facilmente por causa de um ovo – uma vir-
tude situada em posição inferior talvez seja, de certos pontos de vista,
mais capaz de enfrentar dificuldades, tentações e infortúnios do que
uma virtude situada em posição elevada. Isso é evidente no caso da
coragem. Soldados de Napoleão. (Daí o uso de métodos cruéis para
manter ou elevar o moral dos soldados.) A não esquecer na conexão
com a falha moral.

253
É uma instância particular da lei que geralmente coloca a força do lado
do que é baixo. A gravidade é como que um símbolo disso.
Duas forças reinam sobre o universo, luz e gravidade. Primeiro
de tudo, sobre o universo, na medida em que é matéria.
“Deus fez tudo usando quantidade, gravidade e proporção.”
As energias luminosa e mecânica não se transformam uma na outra
exceto por meio do alimento (a ser estudado). (114)

Problemas práticos (casos de consciência); é preferível resolvê-


los em lazer antes que se surjam, do que no escuro quando o tempo
é curto; mas melhor é contemplá-los de antemão e resolvê-los
quando, de facto, surgirem, desde que se saiba então manter uma
pureza e uma clareza interiores; pois só assim se pensa neles comple-
tamente.
Tudo o que é ato da inteligência é intuição. (118)

Renúncia. Renúncia de bens materiais; mas não são essas algu-


mas das condições para obter certos bens espirituais? Será que pensa-
mos da mesma maneira quando estamos com fome, exaustos ou hu-
milhados e nenhum respeito nos é prestado? Devemos então renun-
ciar também a esses bens espirituais. O que resta quando renuncia-
mos a tudo que depende de coisas externas? Nada, talvez? Isso signi-
fica renunciar realmente a si mesmo.
Nudez espiritual.
Nada sou.
Tudo sou.
Verdades correlativas.
Humildade com o objetivo de assimilação a Deus; qual o orgu-
lho não fica lá em baixo? Não suporto ser menos do que Deus; mas,

254
nesse caso, tenho de me tornar nada; pois tudo aquilo que sou é in-
finitamente menos do que Deus. (120)

Um conjunto é saudável se os efeitos que resultam automatica-


mente de um desequilíbrio são tais que reparam (ou compensam) o
desequilíbrio; é enfermo, se forem de tal ordem que o agravem.
Condição de existência de um estado de equilíbrio na duração.
A noção de condição de existência combina aquelas de causali-
dade e finalidade; representa o que há de inteligível em cada uma
delas. Sempre aplicável.
A noção de finalidade tem uma aplicação universal, pois possui um
significado com respeito a cada dado conjunto. Um braço tem uma finali-
dade com respeito ao conjunto de pontos materiais que constituem o corpo
humano. Uma corrente presa aos pés de um escravo não tem finalidade em
relação a este escravo, mas tem uma em relação a um conjunto maior, uma
sociedade, o que não tem finalidade em relação a um determinado conjunto
tem finalidade em relação a outro (rã e parasita); pois tudo produz efeitos,
cada coisa é uma condição de existência com respeito a outras coisas que se
encaixam numa ordem. A noção de finalidade é reduzida às noções de ordem
e condição de existência.
Ora, a composição de um conjunto a partir das partes é algo
puramente humano. Na natureza, o conjunto não é posterior às par-
tes – nem anterior a elas; tal coisa nem mesmo faz sentido. A condição
de existência contém justamente essa simultaneidade, cortando atra-
vés uma posterioridade e uma anterioridade ultrapassadas e repudia-
das. (121)

Mecânica humana: equilíbrio de forças.


É perigoso dar a um ser humano, uma causa, etc., mais do que
se pode naturalmente e sem esforço. Se esse limite for ultrapassado,

255
corre-se o risco de vir a odiá-los. Também de tornar-se dependente
deles, pois espera-se um retorno equivalente ao que foi dado em ex-
cesso – um retorno equivalente que só pode vir da pessoa ou objeto
que recebe tal presente. (Desse modo, a ingratidão prejudica muito o
benfeitor.) A pessoa a quem se dá acaba por tornar-se um tirano, pois
se lhe dá mais e mais na esperança de finalmente terminar recebendo
em troca – algo que nunca acontece. Precisamos sempre receber um
equivalente do que damos.
Esse limite nunca deve ser ultrapassado; devemos trabalhar so-
bre nós mesmos de forma a nunca o ultrapassar.
Como?
Lei do trabalho indireto sobre nós mesmos.
Mecânica humana. Quem sofre procura comunicar o seu sofri-
mento – seja maltratando o outro ou provocando pena – de forma a
diminuí-lo, e realmente o diminui dessa forma. Se for sobre alguém
absolutamente inferior, de quem ninguém se compadece, que não
tem poder para maltratar ninguém (se não tem filho ou algum ser
humano que o ame), seu sofrimento permanece dentro dele e enve-
nena sua existência.
Isto é tão irresistível quanto a gravidade. Como escapar disso?
Como escapar daquilo que se assemelha à gravidade? (122)

Noite escura – aplicações em todos os domínios.


Atividade não-ativa – não-intervenção, id.
Filas de comida – a mesma ação é mais fácil de realizar se o mo-
tivo for baixo do que se for elevado – motivos baixos contêm mais
energia do que os elevados.
Problema: como transferir para os motivos elevados a energia
contida nos baixos? (122)

256
Noite escura – aplicações em todos os domínios.
Atividade não-ativa – não-intervenção, id.
Filas de comida – a mesma ação é mais fácil de realizar se o mo-
tivo for baixo do que se for elevado – motivos baixos contêm mais
energia do que os elevados.
Problema: como transferir para os motivos elevados a energia
contida nos baixos?
Motor imóvel, atividade não-ativa. A existência, a um certo nível
(particularmente social), de um ser que não age –
[Tolstoi, Guerra e Paz – aristocracia inglesa – dama de amor ca-
valheiresco...].
O homem precisa ter um objeto fora de si próprio. Os sentimen-
tos humanos, os únicos que constituem motivos, estão todos voltados
para o exterior.
O que é um egoísta?
O eu que está fora de mim: o Atman.
Ter o eu por objeto, um eu muito baixo ou um eu muito elevado
(não é o mesmo eu).
A força está naturalmente em baixo, em direção ao inferior; gra-
vidade.
O aparente está em baixo (lisonja vulgar, Célimène, H., etc.).
Orgulhamo-nos sempre daquilo que nos pode ser privado pelas
circunstâncias. Portanto, o orgulho é mentira. Na apreensão dessa
mentira consiste a virtude da humildade. (Nudez de espírito.)
Só os dons da graça escapam ao poder das circunstâncias, e de
tais dons é impossível se orgulhar – pelo menos no momento em que
são recebidos.
Devemos olhar para as nossas próprias virtudes como sendo ape-
nas o produto das circunstâncias e sua história passada, que não nos
pertence mais.

257
Nossas deficiências também, o que não diminui o sentimento
pessoal de deficiência, mas, pelo contrário, o torna mais agudo.
Orgulho, crença em qualidades ocultas.
Crença de que possuímos direitos, id. – Como acreditar em tal
coisa num mundo em que tudo é capaz de nos matar? Isso é esquecer
que os homens fazem parte do universo.
Transposição (transposições indefinidas desse tipo); crença de
que se está subindo cada vez mais alto porque, embora preservando
as mesmas tendências inferiores (por exemplo, o desejo de se destacar
sobre outras pessoas), se lhes atribuí objetivos elevados.
(Pelo contrário, avançaria mais alto atribuindo tendências eleva-
das a objetivos inferiores. Leitura.)
Existem certas formas de esforço que têm o efeito contrário ao
objetivo almejado (por exemplo, mulheres piedosas, mas amargura-
das, falso ascetismo, certos tipos de autossacrifício, etc.). Existem ou-
tras formas que são sempre úteis, mesmo que não tenham sucesso.
Como as distinguir?
Temos talvez aquelas que vêm acompanhadas de uma negação
(falsa) da miséria interior, enquanto no caso das outras a atenção está
continuamente fixada na distância que separa aquilo que se é daquilo
que se ama.
Tal e tal coisa tem de ser feita. Mas onde podemos encontrar a
energia para essa tarefa? Uma ação virtuosa pode degradar-se se não
houver energia disponível no mesmo nível.
Portanto, conforme o caso particular: ou não a realizar (se é que
se pode sem causar dano irreparável), ou então aceitar a degradação.
O objeto de uma ação e o nível de energia que o alimenta – duas coisas
distintas.
Recompensa.

258
Um parapeito atingindo apenas a altura da cintura; uma deco-
ração. Importância dessas coisas. A imaginação, fornecedora ou ladra
de energia: de energia real.
Fazer uso sistemático para si mesmo dessa qualidade, a fim de
levar-se a fazer o que se quer. Mas como?
Necessidade de agradecimento demonstrada pelos cozinheiros.
Sempre precisamos receber de uma forma ou de outra o equivalente do
que gastamos.
Uma recompensa puramente imaginária (um sorriso de Luís
XIV) é o equivalente exato do que foi gasto, pois tem exatamente o
mesmo valor daquilo que foi gasto – ao contrário das verdadeiras re-
compensas que, como tais, salvo por acaso, estão acima ou abaixo.
Consequentemente, só as vantagens imaginárias fornecem a energia
necessária para esforços ilimitados. – Mas é preciso que Luís XIV re-
almente sorria; pois se não sorrir, privação indescritível. [Leitura] –
(Um rei só pode pagar recompensas que são, na sua maioria, imagi-
nárias, caso contrário, ele se tornaria insolvente.)
Forma equivalente na religião a certo nível. Na falta do sorriso
de Luís XIV, fabricamos para nós um Deus que nos sorri.
Ou ainda, nós nos elogiamos. Deve haver uma recompensa equi-
valente. Tão inevitável quanto a gravidade.
Desapego dos frutos da ação. Escapar dessa fatalidade. Como
realizá-la?
Agir não por um determinado objeto, mas como o resultado de
uma certa necessidade. Sou incapaz de fazer de outra forma. Isso não
é ação, mas uma espécie de passividade. Ação não-ativa.
Em certo sentido o escravo serve como modelo. (O mais baixo…
O mais alto…; sempre a mesma lei.) Em certo sentido a matéria serve
como um modelo.
Transportar os motivos de nossas ações para fora, fora de nós

259
mesmos. Ser empurrado. Para tanto, é necessário realmente transfor-
mar em nós a imaginação. Como conseguimos isso?
Isso é o que os santos entendem por obediência.
A subordinação praticada nas ordens religiosas é apenas a sua
imagem.
A imaginação é algo real. Em certo sentido, a realidade principal. Mas
na medida em que é imaginação.
Água dos Taoistas.
Atuar no nível do atual grau de virtude, ou mesmo um pouco
mais abaixo, não tentar ultrapassá-lo; mas com esta única condição,
não fazer ou deixar de fazer nada que possa comprometer o futuro.
Frequentemente muito difícil; mas esta conceção, se a considerarmos
com atenção, eleva por si só (contém uma força?).
Caso contrário, ao tentar ir além desse nível, recorrerá necessa-
riamente a uma fonte inferior de energia (reversão).
Os motivos absolutamente puros aparecem como externos (ou
os mais vis – sempre a mesma lei).
Agir, ou abster-se de agir, para outros ou para si mesmo no fu-
turo, não para si mesmo no presente.
Tempo. Que recursos contém. Deve ser elaborado um balanço
deles.
Buscar o que é absolutamente bom, não o que é bom de tal e
tal ponto de vista e mau de outro. Apenas uma coisa: uma certa
forma de atenção – não tem efeitos imediatos; daí as “noites escuras”
e as dádivas gratuitas.
A intuição sendo imediata só pode ser precedida por uma noite es-
cura, ao contrário do pensamento discursivo.
Tudo o que é ilimitado é mau [cf. definição de pecado dada a Mme
P .: colocar o infinito no desejo ou na busca do prazer]. Inúmeras
aplicações. Anotar algumas delas. (122-125)

260
Reversões. Desconsideração por si enquanto considera o grande
objeto ao qual se devota como sendo tudo. Estado (Richelieu), Deus
– ou um ser amado – etc., etc. Isso pode significar: consideração por
si em tudo. Elevação aparente, que de facto consiste de uma licenci-
osidade absoluta concedida a motivos inferiores. (Cruzadas, exem-
plos mais vis de guerra) [Ugolino] – outros exemplos?
Correlação em certos casos (precisa ser definida) entre elevação e bai-
xeza; ou melhor, sempre, mas de tipos diferentes; precisa ser definida, distin-
guir, descobrir exemplos.
(Observar o nível onde se coloca o infinito. Se o colocarmos no
nível adequado apenas para o finito, não importa muito que nome
lhe dermos.)
[Conceção de Th. no que diz respeito a mim, tu, ele – em certo
sentido, sim. Em certo sentido, é o contrário. Em que sentido? Casos
análogos?]
[Em certo sentido, dois seres são idênticos apenas em Deus; em
certo sentido, Deus forma a distância insuperável entre eles (o res-
peito).]
O pecado em mim diz “eu”.
Ser apenas um intermediário entre a terra não cultivada e o campo
arado, entre os dados de um problema e sua solução, entre a página em
branco e o poema, entre o desgraçado de estômago vazio e o desgraçado de
estômago cheio.
É a imagem que é bela. É o pão que sabe bem; a água que é
límpida. É o universo que é um.
Falso problema, mas que ao mesmo tempo tem um significado
– mas outro significado… – como o problema da presença real na
Eucaristia. O verdadeiro significado do problema está relacionado à
qualidade da atenção – (como no caso da presença real).

261
(Como reconhecemos esses problemas? E como reconhecemos
as contradições que são verdadeiras consideradas em conjunto como
distintas daquelas que se excluem mutuamente?)
Eu sou tudo. Mas esse eu particular é Deus – e não é um eu.
O mal causa a distinção, torna impossível que Deus seja equiva-
lente a tudo.
É a minha miséria que faz com que eu seja eu. É a miséria do
universo que faz com que, em certo sentido, Deus seja eu (ou seja,
uma pessoa).
Se digo que 7 + 8 = 16, estou enganada; de certa forma, faço
com que 7 + 8 = 15.
Um novo teorema matemático; um belo verso; reflexos desta
grande verdade.
Estou ausente de tudo o que é verdadeiro, belo e bom.
Eu peco.
E, no entanto, ao considerar o pecado, na ordem do mundo,
sob o aspeto em que é um bem, não sou eu.
[Noutro sentido, ao vê-lo como um mal, não sou eu, pois eu o
condeno; mas a outra forma de expressão é a mais verdadeira.]
Existem dois tipos de ateísmo, um dos quais é a purificação da
noção de Deus.
Muitos casos semelhantes: encontrar exemplos.
Talvez tudo o que é mau tenha um outro aspeto, que é uma purificação
no curso do progresso para o bem, e um terceiro que é o bem superior (cf.
acima). Devemos distinguir cuidadosamente os três aspetos, pois é muito pe-
rigoso para o pensamento e para a conduta efetiva da vida confundi-los.
(Exemplos?)
Aquilo que é o oposto direto de um mal nunca (talvez) pertence
à ordem do bem superior. E com frequência, dificilmente será supe-
rior ao mal.

262
Porquê? (São dadas frequentemente más razões para isso.)
Exemplos: roubo e respeito burguês pela propriedade, adultério
e a “mulher respeitável”, poupanças bancárias e esbanjamento, o es-
pírito conservador burguês e o espírito revolucionário (promotor de
guerra civil), chauvinista e derrotista, etc. – falso acréscimo e acrés-
cimo por regra…, mentira e “sinceridade”…
Não é o bem que o mal viola, pois o bem é inviolável: só um
bem degradado pode ser violado.
Mas essa não é a verdadeira razão. O bem é essencialmente dife-
rente do mal. O mal é multifacetado e fragmentário, o bem é um; o
mal é aparente, o bem é misterioso; o mal consiste na ação, o bem na
não-ação ou na ação-inativa, etc. – O bem considerado no nível do
mal e contra ele mensurado como um oposto contra outro é o bem
da ordem do código penal. Acima, há um bem que, em certo sentido,
tem mais semelhança com o mal do que com esta forma inferior do
bem – (mas talvez haja ainda mais acima um bem que, em certo sen-
tido, tem uma semelhança com esta forma inferior do bem?) – isso
abre o caminho para muita demagogia e muitos paradoxos entedian-
tes.
O bem que é definido da maneira como se define o mal deve
ser rejeitado. O mal o rejeita. Mas a maneira como ele o rejeita é má.
[Casos de contraditórios verdadeiros: Deus existe; Deus não
existe. Onde está o problema? Sem incerteza alguma. Estou absoluta-
mente certa de que Deus existe, no sentido de que estou absoluta-
mente certa de que meu amor não é ilusório. Estou absolutamente
certa de que Deus não existe, no sentido de que estou absolutamente
certa de que não há nada real que se assemelhe ao que sou capaz de
conceber ao pronunciar esse nome, visto que não sou capaz de con-
ceber Deus – mas essa coisa que eu não consigo conceber não é uma
ilusão – esta impossibilidade me está mais imediatamente presente

263
do que o sentimento de minha própria existência pessoal.]
Ser e ter – o homem não possui o ser, só possui o ter. O ser do
homem está situado atrás da cortina, do lado sobrenatural. O que ele
é capaz de saber sobre si mesmo é apenas o que lhe é disponibilizado
pelas circunstâncias. O eu está escondido no meu caso (e no de outras
pessoas): está do lado de Deus… está em Deus… é Deus (Atman). Ter
orgulho é esquecer-se que se é Deus… A cortina – isso é a miséria
humana: havia uma cortina mesmo no caso de Cristo.
Existem duas formas de miséria que devemos receber na nossa consciên-
cia, aquela que faz com que estejamos tão longe de Cristo (e, em menor grau,
dos santos) e aquela que compartilhamos em comum com Cristo – miséria
humana. Mas as duas estão relacionados: a primeira, quando considerada
de forma suficientemente penetrante, reduz-se à segunda. Entendê-las e senti-
las como idênticas é ser santo. (?)
Nada me pertence, exceto minha miséria.
Nada me pertence, até mesmo minha miséria; pertence à minha
carne.
Se alguém entende isso (se sabe como ensiná-la ao corpo [Mme
S.] – mas como?), pode suportar o sofrimento sem desejar o alívio, a
fome sem desejar comer, etc. [Chegou ao lugar onde “os desejos são
realidade”.] Humilhação sem desejar honra.
Tendência de espalhar o mal fora de nós; ainda a tenho. Os seres
humanos e as coisas não são suficientemente sagradas para mim –
que eu nunca contamine nada, mesmo que me transforme total-
mente em lama. Nunca contaminar nada, mesmo em pensamento.
Eu não destruiria, mesmo nos piores momentos, uma estátua grega
ou um afresco de Giotto; (se Alá quiser!) – por que então qualquer
outra coisa? Por que, por exemplo, um instante na vida de um ser
humano que poderia ser feliz por um instante?
Como escapar desse efeito da gravidade? Deve-se procurar um

264
método.
Localizar em si mesmo o sofrimento físico ou moral. (A pessoa
sofre mais, inevitavelmente.) Podemos fazer isso?
…“Eu, eu não sou assim.” Devíamos segurar-nos em reações
desse tipo.
Treinamos o corpo através do sofrimento. Cada vez que te pegas
numa dessas desgraças, se isso te faz sofrer, o corpo aprende alguma
coisa. Só tens de fixar nele tua atenção e sofrer com isso, não se enri-
jecer e tomar decisões, um álibi que diminui o sofrimento e conse-
quentemente o efeito do treinamento. A atenção deve estar sempre
voltada para o objeto (neste caso, a culpa), nunca para o eu (arqueiro
dos Taoistas); ela vem do eu – a única coisa real que podemos fazer
depois de cometer uma falha é contemplá-la; todo o enrijecimento é
imaginário. Se te punes por ela, que seja apenas para contemplá-la
com uma forma mais completa de atenção.
Se sentisse com maior intensidade que cada uma das minhas
pequenas falhas um dia seriam punidas, em circunstâncias decisivas,
por uma grande falha de natureza semelhante – nunca cometeria ne-
nhuma. (125-129)

Gravidade – o efeito que a posição na escala social tem sobre a


imaginação dos homens é quase sem exceção (ou, em certo sentido,
completamente?) irresistível como a gravidade – o mesmo é verda-
deiro para as relações de dependência.
Assim, a gratidão devida (considerada devida) por algum favor
recebido é geralmente inversamente proporcional a esse favor, por-
que os grandes favores elevam na escala social, enquanto que os pe-
quenos apenas fazem descer. Assim, acontece com um homem que,
embora sem importância, é amigo pessoal do Primeiro-Ministro e
que, ao colocar certo político em contacto com ele, faz com que esse

265
político se torne ministro; que, além disso, encontra para alguma tra-
balhadora pobre algumas horas de trabalho duro e mal pago como
faxineira. Ele espera que a faxineira lhe mostre – e muitas vezes ela o
fará – sinais de respeito e gratidão infinitamente maiores do que o
ministro; enquanto que em relação a este último dificilmente esca-
pará da posição de alguém que tem uma obrigação. [O ministro pre-
cisa apenas colocar seu nome na lista da Legião de Honra, e essa é a
posição em que ficará. Ou, melhor ainda, se isso não acontecer, vive
na esperança de que aconteça.] Da mesma maneira, esperamos sinais
de gratidão muito maiores por um presente de seis pence do que por
um empréstimo (mesmo quando não pago) de sessenta libras, porque
damos apenas seis pence a uma pessoa necessitada.
Devo procurar exemplos autênticos.
Todos os homens estão sujeitos à gravidade, apesar de, no caso
de certos sábios ou santos, ouvirmos contos, verdadeiros ou não, de
levitação ou de caminhar sobre as águas.
O mesmo é verdade no caso da gravidade moral, facto esse, geralmente,
ignorado ou esquecido. (129)

Ordem do mundo. Macrocosmo e microcosmo (amor ao des-


tino, ponte entre os dois). Um universo ordenado é uma condição de
existência para um corpo ordenado, e um corpo ordenado para um
espírito unido à carne.
Não só pondero sobre o universo que me oprime, mas também
o amo.
Duas maneiras de renunciar aos bens materiais.
Negá-los a si mesmo em vista de algum bem espiritual.
Conceber e senti-los como condições de bens espirituais (exem-
plo, fome, cansaço, humilhação, etc., turvam a inteligência e atrapa-
lham a meditação) e, ainda assim, renunciar a eles.

266
Apena esta segunda espécie de renúncia é nudez de espírito.
Na realidade, os bens materiais dificilmente seriam perigosos se
aparecessem por si próprios e não ligados aos bens espirituais.
Renunciar a tudo que não seja graça e não desejar a graça. (130)

Através da humildade – enquanto se considera um nada – assi-


milar-se a Deus. Através do orgulho – idolatrando-se a si mesmo –
rebaixar-se ao nada.
Por meio de uma devoção total a algum grande objeto (inclu-
indo a Deus), dar aos motivos inferiores licença completa dentro de
si mesmo.
Mediante a contemplação da distância infinita entre si mesmo
e o que é grande, fazer de si (o eu) um instrumento de grandeza. (131)

Se alguém de repente descobre em si mesmo sentimentos de au-


tossatisfação sobre certas ações boas suas (por exemplo, dar, restrin-
gir-se, etc.), que pare de realizá-las até novo aviso.
Genialidade é – talvez – nada mais do que a habilidade de passar
por “noites escuras”. Aqueles que não têm nenhuma, quando estão
à beira da noite escura, ficam desanimados e dizem a si mesmos: não
consigo; não fui feito para isto; tudo me é incompreensível.
(O mesmo acontece com aqueles que dizem: eu gosto de poesia,
mas cada vez que tentei escrever alguma, era sempre tão má que me
deixou doente.)
É por isso que o talento é geralmente – quase sempre – na prá-
tica sempre – uma condição de genialidade. Já ter igualado ou ultra-
passado os melhores representantes em qualquer ramo particular (o
melhor de seus contemporâneos) antes de chegar à noite escura é
uma defesa poderosa contra a crença de que alguém é incapaz e con-
tra o desânimo. (131)

267
O tempo leva-nos sempre para onde não queremos ir.
Amar o tempo. (131)

Sociedade – os fenômenos sociais estão fora do alcance da inte-


ligência humana. A mente humana é, por sua natureza, incapaz de
apoderar-se desse todo do qual faz parte. Ainda assim, é possível re-
conhecer certas leis (Maquiavel e escritos maquiavélicos). Como e
dentro de quais limites?
(Este mistério cria uma aparente relação entre o social e o sobre-
natural e até certo ponto desculpa Durkheim.) (132)

“Eles têm a sua recompensa.” “Em verdade vos digo que eles já têm
plenamente a sua recompensa…”
“…ao teu Pai que está em segredo: e o teu Pai, que vê em segredo, te
recompensará abertamente.”
Necessidade de uma recompensa, por uma questão de equilí-
brio; necessidade de receber o equivalente do que se dá (cf. acima);
mas se, fazendo violência a essa necessidade, poderosa como a gravi-
dade, deixamos um vazio, ocorre como que uma irrupção de ar, e
sobrevém uma recompensa sobrenatural. Não virá se recebermos
qualquer outro salário; é esse vazio que a faz vir.
(E, no entanto, provavelmente não deveríamos tê-lo desejado.)
O mesmo aplica-se ao “perdão das ofensas” (que diz respeito
apenas ao mal que outros nos fizeram, mas também ao bem que lhes
fizemos). Novamente, aceitamos um vazio em nós mesmos.
A aceitação de um vazio em nós mesmos é uma coisa sobrena-
tural. Onde encontrar energia para um ato sem contrapartida? A
energia tem de vir de outro lugar. E, no entanto, deve haver antes de
tudo um dilaceramento, algo de natureza desesperada, para que um

268
vazio seja produzido antes de tudo – vazio: noite escura.
Admiração, pena (especialmente a mistura das duas), etc., for-
necem uma energia real. Mas é preciso passar sem ela.
“Claude” de Geneviève Fauconnier.
É preciso ficar por um certo tempo sem nenhuma recompensa,
natural ou sobrenatural – noite escura.
“Nostromo” de Conrad – o homem que, tendo resistido à tor-
tura além de seus poderes de resistência, continua a degradar-se mais
do que os outros (e nunca supera isso).
Isso acontece quando se busca a energia em si mesmo: uma vez
esgotada, repulsa.
Onde a procurar?
Necessidade externa ou interna, tão imperativas quanto o ato de
respirar. “Que nos tornemos a respiração central.” Mesmo que uma
dor no peito torne a respiração extremamente difícil, ainda assim se
respira; não conseguimos fazer de outra forma.
Saber (em cada coisa) que há um limite, e que não vamos ultrapassá-lo
sem ajuda sobrenatural, ou, que se o fizermos, será por pouca margem, e
pagando depois com alguma forma terrível de degradação. Em todo o caso,
para não esquecer isso. (135-136)

É preciso ir por si mesmo até esse limite. Aí alcança-se o vazio.


(“Deus ajuda aqueles que se ajudam.”)
Perdoar. [Valéry] Somos incapazes. Quando alguém nos faz mal,
reações se despertam em nós. Esquecimento voluntário. O desejo de
vingança é um desejo de equilíbrio. Aceitar a falta de equilíbrio. Ver
aí a imagem da essencial falta de equilíbrio. Buscar equilíbrio noutro
plano, ou (e) dentro de um compasso mais amplo.
Transferência e vazio voluntário (não pensar sobre…), duas coisas
distintas – (talvez não tão distintas?). Distintas por um momento.

269
Um modo de purificação: orar a Deus, não apenas em segredo
no que diz respeito aos homens, mas pensando que Deus não existe.
(Reversões para o Bem; existem dois tipos de reversões.)
Piedade em relação aos mortos, imagem (Electra). Fazer todo o
possível por aquilo que não existe.
Sófocles: o limite sempre um pouco ultrapassado.
“Não tenho mais forças; não posso mais continuar.” Filoctetes:
“Ó semente de Aquiles…”
A angústia causada pela morte do outro; é essa angústia do va-
zio, da falta de equilíbrio – esforços doravante sem propósito, dádivas
sem recompensa, infrutíferas – se a imaginação preenche a brecha,
degradação. “Deixa que os mortos enterrem seus mortos.”
E não é o mesmo que acontece com a própria morte? O objetivo,
a recompensa, está no futuro. Privação de um futuro, vazio, falta de
equilíbrio. É por isso que “filosofar é aprender a morrer” – é por isso
que orar é como morrer.
Aceitação do vazio – encontra-se sob muitas formas –
[Sede, fome, castidade – privações carnais de todos os tipos – na
busca de Deus. Formas sensíveis do vazio. O corpo não tem outra
forma de aceitar o vazio. (Ter fome e sede de Deus – e “meu bem”,
"meu esposo”, etc. – mesma gama de significados; ao mesmo tempo
literal e metafórico.)]
O sacrifício de Abraão. O que poderia ser mais completo em
relação ao vazio? (135-137)

O vazio produz angústia, revolta desesperada, seguida, como re-


sultado da exaustão, de resignação; mas com uma perda do senso de
realidade, envolvendo morte parcial, muitas vezes falsidade interior e
uma dispersão, uma redução do tempo. (137)

270
Vazio. Quando Ovídio se degradou a ponto de fazer as mais ser-
vis súplicas para mitigar seu exílio, tudo o que conseguiu foi conti-
nuar fazendo isso até morrer, mesmo depois de ter descoberto como
tudo era inútil. Pois não conseguia aceitar o facto de que se degra-
dara inutilmente. Estava fadado a continuar perseguindo um objeto
ilusório ao preço de cada vez mais humilhações lamentáveis.
(Prestar atenção especial às ações cujo resultado malsucedido conside-
raríamos insuportáveis.)
(Impossível perdoar quem nos faz mal se esse mal nos degrada.
Temos de pensar que não nos degradou, mas revelou nosso verda-
deiro nível.) (137)

Gravidade. – Amamos o ser de quem dependemos absoluta-


mente e de quem esperamos o bem ou algum alívio do mal (mesmo
que seja ele o autor do mal, e injustamente). Assim, favores modera-
dos que deixam a pessoa obrigada em posição de impotência e de-
pendência em relação ao benfeitor provocam gratidão; um favor sufi-
cientemente grande para erguer alguém acima de qualquer depen-
dência não provoca nenhuma, ou apenas de uma espécie muito tran-
sitória, e corre o risco de provocar ressentimento, porque a obrigação
implica a necessidade de continuar a dar indefinidamente sem nunca
receber nada em troca, ou seja, um vazio. (Falta de equilíbrio, neste
caso, entre o tempo que dura o favor, ou seja, um momento, e o
tempo que dura a gratidão, que é indefinida; enquanto que por outro
lado, o favor que é menor, mas prolongado indefinidamente no
tempo, pois a imaginação, pela possibilidade de novos favores, não
acarreta tamanha falta de equilíbrio.)
G. Herbert. Dando aos mendigos de forma irregular.
Tudo (ou quase tudo? – requer exame) o que chamamos de bai-

271
xeza é um simples fenômeno da gravidade. Além disso, a própria pa-
lavra baixeza é uma indicação disso.
Por outro lado, a ingratidão produz um vazio no benfeitor. Per-
deu um pedaço de propriedade. (Ibn Saud e seu tio.) Como um amo
cujos escravos fugiram.
Ingratidão de soberanos.
Lear.
(Lear, uma tragédia da gravidade.)
Gravidade. Quando o favor vem do inferior e é dirigido ao supe-
rior, a subordinação que ele cria subordina o benfeitor à pessoa be-
neficiada.
Gravidade. Devoção do escravo que, nada tendo, coloca tudo em
seu senhor; se receber algo seu, isso mudará as coisas – (reversão).
Como no caso dos marechais de Napoleão no final de seu reinado.
Gravidade. De modo geral o que esperamos dos outros depende
do efeito da gravidade sobre nós; o que recebemos deles depende do
efeito da gravidade sobre eles. Às vezes (por acaso) os dois coincidem,
na maioria das vezes não. (138)

Crenças em diferentes níveis. Por exemplo. crença de que Deus


existe, em mim, em tal – tal – e tal nível; que ele não existe, em tal –
e tal nível, etc. –
Não devemos escolher uma dessas opiniões (exceto em certos
casos); devemos entretê-las todas, mas dispostas verticalmente e alo-
jadas em níveis adequados.
Assim, acaso, destino, Providência. (139)

Gravidade – O vazio (não aceite) produz ódio, aspereza, amar-


gura, malícia. O mal que desejamos que aconteça ao que odiamos, e
que imaginamos, restabelece o equilíbrio.

272
A imaginação (quando não controlada) é produtora de um es-
tado de equilíbrio, uma restauradora de equilíbrios e enchedora de
vazios.
[Descobrir de onde vem o termo “compensação”?]
Gravidade – História de Moussa – 1. Ingratidão. 2. Necessidade de
aflição para todo aquele marcado por ela uma vez (suas reações à afli-
ção precisam de um objeto, caso contrário, ocorrem no vazio; então,
novamente, o pensamento da aflição passada é intolerável, acarreta
um vazio. Requer mais estudo.)
Uma aflição prolongada mata o desejo de libertação e torna até
mesmo o pensamento dela praticamente insuportável [no meu caso,
aplica-se às dores de cabeça, final de 1938] – porquê? Se alguém é
libertado (a menos que seja mais do que aquilo que era antes), parece
que toda a aflição pela qual passou é inútil. Com tais pensamentos,
todos os anos de aflição acumulam-se, formando um único peso que
não tem contrapeso.
E qual é o mecanismo de resignação? (Resignação natural.) Es-
gotamento. O quê mais?
O desgraçado que pensa que os maus tratos lhe são devidos –
forma da noção de direitos.
[A noção de direitos está ligada à gravidade.]
A busca pelo equilíbrio é má porque é imaginária. Vingança.
Mesmo que alguém, de facto, mate ou torture seu inimigo, é, em
certo sentido, imaginário.
Pode acontecer que as coisas pelas quais alguém, de facto, passa ou
realiza sejam, em certo sentido, imaginárias.
Um ser que tem tal e tal caráter, tal e tal passado, em tais e tais
circunstâncias; sua imaginação opera de modo a preencher os vazios
e restaurar os equilíbrios, e ele age de acordo com o que imagina.

273
Mecanismos perigosos. Compensando um esforço futuro (por-
tanto imaginário) com um relaxamento presente. [Reversão; o bem
como rótulo que dá licença ao mal.] Deve ser evitado mesmo em re-
lação às pequenas coisas, ou pelo menos severamente limitado.
A licença que se outorga no presente às vezes prepara as forças
necessárias para esforços futuros; às vezes os impede. Como podemos
distinguir esses dois tipos de licença?
Outro tipo: compensar grandes esforços feitos numa esfera com
licença em várias outras esferas. (Guerra – “mulheres respeitáveis”.)
Aqui, novamente, o rótulo do bem abrange a licença para o mal, em-
bora se trate de esforços efetivamente realizados. Aqui, novamente,
uma certa forma desse mecanismo é necessária e boa; enquanto outra
forma é absolutamente má. Como distinguir entre elas?
Em que circunstâncias, em que medida nos devemos permitir
alguma licença? Sem licença, rigidez, o oposto da graça (palavra ma-
ravilhosa). A licença deve ser limitada; mas como? Só mais um pe-
dacinho… mais outro pedacinho… outro pedacinho… O processo é
ilimitado.
“Designs in Scarlet” [nota do tradutor na versão em inglês: “de
Courtney Ryley Cooper (Boston, 1939)”]; o mal imaginário é român-
tico e variado, o mal real sombrio, monótono, estéril e entediante.
Porquê? Por outro lado, o bem imaginário é entediante.
Assim como existe uma combinação exata de atenção e desaten-
ção, também existe uma combinação de severidade e licença.
Ficar um pouco abaixo daquilo que se é capaz.
Não aplicar certas expressões (em certos casos, palavras, mesmo
ditas interiormente [por exemplo, resolução]; certas atitudes; certas
maneiras de se comportar) a certas coisas preciosas que seriam enfra-
quecidas por serem expressas desse modo; não omitir aquelas expres-

274
sões que lhes dão força. Como distinguir e discernir os casos particu-
lares?
É mau ofender as coisas sagradas, mesmo de forma jocosa (pen-
sando que se está brincando), e homenageá-las num determinado ní-
vel. Nem devem ser deixadas de lado em silêncio.
Sempre uma hierarquia vertical.
Melhor pecar do que se levar a sério – em certo sentido. E no
entanto…
Permite-te a licença no caso de coisas que exigem licença, mas
em mais nada. Apenas faz que o mais elevado ti mesma se conforme
ao que é mais elevado, e assim por diante, em todos os diferentes
níveis.
Se alguém não respeita a hierarquia vertical em si mesmo, é um
hipócrita, mesmo quando deseja ser sincero.
Gravidade. Uma aflição muito grande coloca um ser humano
abaixo da piedade; provoca repulsa, horror e desprezo.
A tragédia (Sófocles; Phèdre) está no limite.
São Francisco e o leproso. Também sentiu nojo, horror e des-
prezo.
O Cristo de Mantegna encurtado.
A piedade desce a um certo nível, mas não abaixo.
O que faz a caridade para descer ainda mais?
Apiedam-se de si aqueles que caíram tão baixo?
A piedade transforma-se em hostilidade se o seu objeto passar
acima ou abaixo de um certo nível de aflição.
Fidelidade e a morte. Viver entre as duas. Semelhança entre o
mais alto e o mais baixo.
A semelhança entre o mais alto e o mais baixo tem uma conexão
com a relação entre fraqueza e inexistência.
[Em certo sentido] o que é imaginário não existe – Deus não

275
existe. (139-142)

A existência e a perfeição são incompatíveis num plano e idên-


ticas em outro. Existe criação ou manifestação porque existem esses
dois planos.
Estilo – busca do efeito. Cobre às vezes o vazio do pensamento.
Encontra-se também, por vezes, no caso de alguém cujo instrumento
está abaixo do padrão daquilo que deseja expressar (particularmente
no caso de todos os iniciantes) – a sensação de que tem algo a dizer e
ainda assim só consegue dizer banalidades empurra-o para o lado do
efeito, embora o que ele realmente deseja não seja o efeito, mas algo
muito melhor, que não consegue obter.
Mas, nesse caso, mais cedo ou mais tarde se sentirá insatisfeito
e, depois de passar mais ou menos por uma “noite escura”, atingirá
um grau maior de pureza. (142)

Todo esforço procede de uma fonte de energia e busca uma re-


compensa. (Ato gratuito: o tipo mais baixo ou o mais alto.) Para cada
esforço, tenta descobrir em que nível.
É mau realizar uma ação superior com uma forma inferior de
energia (heroísmo para fins de decoração). Também o é realizar ações
baixas e mesquinhas com uma forma superior de energia, a menos
que sejam usadas como intermediárias (o bastão do homem cego) ou
como imagens que dizem respeito a coisas grandes. “Tudo o que fize-
res, oferece-o a Mim.”
O que se deve fazer com a forma inferior de energia? Talvez per-
mitir que ela se folgue; daí a necessidade de jogar.
Devemos fazer todo o tipo de trabalho, fazer todo o tipo de es-
forço para Deus, pensando que ele não existe. (142)

276
Na composição de uma obra e na tradução de um texto não
escrito – não acrescentar ou alterar nada –
Analogias entre a “noite do espírito” de São João da Cruz com
suas alternâncias ao longo de vários anos, e alternâncias que experi-
mentei no espaço de alguns dias ou semanas (mas às vezes meses) na
composição de um poema.
Discrepância entre o interior e o exterior – de dois tipos. Seres
com grandes aspirações, mas que, em determinadas circunstâncias,
reagem de forma mais ou menos degradante (por exemplo, muito
tempo, atenção e esforço dedicados à alimentação; excesso de pru-
dência; atitude em relação ao dinheiro, etc.); não conseguem evitá-lo
e talvez não percebam que o estão fazendo, ou então se fornecem
pretextos. E novamente: ações difíceis e irrepreensíveis (por exemplo,
certos casos de austeridade e ascetismo – e muitos outros exemplos)
que não correspondem a nenhum motivo interior.
ESTAR DECIDIDA A MORRER, ACEITAR O VAZIO –
MESMA COISA; SÓ ISSO TORNA POSSÍVEL QUE, EM CER-
TAS SITUAÇÕES, MENTIR NÃO SEJA UMA NECESSIDADE
VITAL. (143)

Literatura e moral – o mal imaginário é romântico, fantasioso,


variado; o mal real é triste, monótono, estéril e entediante. O bem
imaginário é entediante; o bem real é sempre fresco, maravilhoso,
inebriante. [Por que será?] Assim, a “literatura imaginativa” é entedi-
ante ou imoral (ou então uma mistura das duas). Só consegue escapar
dessa alternativa passando, em certa medida, por força da arte, para
o lado da realidade – que só o gênio é capaz de o fazer – [daí a escola
satânica: a expressão madura de seu gênio particular é o silêncio, o
silêncio de baixo. “Não sei mais falar.”] (143-144)
Analogia entre álgebra e dinheiro. Ambos são niveladores. As

277
distâncias verticais não estão representadas neles. (144)

Não entender coisas novas, mas pela paciência, esforço e mé-


todo, chegar a entender, com todo o nosso ser, aquelas verdades que
são evidentes.
Padre J. entende que as pessoas que estão com ele estão ali à
força – mas não entende com todo o seu ser. (144)

A fadiga, assim como o sofrimento físico, atua como um obstá-


culo, não aos esforços superiores do espírito, mas aos que pertencem
à região intermediária. Conclusões a serem tiradas quanto ao desen-
volvimento cultural do povo, que atualmente não tem acesso ao que
é mais elevado, porque não consegue passar por esta região interme-
diária. (144)

R. – Exemplo do absurdo: fábrica de creme “Simon”; uma coisa


boa porque dá trabalho às pessoas. Impossível fazê-lo admitir que se
esses mesmos operários recebessem o mesmo dinheiro sem fazer
nada, seria melhor (quando o produto é mau). O trabalho conside-
rado como uma coisa boa, independentemente de qualquer relação
com outras coisas. O dinheiro também. A propriedade também. Sem
essa forma tripla de idolatria, não haveria nada para equilibrar a fa-
diga e o desgosto produzidos pelo trabalho [cf. também a observação
da avó: os homens são seletivos quanto à alimentação, porque traba-
lham e isso lhes causa desgosto, “…está doente de desgosto”…] – isso
parece indicar um vazio.
Se houvesse um vazio, haveria degradação – ou um caminho
aberto para a graça.
Os homens exercitam a imaginação para tapar os buracos pelos
quais a graça poderia passar e, para isso, e à custa da mentira, fazem

278
para si mesmos ídolos, isto é, formas relativas de bem concebidas
como formas de bem totalmente não-relacionadas. Se as concebemos
como relativas, há um vazio, pois ao atingir o grau de fadiga em que
destruímos a conceção das relações (que é o conhecimento de 2ª es-
pécie), devemos continuar a esforçar-nos. E então a fonte de energia
só pode ser o pão sobrenatural. (Precisamos de um pouco todos os
dias.)
A idolatria é, portanto, uma necessidade vital. Pensar em rela-
ções é aceitar a morte.
Núcleo do pensamento platônico.
[A bondade das pessoas boas que estão na caverna é sempre li-
mitada pela idolatria (esquecimento das relações) – descobre como,
em cada caso particular.]
Aquilo que depende do conhecimento de 2ª espécie não pode,
sem ajuda sobrenatural (mas então passa-se para a 3ª espécie) servir
por muito tempo como motivo.
Gita. A renúncia à ação não produz um vazio. Renúncia, não da
ação, mas dos frutos da ação – aqui, há um vazio.
Suspender continuamente em si mesmo o trabalho da imaginação, que
preenche vazios e restaura equilíbrios.
Se aceitarmos qualquer vazio, seja ele qual for, que golpe do des-
tino pode impedir-nos de amar o universo?
(Temos a garantia de que, aconteça o que acontecer, o universo é
pleno.) (145)

É algo tão difícil de fazer por esta razão, que o tempo se limita
ao decorrer de um dia. Daí: “dá-nos este dia…”, “basta a cada dia o
seu mal.” Não conseguimos (talvez?) nem mesmo com a ajuda da
graça, suportar o vazio que dura mais de um dia.

279
Não importa em que circunstâncias, se alguém detém a imagi-
nação que preenche, há um vazio. (Pobre de espírito.)
Não importa em que circunstâncias (mas às vezes ao preço de
quanta degradação!), a imaginação pode preencher o vazio. É por isso
que os seres humanos comuns conseguem tornar-se prisioneiros, es-
cravos, prostitutas e passar por não importa quanto sofrimento, sem
serem purificados.
Comentário da velha mãe (durante a colheita do vinho): “Sofrer
moralmente a tal ponto simplesmente não é possível.” Sentimento carac-
terístico em relação ao sofrimento (no momento em que é experi-
mentado; desaparece em retrospeto) – é impossível, mas não podemos
evitá-lo.
Esse sentimento de impossibilidade é a sentimento de vazio. Ao
contemplá-lo por muito tempo com espírito de aceitação, abrimos o
caminho para a graça. (145-146)

Álgebra e dinheiro – niveladores, o primeiro intelectualmente,


o segundo efetivamente.
Nossa época destrói a hierarquia interna; como poderia permitir
que subsistisse a hierarquia social, que é apenas uma imagem vulgar
da primeira?
A álgebra destrói o poder purificatório da matemática, ou pelo
menos apenas permite que subsista no ponto de invenção, onde exis-
tem constantes ainda sem nome (daí a teoria de Chevalley). Palavras
sem palavras, aí reside a purificação.
Adoração dos grandes pelo povo do século XV (La Bruyère). Re-
sultou da imaginação preenchendo o vazio, resultado que desapare-
ceu desde que o dinheiro a substituiu. Dois resultados degradantes,
mas o dinheiro é o mais degradante dos dois.
Cerca de cinquenta anos atrás, a vida dos camponeses deixou

280
de parecer-se com aquela descrita por Hesíodo. A destruição da ciên-
cia, como entendida pelos gregos, ocorreu mais ou menos na mesma
altura. Dinheiro e álgebra triunfaram simultaneamente. (146)

O universo é a imagem de Deus, mas não o universo visto de


um ponto de vista. No universo visto de um ponto de vista, só pode
haver formas imaginárias de equilíbrio e plenitude, e graças a um
exercício ilimitado da imaginação – um exercício exaustivo.
O universo como visto por Deus é para o homem uma constante
sem nome e sem forma. (146)

O inferno como um paraíso ilusório. Nada mais é do que prazer


sensual (Volupté). Paraísos artificiais – uma excelente expressão. O
prazer sensual (mas não a forma pura de prazer) é uma felicidade ilu-
sória.
A forma pura de prazer está em seu lugar [apropriado]; pode
acompanhar a felicidade, mas não contém a ilusão de felicidade. Não
parece ser infinita; aparece como limitada.
Algumas pessoas buscam o reino de Deus como se fosse um pa-
raíso artificial, apenas o melhor entre os paraísos artificiais. (147)

Vazio. Aqueles que lhe fizeram mal estão longe, fora de seu al-
cance; aqueles que estão ao seu alcance fizeram-lhe bem; deve-lhes
deferência, sorri, não deve fazê-los pagar nada. Consegue fazer isso à
custa de um esforço violento do qual ninguém percebe, pois sua ati-
tude parece ser natural.
Vazio. Se um homem precisa fazer um esforço violento para com-
portar-se da maneira que nos parece natural – vazio, amargura inson-
dável nos são indicadas.
Aquilo que as outras pessoas consideram natural no ser humano

281
corresponde ao trabalho da gravidade sobre elas. Se isso não aconte-
cer, sentirão um vazio.
(Isso acontece com frequência, pois buscamos no homem, como
naturais, as ações e atitudes que correspondem à sua posição na soci-
edade, ao seu caráter aparente, ao rótulo que lhe é atribuído, e essas
nem sempre lhe são fáceis.)
A imaginação que preenche o vazio começa então a trabalhar, e
seus resultados às vezes, depois de muito tempo, repentinamente nos
invadem e nos surpreendem.
Vazio, quando não há nada externo que corresponda a uma tensão
interna.
Exemplo: tormento num campo de concentração, que consiste
em mover uma pedra de B para A, depois de A para B, depois de B
para A novamente, e assim por diante, durante o dia todo. Muito
diferente do mesmo esforço despendido no decorrer do trabalho.
(147)

R. Sob tais condições… “ao fim de um ano de trabalho, não fiz


nada” – (tudo o que houve foi conservação) – “Mas viveste.” –
“Quanto a mim, se fosse uma questão de trabalhar simplesmente
para viver, simplesmente não conseguiria” –
[Também não conseguiria “fazer como o velho J., ceder, ceder,
colher uvas oito horas por dia” – “Mas e se fosses forçado a fazê-lo, se
tivesses de fazê-lo?” – “Se tivesse… bem, se tivesse, simplesmente não
o faria. Arrumaria outro jeito.” Ele acha que ladrões de batatas devem
ser abatidos com uma arma. “Tudo que tem a fazer é pedir.” E no
entanto, “é preciso ter o tipo certo de temperamento para poder men-
digar.” O que de facto faria ele?]
Para ele, trabalhar para viver é trabalhar no vazio. “Só tenho

282
gosto pelo trabalho se pensar em expandir-me cada vez mais.” [E pa-
rece que tem um milhão de francos em dinheiro (?) com os quais
nada faz, pois não mudou em nada a sua maneira de viver e tem terras
suficientes.] Reclama de ser obrigado a produzir álcool vinílico, o que
resulta em não ganhar mais (será mesmo?) do que se trabalhasse sozi-
nho em sua vinha e isso lhe rendesse 500 hectolitros. “Em condições
como essas, trabalho para nada.” (147-148)

Devemos eliminar o mais possível o vazio – e isso é pouco – da


vida social, pois o vazio serve apenas à graça, e a sociedade não é uma
sociedade de eleitos. Sempre haverá vazio suficiente para os eleitos.
(148)

Negação de São Pedro. Dizer a Cristo, “Nunca te negarei”, é já


o negar, pois supõe que a fonte da fidelidade estava nele mesmo e
não na graça. Felizmente, ao ser escolhido, essa negação tornou-se
manifesta a todos e a ele mesmo. Quantos mais há que se gabam de
forma semelhante – e nunca entendem!
Foi difícil ser fiel a Cristo. Foi uma fidelidade no vazio. Muito
mais fácil ser fiel a Napoleão até a morte. Mais tarde, muito mais fácil
fora para os mártires serem fiéis, porque a Igreja já estava ali, uma
força, com promessas temporais. Morremos pelo que é forte, não
pelo que é fraco; ou pelo menos para o que, embora momentanea-
mente fraco, retém uma auréola de força. A fidelidade a Napoleão
em Santa Helena não era fidelidade no vazio. O facto de morrer pelo
que é forte rouba a morte de sua amargura – e ao mesmo tempo de
todo o seu valor.
É necessária uma representação do mundo em que haja algum
vazio, para que o mundo possa ter necessidade de Deus. Isso pressu-
põe o mal.

283
Ao mesmo tempo o mundo como manifestação de Deus é
pleno.
Ao mesmo tempo “Podem conhecer a Deus através do mundo
que o manifesta.” O universo tanto manifesta quanto esconde a
Deus.
Vazio. O vazio é a plenitude suprema, mas o homem não tem o
direito de o saber. A prova está no facto de que o próprio Cristo, por
um instante, não o sabia por completo. Uma parte de mim deve sabê-
lo, mas não as outras partes, pois se estas últimas, em sua forma bá-
sica, o soubessem, não haveria mais nenhum vazio.
Devemos deixar de lado as crenças que preenchem vazios, sua-
vizam as amarguras. A crença na imortalidade. A crença na utilidade
dos pecados: “até os pecados.” [O útil é que devam ser manifestados.]
A crença na ordem providencial dos eventos.
(Em suma, as “consolações” que muitas vezes são procuradas na
religião.) (148-149)

As minhas partes mais básicas deveriam amar a Deus, mas não


muito. Não seria Deus.
Que amem da mesma maneira que alguém que tem fome e sede.
Somente o que é mais elevado tem o direito de ser preenchido.
(O uso da fome e sede.) (149)

Cristo experimentou toda a miséria humana, exceto o pecado.


Mas ele experimentou tudo o que torna o homem capaz de pecar. É
o vazio que torna o homem capaz de pecar. Todos os pecados são
tentativas de preencher vazios. Assim, a minha vida com todas as suas
manchas está próxima da sua vida perfeitamente pura, e o mesmo é
verdade para as vidas mais inferiores. Por mais baixo que eu possa
cair, não me afastarei muito dele. Mas se cair demais, não posso mais

284
saber disso. Só posso saber, em qualquer dia particular, pela graça
recebida nesse dia. (149)

As coisas que preenchem vazios são ou reais (vindas de fora) ou


imaginárias, ou então as duas juntas (sorrisos de Luís XIV; dinheiro).
Podemos juntá-las numa ordem hierárquica, começando com o mais
real e terminando com o mais imaginário; sendo os últimos também
os que contêm o ilimitado.
Motivos. Os pensamentos são mutáveis, são influenciados pelas
paixões, pelas fantasias, pelo cansaço. A atividade deve ser constante.
Tem de continuar todos os dias e por muitas horas todos os dias.
Portanto, são necessários motivos para nossa atividade que sejam in-
dependentes de nossos pensamentos e, portanto, de nossas relações
– motivos absolutos; ídolos.
Devemos buscar os ídolos menos maus.
Na ausência de ídolos, frequentemente acontece que temos de
trabalhar todos os dias, ou quase todos os dias, no vazio. Não pode-
mos fazer isso sem pão sobrenatural.
A idolatria é portanto uma necessidade vital na caverna. Mesmo
para o melhor de nós, é inevitável a necessidade de estabelecer limites
estreitos para a mente e o coração.
A imaginação trabalha continuamente para tapar todas as fissu-
ras pelas quais a graça pode passar.
Imaginação que preenche os vazios – esforço exaustivo e ilimi-
tado. DANAIDAS. (149-150)

A obediência é o único motivo puro, o único que não busca em


nenhum grau uma recompensa pela ação, mas deixa todo cuidado de
recompensa ao Pai que está em segredo e que vê em segredo.
A obediência deve, porém, ser obediência à necessidade e não à

285
força (terrível vazio no caso dos escravos).
Devemos realizar apenas aquelas ações justas que não podemos
impedir-nos de realizar, que não podemos deixar de fazer, mas, atra-
vés de atenção bem direcionada, devemos continuar sempre aumen-
tando o número dessas que somos incapazes de não realizar.
Cada vez que observamos uma falha noutras pessoas, devemos
perguntar-nos se também a cometemos; mas também devemos per-
guntar-nos se cometemos a falha contrária e equivalente (ou uma en-
tre essas falhas). (150)

Duas observações de X: “A morte em si mesma não é nada; ape-


nas a morte interior é terrível. Durante vários meses, aprendemos a
viver como se fôssemos morrer no momento seguinte, assim a morte
não significa nada para nós.” E ainda: “Se..., eu não a aguentaria. Isto
é, a aguentaria por mim mesmo, pois consigo aguentar tudo; mas não
a aguentaria por causa dos outros.” (Tipo de sofisma à Ugolino.)
Procura várias formas (com exemplos autênticos) do tipo de so-
fisma à Ugolino. (151)

Porque é que assim que um ser humano mostra que precisa de


outro ser humano, seja pouco ou muito, este último mantém distân-
cia? Já experimentei isso várias vezes, ocupando um lado ou o outro
dessa relação. Gravidade.
O tempo mínimo necessário para algo (por exemplo, o contato
feito entre dois seres humanos) e o tempo proporcionado pelas cir-
cunstâncias. Duas cronologias que muitas vezes estão longe de coin-
cidir.
A composição concordante em vários planos está oculta e só se
aplica ao conjunto.

286
Antes de nos colocarmos na posição em que tal possa ser sen-
tido, não pela sensibilidade, mas pela parte superior do nosso ser,
havemos de ter sentido até que ponto ela é inexistente. Se, por meio
da imaginação e da mentira interior, fabricamos para nós mesmos
uma falsa composição concordante, todo o acesso ao tipo verdadeiro
nos será negado.
De dois homens que não têm experiência de Deus, aquele que
o nega talvez esteja mais perto dele do que o outro.
O falso Deus que é como o verdadeiro em tudo, exceto o de não
o tocarmos, impede-nos de chegar ao verdadeiro.
Os 100 táleres possíveis em Kant. O mesmo se aplica a Deus.
Temos de acreditar num Deus que é como o Deus verdadeiro
em tudo, exceto que ele não existe, pois não chegamos ao ponto em
que Deus existe. (151)

“Fazer o bem.” Ao “fazer o bem” (materialmente, moralmente


ou de qualquer outra forma) a um ser infeliz (um daqueles cuja alma
a aflição devorou), reduzimos a sua forma atual de aflição, mas cor-
remos o risco de aumentar a sua forma passada. Como exercer al-
guma influência sobre a última? Como curar anos passados?
Isso é uma coisa sobrenatural.
Se não o conseguirmos, justifica-se a ingratidão.
(“La Sauvage” de Anouilh.)
[Supõe que o infeliz que é ajudado coloque toda a sua felicidade
na de seu benfeitor… Pagará um alto preço; e para isso é necessário
que a distância entre eles permaneça.]
Não se pode fazer outras pessoas subirem a escada da força, ex-
ceto sobrenaturalmente. (151-152)

Montanhas, pirâmides, as dobras em estátuas – coisas tão belas,

287
e todas são manifestações da gravidade.
As coisas feias, vulgares, vergonhosas ou criminosas não serão
belas se nelas lermos a outra forma de gravidade? (152)

Não pensar que se tem direitos. Isto é, não obscurecer ou defor-


mar a justiça; não pensar que se tem o direito de esperar que as coisas
aconteçam de acordo com a justiça; e ainda mais quando a pessoa
está longe de ser ela mesma justa.
Superposição vertical.
Existe uma maneira errada de pensar que alguém tem direitos,
e uma maneira errada de pensar que não tem nenhum.
Devemos estar sempre preparados para que as coisas aconteçam
de acordo com a gravidade, a menos que haja intervenção sobrenatu-
ral.
Devemos ser gratos se formos tratados com justiça.
Por outro lado, nunca devemos procurar fazer às pessoas qual-
quer outro bem senão aquele que consiste em tratá-las com justiça.
Para sentir a verdadeira gratidão (caso a amizade seja posta de
lado), tenho de pensar que não é por piedade, simpatia ou capricho
que estou sendo bem tratado, não é como um favor ou privilégio,
nem como um resultado natural da disposição temperamental, mas
do desejo de fazer o que a justiça exige; portanto, aquele que me trata
desta forma deseja que todos os que estão na minha situação sejam
tratados da mesma forma por todos os que estão na sua (mas não, é
claro, que sejam obrigados a fazê-lo por alguma forma de coerção,
pois tais restrições podem possivelmente produzir mais consequên-
cias de natureza perigosa do que útil).
Nesse caso, a gratidão é pura, alegre, um amor acompanhado
pelo desejo de não fazer a mesma coisa de volta, mas em imitar. Se
existe algum desejo de servir, ele só é despertado por admiração.

288
Qualquer outra forma de benefício degrada um pouco tanto o
benfeitor quanto a pessoa beneficiada.
O erro (no duplo sentido da palavra) com respeito a essas coisas
é uma questão de nível. Quase sempre, colocamos a justiça num nível
muito baixo.
Todos os erros de nível produzem duas falsas opiniões que são contrárias
e equivalentes uma à outra.
(Ou negamos uma verdade ou então a afirmamos num sentido
em que não é verdade.) (152)

Maior pureza do sofrimento físico: daí maior dignidade das pes-


soas.
Efeitos de um grande sofrimento sem a graça: Ovídio – Wilde –
Van Gogh.
Um sofrimento uniforme, ao fim de certo tempo, torna-se insu-
portável, porque a energia que nos permite suportá-lo esgota-se. Por-
tanto, não é verdade que o sofrimento passado não conta mais.
Tragédia daqueles que, tendo sido guiados pelo amor do Bem a
um caminho onde o sofrimento tem de ser suportado, depois de um
certo tempo atingem o seu limite e se degradam.
Nunca podemos, em nenhum momento, ter a certeza (especial-
mente com meu temperamento, sempre exposto a um acesso repen-
tino de fadiga) se um dia ou uma hora depois o limite não terá sido
atingido e a energia esgotada. Nunca esquecer isso.
Pão sobrenatural – a condição precedente consiste talvez em ter
alcançado e sentido o limite.
Em contato com o limite, não mentir para si mesmo, e esperar
embora sem esperança.
Há um ponto na aflição que chegado a tal não somos mais ca-
pazes de suportar ou que continue ou que sejamos libertados dela.

289
Meus dois inimigos: cansaço e nojo (nojo físico por todo o tipo de
coisa). Ambos quase invencíveis; e sob certas circunstâncias pode,
num flash, fazer-me cair muito baixo. Preciso vigiar.
“Sofrer assim é impossível.” Essa sentimento de impossibilidade
é o sentimento de vazio. Acompanha todo o sofrimento verdadeiro e
irrompe assim que a imaginação cessa por um momento de preen-
cher o vazio. Daí também o sentimento de irrealidade na aflição. Não
é verdade porque não é possível. Não é possível porque não me é possível
suportar. Mas o que queremos dizer com “suportar”? Sustentar, segu-
rar. É estar num estado de equilíbrio.
Descobre a conexão entre o vazio e a maneira em como o tempo passa.
Não esquecer que em certos momentos, em meio às minhas do-
res de cabeça (quando se desenvolvia uma crise, mas antes de chegar
ao ponto extremo), tive o desejo intenso de fazer sofrer outro ser hu-
mano batendo-lhe justamente na mesma parte da cabeça.
Desejos semelhantes – muito frequentes em seres humanos.
Quando nesse estado, sucumbi várias vezes à tentação de pro-
nunciar palavras que causam dor. Obediência à força da gravidade: o
maior pecado, ou um dos maiores. Assim corrompemos a função da
linguagem, que é expressar as relações entre as coisas.
Devemos considerar todos os nossos pecados como simples ma-
nifestações da miséria humana, a miséria comum a todos os homens,
incluindo Cristo; só isso nos permitirá contemplá-los desvelados. Do
contrário, não temos forças para tal, temos de mentir.
Por outro lado, ao considerá-los dessa forma, não conseguimos
desprezar nenhum. (153-154)

As pessoas condenadas à morte que Ella Maillart viu e fotogra-


fou na Rússia, pois todas juntas baixavam a cabeça enquanto sua sen-
tença era pronunciada.

290
Efeito produzido pela gravidade.
Esses efeitos produzidos pela gravidade, nos casos de grande afli-
ção, são um pouco cômicos, um pouco repugnantes, fazem tudo pa-
recer pequeno. Impedem quase todo sentimento de pena por parte
do espectador; impedem-no de experimentar a sensação de aflição
que, por outro lado, lhe dá a aflição imaginária, da qual a gravidade
está ausente.
A pessoa em aflição, não encontrando piedade nem simpatia,
não consegue entender por que isso acontece. Ela pensa que, estando
na posição dos espectadores, sentiria pena, pois, imaginando-se no
lugar deles, oferece-se a si mesma o espetáculo de uma aflição imagi-
nária em que não há obstáculo colocado no caminho da piedade. É
por isso que a emoção principal ao sermos objeto de maus tratos é a
de espanto. Por que estamos sendo tratados assim? Esse espanto dura
algum tempo, e quando finalmente, por fadiga, a aceitação toma seu
lugar, essa aceitação ainda é a de algo incompreensível.
Inúmeras histórias espanholas ilustram isso.
É também a ausência de força gravitacional na ficção que torna
o mal interessante, fascinante e suportável. Pois, se a gravidade não
existisse, o bem seria uma coisa expectável; o mal seria inesperado,
surpreendente e agradaria por isso. Quando resulta da gravidade, é o
contrário.
Um homem caminhando – o que pode haver de mais comum?
Mas se andar sobre as águas, deixa de ser comum. Essa é a diferença
entre o justo da ficção e o justo da realidade.
A força da gravidade na poesia épica, tragédia (Sófocles, Phèdre,
Shakespeare), triunfo da genialidade.
Problema: os efeitos da gravidade correspondentes às circuns-
tâncias devem estar presentes na obra de arte, mas não devem provo-
car os efeitos correlativos da gravidade na mente do espectador (ou

291
ouvinte, ou leitor). Isso é sobrenatural.
Toda grande arte é sobrenatural. (154-155)

Obediência: existem dois tipos. Podemos obedecer à força da


gravidade ou podemos obedecer à relação entre as coisas. No pri-
meiro caso, fazemos o que a imaginação nos impele, que preenche os
vazios. Podemos afixar nela, e frequentemente com uma demonstra-
ção de verdade, uma variedade de rótulos, incluindo justiça e Deus.
Se suspendermos a atividade de preenchimento da imaginação e fi-
xarmos nossa atenção na relação entre as coisas, surge uma necessi-
dade à qual não podemos deixar de obedecer. Até então, não temos
a noção de necessidade, nem temos o senso de obediência.
Mesmo que a obediência seja perfeita (e na prática nunca é),
não podemos orgulhar-nos do que realizamos – pelo menos no mo-
mento em que o realizamos – contanto que tudo que façamos seja
obedecer; mesmo que realizemos maravilhas.
O que realizamos por meio da pura obediência, por maior que
seja o esforço e trabalho envolvidos, não cria a necessidade de recom-
pensa alguma.
(E ainda assim o faz em determinado momento – o da morte do
velho homem. Matamos em nós o velho homem trabalhando no vazio.)
Da mesma maneira, uma relação simples, no momento em que
a concebemos em toda a sua simplicidade, mesmo que constitua uma
descoberta extraordinária, não provoca nenhum sentimento de orgu-
lho. (155)

Por mais que nos demos aos outros ou a alguma grande causa,
qualquer sofrimento que suportemos, se provém de pura obediência
a uma conceção clara da relação entre as coisas e a necessidade, é
decidido sem esforço, embora possamos realizá-lo com esforço. Não

292
conseguimos fazer de outra forma, e não há reversão, nenhum vazio
a ser preenchido, nenhum desejo de recompensa, nenhuma amar-
gura, nenhuma degradação.
Palavras do taifeiro bretão ao jornalista que lhe perguntou como
tinha conseguido agir daquela maneira: “Não havia mais nada a fa-
zer.” A mais pura forma de heroísmo. (Mais frequentemente encon-
trada entre pessoas comuns do que em qualquer outro lugar.)
Necessidade. Temos de ver as coisas no seu verdadeiro relacio-
namento e a nós próprios, incluindo os nossos propósitos, como um
dos termos desse relacionamento. Daí decorre naturalmente a ação.
A rocha está no caminho ao longo do qual estamos caminhando
apressados. Não queremos, recusamos aceitar o fato de que esteja ali;
apressamo-nos para a empurrar. Esgotamos todas as nossas forças fa-
zendo de conta que a pedra não está ali. Ou então contemplamos
nosso desejo de a ultrapassar; a pedra está lá, mas não é tudo. Esta
pausa torna possível a ação indireta e a alavanca. Aquele que empurra
tem frequentemente sucesso; se não o consegue, uma vez exausto, a
pedra parece-lhe um absoluto, impossível de afastar. Para quem faz
uso da alavanca, mesmo que não consiga removê-la, a pedra não é
um absoluto; ele acha que teria sucesso se...
“Se eu soubesse (por exemplo, que Luís XIV não me lançaria
um olhar), não o teria feito.” Pensamento que nunca ocorre na mente
de quem apenas obedece à necessidade. Não tem devedores.
O homem escapa das leis deste mundo, mas por um breve flash
de relâmpago. Momentos de pausa, de contemplação, de pura intui-
ção, de vazio mental, de aceitação do vazio moral. É por meio desses
momentos que ele consegue aproximar-se do sobrenatural.
Quem por um instante se depara contra o vazio, ou recebe o
pão sobrenatural, ou então cai. Risco terrível; mas temos de corrê-lo,
e mesmo por um instante sem esperança. Mas não devemos lançar-

293
nos nele. (Segunda tentação.)
Passar pela morte.
Incapacidade de suportar aquilo que é. No entanto, de facto,
nós o suportamos, visto que é. Esforço de todo o ser para o futuro
imediato, o instante que se aproxima em que, assim se pensa, o que
é não será mais. Os belgas que há um ano esperam que a guerra che-
gue a um final feliz na semana seguinte.
Não consigo suportar, portanto, vai cessar.
O futuro, que preenche vazios.
Ou, por outro lado (como no caso das minhas dores de cabeça
em 1938), não poder conceber que a aflição possa cessar, porque a
ideia de ser dela libertada obriga a conceber mais claramente a dor.
Prostitutas, que não querem fugir de sua condição, etc. Guerreiros
que por meio do sofrimento alcançam o ponto em que não querem
a paz (Ilíada).
O sofrimento extremo produz um ou outro desses resultados.
(O primeiro para começar, sem dúvida, depois o segundo?)
Escravos impossíveis de reduzir à obediência nas cidades em que
haviam sido libertados em massa (numerosos exemplos). Mesmo na
véspera, a possibilidade de não obedecer não poderia ter passado por
suas cabeças, pois isso os teria feito sentir sua aflição intensamente.
Mas a partir daquele momento, a ideia de obedecer, mesmo que por
um único dia, parecia-lhes insuportável.
No entanto, nada havia mudado, nem para os seus amos, nem
para eles mesmos, exceto a imaginação.
O futuro, que preenche vazios. Às vezes, o passado também de-
sempenha esse papel. (Eu era..., eu fiz...) [Um passado imaginário tal-
vez? Sempre imaginário neste caso, talvez? Quem sabe?] Noutros ca-
sos, a aflição torna o pensamento do passado insuportável; então
priva o ser aflito de seu passado. (Ou serão os casos iguais então?)

294
O futuro. Achamos que chegará amanhã, até chegarmos ao mo-
mento em que pensamos que nunca chegará.
Dois pensamentos aliviam um pouco a aflição: ou que vai cessar
quase que imediatamente, ou então que nunca vai cessar de forma
alguma. Podemos pensar nela como sendo impossível ou necessária,
mas nunca podemos pensar que simplesmente é. Isso é insuportável.
“Não é possível!” O que não é possível é encarar um futuro onde
a aflição continuará. O élan natural do pensamento para o futuro é
interrompido, o ser é dilacerado no seu sentimento do tempo.
“Sofreremos por um mês, um ano…”
O desejo é um élan do pensamento para o futuro. Um futuro
que não contenha nada de desejável é impossível.
O sofrimento nada é fora da relação entre passado e futuro, mas
o que há de mais real para o homem do que essa relação? É a própria
realidade.
O ser que não consegue pensar no passado nem no futuro é
reduzido ao estado de matéria. Os Russos brancos na Renault. Assim,
pode-se aprender a obedecer como matéria; mas eles sem dúvida in-
ventaram para si mesmos passados e futuros facilmente disponíveis e
ilusórios.
Não podemos imaginar como a aflição não seria enobrecedora.
Isso ocorre porque quando pensamos numa pessoa aflita, pensamos
na sua aflição. Mas ela não pensa na sua aflição; a sua mente está
completamente preenchida com a busca de qualquer alívio miserável.
Para poder ter força para contemplar a aflição quando nós mes-
mos estamos aflitos, é necessário pão sobrenatural.
Fragmentação do tempo para os criminosos e as prostitutas; é a
mesma coisa com os escravos. Esta é então uma característica da afli-
ção.

295
Aqueles cuja cidade foi destruída e levados ao cativeiro não ti-
nham mais passado nem futuro: ocupariam suas mentes com o quê?
Mentiras e os desejos mais mesquinhos, mais lamentáveis. Talvez es-
tivessem mais dispostos a arriscar a crucificação por roubar uma gali-
nha do que a arriscar a morte em batalha pela defesa do que era seu.
Estavam mesmo, ou aquelas torturas terríveis não teriam sido neces-
sárias. As torturas a que os escravos eram expostos eram riscos sem
efeito enobrecedor.
Ou então era preciso ser capaz de suportar conscientemente o
vazio.
Ninguém tinha pena de um escravo; assim, só por meio da mal-
dade poderia ele espalhar fora de si o mal que sofria, pois não podia
fazer os outros sofrerem por piedade.
Transferência.
Abaixo de um certo nível, esse desejo de espalhar o mal fora de
nós desaparece e a aflição torna-nos bondosos. Os escravos negros.
Quando o nosso espanto ao sermos maltratados não suscita ne-
nhuma resposta, sentimo-nos misteriosamente feitos para receber
maus-tratos. Quando o espanto supera o sofrimento – Índios no sé-
culo XVI. Quando o espanto nos faz perder o sentido de uma coor-
denação no tempo, passado e futuro, mesmo quando perto de nós,
realmente desaparecem. Tornamo-nos então resignados como a ma-
téria.
Durante minhas fortes dores de cabeça, costumava ficar no pri-
meiro estado de espírito quando começavam a ficar críticas e, no se-
gundo estado de espírito a partir do momento em que essa crise fi-
cava bastante perto de atingir o seu máximo. Isso acontecia regular-
mente, todas as vezes.
O desejo de bater no mesmo lugar da cabeça de outra pessoa.

296
Desejo de ver outra pessoa sofrer exatamente o que nós mesmos es-
tamos sofrendo. É por isso que (exceto em tempos de inquietação
social) o ressentimento dos desamparados atinge seus companheiros
de infortúnio.
Reside aí um fator que contribui para a estabilidade social. (155-
158)

Casanova. Desistindo de seus planos de fuga por gratidão para


com aqueles que, tendo-o aprisionado injustamente, permitiram-lhe
papel e lápis após três semanas de confinamento solitário. A gratidão
como puro fenômeno da força da gravidade.
Ressentimento demonstrado entre si por criaturas miseráveis;
havendo duas delas, e uma se humilha um pouco menos do que a
outro, cada uma guardará um rancor amargo da outra, pois cada uma
é causa de humilhação para a outra.
Descrição dos fenômenos gravitacionais na sociedade. O que
poderia ser mais importante?
Seria viável uma sociedade em que só reinasse a gravidade, ou
um pouco do elemento sobrenatural é uma necessidade vital?
Em Roma, talvez, houvesse apenas gravidade.
Entre os hebreus também, talvez. Seu Deus era pesado. E ainda
assim, Sattva em todos os lugares. (158-159)

O desejo é uma força incoercível que se direciona para o futuro;


se barreiras forem colocadas no seu caminho, ele muda de direção
(mais ou menos violentamente, dependendo do temperamento par-
ticular); no caso de destinos estreitos onde só pode debruçar-se sobre
objetos insignificantes, contrai a alma.
Lauzun, na sua prisão, pensava mais no seu título de capitão dos
mosqueteiros do que na sua liberdade. Por qual mecanismo?

297
Sonhamos em encontrar novamente nas circunstâncias particu-
lares que contribuíram para nossa felicidade, agora perdida, os sinais
em que esta última pode ser lida. A imaginação, que preenche o va-
zio, apega-se aos sinais, mas não ao seu significado, que não é objeto
da imaginação. A liberdade como tal não é um objeto de devaneio.
Lemos os sinais reais, mas não os imaginários; o significado dos
imaginários desaparece. Portanto, não pode estar presente na mente
se for concebido sem nome ou forma. É disso que o destino nos pode
privar, da ligação entre o sinal e a coisa significada, da capacidade de
ler; e isso é algo verdadeiramente precioso.
Tudo o que é real, real o suficiente para conter leituras sobre-
postas, é inofensivo ou bom.
A imaginação que preenche o vazio é essencialmente mentirosa.
Põe fim à terceira dimensão, pois apenas objetos reais estão em três
dimensões. Põe fim a várias relações.
Não devemos buscar o vazio, pois seria tentar a Deus contar com
pão sobrenatural para preenchê-lo. Segunda tentação de Cristo.
Nem devemos fugir do vazio. Primeira tentação.
O mordomo infiel. A dor é enviada por Deus. Mas visto que tu
buscas por todos os meios ao teu alcance evitá-la, deves pelo menos
ajudar os outros a evitá-la também.
Tentar definir coisas que, embora efetivamente ocorrendo, per-
manecem, em certo sentido, imaginárias. Guerra. Crime. Vingança.
Aflição extrema.
Aquelas que não contêm várias leituras.
Os crimes em Espanha foram realmente perpetrados e, no en-
tanto, pareciam meros atos de fanfarronice.
Algumas realidades que não têm mais dimensões do que um sonho –
planas.
No caso do mal, como no dos sonhos, não há múltiplas leituras;

298
daí a simplicidade dos criminosos. A simplicidade característica da
forma mais elevada de virtude resulta de uma unidade suprema.
Simplicidade dos criminosos, mas também sua atuação teátrica.
Agir com a imaginação preenche o vazio.
Leituras. Ler – a menos que lhe seja dada uma certa qualidade
de atenção – obedece à força da gravidade.
Lemos as opiniões que a gravidade nos sugere.
Com uma maior qualidade de atenção, lemos a própria gravi-
dade e vários sistemas possíveis de equilíbrio.
Amar a verdade significa suportar o vazio e, consequentemente,
aceitar a morte. A verdade está do lado da morte. Amar a verdade de
toda a alma é algo que não pode ser feito sem dor. (159-161)

Crimes em Espanha. Planos como os sonhos, de ambos os la-


dos; do lado do carrasco e do lado da vítima. O que pode ser mais
terrível do que morrer num pesadelo? (161)

Lógica.
Enumerar as verdades que são de tal natureza que, ao afirmá-las,
as destruímos (por exemplo, a graça incluída no pecado), porque não
são verdadeiras no plano em que se encontram as opiniões que afir-
mamos (nesse plano, o inverso é verdade), mas num plano superior.
Elas só podem ser percebidas como verdadeiras por mentes capazes
de conceber em vários planos verticais sobrepostos simultaneamente;
para outras mentes, permanecem completamente incomunicáveis.
(163)

“Por uma necessidade natural, toda criatura, tanto quanto pode,


exerce todo o poder à sua disposição.”
Não exercer todo o poder à sua disposição é suportar o vazio.

299
É possível haver uma aceitação voluntária do vazio nas relações
entre as coletividades? (163)

Uma rocha no nosso caminho – lançarmo-nos sobre essa rocha


como se, depois de alcançada certa intensidade de desejo (esforço é
apenas desejo), ela não pudesse mais existir. Ou então sairmos do
lugar como se nós mesmos não existíssemos.
Devemos conceber, ao mesmo tempo, a existência tanto da ro-
cha como um objeto limitado e a nós mesmos como um ser limitado,
e a relação entre os dois; alavanca. Se alguém simplesmente confiar
na alavanca, qualquer tipo de esforço pode ser desnecessário.
É preciso ter-se separado do próprio desejo para poder conceber
a equivalência, pela transposição, entre baixar e subir.
O desejo contém um elemento do absoluto, e se falha seu objeto
(uma vez a energia esgotada), esse elemento absoluto é transferido
para o obstáculo. Estado de espírito dos conquistados, dos oprimi-
dos… (Implorar piedade é como empurrar uma pedra muito pesada.)
Se, depois de certo tempo, a necessidade faz com que o desejo volte
a brotar, ocorre uma oscilação entre o desejo e a exaustão que pode
continuar por muito tempo – o elemento absoluto torna-se cada vez
mais firmemente enraizado. (163-164)

Uma pedra. O desejo lança sobre ela o homem que deseja passar
como se fosse um inimigo a ser destruído. Mas não é a rocha que é
prejudicial, é a sua posição; e o que a mantém nessa posição é a gra-
vidade. Podemos aproveitar essa mesma gravidade para mudar sua
posição.
O desejo não é mais do mesmo tipo quando usamos a alavanca.
É difícil fazer alguém compreender o significado analógico deste

300
exemplo, pois deve ser aplicado, no caso de cada homem, ao que re-
almente deseja.
Deve ser aplicado a todos os desejos.
O desejo salta adiante no Tempo através de obstáculos intermé-
dios. Para pensar em obstáculos intermédios, é preciso suportar o va-
zio.
Por algum estranho mistério – que está relacionado com o poder
do elemento social – uma profissão pode conferir a homens bastante
comuns que a exercem, virtudes que, se fossem estendidas a todas as
circunstâncias da vida, fariam deles santos ou heróis.
Mas o poder do elemento social faz com que essas virtudes sejam
naturais. É por isso que precisam de compensação. (164)

Os milicianos do “Testamento Espanhol” que inventaram vitó-


rias para suportar a morte: um exemplo da imaginação preenchendo
o vazio. Embora nada possamos ganhar com a vitória, podemos su-
portar a morte por uma causa que vai triunfar, mas não por uma que
será derrotada. Para algo absolutamente privado de força, seria sobre-
humano; discípulos de Cristo. O pensamento da morte exige um contra-
peso, e esse contrapeso – à parte da graça – só pode ser uma mentira.
Pearl Buck: o contrapeso era o orgulho da raça.
Morte – fonte de toda inverdade e de toda verdade para os ho-
mens. (166)

Horror do vazio – filas de comida: se as pessoas não desistem de


esperar, é porque (talvez), uma vez o cansaço apoderando-se real-
mente dos sentimentos, já não conseguem ir embora. Não conse-
guem suportar a ideia de se terem cansado por nada.
Mas então por que voltam novamente?

301
As pessoas ficam satisfeitas e orgulhosas de poderem dizer: con-
segui tal e tal coisa. Ao passo que: Não fui para nenhuma fila – isso
não é o tipo de coisa que se possa dizer; é negativo.
Não vamos atrás do que é negativo.
A ausência de labuta (exceto para verdadeiros epicureus) não é um
objeto de desejo.
Epicuro: o vazio é bom.
A ausência de labuta não é um objeto para a imaginação. (167)

O hábito na execução de um determinado tipo de trabalho co-


loca-nos de posse do mundo.
Hábito na execução do trabalho. Eliminação do eu. Imagem da
virtude perfeita.
Por falta de transposição, a virtude no trabalho frequentemente
permanece estéril.
O trabalho executado perfeitamente sem a ajuda de um estimu-
lante talvez seja uma forma de santidade.
Trabalho. O eu existe através do sofrimento do cansaço e através
da monotonia: como algo que se sacrifica.
Sacrifício diário. Deve ser dirigido a Deus.
Sentimento de rebaixamento, inseparável do trabalho. Orgulho
compensatório, de onde se origina? Ou insensibilidade.
O tempo é a causa desse sentimento de rebaixamento.
Trabalho como resgate do pecado original; participação na re-
denção.
É sempre uma mentira que se opõe ao Bem.
A violência que fazemos nós mesmos para fazer com que o de-
sejo sirva de estímulo a movimentos que não estão naturalmente co-
nectados a ele – tal violência brota de uma energia de nível variável.

302
O que acontece com aqueles que adquiriram o hábito necessá-
rio, trabalham bem e não são de alto nível espiritual?
Foram treinados. O treino, no caso dos animais, só produz refle-
xos condicionais (embora, talvez…); no caso do homem, pode produ-
zir hábitos. O que acontece então na alma? (170)

O pensamento expresso por tal ou qual ser humano provoca


reações em nós. Deus é aquele que não provoca nenhuma ação re-
flexa em nós.
A ciência não deve ser satisfatória e coerente, pois pertence ao
domínio dos nomes e das formas.
Ser capaz de contemplar as suas limitações.
Analogia entre hábito e graça. Sentido físico da palavra graça.
(170-171)

[Mlle Agnès R., que conseguia cortar as uvas mais rápido do que
as outras, sem deixar um único cacho nas vinhas, uma única uva no
chão, e ao mesmo tempo via tudo o que se passava na estrada; nível
de inteligência e espiritualidade não muito elevada. Como isso acon-
teceu?] (171)

“Fulano de tal menosprezou-me” – vazio. (171)

R. (durante a safra). Um aumento de salário de uma figura (ape-


nas uma simples figura) é um estimulante mais poderoso do que a
preservação da vida.
Só o sentimento da morte, possivelmente próxima, pode trans-
formar a preservação da vida no estimulante mais poderoso.
“Aos aflitos, nada parece mais doce do que a vida no preciso
momento em que não é de forma alguma preferível à morte.”

303
Fenômeno do vazio.
Horror do vazio e trabalho da imaginação nos atos de lembrança
e antecipação.
Ter usado energia simplesmente para encontrar tudo no mesmo
estado de antes – intolerável.
[Isso costuma acontecer com o camponês: feno ajuntado em ga-
los, umedecido pela chuva, espalhado, colocado de volta em galos.]
É a lei da vida humana: varrer, lavar, etc.…, comer. “Fazer face
às despesas” [tradução literal do inglês: “Fazer ambos os fins se en-
contrarem”] – expressão de um ciclo. Um campo no outono e no
outono seguinte: tudo é igual, um homem pesa igual, a casa parece
igual, o suprimento de milho nos celeiros é igual… (Danaidas). Ape-
nas se ficou um pouco mais velho.
O estimulante da avareza: a sucessão de números é o motivo por
trás dela.
Para a imaginação, não tem significado preservar; destruir é ili-
mitado em significado.
Marcel Lecarpentier. Mal conseguia encontrar em si a energia
necessária para continuar recomeçando, sempre sonhando em “sair
de alguma forma”. Muitos trabalhadores assim hoje em dia. Antes
disso, de que fonte tiravam sua energia? Com quais resultados? (171-
172)

De T. – A melancolia causada pela situação geral aumenta, em


vez de diminuir, o apego ao dinheiro. O mesmo se aplica às pessoas
mais velhas. Fenômeno decorrente do sentimento de vazio. O dinheiro
substitui os motivos suprimidos à força. Numerosas analogias.
Quando a restrição externa suprime certos motivos, aqueles que
permanecem ocupam o lugar desocupado pelos que desapareceram,
a menos que novos surjam.

304
Quando os motivos suprimidos são os nobres, a ação restritiva
degrada-se.
Exemplo fictício: um pintor ganancioso; se ficar cego, não será
mais nada além de ganancioso. Demétrio.
(O gato do eremita; o ascetismo pode ter o mesmo efeito.)
Exemplo real: fome e sono, os dias que se seguiram ao armistí-
cio. Guilherme II, em 1918, e a xícara de chá –
Um motivo suprimido – isso significa o desaparecimento de um
objeto para o qual os esforços e uma parte de sua energia estavam
efetivamente tendendo. Esta parte de sua energia precisa de ser dire-
cionada para outra coisa. (No caso daquele que a retém, a aflição au-
menta a sua estatura moral.)
Morte de um ser amado.
Morte da pátria.
A probabilidade da aproximação de nossa própria morte pode
produzir o mesmo efeito, suprimindo todos os motivos, exceto aque-
les relacionados ao futuro imediato. Prisões durante o Terror; guerra.
A certeza da morte produz um efeito muito diferente; uma su-
pressão de todos os motivos de uma vez; um vazio. É por isso que
ninguém acredita nela – exceto durante alguns momentos horríveis.
(A não ser que...) Sentimento de impossibilidade.
Dois sentimentos muito diferentes:
O que necessariamente deve ser, isso é precisamente o que é.
O que é impossível, isso é precisamente o que é.
O primeiro corresponde ao belo na natureza.
O belo na natureza: união da impressão sensível e do senti-
mento de necessidade. As coisas (em primeiro lugar) devem ser assim,
e, precisamente, são assim.
A pintura de uma paisagem, para ser boa, deve dar-nos essa sen-
sação.

305
Na natureza também, composição em vários planos. Harmonia
entre uma onda e outra onda, uma gota de água e outra gota de água.
Coordenação de condições necessárias em várias escalas. (171-173)

Aspeto pessoal e impessoal de Deus.


Talvez: ter um relacionamento pessoal com um Deus impessoal?
Não dizer “eu” a Deus; nem lhe dizer “tu”. “Eu” e “tu” separam
os homens, e esta separação força-os a subir mais alto. Sem o “eu” ou
o “tu”, deixa que o relacionamento seja mais próximo do que qual-
quer forma humana de união. (173)

O objeto da minha busca não é o sobrenatural, mas este mundo.


O sobrenatural é a luz. Não devemos ter a pretensão de fazer dela um
objeto, senão a degradamos.
Devemos orar em segredo, mesmo em relação a nós mesmos. Não
é o meu eu que ora. Se uma oração ocorre dentro de mim, dificil-
mente estarei ciente dela. Não tenho outro Pai senão aquele que está
em segredo. (173)

“Aquele que está no céu…” – Ele está oculto no céu.


“Não deixes tua direita saber…” – bem escondido da própria
consciência. (174)

O relacionamento entre o homem e Deus. A pessoa do homem


precisa estar inteiramente comprometida, como no caso do amor, da
amizade, da extrema angústia provocada pelo medo, da fome ou do
sofrimento, e da extrema alegria; e, no entanto, ao contrário do que
acontece com essas emoções, não é a pessoa do homem que está en-
volvida, mas outra coisa. E essa outra coisa está necessariamente vol-
tada para algo diferente de uma pessoa.

306
Temor de Deus em São João da Cruz: não é ele o medo de pen-
sar em Deus quando se é indigno de o fazer; de maculá-lo ao pensar
nele de forma errada? Através desse medo, as partes inferiores de
nossa natureza afastam-se de Deus. (174)

Revalorização interior da energia: limitar em si mesmo as formas


degradadas de energia (produtos da imaginação, palavras faladas...).
Manter alguma energia disponível em si mesmo.
Valor da analogia na vida humana. Torna possíveis as transferências
de energia; procurar exemplos (meu bem, meu esposo…).
Quando não desejamos satisfazer um desejo, quando nos conte-
mos, o que acontece com a energia contida nesse desejo? Fome, sede
e muitos outros tipos… É a privação um meio de revalorização da
energia? E quando um desejo permanece insatisfeito como resultado
de alguma restrição externa, não podemos extrair dessa própria res-
trição os meios para uma revalorização da energia? Isso é certamente
preferível. Mas se os nossos pensamentos se voltam continuamente
para a satisfação imaginária do desejo impossível ou proibido, ocorre
ao contrário, uma perda de energia (a menos que queiramos, apesar
dos obstáculos, satisfazer o desejo).
Todos os desejos são preciosos, pois todos os desejos contêm
alguma energia.
O vazio como agente de revalorização da energia.
A satisfação real vale mais do que a satisfação imaginária. Mas a
privação vale, em certos casos, mais do que a verdadeira satisfação.
Os desejos tornam-se realidade quando removemos deles o manto da
satisfação imaginária.
A energia liberada pelo desaparecimento de objetos que costumavam
formar motivos tende sempre a diminuir.

307
Sentimentos baixos (inveja, ressentimento…) são formas degra-
dadas de energia.
Transferências de energia para cima. Algumas por associação (o
desejo de obter boas notas que conduz à redação de uma boa compo-
sição), outras por analogia (exemplos?). Talvez sejam apenas aquelas
por analogia que podem fazer-nos subir até certo ponto, pois só elas
nos fazem superar uma descontinuidade.
Por exemplo, o amor pela ordem. (174-175)

“Eu sou livre” é como uma contradição, pois aquilo que em


mim não é livre diz “eu”.
[Observação. É muito mais fácil dizer para si mesmo: vou tradu-
zir, copiar, etc., tantas páginas de..., do que dizer: vou fazer uma hora
de... Aplica-se aos assalariados.]
Dizes a ti mesma: se não tiver mais tal e tal coisa, não terei mais
nada. Isso ocorre porque o pensamento sobre as outras coisas está,
naquele momento, desprovido de energia. Como poderia Guilherme
II ter previsto que, quando o domínio do mundo lhe fosse arrancado,
todo o seu ser se interessaria por uma xícara de chá?
Tal transferência acarreta um espessamento da falsidade, pois
como pode alguém suportar a contemplação de si mesmo em tais
circunstâncias alteradas?
Marius, no caso dele, continuou apegado à dominação, proje-
tada no futuro. Seu desejo foi capaz de saltar sobre o pensamento do
tempo. No entanto, para isso, teve de mudar sua natureza (alargar-se
a si mesmo pela sede de vingança).
Admiramos a Marius mais do que a Guilherme II apenas pelo
prestígio da força. (175-176)

Transferência. Transferências podem ser efetuadas na cadeia de

308
meios para fins (de boas notas para uma boa versão, ou inversa-
mente); de sinais para coisas significadas; de circunstâncias associa-
das; de análogos.
Lawrence: transferência da S.A. para a causa da liberdade árabe.
Troca de energia – um objeto não apenas direciona energia, mas
a acumula e restaura. Vazio de energia num determinado momento,
encontramos alguma para servir um ser amado; é a energia que no
passado acumulamos por causa dela. Nesse caso (no caso de exaus-
tão), o desaparecimento de um objeto que serve de motivo não libera
nenhuma energia, mas faz com que alguma desapareça. (Lawrence,
após o Tratado de Versalhes) – os dois resultados podem acontecer
ao mesmo tempo (acontece sempre?). A eficácia sensível de nosso es-
forço é uma fonte de energia. Na vista de um campo semi-arado existe
alguma energia para arar a outra metade.
…[Labores] perdidos – perdeu algo –
Em relação a cada gasto de energia tornamo-nos credores. O que
pode ser mais difícil do que remir essa dívida?
Em que sentido o pecado nos torna devedores? [Texto do Pai
Nosso.] Permitimos que a energia fosse perdida (degradada). Nós so-
mos mordomos infiéis. Precisamos refazer o vazio em nós mesmos.
Fábula do avarento cujo tesouro enterrado foi roubado. “O que
foi que perdeste?” Perdeu alguma energia acumulada; a energia corres-
pondente a todo o tipo de fadiga, a todo o tipo de privação sofrida
por causa desse tesouro. Além disso, existe alguma energia direcio-
nada (direcionada para o aumento do tesouro) não utilizada, que in-
vade o espírito desordenado e causa uma confusão assustadora.
Perdera seu passado – aquilo que é passado, o que não existe –
o que significa exatamente?
Não consegue mais suportar a lembrança de todos os seus labo-
res anteriores. A sua memória torna-se um obstáculo em vez de um

309
estimulante. (176-177)

Resoluções. A energia necessária para formar uma resolução é


muito menor do que a energia necessária para a executar. Mas a ener-
gia conectada a qualquer resolução que não seja executada degrada-se.
Portanto: nunca se deve formar uma resolução sem nela ter con-
centrado a energia necessária para a realizar, e isso só pode ser feito
por meio da atenção e de um mecanismo de transferência. Qual me-
canismo?
Um esforço idêntico é mais facilmente executado por um mo-
tivo inferior do que por um motivo superior. Por qual mecanismo?
Isso ocorre porque os motivos baixos não exigem atenção alguma e,
consequentemente, a fadiga não impede a presença deles na mente.
Ao passo que, por outro lado, o cansaço, ao paralisar a atenção, pro-
voca o desaparecimento de motivos elevados. Um esforço feito para
ajudar algum ser infeliz que nunca vimos: a menos que a vaidade de
“fazer o bem” entre em cena, só podemos ser levados a fazer tal coisa
por um sentimento de justiça e um esforço da imaginação. Mas o
cansaço logo acaba com isso, aborrece o equilíbrio e fabrica sofismas.
Aquilo que está presente na mente quando a atenção se encon-
tra relaxada é de baixa ordem.
Assim como o “segundo vento” do corredor, precisamos ter uma
“segunda atenção”.
Se um homem precisa fazer um esforço violento para assumir a
atitude que o mundo exterior espera dele como natural, e se, além
disso, a opinião pública e a pressão externa o impedem de assumir
qualquer outra, o vazio é inevitável, e é inevitável que uma modificação
ocorra nele.
Por exemplo, aguentar uma repreensão brutal da parte de um

310
capataz sem responder e sem um olhar ou movimento de mau hu-
mor. Amansar.
Lei – em certas circunstâncias, a alma de um homem tende a
assumir um caráter tal que, ao adotar o comportamento que tais cir-
cunstâncias lhe impõem pela força, não deve haver nele qualquer sen-
timento de vazio.
Portanto, de modo tal que o que dele se espera como natural
deva, de facto, ser natural.
(Ou ainda...? de forma a que possa haver sempre compensações
à sua disposição.)
Entre os dois estados de equilíbrio, a angústia e o sentimento de
impossibilidade.
Velho J. Compensação no futuro. Mas ele ainda está angustiado.
Logo depois, fica duro como pedra.
Após tal adaptação, o que acontece com o desejo de libertação?
Não podemos conceber a libertação sem pensarmos que mudamos, e
esse mesmo pensamento amedronta-nos. (No meu caso, dores de ca-
beça, 1938.)
“Contentamo-nos então com a nossa sorte”, desde que haja
certa estabilidade.
Não há nada mais intolerável para o homem do que a consciên-
cia de sua própria suscetibilidade à modificação. É a nossa tribulação
fundamental e, para poder contemplá-la com firmeza, precisamos da
luz da graça. (177-178)

Coisas negativas que repentinamente parecem positivas devido


à perda delas: liberdade, segurança, saúde. Então, gostaríamos muito
de as ter novamente por um momento, apenas um momento, a fim
de apreciá-las como coisas positivas. Mas se as tivermos novamente,
imediatamente se tornam negativas. Desta forma nos são negadas as

311
alegrias mais preciosas. O conhecimento também – pois em meio ao
sofrimento, nossa mente não está livre para que possamos contem-
plar o sofrimento, o contrário do sofrimento, e a relação entre os
dois; e não podemos dar ao sofrimento que é apenas imaginado um
grau de atenção suficiente para concebê-lo. Sempre atenção demais
ou de menos. Devemos ser capazes de sofrer e não sofrer ao mesmo
tempo. (178)

Existem certas alegrias – e são as mais preciosas – que, quando


imaginadas, são extremamente pálidas; cujo valor total consiste na
sua própria presença. Falta-nos o estímulo para buscar essas alegrias
pálidas, ainda que à custa de um pequeno esforço – a não ser que...
(178)

A alegria perfeita exclui o próprio sentimento de alegria, pois na


alma preenchida pelo seu objeto nenhum canto está disponível para
dizer “eu”.
Não podemos imaginar tais alegrias quando estão ausentes; as-
sim, falta-nos o estímulo para as procurar.
“Exceto que um grão de trigo morra…” Tem de morrer para li-
berar a matéria viva e a energia que carrega em seu interior, para que
a partir delas se desenvolvam outros compostos.
Portanto, temos de morrer para liberar a energia presa em nós.
Deixa a energia ser distribuída de acordo com as recomendações
da verdadeira inteligência. Como estou longe de conseguir isso!
Liberamos energia em nós mesmos – então um pouco mais – e
novamente um pouco mais. Mas ela reconecta-se constantemente.
Como a liberamos totalmente? Devemos desejar que tal nos seja feito
– desejar verdadeiramente; simplesmente desejar – não tentar reali-
zar; simplesmente pensar. Pois toda a tentativa noutra direção é vã e

312
tem um custo alto. Em tal empreendimento, tudo aquilo que chamo
de eu tem de estar passivo. Só a atenção me é exigida – aquela atenção
que é tão plena que o eu desaparece. Tenho de privar da luz da minha
atenção tudo o que chamo de eu e direcioná-la para o que não pode
ser concebido.
Humildade.
Atitude de súplica. Volto-me necessariamente para outra coisa
além de mim, pois é uma questão de ser libertada de mim mesma.
Tentar tal libertação por meio de minha própria energia seria
como uma vaca puxando a corda e caindo de joelhos.
A súplica é eficaz por si mesma só se for persistente.
Nós liberamos energia em nós mesmos com uma violência que
a degrada ainda mais. Compensação correspondente às leis da termo-
dinâmica; círculo vicioso, libertação que só nos pode vir do alto.
Os fariseus eram pessoas que confiavam nas suas próprias forças
para serem virtuosas.
A humildade consiste em saber que no que chamamos de eu
não existe uma fonte de energia pela qual possamos subir. Não fica-
mos, então, mais surpresos com as maldades humanas, incluindo as
nossas próprias, do que em não ver homens caminhando sobre lagos;
no entanto, sabemos que a verdadeira vocação do homem é caminhar
sobre lagos.
Tudo o que há de valioso em mim, sem exceção, vem de fora de
mim, não como um presente, mas como um empréstimo que deve
ser continuamente renovado. Tudo o que está em mim, sem exceção,
não tem absolutamente nenhum valor. Entre os presentes que me
vieram de outro lugar, todos os que me apropriei perderam imedia-
tamente o seu valor. (179-180)

A monotonia do mal: nada de novo; tudo nele é equivalente.

313
Nada real; tudo nele é imaginário. O mal é monótono exatamente
da mesma maneira que é o imaginário; como desenhos em que tudo
foi inventado, ou acontecimentos fictícios inteiramente inventados
por crianças.
Dar essa impressão de monotonia e de saciedade.
É por causa dessa monotonia que a quantidade desempenha um
papel tão importante. Muito poder, muitos reinos, muito dinheiro,
muitas mulheres (Don Juan) ou homens (Célimène), etc.
Condenação a uma falsa infinitude – isso é o próprio inferno.
Se pudéssemos saber exatamente o que perdeu o avarento cujo
tesouro foi roubado, aprenderíamos muito.
Lauzun e o cargo de Capitão dos Mosqueteiros. Preferia ser pri-
sioneiro e capitão dos mosqueteiros em vez de ficar livre e não ser
capitão.
Essas coisas são vestimentas. “Tinham vergonha de sua nudez.”
Como pode este tesouro enterrado ser uma fonte de energia?
(180-181)

Remissão de dívidas aos nossos devedores. Não só no caso dos


homens, mas também no das coisas – não apegar às coisas ou aos
seres humanos a energia que gastamos por conta deles (incluindo
aquela que nos permite suportar o sofrimento).
O desejo de vingança é como o apego do avarento ao seu te-
souro.
Perdoa nossas dívidas. Devolve-nos a energia desperdiçada. De
Ti apenas esperamos receber esta energia e não de nenhuma de Tuas
criaturas.
Se alguém me faz mal, espero receber algo daquele que me fez
mal, assim como o avarento espera receber algo de seu tesouro. (“Sa-
tisfação.”) Se, por minha vez, faço mal a outro, recebo algo dele: o

314
quê? O que ganhei (e o que terá de ser reembolsado) pelo dano cau-
sado? Alarguei-me, espalhei-me – preenchi parte do vazio em mim
mesma criando um novo elemento de vazio noutra pessoa.
Aceitamos o mal que nos é feito como um remédio para o que
nós mesmos fizemos; não há outro tipo de remédio. Se as pessoas
não nos ferissem, nós mesmos não poderíamos ser perdoados.
Não é o sofrimento que nos impomos, mas o sofrimento que
nos é imposto de fora que constitui o verdadeiro remédio; e é mesmo
necessário que seja injusto. Quando pecamos por cometer injustiça,
nos fazerem sofrer com justiça não é suficiente; precisamos sofrer in-
justiça.
“Com a medida com que medis, assim sereis medidos.” A graça
sujeita a leis.
A graça, embora seja gratuita, não é arbitrária. Mistério.
Ser capaz de prejudicar outra pessoa impunemente – por exem-
plo, passar a raiva a um subordinado, enquanto ele é forçado a estar
calado – é economizar um gasto de energia, gasto esse que deve ser
suprido pelo subordinado em questão. O mesmo ocorre no caso da
satisfação ilegal de qualquer desejo.
O resultado é um apego – de ambos os lados. Tais seres huma-
nos somam-se ao eu, às coisas que têm à sua disposição. Ali eles apa-
recem de forma quantitativa.
A energia economizada dessa maneira é imediatamente degra-
dada.
“É uma necessidade da natureza… que cada um, seja deus ou
homem, exerça todo o poder à sua disposição” (Tucídides). Como a
expansão de um gás que ocupa o espaço inteiro aberto diante dele.
Se não esperarmos qualquer restituição de energia por parte dos
objetos, as dores que obrigatoriamente nos demos a nós mesmos per-
mitem-nos recriar um vazio. (181-182)

315
Tendência a espalhar o sofrimento para fora de si mesmo. Se
por fraqueza excessiva não podemos despertar piedade nem fazer mal
a alguém, prejudicamos a representação do universo em nós mesmos. (A
não ser que...)
Toda coisa boa e bela é então como um insulto. (182)

O avarento cujo tesouro lhe foi roubado. Levaram-lhe um pouco


do passado congelado. Passado e futuro – as únicas riquezas do ho-
mem. (183)

O mal é licencioso e por isso é monótono; pois temos de extrair


tudo de nós mesmos. Mas não é dado ao homem criar; portanto, é
uma má tentativa de imitar a Deus. (183)

Súplica: tentativa de trazer um valor à existência por concentrar


nele os pensamentos. Só é razoável quando dirigida a Deus e no caso
dos valores mais elevados. (183)

O não reconhecimento e não aceitação dessa impossibilidade


de criar é a fonte de muitos erros. Temos de imitar o ato de criar, e
há duas maneiras possíveis de imitá-lo – a primeira real, a segunda
aparente: por preservação e por destruição.
Nenhum traço do eu na preservação; mas existe algum na des-
truição. O eu deixa sua marca no mundo ao destruir. (183)

Ciúmes. A infidelidade é como a ingratidão: faz com que o ser


humano perca o seu passado. O meu passado está sempre nas mãos
dos outros. O mesmo ocorre com a morte daqueles que nos são que-
ridos.

316
A morte daqueles que nos são queridos (ou o rompimento com
eles) priva-nos ao mesmo tempo do futuro e do passado.
Morte. Estado instantâneo, sem futuro ou passado – indispensá-
vel para entrar na eternidade. (183)

Como alguém acumula energia nos objetos?


Só consegue acumular fora de si mesmo.
Reflexos condicionais.
Acumular energia em Deus – naquilo que não existe. Ou: em
todo o universo (ocultar o universo dentro do universo).
Acumular energia em outras coisas que não objetos individuais:
no universal. (183-184)

As excitações são sempre exteriores. Não há excitações interio-


res.
Os excitantes podem ser agrupados em classes – erva para ove-
lhas, pão, etc.
Transferências de energia em obediência à inteligência pura.
Continuidade: a visão de um objeto que lembra um esforço no
passado é um estimulante.
(Tomar como excitante o ciclo dos dias e das estações.)
Estimulantes. Brincar – tudo o que seja objeto dos esforços de
várias pessoas é um estimulante.
Destacar-se.
Princípio fundamental: existem várias qualidades diferentes de
energia em nós, tal como existem no mundo, e mudar um motivo (ao
qual está apegada certa forma de energia) por outro que acreditamos
ser melhor, sem uma transmutação de energia, constitui um passo
em frente ilusório. (184)

317
Não nos é dado conceber todo o sistema solar como um sistema.
Uma vez que o sol não está incluído no nosso mundo terrestre, ocor-
rem diminuições na entropia –
Por isso mesmo é o sol imagem de Deus.
O sol dá e não recebe em troca.
Devemos perdoar dívidas assim como Deus as perdoa.
Assim como perdoamos aos outros, perdoamos a nós mesmos.
Escusamos, dispensamos as coisas criadas, inclusive nossa pró-
pria natureza inferior, a partir da necessidade de restituir a nós mes-
mos o equivalente da luz – recebida por nós do alto – que sobre elas
derramamos.
Atividade não-ativa é obediência.
Atividade não-ativa; preservação.
Conexão entre as duas ideias.
A energia de qualidade inferior exige ser restaurada de fora, por
meio do futuro ou do passado.
Uma estrada dá vontade de caminhar. É um estimulante, por-
que é imagem do tempo. (184)

É a força da gravidade que é bela no mar como nas montanhas,


como na escultura, como na arquitetura. (185)

A oscilação é bela no mar.


Bach, música oscilante.
Mar, composição visível em várias escalas.
Ritmo, composição em várias escalas.
Oscilações e ciclos –
Congruência inimaginável. Plenitude sem alguma referência a
nós mesmos. (185)

318
“Senti que tudo aquilo que me mandaram fazer, deveria fazê-lo,
pois era apenas um soldado raso; mas não deveria fazê-lo voluntaria-
mente, simplesmente não podia.”
Que fonte de energia é esta que reside numa ordem e permite a
alguém realizar uma ação heroica sem ser um herói?
Para ser herói, é preciso dar uma ordem a si mesmo.
Onde exatamente está a dificuldade? E como fazer isso? (186)

Subordinação: economia de energia. Graças a ela podemos rea-


lizar um ato de heroísmo sem que seja necessário que o herói seja ou
quem manda ou quem obedece.
Alcançar o ponto de receber ordens de Deus.
Trabalhos cujo “mérito se esgota” são aqueles que procedem de
uma energia finita.
Lawrence.
Uma ordem libera uma fonte interna.
Estabelecer mecanismos de associação com o seu próprio poder
de atenção.
As más ações não são degradantes em si mesmas, mas como bar-
reiras ao poder da atenção. Posteriormente, criam barreiras à atenção
ou então obsessões.
Luz, imagem da verdade, porque igualmente distribuída por to-
das as coisas.
As boas ações por si só nos elevam muito pouco. (187)

Implorarmos a um homem é uma tentativa desesperada de fazer


com que, por pura intensidade, o nosso próprio sistema de valores
passe para a sua mente. Implorar a Deus é o contrário; é uma tenta-
tiva de fazer com que os valores divinos passem para a nossa própria
alma. Temos um vazio interior quando estamos distantes de pensar,

319
com toda a intensidade de que somos capazes, nos valores aos quais
nos apegamos.
Desejamos tornar-nos diferentes daquilo que somos; estamos,
portanto, voltados para o exterior. (188)

Encarnação, eucaristia. Deus se fez homem, se fez matéria. Será


que podemos encontrar vestígios de uma ideia semelhante entre os
deuses animais?
“Acreditamos por tradição no caso dos deuses, e vemos por ex-
periência no caso dos homens, que sempre, por uma necessidade da
natureza, todo ser exerce todo o poder à sua disposição.” Isso não é
verdade para o Deus de os cristãos. Ele é um Deus sobrenatural, en-
quanto que Jeová é um Deus natural.
O sol brilha sobre justos e injustos. Deus transforma-se em ne-
cessidade. Dois lados da necessidade: o lado exercitado e o lado supor-
tado. Sol e Cruz.
A impotência de Deus. Cristo foi crucificado; seu Pai deixou-o
ser crucificado; dois aspetos da mesma impotência. Deus não exerce
sua onipotência; se o fizesse, não existiríamos, nem existiria qualquer
outra coisa. Criação: Deus acorrentando-se por necessidade – espera-
mos que na morte as correntes caiam; mas também deixamos de exis-
tir como um ser separado – Por que é a criação boa, visto que está
inseparavelmente ligada ao mal? Em que sentido é bom que eu exista
e não somente Deus? Como poderia Deus amar-se a si mesmo por
meio de mim, um miserável intermédio? – Essas coisas não consigo
entender. Mas tudo o que eu sofro, Deus também sofre, pois esse é o
efeito produzido pela necessidade, cujo jogo livre ele abstém-se de
violar. (Por essa razão foi ele homem e é ele matéria, comida.) (190-
191)

320
Pitágoras: “Tudo é número”, e o número é verdadeiro. Sem pon-
tos de vista, aparências, ilusões, expressão de opinião. Objeto de pen-
samento da segunda espécie ou da terceira.
Aproxima-nos de Deus; ou então que sentido pode ter?
Ler os números no universo e amar o universo: as duas coisas
caminham juntas.
A ciência antiga era mais adequada para essa leitura do que a
ciência moderna. Talvez a Igreja estivesse certa em opor-se a Galileu.
(Visto que a aflição faz com que tudo seja questionado, questio-
nemos tudo em nossa própria consciência.)
Uma ciência que não nos aproxima de Deus não vale nada.
Mas… (se nos aproxima dele da maneira errada, isto é, como a
um Deus imaginário, é pior ainda). (191)

Lúcifer. O simples facto de existirem outros seres além de Deus


implica a possibilidade de pecado. Essa possibilidade não está ligada
à liberdade (pois ela não existe no caso de Deus), mas à existência –
uma existência separada. (Cristo não podia pecar.) Deus, ao criar,
criou a possibilidade do pecado. Criação, renúncia.
Amor, dor produzida por essa existência separada. Dois seres
que desejam ser um; mas se fossem um, este único ser se amaria a si
mesmo, e que pior pesadelo poderia haver do que esse? É uma forma
ainda mais insaciável de sede. Narciso. Deus é, portanto, o único
objeto possível de amor. Narciso pede para ser outro, de forma a po-
der amar esse outro. O amante pede à sua amada que se tornar ele
mesmo.
(Apenas Deus é ele mesmo e outro.) (192)

Renúncia. Imitação da renúncia de Deus na criação. Deus re-

321
nuncia – em certo sentido – a ser tudo. Esta é a origem do mal. Te-
mos de renunciar a ser algo. Aqui reside o nosso único bem.
Números como metaxú. Não há eu nos números. Exceto como
causa de erro.
Deus renunciou a ser tudo a ponto de ser pregado na cruz. Te-
mos de renunciar a ser algo na mesma medida.
Analogia entre a degradação de energia cinética em calor e a
degradação, na imaginação, dos impulsos da alma que não podem
ser efetivamente realizados. (Raiva contra um superior, etc.)
Mas outros impulsos da alma que se realizam sem qualquer im-
pedimento pertencem ao mesmo nível de energia (raiva de um infe-
rior que não é capaz de responder); equivalência entre licenciosidade
e restrição. A restrição lança-nos de volta para a esfera da imaginação,
onde existe uma licenciosidade completa. (193)

O amor de si mesmo é o único amor; mas só Deus se pode amar


a si mesmo. É por isso que não dispomos de outro amor do que orar
para que Deus se ame por nosso intermédio. (193)

Caridade e injustiça só podem ser definidas por leituras – e assim


escapam a qualquer definição. O milagre do ladrão penitente não
consistiu no fato de pensar em Deus, mas no fato de que reconheceu
a Deus no homem ao lado dele. Pedro, antes que o galo cantasse, não
mais reconheceu a Deus em Cristo, do contrário não o teria negado.
Outros permitem-se ser mortos por falsos profetas, falsos opera-
dores de milagres – falsos operadores de verdadeiros milagres, talvez?
– em quem, erroneamente, leem Deus. Seu sacrifício não os conduz
ao reino de Deus.
Quem pode gabar-se de que vai ler corretamente?
É por isso que devemos implorar sinceramente pela verdade.

322
(Se a Providência desse a cada um o que merece, teríamos cer-
teza de ler sempre corretamente? Mas não é esse o caso.)
Podemos ser injustos ou por meio da determinação de ofender
a justiça, ou por meio de uma leitura errônea da justiça. Mas é quase
sempre (ou sempre?) o segundo caso.
Que amor à justiça pode garantir uma leitura incorreta?
Critério da fé: acreditar apesar das aparências. Temos de acredi-
tar apesar das aparências, mas quando?
Qual é a diferença entre o justo e o injusto, se as pessoas sempre
(ou quase sempre) se comportam de acordo com a sua leitura de jus-
tiça?
Joana d’Arc. Daqueles que hoje discursam sobre ela, quase to-
dos a teriam condenado. Mas os juízes dela não condenaram a santa,
a virgem lutando pela justiça, mas a bruxa,… etc.
Causa de tal e tal forma de leitura. Opinião pública é uma causa
muito forte. As paixões.
Joana d’Arc: lemos na sua história o que é ditado pela opinião
pública contemporânea. Mas ela própria estava insegura. E Cristo…
Nos problemas morais fictícios, a calúnia está ausente.
Grandes obras literárias: véus traçados diante da verdade, mas
véus transparentes. Electra. Antígona. Antígona também duvida…
Que esperança existe diante da inocência se ela não for reconhe-
cida?
Portanto, cometemos um pecado ao crer numa calúnia.
“O que é verdade?” – o que devemos ou não acreditar? Nada
humano é pensável a menos que o passado seja devidamente levado
em consideração, e o passado nunca pode ser verificado. Não é um
objeto de investigação; é reproduzido por pura conjetura e é ocultado
por mentiras – como então podemos escapar do perigo de cometer
as piores formas de injustiça?

323
Ler desapaixonadamente. Pois quando lemos o que nos é suge-
rido pela paixão, nunca percebemos o facto; pensamos que estamos
lendo o que está escrito diante de nossos olhos.
Leitura e força da gravidade.
Mistura dos dois: vertigem.
Lemos o texto que provavelmente nos fornecerá a forma mais
fácil de equilíbrio. (194-195)

O desejo de acreditar como somos instados a fazer pela opinião


pública faz-nos tender a reconstruir o passado e o futuro. Opinião
pública, força. Discordância com a opinião pública, vazio.
Mesmo que não nos conformemos com ela em nosso compor-
tamento, buscamos uma certa conformidade interior com ela.
Somos instados a seguir em frente. Carregamos esse impulso
connosco e o lemos nas coisas exteriores.
Moralmente, o homem acredita que está imóvel e pensa que as coisas
giram em torno dele.
Perceber o próprio movimento. Colocar o Imóvel onde efetivamente está.
Encontrar em si o que é imóvel. ATMAN.
Arte, ciências – mundos artificiais pelos quais o homem tenta
aprender a não ser mentiroso. Mas quando desviadas de seu verda-
deiro propósito, têm o efeito contrário. São meios e não fins. Deus é
o único fim.
O amor: ensina-nos a acreditar numa realidade externa. É por
isso que os metaxú são como a matemática. Se alcançarmos o amor
imóvel.
O amor. Colocamos o centro fora de nós mesmos. Mas ainda
em algo finito. (197-198)

Sentimento de impossibilidade, desequilíbrio; situações em que a

324
imaginação, que molda ficticiamente o passado, o futuro e os objetos
distantes, não consegue preencher os vazios. Ela tenta, mas não con-
segue. Fome interior, sede. Ímpeto detido. Quando o sofrimento
chega a um ponto em que a imaginação, que fabrica compensações,
é impedida de funcionar. Oscilações internas entre recusa e aceita-
ção. Impulsos espirituais sem objeto – mesmo imaginário. Um vazio
forçado. Depois de muito tempo, segue-se o esgotamento e a morte
de certas partes da alma.
A alma, como um gás, tende a ocupar todo o espaço aberto di-
ante de si. Se um gás se retirasse e deixasse um vazio, isso seria con-
trário à lei da entropia. Tucídides: “cada um exerce todo o poder à
sua disposição”. Cada um alastra-se tanto quanto pode.
Parar, examinar-se a si mesmo é criar um vazio em si mesmo.
Há momentos em que a violência externa cria o sentimento de
vazio. Morte súbita, traição, ausência de alguém que amamos, perda
repentina de algo à qual estavam apegados os nossos pensamentos de
futuro. Oscilações. Existe realmente um vazio, pois a alma contém
alguma energia não direcionada. Em seguida esgota-se em movimen-
tos desordenados.
Devemos infligir tal violência a nós mesmos? Tem de ser a graça
a fazê-lo. Mas nesse caso, sem oscilações.
A graça preenche, mas só pode entrar onde houver um vazio
esperando para recebê-la, um vazio por cuja criação ela própria é res-
ponsável.
A figueira estéril. A alma tocada pela graça deve produzir frutos
sobrenaturais ou então murchar (Judas). Não lhe está mais aberta a
possibilidade de produzir frutos simplesmente naturais.
Angústia irredutível (e o “sentimento de impossibilidade”) entre
dois estados de equilíbrio, qualquer que seja o respetivo valor das
duas formas de equilíbrio.

325
“A mulher quando está de parto fica triste.” (198)

Uma pequena força direcionada produz mais efeito do que uma


força cega, embora grande. Mas para que haja direção, aquele que a
direciona deve ter um pouco de força à sua disposição.
Se não houver algo em nós capaz de a direcionar e que tenha
um pouco de força à sua disposição, nosso próprio pensamento é
inteiramente casual; mas não podemos permitir que seja assim.
Angústia: enquanto a experimentamos, não conseguimos ima-
ginar um estado de equilíbrio.
Dependência da imaginação em relação ao atual estado das coi-
sas. Quando satisfazemos nossa fome, não conseguimos imaginar o
que é ter fome. Quando estamos com fome, não conseguimos imagi-
nar o que é estar satisfeito. Conseguimos imaginar o ato de comer,
ficamos até obcecados por ele, mas não a sensação de satisfação que
dele resultará. O equilíbrio e o desequilíbrio são duas formas de ser
de tal natureza que, ao experimentar uma delas, não conseguimos
imaginar a outra. Quando em estado de desequilíbrio, imaginamos
uma forma compensatória de desequilíbrio.
Compensações. Marius imaginou uma vingança futura. Napo-
leão pensou na posteridade. Guilherme II desejou uma xícara de chá.
Sua imaginação não estava suficientemente ancorada ao poder para
fazer a ponte entre os anos; virou-se para uma xícara de chá. (199)

A imaginação, por um lado, preenche os vazios e, por outro, está


acorrentada ao presente; por vezes oscila entre essas duas condições.
Quando é capaz de suprir nossas necessidades sem obstáculos, sen-
timo-nos à vontade. Desta maneira, fabrica interpretações erradas no
caso de pessoas condenadas pela opinião pública, se não estivermos
ligadas a elas de alguma forma. Muito agradável! Fabrica virtudes para

326
os fortes, crimes para os aflitos. Ou o contrário, quando se trata de
formas de força e aflição bastante distantes: compensação em ambos
os casos. (A aflição romântica evoca a imagem da virtude, e a aflição
real a do crime ou, pelo menos, de valor negativo.)
O mal-estar ocorre quando, no seu esforço de fabricação, a ima-
ginação é acorrentada pela realidade. Quando o conflito é violento,
há um sentimento de “impossibilidade”. (É impossível que tenha de
morrer antes de ver o sol de amanhã…)
O belo: a paragem da imaginação inventora. (199-200)

Um ser amado dececiona-me. Escrevo-lhe. É impossível que não


me responda usando as palavras que eu disse a mim mesma em seu
nome.
Devedores. Os homens devem-nos o que imaginamos que nos
darão. Devemos remitir-lhes essa dívida.
Aceitar que sejam criaturas diferentes daquelas da nossa imagi-
nação é imitar a renúncia de Deus; aceitar simplesmente que sejam.
Paixão, renúncia da criação transposta para a escala humana.
Eu também sou diferente do que imagino ser. Saber isso é per-
dão.
Suportar a discordância entre imaginação e facto. Não construir
outro sistema imaginário para poder encaixar um novo facto. (200)

Ele é mau e eu o castigo. Na verdade: eu o vejo como mau e ele


é punido.
Orestes – eu não te mato; teu próprio ato passado te mata. Se ao
mesmo tempo, enquanto no ato de matar, não julga esse ato passado,
permanece puro.
Não julgues, isto é, não leias.

327
“Não julgueis para que não sejais julgados.” A palavra julga-
mento não tem o mesmo significado em ambos os casos, pois o se-
gundo significado é divino.
Dou algo a alguém e ele tem uma obrigação para comigo: mesma
inversão da verdade. (Na verdade, algo passa de mim para ele, e atri-
buo-lhe uma obrigação.)
O avarento e o seu tesouro. O tesouro desempenha o mesmo
papel que o sorriso de Luís XIV. Suporte mínimo indispensável para
a imaginação que preenche o vazio. Dizer que depois de roubado não
perdeu nada é como dizer que dor de cabeça é “nervosa”. Ele perdeu
algo, pois sofre.
Verdade enunciada por Kierkegaard. “Não conseguimos viver”
num mundo em que o desejo não alcança seu objeto. Devemos dese-
jar de outra maneira para que o desejo possa infalivelmente alcançar
seu objeto – e esse é o único problema importante. Mas de que ma-
neira? Ele não sabia. Na passagem de um desejo para outro, existe um
vazio. (E ele não queria nenhum vazio.)
Precisamos trazer de volta ao eu a imaginação, colocar a ação
fora do eu. Eu leio e imediatamente minha ação acontece.
(Devo obrigar o pecado em mim a dizer “eu”.)
Lemos, no que está diante de nós, sob nossos próprios olhos,
uma falsa tradução dos impulsos que recebemos de trás.
Sansão e o ogro do folclore.
Devemos voltar-nos para um equilíbrio correto parando e sub-
metendo-nos, imóveis, à impulsão; “toma a tua cruz”. Percebemos en-
tão, uma vez que resistimos instintivamente. Deixamos de ler, de fora,
uma tradução falsa dele.
Este é um esforço sem qualquer fim específico conectado a ele.
É, portanto, uma aceitação do vazio. Uma aceitação da morte.
Para isso, é preciso apegar-se a Deus.

328
Se nos apegamos a Deus, sofremos todos os impulsos como uma
dor.
Padre, “Realizei o meu 18º batismo de adultos…” Através do nú-
mero, o tesouro do avarento insinua-se em todas as coisas, inclusive
nas mais sagradas. Isso pode, por exemplo, cegar uma pessoa para a
qualidade de um batismo.
Esforços sem algum fim unido a eles são puros, mas são huma-
namente impossíveis.
[A mulher de Canaã. Importunação da oração. Todo homem,
tendo sido criado, está à mesa de Deus, senão como criança, pelo
menos como um cachorro, e tem direito ao pão de Deus, se o desejar.
Se compararmos as palavras de Cristo: “Não é bom tomar o pão
dos filhos e lançá-lo aos cachorros”, o significado talvez seja que de-
vemos dar algumas migalhas ao que há de mais baixo em nós, uma
vez que a parte inferior de nossa natureza também está voltada para
Deus?
Os dois significados são complementares. Se ainda não desper-
tou dentro de mim o filho de Deus, pelo menos existe em mim o
cachorro que também pode pedir pão.]
Se eu quiser, o mundo pode pertencer-me como o tesouro per-
tence ao avarento. Mas é um tesouro que não aumenta.
Ao pararmos a nós mesmos, tornamo-nos uma balança justa.
Desejamo-la para nós mesmos e para o mundo. Servir o mundo
sendo justo.
Precisamos renunciar a energia que os impulsos nos fornecem.
Não apenas isso, mas precisamos gastar a energia direcionada contra
eles. Precisamos então de uma energia que vem de outro lugar.
Tesouro. O avarento é impelido por suas privações passadas que
aparecem diante dele na forma desse ouro cuja quantidade continua
aumentando. (R.: autoengrandecimento.) Se o perder, em que estado

329
ficará? Sem direção, sem orientação. A energia repentinamente libe-
rada dentro dele o faz bater no peito, arrancar o cabelo. Cartagineses:
a sua cidade que tanto sacrificaram para a salvar. Então veio a exaus-
tão e a prostração.
Ou melhor: com orientação, mas sem objeto. É essa troca que é
um mistério.
[“Os teus membros como ferramentas da justiça.”] (202-203)

Os objetos certamente não fornecem energia; eles concentram


o que há sempre em nós (mesmo nos momentos de exaustão) de ener-
gia vital dispersa e não direcionada.
O avarento; é uma forma de loucura: eros. No entanto, é pelo
eros que podemos ser salvos.
O próprio sensualista impõe certa ordem em tudo, mas uma da
qual seu próprio corpo forma o centro.
Muita energia concentrada, de repente liberada: violento dese-
quilíbrio.
Ou se o objeto dessa energia se torna um objeto de repulsão.
Arjuna. (Como ocorre o colapso repentino? A energia volta-se contra
o corpo, de uma forma mais interna do que no caso de alguém que
bate em seu peito.)
A renúncia envolve passar por uma angústia equivalente àquela
que seria causada na realidade pela perda de todos os seres amados e
todos os bens, incluindo nossas faculdades e realizações na ordem de
inteligência e caráter, nossas opiniões, crenças sobre o que é bom, o
que é estável, etc. E não devemos abandonar todas essas coisas por
nós mesmos, mas perdê-las – como Jó. Mas a energia assim cortada
de seu objeto não deve ser desperdiçada em oscilações, degradada. A
angústia, portanto, deve ser ainda maior do que na aflição real, e não

330
deve ser quebrada e espalhada no tempo ou orientada para uma es-
perança particular (Ovídio).
Simplesmente saber, agora, mas saber de toda a alma, que aque-
les que amamos são mortais…
[Dasein – uma verdade do “Existencialismo”, mas eles a mistu-
raram com uma tentação.]
Descer à fonte de nossos desejos. Kierkegaard tentou em vão
fazer isso. Descer à fonte de nossos desejos, a fim de arrancar a ener-
gia de seu objeto. É lá que os desejos são verdadeiros, na medida em
que são energia. É o objeto que é falso. Mas há para a alma uma
separação indescritivelmente dolorosa na separação de um desejo de
seu objeto. Essa separação dolorosa é a condição da verdade.
Simplesmente já ter esperado para nada…
Concentramos alguma energia e, de repente, ela é liberada e os-
cila.
Se o que estávamos esperando chega finalmente, às vezes a ale-
gria é completa. Como se recebesse de fora a energia que concentrou
durante o tempo de espera.
Análise do ato de espera. (204)

Aflição. Somos tomados pelo frio e pelo vazio até que a imagi-
nação consiga novo equilíbrio e um volume menor, e a alma se ocupe
de novas e mesquinhas satisfações. Xícara de chá. Quanto mais so-
mos dominados pelo frio e pelo vazio, mais ávida se torna a alma por
outra forma de equilíbrio, custe o que custar.
[Esse frio, esse vazio não se apodera de nós se houver uma espe-
rança fortemente apegada, alimentada pela imaginação. Marius.]
Devia haver nomes diferentes para dois tipos diferentes de ima-
ginação. O tipo que constitui uma modificação genuína da alma (o

331
tesouro de avarento, sorriso de Luís XIV), e o tipo que é completa-
mente abstrato (imaginar a própria morte enquanto se está em abso-
luta segurança). Imaginar um perigo em que se acredita e um perigo
em que não se acredita são duas operações muito diferentes. (204)

A imaginação eficaz de uma vingança impede a pessoa de sentir


o toque gelado da aflição. (204)

Neste exato momento, seres humanos estão sendo conduzidos,


sem o quererem, a cada segundo que passa, para aquilo que não po-
dem suportar e ainda terão de suportar.
Príamo. “Sou eu realmente quem beija a mão…?” Perceber aquilo
que não podemos imaginar. O avarento não pode imaginar a ausência
de seu tesouro, pois lhe ficou inscrito na carne por todas as privações
sofridas. Enquanto faz parte de sua carne, não está mais diante de
seus olhos. Que o busque então na sua carne. (204-205)

A vontade controla apenas alguns movimentos de alguns mús-


culos, e esses movimentos estão associados à representação da mu-
dança de posição de objetos próximos. Posso colocar minha mão es-
palmada sobre a mesa. Se a pureza interior, ou inspiração, ou veraci-
dade de pensamento estivessem necessariamente associadas a atitu-
des desse tipo, elas poderiam formar o objeto da vontade. Como tal
não é o caso, tudo o que podemos fazer é implorar por elas. Implorar
por elas é acreditar que temos um Pai no céu. Ou devemos deixar de
desejá-las? O que poderia ser pior do que isso? A súplica interior é o
único meio razoável, pois evita o endurecimento de músculos que
nada têm a ver com o assunto. O que poderia ser mais estúpido do
que enrijecer os músculos e cerrar os dentes no que toca a virtude, a
poesia ou a solução de um problema? Atenção é algo muito diferente.

332
O orgulho é um endurecimento desse tipo. Existe uma carência
de graça (no duplo sentido da palavra) no orgulhoso. É o resultado
de um erro.
Atenção, levada ao seu mais alto grau, é a mesma coisa que ora-
ção. Pressupõe fé e amor.
Outra forma de liberdade que não a de escolha está ligada a ela,
que está no nível da vontade – a saber, graça.
Devemos prestar atenção a tal ponto que não temos mais esco-
lha. Então conhecemos o nosso dharma. (205)

Br. Não pude deixar de imaginá-lo vivendo, imaginando a sua


casa como um cenário possível, para mim, daquelas conversas delici-
osas… E assim, a consciência do facto de sua morte criou um deserto
terrível. Uma frieza de aço. Que me importava que houvesse outras
pessoas para amar? O amor que lhe dirigi, acompanhado de esboços
na minha mente para troca de ideias que eu só poderia realizar com
ele, não tinha objeto. Agora não o imagino mais vivo e sua morte
deixou de ser insuportável para mim. A sua memória me é doce. Mas
existem outros que então não conhecia e cujas mortes me afetariam
da mesma forma.
D. não está morto: mas a mesma morte apoderou-se da amizade
que nutria por ele, e uma dor semelhante a acompanha. Ele não é
mais do que uma sombra.
R., em menor proporção, em decorrência de sua saída.
Mas não consigo imaginar a mesma transformação no caso de
***, *** e ***, que, no entanto, há tão pouco tempo não existiam em
minha consciência.
Assim como os pais não conseguem imaginar que há três anos
atrás seu filho não existia, também não conseguimos imaginar uma
época em que não conhecíamos os seres que amamos.

333
Acho que amo da forma errada; do contrário, as coisas não me
aconteceriam desta maneira. Meu amor não estaria apegado a alguns
seres. Estaria disponível para tudo que merece ser amado.
“Sede perfeitos, assim como vosso Pai celestial é perfeito.” Ama
da mesma forma que o sol ao irradiar sua luz. Devemos reunir o
nosso amor em nós mesmos para espalhá-lo sobre todas as coisas. Só
Deus ama todas as coisas e ele só ama a si mesmo.
Amar em Deus é muito mais difícil do que se pensa. (205-206)

Sacrificamos tudo, se necessário, àquilo que não conseguimos


suportar imaginar que nos falte. O egoísta sacrifica tudo, não para si
mesmo, mas para o conforto da existência; não é a mesma coisa. Co-
locar o nosso tudo na posse de um apartamento ou na existência de
uma nação – existe tanta diferença entre as duas? (Esta última traz
consigo o prestígio da força, pois entra em cena a guerra.)
A conceção hindu remove um estímulo à caridade, se alguém
diz a si mesmo: se eu não lhe fizer este bem, ou ele não o merece, ou
então lhe será feito noutro lugar. (Além disso, a crença na Providên-
cia também.) Ao passo que, se alguém disser a si mesmo: se eu não
fizer isso, ninguém mais no mundo...
Possibilidade. Noção que não possui nenhum significado, pois
carrega as dimensões do espaço para o tempo. Noção da qual não
podemos, entretanto, prescindir. É a causa de todos os paralogismos
relativos à liberdade. Isso faz a diferença entre o futuro e o passado.
Somos obrigados a empregar continuamente em nossas discus-
sões com nós próprios uma noção absurda e contraditória.
A forma mais elevada de estimulante é: se eu não fizer isso, não
existirá. Para uma obra de arte, isso é óbvio. A obra de arte que não
faço, nenhum outro a fará. Mas não posso escolher entre várias obras
de arte diferentes. O mesmo é verdade no caso de todas as grandes

334
coisas. E se tal e tal pessoa não escrever tal ou qual poema, nunca
lerei esse poema. O mesmo se aplica a uma boa ação.
Sou apenas um intermediário, mas indispensável.
E se me recusar a desempenhar esse papel? Farei então parte da
matéria do universo, por meio da gravidade.
A existência pertence ao tempo, o valor à eternidade. Como não
haveria uma rutura?
A possibilidade contém essa contradição.
Sem possibilidade, não há necessidade e nem liberdade.
Não temos o direito de resolver essas contradições.
Gravidade. A agonia da Cruz consistiu na gravidade. Prometeu.
Atlas.
Acreditar que somos um instrumento de Deus; mas temos de
acreditar que precisamos ser dignos de o ser. Do contrário, se assim
o fôssemos sempre, o esforço seria desnecessário e, se for desnecessá-
rio, não acontecerá.
Diferenças de valor. Isso é o que nos é dado. Pressupõem um
absoluto. Mas o absoluto as destrói.
Deus é o autor de tudo; Deus é apenas o autor do bem; não
podemos escapar desse dilema.
Lemos em algo possibilidade que, por sua própria natureza, nos é
impossível verificar. (206-207)

Quando perdemos alguma coisa, sofremos por um período fi-


nito de tempo. Passamos por um período de tempo finito, uma quan-
tidade finita de sofrimento (embora no momento nos pareça infi-
nita). Uma quantidade irredutível; nenhum ato de vontade pode di-
minuí-la. Depois disso, um vínculo é rompido.
Para alcançar o desapego, não precisamos também passar por
essa quantidade de dor irredutível, igual, no caso de cada coisa, à que

335
suportaríamos se a perdêssemos?
Nesse caso, para atingir o desapego total, a alma deve realmente
sofrer o equivalente ao que experimentou Jó, ou Cristo na cruz (que
foi uma verdadeira cruz, com cravos, o reverso do simbólico).
A aflição não é suficiente; tem de ser uma aflição sem consolo.
Ai deles, pois têm seu consolo. Não devemos ter nenhum consolo – ne-
nhum consolo que possa ser representado na mente. (Consolação
inefável então descerá.)
Remissão de dívidas – é aceitar o passado sem pedir qualquer
compensação no futuro por esse passado. É também a aceitação da
morte; deter o curso do tempo no momento presente.
A inteligência abstrata só pode conceber a causalidade do pre-
sente. (Continuidade.) É a única causalidade do ponto de vista da
matéria. Mas na alma é totalmente diferente. Também a este respeito
a alma deve tornar-se semelhante à matéria.
Shiva, seu terceiro olho.
Essa rutura entre o passado e o futuro traz consigo a redenção
das falhas.
As falhas tornam isso difícil; mas as punições também.
Opiniões baseadas em possibilidades – “no caso de”, “em qual-
quer caso”, etc., apenas refletem modos de tensão interior.
Quantidades irredutíveis – como o trabalho no caso de máquinas
simples. Constantes.
Se sofrêssemos por saber que nossos amigos são mortais tanto
quanto sofreríamos se eles morressem…
[Leitura.] (210-211)

Como é que uma carta (de alguém que amamos) fornece a ener-
gia para o desempenho de qualquer atividade que nos faltava uma
hora antes de a recebermos? [Diderot.] Como recuperar essa energia

336
sem a carta? – A energia estava ligada ao estado de expectativa.
Devemos realmente forjar em nós mesmos outros vínculos. No
entanto, não podemos fazer isso por nós mesmos – treino não é sufi-
ciente. (211-212)

As soluções que damos a problemas que não colocamos são de-


cisivas na conduta de vida. Temos de colocá-los todos. Para isso, pre-
cisamos esvaziar-nos.
“Ele esvaziou-se de sua divindade.” Esvaziarmo-nos do mundo.
Assumirmos o caráter de escravo. Reduzirmo-nos ao ponto que ocu-
pamos no espaço e no tempo. Tornarmo-nos nada.
Remitir dívidas é permanecer parado no presente; adquirir o
sentimento de eternidade. Então, de facto, os pecados são remidos.
É preciso despirmo-nos da soberania imaginária do mundo, re-
duzirmo-nos ao ponto que ocupamos no espaço e no tempo. Solidão
absoluta. Então possuiremos a verdade do mundo. (212-213)

Se existissem apenas Deus e a matéria?


Deus está crucificado pelo fato de seres finitos, sujeitos à neces-
sidade, ao espaço e ao tempo, pensarem.
Saber que, como ser pensante e finito, sou Deus crucificado.
(Como no caso de minhas dores de cabeça), posso manchar
todo o universo com a minha miséria e não a sentir, ou recolhê-la em
mim mesma.
Ser como Deus, mas Deus crucificado.
Como o Deus Todo-Poderoso, na medida em que se limitou por
necessidade.
[Ciência e sabedoria – Taoistas – o Tao age sem esforço. A gra-
vitação newtoniana, ao contrário, contém forças; uma imagem muito
inferior.]

337
Retz. Quando nos colocamos em algum problema na suposição
de certo mal, e esta suposição se revela como falsa, misturada com a
nossa alegria vem o arrependimento pelo esforço inútil dispensado,
e assim não queremos de imediato acreditar que é falsa.
(Vazio.)
Necessidade de uma recompensa; onde se baseia? Todo o es-
forço cria uma necessidade. O sofrimento também, como implicando
um esforço.
Transferir o cansaço para um objeto de modo a não o sentir.
Pessoas comuns adorando os grandes; mesmo princípio.
Um esforço precisa ser orientado.
Imprimimos um movimento sobre nós mesmos.
É por isso que a morte violenta a natureza.
Ficar de pé e absolutamente imóvel por uma hora, em ordem –
isso é uma tortura pela mesma razão.
Obediência, esforço não orientado.
(A atração newtoniana é duplamente má no sentido de que co-
loca a orientação na necessidade e o esforço na ação divina.)
O sofrimento físico tira do tempo sua orientação.
Sofrimento, indispensável para passar do tempo à eternidade. (213)

A mecânica surgiu quando o produto peso-altura foi reconhe-


cido como uma constante irredutível. A química também, etc.
Não existe uma constante irredutível na modificação da alma –
que, uma vez reconhecida, serviria de critério para acabar com as ilu-
sões que impedem o progresso espiritual?
Por exemplo, o sofrimento que corresponde ao rompimento de
um dos cordões que prendem a alma a este mundo é talvez irredutível
– de modo que, se não o esgotamos, esse laço subsiste de forma dis-
simulada ou disfarçada.

338
Será esse o significado da história de Jó, de Cristo?
Também durações irredutíveis. No momento em que o dever
ordena que devemos agir como se estivéssemos separados de tal e tal
objeto, não podemos fazê-lo se não estivermos efetivamente separa-
dos dele; não podemos cortar o cordão no momento em que o dever
se apresenta; romper o cordão leva tempo. Na verdade, não o rompe-
mos; nós o roemos pouco a pouco. Só quando estiver quase total-
mente corroído é que seguimos o caminho do dever à custa de vio-
lência cometida contra nós mesmos. Caso contrário, puxamos e pu-
xamos e simplesmente nos magoamos, e até mesmo apertamos o cor-
dão em torno de nossos membros.
Lei e graça.
A tarefa de roer o cordão só pode ser realizada durante os perí-
odos em que não estamos puxando.
O homem está preso por muitos cordões. Objetos desejáveis se
apresentam diante dele, mas só consegue mover-se na direção deles
na medida em que os cordões o permitem.
A dor causada por ter puxado em vão os cordões resulta no fato
de que esses objetos desejáveis podem tornar-se odiosos para ele.
Não devemos puxar os cordões (no caso dos estão intactos). De-
vemos roê-los.
Cada pecado notifica-nos de quais cordões estão intactos.
Todos os movimentos que o homem é capaz de fazer dentro do
espaço que os cordões lhe permitem, não têm valor do ponto de vista
do progresso. Os cordões devem ser roídos com os dentes.
Torna-te um equilíbrio para o corpo.
É o corpo crucificado que é um verdadeiro equilíbrio, o corpo
reduzido ao seu ponto no tempo e no espaço. (213-214)

339
São João da Cruz: as virtudes adquiridas durante a aridez espiri-
tual criam raízes na alma – onde uma virtude está presente, todas
estão presentes; e onde uma está faltando, todos estão faltando – a
alma num estado de matrimônio espiritual pensa sempre em Deus,
mesmo quando ela própria não está ciente do facto – aumento expo-
nencial em todas as formas de graça.
Há um período em que a alma já está desapegada do mundo,
sem ainda poder apegar-se a Deus: vazio, terrível angústia. (Noite es-
cura.)
A alma que ama a Deus na solidão é amada por ele na solidão,
isto é, sem qualquer intermediário.
“Assim que a alma se desembaraça destas potências, e as esvazia
de todo o inferior e da propriedade do superior, deixando-as a sós
sem ela, imediatamente as emprega Deus no invisível e divino.”
– [p. 805. Sofrimento.]
“Padecer é o meio para penetrar ainda mais na espessura da de-
leitável sabedoria de Deus; porque o mais puro padecer traz mais ín-
timo e puro entender, e por conseguinte mais puro e subido gozo,
porque é de mais profundo saber. Portanto, não se contentando com
qualquer maneira de padecer, diz: Penetremos ainda mais na espes-
sura. Quer dizer: até aos apertos da morte, por ver a Deus.”
“A alma que deveras deseja a sabedoria divina, deseja primeiro
o padecer para entrar nela, na espessura da cruz.” (215)

Não amar um mais do que outro, porque quem é digno de mais


amor é aquele a quem Deus ama mais, e não sabemos a quem Deus
ama mais. (216)

Todo sofrimento que não nos desapega é sofrimento desperdi-

340
çado. Assim é todo o sofrimento que não aceitamos. Sofrimento des-
perdiçado – nada mais terrível; produz uma frieza desolada, uma
alma distorcida. Ovídio. Escravos em Plauto. (216)

Se nos contemplarmos num determinado instante – o instante


presente, separados do passado e do futuro – somos inocentes. Não
podemos ser neste instante outra coisa senão aquilo que somos; todo
progresso implica uma duração. Faz parte da ordem do mundo, neste
instante, que sejamos tal como somos.
Isolar assim um instante implica perdão. Mas tal isolamento é
desapego.
Todos os problemas regressam à questão do tempo.
Sofrimento extremo, tempo não-orientado; caminho para o in-
ferno ou para o paraíso. Perpetuidade ou eternidade.
A aflição força-nos a reconhecer como real aquilo que não acre-
ditamos ser possível.
Desfruta por meio do desapego. No caso das coisas boas, a ale-
gria pura é o critério do desapego. (216)

“Sereis como deuses.” O pecado consiste em desejar ser como


deuses de outra forma que não através da participação na divindade de
Deus. Nós nascemos com este pecado. É de Lúcifer.
Quererem ser divinas como criaturas.
Necessidade de um mediador para que a adoração de Deus seja
uma imitação, e que essa imitação seja pura.
Ele esvaziou-se de sua divindade. Devemos esvaziar-nos da falsa
divindade com a qual nascemos.
Impede-os de comer da Árvore da Vida. Impedir-nos de sermos
falsos deuses. A morte avisa-nos de que não somos deuses. É por isso

341
que é tão doloroso para nós, enquanto não compreendermos com-
pletamente o facto. (Até mesmo Cristo.)
Matar é mau (e intoxicante) porque nos sentimos libertados da
morte que infligimos. O caso de Aquiles é o contrário. Mas para ele,
também, matar era mau porque era suicídio. Matar para se vingar de
ser mortal; espalhar ao seu redor sua própria aflição pessoal. O meu
impulso, em meio às minhas dores de cabeça, de bater na cabeça de
alguém.
(“Movimentos instintivos”; só os reconhecemos se não lhes obe-
decemos, se os toleramos como fenômenos externos.)
Esses são os dois aspetos do pecado de homicídio.
A instituição da escravidão esconde dos homens (tanto amos
como escravos) esta verdade de que o homem como tal é um escravo.
As melhores instituições são as que mentem menos.
O dinheiro é uma mentira; um sinal geral demais. (216-217)

Necessidade nas coisas da alma. Quem a busca são geralmente


materialistas, ateus (no verdadeiro sentido da palavra); o que falsifica
tudo. O que é necessidade sem trabalho? A necessidade deve ser con-
siderada como aquilo que impõe condições.
Todo aquele que se humilhar será exaltado. Devemos, portanto,
humilhar-nos até o chão. Mas o que é humilhar-se? Um monge que
dorme numa prancha despida não se humilha. Qualquer coisa pode
ser objeto de competição: descer na escala da força sem ser obrigado
a fazê-lo é provar a si mesmo que sabe que pode ser obrigado a isso;
é cruzar o abismo que o separa daqueles que pertencem ao nível mais
baixo.
Consentir em ser anônimo, em ser matéria humana (Eucaristia);
renunciar ao prestígio, à estima pública – isto é, dar testemunho da
verdade, isto é, que se é feito de matéria humana, que não temos

342
direitos. É deixar de lado todos os ornamentos, suportar a nudez.
Mas como é isso compatível com a vida social e seus rótulos?
É, como sempre, uma questão de relação com o tempo. Temos
de descartar a ilusão de possuir o tempo; tornar-se encarnado.
O homem deve realizar um ato de auto-encarnação, pois ele de-
sencarna pela imaginação. O que nos vem de Satanás é a imaginação.
(É melhor aceitar humilhações do que buscá-las. Se as buscar-
mos, devemos, ao submeter-nos a elas, esquecer que as buscamos. Do
contrário, é preferível não as buscar de forma alguma.)
Humilharmo-nos a nós mesmos é sobrenatural, a gravidade mo-
ral opõe-se a ela; a menos que haja compensação. (217-218)

Para mudar algo (abolir o mal) na esfera moral, em si mesmo ou


na sociedade, deve haver uma ação correspondente ao resultado a ser
obtido. Caso contrário, o mal persiste sob uma forma diferente, mas
equivalente. Como podemos definir tal correspondência?
A alavanca, na alma, é a atenção ou oração. Mas na sociedade o
que é?
Qual é a relação entre o sobrenatural e a sociedade?
Talvez se possa dizer que a alavanca, na sociedade, é a religião
(qualquer boa religião). Mas em que sentido?
A alavanca na sociedade é o belo, as cerimônias etc.; consequen-
temente religião. (218)

Amar enquanto permanecemos desapegados. Suportar o pensa-


mento de que aqueles que amamos, em quem pensamos com amor,
são mortais, talvez estejam mortos no mesmo momento em que pen-
samos neles – isso é uma angústia. Não devemos buscar consolo para
esta angústia, mas suportá-la. Quanto maior é o nosso amor, maior é
a nossa capacidade de suportar esse pensamento. Jamais devemos

343
pensar num ser humano, a menos que esteja ao nosso lado, sem pen-
sar que talvez ele esteja morto.
“Desfruta através do desapego.”
De modo mais geral, nunca pensar em algo que não podemos
realmente ver sem pensar que talvez tenha sido destruído.
Que tal pensamento não dissipe o senso de realidade, mas o
torne mais intenso.
Cada vez que dizemos “seja feita a tua vontade”, devemos lem-
brar-nos da soma total de aflições possíveis.
Quando pensamos em alguém que amamos como estando tal-
vez morto, direcionamos-lhe o amor que temos pela memória de uma
pessoa morta, mas não qualquer energia. Evitamos conversas imagi-
nárias.
“No deserto do Oriente…”. Devemos estar num deserto. Pois
aquele que devemos amar está ausente.
Fé – discernimento do divino em nós (inspiração divina) e ao
nosso redor. Precisamos de um coração puro para esse discernimento
e, em primeiro lugar, deixar de lado tudo o que se manifesta (São
João da Cruz) – além disso, a fé é uma virtude, um poder (remover
montanhas).
Regime de atenção? (219)

Aqueles que amamos e que nos amam emprestam uma existên-


cia objetiva, ao referi-los a certos valores em nós mesmos. Diferentes
valores para cada amigo. Somos como que um composto desses valo-
res. Quando um amigo morre, é uma verdadeira amputação. E ao
mudarmos o nosso ambiente (condição social), mudamos verdadei-
ramente nosso ser.
Por meio deles somos alguma coisa. Mas não temos de ser nada.
(219-220)

344
As mesmas palavras (por exemplo, um homem diz a uma mu-
lher: “Eu te amo”) podem ser comuns ou extraordinárias, de acordo
com a maneira como são faladas. E esta maneira depende da profun-
didade da região no ser do homem de onde procedem, sem que a
vontade possa fazer alguma coisa. E por um acordo maravilhoso atin-
gem a mesma região na pessoa que as escuta. Desta forma, o ouvinte
pode discernir, se ele (ou ela) tiver algum poder de discernimento –
e apenas nessa condição – qual o valor das palavras. É essa também
a relação entre arte e gosto. E também entre as duas formas de fé,
aquela pela qual agimos e aquela pela qual acreditamos. Esta última
é um poder de discernimento análogo ao gosto. (De qualquer forma
foi...)
Ser uma pedra de toque. “Se minha alma fosse de ouro.”
Ler a Deus em cada manifestação, sem exceção, mas de acordo
com a verdadeira relação de manifestação própria de cada aparência.
Saber de que maneira cada aparência não é Deus.
Fé, um dom de leitura.
O dom da leitura é sobrenatural e sem este dom não há justiça.
Compreensão dessa realidade suprema que consiste na ausência
de um objeto que é o objeto de amor, e leitura dessa realidade em
objetos tomados juntos como um todo e em cada objeto separada-
mente. Condição de obediência, que é justiça.
A fé está relacionada à leitura e o amor à gravidade.
Não conseguimos deixar de amar. Mas podemos escolher o que
amamos.
Devemos amar o que é absolutamente digno de amor, não o que
é digno em certos aspetos, indigno noutros (Platão).
Nada do que existe é absolutamente digno de amor.
Devemos, portanto, amar o que não existe.

345
Mas este objeto de amor que não existe não está desprovido de
realidade, não é ficção. Pois nossas ficções não podem ser mais dignas
de amor do que nós mesmos, que não o somos.
Fé. Acreditar que nada do que somos capazes de compreender
é Deus. Fé negativa. Mas também, acreditar que o que somos incapa-
zes de compreender é mais real do que aquilo que somos capazes de
compreender; que nosso poder de compreensão não é o critério da
realidade, mas, ao contrário, é enganoso. Acreditar, finalmente, que
o que está além da nossa compreensão apesar de tudo aparece – es-
condido. (220)

A graça é um mistério tão grande quanto a encarnação. A eter-


nidade que desce para inserir-se no tempo. A encarnação representa
o máximo dessa inserção. As relações entre o homem e Deus, entre
o tempo e a eternidade, entre o relativo e o absoluto, são em todo o
caso ininteligíveis. Não há grau de ininteligibilidade; tudo sobre este
assunto é tão ininteligível quanto a Eucaristia. (221)

Renúncia é submissão ao tempo.


O sofrimento faz com que o tempo e o espaço entrem no corpo.
O que Satanás oferecia era imaginário. Riquezas e poder são imagi-
nários. Armaduras imaginárias. Nudez, a verdade da conexão entre a
alma e o corpo. A alma mortal está sujeita à necessidade. É um erro
pensar que a parte mortal da alma está livre da necessidade.
Encarnação. O movimento descendente como condição de um
movimento ascendente. Analogia com a termodinâmica.
Encarnação. Deus é fraco porque é imparcial. Ação não-ativa.
Ele envia luz do sol e chuva tanto para os bons quanto para os maus.
Há uma correspondência entre essa indiferença do Pai e a fraqueza
de Cristo. Ausência de Deus. O reino dos céus é como um grão de

346
mostarda… Deus não muda nada. Cristo foi morto por raiva porque
era apenas Deus.
Na alma, também, o movimento descendente como condição
precedente de um movimento ascendente. Humilhai-vos e sereis exal-
tados. Deixar de lado aquela semelhança com Deus que nos torna
reis e senhores do mundo em pensamento, deixar de lado a imagina-
ção. Tornar-se como Licão quando Aquiles desembainhou a espada.
Cristo e a tentação dos reinos deste mundo. Escolha oposta à
de Adão.
Essa renúncia é a fonte de energia; não pode haver outra ne-
nhuma. Temos de cortar os laços de energia; escolher entre Deus e
as Riquezas.
Humilhar-se é ascender do ponto de vista da gravidade moral.
A gravidade moral faz-nos cair para as alturas.
Amar a imparcialidade de Deus (a balança dourada) é abster-se
da cumplicidade com o destino, limitar-se ao que se é no espaço e no
tempo. Limitando-se dessa forma, a pessoa descobre o Atman.
A imaginação nos é dada para a fazermos descer.
A imaginação é a forma suplementar de energia. Na medida em
que se apega a uma parte do mundo, ela mente (leituras falsas). Deve
ser cortada de todos os objetos para que possa ser capturada pelo
infinito. Cortá-la de todos os objetos é fazê-la descer até o ponto que
ocupamos no espaço e no tempo. Para esse fim são a alegria pura e o
sofrimento puro.
[Deus não-encarnado não é realmente Deus; ele encarnou e foi
sacrificado desde o princípio; “o Cordeiro morto desde o princípio
do mundo”.]
Esta energia suplementar, por um lado, mente, e por outro lado,
degrada-se. (221-222)

347
A alegria é a plenitude do sentimento do real.
Mas sofrer enquanto preservamos o sentimento do real é me-
lhor. Sofrer sem mergulhar num pesadelo. Que o sofrimento seja, em
certo sentido, puramente exterior; e em certo sentido, puramente in-
terior. Que seja apenas na sensibilidade; exterior, na medida em que
está fora das partes não sensíveis da alma; interior, na medida em que
está fora do universo. (Estou muito longe disso.) O sofrimento é o
tempo e o espaço afundando-se na sensibilidade.
Existem três tipos de sofrimento. Sofrimento desnecessário (de-
gradante). Sofrimento expiatório. Sofrimento redentor (este último é
o privilégio dos inocentes). Observamos que Deus inflige todos. (Por-
quê?) Só é dado ao homem infligir o segundo tipo. (Porquê?)
Em certo sentido, Deus é o mundo inteiro e muito mais além
(este Tudo está em mim, eu não estou neste Tudo). Em outro sentido,
ele é apenas uma parte do mundo, a parte bela e boa (eu sou o brilho
no fogo, o desejo legítimo no homem).
Preço do sofrimento inocente. “Uma criança branca como a
neve e vermelha como o sangue.” Hipólito – Prometeu.
Tentar analisar o papel do sofrimento (particularmente o sofri-
mento físico) no mecanismo da graça.
As paixões fortes (por exemplo, o amor), uma concentração de
energia. Uma conexão única; se alguém a cortar…
Um apego que contenha uma impossibilidade é um metaxú.
Da miséria humana para Deus. Mas não como compensação ou
consolo: como correlação.
A fonte da energia moral do homem está fora dele, assim como
a de sua energia física (comida, respiração). Com geralmente a encon-
tra, tem a ilusão – como no plano físico – de que seu ser carrega
consigo o princípio de preservação. Só a privação o faz sentir sua ne-
cessidade. E, em caso de privação, não consegue evitar voltar-se para

348
qualquer coisa que seja comestível.
Existe apenas um remédio para isso: uma clorofila conferindo a
faculdade de alimentar-se de luz.
Não julgar. Todas as falhas têm o mesmo valor. Só há uma falha:
incapacidade de se alimentar de luz; pois na ausência dessa capaci-
dade, todas as falhas são possíveis e nenhuma pode ser evitada.
“Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou.”
Não há nenhum bem além desta capacidade. (222-223)

Na aflição, o instinto vital sobrevive aos apegos que foram ar-


rancados e apega-se cegamente a tudo que pode lhe dar sustentação,
como uma planta que fixa seus tentáculos. Gratidão (exceto, em cer-
tos casos, de forma degradada) e justiça são inconcebíveis neste es-
tado. Escravidão. Não existe mais a quantidade extra de energia que
serve para sustentar o livre-arbítrio, com a ajuda da qual o homem se
desapega. A aflição, sob esse aspeto, é hedionda, como sempre o é a
vida em sua nudez; como um membro amputado ou um enxame de
insetos. Vida sem forma. A sobrevivência é então o único apego. É aí
que começa a aflição extrema – quando todos os outros apegos são
substituídos por aqueles de sobrevivência. O apego aparece então em
sua nudez, sem nenhum outro objeto além de si mesmo. Inferno.
Quando um ser humano passou por isso, e aguentou esse estado
por algum tempo, o que se tornará se, mais tarde alguma prosperi-
dade relativa lhe for restaurada? Como pode ele ser curado desse pas-
sado?
É por este mecanismo que “para os aflitos nada lhes parece mais
desejável do que a vida, justamente quando sua vida não é de forma
alguma preferível à morte”.
Nessa situação, aceitar a morte representa desapego total.

349
Quem aceitou totalmente a morte nunca pode chegar a esse es-
tado de aflição, qualquer que seja sua situação. Mas existem muitas
formas de aceitar a morte que não constituem uma aceitação total
dela.
Quando Deus está presente na sensibilidade, esta ainda é uma
forma de apego; por isso é necessário passar pelo “Deus me, por que
me abandonaste?” A aflição extrema remove a Deus da sensibilidade,
como faz com todos os outros objetos de apego. Só a vida permanece
presente para a sensibilidade. Se pudermos então aceitar a morte, é
a aceitação total da morte; é a plenitude do desapego.
“Pai nosso, que estás nos céus, concede-me isto.”
A posição de indiferença é aquela que está fora de qualquer
ponto de vista.
A aflição que nos obriga a fixar o apego em objetos mesquinhos
revela o caráter mesquinho do apego. Consequentemente, a necessi-
dade de desapego se torna mais clara. Mas se alguém permanece ape-
gado, degrada-se.
Prometeu, o deus crucificado por ter amado demais a humani-
dade. Hipólito, o homem punido por haver sido muito puro e muito
amado pelos deuses. É a aproximação do divino e do humano que
invoca a punição.
Hipólito – tema do homem que não é o que parece, impedido,
por juramento, de se dar a conhecer. Tema frequente no folclore.
(223-224)

Se Deus é algo que, por um lado, inclui todo o universo e muito


mais além, e, por outro lado, se manifesta numa parte do universo
(eu sou o brilho no fogo, etc.) – o amor também é duplo. Por um
lado, amar tudo sem distinção; por outro lado, amar apenas o bem.
Mistério. (224)

350
Existem certos casos em que uma coisa é necessária pelo simples
fato de ser possível. Assim, o comer quando se está com fome. Pode-
mos adiar o momento por meio de ascetismo, penitência, etc. Mas,
exceto em alguma situação em que seja forçado a morrer, todo ho-
mem que esteja com fome e tenha um pouco de comida diante de si,
acabará comendo, seja ele um criminoso e sem inteligência ou um
sábio e santo. Da mesma forma, se alguém vir um ferido morrendo
de sede e houver água por perto, o simples fato de que dar-lhe de
beber é uma coisa fácil torna-a necessária. Nem um canalha se abste-
ria de fazer isso, nem um santo.
Por analogia, discernir os casos em que, embora as coisas não
pareçam assim à primeira vista, a possibilidade implica uma necessi-
dade. Atuar nestes casos e não nos outros.
Hipólito. O Deus que vê o homem que o serviu fielmente, so-
frendo e morrendo, e não pode salvá-lo.
Homem superior aos deuses pelo sofrimento: sentimento grego.
(Não estamos muito longe de uma espécie de ciúme de Deus.)
Causalidade na esfera puramente espiritual; apenas ela se relaci-
ona diretamente com Deus. Embora exista também uma espécie de
mecanismo de espiritualidade; mas apenas talvez como resultado das
condições decorrentes da associação entre o espírito humano e o
corpo.
Se para um ser humano uma inspiração da graça é exterior, se
não veio de outros homens, do ar, do sol, etc., então veio de Deus.
É a única esfera em que Deus é uma causa imediata.
Mas a associação entre o espírito humano e o corpo faz com que
haja necessariamente efeitos físicos da graça. (224-225)

351
M. Pouget. “A ciência das religiões ainda não começou.” Certa-
mente.
É a ciência do sobrenatural nas suas várias manifestações através
das várias sociedades humanas.
Tanto cristãos como não-cristãos são igualmente incapazes de
entender isso.
Alguém pode estudar o sobrenatural como tal ou então como
fenômeno. A segunda maneira de o estudar é necessária, pelo menos
para que seja possível discriminar (por exemplo, o sentimento social
em Durkheim, se não for o sentimento religioso, é bem e verdadeira-
mente um substituto dele). Para poder estudá-lo como tal, é preciso
antes de tudo ser capaz de discerni-lo. A fé é, portanto, necessária,
no verdadeiro sentido da palavra. (226)

POSTULADO.
Na esfera da inteligência, o sobrenatural é aquilo que é escuro e
fonte de luz. Como o maior não pode sair do menor na ordem de
valor (postulado requerendo exame), essa escuridão é mais luminosa do
que aquilo que para nossa inteligência é luminoso. Movemo-nos con-
tinuamente de uma quantidade menor de luz para uma maior;
quando saltamos, passando através de alguma escuridão, é porque
algo nos puxou. Luz descendente.
Perguntemo-nos em primeiro lugar: é a noção do sobrenatural
indispensável? E a seguir: Onde e em que circunstâncias é indispen-
sável recorrer a ela?
Se é indispensável, o é para que possamos refletir sobre a condi-
ção humana (e não simplesmente a história do povo judeu em pri-
meiro lugar, e depois a da Europa).
A Palavra é a luz que vem com cada homem.
Logos. A relação. Logos e ágape [amor].

352
Precisamos restaurar a liberdade espiritual. A Igreja separou er-
radamente a liberdade e a espiritualidade: o Renascimento, na sua
necessidade de liberdade, abandonou a espiritualidade. Foi impreg-
nado pela Grécia, com exceção da espiritualidade grega. (226-227)

Ligação necessária entre o sobrenatural e o sofrimento. Como


pode o homem, feito de carne, não sofrer quando está unido à natu-
reza divina? Deus nele sofre por ser finito. Sofrimento implicado na
criação. Sofrimento sem consolação, pois as consolações são fabrica-
das pela imaginação, da qual nos devemos esvaziar para dar lugar a
Deus. A imaginação é a falsa divindade. (A árvore da vida de Gêne-
sis?)
Certos atos (por exemplo, matar, salvo talvez em casos excecio-
nais) são na sua essência imaginários, embora sejam realizados de
forma eficaz. São estes que são proibidos.
Ao abrir espaço para Deus no espírito, abandonamos a carne à
necessidade.
Obediência, virtude suprema da criatura.
Deus é e não aparece. O diabo aparece e não é. “Sou eu que
concedo todos esses reinos.” (227)

O sofrimento é definido pelos esforços no vazio: se temos uma


dor de cabeça, fazemos um esforço contínuo para nos livrar dela, sem
resultado. A aceitação do sofrimento é, portanto, a aceitação do va-
zio.
Renunciar aos frutos é ter uma vida inteiramente composta de
esforços no vazio. (227)

A criação como produção de uma aparência que devemos des-


fazer. A aparência de que existe algo diferente de Deus. (228)

353
Falta de fé, como mostra a ortodoxia totalitária da Igreja. Quem
pede pão a Deus não receberá uma pedra. Aquele que deseja a ver-
dade, se um erro lhe aparece, é porque representa para ele uma etapa
no caminho para a verdade, e se continuar em seu caminho, o verá
como um erro. Quem não deseja a verdade engana-se a si mesmo,
mas também se engana a si mesmo ao recitar o credo. A condenação
dos erros em si era boa; mas não “seja amaldiçoado”. Como sabemos
que tal e tal erro não é necessário a tal e tal espírito num estágio de
desenvolvimento? Bastava dizer: Quem afirmar que…, não atingiu a
meta. Se era uma questão de proteger gente simples, não seria possí-
vel fazê-lo por meio da oração?
Se peço a verdade, todo o pensamento que me parece verdadeiro
vem de Deus, mesmo que seja um erro, e não tenho o direito de re-
jeitá-lo por meio da submissão a uma autoridade, até mesmo daquela
que aceitei livremente.
Cada religião é unicamente verdadeira, isto é, se no momento
em que estamos pensando nela, lhe damos bastante atenção, como
se nada mais houvesse; da mesma forma, cada paisagem, cada qua-
dro, cada poema, etc. é por si só belo. Uma “síntese” das religiões
implica uma qualidade inferior de atenção. (228)

O sobrenatural nas ações. Uma ação não é sobrenatural em si


mesma, mas na medida em que é uma consequência – e uma expres-
são – de um estado sobrenatural. (228)

A criatura é nada e acredita ser tudo. Tem de acreditar ser nada


para ser tudo. Equilíbrio entre aparência e ser; quando um sobe, o
outro desce. Aparecer como nada, imitação de Deus, ação não-ativa;
efeito do amor.

354
Uma divindade imaginária foi concedida ao homem para que
ele se despojasse dela, como Cristo fez de sua divindade real.
Provas da Encarnação. A história não pode fornecer nada, pois
a nossa razão fica menos chocada com qualquer outra explicação da
história. Apenas uma: a evidência interna contida no texto que está
diante de nós. É isso que estabelece o valor histórico do testemunho,
e não o contrário.
Existe uma força “deifugal”, caso contrário, tudo seria Deus.
A Ilíada; “miséria do homem sem Deus” – sofrimentos vãos,
pois não são sofrimentos de inocentes. (Com a exceção talvez de Pá-
troclo? Mas ele mal é indicado.)
Clamor de sofrimento. Porquê? Ressoa por toda a Ilíada. Testa-
mento Espanhol. Cristo também.
Explicar o sofrimento é consolá-lo; portanto, não deve ser expli-
cado.
Daí o valor eminente do sofrimento dos inocentes.
Assemelha-se à aceitação do mal na criação por Deus, que é ino-
cente.
Todo aquele que empunhar a espada morrerá pela espada. E
todo aquele que não empunhar a espada (ou a deixar cair) perecerá
na cruz.
Ser inocente é suportar o peso de todo o universo. É jogar fora
o contrapeso.
Ao esvaziarmo-nos, expomo-nos à pressão total do universo ao
nosso redor.
O sofrimento de um ser que não é inocente é uma punição,
desde que seja sentido e concebido como tal. Caso contrário, é um
sofrimento de tipo infernal. O sofrimento de um ser puro é redentor.
Hipólito. Superioridade do homem sobre Deus através do sofri-

355
mento. Era preciso que o homem fosse Deus para que essa superiori-
dade não fosse escandalosa.
Ao lado da trindade religiosa hindu (criador, destruidor, preser-
vador) há uma trindade metafísica (Deus manifestado, Deus não-ma-
nifestado, união dos dois). Corresponde a Palavra ao Deus manifes-
tado? “Ninguém viu o Pai,” “Quem me vê, vê o Pai.”
Deus e o sobrenatural estão escondidos sem forma no universo.
É bom que estejam escondidos sem nome na alma. Do contrário cor-
reríamos o risco, sob um nome, de possuir algo imaginário. (Aqueles
que alimentaram, vestiram, etc. Cristo não sabia que era o Cristo.)
Significado dos antigos mistérios. O Cristianismo (católicos e protes-
tantes) fala demasiado sobre coisas sagradas.
Para cada ação, considerá-la do ponto de vista não do objetivo,
mas do impulso. Não: para quê? Mas: de onde se origina?
Deus só foi capaz de criar escondendo-se. Caso contrário, só ha-
veria ele. Uma distinção entre as almas e Deus no paraíso é inconce-
bível (exceto se assimilarmos o paraíso ao “mundo dos justos” hindu,
o que em alguns aspetos seria falso).
Portanto, a santidade também precisa estar escondida, até certo
ponto, da consciência. (Mas só até certo ponto, pois Cristo… Mas no
final…) E precisa estar assim escondida no mundo.
A aparência apega-se ao ser e só o sofrimento os pode separar.
Não é a alegria e o sofrimento que se opõem, mas os tipos pro-
duzidos por eles respetivamente. Existem tipos infernais de alegria e
sofrimento; tipos curativos de alegria e sofrimento e tipos celestiais
de alegria e sofrimento.
Quem possuir o ser não pode possuir a aparência, e a força está
no nível da aparência. A aparência acorrenta o ser.
O tempo, no seu curso, separa pela violência a aparência do ser e o ser
da aparência. O pote quebrado de Milarepa. O tempo revela que não

356
é eternidade.
Que exemplo há de uma segunda tragédia relativa à punição de
uma pessoa inocente? Tragédia imóvel. O sofrimento é absoluta-
mente exterior, e ao mesmo tempo absolutamente essencial à inocên-
cia. Cada um por causa do outro.
Punição. É o mal que o eu de tal e tal data faz ao eu de tal e tal
data posterior. Assim, se tenho pão suficiente para segunda, terça e
quarta-feira, e como tudo na segunda-feira, o eu de segunda-feira faz
com que o eu de terça e quarta-feira passe fome. Mas se na terça-feira
aquilo que me impeliu para o mal ainda estiver dentro de mim, sou
eu que faço o mal ao eu ao mesmo tempo. Posso não ter consciência
disso. Se a raiz da falha desapareceu (metanoein, mudar o coração), o
mal que sofro na terça-feira é exterior; é um sofrimento inocente.
Quando sofro o mal que me inflijo sem saber, é um sofrimento in-
fernal. Quando procuro saber que é infligido por mim, é sofrimento
expiatório. Quando mudo, é um sofrimento inocente.
Um culpado sofre frequentemente com o mal infligido por ou-
tros e não por “ele mesmo no passado”; mas a fonte do mal, se não é
idêntica, é análoga à fonte do mal que nele está. O reconhecimento
dessa identidade ou analogia significa o reconhecimento do mal em
si mesmo como mal por partes de seu ser, que de outra forma não
poderia fazê-lo.
O pensamento da miséria humana, sob seu duplo aspeto de pe-
cado e sofrimento, é justamente esse reconhecimento. (230-231)

A piedade de si mesmo não tem lugar na aflição extrema.


Abaixo de um certo nível de aflição, a piedade transforma-se em hor-
ror de si mesmo e dos outros. É por isso que Napoleão costumava
dizer que as aflições reais não podem ser contadas; e os antigos, que
grandes sofrimentos permanecem mudos. O poeta épico ou trágico

357
não pode ignorar esse facto. (231)

A renúncia é indivisível. Quem renuncia a uma só coisa, de ver-


dade e sem compensação, renuncia a tudo e efetivamente perde tudo.
Terá apenas, em troca, o reino dos céus. Para poder manter algo é
preciso apegar-se a ela. (Mesmo apegando-se a ela, também a perde,
mas acidentalmente.)
A justiça de Deus é, talvez, estrita (mas oculta) na esfera espiri-
tual. Lá, o bem sempre recebe sua recompensa exata, o mal sua puni-
ção exata. (Karma?)
Se alguém pede pão, não recebe uma pedra. O princípio carte-
siano do pensamento claro e distinto é um aspeto disso. (231)

Ordem (palestra de Berger). Noção composta de vários níveis


sobrepostos. As condições de existência de uma coisa, tomadas como
um todo, representam para essa coisa uma ordem. Por exemplo, o
ajuste de um mecanismo de relógio e a indicação da hora. O solo,
bactérias, água, etc. e uma planta.
É por isso que provar a existência de Deus pela ordem do
mundo possui algo mais do que estranho. A ordem como condição
de existência de quê? Do homem? Isso nos colocaria no nível – e
quase que acima – de Deus. Se o propósito final da criação somos
nós, tal é realmente miserável. A própria noção de ordem do mundo
é mais do que estranha. E, no entanto, o cosmos existe.
Existem certas ordens que não são uma condição de existência;
ou pelo menos são tais que a condição que representam está com elas
misturada. Assim, a ordem interior da alma e da virtude; ordem esté-
tica e o belo.
Essa ordem é uma imitação de algo que não é representável, que
não é mais uma ordem. Música. Ordem de sons que imita o silêncio.

358
Critério de repetição indefinida. (Nunca é errado corrigir, em-
bora possamos corrigir mal e piorar as coisas. Se corrigirmos, é por-
que havia uma imperfeição em algum lugar. Caso contrário, não ha-
veria desejo de corrigir.)
Concernente ao pensamento abstrato, a plenitude do ser é idên-
tica ao nada; mas não é assim quando alguém está fugindo do nada
e direcionando seus passos em direção ao ser. Existe o nada do qual
fugimos e o nada para o qual vamos.
“Sem nome ou forma.”
A ordem estética excede a imaginação e a compreensão. Terceira
dimensão da ordem.
Ordem e Palavra. Metaxú e mediador. (A Palavra não é apenas
mediadora no sentido de estar encarnada, mas também no sentido
de ser uma Palavra.) Logos, ordem. (231-232)

A contemplação da miséria humana é a única fonte de felicidade


sobrenatural. (232)

Beleza. Não se pode dizer que é uma ordem de “perspetiva”. Ela


afasta-nos do ponto de vista. (232)

Plano divino, propósito divino – o que isso pode muito bem


significar? Um plano é a subordinação de uma certa coisa como meio
a outra coisa considerada como fim, de certas coisas como partes a
uma certa outra coisa como um todo. E é tudo o mesmo no que diz
respeito a Deus.
Tal como a beleza, plano sem subordinação. Microcosmo.
Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito (com referên-
cia ao sol e à chuva enviados a todos sem distinção).
Trindade. Mal e desordem. Não há desordem ou mal para o Pai

359
(pois tudo está no kósmos) – só pode haver algum para o Filho. É por
isso que é ele quem possui o poder judicial. Só existe mal no kósmos
à escala do microcosmo. O Filho – ele é Deus na medida em que deve-
mos imitá-lo. Por isso é a Sabedoria e o logos, que se referem a uma
ordem transcendente do mundo acima de nós, mas à qual somos
sensíveis.
Se existe outra espécie pensante, haverá sempre o mesmo Deus
para ela, apenas outra Palavra.
Colocar a perfeição no microcosmo.
Mas como e em que sentido? (232-233)

Revelação e razão, fé e razão; a razão é sempre o único instru-


mento. Mas há certas coisas que a razão só pode compreender à luz
da graça. (Não dar vista aos cegos, mas…)
A vontade de Deus. Como a conhecemos? Se produzirmos qui-
etude em nós mesmos, se silenciarmos todos os desejos e opiniões e
se com amor, sem formular palavras, obrigamos toda a nossa alma a
pensar, “Seja feita a tua vontade”, a coisa que depois disso nos con-
vencemos de que devemos fazer (mesmo que em certos aspetos pos-
samos estar enganados) é a vontade de Deus. Pois se lhe pedirmos
pão, ele não nos dará uma pedra.
Critério – uma ação (ou não-ação, uma atitude) para qual a ra-
zão oferece vários motivos distintos e convergentes, mas que sentimos
que transcende todos os motivos representáveis. Dois critérios que
coincidem.
Metaxú. Toda representação que nos atrai para o não represen-
tável. Necessidade de metaxú para impedir-nos de tomar posse do
nada em vez do ser pleno.
Milarepa. Sua experiência quando comia. A própria santidade

360
como fenômeno. E depois o pote quebrado. Havia perdido tudo, re-
nunciado a tudo, mas ainda não sentia com todo o seu ser que o seu
próprio pote estava sujeito à destruição.
Níveis de crença sobrepostos. Mesmo a verdade mais comum,
quando invade toda a alma, é como uma revelação.
Terceira dimensão… (233)

Alavanca. Arranca o ser da aparência. Logos – conhecimento do


segundo tipo? Já do terceiro tipo? – Arranca a vontade do desejo, ou
o desejo da perspetiva – terceira dimensão.
Pecado e virtude não são ações, mas estados. As ações são apenas
a consequência automática de um estado. Mas só podemos repre-
sentá-los para nós mesmos na forma de ações. Donde o símbolo do
pecado anterior a toda ação. Nascemos em estado de pecado. Terá ha-
vido algum tempo em que o homem não estivesse em estado de pe-
cado? Mas ele não possuía conhecimento.
Sangue na neve. Inocência e maldade. Que o próprio mal possa
ser puro. Só pode ser puro na forma de sofrimento, e o sofrimento
de alguém inocente. Um ser inocente que sofre lança a luz da salva-
ção sobre o mal. Ele é a imagem visível do Deus inocente. É por isso
que um Deus que ama o homem e um homem que ama a Deus têm
de sofrer.
Feliz inocência. Violetta. Algo também infinitamente precioso.
Mas é uma felicidade frágil, precária, uma felicidade fortuita. Flor de
maçã. Essa felicidade não está seguramente ligada à inocência.
A mulher que deseja um filho branco como a neve e vermelho
como o sangue, e o obtém; mas ela morre, e a criança é entregue a
uma madrasta.
“Não julgueis.” O próprio Cristo não julga. Ele é julgamento. O
sofrimento da inocência como medida.

361
Julgamento, perspetiva. Nesse sentido, todo o julgamento julga
aquele que o pronuncia. Não julgar. Não é indiferença ou abstenção,
é julgamento transcendente, a imitação do julgamento divino, que é
impossível para nós; mas “Sede perfeitos, assim como o vosso Pai ce-
lestial é perfeito.”
A aproximação entre Deus e o homem é proibida pela própria
natureza da criação, pelo abismo que separa o ser da aparência. Upa-
nishads: os deuses não a desejam. Significa um desfazer da criação, e
a criação desfaz-se a si mesma no sofrimento.
Perda do senso de realidade quando a mente se submete a uma
perspetiva. Escravidão; a perspetiva do amo. A perspetiva de outras
pessoas. Debaixo da perspetiva. Desordem debaixo da ordem. Mas
por isso mesmo é a escravidão a imagem da relação entre o homem e
Deus.
Não falar de Deus (tampouco na linguagem interior da alma);
não pronunciar essa palavra, exceto se não formos capazes de fazer de
outra forma (“capazes” é obviamente usado aqui num sentido particu-
lar).
Conexão entre a árvore do Paraíso terrestre e o conhecimento,
e entre a árvore da cruz e a Sabedoria divina. Que mistério reside
nesta correspondência? (E de onde vem a expressão “árvore da cruz”?)
A miséria humana, e não o prazer, contém (com respeito a nós
mesmos) o segredo da Sabedoria divina. Toda a busca de prazer é a
busca de um paraíso artificial, de um estado mais intenso (mais ele-
vado porque mais intenso), de uma intoxicação, de um alargamento.
Mas nada nos dá, exceto a experiência de que é vã. Apenas a contem-
plação de nossas limitações e de nossa miséria nos coloca num plano
superior.
“Todo aquele que se humilhar será exaltado.” Adão e Eva que-
riam exaltar-se a si mesmos.

362
Fresco de Masaccio.
Sua desobediência consistia em querer, sem Deus, tornar-se Deus.
[O homem pecou ao tentar tornar-se Deus (no plano imaginá-
rio), e Deus redimiu esse pecado tornando-se homem. Por meio do
qual o homem pode realmente tornar-se Deus. Assim, a serpente falou
verdadeiramente.]
O movimento ascendente é vão (e pior do que vão) se não deriva
de um movimento descendente.
“Sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”: isso é estritamente
verdadeiro por meio da redenção.
(Por que alguém deveria ficar relutante em pensar que Deus de-
sejou o pecado de Adão?) (234-235)

É como se a aproximação do homem a uma divindade imaginá-


ria fosse um apelo a Deus para esse desejo ser coroado pela punição
e redenção. Ele foi expulso do Paraíso para que soubesse que não é
como Deus. (É por isso que temos de sofrer; do contrário, esquecemos
o facto com muita facilidade.)
Nosso pensamento, que nos confere domínio sobre o universo,
faz-nos ser como Deus em todos os momentos, quando não estamos
sendo mordidos pela necessidade.
Adão e Eva buscaram a divindade na energia vital – numa ár-
vore, numa fruta. Mas está preparada para nós numa madeira morta,
geometricamente quadrada, sobre a qual está pendurado um cadáver.
Devemos procurar pelo segredo de nosso parentesco com Deus na
nossa mortalidade.
O conhecimento de nossa miséria é a única coisa em nós que
não é miserável.
O pecado nada mais é do que o fracasso em reconhecer a misé-

363
ria humana – é miséria inconsciente e, por isso mesmo, miséria cul-
pada. A história de Cristo é a prova experimental de que a miséria
humana é irredutível, que é tão grande no homem absolutamente
sem pecado quanto no pecador. Só ele é iluminado. Mas essa miséria
não pode ser separada do estado de pecado; a história de Cristo está
ligada à de Adão.
Da mesma forma que, em certo sentido, Deus é infinitamente
mais do que todo o universo e, em certo sentido, se manifesta por
meio de uma parte do universo, a saber, o bem – então, em certo
sentido, a miséria humana é definida pelo estado de pecado e, em
certo sentido, é independente do pecado. Portanto, é verdade que a
Encarnação e a Paixão são e não são consequências da desobediência
de Adão.
A miséria do homem consiste no facto de que não é Deus. Está
sempre se esquecendo disso.
Prometeu. Deus deu ao homem o fogo – fogo, as artes, a escrita,
etc., todas as condições materiais para a separação do homem dos
animais – e por isso é punido com o sofrimento, pois, penetrando na
alma humana, sofre ele ali a miséria humana.
Só podemos saber uma coisa sobre Deus: que ele é o que não
somos. Apenas a miséria é imagem disto. Quanto mais a contempla-
mos, mais o contemplamos.
“Aquele a quem muito se perdoa, muito ama”: o pecado (no
momento do arrependimento) equivale ao sofrimento. O homem
bom e feliz não pode encontrar lugar em si mesmo para o amor di-
vino (a menos que tenha uma visão sobrenatural da natureza frágil
da bondade e da felicidade). Ele considera uma parte essencial de sua
natureza aquilo que as circunstâncias lhe concedem. Confunde o eu
com caráter.
Para homens de coragem, os sofrimentos físicos (e as privações)

364
costumam ser um teste de resistência e de força de alma. Mas há um
uso melhor a ser feito deles. Que não sejam isso para mim então.
Que sejam um testemunho sensível da miséria humana. Permite-me
suportá-los de maneira completamente passiva. Aconteça o que acon-
tecer comigo, como poderia eu chegar a considerar a aflição como
pesada, visto que a ferida da aflição e a humilhação que sofrem aque-
les por ela condenados, lhes abre o conhecimento da miséria hu-
mana, o conhecimento que é a porta, a passagem conduzindo a toda
sabedoria?
Mas o prazer, a felicidade, a prosperidade, se sabemos reconhe-
cer nelas o que vem de fora (o acaso, circunstâncias), igualmente dão
testemunho da miséria humana. O mesmo uso deve ser feito delas.
Milarepa e a comida. (Isso aplica-se até mesmo à graça, na medida em
que é um fenômeno sensível.)
Temos de ser nada para estarmos no nosso verdadeiro lugar no
todo.
Pecado e o conhecimento de nossa miséria. Se sabemos de toda
a alma que somos mortais e aceitamos isso de toda a alma, não pode-
mos matar (exceto, supondo que tal coisa seja possível, sob as exigên-
cias da justiça).
Pecado e o prestígio da força. Devido ao facto de toda a alma
não termos conseguido conhecer e aceitar a miséria humana, pensa-
mos que deve haver uma diferença entre os seres humanos e, conse-
quentemente, deixamos de ser justos, seja por fazer uma distinção
entre a nossa vantagem e a das outras pessoas, ou então estabele-
cendo uma preferência por certos indivíduos entre outras pessoas.
Isso provém do facto de não sabermos que a miséria humana
representa uma quantidade constante e irredutível e existe em cada
homem da maior forma possível; e essa grandeza vem somente do

365
único Deus, de modo que todo homem é idêntico a todo outro ho-
mem.
Erro como incentivo. Erro como fonte de energia. Acho que
vejo um amigo. Corro na sua direção. À medida que me aproximo
cada vez mais, percebo que corro para outra pessoa – um estranho.
O respingo de cor formado por esse rosto, essas roupas, etc., que há
um momento atrás era fonte de energia motora, não o é mais. Foi
liberada alguma energia.
Más ações são aquelas para as quais a energia dedicada se deriva
de um erro.
Todos os incentivos particulares são erros. Só a energia que não
se deriva de nenhum incentivo é boa. Obediência a Deus, isto é, visto
que Deus está além de tudo o que podemos imaginar ou conceber, a
nada. Isso é ao mesmo tempo impossível e necessário – em outras
palavras, é sobrenatural.
O amor a Deus é puro quando a alegria e o sofrimento inspiram
igualmente gratidão.
O aperto de mão de um amigo que reencontramos novamente
após uma longa ausência. Nem noto se ele confere prazer ou dor ao
meu sentido do tato; assim como um cego sente objetos diretamente
na ponta de sua vara, também sinto a presença de meu amigo direta-
mente. O mesmo se aplica às circunstâncias da vida, quaisquer que
sejam, e a Deus.
Isso implica que nunca devemos buscar consolo para a dor. Pois
a felicidade está além da esfera do consolo e da dor, fora dela. Nós a
apreendemos com um sentido diferente, assim como a perceção de
objetos na ponta de uma vara ou de um instrumento é diferente da
do tato no sentido estrito da palavra. Esse outro sentido é formado
por um deslocamento da atenção por meio de um aprendizado no
qual toda a alma e o corpo participam.

366
É por isso que lemos no Evangelho: “Digo-vos que estes recebe-
ram a sua recompensa.” Não deve haver compensação. É o vazio na
impressão sensível que me conduz além da impressão sensível.
A religião, na medida em que é uma fonte de consolo, é um
obstáculo à verdadeira fé; e, nesse sentido, o ateísmo é uma purifica-
ção. Tenho de ser ateu com aquela parte de mim que não é feita para
Deus. Entre aqueles nos quais a parte sobrenatural deles mesmos não
foi despertada, os ateus estão certos e os crentes errados.
Os mistérios da fé católica – e os de outras tradições metafísicas
religiosas – não foram concebidos para serem acreditados por todas
as partes da alma. A presença de Cristo na hóstia não é um facto da
mesma forma que a presença de meu amigo Paulo no corpo de Paulo
é um facto; caso contrário, não seria sobrenatural. (Ambos os factos
são, além disso, igualmente incompreensíveis – mas não da mesma
forma.) A Eucaristia não deve ser um objeto de fé para a parte de
mim que apreende factos. É aí que o protestantismo é verdadeiro (ou,
com respeito à encarnação, onde o deísmo é verdadeiro). Mas esta
presença de Cristo na hóstia também não é um símbolo, pois um
símbolo é a combinação de uma abstração e uma imagem; é algo que
a inteligência humana pode representar para si mesma; não é sobre-
natural. Aí os católicos estão certos, não os protestantes. Apenas
aquela parte de mim que é feita para o sobrenatural deve aderir a
esses mistérios. Mas essa adesão é mais uma questão de amor do que
de crença. Qual é, então, a distinção entre amor e fé?
O papel da inteligência – aquela parte de nós que afirma e nega,
formula opiniões – é apenas de submissão. Tudo aquilo que concebo
como verdadeiro é menos verdadeiro do que essas coisas que não
consigo conceber como verdadeiro, mas que amo. É por isso que São
João da Cruz chama a fé de noite. Para aqueles que receberam uma

367
educação cristã, as partes inferiores da alma apegam-se a esses misté-
rios, quando não têm o direito de fazê-lo. É por isso que essas pessoas
precisam de uma purificação, da qual São João da Cruz descreve as
etapas. O ateísmo e a incredulidade constituem o equivalente a tal
purificação.
Não devemos apoderar-nos desses mistérios como verdades, pois
isso é impossível, mas reconhecer a subordinação de tudo aquilo que
consideramos como verdades a esses mistérios que amamos. A inteli-
gência pode reconhecer essa subordinação ao sentir que o amor por
esses mistérios é a fonte de conceções que ela pode apreender como
verdades. Essa parece ser a relação entre fé e amor.
Na esfera da relação entre o homem e o sobrenatural devemos
buscar uma precisão mais que matemática, algo ainda mais preciso
do que a ciência. Esse é também um dos usos que se deve dar à ciên-
cia.
Os mistérios da fé não podem ser ou afirmados ou negados; eles
devem ser colocados acima daquilo que afirmamos ou negamos.
Já que estamos, de facto, numa época de incredulidade, por que
negligenciar o uso purificador da incredulidade? Tive conhecimento
experimental de seu uso.
A necessidade entra em contato com a inteligência por meio do
conhecimento de segunda espécie e com a sensibilidade por meio da
aflição. Só há purificação se a reconhecermos como idêntica sob essas
duas formas.
A aflição degrada-se quando abole o conhecimento do segundo
tipo. Nada é mais difícil do que preservar este último na aflição (para
isso é necessário passar ao do terceiro tipo?).
A vontade de Deus. Composição em vários planos. Uma plura-
lidade de motivos distintos e convergentes coloca a vontade em con-
tato com aquilo que está acima da esfera dos motivos particulares.

368
Metaxú.
É sempre uma questão de elevar-se acima das perspetivas por
meio da composição de perspetivas, de colocar-se na terceira dimensão.
“A amplitude e profundidade do amor de Cristo.”
Não dar um passo, mesmo na direção do bem, além daquele a que
se é irresistivelmente impelido por Deus, isto se aplicando à ação,
palavra e pensamento. Mas estar disposto a ir a qualquer lugar sob
seu impulso, até o limite extremo, se houver. (A Cruz…) Estar dis-
posto a ir o máximo possível é orar para ser impelido, mas sem saber
para onde.
Humildade; acreditando estar abaixo dos outros. Isso por si só
não faz sentido. É uma operação semelhante àquela pela qual Des-
cartes nega a fim de retornar ao ponto em que duvida. Devemos acre-
ditar estar abaixo dos outros, a fim de retornarmos ao ponto onde
nos consideramos iguais e não nos preferimos. Uma vez que é impos-
sível evitar imaginar uma ordem hierárquica, uma escada entre os
seres humanos (e a perfeição consiste em não a imaginar), devemos
colocar-nos no degrau mais baixo, para evitar que estejamos, em
nossa estimativa, situados acima de qualquer outro ser humano. Se
nos mantivermos no degrau mais baixo, a escada desaparece.
O contato com as criaturas humanas nos é dado pela sensação
de presença. O contato com Deus nos é dado pela sensação de au-
sência. Comparada com essa ausência, a presença torna-se mais au-
sente do que a ausência. (235-240)

Devemos examinar bem de perto a noção de possibilidade, pois é


a chave para um grande número de mistérios que envolvem a condi-
ção humana.
Aquilo que não é verdade pode estar acima ou abaixo da ver-
dade. Está acima quando é fonte de verdades.

369
A fé é a experiência de que a inteligência é iluminada pelo amor.
A verdade como luz que vem do bem – o bem que está acima das
essências. O órgão em nós através do qual vemos a verdade é a inteli-
gência; o órgão em nós através do qual vemos a Deus é o amor.
“Os olhos da alma – esses são as próprias demonstrações.” No
caso das verdades. Mas o olho da alma para a contemplação do divino
é o amor.
Só a inteligência deve reconhecer, pelos meios que lhe são pró-
prios, a saber, verificação e demonstração, a preeminência do amor.
Só deve submeter-se quando souber de maneira perfeitamente clara
e precisa o porquê. Do contrário, a submissão é um erro, e aquilo ao
qual se submete, apesar do rótulo que lhe é atribuído, é algo diferente
do amor sobrenatural. (É a influência social, por exemplo.) (240)

Beleza. Impossível defini-la psicologicamente, porque a pleni-


tude da contemplação estética exclui a introspeção. Não podemos,
portanto, definir a ordem estética como condição de existência para
a produção do sentimento estético (…mas como condição para a con-
templação). É uma ordem que não se constitui como condição de
existência.
A prova da existência de Deus pela ordem do mundo, da forma
como costuma ser apresentada, é lamentável. Mas podemos dizer: o
facto de o homem poder passar ao estado de contemplação estética
diante de um espetáculo da natureza tal como diante de uma estátua
grega é uma prova de Deus.
Uma obra de arte tem um autor e, ainda assim, quando é per-
feita, há algo essencialmente anônimo nela. Ela imita o anonimato
da arte divina. Assim, a beleza do mundo prova que existe um Deus
que é ao mesmo tempo pessoal e impessoal, nem apenas um nem
outro.

370
Autor e ordem. A necessidade também (relações matemáticas e
mecânicas) representa uma ordem sem autor.
A matemática como metaxú conduzindo ao aspeto impessoal de
Deus.
Se o eu no sentido pessoal se desvanece na proporção e na me-
dida em que o homem imita a Deus, como seria suficiente conceber
um Deus pessoal? A imagem de um Deus pessoal é um obstáculo a
tal imitação.
Fé. Cabe à inteligência discernir o que constitui o objeto do
amor sobrenatural. Pois ela deve discernir perfeitamente tudo o que
está ao nível da verdade inteligível e tudo o que está abaixo dela. Tudo
aquilo que não é nem uma nem outra é objeto de amor sobrenatural.
A discriminação por parte da inteligência é essencial para separar o
amor sobrenatural do apego. Pois podemos estar apegados a algo que
chamamos de Deus.
O amor (ágape) é uma disposição da parte sobrenatural da alma.
A fé é uma disposição de todas as partes da alma – e também do corpo
– cada uma assumindo em relação ao objeto de amor a atitude ade-
quada à sua natureza. Justiça, segundo Platão. (Nas Escrituras, tam-
bém, a fé é continuamente assimilada à justiça.)
Esperança, é fé na medida em que se orienta no Tempo para o
futuro. É o equivalente sobrenatural da resolução de perseverar no
caminho da virtude.
O que está abaixo assemelha-se ao que está acima. Assim, a es-
cravidão é uma imagem da obediência a Deus, a humilhação é uma
imagem da humildade, etc.
Sendo assim, é preciso buscar o que há de mais baixo na sua
qualidade de imagem.
Deixa o que é baixo em nós descer ao fundo para que o que é

371
nobre em nós possa subir ao topo. Pois somos seres invertidos. Nas-
cemos assim. Restabelecer a ordem significa desfazer a criatura em
nós.
Ordem e desordem. Toda ordem pressupõe uma desordem cor-
relativa, no sentido de que a ordem é essencialmente parcial e, por-
tanto, a prova da existência de Deus pela ordem do mundo (em sua
forma comumente aceita) é também uma prova contra a existência
de Deus. Mas é diferente no caso da beleza; a beleza é uma ordem
perfeita. Assim, da mesma maneira, a alma absolutamente obediente
está numa ordem perfeita.
O mundo só é belo para quem experimenta o amor ao destino e,
consequentemente, o amor ao destino é, para quem o vivencia, uma
prova experimental da realidade de Deus.
Uma ordem implica uma pessoa como autor dela, um fim par-
ticular, um projeto em vista de tal fim, objetos materiais que consti-
tuem ao mesmo tempo meios e obstáculos, e que se encontram apa-
nhados numa série de relacionamentos além de seu relacionamento
real com essa ordem. Por exemplo, um relógio.
Tudo isso desaparece no caso de algo belo, embora seja obra de
mãos humanas. Tudo isso carece de significado quando relacionado
ao mundo.
A fé é uma atitude de todas as partes da alma, diferente do amor
sobrenatural, com respeito ao que não são capazes de apreender, e na
medida em que lhes passa despercebido. Se apreendem algo, trata-se
de algo de ordem diferente da fé, e o objeto não corresponde ao ró-
tulo. Noite escura. (240-242)

Ao dizer que a religião católica é verdadeira e as outras religiões


falsas, faz-se injustiça não só contra as outras tradições religiosas, mas

372
contra a própria fé católica, ao colocá-la ao nível das coisas que po-
dem ser afirmadas ou negadas.
A inteligência precisa ter liberdade completa, incluindo a de ne-
gar a Deus; segue-se daí que a religião está relacionada ao amor e não
à afirmação ou negação. Pois nada de bom pode prejudicar a inteli-
gência. Mas o amor sobrenatural, embora sua função não seja afir-
mar, constitui uma apreensão mais plena da realidade do que a inte-
ligência, e isso é conhecido pela própria inteligência, na alma em que
existe o amor sobrenatural; pois se não existe, a inteligência é incapaz
de se pronunciar a respeito dele.
Sabemos pela inteligência que o que a inteligência não apreende
é mais real do que aquilo que apreende.
Experiência do transcendente: isso parece uma contradição em
termos, mas o transcendente só pode ser conhecido pelo contato,
pois nossas faculdades são incapazes de construí-lo. (242)

Encarnação. O pensamento de que Deus conhece alguma coisa


do mundo, dos homens, e do tempo, não é um absurdo menor do
que a própria encarnação. No entanto, não conseguimos deixar de
pensar nisso.
Todos esses absurdos não são maiores do que aqueles que, em o
todo caso, somos obrigados a pensar.
A identificação de um homem perfeito com Deus pode ser con-
siderada do ponto de vista da descida ou do ponto de vista da ascen-
são. Mas é a descida que importa.
A contemplação desses absurdos atrai alguém para cima se fo-
rem considerados absurdos (não devem então ser defendidos).
Os deuses gregos – caprichosos, nem bons nem maus, bons e
maus por sua vez, mais prontamente maus do que bons, piores que
o homem e mais poderosos. Também não podemos viver sem eles.

373
Existe um uso para todo o tipo de erro. Defini-lo é mais interes-
sante do que “seja amaldiçoado”.
Qual é a diferença entre a encarnação e a criação de uma alma?
Parece impossível pensar nessa diferença senão como uma constitu-
ída pelo pecado, ou pelo menos a possibilidade de pecar (possibili-
dade – a mais misteriosa das noções).
Cf. Melquisedeque e João 8:56: é isto uma alusão a outra reve-
lação no alvorecer dos tempos históricos? – 2000 a.C. (Ou a sequên-
cia de uma revelação anterior; mas, em qualquer caso, em 2000 a.C.,
existia uma revelação superior à de Israel.)
Estudo de uma religião desde os ângulos histórico, sociológico,
etc.: descobrir as condições de existência – o que reserva o problema
quanto ao valor da revelação. (242-243)

De qualquer forma, simplificaríamos muitos problemas quanto


aos seus dados postulássemos como princípio: Deus não mistura or-
dens estabelecidas; ele age sobrenaturalmente dentro da esfera do so-
brenatural e naturalmente (isto é, em certo sentido, não age de ma-
neira alguma) dentro da esfera da natureza. A criação representa esse
respeito pelas ordens estabelecidas. Ele não desfaz a criação; a criação
é que tem de se desfazer.
As histórias sobre milagres confundem tudo. Um expediente é
negá-los completamente: isso é quase impossível. Outra é colocá-los
de volta entre os fenômenos naturais. A ciência não o fez porque
onde predomina a conceção científica do mundo, não existem mila-
gres; consequentemente, faltam oportunidades para estudá-los. O
que aconteceu com a Igreja no caso da astronomia e do exame crítico
aconteceu igualmente com a ciência no caso dos milagres. Pelo facto
de pertencerem socialmente a esferas estranhas à ciência, a ciência
adotou uma atitude hostil para com eles, confirmando assim o erro

374
cometido pela Igreja.
Um milagre é um fenômeno natural que só acontece com um
homem que se encontra neste ou naquele estado particular. Os esta-
dos que provavelmente produzirão tais fenômenos são: santidade,
histeria, autodomínio ocasionado pelo ascetismo e outros talvez.
(243-244)

Elevação e rebaixamento. A mulher que se olha no espelho e se


enfeita não tem vergonha de reduzir o eu, esse ser infinito que tudo
vê, a um pequeno espaço (pequena massa). O mesmo acontece de cada
vez que elevamos o eu (o eu social, o eu psicológico, etc.), por mais
alto que possamos elevá-lo, nos degradamos a um grau infinito, redu-
zindo o eu a ser não mais do que isso. Quando o eu é realmente
rebaixado (a menos que a energia se esforce em elevá-lo pelo desejo),
sabemos que não somos isso.
Uma mulher muito bonita que olha seu reflexo no espelho pode
muito bem acreditar que é isso. Uma mulher feia sabe que não é isso.
Folclore; o príncipe que se tornou escravo do seu escravo.
Só o passado e o futuro impedem o efeito salutar da aflição,
oferecendo um campo ilimitado para elevações imaginárias. É por
isso que a renúncia ao passado e ao futuro vem em primeiro lugar
entre todas as renúncias.
O tempo é uma imagem da eternidade, mas também é uma ex-
pressão substituta da eternidade.
Há também aquele efeito da aflição que consiste em realmente
acreditar que se é nada. Sofrimento terrível. Pode representar o in-
ferno ou então a porta do paraíso. Eu sou nada. Impossível! É nesse
sentido que o sofrimento extremo é impossível. Força a alma a adotar
pensamentos que são logicamente contraditórios. (244)

375
Produção da beleza – Timeu, 28a.
Quando uma coisa é perfeitamente bela, assim que fixamos nela
a nossa atenção, ela representa uma beleza singular e única. Duas
estátuas gregas: aquela para a qual estamos olhando é bela, a outra
não. O mesmo é verdade da fé católica, do pensamento platônico e
do pensamento hindu, etc. Aquela para a qual que estamos olhando
é bela, as outras não. Assim, aqueles que proclamam que somente tal
e tal fé é bela e verdadeira, embora estejam errados, estão, em certo
sentido, mais certos do que aqueles que estão certos, pois olharam
para ela com toda a sua alma. (244-245)

Quando escutamos Bach ou uma melodia gregoriana, todas as


faculdades da alma ficam quietas e tensas para apreender essa coisa
de perfeita beleza – cada uma à sua maneira – e entre elas a inteligên-
cia. Esta última não encontra, naquilo que escuta, nada que possa
afirmar ou negar, mas alimenta-se dela.
Não deveria a fé ser uma adesão desse tipo?
No domínio da inteligência, a virtude da humildade nada mais
é do que atenção.
“Todo aquele que não crê em mim…”, e outras coisas desse tipo
no Evangelho podem ser interpretadas de duas maneiras. Em pri-
meiro lugar, pela Palavra: só podemos ir ao Pai por meio da Palavra,
aquela luz que brota dentro de cada homem; e isso é verdade, sempre,
para todos os homens, sem nenhuma exceção. (Mas isso não requer
darmos um nome à Palavra, ou mesmo talvez a Deus; esta relação é
expressa de maneira diferente em diferentes idiomas.) Em segundo
lugar, pelo homem que era o Cristo: quem o conheceu na carne, na
terra, e o ouviu; quem lê suas palavras no texto do Evangelho e não
pensa: isso vem de Deus, não tem discernimento para as coisas san-
tas. Mas é uma questão apenas de discernimento para uma inspiração

376
divina, não para a natureza particular dessa inspiração. Quanto à
identidade comum que une o Verbo e este homem, nada há que in-
dique que a afirmação de tal vínculo seja uma condição de salvação,
e tal seria absurdo.
“Tenho outras ovelhas... chegará o dia em que todas serão um
só rebanho…” Mas elas já são suas ovelhas ainda antes de estar nesse
rebanho. E talvez esse único rebanho esteja no outro mundo. (245-
246)

Um mediador é necessário porque não há relação possível entre


Deus e o tempo.
O ser dilacerado na extensão do tempo. Deus na cruz.
A beleza é uma imitação da harmonia celestial; isto é, uma com-
posição do Mesmo e do Outro, em que o Mesmo domina e o Outro
é subjugado pela compulsão. Biga de cavalos Fedro; assim, a beleza é
a imagem sensível do bem.
Ordem do mundo, condição de existência de uma criatura pen-
sante.
Estrelas no Timeu – “…Movimento que está sempre no mesmo lugar
e sujeito às mesmas leis, pois cada um pondera dentro de si os mesmos pensa-
mentos a respeito das mesmas coisas.” As estrelas, modelo da contempla-
ção.
Destruição. Deus criou o mundo e deseja perpetuamente que
ele exista; destruir é, portanto, mau, a menos que seja fazendo com
que algo criado passe para o incriado. A destruição é uma má imitação
(uma forma substituta) de tal operação. Consequentemente, o homem,
ao matar, assemelha-se a Deus, mas é uma má semelhança. Timeu –
Deus impotente para criar mortais (apenas a parte imortal de sua
alma); a parte “que se chama divina e que governa aqueles que desejam
sempre seguir a justiça e seguir-te a ti” – a ti, essas são as estrelas fixas.

377
Para ser perfeito, o mundo tem de conter algumas partes imper-
feitas que Deus não pode criar diretamente. Porquê?
“Quando [as almas] foram plantadas em corpos por efeito da necessi-
dade, e quando certas partes se juntaram ao corpo enquanto outras se sepa-
raram dele.”
O segredo de nossa miséria está no facto de que certas coisas
entram em nós e certas coisas saem de nós. Comida. Apego.
Somos uma parte que deve imitar o todo. (246-247)

O mistério do bem nas ações. O único critério de valor de uma


ação é o efeito que ela produz na alma, mas não podemos, de forma
alguma, julgar isso por meio da introspeção. Ou ainda (mas isso dá
no mesmo, em vista da rigorosa exatidão da retribuição na esfera es-
piritual), o único critério de valor de uma ação é aquela fonte na alma
que fornece o incentivo para a sua realização; mas também não po-
demos de forma alguma julgar isso por meio da introspeção.
Desapego, indiferença (no sentido elevado). Dizemos a nós mes-
mos: não tenho mais incentivos; como devo agir? Por que devo agir?
Mas aí está o milagre do sobrenatural. Silencia todos os motivos, to-
dos os incentivos em ti mesma, e ainda assim agirás, impulsionada
por uma fonte de energia que é diferente de motivos e incentivos.
Mas embora nenhum motivo ou incentivo seja a causa dessa ação,
uma série de motivos e incentivos convergem para sua execução.
Timeu. Relação entre número e círculo.
Noção de valor transcendente – a ser elucidado. Está conectado
com o vazio. (247)

Silenciar os motivos e incentivos em si mesmo e agir – este é um


milagre análogo ao da encarnação.

378
O recetáculo (Platão) está fora das formas; imagem do transcen-
dente.
Ideia do recetáculo. A Terra – a Grande Mãe – é a vasta extensão.
Metáfora da noiva e do noivo no misticismo.
Preservar em si apenas o que é passivo. (248)

Atos de violência praticados contra o eu pertencem a estados


inferiores à perfeição e devem ser considerados um exercício indis-
pensável imposto pelas circunstâncias externas e imperfeições nati-
vas. A necessidade de tais atos de violência é uma medida de nossa
imperfeição. Devem ser realizados sem um objeto. Quando realizados
com o espírito certo, sem apego, são finitos e esgotam-se. Caso con-
trário, estão sempre recomeçando novamente.
Devemos sentir a violência que nos fazemos a nós mesmos como
algo que sofremos, e não como algo que realmente fazemos. Como
no caso de sofrimentos físicos e medos temporais, devemos provar e
medir ali a extensão de sua miséria. Essa violência não é um efeito
produzido pela vontade; é imposta pelas nossas imperfeições e por
circunstâncias particulares pelas quais a mente percebe uma obriga-
ção.
São Paulo… Lei e pecado.
Inspiração, graça, verdade, etc., consideradas como estranhas.
São Paulo: a Palavra não estava apegada à sua divindade. (248)

Todos os homens estão prontos para morrer pelo que amam.


Apenas diferem na qualidade da coisa amada e na concentração ou
dispersão de seu amor. Ninguém se ama a si mesmo.
Nenhum homem é capaz de morrer por aquilo que não ama.
(Mas existem transposições.)

379
Facto: nenhuma definição precisa de facto, sustentada por aná-
lises, pode ser enunciada que seja extensível a algo como a Encarna-
ção ou a Eucaristia. O facto pertence ao domínio do tempo. Kant.
Mas o domínio da realidade estende-se infinitamente além da-
quele do facto. (248-249)

Ordem dos infinitos (ler Cantor).


Minha miséria é infinita com respeito à minha vontade, mas é
finita com respeito à graça. Assim, ela pode esgotar-se, e a perfeição
é possível. A graça é algo infinitamente grande de segunda ordem.
Mas minha miséria é, com respeito à graça, finita, não infinita-
mente pequena. Ela pode esgotar-se; mas é necessário que se esgote.
Quantidade irredutível. Existem equivalências, mas nenhuma econo-
mia de labor é possível. Se a menor quantidade permanece num ser
humano, esse ser humano está muito longe do estado de perfeição.
Ter pecado muito é uma circunstância favorável, a menos que
se possa considerar a virtude natural uma forma de miséria equiva-
lente ao pecado.
Leitura. Assim como lemos num pedaço de pão algo para co-
mer, e começamos a comê-lo; também, em tal e tal grupo de circuns-
tâncias, lemos uma obrigação; e começamos a executá-la. Quanto
mais claramente lemos, mais rápido e mais diretamente a executa-
mos; e quanto melhor aprendemos esse idioma, mais claramente le-
mos.
Em tal e tal lugar existem indicações pictóricas e outras que são
impressas. Quem não sabe ler segue as indicações dadas pelas ima-
gens. Quem sabe ler obedece às instruções impressas e nem olha mais
as imagens.
Assim é no caso de desejo e obrigação.
A leitura por si só implica uma transferência de energia (reflexo

380
condicionado).
Quem é incitado pelo desejo de uma má ação, e que resiste, tem
a sensação de que está sendo empurrado para a má ação, e não tem
consciência da energia atribuída ao sentimento de dever. Mas se ten-
tasse realizar a má ação, sentiria uma resistência que precisaria ser
superada.
É por isso que numa vida voltada para o mal, o bem aparece
como uma tentação. Fausto de Marlowe. Gilles.
Se alguém cede passivamente ao desejo mau, é depois de uma
luta na qual a energia ligada ao sentimento de dever se esgotou.
Não é a verdadeira virtude que na alma, portanto, entra em con-
flito direto com o mal.
Como aprender a ler obrigações? Da mesma maneira que apren-
demos a ler, essencialmente através da atenção, sendo esta auxiliada
por exercícios dos quais o corpo participa. Cada vez que alguém cum-
pre uma obrigação, progride nesta arte, desde que esta performance
seja acompanhada de uma atenção genuína. A atenção na aprendiza-
gem está voltada para o que ainda não se sabe.
O sofisma grego segundo o qual aprender é impossível, porque
é contraditório, é uma imagem da relação entre o representável e o
transcendente.
Desejo: primeira dimensão. Obrigação: segunda dimensão. Ter-
ceira...
Obrigação, é metaxú? Como as letras do alfabeto, intervalos mu-
sicais… Relação. Logos.
Casos de consciência, conflitos, leituras de obrigações contradi-
tórias, incompatíveis, no mesmo conjunto de circunstâncias. En-
quanto permanecermos no nível de tal conflito, escolheremos quase
ao acaso; mas o conflito, contemplado com atenção, não com vistas

381
à sua solução, mas em si mesmo, retira a alma do domínio da obriga-
ção.
Em que caso a luta contra a tentação esgota a energia ligada ao
bem e em que caso faz com que essa energia suba na escala das qua-
lidades energéticas?
Isso deve depender da importância respetiva dos papéis desem-
penhados pela vontade e pela atenção. (249-250)

O desenvolvimento da atenção deve ser o único objetivo da edu-


cação. O mesmo no caso da aprendizagem. (251)

A busca do bem degrada o bem ao nível das coisas representá-


veis. Por isso é necessário agir para evitar ou eliminar o mal. O mal é
representável.
A autossatisfação após alguma ação (ou obra de arte) é uma de-
gradação da energia superior. É por isso que a mão direita não deve
saber...
Qualquer forma de recompensa constitui uma degradação de
energia.
Quando se dá uma luta entre a vontade apegada a uma obriga-
ção e um desejo mau, ocorre um desgaste da energia fixada no bem.
Devemos submeter-nos passivamente ao aguilhão do desejo, como a
alguma forma de sofrimento – sofrimento no qual provamos nossa
miséria e mantemos a atenção voltada para o bem. Dá-se então um
aumento na escala de valores energéticos, passando do segundo para
o terceiro tipo de conhecimento.
Devemos estender isso também à tentação da ociosidade, em-
bora, em termos de aparências externas, ceder-lhe represente passivi-
dade e resistir-lhe atividade. A fadiga é uma forma de sofrimento da

382
mesma forma que uma dor de dente. Quando trabalhamos num es-
tado de fadiga, devemos suportar este sofrimento passivamente, com
a nossa atenção voltada para o objeto em questão.
A dor não é um mal. A miséria da criatura não é um mal. A
criação não é um mal.
Devemos roubar a energia dos desejos removendo sua orienta-
ção no tempo.
Aquilo que o eu transcendental possui não é uma forma de ener-
gia, mas uma faculdade de reavaliar a energia por meio da atenção
(?). (251)

A miséria humana seria intolerável se não se diluísse no Tempo.


Devemos evitar que se dilua para que seja intolerável.
A pior forma de miséria, assim diluída, é tolerável.
Ilíada. “E quando se encheram de lágrimas…”; é ainda outra ma-
neira de tornar a pior forma de sofrimento tolerável.
Não devemos chorar para não sermos consolados. (252)

Quase-inferno na terra: desenraizamento completo na aflição. A


injustiça humana geralmente não produz mártires, mas almas quase
condenadas. Os seres que caíram neste quase-inferno são como o ho-
mem despido e ferido por ladrões. Perderam a vestimenta do caráter.
O maior sofrimento que permite que algumas raízes permane-
çam intactas está ainda infinitamente longe deste quase-inferno.
Quando prestamos um serviço a seres assim desenraizados e re-
cebemos em troca descortesia, ingratidão, traição, estamos apenas su-
portando uma pequena parte de sua aflição. É nosso dever expor-nos
a ela de forma limitada, assim como é nosso dever expor-nos às afli-
ções. Quando acontecer, devemos suportá-la como suportamos a afli-

383
ção, sem associá-la a nenhuma pessoa em particular, pois não pode-
mos associá-la a nada. Há algo de impessoal na aflição quase infernal,
assim como na perfeição.
É preciso passar pelo inferno para perceber o que é o sofrimento
redentor. Mas como passar por ele? (252-253)

Mal e a inocência de Deus. Temos de colocar Deus a uma dis-


tância infinita para concebê-lo inocente do mal; inversamente, o mal
indica que temos de colocar Deus a uma distância infinita.
“Erguer” – é necessário segurar, erguer e experimentar o peso
da própria cruz, sentir e conhecer o seu peso (ou seja, o da miséria
humana).
Hebreus 2:15: “…todos aqueles que, por medo da morte, esta-
vam... sujeitos à escravidão...”
Medo da morte, fundamento da escravidão. (253-254)

Providência; a melhor definição está no Timeu: a causa boa per-


suadiu a causa necessária… Composição em dois planos. Mas, em
certo sentido, a necessidade limita o bem. Em outro sentido, não,
pois é bom que haja necessidade.
Lógica em relação a coisas transcendentes: quando podem duas
coisas contraditórias ser verdadeiras? Com relação ao transcendente,
só podemos negar, e as afirmações são, em seu verdadeiro sentido,
negações. Uma afirmação é uma negação de um erro; mas a afirma-
ção contrária pode ser algo totalmente diferente deste erro. Dois er-
ros contrários podem ambos ser erros ao mesmo tempo. Assim, Deus
não é pessoal como nós nem impessoal como uma coisa. Nós o ama-
mos (o que nunca é totalmente o caso com as coisas), mas não como
amamos um amigo, etc., etc.
Os erros que devem ser negados são de facto degradações. Este

384
sistema de lógica é inseparável de alguma experiência concreta.
Mal. Maniqueísmo. Deus somente criou todas as coisas; ou: o
diabo criou os nossos corpos…? Deus é a causa de tudo; Deus é ape-
nas a causa do bem. Existe então uma causa do mal, etc. – não é
verdade que tudo é bom. Não é verdade que o Tudo é imperfeito.
(Conseguir ver essas duas coisas claramente não é fácil.)
A afirmação contrária no mesmo nível (Deus pessoal e impes-
soal) e aquelas que pertencem a níveis diferentes (realidade e não re-
alidade de Deus) devem ser estudadas.
Arte, instrumento na busca do Atman. (254)

A energia suplementar, quando totalmente voltada para o supe-


rior, serve como uma alavanca para direcionar a própria energia vital
– a da vida vegetativa – também na mesma direção.
Aquelas que, desde a infância, nunca tiveram nenhuma energia
suplementar… (escravidão).
Aquelas que a perdem como resultado da aflição, e que, no mo-
mento em que a perdem, ainda não a direcionaram totalmente, ou
mesmo na maior parte, para o alto…
A aflição como uma provação.
(A Cruz como balança.)
Na falta de energia suplementar existe uma espécie de inocên-
cia. Inocência de aflição. Sofrimento expiatório.
O enraizamento da própria energia vegetativa e sua orientação
para o mais elevado constituem-se em sofrimento redentor. Redimem
a criação ao desfazê-la.
Quando a energia vegetativa é arrancada de sua função e direci-
onada para o alto, é esse vazio preenchido pelo pão sobrenatural?
A experiência mostra que a energia suplementar, quando sufici-

385
entemente concentrada, traz no seu encalço a energia vegetativa: jo-
gadores, avarentos, amantes, libertinos, colecionadores… Para o indi-
víduo, a conquista vem antes da necessidade, como acontece na sociedade. A
energia suplementar corresponde à força armada. (Deus dos exérci-
tos: será este o significado?)
Mas a força armada da alma pode ser direcionada para o mais
elevado; a da sociedade não. A sociedade (“o mundo”) é um espelho
do pecado.
Matéria e sociedade – espelhos.
No entanto, não devemos amar a Deus como um jogador ama
o seu jogo. (255)

As imagens elaboradas da miséria humana (Ilíada, Jó, fuga de


Gilgamesh – e a palestra de Prat –) são belas. Essa miséria, portanto,
não prejudica a beleza do mundo. Mas de onde lhes vem o serem
belos, visto que a própria miséria – no nível quase infernal – é tão
horrível? Será porque nessas imagens aparece a força da gravidade?
Conseguir amar a Deus através e além da miséria dos outros é
bem mais difícil do que amá-lo através e além do próprio sofrimento.
Quando alguém o ama através e além de seu próprio sofrimento, esse
sofrimento é transfigurado; torna-se, dependendo do grau de pureza
desse amor, expiatório ou redentor. Mas o amor é incapaz de transfi-
gurar a miséria dos outros (com exceção daqueles que estão dentro
do alcance de sua influência). Que santo poderá transfigurar a misé-
ria dos escravos que morreram na cruz em Roma e nas províncias
romanas ao longo de tantos séculos?
Também no caso do nosso próprio sofrimento, há um momento
irredutível em que ainda não foi transfigurado, quando é quase infer-
nal e, mesmo assim, devemos amar. Este é o ponto de laceração. Per-
manecemos sempre expostos a esta laceração quando consideramos

386
os outros.
(É verdade que o nosso próximo é aquele que encontramos nu
e ferido na beira da estrada, não aquele que não encontramos. E
ainda assim...)
O autor da Ilíada conseguiu amar a Deus através e além da mi-
séria dos outros.
A recompensa por pensarmos em Deus com atenção e amor su-
ficientes é que somos constrangidos a fazer sua vontade. E, inversa-
mente, a vontade de Deus é aquela que não conseguimos deixar de
fazer quando pensamos nele com atenção e amor suficientes. Estoi-
cos: o bem é aquilo que o homem de sabedoria faz.
Liberdade e pecado. A posse de um tesouro implica a possibili-
dade de perdê-lo; no entanto, perder uma pérola não é o mesmo que
possuir uma pérola. O pecado é um desperdício de liberdade.
Uma necessidade rigorosa, que exclui toda arbitrariedade, todo
acaso, governa os fenômenos materiais. Há, se possível, ainda menos
arbitrariedade e acaso no caso das coisas espirituais, embora livres.
Ideia católica (cf. Santa Catarina de Siena) de que Deus (ou
Cristo) não pode fazer algo que deseja se não orarmos a ele com sufi-
ciente intensidade (imagem mítica).
As duas “noites escuras” de São João da Cruz. Uma delas cor-
responde ao sofrimento expiatório e o outra ao sofrimento redentor.
(255-256)

A aflição (seja redentora ou quase infernal) é uma imagem mais


exata de nossa miséria do que o crime, porque no crime o poder e a
escolha estão presentes. Se Adão e Eva não tivessem sido expulsos (cf.
Masaccio), teriam acreditado que eram deuses. A aflição impede-nos
de comer da árvore da vida que faria de nós falsos deuses.
Santa Catarina de Siena. “Tu és aquela que não é, eu sou aquele

387
que é.” “Deste conhecimento... surge a humildade.” “Tu, a luz, não
consideraste minhas trevas; tu, a vida, não me rejeitaste, eu que sou
a morte…” – “A árvore da caridade só cresce no solo da humildade.”
“O que se deve dar à terra, isto é, à parte sensível? O que ela
merece; e o que merece aquilo que mata? Morrer... Um cadáver não
vê, não ouve, não sente.” – “...A adaga, a espada do ódio...” “...se
pousarmos a espada...” “pega esta espada e nunca deixes que ela saia
das mãos de tua livre vontade até à morte...” “...é pela violência que
adquirimos a virtude verdadeira e robusta.” “Quem não foge perma-
nece preso.” (256-257)

Teeteto. “Voar.” Não há nada mais violento do que o medo, nem


mais insano. Fugir de nossa estada aqui em baixo como os franceses
fugiram em junho de 1940, que representa algo totalmente diferente
de uma ascensão – (que seria a imagem da virtude “natural”).
Santa Catarina – “O homem deve fazer de si duas partes, a da
sensualidade e a da razão. A razão deve tirar da bainha a espada de
dois gumes: o ódio ao vício e o amor à virtude. Armado com esta
espada, faz a sensualidade ajoelhar-se.”
“Muitas vezes via aqueles que pareciam estar nus os encontrava
vestidos.”
Com respeito às tentações, “seguir o exemplo da mulher abso-
lutamente casta que não responde uma palavra ao sedutor quando
fala com ela e finge não o ouvir.”
Górgias e nudez.
“Tudo o que a penitência faz é podar [o vício]; mas assim (ao te
odiares a ti mesmo) tu o arrancas pela raiz.”
“A caridade divina... é como o usurário... é o tesouro do tempo
que rende juros.”

388
“Ó doce obediência! Tu fazes os homens mortos viverem e cor-
rerem.”
“...A quintessência do orgulho, impaciência...” “...paciência, si-
nal indubitável da minha presença numa alma.”
“…A noite do conhecimento de si mesmo.” (257)

Ação não-ativa. [À parte dos deveres naturais.] Nunca dar um


passo além do ponto para o qual se sente irresistivelmente impelido;
visto que o próprio bem deixa de existir se não for realizado através
da obediência.
Isto não impede que a vontade tenha liberdade na sua própria
esfera, que é a das ações limitadas, que dispõem exteriormente de
meios materiais com vistas a alcançar fins definidos. (257-258)

Cruz. A aflição extrema por si só traz sofrimento redentor com-


pleto. Tem de ser assim, portanto, para que a criatura humana possa
descriar-se. Mas devemos passar por isso apesar de nós mesmos; pre-
cisamos ter implorado para que não tivéssemos de passar por isso; é
a morte que é necessária, não o suicídio. E uma vez que devemos
amar o próximo – isto é, aquele que encontramos no caminho –
como a nós mesmos, devemos também tentar protegê-lo disso. Mas,
assim como consentimos na própria aflição quando ela nos sobre-
vém, também devemos consentir com a dos outros quando é absolu-
tamente impossível evitá-la, mas com a mesma amargura irredutível.
Essa amargura não impede o amor de Deus, pois não impede a pessoa
de sentir a beleza; é, de facto, uma condição para senti-la. É através
de sua amargura que a Ilíada é bela. Não há arte de primeira classe
sem esse núcleo de amargura.
Amar a Deus durante e além da destruição de Troia e Cartago
– e sem consolo. O amor não é consolo, é luz.

389
Os verdadeiros bens terrenos são metaxú. Só podemos respeitar
os dos outros (por exemplo, cidades estrangeiras) se considerarmos
aqueles que nós próprios possuímos apenas como metaxú – o que
implica que a pessoa está a caminho do ponto em que será capaz de
viver sem eles.
Só podemos ter horror de fazer mal aos outros se tivermos che-
gado, estivermos próximos ou nos movermos em direção a um ponto
em que os outros não possam mais nos fazer mal. (Amamos então os
outros, em último recurso, como ao nosso eu do passado.) (258-259)

Submeter-se à vontade de Deus – o que significa isso?


Três domínios:
1. Aquilo que não depende de nenhum modo de nós (em parti-
cular, todos os factos consumados). Devemos amar todas essas coisas
tomadas como um todo e em detalhes, absolutamente; devemos sen-
tir (ler) aí a presença daquilo que amamos.
O amor torna-se transcendente quando se lê o objeto amado
através e além das coisas horríveis (horrível para toda a alma).
[Deus nunca pode ser um objeto, e é nesse sentido que ele ama
antes de ser amado. Só o amamos perfeitamente quando ele se ama
através de nós como meio.]
2. Aquilo que pertence ao domínio da vontade, isto é, coisas
que podemos representar claramente para nós mesmos através da in-
teligência e da imaginação, e onde podemos dispor exteriormente e
combinar certos meios particulares com vistas à realização de certos
fins particulares. Aqui, devemos cumprir com firmeza e sem demora
tudo o que nos parece manifestamente ser o nosso dever, ou então,
se tal manifesto deve não aparecer, devemos seguir regras arbitrárias,
mas fixas, escolhidas de forma a não chocar a consciência.

390
Isso deve ser feito para evitar ter vontade própria. Além disso, de-
vemos escolher regras objetivas, regras que possuam a virtude de limi-
tar, já que se trata de uma questão de domínio limitado – ou então
seguir nossa inclinação, desde que apenas em medida limitada.
3. Tudo aquilo que sem pertencer ao domínio da vontade não
é absolutamente independente de nós.
Quando pensamos em Deus com atenção e amor, ele nos re-
compensa exercendo sobre a alma uma restrição que é exatamente
proporcional a essa atenção e amor. (Aqui temos o equivalente espi-
ritual de um autômato.) No estado de perfeição, essa restrição é total.
Abaixo desse estado, é parcial.
Devemos apenas realizar aquilo a que somos irresistivelmente
impelidos a fazer por essa restrição. O resto pertence ao domínio do
mal, e tudo o que nele fizermos, só podemos fazer o mal. Devemos,
portanto, deixar-nos levar para lá pela corrente dos acontecimentos
(ao mesmo tempo que fazemos uso das regras limitantes: perseve-
rança numa certa linha de conduta uma vez adotada, conformidade
com o decoro social, etc.) quando surgir a necessidade de fazer uma
escolha, e abstermo-nos de toda a ação quando possível, até que uma
maior atenção e amor tenham trazido com eles, como recompensa,
uma maior restrição. (259-260)

Santa Catarina de Siena. Os bens deste mundo são como flores


que só retêm seu perfume e beleza enquanto não forem colhidas. Cf.
“Encontra o teu deleite no desapego.” (260)

A invenção matemática é transcendente. Ela procede de analo-


gias absolutamente não-representáveis, e tudo o que podemos fazer é
traçar suas consequências.
É porque a matemática é clara por excelência e num grau único

391
que o mistério é capturado nela como numa rede.
Aquilo a que o autêntico gênio tem acesso, excluindo o comum
da humanidade, é pura e simplesmente o transcendente, que é tam-
bém o objeto da santidade.
Como é que a moralidade parece ser muito menos necessária
em conexão com o transcendente sob a forma de genialidade do que
sob a forma de santidade?
Jó. Como é que o puro grito da miséria humana, quando imi-
tado, é tão belo? É algo que a realidade nunca, nunca nos oferece. E,
no entanto, é realidade pura e nua.
É “o corpo como um túmulo” que aparece. A alma absoluta-
mente sujeita, por constrangimento, a esta necessidade e a natureza
impossível de tal sujeição. (260)

Mal, terceira dimensão do divino. Solidão do homem. Distância


de Deus. Transcendência.
Pela contemplação perfeitamente pura da miséria humana, so-
mos arrebatados ao céu.
Cruz.
[Sap. – O ímpio vive no Tempo. (E por isso morre.)]
O mal é uma condição da descriação. (260-261)

Existe em cada nação da antiguidade, por assim dizer, uma ob-


sessão com relação a um aspeto das coisas divinas. Israel: um só e
único Deus. Índia: assimilação da alma a Deus, no estado de perfei-
ção, por meio da união mística. China: passividade, ausência de
Deus, ação não-ativa. Egito: salvação e vida eterna por meio da assi-
milação a um Deus sofredor, que morreu e voltou à vida. Grécia:
transcendência, distância do divino e do sobrenatural, miséria do ho-
mem, busca de pontes de ligação (mediação) – [E a Mesopotâmia ???].

392
(A missão de Israel foi continuada pelos maometanos. A Índia
e a China foram deixadas a si mesmas. O Cristianismo assumiu,
acima de tudo, a herança do Egito, mas também da Grécia.) (261)

Sem o mal, nunca renunciaríamos a este mundo. (261)

Jó, no final da sua noite escura, pela qual passou sem consolo,
manifestamente vê a beleza do mundo. É necessário ter passado pela
miséria total. Satanás dirigindo-se a Deus: “Ele ama-te apenas por ti
mesmo?” É uma questão do nível de amor. Está o amor situado ao
nível de ovelhas, campos de milho, numerosos filhos? Ou está situado
mais fundo, mais distante, atrás, na terceira dimensão? Por mais
longe que esse amor possa chegar, há um ponto de rutura quando ele
sucumbe, e é esse momento que nos transforma, nos arranca do fi-
nito para o infinito, faz do amor da alma por Deus transcendente na
alma. É a morte da alma. Ai daquele para quem a morte do corpo
precede a da alma. O que mata a alma é o fluir destrutivo do tempo. Mas
esta morte é uma provação. A alma que não está cheia de amor morre
um tipo errado de morte. Escravos. Por que é necessário que tal
morte ocorra sem distinção? Precisa ser assim. É necessário que tudo
aconteça sem distinção. (261)

Se eu pensasse que Deus me envia a dor por um ato de sua von-


tade e para o meu bem, pensaria que sou alguma coisa e desconside-
rar o uso principal da dor, que é me ensinar-me que sou nada. Mas é
preciso amar a Deus através e além da dor (sentir sua presença e sua
realidade através do órgão do amor sobrenatural, o único órgão capaz
disso) assim como sentimos a consistência do papel através e além do
lápis.
Da mesma forma, o espetáculo da miséria dos homens ensina-

393
me que eles nada são e, desde que me identifique com eles, que nada
sou. Não simplesmente como um ser humano particular, mas como
um ser humano que é nada. Como criatura.
Tenho de amar ser nada. Como seria horrível se eu fosse alguma
coisa. Tenho de amar o meu nada, amar ser nada; amar com aquela
parte da alma que está do outro lado da cortina, pois a parte da alma
que é percetível à consciência é incapaz de amar o nada, tem horror
disso. Se pensa que ama o nada, o que realmente ama é algo dife-
rente.
A miséria humana não é criada pela aflição extrema que cai so-
bre alguns seres humanos, só é revelada por ela.
Devemos mitigar essa aflição sempre que pudermos unicamente
pelo seguinte motivo: devemos evitar cair nela nós mesmos, ou deve-
mos livrar-nos dela sempre que pudermos, pois ela tem que vir de
fora, para ser suportada; e devemos amar como a nós mesmos, da
mesma maneira que a nós mesmos, o ser humano que o acaso nos
dá a oportunidade de ajudar.
Considerarmo-nos a nós mesmos (na medida em que somos se-
res fenoménicos) simples e exclusivamente como uma pequena parte
do universo. (258-262)

O domínio da vontade. Devemos conduzir-nos aqui (nos casos


em que a inclinação não é um guia legítimo e suficiente) de modo a
suprimi-la (substituir a vontade por regras).
“Tornaste-te uma balança...” A Cruz como provação.
“Loucura de amor.” A criação é um ato de loucura muito maior
ainda do que a encarnação.
O suicídio condenado como uma forma substituta de descria-
ção. (262)
A expressão dos mandamentos de Deus nos textos sagrados só

394
é dada como objeto de atenção. Mas só existe realmente um manda-
mento a partir do momento em que recebem uma resposta que ecoa
no coração, a saber, uma impulsão.
Atenção: ação não-ativa da parte divina da alma sobre a outra
parte. (262)

Existem duas maneiras de obedecer a Deus, como matéria e


como espírito. Fazer o mal é obedecer a Deus como matéria. Não
pode haver nada em nós que não obedeça a Deus. Consequente-
mente, se lhe obedecemos como matéria, o espírito está ausente.
Deus em nós está morto.
Eu sou nada. Um estado de inferno existe para todos aqueles
cujo eu é algo (o eu projetado em coisas finitas).
Noção da relação do todo com as partes nas relações entre o
manifesto e o divino – fonte de muitos erros. Precisa ser examinado
de perto. (263)

Trindade – relação de Deus consigo mesmo – as coisas não se


relacionam com nada – o homem relaciona-se com outra coisa. Ape-
nas Deus se relaciona consigo mesmo. Narciso aspira ao que só é pos-
sível a Deus. Só Deus conhece e ama a si mesmo. Esse relaciona-
mento é a sua própria essência. Essa relação é a plenitude do ser.
Pessoas distintas: ele próprio tem uma relação análoga àquela
entre um homem e outro homem. Mas longe de ser uma abstração
no que diz respeito aos termos, essa relação possui igual realidade [ou
mais?].
No caso de um homem que ama e contempla a Deus, é Deus
quem se ama e vê a si mesmo por meio dele; neste sentido, o Espírito
Santo habita nele.
O modelo no Timeu corresponde ao Espírito Santo.

395
O Pai é o criador. A Palavra é encarnada (já na ordem do
mundo, antes da encarnação propriamente dita). O Espírito não está
relacionado com o mundo. Mas constitui o eu do homem perfeito.
É o eu descriado.
Timeu. O modelo é o Bem. Isso é óbvio. A beleza é a imagem
exata do bem.
A questão em jogo no Timeu é a de Deus em relação com o
mundo. Mas nada há que prove que a tríade Pai, Alma do Mundo e
Modelo não corresponda a algo externo à relação com o mundo, den-
tro do ser de Deus; isso poderia estar reservado para instrução esoté-
rica. A dialética torna possível alcançar a Deus; indica isso que existe
um relacionamento em Deus? Cf. Parmênides. (263-264)

A ideia do milagre impede-nos de conceber uma ação não-ativa.


O pensamento é o pensamento do pensamento.
O significado da Trindade é que Deus é pensamento. Todo pen-
samento tem um sujeito e um objeto. O Pai pensa sua palavra.
Esse pensamento é amor.
Essa palavra é ordem.
Essa ordem é a imagem desse pensamento, desse amor.
Deus como um, puramente um, é objeto – Antigo Testamento
– Alcorão. Deus, um e três em pensamento.
Unidade que não é o correlativo do múltiplo –
Trindade hindu. Deus, o Preservador – Brama – a Palavra Sa-
grada –
Ordem do mundo: é a Palavra. Deus, o Criador – Vishnu: é o
Pai. Deus, o Destruidor – Deus da descriação – Shiva: é o Espírito.
(264-265)

Labor: movimento descendente. O homem tem de transformar-

396
se em objeto para que o objeto se transforme em energia humana.
(Da mesma forma, Deus transforma-se em homem para que o ho-
mem se transforme em Deus...)
E com as plantas? (Exceto se a semente morrer...)
O espetáculo da necessidade cega é belo porque sugere uma har-
monia NÃO REPRESENTÁVEL com o bem.
A função do dever (segundo ponto na minha carta ao P.P. [nota
do tradutor na versão em inglês: “Padre Perrin”]) é delimitar o domí-
nio da inspiração, para que não se confunda com capricho – COMO
A FORMA FIXA NA POESIA.
(É por isso que talvez os artistas, possuindo um equivalente, te-
nham menos necessidade de um padrão ético do que os santos?)
O Evangelho – com respeito a Deus, o amor não é diferente da
obediência.
Ao focar a atenção, todos os dias, na analogia entre o dever e a
forma fixa da poesia, é impossível não fazer com que a primeira pe-
netre mais profundamente no coração.
Preciso suprimir o eu.
Preciso colocar a minha alma em conformidade com o fluir do
tempo; fazer com que a revolução das estrelas entre na minha alma.
Omissões no cumprimento do dever são sinais de imperfeição.
Devo tentar curar as falhas com a atenção e não com a vontade.
Duas ideias contraditórias sobre Deus:
ele sabe todas as coisas, pois é a verdade;
ele ignora todas as coisas, pois está fora do tempo.
Água dos Taoistas.
Similarmente:
ele faz todas as coisas;
ele nada faz –
Na medida em que é Causa, ele está igualmente presente, com

397
uma densidade igual (o ser permeia tudo) aqui, ali e em todos os
lugares, em todas as partes do mundo, e em todas as coleções de par-
tes, em todos os níveis.
Dizer que Deus faz tal e tal coisa a fim de que... é um absurdo.
Se Deus deseja que determinada coisa aconteça, ele pode realizá-la
imediatamente.
A noção de condição de existência é para nós o único elo entre o
bem e a necessidade.
A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem.
O real (para o homem) é aquilo que é ao mesmo tempo sentido
e pensado.
A alegria é o sentimento de realidade.
Quanto mais sentimos a oposição entre o acaso e o bem, mais
profundamente experimentamos a beleza e a alegria.
A tristeza é o enfraquecimento do sentimento de realidade. É
uma forma errada de descriação, ao nível da imaginação.
É um crime fazer os homens tristes.
Adão e Eva, expulsos do paraíso terrestre, ficaram tristes.
Até mesmo Cristo. “Minha alma está triste até à morte.”
Se o homem não pudesse ser submetido ao mal por parte da
Natureza e, sobretudo, por parte dos homens, a parte humana da
alma não estaria então sujeita à necessidade. O homem que não está
enraizado em Deus por meio do amor sobrenatural está inteiramente
à mercê do acaso. Mas todo ser humano, por mais humilde que seja
sua origem, tem, em certo período de sua vida, a oportunidade de se
enraizar em Deus. Se ele não tira proveito disso, e mais tarde é entre-
gue à aflição a ponto de não ter mais essa oportunidade, tal
fenômeno não é diferente daquele pelo qual o homem morre prema-
turamente.
Deus deseja em grau semelhante tudo aquilo que acontece, não

398
certas coisas como meios e outras coisas como fins. Da mesma forma,
ele deseja em grau semelhante o todo e as partes, cada porção, cada fatia
que pode ser cortada da realidade contínua.
Isso só pode ser representado para a inteligência humana nos
seguintes termos: ele deseja que a necessidade exista.
A vontade de Deus não pode ser para nós um assunto de hipó-
tese. Para conhecê-la, basta observar o que acontece: o que acontece
é a sua vontade.
A Palavra é o silêncio de Deus.
Não devemos dizer que Deus deseja o sofrimento de um santo
com vistas ao seu progresso em direção à perfeição, mas: ele deseja
seu sofrimento, e deseja seu progresso, e deseja a relação entre os dois
– e uma série de outras relações além dessas.
Não devo amar meu sofrimento porque é útil, mas porque é.
A necessidade é o véu de Deus.
Leituras sobrepostas: devemos ler necessidade por trás da sensa-
ção, ordem por trás da necessidade e Deus por trás da ordem.
Devemos amar todos os factos, não por suas consequências, mas
porque Deus está presente em cada facto. Mas isso é tautológico.
Amar todos os factos nada mais é do que ler a Deus neles.
Devemos amar nossos inimigos, porque eles existem. Devemos
(se houver a oportunidade e não houver nenhuma desvantagem séria
que nos impeça) fazer-lhes o bem com o fim de amá-los.
Os preceitos não são dados para serem colocados em prática,
mas a prática é prescrita a fim de compreender os preceitos. Eles são
como as escalas na música. Não se toca Bach sem ter praticado esca-
las. Mas também não se pratica escalas pelas escalas. Cf. Upanishads;
Lao-Tzu.
A ideia da Providência diminui a pureza do amor de Deus.
Só há uma prova da bondade de Deus – a de que o amamos. O

399
amor que temos por ele é o único benefício digno da nossa gratidão
e, por conseguinte, este amor contém em si a prova da sua legitimi-
dade. Quando não tem outro incentivo além de si mesmo, nada pode
abalá-lo; pois mesmo no ponto de “Por que me abandonaste” o amor
não vacila, mas assume a forma de ausência em vez de contato. Assim,
atinge o limite extremo da pureza.
Sede perfeitos, assim como vosso Pai celestial é perfeito. Isso sig-
nifica amar todas as coisas igualmente; como o Pai é em igual grau o
criador de todas as coisas.
Mas, sob um aspeto diferente, da ordem do mundo.
A Palavra: silêncio em Deus, expressão na criação.
A essência de Deus não é sujeito nem objeto, mas pensamento
(noésis, atributo).
Macrocosmo e microcosmo. Assim como Cristo, segundo Santo
Tomás, permitiu a cada parte de seu ser o mais pleno exercício de sua
função – por exemplo no caso de sua sensibilidade, na Cruz, sofri-
mento – o mesmo acontece com Deus no mundo. A matéria contém
ali toda a cegueira que pertence à sua natureza; os ímpios realizam ali
todo o mal que pertence à sua natureza. Um rigor absoluto prevalece
nas ordens de causalidade, mesmo onde há uma mistura de bem e
mal (onde o bem e o mal se condicionam mutuamente).
O mal no universo é análogo ao sofrimento, não ao pecado. O
pecado relaciona-se com o indivíduo.
Tanto bons como maus são em igual grau partes da ordem do
mundo. Mas apenas os perfeitos são a sua imagem.
Balança e peneira.
Homens nos quais há um excesso de razão sobre a sensibilidade
são inferiores ao homem perfeito. Da mesma forma, um deus que
intervém providencialmente no mundo seria algo inferior a Deus.

400
Aquele que ama é indiferente às suas provações, ao seu sofri-
mento, à sua indignidade, enquanto souber que o objeto de seu amor
é feliz.
O que importa se nunca vier haver alegria em mim, se houver
alegria perpetuamente perfeita em Deus? E o mesmo se aplica à bon-
dade, inteligência e todas as coisas. (265-268)

A crucificação é a conclusão, a realização de um destino hu-


mano. Como poderia um ser, cuja essência é amar a Deus e que se
encontra situado no espaço e no tempo, ter outra vocação que não a
cruz? Adão antes da Queda é inconcebível; só podemos conceber
uma anterioridade causal, atemporal, entre sua criação, seu pecado e
sua punição. Toda a humanidade pecou num sentido atemporal por
possuir sua própria vontade. Foi criada com vontade própria e com
a vocação de renunciar a ela. Mas essa vocação só pode ser realizada
com tempo e esforço.
(O próprio Cristo…)
O pecado de Adão e o tempo. Barba-azul, etc. Não faças uma
dada coisa. Não abras uma determinada porta. Ao fim de um deter-
minado tempo, a pessoa desobedece, a menos que tenha sido capaz
de afastar esse pensamento de uma vez por todas. (Esta última consi-
deração está em contradição com a anterior, mas isso não importa de
forma alguma.)
A capacidade de afastar um pensamento de uma vez por todas é
a porta para a eternidade. O infinito num instante.
A ordem de Deus foi uma provação provando que Adão tinha
vontade própria. Ele estava em estado de pecado devido ao facto de
ter vontade própria. É claro que nunca houve um período de tempo
em que estivesse num estado de inocência.
Deus criou o homem num estado de miséria. Tê-lo criado num

401
estado de santidade seria equivalente a não o criar de forma alguma.
(É por isso que: gerado, não criado. [Nota: do credo niceno.])
A criação é um movimento descendente, e é neste sentido que
o labor é uma imitação da criação (como também da encarnação e
da eucaristia).
A árvore que carregava o fruto proibido era uma balança, como
a cruz.
São Paulo. A lei como causa do pecado. A lei como provação.
Árvore e força da gravidade – Árvore e entropia. Vida carnal e
vida espiritual. Adão buscou a vida carnal imediata.
Tabus como provação.
Eva considerou a árvore boa de se olhar, atraente para os olhos
e valiosa para a inteligência.
Adão tem medo de Deus, não porque desobedeceu, mas porque
está nu.
A árvore que nutre mata e a árvore do sofrimento salva.
A salvação ocorre não por meio de um movimento ascendente,
mas descendente.
Apenas as coisas relacionadas à inspiração são nutridas pela de-
mora. Aquelas relativas ao dever natural, à vontade, não sofrem de-
mora.
Uso correto do Tempo. Não há nada mais importante.
A nudez de Adão. Nu com uma nudez impura, a nudez que an-
seia vestir-se. (268-269)

A vida é uma forma substituta de salvação.


Árvore e viga. Movimento descendente da vida em direção à ma-
téria.
O arrependimento é uma violência que a própria alma se faz a
si mesma de modo a trazer suas manchas para a luz.

402
Deus vestiu o homem. O homem tem de ficar nu novamente.
Só experimentamos o bem realizando-o.
Só experimentamos o mal recusando-nos a permitir realizá-lo
ou, se o realizamos, arrependendo-nos dele.
Realizar o mal que potencialmente existe em nós mesmos é evi-
tar que o conheçamos.
Quando o realizamos, não o conhecemos, porque o mal foge da
luz.
Existe um certo instinto de autopreservação que nos encoraja a
permanecer como estamos, que rejeita o progresso. Isso faz-nos fugir
da luz, porque os efeitos da luz mudam. Não evita o remorso, porque
não há luz no remorso. Pelo contrário. O remorso é o próprio movi-
mento de se esconder.
No Phèdre, o momento de remorso é: “Onde me esconderei…?”;
o momento do arrependimento: “…toda a sua pureza.” (269-270)

A destruição de uma cidade, de um povo, de uma civilização –


que ação fornece ao homem uma falsa divindade com maior certeza
do que esta? Já o facto de matar um homem, seu semelhante, o eleva
na imaginação acima da morte. Mas matar algo social, pertencente
àquele elemento social acima de nós, que nunca podemos compreen-
der, que nos constrange naquilo que é quase o nosso mais íntimo, que
imita o elemento religioso a ponto de se confundir com ele sem o
auxílio do discernimento sobrenatural…
O remorso sentido pelos gregos por essa ação – um sentimento
sobrenatural – trouxe-lhes o milagre de sua civilização.
Vontade de poder. Essa foi a tentação de Adão e de Cristo. (270)

Na medida em que tenho, na minha mente, uma representação


clara de alguma de minhas falhas, devo usar minha vontade para

403
curá-la, embora esse uso da vontade muitas vezes seja em vão. Mas
não tenho de pedir que seja curada sobrenaturalmente. Pois o verda-
deiro mal não é essa falha, mas a raiz dessa falha, que só pode ser
conhecida sobrenaturalmente. Se, por efeito da graça, isso de facto
acontece, pelo mesmo ato conhecemos o mal, pedimos para ser cura-
dos dele e somo curados. Enquanto isso não acontecer, não sabemos
o que é correto pedir e, consequentemente, temos de suplicar no va-
zio.
É uma coisa afortunada que a impureza que nos está oculta es-
teja parcialmente difundida em falhas representáveis. (270)

Amar, no caso de quem é feliz, é desejar compartilhar o sofri-


mento do amado infeliz.
O amor, no caso de quem está infeliz, deve encher-se de alegria
pelo simples conhecimento de que o amado é feliz, sem compartilhar
dessa felicidade e nem mesmo desejar fazê-lo. (270-271)

Se voltamos a inteligência para o bem, toda a alma fica fadada a


ser atraída para ele aos poucos, apesar de si mesma. (271)

Era necessário que o homem pudesse ser um falso deus para o


homem.
Não é através da noção de utilidade que podemos chegar a con-
templar tudo com amor, mas através da noção de necessidade, que exclui
todas as formas representáveis de bem.
As teorias sobre a genialidade que sempre veem à tona, o pro-
gresso etc., proveem do facto de que é intolerável imaginar o que há
de mais precioso no mundo sendo entregue ao acaso. É porque essa
noção é intolerável que deve ser contemplada.
Criação – este é um caso em ponto.

404
O único bem que não está sujeito ao acaso é aquele que está fora
deste mundo. (271)

Descobrir a espiritualidade específica contida em todas as for-


mas de atividade humana. Trabalho em todas as suas formas, ciência,
arte... (guerra ?!).
Critério: aquelas que são incapazes de conter espiritualidade de-
vem ser abolidas.
Aceitar o tempo, descer ao tempo – o que poderia ser mais do-
loroso para a mente? Mas é necessário.
O devaneio fornece uma forma substituta de eternidade.
Os diversos meios de que dispõe a alma para se esconder, enver-
gonhar-se da sua nudez – devaneio – satisfações carnais (mesmo ele-
mentares e legítimas), etc. – (ocupações diárias, profissão ou vocação
particular…).
Faz o tempo entrar na minha alma como uma cruz, como os
pregos de uma cruz.
A morte de seres queridos é uma purificação, se não acreditar-
mos na sua imortalidade.
[Uma boa ação que posso fazer e não faço é uma boa ação que
Deus deseja fazer e não pode por culpa minha, pois ele não deseja
fazê-la senão por mim.]
Ver a miséria não como uma coisa individual e, portanto, como
não-essencial, mas como a miséria da criatura em nós mesmos.
Não é o homem que vai até Deus, mas Deus que vai até o ho-
mem. O homem só tem de olhar e esperar.
Tudo o que é real está sujeito à necessidade. É a necessidade
contida no mecanismo espiritual que nos permite distinguir os casos
genuínos de santidade dos imaginários.
Deus envia aflição aos maus e bons sem distinção, como faz com

405
a chuva e o sol. (Ele não reservou a cruz para Cristo.) Ele só entra em
contato com o ser humano individual enquanto tal por meio da graça
puramente espiritual, que responde ao olhar voltado para ele, isto é,
na medida exata em que o indivíduo deixa de ser tal. Nenhum
evento, seja ele qual for, é um favor da parte de Deus; apenas a graça.
Visões dos santos, etc. Embora intimamente ligadas ao fervor
religioso, estão relacionadas à fraqueza humana. A vida de um santo
é maravilhosa; seria ainda mais maravilhosa se tivesse sido o que foi
sem visões ou vozes. Mas a fraqueza humana – mesmo no caso dos
santos – nunca ou quase nunca é capaz disso. Cristo, por outro lado...
Ele não teve visões ou vozes no Monte das Oliveiras, nem na Cruz.
As visões e vozes procedem do facto de que a imaginação desem-
penha um papel bem maior no amor sobrenatural do que é estrita-
mente legítimo. (271-272)

Ver a própria miséria como algo impessoal. Remover o eu do


pecado é desenraizá-lo, retirar-lhe seu alimento vital. É por isso que
escrupulosidade excessiva, remorso, um exame de consciência muito
detalhado, etc., são coisas más. A única miséria que é realmente mi-
nha é ser nada; é o sentimento do nada. Mas o sentimento do pecado
não é o sentimento do nada. É o sentimento de um ser negativo. É a
aflição que dá o sentimento do nada, e então apenas na medida em
que não é sentida nem como uma expiação nem como um teste.
Devo transformar, na mente, o pecado em aflição. Não procu-
rando desculpas. É uma aflição de um tipo particular. Sendo um
facto consumado, não depende mais de mim, mas por meio dele en-
contro-me num estado de degradação.
(Os filhos punidos pelos pecados dos pais – símbolos do que
acontece na vida. O paradoxo do pecado original é encontrado nova-
mente ao longo da vida.)

406
Tenho de contemplar esse estado, perceber sua necessidade e
aceitá-lo.
Mistério do tempo. (272-273)

Em certo sentido, as aflições são justas. Pois os seres sobre os


quais elas caem ou estão enraizados no amor sobrenatural ou não
estão. No primeiro caso, eles não se degradam. No último, eles seriam
capazes, sob certas circunstâncias, de infligir uma aflição semelhante
a outros. A aflição só tem efeito sobre toda a alma no caso daqueles
cuja alma inteira está no nível do mal, e do bem apenas como o
oposto do mal.
Ao remover o eu do pecado, extenuo o pecado e anulo o eu.
(273)

O bem espiritual e temporal que Deus faz à humanidade como


um todo durante um determinado período é matematicamente pro-
porcional à cooperação que Deus recebe dos homens durante esse
período. Não há questão possível quanto a haver um átomo a mais.
(273)

O amor precisa da realidade. O que poderia ser mais terrível do


que amar através de uma aparência corporal algum ser imaginário,
quando chega o dia em que nos damos conta disso? Muito mais ter-
rível do que a morte, pois a morte não pode impedir o ente querido
de ter existido.
É a punição pelo crime de ter alimentado o amor com imagina-
ção.
Tentar amar sem imaginar. Amar a aparência na sua nudez, sem
interpretação. Então, aquilo que amamos é verdadeiramente a Deus.

407
Prodígios podem ser encontrados em todas as paixões. Um jo-
gador é capaz de jejuar e ficar sem dormir quase como um santo; tem
premonições, etc.
É muito perigoso amar a Deus como um jogador ama seu jogo.
Certamente é muito belo e muito nobre, mas não é a perfeição.
A carne é perigosa na medida em que se recusa a amar a Deus,
mas também na medida em que indiscretamente se preocupa em
amá-lo.
Para evitar isso, talvez seja bom permitir certas satisfações limi-
tadas?
O melhor seria passar por dores e privações infligidas de fora,
como resultado da aflição.
Deus revestiu-nos de uma personalidade – aquilo que somos –
para que nos despojemos dela.
O leproso. “Se quiseres, podes tornar-me limpo.” Lepra – isso
sou eu. Tudo o que sou é lepra. O eu como tal é lepra. (273-274)

Destruição de Troia. Queda de pétalas de árvores frutíferas em


flor. Saber que o que há de mais precioso não está enraizado na exis-
tência. Isso é belo. Porquê? Porque projeta a alma fora do tempo.
“Tudo aquilo que tu desejas, vivo ou morto...”
Compara Troia com Jerusalém. Jerusalém acreditava estar enrai-
zada no Tempo.
Amar a miséria humana, alegrar-se por ser nada.
O amor é um sinal de nossa miséria. Deus só se pode amar a si
mesmo. Só podemos amar algo diferente de nós mesmos.
Não cabe a nós conduzir-nos a um estado de humildade. A hu-
mildade já está em nós. Apenas nos humilhamos diante de falsos
deuses.
Um homem de letras curva-se diante de sua genialidade, uma

408
coquete diante de sua beleza e uma mulher na fila diante de um ovo.
Na ordem da inteligência, humildade nada mais é do que aten-
ção. Em termos gerais, humildade é amor sem auto-retribuição.
Atribuir valor em mim apenas ao que é transcendente, isto é,
que me é desconhecida em mim mesma, que não sou eu – e a nada
mais, sem exceção alguma.
A humildade faz a diferença entre a arte de primeira ordem e
todo o resto da arte. (274)

Tentação do bem. Só podemos evitar o bem desviando dele a


atenção. Se alguém lhe dedicar suficiente atenção, e por um período
de tempo suficiente, faça o que fizer para se defender, será capturada.
No caso do mal, por outro lado, a pessoa é capturada quando a
atenção não está voltada para ele.
Arjuna; não é desta maneira que se passa do mal para o bem.
A chave da espiritualidade nas várias ocupações temporais é a
humildade.
As humilhações desviam do caminho da humildade aqueles nos
quais ainda não há um início de amor sobrenatural.
O tipo errado de humilhação leva alguém a crer que é nada no
que se refere a si mesmo – um certo ser humano particular.
A humildade consiste em saber que somos nada enquanto seres
humanos e, mais geralmente, enquanto criaturas.
A inteligência desempenha aqui um grande papel. Temos de
conceber o universal.
A criatura racional é aquela que contém em si mesma o germe,
o princípio, a vocação da descriação. (274-275)

Como, em geral, a beleza é a imagem do bem, a pureza é a ima-


gem da humildade.

409
A humildade é a única virtude inteiramente sobrenatural, isto
é, à qual nenhuma virtude natural que a imita corresponde. (275)

Índia. – Leituras sobrepostas – devemos amar o Deus impessoal


através e além do Deus pessoal (e mais além ainda o Deus que é um
e o outro, e ainda mais além o Deus que não é nem um nem outro)
por medo de nos afundarmos ao concebê-lo como uma coisa, que é
o que às vezes acontece com Spinoza.
Sólidos simétricos e quarta dimensão. Da mesma forma, a re-
presentação de verdades contraditórias leva a alma ao não-represen-
tável.
Matemática e capacidade de raciocinar de forma rigorosa sobre
o não-representável.
Mas os sinais (o abuso dos sinais) degradam essa coisa maravi-
lhosa e impedem sua aplicação mística. (275)

Hipólito de Eurípides. É maravilhoso que Afrodite não tenha ab-


solutamente nenhum poder para fazê-lo apaixonar-se. Ela só pode
causar sua morte por meio de Fedra.
Assim como Deus é impotente para realizar o bem entre os ho-
mens sem a cooperação dos homens, assim também o diabo no caso
do mal.
Definição hindu: “Homens desprovidos de sabedoria são o gado
dos deuses. Assim como um homem não gosta de perder uma cabeça
de gado, os deuses não gostam que um homem se torne sábio.” En-
contramos um eco dessa conceção no relato do pecado original, con-
forme dado no Gênesis, e na história da torre de Babel. O mesmo
ocorre na Grécia, na história de Prometeu e na de Hipólito. Pode-se
facilmente imaginar tal interpretação da crucificação de Cristo (em-
bora, pelo que eu saiba, não exista). A doutrina a respeito das reações

410
do demônio diante do progresso espiritual também está ligada a isso.
Qual é o significado desta conceção?
A descriação é contrária à natureza.
(Mas na história de Adão é uma questão de falsa descriação. Ou
então houve uma mistura de duas tradições diferentes? Pode-se dizer
que a vocação sobrenatural do homem é a causa de sua miséria? Em
certo sentido, não seria falso.) (275-276)

Deus não olha amorosamente para tal ou tal evento como um


meio com vista a tal e tal outro evento como um fim, mas para ambos
em bases exatamente iguais. Deveríamos fazer o mesmo. Temos de
ser perfeitos como nosso Pai celestial é perfeito. A inteligência é obri-
gada a dispor de meios em vista dos fins; mas o amor deve apegar-se
a cada um em igual grau. Temos de amar o ato de varrer tanto quanto
amamos a sala varrida. (Isso não significa necessariamente ter prazer
nisso.)
Renúncia dos frutos.
[Sentimento, devido ao cansaço, de tempo insuperável. Experi-
mentar isto com frequência é um favor.]
Ama sem nenhuma perspetiva em vista. (276)

É difícil para o rico, para o homem poderoso, adquirir o conhe-


cimento da miséria humana, porque ele é quase invencivelmente le-
vado a acreditar que ele é alguma coisa. É difícil para o homem pobre
adquirir, porque ele é quase invencivelmente levado a acreditar que
o homem rico, o homem poderoso é alguma coisa.
Eclesiastes. Momento de amor indispensável; a ser preservado
sempre. Jó. “Deus rir-se-á das provações dos inocentes.” Saber disso e
amá-lo; e sem buscar uma explicação.
O homem deve também suportar os sofrimentos dos inocentes

411
que estão fora de sua esfera. (Eu vim apenas pelas ovelhas perdidas
da casa de Israel...) [Mas suportá-los como uma laceração.]
Já na esfera de sua ação, ele é homem e não Deus. (É ao nível
do amor sobrenatural e da oração que deve ser indiferente como
Deus.)
(O texto diz: “Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, ben-
dizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos
que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos de vosso
Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e
bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amais os que vos
amam, que recompensa tereis?”
“Sede perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial.”)
O amor por Deus experimentado por uma criatura é uma ma-
ravilha, um favor, que fornece uma prova (e a única prova) da bon-
dade de Deus. Quanto mais o destino me faz afundar na miséria,
mais maravilhosa se torna essa maravilha e mais convincente é a
prova que recebo.
É por isso que nada se pode igualar em valor à amargura da afli-
ção sem consolo.
As consolações são fenômenos psíquicos excecionais, mas não
pertencem ao sobrenatural.
Os cães de Pavlov, e os mártires em geral.
Necessidade de distinguir muito claramente entre fenômenos extraordi-
nários (da ordem dos milagres) e o sobrenatural.
Deus deseja a salvação de almas. Deus tem de ser obedecido.
Existem duas maneiras de ligar essas duas verdades (a verdade do
ponto de vista da fé). Obedecer a Deus porque ele deseja nossa salva-
ção. Ou direcionar nossos passos em direção à salvação somente por
meio da obediência. A última forma é a mais pura.
A ideia de revelação, e de que a própria moral deriva dela (e não

412
o contrário); da mesma forma que essa ideia é estúpida no plano em
que está normalmente situada (cf. Eutífron), então, num nível mais
profundo, ela é verdadeira e bela.
Natureza transcendente da verdadeira moral. Caráter sobrena-
tural de toda virtude pura.
Uso das tentações. Surge da conexão entre a alma e o tempo. A
contemplação de um mal possível (possível no sentido pleno da pala-
vra), durante muito tempo, sem realizá-lo, provoca uma espécie de
transubstanciação. Se resistirmos com uma energia finita, essa ener-
gia esgota-se num determinado tempo e, quando se esgota, cedemos.
Se permanecermos imóveis e atentos, é a tentação que se esgota (e
então colhemos a energia nela reavaliada?)
Da mesma forma, se contemplamos uma possível boa ação, da
mesma maneira – permanecendo imóveis e atentos – ocorre também
uma transubstanciação da energia, graças à qual realizamos essa boa
ação.
A transubstanciação da energia consiste em que, no caso do mal,
chega um momento em que não podemos realizá-lo e, no caso do
bem, em que não podemos fazer outra coisa senão realizá-lo. Isso tam-
bém fornece um critério de bem e mal.
Quando alguém contempla uma imagem de primeira ordem
por três horas, no decorrer dessas três horas a natureza da contem-
plação muda.
“A quantidade é transformada em qualidade.” Isso é eminente-
mente aplicável à duração. É a graça pela qual o tempo nos conduz
para fora do tempo. (276-278)

Se encontrar um amigo muito querido que estava ausente já por


muito tempo, e vem na minha direção e agarra a minha mão; se ele
a agarra com muita força e me machuca, essa dor é uma alegria. Não

413
porque acho que tenha agarrou minha mão com tanta força para o
meu próprio bem; não porque considere a força de seu aperto um
sinal de afeto; pode ser apenas devido ao facto de ele ter músculos
poderosos, ou ao facto de que algum ferimento deixou minha mão
sensível. Só que esse contato fornece a prova da presença da pessoa
amada, e assim, embora o contato possa assumir a forma de dor,
como uma prova da presença dessa pessoa é uma alegria. Se o contato
fosse agradável em si mesmo, seria uma alegria a mais, e nem mais
nem menos uma alegria intrinsecamente. (Para falar a verdade, quase
não presto atenção à natureza dolorosa ou agradável da sensação
como tal.)
Assim também no caso de aflição ou prosperidade e Deus. (278)

Não é porque Deus nos ama que devemos amá-lo. É porque


Deus nos ama que devemos amar-nos a nós mesmos. Como alguém
pode amar-se a si mesmo sem esse motivo?
[O amor de si mesmo é impossível para o homem, exceto por
este desvio.]
“Ele nos amou primeiro.” Isso é verdade só em certo sentido.
Pois, visto que apenas o amor sobrenatural nos faz acreditar nele, é
também uma condição, não um resultado, de nossa crença no seu
amor. Por esta graça nos é dado amar gratuitamente.
É errado para alguém desejar a sua salvação, não porque seja
egoísta (não está dentro do poder do homem ser egoísta), mas porque
está orientando a alma para uma possibilidade meramente individual
e contingente, em vez de para a plenitude do ser, para o bem que
existe incondicionalmente.
Se alguém pudesse acreditar em Deus sem o amar, não seria ca-
paz de amá-lo.

414
O homem gostaria de ser egoísta e não pode. Esta é a caracterís-
tica mais marcante de sua miséria e a fonte de sua grandeza.
O homem sempre se dedica a uma ordem. Apenas que, exceto
com a ajuda de iluminação sobrenatural, essa ordem é centrada em
si mesmo, ou então em algum ser particular (que pode ser uma abs-
tração) para o qual ele se transferiu. (Napoleão – para os soldados do
Império, a Ciência, o Partido, etc.) É uma ordem de perspetiva.
Acabamos sempre por encontrar o lugar onde o gigante escon-
deu sua vida. (278-279)

Profunda verdade contida na confissão católica – a saber, que


não é uma resolução, acompanhada de um endurecimento interior,
o dispêndio de energia, que enxuga o pecado, mas o arrependimento,
ou seja, a luz da atenção, e isto com repetição e tempo. Cada instante
de luz elimina um pouco dele, até que seja finalmente obliterado –
desde que a pessoa nunca se atire nele voluntariamente.
Condições de existência.
O universo é feito de tal forma que uma criatura é capaz de amar
a Deus de maneira pura.
Em outras palavras, a criação contém em si a condição para a
descriação. (279)

Deus só se ama a si mesmo. Ele ama-nos – isso significa apenas


que ele deseja, com nossa cooperação, amar-se a si mesmo por meio
de nós.
Deus fez-nos livres e inteligentes para que renunciemos à nossa
vontade e inteligência. Renunciá-los significa, em primeiro lugar, na
esfera representacional, exercê-los corretamente (segundo regras jus-
tas) e na sua plenitude; e, em segundo lugar, saber que a realidade do
representável é irreal em comparação com a do não-representável.

415
Porque é que a coincidência entre necessidade e existência (que
define a realidade em nosso nível) é uma alegria? (280)

Degradação do pensamento católico. Não é porque o Verbo se


encarnou que devemos servir aos homens na sua carne. (Quando,
Senhor, te vimos com fome e te demos de comer...?) (Seria mais ver-
dadeiro, embora ainda incorreto, dizer que se encarnou especial-
mente para nos ensinar a servir os homens na sua carne.)
“…Que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que está em
segredo te recompensará abertamente.”
“…Ao teu Pai que está em segredo.”
A mera consciência de ter realizado uma boa ação é uma recom-
pensa natural que reduz nessa medida, matematicamente, a recom-
pensa sobrenatural.
“Ai de vós ricos! porque haveis recebido a vossa consolação.”
Ao considerar “rico” num sentido amplo como “pobre”, pode-
mos traduzir:
Ai daqueles que receberam sua consolação (pois lhes é impossí-
vel serem consolados sobrenaturalmente).
Não há lugar neles para o Paráclito.
Não diz: ama a Deus e ao próximo pelo amor de Deus; mas: o
teu próximo como a ti mesmo, e os dois mandamentos formam um.
Portanto: quem ama de verdade a Deus, mesmo que pense que
se esqueceu das criaturas de Deus, ama os homens sem saber.
Todo aquele que ama o seu próximo como a si mesmo, mesmo
que negue a existência de Deus, ama a Deus.
Ninguém se se ama a si mesmo. Isso é um produto da perspetiva.
Temos de deixar de lado a perspetiva; transfigurar a sensibilidade ilu-
minando-a com a luz do universal. O belo consegue fazer isso.
O mesmo acontece com a compaixão sem preferência.

416
[O belo no caso do prazer (até certo ponto), a compaixão no da
dor.]
A alma deve ser vulnerável às feridas de toda carne, sem exceção,
como o é às feridas da sua própria carne, nem mais nem menos; a
toda morte como é à sua própria morte.
Isso é transformar toda dor, toda aflição que suportamos (– e
que vemos sendo suportada – e que causamos a nós mesmos) num
sentimento da miséria humana.
Por um estranho mistério, esse sentimento é semelhante ao da
beleza e implica o amor ao destino.
Ao conceber a aflição de um determinado indivíduo (eu ou ou-
tro) como miséria humana, e não como aflição daquele indivíduo, lê-
se aí o espírito cativo na carne, a imagem de Deus cativa na carne, e
naquele instante todo o homem adquire semelhança com Cristo.
(Ao fazer o bem aos homens “por amor ao Senhor”, inverte-se a
ordem.)
A identidade existente entre os dois mandamentos é um misté-
rio. Pois, em vista da multidão de sofrimentos terríveis – e tantas ve-
zes imerecidos – infligidos à humanidade, poderíamos pensar que o
amor ao próximo leva à rebelião contra Deus.
(Mas o simples facto de que o sentimento sobrenatural de amor
pelo próximo seja possível constitui uma prova experimental da rea-
lidade e da bondade de Deus.)
A compaixão sobrenatural é uma amargura sem consolo, mas
que envolve o vazio para o qual desce a graça.
Que seja uma amargura irredutível, como a amargura irredutível
do sofrimento que alguém sofre na carne. Jó.
Essa identidade entre os dois mandamentos, que é um mistério
inconcebível, é, ao que parece, um facto da experiência. E esse facto,
em si, é genuinamente providencial.

417
(Isso prova que os hebreus não possuíam o amor sobrenatural
de Deus.)
A contemplação da miséria humana puxa-nos violentamente
para Deus, e somente naqueles que amamos como a nós mesmos é
que podemos contemplá-la. Não podemos contemplá-la em nós mes-
mos ou nos outros como tais.
Ilíada. Lawrence.
Duração. Quando a dor e a exaustão chegam ao ponto de fazer
brotar na alma o sentimento de perpetuidade, ao contemplar essa
perpetuidade com aceitação e amor somos arrebatados para a eterni-
dade. Cruz.
Amar o próximo como a si mesmo implica que se leia em cada
ser humano a mesma combinação de natureza e vocação sobrenatu-
ral. O espírito numa garrafa. Pensamento acorrentado. Essa leitura
vai contra a gravidade; é sobrenatural.
Amar o próximo como a si mesmo nada mais é do que contem-
plar a miséria humana em si mesmo e nos outros.
O nosso próximo é para nós um espelho no qual descobrimos
o conhecimento de nós mesmos, se o amamos como a nós mesmos.
O conhecimento de si mesmo é amor de Deus.
Porquê?
O silêncio de Deus obriga-nos a um silêncio interior.
Quando por necessidade ficamos com frio e com fome, senti-
mos sempre um pouco de pena de nós mesmos, por mais elevados
que estejamos espiritualmente. A compaixão pelos que têm frio e
fome implica a capacidade de conceber-nos e imaginar-nos em qual-
quer tipo de circunstância social e material e, consequentemente, em
deixar de lado as circunstâncias nas quais nos encontramos. Isso sig-
nifica nudez; ou pelo menos uma nudez parcial.
[É consequentemente (por que consequentemente?) a habilidade de

418
conceber e imaginar um homem perfeito – um Deus encarnado –
colocado em qualquer tipo de estado de aflição.]
“Visto que o fizestes...” – isso significa que uma compaixão per-
feita e pura contém uma fé implícita na encarnação. Porquê?
Passagem até o limite.
“Para que sejais um comigo, assim como eu sou um com o Pai.”
A nudez de espírito não é apenas uma condição do amor a Deus;
é uma condição totalmente suficiente; é o amor a Deus. Vazio.
“Ninguém vem ao Pai senão por mim.” Qual é o significado
deste pronunciamento? Evidentemente, não deve ser entendido no
sentido daqueles que acreditam que pertencer à Igreja é uma condi-
ção de salvação. Portanto, em algum outro sentido. Que sentido?
O que é mediação?
“Visto que o fizestes...” Pura compaixão como metaxú.
Caráter sagrado dos suplicantes. Honrando a aflição. (E ao
mesmo tempo “...Quem não foi honrado nem pelos deuses nem pe-
los mortais.”)
Beleza. Uma fruta que contemplamos sem estender a mão.
Também uma aflição que contemplamos sem recuar.
Alimentar os famintos é uma forma de contemplação. Mas de
que maneira?
Ninguém vai ao Deus criador e todo-poderoso sem passar por
Deus ESVAZIADO DE SUA DIVINDADE. Se alguém vai direta-
mente a Deus, é Jeová (ou Alá, aquele do Alcorão).
Temos de esvaziar a Deus de sua divindade para o amar.
Ele se esvaziou de sua divindade tornando-se homem, depois de
sua humanidade tornando-se um cadáver (pão e vinho), matéria.
Devemos amar a Deus através e além de nossas próprias alegrias,
nossa própria aflição, nossos próprios pecados (passados). Devemos

419
amá-lo através e além das alegrias, aflições e pecados de outros ho-
mens – e sem qualquer consolo.
Amar a Deus através e além de uma certa coisa é amar aquela
coisa em pureza; os dois sentimentos são idênticos.
Amar a Deus através e além de nossos pecados é arrependi-
mento.
Amar a Deus através e além da aflição dos outros é compaixão
pelo próximo.
Mas como? Aí está o mistério.
Rebelar-se contra Deus por causa da aflição do homem, à ma-
neira de Vigny ou Ivan Karamazov, é representar Deus para si mesmo
como um soberano. (280-283)

Conto chileno da mulher apaixonada pelo marido. O marido


morre e retorna na forma de um vampiro para sugar seu sangue. Ela
corta a cabeça dele sem a menor hesitação.
Isso significa que o amor é limitado; envolve apenas o interesse
da energia suplementar; para ao nível da vida (energia vegetativa). O
amor sobrenatural vai além desse limite.
É por isso que “ninguém tem maior amor do que este do que
dar a vida pelos seus amigos.”
É preciso discernimento sobrenatural para entender o signifi-
cado dessas palavras. Pois os soldados que morriam por Napoleão
estavam muito longe dessa maior forma de amor. O mesmo é verdade
(em muitos casos) de amantes; de um avarento, etc.
A energia suplementar então precipita o corpo nas mandíbulas
da morte. A energia vegetativa não está preocupada. Assim que sua
preocupação é despertada, surge (exceto com a ajuda da graça sobre-
natural) o tipo mais frio de egoísmo. Este é realmente o único caso
em que o homem é egoísta.

420
A imaginação é incapaz de representar para si mesma esse es-
tado, porque a imaginação é composta de energia suplementar. É por
isso que é tão difícil para nós discernirmos esta verdade.
Procurar outros exemplos.
(Talvez o medo seja um desaparecimento momentâneo da ener-
gia suplementar? São Pedro – um homem condenado à morte.)
Os mártires não foram reduzidos à energia vegetativa pela afli-
ção. Cristo foi reduzido a ela, sem perder a luz da graça.
Cristo como ideia (eidos) do homem.
Um homem particular idêntico à ideia do homem (ininteligí-
vel).
[Na Igreja, considerada como um organismo social, os mistérios
inevitavelmente degeneram em crenças. Se a ela aderirmos do ponto
de vista dos mistérios, podemos fazer parte honestamente desse orga-
nismo social?]
Representar Deus para si mesmo como todo-poderoso é repre-
sentar-se para si mesmo num estado de falsa divindade.
O homem só pode ser um com Deus unindo-se a Deus despo-
jado de sua divindade (DESPOJADO de sua divindade). (283-284)

Eu sou o Caminho.
O Tao, ação não-ativa, é uma forma equivalente.
Atrair a energia vegetativa até a luz. Só a Cruz consegue fazer
isso.
Ama o teu próximo como a ti mesmo. Isso significa arrancar a
energia vegetativa em si mesmo e colocá-la sob uma luz universal.
(“Todas as criaturas” – isso é ainda melhor.) Cruz.
[Não desejar o sofrimento com vistas ao progresso espiritual,
mas desejar o progresso espiritual com vistas à pureza do sofrimento.]
Amar o Deus todo-impotente.

421
Aceitar o sofrimento dos outros, mas como sofrimento; o que
significa, em primeiro lugar, sofrê-lo nós mesmos.
A capacidade de pura compaixão é exatamente proporcional à
aceitação do próprio sofrimento. Por qual mecanismo?
Para dar conta desse mecanismo, exigimos a noção de sensibili-
dade universal (não desvinculada daquela sensibilidade pura que usa
Kant para o espaço e o tempo), que também está relacionada à beleza.
É a recusa de aceitar para si a possibilidade de sofrer que obsta
o caminho da compaixão. É a recusa em reconhecer-se a si mesmo na
miséria dos outros – que necessariamente carrega uma feia aparência.
(Falta de humildade; compaixão nunca é pura sem humildade.) A
contemplação da nossa própria miséria nos outros é uma forma de
contemplação. É colocar voluntariamente o nosso próprio eu no
corpo miserável diante de nós (procedimento seguido pelo infeliz
príncipe na tragédia). [Folclore – uma princesa que se torna uma
serva; a única maneira de convencer as pessoas de que um servo é um
ser humano.] Impulso análogo ao da encarnação; esvaziar-se de sua
falsa divindade. Isso é sobrenatural, porque é sobrenatural descer: a
gravidade moral opõe-se a ele. (Escravos em Plauto que nos fazem rir.
Charlie Chaplin.) A noção de necessidade, a única que nos permite
sofrer enquanto aceitamos o nosso sofrimento, a única que permite
que também transfiramos através da mente o nosso próprio eu para
algum ser infeliz.
Esvaziarmo-nos da nossa falsa divindade, submetermo-nos in-
condicionalmente à condição da miséria humana. Submissão, aceita-
ção e amargura irredutível.
Compaixão implica aceitação, uma vez que voluntariamente fa-
zemos com que nosso próprio ser desça a algum ser infeliz. O impulso
compassivo não é o da revolta.
[Com-paixão. Deus teve compaixão de nossa miséria, embora

422
consinta no facto de que ela deva existir.]
Aceitação e amargura. Condição na qual surge a beleza. Ilíada.
Mas por que isso acontece?
Porque só assim a vida vegetativa pode ser arrancada e colocada
sob a luz da contemplação.
Karma Hindu; o bem que existe é matematicamente igual ao
bem desejado, o mal que existe ao mal desejado. Isso só é verdade
para a humanidade como um todo (exceto o mal que procede da ma-
téria: relâmpago, etc.). É verdade para cada indivíduo na esfera pura-
mente espiritual (e somente quando ele entrou nessa esfera).
Nenhum bem é perdido. Nenhum mal também.
Para o indivíduo, espiritualmente falando, o mal cometido en-
grossa a escuridão. (Pois todo esforço realizado pelo apego aumenta
o apego.) (Mas isso só é verdade no que diz respeito ao esforço; as
ações que são um produto natural da escuridão na qual se encontra
apenas o deixam na mesma escuridão idêntica.) No que diz respeito
ao mundo, toda perturbação do equilíbrio pelo qual ele é responsável
o expõe (não o condena, mas simplesmente o expõe) a uma pertur-
bação do equilíbrio no sentido inverso. E devido à crescente escuri-
dão dentro dele, tornou-se menos capaz de lidar com ela; fica, por-
tanto, ainda mais exposto a ela, tanto de facto quanto espiritualmente.
Quem mata corre o risco de ser morto e de morrer injustamente.
(Externamente, talvez, de maneira corajosa; mas de maneira errada.)
Mas o inverso é igualmente verdadeiro (alguém já disse isso?). O
mal que se sofre, espiritualmente, aumenta a escuridão e induz uma
disposição que leva a uma perturbação do equilíbrio no sentido in-
verso (vingança).
Ao mesmo tempo, há também uma disposição para continuar
(inércia); no caso de quem faz o mal, para fazer mais mal; no caso de

423
quem sofre o mal, sofrer mais mal (humilhar-se com uma falsa humil-
dade).
Somente aquele que está dentro do sobrenatural escapa de ambas
as contaminações morais, e mesmo assim apenas com uma parte de
si mesmo. Ele sente com horror ainda maior a contaminação sofrida
pela outra parte. Arjuna. Cristo. (284-286)

Somente entrando no transcendente, no sobrenatural, no ver-


dadeiramente espiritual é que o homem pode elevar-se acima do so-
cial. Até então, de facto, e faça o que fizer a respeito, o social é trans-
cendente em relação ao homem.
Segue-se, então, que a única proteção possível ao homem é que
aqueles que estão no caminho da santidade cumpram uma função
social reconhecida.
Mas que perigo existe aí!
(Platão, República.) (286)

Dois domínios dentro do homem: aquele que é controlado pela


vontade (escrever uma composição grega) e aquele que está fora do
controle da vontade (escrever uma bela linha de poesia) – (embora
no último a vontade desempenhe um certo papel pela adoção de ati-
tudes corporais ligadas à atenção) –
E onde entra o social? Não ele forma um terceiro domínio, um
tipo particular de transcendente, um híbrido, uma forma substituta
de transcendente?
“Príncipe deste mundo.”
Se a vontade é adequada para deveres manifestos e claramente
representáveis; se a oração é adequada para o sobrenatural; o que é
adequado para o social?
Nada, segundo Lao-Tzu (isto é, nada além do dever manifesto).

424
É uma dura resposta.
Se nada é perdido, nem o bem nem o mal, é o mecanismo social
imaterial?
Na medida em que somos incapazes de modificá-lo em muito
ou em pouco por meio da vontade, devemos simplesmente fazer inci-
dir sobre ele a luz da atenção.
O progresso real será precisamente proporcional à quantidade
total de atenção genuína que é lançada sobre ele entre a maioria dos
indivíduos envolvidos (hoje em dia, isso significa o mundo inteiro).
Cometemos uma grave falta ao desviarmos dela os nossos pen-
samentos; mas uma não menos grave ao juntarmos a ela nossos pen-
samentos.
(Missões sociais, os papéis desempenhados pelos grandes líderes
de homens são fenômenos externos à natureza; mas são eles divinos
ou demoníacos? Foi alguma vez encontrado o primeiro caso??? Moi-
sés, Maomé? Que mistura estranha...)
A influência social em grande escala certamente não é algo que
um ser humano possa adquirir meramente pelo exercício de sua von-
tade. Mesmo no caso de Napoleão, ela veio até ele. Richelieu?
Nem é algo pertencente à ordem da inspiração. (286-287)

A revolta consiste em desviar os olhos – Ivan Karamazov – a


aceitação nada mais é do que uma qualidade da atenção. Quando
sofremos em nossa carne, não podemos evitar pensar no facto de que
estamos sofrendo, e desejamos fazer isso, puxamos a corrente. Jó. “Ó
Deus, deixa-me em paz por um momento!” Quem consente em sofrer
faz a luz da atenção incidir sobre o sofrimento. No caso do sofri-
mento alheio, não carecemos de escolha. Os amigos de Jó permitiram
que funcionasse neles a imaginação compensatória; isso é criminoso.
É uma maneira de desviar os olhos. Ivan Karamazov também desvia

425
os olhos; distração. (Se, em conclusão, dissesse: “Não aceitarei – nem
uma única lágrima será derramada para além do que está estrita-
mente fora de meu poder impedir” – ele então possuiria o amor im-
plícito de Deus – mas por qual mecanismo?)
A contemplação atenta da miséria, sem compensação ou conso-
lação, leva-nos ao sobrenatural, e então não podemos deixar de amar
a sua fonte. A única conexão entre Deus e o mundo reside na possi-
bilidade de que o sobrenatural exista no mundo, numa alma hu-
mana.
Consequentemente, também transportamos para o nosso pró-
ximo o sobrenatural como possibilidade, visto que transportamos
para ele, em pensamento, o nosso próprio ser.
Isso não deve diminuir a nossa inclinação de prestar-lhe socorro
na carne, por causa daquela amargura irredutível contida no sofri-
mento contra o qual o sobrenatural nada pode fazer.
(É claro que, fazer incidir toda a luz da atenção sobre um estado
de sofrimento, saber que podemos ajudá-lo, e não o fazer, é o mesmo
que causá-lo. Porque não devemos causá-lo?)
(“Tive fome e me destes de comer...”, e no entanto: “a minha
comida é fazer a vontade daquele que me enviou.” Se realmente nos
deparasse com Cristo faminto, por que deveríamos de alimentá-lo?)
Aceitar o que é amargo; não devemos permitir que a aceitação
se projete na amargura de forma a diminuí-la; caso contrário, a força
e a pureza da aceitação são proporcionalmente diminuídas. Pois o
objetivo da aceitação é provar o que é amargo como tal, e nada mais.
(São Tomás sobre o sofrimento de Cristo.) – Dizer como Ivan Kara-
mazov: nada pode compensar uma única lágrima de uma única cri-
ança. E no entanto aceitar todas as lágrimas e os incontáveis horrores
que estão além das lágrimas. Aceitar essas coisas não apenas na me-

426
dida em que possam admitir compensações, mas em si mesmas. Acei-
tar que eles devam existir, simplesmente porque existem.
Não aceitar um determinado evento porque é a vontade de
Deus. O inverso é mais puro. (Talvez...) Mas aceitar esse evento por-
que existe e, por meio dessa aceitação, amar a Deus através e além
dele.
Aceitar que deva existir porque de facto existe, o que isso signi-
fica exatamente? Não é simplesmente reconhecer que é?
A alegria aumenta o sentimento de realidade, a dor diminui. É
apenas uma questão de reconhecer a mesma plenitude da realidade
no caso das dores e nas alegrias. A sensibilidade diz: “Isso não é pos-
sível.” É preciso responder: isso é. Pergunta: “Porquê?” Devemos res-
ponder: porque é; se isso é, há uma razão para isso.
(Cf. “Testamento Espanhol.”)
Quando alguém ama a Deus através e além do mal como tal, é
de facto Deus a quem ama.
Não há sentimento de realidade sem amor, e a associação entre
eles está na raiz da beleza. Mas por que é assim?
Entre os seres humanos, só reconhecemos plenamente a existên-
cia daqueles que amamos.
Inseparavelmente associada à beleza, em todas as suas formas,
está uma certa amargura.
A beneficência – alimentação, roupa, etc., outras – não tem va-
lor em si mesma, mas apenas como sinal. Há uma inclinação natural,
certamente fraca, mas que existe para aliviar o sofrimento, e quando
aquilo que atua como uma barreira a essa inclinação é removido, é
exercida. Uma forma correta de atenção voltada para a miséria alheia
é precisamente aquilo que quebra essa barreira. (A desatenção é ge-
ralmente a razão pela qual essa inclinação não é exercida.)
Tudo o que acontece neste mundo tem valor apenas como prova

427
ou como sinal. Tudo é equilíbrio.
(“Sede perfeitos, assim como o vosso Pai que está nos céus é per-
feito,” isto é, devemos ser o mesmo para todos, incluindo nós mes-
mos. Agora, nos alimentamos quando temos fome. Até os eremitas
tibetanos comem alguns grãos de cevada todos os dias.)
Não devemos aumentar a inclinação para aliviar a angústia –
pouco importa se ela é forte ou fraca, pois é natural e não é nem boa
nem má – mas acabar com aquilo que a impede de ser exercida.
Segue-se que aliviar o sofrimento não é uma ação; é render-se a
uma inclinação, é passividade.
Por que deveríamos agir, no estado de indiferença superior? E
de facto, falando propriamente, não agimos. Mas não sendo o ho-
mem por natureza uma criatura imóvel, para ele a não-ação consiste
tanto em movimentos quanto em imobilidade.
O Gita.
Não buscar o Bem na ação. Isso é o que o Gita nos ensina. Mas...
Pensas que não vais lutar, mas os motivos que te induzem a lutar
têm naquele momento a vantagem. Não é através da escolha de um
comportamento específico que alguém é capaz de elevar-se.
A luz da atenção anula certas inclinações e desperta outras de
um estado de inércia. (Talvez haja compensação, transferência de
energia?) Resta um sistema de inclinações ao qual o homem nada
mais tem a fazer a não ser entregar-se.
O homem nada mais tem a fazer senão render-se às inclinações
(entre as quais está incluída a clara representação do dever), mas a
atenção muda-as.
Arjuna não teve tempo de realizar essa operação. (287-289)

“Tu és aquilo que não é.” – Já que não sou, posso, sob a influ-
ência das circunstâncias, tornar-me qualquer coisa.

428
Uma conceção platônica.
A representação do que é insuportável. Fresco em Asolo. Isso
significa arrancar o horror das profundezas sombrias e colocá-lo sob
a luz da atenção. É um ato de descriação.
Nada é mais belo, no sentido mais preciso do termo.
Pureza é a capacidade de contemplar a contaminação.
A pureza extrema é capaz de contemplar tanto o puro quanto o
impuro; a impureza não pode fazer nada: o puro o assusta, o impuro
absorve-o. (Requer uma mistura.)
O príncipe no folclore, vinculado por juramento… Representa
o próprio Deus. Deus está mais escondido na criação do que na en-
carnação.
Revelá-lo é descriar.
Ele está como que preso por um juramento. Tudo lhe é possível,
mas tudo acontece como se nada lhe fosse possível. (289-290)

O bem que está acima da correlação bem-mal nunca é perdido.


E também constitui um limite. (Isso está mal expresso.)
Aplicação ao reino espiritual do princípio: “Nada é perdido,
nada é criado.”
Sofrimento redentor. Um bem puramente espiritual.
Alegria pura – não é uma condição do sofrimento redentor?
Dizer que este mundo não vale nada, que esta vida não vale nada
e apresentar o mal como prova, é um absurdo; pois, se nada vale, do
que exatamente o mal nos priva?
Assim, o sofrimento na aflição e a compaixão pelos outros são
tanto mais puros e profundos quanto melhor somos capazes de con-
ceber a plenitude da alegria. De que priva o sofrimento aquele que
está sem alegria?
E se concebermos a plenitude da alegria, o sofrimento ainda

429
permanece relacionado à alegria, da mesma forma que a fome está
relacionada à comida.
Krishna.
É claro que Krishna reprova Arjuna por querer realizar uma
forma substituta de descriação.
(E, no entanto, de modo geral, é precisamente o ato de matar
que constitui essa falha.)
Alegria transcendente: não podemos (talvez?) alcançá-la pela sen-
sibilidade, exceto por sofrimento extremo e puro.
Saber de toda a minha alma que sou nada. A alegria de ser nada.
Para encontrar realidade no sofrimento, a revelação da realidade
deve ter vindo até nós por meio da alegria. Caso contrário, a vida
nada mais é do que um sonho mais ou menos maligno.
É preciso conseguir descobrir uma realidade ainda mais plena
no sofrimento, que é o vazio, o nada.
Da mesma forma, é preciso amar muito a vida, para poder amar
ainda mais a morte.
Se encontramos a plenitude da alegria no pensamento de que
Deus é, devemos encontrar a mesma plenitude no conhecimento de
que não somos, pois é o mesmo pensamento. E esse conhecimento
só é conferido à sensibilidade por meio do sofrimento e da morte.
Aqueles que se rebelam na presença da aflição gostariam de ser
alguma coisa.
Mas não devemos ser causa de aflição, pois isso também seria
ser alguma coisa.
A alegria é dirigida a um objeto. Fico cheia de alegria ao ver o
sol brilhar, ou a lua sobre o mar, ou uma bela cidade, ou um belo ser
humano; nenhum eu se intromete na plenitude da alegria.
Por outro lado, eu sofro.
A alegria é a consciência daquilo que não sou eu enquanto ser

430
humano. O sofrimento é a consciência de mim mesma enquanto
nada. Dois aspetos correlativos da mesma coisa. Mas, no segundo
caso, há laceração espiritual. Posso muito bem esquecer minha exis-
tência, mas não pensar que sou nada. Mas quanto mais me esforço,
mais capaz me torno de pura alegria.
Quando sofro, não posso esquecer que sou, nem deixar de saber
que sou nada.
O eu é o elemento irredutível contido no sofrimento.
Pela força do sofrimento, desgastamos o eu e o abolimos por
completo quando o sofrimento alcança a morte.
Também desgastamos o eu pela alegria acompanhada de uma
atenção extrema.
A compaixão pura deve tornar a pessoa mais capaz, e não menos
capaz, de pura alegria.
E como se dá isso?
Uma vez que tenhamos entendido que somos nada, o objetivo
de todos os esforços é tornar-se nada. É com este fim em vista que
aceitamos sofrer, é com este fim em vista que agimos, é com este fim
em vista que oramos.
Ó Deus! concede que possa tornar-me nada.
Tão rápido quanto eu me torno nada, Deus se ama a si mesmo
através de mim.
Deus é Tudo, mas não quando é considerado como uma pessoa.
Quando é considerado como uma pessoa, ele é nada. “Assimilação a
Deus.” [Nota: Platão, Teeteto, 176b.] (Pessoal e impessoal.)
(Os Evangelhos: a perfeição de Deus consiste na não-interven-
ção.)
Totalidades e partes com respeito a Deus...
Apenas a necessidade (condição de existência) oferece um recurso
para a inteligência neste ponto.

431
A necessidade contém causalidade e finalidade.
Amor e justiça – ser justo para com um ser diferente de si
mesmo significa colocar-se no seu lugar. Pois então a pessoa reco-
nhece sua existência como pessoa, não como coisa. Isso significa um
esquartejamento espiritual, um despojamento do eu; conceber-se
como si mesmo e como outro.
A crença na existência de outros seres humanos como tal é amor.
Quando a paixão do amor chega até a energia vegetativa, temos
casos como os de R., Phèdre, Arnolfo, etc. (“E sinto aí que terei de
morrer...”)
Hipólito é realmente mais necessário à vida de Phèdre, no sen-
tido mais literal do termo, do que comida.
Para que o amor de Deus possa penetrar tão profundamente
(pão sobrenatural) é necessário que a natureza tenha sofrido a violên-
cia suprema. Jó. A Cruz.
O amor de Phèdre, o de Arnolfo é impuro. Um amor que desce
tão baixo e que permanece puro...
Tão baixo, no fundo, só pode ser negativo, só pode significar
vazio, angústia e morte. Carregar em si a morte. (Carregando a pró-
pria cruz.)
Criação: a inteligência humana é incapaz de conceber esse mo-
vimento descendente sem algo que corresponda a uma necessidade.
Nas minhas relações com R. toquei este frio mortal da energia
vegetativa que tão raramente tocamos.
(Será que a toquei em mim mesma durante o pior período de
minhas dores de cabeça?)
Cena do saque de Magdeburg. Asdrúbal.
O mundo deixa de existir.
A menos que tenhamos conseguido tornar-nos nada, sempre
corremos o risco de chegar a um momento em que todas as outras

432
coisas além de nós mesmos deixam de existir.
Temos de nos tornar nada até o nível vegetativo. É então que
Deus se torna pão.
“Dá-nos hoje este pão (sobrenatural).”
Aceitar as desgraças dos outros e ao mesmo tempo sofrer por
causa deles.
A aceitação nada mais é do que o reconhecimento de que algo
é.
O sofrimento nada mais é do que contemplar a aflição com a
mente.
Contemplar o facto de que existe aflição: isso constitui aceitação
e sofrimento.
A realidade, em certo sentido, precisa de nossa adesão.
Assim nos tornamos criadores do mundo.
Ivan Karamazov: fuga para a irrealidade. Mas isso não constitui
um movimento de amor. Uma criança que está chorando não quer
que penses que ela não existe, ou que te esqueças que ela existe.
Alimentar quem tem fome: o ato de alimentar é apenas o sinal
de que reconhecemos que ele existe.
Este eu irredutível, que é o fundamento irredutível do meu so-
frimento, deve ser universalizado. (290-293)

É impossível conceber o Bem sem passar pela Beleza. Quando


todos os motivos e impulsos são reduzidos ao silêncio, a energia per-
manece, suspensa em Deus. E atua, pois é ação. Atua na esfera do
particular, visto que é energia física (poderíamos também dizer psico-
lógica). Só a beleza nos permite ter uma ideia desse mistério.
“Os lírios do campo...” Aplicado aos leigos, significa a renúncia
aos frutos da ação. (293)

433
Se não houvesse aflição neste mundo, seríamos capazes de acre-
ditar que estamos no Paraíso. Possibilidade horrível.
Devemos fazer o nosso melhor para evitar a aflição, apenas para
que a aflição que encontramos seja absolutamente pura e absoluta-
mente amarga.
Devemos fazer o nosso melhor para evitar a aflição que cai sobre
outros, para que seja para nós uma espécie de aflição pura e amarga.
(294)
Se nos colocamos no lugar de alguém que tem fome, natural-
mente tendemos, por uma ação cega e automática da sensibilidade,
a desejar que coma. Além disso, não há absolutamente nenhuma ra-
zão (a menos que sejam razões especiais devido às circunstâncias) pela
qual devamos resistir a tal inclinação.
Mas o ato de prover comida é apenas o sinal da inclinação, que
em si mesma é apenas o sinal de que alguém reconheceu a existência
do eu do indivíduo faminto como tal. Não tem outra importância
senão a de um sinal.
Mas possui todo o valor de um sinal, pois o reconhecimento de
um eu na pessoa do faminto é fictício, imaginário, se não for acom-
panhado de uma inclinação quase irresistível de lhe prover alimento.
(E ainda, como o ato de pronunciar as palavras de uma oração
pode produzir oração, o ato de prover alimento pode produzir tal
reconhecimento se for realizado com esta intenção.)
O ato de prover alimento está ligado a esse reconhecimento, as-
sim como o ritmo do verso está ligado à contemplação poética.
Poderíamos fazer um catálogo de sinais, ligações desse tipo.
O reconhecimento é, em primeiro lugar, uma questão para quem
presta o auxílio, se o auxílio é puro; só é devido a quem recebe a ajuda
em razão da reciprocidade.

434
Quem recebe a ajuda deve exatamente o equivalente do que re-
cebeu, ou seja, o reconhecimento de que o outro tem o direito de
dizer “eu”.
Todo ato puro de beneficência (puro de ambos os lados) estabe-
lece uma relação de perfeita igualdade entre os dois seres que dele
participam.
Um puro ato de beneficência quebra a barreira da força e é, con-
sequentemente, sobrenatural.
Um ato de beneficência pode ser puro apenas de um dos dois
lados.
Só existe sentimento de dívida quando há ausência de pureza de
ambos os lados. (295-296)

O problema social. Como restringir ao mínimo o papel do so-


brenatural indispensável para tornar suportável a vida social. Tudo o
que tende a aumentá-lo é mau. (É tentar a Deus.) O problema da
“justiça” e da “caridade” (usando essas duas palavras no seu sentido
comumente aceito) precisa ser colocado dessa maneira.
Na vida individual, também, devemos restringir rigorosamente
o papel desempenhado por Deus ao mínimo absoluto – enquanto
desejando ardentemente que esse mínimo absoluto possa tornar-se
tudo, absolutamente tudo.
Mas, com relação a este segundo ponto, não há analogia no sen-
tido social.
Os dois domínios nos quais o bem não entra são os domínios
vegetativo e social.
Cristo resgatou o domínio vegetativo, mas não o social. Ele não
orou pelo mundo.
O domínio social é sem reservas o do Príncipe deste Mundo.
Temos apenas um dever em relação ao elemento social, que é tentar

435
limitar o mal nele contido.
Richelieu: “A salvação dos Estados está apenas neste mundo...”
(Uma sociedade com pretensões divinas, como a Igreja, talvez
seja ainda mais perigosa por causa da forma substituta de bem que
contém do que por causa do mal que a mancha.)
As esferas vegetativa e social são semelhantes às não psicológi-
cas.
Um rótulo divino afixado ao que pertence à esfera social apre-
senta uma mistura inebriante contendo todas as formas de licencio-
sidade. O diabo disfarçado.
E no entanto, uma cidade... (Veneza, por exemplo...)
Mas isso não pertence à esfera social; é um ambiente humano
do qual não temos mais consciência do que o ar que respiramos. É
um contato com a natureza, com o passado, com a tradição; um me-
taxú.
Venise sauvée. [Nota: romance inacabado de Simone Weil.]
Espanha; para os conspiradores, a conspiração é uma questão so-
cial. Veneza é uma cidade.
Uma cidade – que não evoca o elemento social.
Troia Sagrada.
O estado de enraizamento é algo totalmente diferente do ele-
mento social. (296-297)

Contemplar as desgraças alheias sem desviar o olhar; não só o


olhar, mas também a atenção, como fruto da revolta, do sadismo ou
de algum consolo interior de um tipo ou de outro – isso é belo. Pois
é contemplar o não-contemplável. Exatamente como contemplar algo
desejável sem abordá-lo. É deter-se a si mesmo.
Só a renúncia permite que nos detenhamos (cordas que nos pu-
xam e que têm de ser cortadas) e assim tenhamos acesso à Beleza. Jó

436
e o esplendor do mundo.
Não aceitar um acontecimento que está ocorrendo no mundo é
desejar que o mundo não exista. Bem, isso posso fazer no meu caso;
se for esse o meu desejo, obtenho o meu desejo. Sou então um abs-
cesso no mundo.
(A expressão de desejos no folclore. Os desejos contêm este pe-
rigo, o de serem concedidos.)
Desejar que o mundo não exista é desejar que eu, tal como sou,
seja tudo.
Se desejo que este mundo exista – este mundo no qual sou ape-
nas um átomo – então torno-me uma cocriadora.
O subjetivismo contido nos Upanishads serve apenas para pre-
parar essa ação cocriadora.
A geometria praticada pelos gregos é também uma participação
na criação.
Talvez houvesse apenas um povo na antiguidade sem mística de
qualquer tipo: os romanos. Como isso aconteceu? Roma era uma ci-
dade artificial feita de fugitivos, como Israel. (297)

Necessidade – uma imagem que a inteligência pode apreender


representando a indiferença de Deus, a sua imparcialidade.
Segue-se que a noção comumente aceita com respeito aos mila-
gres é uma espécie de impiedade. (Um facto que não tem causa se-
gunda, mas apenas causa primeira.)
A Árvore do Mundo – a figueira eterna cujas raízes devem ser
cortadas com o machado do desapego (Gita).
Esta é a energia vegetativa.
A cruz é de madeira, mas é feita de uma árvore que foi cortada.
Adão comeu do fruto da árvore. (Dois pássaros: um deles come
a fruta...)

437
A árvore deve ser cortada, o próprio cadáver deve ser o seu fruto.
A energia vegetativa deve ser desenraizada. (297-298)

Fé, justiça; estas provêm de um senso de disposição interior cor-


reto e um senso de leitura. É a disposição interna que produz a leitura
correta e não há outro critério. (298)

Certos atos procedem de nós quando estamos em tal e tal es-


tado, sem nenhuma intenção particular que nos motive enquanto os
executamos. É o caso de escrever poesia, alimentar os famintos.
(Alexandre e o capacete cheio de água.)
De igual maneira procede o mundo de Deus.
Sede perfeitos, assim como o vosso Pai que está nos céus é per-
feito. (298)

É preciso desenraizarmo-nos; cortemos a árvore e façamos dela


uma cruz, e então carreguemo-la sempre; desenraizarmo-nos dos ân-
gulos social e vegetativo; não possuir nenhuma terra natal nesta terra
que possamos chamar de nossa.
Fazer todas essas coisas a outras pessoas, externamente, é uma
forma substituta de descriação; estamos produzindo irrealidade.
Mas, ao desenraizarmo-nos, buscamos uma realidade maior.
Não devo ser eu, mas muito menos devo ser Nós.
A cidade dá-nos a sensação de estarmos em casa.
É preciso adquirir a sensação de estar em casa no exílio.
A cidade é um metaxú para propósitos de desenraizamento.
Se, sob o golpe da aflição, alguém fica privado de suas raízes
antes mesmo de começar a transfigurá-las (ou se nunca as teve), que
esperança pode haver? (298)

438
A Encarnação não aproxima Deus de nós. Aumenta a distância.
Ele colocou a Cruz entre ele e nós. A Cruz é mais difícil de transpor
do que a distância entre o céu e a terra. É essa distância.
Ele deixou claro que a Cruz está entre ele e nós.
Somente através da Cruz podemos perder todo o peso gravitaci-
onal.
São Paulo: Cristo foi completado – ou realizado – ou aperfeiçoado
– mesmo no seu caso ela foi necessária. (298-299)

Acreditar na realidade do mundo exterior e amá-la – são uma e


a mesma coisa.
Em última instância, o órgão da crença é o amor sobrenatural,
mesmo em relação às coisas terrenas.
Assim que Jaffier sabe que Veneza existe... [Nota: Assim que
sabe, não é mais capaz de conspirar na sua destruição.]
Acreditar na existência de algo e ainda assim destruí-lo – para
isso uma conceção imperativa de dever é necessária.
(A menos que alguém possua fé diabólica, se tal coisa for possí-
vel.)
(Em certo sentido, eu acho que é. Para aqueles que se contami-
naram ao ponto de não serem mais capazes de suportar a luz, cada
toque da parte da graça é transformada em graça diabólica.)
Os santos (e quase santos) estão mais expostos ao diabo do que
as outras pessoas, porque o conhecimento genuíno que possuem de
sua miséria torna-lhes a luz quase insuportável.
Maya – ilusão. É bastante real (à sua maneira), uma vez que é
necessário muito esforço para emergir dela. Mas sua realidade reside
em ser ilusão.
O mistério da criação encontra em nós sua analogia no mistério
da caridade que se transforma em atos. Por que Deus nos criou? Mas

439
por que alimentamos quem tem fome (quando o fazemos...)? (299-
300)

A extrema dificuldade que muitas vezes experimento para reali-


zar a ação mais simples é um favor que me foi concedido. Pois dessa
forma, com ações bastante comuns, e sem chamar atenção, sou capaz
de cortar as raízes da Árvore. Por mais indiferentes que sejamos à
opinião externa, as ações extraordinárias, tão logo tenham sido deci-
didas, adquirem certo estimulante externo que não lhes pode ser re-
tirado. Esse estimulante está totalmente ausente das ações comuns.
Encontrar uma dificuldade extraordinária em realizar uma ação bas-
tante comum é um favor pelo qual devemos ser gratos. Não devemos
pedir que essa dificuldade desapareça; mas, pelo contrário, desejar
ardentemente, implorar pela que nos permita fazer uso dela.
De um modo geral, não devemos desejar o desaparecimento de
nenhuma das falhas pessoais, mas sim a graça que pode transfigurá-
las. (300)

Devo considerar cada pecado que eu cometo (que eu cometi)


como um favor da parte de Deus. É um favor que recebi que a imper-
feição fundamental que jaz oculta nas minhas mãos tenha se mani-
festado parcialmente a mim num determinado dia, numa determi-
nada hora, sob certas circunstâncias particulares. Desejo, imploro
que minha imperfeição se manifeste inteiramente a mim, na sua ple-
nitude, na medida em que a mente humana seja capaz de deixar seu
olhar nela pousar; não com o propósito preciso de ser curada, mas
mesmo que não seja curada, para que possa saber a verdade a respeito
dela. (301)

Trabalho manual. Como é que nunca houve um operário ou

440
um místico camponês que escrevesse sobre o uso que se pode fazer
do desgosto pelo trabalho?
Esse desgosto que tantas vezes está presente, sempre ameaçando
irromper – a alma foge dele e procura ocultá-lo de si mesma através
de uma reação vegetativa (instinto de autopreservação). Existe um pe-
rigo mortal em admitir isso para si mesma. Essa é a origem da men-
tira peculiar aos círculos da classe trabalhadora (existe uma mentira
peculiar a todo o tipo de ambiente).
Admitir isso para si mesmo e ceder é cair. Admitir isso para si
mesmo e não ceder é subir.
Esse desgosto é o fardo do Tempo. É uma cruz.
O desgosto, sob todas as suas formas, é um dos males naturais
mais preciosos que foram dados ao Homem como uma escada pela
qual pode subir. (Minha parte pessoal neste favor particular é muito
grande.) (301)
Venise sauvée – desgosto com uma existência monótona como
um estimulante no plano de fundo. Revela o facto do tédio.
Desgosto – uma “noite escura”.
Transforma todo desgosto em desgosto por ti mesmo (como faço
comigo no caso dos meus poemas).
Desgosto e preferência como terceira dimensão. A indiferença
está por trás.
Espaço – símbolo de indiferença, de justiça. Lá, tudo existe nas
mesmas bases.
Reconhecer o facto de que tudo o que existe, como um todo e
em cada detalhe, o faz nas mesmas bases. (301-302)

Todos e partes. Deus não organiza as partes em vista de um


todo. Não precisa. Se ele quer um todo, ele postula o todo. No en-
tanto, ao postulá-lo, necessariamente postula também as partes. Mas

441
ele também quer as partes, cada parte em si mesma; e ele quer essas
partes tanto quanto quer o todo. É um milagre de composição em
vários planos. Um milagre imitado na mais alta forma de Arte. Um
mistério insondável. Tal imitação constitui Arte.
O propósito por trás da Providência, o plano por trás da Provi-
dência. Todo plano, todo propósito que é discernível nos eventos é
certamente o da Providência, um dos propósitos da Providência, en-
tre uma infinidade de tais propósitos (e, além disso, um infinito com
referência a uma infinidade de qual poder?). Deus quer cada átomo,
cada evento, junto com todas as inúmeras combinações que formam
entre eles, todas as perspetivas que oferecem, sem qualquer exceção.
(302)

Podemos tomar apenas uma das seguintes três decisões: Renun-


ciar a Deus; ou renunciar a toda atividade (tendência árabe); ou ainda
transformar toda a atividade, sem exceção, numa ponte para Deus
(aquelas atividades impossíveis de serem excluídas como ilegítimas,
mesmo que sejam vitalmente necessárias). Porque a Europa falhou
na Idade Média em tomar resolutamente a terceira decisão – que
exige certa preparação, estudo e elaboração – e também falhou em
tomá-la na época do Renascimento, quando tentou fazê-lo de outra
forma, tomou a primeira. A Grécia tentou ficar com a terceira, exceto
no que dizia respeito ao trabalho manual; razão pela qual, além disso,
sua causa foi traída por seus operários e fabricantes.
No Renascimento, houve um movimento na direção certa,
acompanhado por um duplo lapso; aquele por parte daqueles seden-
tos de liberdade espiritual que abandonaram a Igreja e, como resul-
tado, quase que imediatamente, a inspiração espiritual; e aquele da
Igreja, que não se dispôs a saciar a sede de liberdade espiritual. (302-
303)

442
Duas coisas ligadas pela Necessidade. Exemplo: uma balança va-
zia. Um pedaço de gesso cai numa das escalas. Esta última cai.
Deus quer uma dessas coisas em si mesma. Quer a outra em si
mesma. Quer o todo composto pelas duas. Quer a ligação entre as
duas. Quer a natureza necessária dessa ligação. Nem a coincidência
nem o acaso desempenham algum papel em cada uma dessas coisas,
sejam elas tomadas separadamente, ou o todo junto.
Há uma identidade entre: Deus quer uma certa coisa e: uma
certa coisa é. Em nós, a contrapartida dessa identidade é aquela entre
o amor sobrenatural e a crença. O amor sobrenatural, que é obedi-
ência, é aquilo que em nós responde à vontade de Deus.
Temos de ser indiferentes ao bem e ao mal; mas enquanto per-
manecemos indiferentes, isto é, enquanto fazemos a luz da atenção
incidir igualmente sobre um e outro, o bem prevalece como resultado
de um mecanismo automático. Isso representa a forma essencial de
graça. Mas é também a definição, o critério do bem.
Uma inspiração divina opera infalivelmente, irresistivelmente,
se não desviamos dela a atenção, se não a rejeitamos. Não há neces-
sidade de fazer uma escolha a seu favor; tudo o que é necessário é não
recusar reconhecer sua existência.
Obediência – único meio de passar do Tempo para a Eterni-
dade. (303)

Assim como cada minuto de atenção – mesmo de um tipo im-


perfeito – dirigida ao superior faz com que alguém se eleve um pouco,
da mesma forma o faz cada ato realizado com a mesma atenção. Ne-
nhuma partícula de Bem é perdida. A recaída só ocorre na medida
em que imaginamos que subimos mais do que realmente subimos.
Todo ato obrigatório contra o qual a natureza coloca um obstáculo,

443
quando realizado com uma atenção bem direcionada, desgasta um
pouco esse obstáculo. Um número suficiente de tais atos esgota esse
obstáculo, faz com que ele desapareça. Se, antes de termos acumu-
lado tal número, imaginamos, só porque conseguimos realizar o ato,
que o obstáculo desapareceu, ficamos espantado de “ter uma recaída”
e pode-se pensar que não estamos fazendo nenhum progresso; esta
última consideração, devido à perversidade intimamente ligada à
falta de esperança, é suficiente para atrasar alguém. Basta, para ter
coragem, reconhecer que o obstáculo é finito e pode ser eliminado
por meio de um processo de mordiscar. Quem não reconhece esse
facto está condenado ao castigo sofrido pelas Danaides.
A esperança consiste em saber que o mal que carregamos é fi-
nito, e que a menor orientação da alma para o Bem, se dura apenas
um instante, acaba com um pouco dele; e que no domínio espiritual
cada partícula do Bem infalivelmente produz o Bem.
Este conhecimento é experimental, razão pela qual a esperança
é uma virtude sobrenatural. Representa o destemor nos assuntos do
Espírito. (303-304)

Quando oramos, não devemos ter nada particular em vista, a


menos que tenhamos sido sobrenaturalmente inspirados nesse sen-
tido. Pois Deus é um ser universal. Certamente ele desce ao particu-
lar. Ele desceu, desceu no ato da criação (observa que a “criação con-
tínua” de Descartes é precisamente a mesma coisa que a “manifesta-
ção” dos hindus); como também faz no caso da Encarnação, da Eu-
caristia, da inspiração, etc. Mas é um movimento descendente. O vín-
culo estabelecido entre o universal e o particular é um movimento
descendente, nunca ascendente; um movimento da parte de Deus,
não da nossa. Não podemos efetuar tal vínculo, exceto na medida em

444
que nos for ditado por Deus. Nosso papel é voltarmo-nos para o uni-
versal.
Aí reside talvez a solução para a dificuldade levantada por Ber-
ger sobre a impossibilidade de vincular o relativo ao absoluto. É im-
possível por um movimento ascendente, mas é possível por um des-
cendente.
A busca por uma escala de valores. Tal busca implica Valor (aliás,
o mesmo é verdade de toda busca; consequentemente, logo no início
da escala, no topo, devemos colocar o Valor – como tal, em si mesmo,
auton).
Devemos sempre conformar-nos à lei do movimento descendente.
A participação, tal como expressa em Platão, é um movimento
descendente.
Assim também, na República, é a Luz para a qual basta dirigir os
olhos.
A graça é a lei do movimento descendente.
Um movimento ascendente é natural, um descendente é sobre-
natural. (307-308)

Beleza. Uma parte da matéria que, através dos sentidos, torna a


perfeição espiritual sensível.
Uma parte da matéria que obriga a parte transcendental da alma
a tornar-se visível.
É a mesma faculdade da alma, a saber, o amor sobrenatural, que
tem contato com a Beleza e com Deus.
O amor sobrenatural é o órgão em nós pelo qual aderimos à
Beleza, e em nós o sentido da realidade do universo é idêntico ao da
sua beleza. Plena existência e beleza fundem-se uma na outra. (308)

“Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um, isto é,

445
Deus.” O próprio Bem. Conceção platônica. (308)

O que é natural é simplesmente aquilo que de facto foi colocado


ao nosso alcance; mas todas as diferentes partes da vida humana são
tão densamente repletas de mistério, absurdo e inconcebível como é,
por exemplo, a Eucaristia, e são igualmente impossíveis de se ter con-
tato no sentido real a não ser por meio do amor sobrenatural.
Na Beleza – por exemplo, o mar, o céu – há algo irredutível; exa-
tamente como há no sofrimento físico: a mesma irredutibilidade; im-
penetrável para a inteligência.
Existência de algo diferente de mim.
Relação entre Beleza e Sofrimento. (308)

Todas as (intransponíveis) dificuldades relacionadas com a his-


tória do Pecado Original devem-se ao facto de que representamos essa
história para nós mesmos como se desdobrando no Tempo. Consi-
derando que é a expressão de relações causais, ou melhor, daquilo
que no domínio sobrenatural corresponde por analogia a relações
causais.
Deus criou o Homem com a capacidade de se tornar semelhante
a si mesmo, mas no estado de pecado consentido pelo Homem.
A Queda expressa esse caráter essencial de consentimento vin-
culado ao pecado. O pecado está dentro do homem, não fora dele;
vem do Homem; mas o homem foi criado assim.
O homem foi criado assim, mas Deus é inocente. Esta inocência
não é mais difícil de conceber deste modo do que a inocência de
Deus no momento em que Adão desobedece para aqueles que repre-
sentam para si a história como se desenrolando no Tempo. Pois tudo
o que acontece é a vontade de Deus, tanto a cada instante como no
exato instante da criação, se é que se pode dizer que essa expressão

446
tenha algum significado. (309)

Significado das histórias sobre desejos (em que, depois de ter


feito três desejos, encontra-se tal como antes): todos os seres huma-
nos aqui em baixo obtêm o que desejam.
Em certo sentido, isso é absolutamente verdadeiro; noutro sen-
tido, absolutamente falso. (Não seria capaz de fazer mal a outras pes-
soas.)
Por qual combinação mental devemos conceber juntos isso e seu
oposto? (309)

“Pai no céu.” Aquilo que somos incapazes de alcançar – o trans-


cendente; é isso que é o nosso verdadeiro lar. (310)

A consciência está ausente no nível vegetativo da vida e é distor-


cida pelo mecanismo social. A energia suplementar está (em grande
medida [?]) apegada ao mecanismo social. Deve ser dela separada.
Esta é a forma mais difícil de desapego.
A meditação sobre o mecanismo social é, a esse respeito, uma
purificação de maior valor.
(Não estava então errada ao interessar-me por política durante
tantos anos.)
(Talvez todo o apego seja de tipo social?)
Contemplar o mecanismo social é um caminho tão bom de seguir
quanto é afastar-se do mundo. (311)

O mal e o bem que estão em nós são finitos.


A orientação da alma para o mal ou para o bem possui uma pro-
priedade exponencial.
É aí que reside a base da segurança.

447
Não devo, portanto, lutar contra o mal que está em mim por
meio do bem que há em mim, mas por meio de uma orientação cor-
reta da atenção.
Amor sobrenatural e oração nada mais são do que a forma mais
elevada de atenção.
Analogia entre o misticismo e a patologia mental. Essa analogia
precisa ser entendida.
Existe uma maneira correta de abordar o estudo da patologia
mental, que sem dúvida não foi ainda pensada.
(Deve ser considerado exclusivamente como um estudo da ima-
ginação?)
Há certas pessoas em cujo caso tudo o que aproxima Deus delas
é benéfico. No meu caso, é tudo aquilo que o torna mais remoto.
Entre mim e Ele está a espessura do universo – e também a da
Cruz. (311)

A vida humana é impossível. Mas só a aflição faz com que isso


seja sentido.
Quando entendemos a natureza da aflição, nós a amamos; mas
também compreendemos que cabe a Deus enviá-la por meio de seus
próprios instrumentos, a saber, a Matéria, água nas enchentes, fogo
nas erupções de fogo e homens cuja alma não está aberta à luz, a
Besta Social.
Não nos foi dada a escolha entre causar ou não aflição. (E não
socorrer alguém em sofrimento quando sabemos que podemos pres-
tar-lhe assistência é, na verdade, causar aflição.) Quando conhecemos
a verdadeira natureza da aflição, é mais fácil morrer que causá-la.
(Esse ainda está longe de ser o meu caso.)
Mas, assim como há certas circunstâncias em que é necessário
morrer, embora a alma se rebele contra isso, como aconteceu com

448
Cristo, também há certas circunstâncias em que é necessário causar
aflição.
São aqueles em que a pessoa está ligada à Besta Social por uma
obrigação estrita. (311-312)

Este problema da Indiferença é um falso problema, absurdo. As-


sim como um sábio sentado e meditando ou um santo de joelhos
orando não têm o mesmo comportamento corporal de um homem
comum sentado ou de joelhos, da mesma forma não têm eles o
mesmo comportamento nas suas relações com os homens e a socie-
dade, sem, no entanto, estarem debaixo da necessidade de fazer uma
escolha.
O uso (metódico ou não) feito de diversas formas de loucura na
prática do ascetismo mental e do misticismo corresponde ao uso pu-
rificador do ceticismo (puro idealismo, solipsismo) no plano filosó-
fico.
Trata-se de desenraizar nossas leituras das coisas, de modificá-
las, para chegar à não-leitura.
Devemos reconhecer, experimentar e testar o papel, o poder e o
grau de participação da imaginação na Perceção.
É a mesma coisa (mas levada a um estágio muito mais avançado)
que a meditação sobre as ilusões dos sentidos apresentadas por Char-
tier e Lagneau.
É a realização que corresponde à dúvida.
Isso também corresponde à purificação da pintura Impressio-
nista.
É uma questão de conceber a Razão através da loucura.
O que distingue os estados superiores dos inferiores é, nos esta-
dos superiores, a coexistência de vários planos sobrepostos.
A pesquisa moderna na Europa busca na psiquiatria o que as

449
formas tradicionais de conhecimento buscam no estudo dos fenôme-
nos patológicos produzidos a partir de dentro. (312-313)

Exercício de desapego por meio da inteligência. Não estamos


apegados àquilo que não existe.
É o apego que produz em nós essa falsa realidade (forma substi-
tuta de realidade) conectada com o mundo exterior.
Devemos destruir em nós mesmos essa forma substituta de rea-
lidade de forma a atingir a verdadeira realidade.
Sem dúvida, a aflição extrema produz isso com muito mais cer-
teza do que qualquer prática religiosa (Jó, a Cruz). (313)

Quando os católicos dizem que um determinado sacramento


tem um certo efeito sobrenatural porque Deus assim o quis, isso é
verdade, mas nem mais nem menos verdade do que dizer que uma
pedra atirada ao ar cai porque Deus assim o quis. A vontade de Deus
não é a causa de uma única ocorrência; é o próprio ser de tudo o que
existe. A causalidade é uma relação entre um certo fenômeno e um
certo outro fenômeno. (313)

Conto das três noites. Uma jovem prometida a um príncipe sai


em busca dele e encontra-o no seu palácio prestes a casar-se com ou-
tra. No caminho para lá, uma velha entrega-lhe três avelãs. Ela entra
no palácio disfarçada de criada, abre uma das nozes e encontra um
lindo vestido que é oferecido à futura noiva em troca do privilégio de
passar a noite no quarto do príncipe. Esta última concorda com isso,
mas dá ao príncipe uma poção para dormir, e ele dorme enquanto
sua verdadeira noiva canta em vão uma canção que lembra o passado.
No dia seguinte, ela encontra na segunda noz um vestido ainda mais
belo. Naquela noite, tudo acontece exatamente como na primeira

450
noite. Na terceira noite, o príncipe acorda um pouco antes do ama-
nhecer, ouve a música, reconhece a mulher que ama de verdade e
manda a outra embora.
A beleza exerce um encanto sobre a carne de forma a obter per-
missão para penetrar direto na alma.
“Buscando-me, sentaste-te, cansado.”
É Deus quem se cansa de nos buscar.
Graça.
Deus atravessa a densidade do mundo para vir até nós.
Assim que o príncipe reconhece sua amada, não hesita mais. A
princesa que se comprometeu por juramento a não revelar sua iden-
tidade. Isso representa a Criação. Deus, por assim dizer, obrigado por
juramento a não se revelar. (317)

É impensável que um facto físico, como tal, seja sobrenatural.


Aquilo que é sobrenatural só pode ser psíquico, e as razões para con-
siderá-lo como tal são de ordem pura e exclusivamente metafísica.
Ou, melhor ainda, os fenômenos psíquicos, como tais (por exemplo,
aparições, vozes, etc.), também não são sobrenaturais. É o ponto
transcendente imediatamente acima deles que é sobrenatural. (318)

A loucura como metaxú. Platão menciona-o expressamente no


Fedro. Os orientais praticam uma busca voluntária da loucura com
esse objetivo. Mas aqueles que estão destinados a alcançar seu obje-
tivo espiritual, entregam a ela apenas uma parte de sua alma.
Loucura ou razão pura (como na matemática). Dois metaxú.
(318)

Para nós, a realidade do mundo é feita de nosso apego. É a rea-


lidade do eu, que é transferida por nós para os objetos materiais. Em

451
nenhum sentido é uma realidade externa. Esta última só se torna dis-
cernível por meio do desapego total. Se restar apenas um fio, ainda
há apego.
O caso de Jó.
Relação entre dor e beleza: inclinações poéticas sentidas depois
de alcançado o clímax durante minhas fortes crises de dor de cabeça.
(318)

A beleza carnal tornou-se desejável a fim de não colocarmos as


mãos nela. Promove uma reavaliação da energia.
Simpósio. Amor mediador, nascido da plenitude divina e da misé-
ria humana. Desempenha o mesmo papel de metaxú como a ordem
do mundo.
Além disso, a beleza une os dois.
Beleza – única forma de ser do mundo inteligível que é aparente
aos sentidos. Estimula o desejo. (Caso contrário, não seria aparente
aos sentidos.)
Amor e beleza – filhos do céu e da terra.
Hipólito e Prometeu. Algo conecta ao extremo, ao sofrimento
mortal, a amizade entre o homem e Deus.
Timeu. A cidade habitada em estado de vigília. O mundo não é
mais uma prisão subterrânea. É belo.
Fedro. O amado recebe asas pela admiração que o outro sente
por sua beleza (o fluxo da beleza flui para os olhos do amante, mas
parte dele derrama-se sobre o amado e aquece aquela parte da alma
onde as asas brotam).
Refere-se isso à energia, uma vez que existe calor? À clorofila es-
piritual? (319-320)

452
O objetivo da humildade é acabar com o imaginário no pro-
gresso espiritual. Não há nenhuma desvantagem em acreditar estar-
mos menos avançados do que realmente estamos nesse caminho: a
luz, entretanto, produz seu efeito, que não tem sua fonte na opinião.
Mas há uma grande desvantagem em acreditar-se mais avançado do
que realmente está, pois então a opinião exerce um efeito.
Com o tempo, a luz faz com que a pessoa se acostume com a luz,
o que permite receber mais luz, e assim por diante. Existe uma pro-
gressão exponencial da graça. (320-321)

Timeu. O Demiurgo e a Alma do Mundo. A beleza está ligada à


perfeição espiritual de duas maneiras. Olhando para uma estátua per-
feitamente bela, pensamos na genialidade do escultor. Olhando para
um ser humano perfeitamente belo, pensamos na qualidade perfeita
da alma. A beleza do mundo está relacionada a Deus de ambas as
maneiras ao mesmo tempo, e devemos amar a Deus através do uni-
verso com ambas as formas de amor ao mesmo tempo.
Se realmente amamos a Deus, necessariamente pensamos nele
como sendo, entre outras coisas, a Alma do Mundo; pois o amor está
sempre ligado a um corpo, e Deus não tem nenhum outro corpo que
seja oferecido aos nossos sentidos, exceto o próprio universo.
Então, cada ocorrência, seja ela qual for, é como um toque da
parte de Deus; cada acontecimento, cada coisa que acontece, seja fe-
liz, infeliz ou sem importância do nosso ponto de vista particular, é
uma carícia de Deus. (322)

A Eucaristia. A consagração da Hóstia não faz com que Deus


esteja presente nela, pois ele está sempre total e inteiramente presente
em cada partícula de matéria, na medida em que a matéria é capaz
de recebê-lo. Mas – mesmo que saibamos disso de maneira abstrata

453
– não o sabemos de toda a nossa alma, pois não temos contato com
Deus por meio de cada partícula de matéria. No entanto, o ato de
consagração, devido à graça que lhe é atribuída, para a alma capaz de
receber esta graça, torna esta partícula de matéria, naquele momento
particular do Tempo, transparente, de tal forma que nela encontra-
mos um verdadeiro contato com Deus; assim como temos um con-
tato verdadeiro com um homem ao tocar na sua roupa.
Mas assim como a prática do amor humano deve fazer-nos en-
tender que todo ser humano é merecedor de amor como qualquer
um de nossos amigos, da mesma forma a prática da Eucaristia con-
siste em fazer-nos entender que cada partícula de matéria participa
da natureza da Eucaristia.
A presença de Deus espalhada por toda a criação sendo algo
muito abstrato para nós, temos de pensar na Sua presença como algo
distinto em cada nível da criação. (O nível do Homem e o da maté-
ria.)
(E por que não também o de plantas e animais? Não é isso que
os totens representam talvez?) (322-323)

Fedro. É da natureza da asa transportar para o alto aquilo que é


pesado.
Aqui temos um ser atraído do céu para a terra não pela gravi-
dade, mas pelo amor, por asas elevadas à segunda potência.
Ainda outra dimensão.
A largura, o comprimento, a profundidade e a altura.
O conhecimento do amor de Cristo, que ultrapassa todo conhe-
cimento.
O verdadeiro amor ao próximo seria uma assimilação a este
amor, um amor que desce. Mas quantos são capazes disso?
“Identificação” (no sentido usado por Mme. De S.) através do

454
amor. (323)

Sofrimento e o mal. O sofrimento é um mal para quem pensa


que o sofrimento é um mal. [Protágoras está certo em tais questões;
mas como defini-las?] Se penso que o sofrimento não é um mal para
mim, então não o é de facto. Desse modo, posso aceitar o sofrimento
para mim mesma e sentir compaixão pelas outras pessoas, esforçar-
me em protegê-las dele, a menos que alguma obrigação estrita me
impeça de fazê-lo.
Quando olhamos para a aflição, devemos entender que há do
lado de Deus o equivalente divino de uma estrita obrigação de não
intervir.
Em certo sentido, o facto de um certo mendigo estar com fome
é muito mais importante do que se o próprio Cristo tivesse fome –
Cristo, isto é, considerado como homem.
Mas o Verbo que se encarnou tem fome de que esse mendigo
seja alimentado, se é que é possível conceber um equivalente divino
do desejo.
Afastar a falsa divindade é apenas uma imagem preliminar. Te-
mos de afastar a verdadeira divindade depois de havê-la adquirido,
tanto quanto é possível à natureza humana, por meio de um processo
de assimilação.
A seguir, redescobrimos a capacidade de sofrimento e a reali-
dade da miséria humana, da qual fomos libertados.
Visto sob esta luz, retornar à caverna nos leva mais longe do que
São João da Cruz.
O pecado contra o Espírito Santo consiste em reconhecer uma
coisa como boa e odiá-la como tal. Experimentamos o equivalente
disso na forma de resistência cada vez que nos voltamos para o bem.

455
Pois todo contato com o bem faz surgir o reconhecimento da distân-
cia criada pelo mal em nós mesmos e o início de um doloroso esforço
de assimilação. Isso causa angústia e temos medo disso. Mas nosso
medo é talvez o sinal da realidade do contato. O pecado correspon-
dente só pode ocorrer se a insuficiência de esperança tornar insupor-
tável a consciência da distância e transformar a angústia em ódio. A
esperança constitui um remédio neste respeito. Mas um remédio su-
perior consiste numa atitude de indiferença para consigo mesmo, e
numa de alegria porque o bem deve ser o bem, mesmo que estejamos
longe dele, e mesmo na suposição de que estamos condenados a afas-
tar-nos dele infinitamente para ainda mais longe. (323-324)

Obediência significa obediência ao que se concebe como uma


ordem. Vamos supor que um santo apareça diante de um homem e
lhe ordene uma certa ação e que essa aparição seja, de facto, obra do
demônio. Se este homem obedecer à ordem, após o devido exame,
como sendo, de acordo com o melhor de sua crença, de origem di-
vina, sem se apegar nem à sua crença nem à sua ação, enquanto sem-
pre desejando mais luz, e de outra forma permanecendo constante
em cumprir a ordem, quaisquer que sejam as circunstâncias externas,
desde que não tenha recebido uma quantidade maior de luz, o que
ele faz é certo para ele, e muito melhor do que não obedecer em ab-
soluto.
É aí que Arjuna está errado. A ação de se engajar na batalha
estava de acordo com a luz que estava dentro dele, pois ele preparou-
se para carregá-la resolutamente. Deveria ter aderido à sua decisão,
desde que não tivesse recebido mais luz; caso contrário, só poderia
cair para um nível inferior, não subir para um nível superior. Por
aquela pena que nele penetra através dos sentidos visuais e leva em-
bora sua energia – não é assim que a luz chega até mim.

456
Como Krishna observa, o Homem não pode, sob nenhuma cir-
cunstância, permanecer absolutamente sem movimento. O movi-
mento está inexoravelmente ligado à vida humana. Mas os movimen-
tos de um santo não são os mesmos de um bandido quando os dois
caminham na rua.
Da mesma forma, a sensação de que há algo que precisa ser feito
está intrinsecamente ligada à vida humana. O que varia é a coisa real
que sentimos que precisa ser feita.
Há um senso de obrigação ligado ao estado de chamada indife-
rença. É diferente daquele ligado aos estados inferiores. (324-325)

A alma que elevou a cabeça afora do céu devora o Ser: a que fica
dentro devora a Opinião.
É uma questão de diferença entre o real e o imaginário no domí-
nio espiritual. Disso e nada mais.
Nada é mais fácil do que cair num amor imaginário por Deus.
O amor verdadeiro não protege ninguém do amor imaginário en-
quanto o amor verdadeiro não ocupar toda a alma, pois o amor ima-
ginário pode ser adicionado ao amor verdadeiro. O amor imaginário
ocupa um lugar, que não está vazio, onde o amor verdadeiro não
pode entrar.
Devemos dar a Deus o mínimo estrito de lugar em nossas vidas,
aquilo que nos é absolutamente impossível recusar – e desejar since-
ramente que um dia, e o mais rápido possível, esse mínimo estrito se
torne tudo.
Amor imaginário por criaturas. Havia C. O que amei, quando
o amei? Amor que morre. O que foi ele para mim? Estamos ligados
por um cordão a todos os objetos de apego, e um cordão sempre pode
ser cortado. Estamos igualmente ligados por um cordão à forma ima-
ginária de Deus, ao Deus para quem o amor é também apego. Mas

457
ao próprio Deus não estamos apegados, e é por isso que não há cor-
dão que possa ser cortado. Ele entra em nós. Só ele pode entrar em
nós. Sabedoria: “A minha pureza perfeita permite-me penetrar em
todos os lugares.” Todas as outras coisas permanecem do lado de fora,
e a única coisa que sabemos, a única coisa que entendemos sobre elas
são as tensões de vários graus e direções impressas na corda quando
há uma mudança de posição da parte deles ou da nossa.
Existe a forma do imaginário que entra na alma de fora com
todas as propriedades ligadas ao real. É uma questão de leitura. (A
lua vista no horizonte; a lua vista atravessando o céu.) E há a forma
do imaginário que produzimos como tal em nós mesmos com um
dispêndio de esforço. Mas, se houver intensidade suficiente, algo se
encaixa e sua forma de segunda ordem do imaginário transforma-se
numa forma de primeira ordem. As experiências místicas tibetanas
giram em torno deste último princípio.
Não é apenas isso que acontece no progresso espiritual? O que
chamo de amor real de Deus não é simplesmente uma forma de se-
gunda ordem do imaginário revalorizado, transformado por pura in-
tensidade numa forma de primeira ordem do imaginário? Pensa-
mento horrível. Devemos pensar nele, retornar a ele, contemplá-lo,
amá-lo no seu próprio horror.
A imaginação de primeira ordem está contida tanto na perceção
quanto na ilusão.
A perceção é feita de imaginação de primeira ordem, com ne-
cessidade adicional.
A necessidade é essencialmente estranha ao que é imaginário.
O mesmo se aplica ao campo espiritual. Encontramos aí as con-
trapartes do devaneio, da ilusão e da perceção, e a essência desta con-
siste na apreensão da necessidade da relação.
Existe um certo sentimento de realidade que é a própria forma e

458
cor do imaginário.
Existe outro sentimento de realidade, muito diferente, que é verda-
deiramente real.
Precisa ser analisado na perceção.
Este critério é suficiente para aplicar a noção de valor a qualquer
parte e a toda a vida psicológica do homem.
(É algo que Chartier falhou em pensar.) (325-327)

A existência é o local de encontro dos opostos; o bem não exis-


tiria sem o mal.
Deus, na medida em que existe, é o universo composto de
fenômenos. Deus, na medida em que é diferente do universo, é dife-
rente da existência.
Heráclito, 7. Se todas as coisas existentes se tornassem fumaça,
o nariz seria o órgão discriminador. Cada faculdade é juiz na sua pró-
pria província.
A interpretação “marxista” de Heráclito é ridícula; no entanto,
é verdade que, em vista da ascendência que a Grande Besta exerce
sobre a alma, entre todos os tipos de experiência que constituem o
objeto da contemplação, o tipo social de experiência é de primeira
importância.
O marxismo, na medida em que é verdadeiro, está inteiramente contido
na página de Platão sobre a Grande Besta, e sua refutação também está
contida lá. (326-327)

Devemos transformar tudo num intermediário que leva a Deus


(tudo – ocupações, eventos, funções públicas, etc.). Isso não significa
adicionar Deus a tudo (o que seria então a forma imaginária de
Deus). Mas cada coisa deve ser trabalhada para se produzir uma mu-
dança a fim de que se torne transparente à luz.

459
Saber um alfabeto não é a mesma coisa que saber ler. Depois de
aprender um alfabeto, é possível passar o resto da vida sem conseguir
ler uma única palavra impressa nesse alfabeto. (327-328)

Se alguém acredita que Deus criou para ser amado e que não
pode criar nada que seja Deus e, além disso, que não pode ser amado
por nada que não seja Deus, depara-se então diante de uma contra-
dição. A contradição contém em si mesma a Necessidade. Por outro
lado, toda contradição se resolve no processo de devir. Deus criou
um ser finito, que diz “eu”, que é incapaz de amar a Deus. Pela ação
da graça, o eu pouco a pouco desaparece, e Deus se ama por meio da
criatura, que se esvazia, torna-se nada. Quando desaparece... ele con-
tinua criando mais criaturas e ajudando-as a se descriarem.
O tempo surge do estado de devir implicado por essa contradi-
ção.
A necessidade contida nesta contradição representa toda a Ne-
cessidade em poucas palavras. (330-331)

460
3
Seleções dos
Cadernos, Volume Dois
Um grande mistério reside no facto de que seres humanos mor-
rem quando ainda não entraram na eternidade. Mas isso ocorre por-
que a morte é parte integrante da necessidade cega.
Deus criou toda uma gama, uma escala infinitamente variada
de seres. E o limite mais baixo dessa escala na categoria das criaturas
pensantes é o mais miserável que é capaz de o amar. O amor do mais
miserável é o amor mais precioso de todos; pois quando tal criatura
se torna transparente, algo pelo qual Deus se pode amar a si mesmo,
o ato criativo está completo.
(Quão grata, portanto, deveria ser de que o destino me tenha
colocado nas classes mais baixas, com aqueles que são mais miserá-
veis!)
Deus não se ama a si mesmo apenas por meio de suas criaturas,
o que é apenas uma extensão do amor que ele nutre diretamente por
si mesmo; mas, além disso, é por meio de suas criaturas que ele ama
a Criação. Para este propósito, ele precisa delas. Ele não pode amar a
Criação de nenhuma outra maneira.
Ele não pode amar o mundo visível e a parte natural da alma
dos seres pensantes, exceto por meio de uma criatura que atingiu o
estado de perfeição.
Encarnação. (333)

Platão, a propósito da lembrança. Cf. comparação feita por Va-


léry entre recolhimento e inspiração. É uma orientação da alma para

461
algo que não conhece, mas cuja realidade conhece. Assim, um pen-
samento vem-me à cabeça que me parece importante. Não tenho
forma de o anotar. Prometo a mim mesma lembrar-me dele. Duas
horas depois, ocorre-me que há um pensamento que devo lembrar.
Não tenho a menor ideia do que seja, ou mesmo do que se trata.
Então, volto minha atenção para essa coisa sobre a qual sei simples-
mente que é, mas sobre a qual não tenho a menor ideia do que seja.
Este esforço de atenção, vazio de todo o conteúdo, pode durar vários
minutos. Então (se tudo correr bem) a coisa vem até mim. Reco-
nheço, com certeza absoluta, que é realmente isso. Esta forma vazia
de realidade tornou-se uma certa forma definida de realidade, sempre
real para mim.
É assim que a inspiração funciona. Por exemplo, no caso da po-
esia.
O passado – este é uma realidade inverificável. Que mistério isso
apresenta! (333-334)

É necessário um método para a compreensão de imagens, sím-


bolos, etc. Não devemos tentar interpretá-los, mas contemplá-los até
que seu significado apareça. É por isso que devemos ter o cuidado de
não diminuir indevidamente sua realidade, como quando, por exem-
plo, alguém se diz a si mesmo que a batalha no Gita não ocorreu
realmente. É preferível correr o risco de interpretá-los muito literal-
mente do que de maneira insuficiente. Devem, antes de tudo, ser
interpretados de uma forma puramente literal e assim contemplados
por um tempo considerável. Então, devem ser tomados de uma forma
menos literal e contemplados assim, e assim por diante, por graus.
Devemos então retornar à forma puramente literal de os contemplar.
Enquanto isso, devemos beber da luz, seja ela qual for, que brota de
todas essas diversas formas de contemplação. (A fonte jorrando da

462
rocha.)
O acima é um método para a interpretação do folclore.
De uma forma geral: um método para exercitar a inteligência,
que consiste em contemplar.
Serei capaz de aplicá-lo à matemática?
[É o conhecimento do terceiro tipo?]
A aplicação deste método para discriminar entre o que é real e
o que é ilusório. No caso da perceção sensível, se não tivermos certeza
do que vemos, mudamos de posição enquanto continuamos olhando
(por exemplo, circundamos o objeto) e o real aparece. Na vida do
espírito, o tempo ocupa o lugar do espaço. O tempo provoca modifi-
cações em nós, e se através dessas modificações mantivermos o olhar
voltado para determinada coisa, enfim o que é ilusório se dissipará e
aparecerá o real; desde que nossa atenção consista num olhar con-
templativo e não de apego.
O apego fabrica ilusões, e quem deseja contemplar o real deve
estar desapegado. (334)

O passado – faz parte da realidade deste mundo, mas uma reali-


dade absolutamente fora do nosso alcance, rumo à qual não pode-
mos dar um único passo, diante da qual tudo o que podemos fazer é
voltar-nos para que uma emanação dela possa vir até nós. Por isso é
a imagem por excelência da realidade sobrenatural eterna.
(Proust.) É por isso que encontramos alegria e beleza na lem-
brança como tal?
O passado e a noção de possibilidade. “Se, etc....; nesse caso,
etc....” A ser examinado posteriormente.
Alegria em Deus. Existe alegria realmente perfeita e infinita em
Deus. Minha participação não pode acrescentar nada, minha não-

463
participação não retira nada da realidade desta alegria perfeita e infi-
nita. Sendo esse o caso, que importância tem que eu deva ou não ter
uma parte nela? Não tem nenhuma importância.
Os sacramentos (e coisas dessa natureza) são como lembranças
– os objetos materiais que constituem lembranças – de entes queridos
que morreram. Uma carta de tal pessoa, um anel, um livro, qualquer
tipo de objeto que lhe pertence constituem verdadeiros contatos com
ela, contatos que são reais, únicos, insubstituíveis. Todos os amantes
e amigos genuínos experimentam a alegria de trocar lembranças. Da
mesma forma, é duvidoso se pode haver qualquer religião genuína
sem sacramentos, ou algo correspondente. É um caso de leitura.
Da mesma forma, para os gregos que amavam a Deus, Deus es-
tava realmente presente nas estátuas que adornavam os templos,
como está hoje na Eucaristia.
Platão vê o belo como uma “lembrança” do além.
[Beleza e sacramentos…] (334-335)

A beleza é uma atração sensual que mantém a pessoa a uma


certa distância e implica uma renúncia – incluindo a forma mais ín-
tima de renúncia, a da imaginação. Queremos devorar todos os ou-
tros objetos desejáveis. A beleza é algo que desejamos sem querer de-
vorá-la. Simplesmente desejamos que seja.
Não está em nosso poder admirar um ser humano no qual ne-
nhuma beleza sensível de qualquer tipo seja aparente.
A beleza das palavras na expressão de um pensamento.
A beleza do ritual. A Missa. A Missa não pode tocar a inteligên-
cia, pois a inteligência não capta o significado do que está aconte-
cendo. É algo de perfeita beleza e de uma forma sensível de beleza,
pois rituais e sinais são coisas sensíveis. É bela no estilo de uma obra
de arte. (335)

464
A Trindade. Se concebêssemos a Deus simplesmente como um,
deveríamos concebê-lo ou na forma de ser ou então na forma de um
ato dirigido para o exterior. Conseguimos concebê-lo sob a forma de
um ato que não se dirige para o exterior, representando-o para nós
mesmos como dois, e ao mesmo tempo um por meio da união, ou
seja, três. Dizer que ele é três e um é como dizer que ele é dois, e um
derivando da unidade produzida pela união, e ainda um derivando
de uma unidade mais profunda.
Esta união é uma Pessoa, isto é, difere da união entre sujeito e
objeto com a qual estamos familiarizados e que é uma relação abs-
trata. Aqui, o sujeito é sujeito, e o objeto é novamente sujeito, e a
união também é sujeito. Deus considerado como sujeito diz “eu”,
Deus considerado como objeto diz “eu” e Deus considerado como
sabedoria ou amor diz “eu”.
A visão tem menos realidade do que o sujeito que vê ou o objeto
que é visto. Com Deus é quase o contrário.
A inteligência nunca pode penetrar no mistério, mas pode – e
só ela pode – pronunciar-se sobre a idoneidade das palavras usadas
para expressá-lo. Para este propósito específico, ela precisa ser mais
aguda, penetrante, precisa, rigorosa e exata do que para qualquer ou-
tro.
“...da água e do espírito.” A alma não deve apenas tornar-se ma-

téria, isto é, inerte, mas, além disso, matéria sem forma própria, com-
pletamente dócil, fluida. [Cf. Hegel sobre o hábito como representa-
ção da fluidez corporal. A alma também, por sua vez...] Significa a
morte do eu. A alma tem de tornar-se algo que não possa dizer “eu”.
Então o espírito vem. O que se segue indica que essa é a ideia. O
espírito sopra onde quer e ninguém sabe de onde vem ou para onde
vai. Portanto, não é uma questão de sacramento.

465
Sujeito, objeto e desejo que os une. Esse desejo é energia. É a
alma. E o espírito também é energia. A energia superior. Cf. os estoi-
cos. É por isso que o espírito é fogo. (336)

Não possuímos nada neste mundo – pois o acaso pode privar-


nos de tudo – exceto o poder de dizer “eu”. É o que tem de ser ofere-
cido a Deus, isto é, destruído. A destruição do eu é o único ato livre
que está nos está disponível. (336-337)

Logos é a ordem divina e, por transposição analógica para o in-


ferior, todas as espécies de relação. Pneuma é a energia espiritual, so-
brenatural e, por transposição analógica para as inferiores, todas as
espécies de energia. A conceção estoica do mundo era baseada na
energia.
Zeus, Logos e pneuma eram as três divindades estoicas. (337)

Destruição do eu. Não possuímos nada neste mundo, exceto o


poder de dizer “eu”, porque a sorte pode privar-nos de tudo o mais
no mundo – até mesmo de nosso caráter, nossa inteligência, nossos
amores e nossos ódios; mas não do poder de dizer “eu”; a menos que
seja como resultado de extrema aflição. Não há nada pior do que a
aflição extrema que destrói de fora o eu, pois então a pessoa não é
mais capaz de destruí-lo por si mesma. (Só um mal é ainda maior, o
de ter cometido o pecado contra o Espírito Santo.) O que acontece
àqueles cujo eu foi destruído de fora pela aflição? Só podemos imagi-
nar no caso deles uma destruição total no estilo da conceção ateísta
ou materialista.
O facto de que terem perdido seu eu não significa que tenham
abandonado todo egoísmo. Pelo contrário. Certamente isso acontece
às vezes, quando uma devoção canina é desenvolvida. Mas, noutras

466
ocasiões, o ser interior é reduzido a um estado de egoísmo nu, vege-
tativo – um egoísmo sem o eu.
Por mais curto que seja o tempo em que possamos ter iniciado
o processo de destruição do eu, é o suficiente para permitir que qual-
quer aflição cause algum mal. Pois o eu não se deixará destruir pela
pressão externa sem uma luta severa. Se nos recusamos a apoiar tal
luta por amor a Deus, então a destruição do eu não ocorre de fora,
mas de dentro.
(O significado da palavra “oferta”. Não temos mais nada a ofe-
recer exceto o eu, e tudo o que chamamos de “oferta” é simplesmente
um rótulo anexado à reafirmação de si mesmo por parte do eu.)
A angústia sentida na aflição extrema é produzida pela destrui-
ção externa do eu, como no caso de Arnolfo, Phèdre, Licão. Portanto,
temos todos os motivos para cair de joelhos e rogar súplicas, quando
a morte violenta que está para se apossar de nós está fadada a matar
o eu de fora, antes mesmo que a própria vida seja destruída.
Para aqueles em quem o eu está morto, não há nada, absoluta-
mente nada que se possa fazer. Ainda assim, nunca se sabe – exceto
talvez no caso de um discernimento totalmente sobrenatural devido
à inspiração – se em qualquer ser humano o eu está completamente
morto ou apenas praticamente inanimado. Se não estiver totalmente
morto, o amor pode restaurá-lo à vida como se por uma injeção; mas
só o amor que é absolutamente puro, sem o menor traço de condes-
cendência, pois a mais leve sugestão de desprezo mostrada precipita
o ser humano em causa ladeira abaixo conduzindo à morte.
Quando o eu é ferido de fora, ocorre primeiro a reação mais
violenta, a mais amarga, como a de um animal lutando na labuta.
Mas tão logo o eu esteja morto pela metade, tudo que quer é ser li-
quidado e deixa-se cair numa espécie de coma.
Se então um toque de amor puro vem para despertá-lo, a dor

467
que ele produz é insuportável e dá origem a expressões de raiva e às
vezes quase de ódio, ou mesmo de ódio completo, dirigido contra a
pessoa que causou essa dor. É por isso que encontramos entre os pá-
rias sociais aquelas reações aparentemente inexplicáveis de vingança
contra um benfeitor.
Às vezes também acontece que o amor do benfeitor não é um
amor puro. Então, porque o eu que foi despertado pelo amor é ime-
diatamente ferido de novo por uma demonstração de desprezo, o
ódio mais amargo – e legítimo – é despertado.
Quando somos objeto de uma reação hostil por parte de alguém
que estamos ajudando, nunca sabemos se se trata do primeiro caso
ou do segundo e, portanto, se é merecido ou não. É sempre melhor
supor que seja merecido. Nunca há perigo algum em situarmo-nos
abaixo daquilo que realmente somos – pois então a diferença entre a
representação e o facto é uma realidade; ao passo que existe um pe-
rigo mortal em situarmo-nos acima daquilo que realmente somos –
pois então a diferença entre a representação e o facto é algo imaginá-
rio.
A humildade é uma purificação por meio da eliminação em si
mesmo do bem imaginário.
No caso de alguém em quem o eu está completamente morto,
por outro lado, o amor que se demonstra por ele não o incomoda
nem um pouco. Ele apenas se deixa ser atendido da mesma forma
que cães e gatos que aceitam comida, calor e marcas de carinho, e tal
como eles está ansioso de receber o máximo desse tipo de tratamento.
Dependendo do indivíduo, ou se apega como um cachorro ou então
permite que seus desejos sejam atendidos com uma espécie de indi-
ferença como um gato. Não tem escrúpulos em drenar toda a energia
de quem se interessa por ele.
Infelizmente, toda organização de caridade corre o risco de ter

468
uma maioria de clientes que são pessoas inescrupulosas em busca de
vantagens próprias ou, especialmente, seres humanos nos quais o eu
foi morto.
É por isso que as crianças merecem mais interesse nelas do que
os adultos, porque, salvo onde uma aflição totalmente excecional te-
nha feito o seu trabalho, o seu eu, ainda que num estado de coma,
mesmo que pretenda estar morto, nunca é totalmente morto. Sua
própria capacidade de fingir a morte, típica da adaptabilidade da in-
fância, é um meio de preservá-la.
O eu é morto tanto mais rápido quanto mais fraco é o caráter
da pessoa que sofre. Ou, para ser mais precisa, o limite da aflição, o
ponto destruidor do eu da aflição varia de acordo com a natureza da
pessoa; o limite está situado mais ou menos longe ao longo do cami-
nho da aflição, dependendo do caráter, e quanto mais adiante está
situado, mais forte consideramos o caráter. Mas este limite, quer es-
teja situado aqui ou ali, existe no caso de todos os seres humanos, e
se eles forem carregados pelo destino até o ponto da aflição que cons-
titui seu limite, o eu neles é apanhado no processo de destruição.
Antes de alcançar esse ponto, o sofrimento produz mudanças na
alma, mas o eu não é afetado. Uma vez que esse ponto tenha sido
alcançado, há uma terrível aflição, pois não há nenhuma diferença
entre a aflição que está nesse ponto e aquela que está além dele.
A situação mais ou menos remota desse limite é provavelmente
uma questão de natureza, como o dom da matemática, e quem, não
possuindo uma fé definida, se orgulha de ter “preservado sua moral”
em circunstâncias difíceis, realmente não tem mais razão para estar
orgulhoso do facto do que o jovem que se orgulha de seu dom para
a matemática. Enquanto que quem acredita em Deus, ou mais geral-
mente no sobrenatural, corre o perigo de cair numa ilusão ainda
maior e mais mortal, que é atribuir à graça o que é simplesmente uma

469
operação essencialmente mecânica da parte da natureza.
É uma coisa má pensar que sou o autor daquilo que a natureza
produz mecanicamente em mim. Mas é uma coisa ainda pior acredi-
tar que o Espírito Santo é o autor de tal. Isso está ainda mais longe
da verdade.
(N.B. Deus como criador do mundo é o Pai; Deus como fonte
de inspiração sobrenatural é o Espírito Santo; Deus como objeto de
amor é o Filho. Tal é a relação tríplice entre Deus e nós, criaturas
pensantes.)
Não há nada mais perigoso do que atribuir à graça aquilo que é
uma operação da natureza. A devida consideração desse perigo pode
fornecer um critério para escolher nossa linha de conduta.
(Por exemplo: se o facto de ficar fora da Igreja, no limiar, me
desse um sentimento de superioridade em relação aos que estão den-
tro dela, tal posição seria prejudicial e deveria então, talvez, entrar
nela. Mas, no meu caso, esta posição está ligada a um sentimento de
inferioridade, que, nessas circunstâncias, só pode ter vantagens.)
Quando o processo de destruição ocorre em alguém que já co-
meçou a amar, mas que ainda está longe do estado de perfeição, ele
coopera no processo, mas apenas coopera; não realiza tudo; parte da
destruição é efetuada de fora. Desta forma, ele perde uma parte da
energia que teria servido para ser transformada por transmutação em
energia sobrenatural, e nunca mais a receberá de volta.
(A energia sobrenatural que ele sim possui está, no entanto, des-
tinada a ser multiplicada indefinidamente ao longo do tempo; mas o
ritmo é mais lento, como se alguém fosse comparar as séries 2n e 40n.)
Lawrence.
Isso aconteceu comigo. Mas estou grata.
Aí está uma forma irredutível de mal, sem compensação. Jamais
devemos buscar uma compensação externa para o mal em alguma

470
forma de bem que o equilibre, quer o mal e o bem estejam ou não
ligados por um vínculo de necessidade. Pois assim nos privamos do
uso mais precioso que podemos fazer do mal, que é amar a Deus
através e além do mal como tal.
Temos de amar a Deus através e além do mal como tal; amá-lo
através e além do mal que odiamos, enquanto odiamos o mal; amá-
lo como o autor do mal que estamos em processo de odiar.
O mal é para o amor o que o mistério é para a inteligência. As-
sim como o mistério restringe a virtude da fé a ser sobrenatural, assim
também o mal o faz em relação à virtude da caridade. E tentar en-
contrar compensações, justificativas para o mal é tão prejudicial para
a causa da caridade quanto tentar expor o conteúdo dos mistérios no
plano da inteligência humana. (337-341)

É fácil conceber três deuses (na medida em que existe na alma


humana uma certa inclinação para o politeísmo). É fácil conceber
um único Deus. É impossível conceber os dois ao mesmo tempo, de
uma só vez. Mas podemos conceber os dois alternadamente com ra-
pidez suficiente para nos dar a ilusão de simultaneidade. O mesmo é
verdade no caso de Cristo como Deus e Cristo como Homem. O uso
do mistério é então nulo.
É como se medíssemos a altura de uma estrela acima do hori-
zonte a partir de dois pontos diferentes da superfície terrestre, mas
omitimos pensar nas duas medidas ao mesmo tempo pelo processo
de triangularidade. Não se aprenderia então nada sobre a distância
da estrela.
Assim como alguém vê a estrela com a ajuda das duas direções
combinadas no triângulo, da mesma forma olha para Deus com a
ajuda das duas verdades concebidas simultaneamente. (É sempre as-

471
sim quando se usa relação. Duas verdades concebidas simultanea-
mente através do elo fornecido pela relação nos permitem agarrar,
como com duas varas, um ponto que está situado fora de nosso al-
cance direto.)
Mas, no caso do mistério, o facto de ser impossível conceber as
duas ideias juntas por meio de uma relação, por serem contraditórias,
faz com que o objeto visado, ou seja, Deus, seja transportado para
além do infinito.
A matemática oferece-nos uma conceção equivalente, uma ima-
gem disso, nomeadamente a noção de quantidade imaginária.
Filolau: Harmonia é uma conceção unificada de coisas divergen-
tes.
Se a conceção unificada é impossível e, ainda assim, toda a aten-
ção lhe é dirigida, é uma harmonia transcendente.
(Em outro nível – mas precisa ser definido – há algo do mesmo
tipo na harmonia propriamente dita, na beleza. O limitado e o ilimi-
tado não podem ser totalmente concebidos juntos.
Nos casos em que uma divergência menor torna a simultanei-
dade da conceção mais fácil, não há harmonia, mas apenas adequa-
ção, ajuste e coisas dessa classe.) (341)

O mal concebido como tal na plena escala de sua amargura de-


sempenha o mesmo papel em relação ao amor. Um dos usos – talvez
o principal, o mais proeminente – do amor ao próximo é tornar in-
finita a amargura do mal pelo facto de não representarmos simples-
mente para nós mesmos o nosso próprio eu pessoal, mas toda a hu-
manidade, como entregue ao mal.
O mal é a distância entre a criatura e Deus. Abolir o mal signi-
fica descriar; mas isso é algo que Deus só pode fazer com a nossa
cooperação.

472
A destruição é o extremo oposto da descriação. Devemos tentar
conceber isso claramente. (341-342)

“Sofrimento, nunca admitirei que sejas um mal, faças o que fi-


zeres comigo.” Essas são palavras muito bonitas. Mas estas seriam
ainda melhores: Sofrimento, tu és um mal, mas aquele que é teu au-
tor é um que é apenas bom e é apenas o autor do bem.
Isso é uma contradição, como Deus um e três, Cristo tanto Deus
como Homem, a Hóstia tanto a matéria terrena quanto o corpo de
Deus.
É óbvio que, se enfraquecermos um dos termos da contradição,
enfraquecemos muito a própria contradição e, por conseguinte, o
uso que se pode fazer da contradição.
Sofrimento redentor. Quando um ser humano está num estado
de perfeição; quando, com a ajuda da graça, destruiu completamente
em si mesmo o eu; se então alcança o ponto de aflição que por natu-
reza corresponde, sempre supondo que nele o eu esteja intacto, à des-
truição do eu de fora – isso representa para ele a plenitude da Cruz.
A aflição não pode mais destruir nele o eu; pois nele o eu não existe
mais, tendo desaparecido inteiramente e dado lugar a Deus. Mas a
aflição produz um efeito no plano da perfeição equivalente à destrui-
ção do eu de fora. Produz a ausência de Deus. “Deus meu, Deus meu,
por que me abandonaste?”
Se a alma que cai nesta aflição aboliu parcialmente em si mesma
o eu para dar lugar a Deus, mas não completamente, a aflição produz
o duplo efeito; tanto a destruição do eu de fora quanto a ausência de
Deus; sofrimento expiatório e sofrimento redentor. Mas é apenas no
estado de perfeição que, se assim se pode expressar, a plenitude da
ausência de Deus pode ocorrer.
A destruição puramente externa do eu é um sofrimento quase

473
infernal. A destruição externa à qual a alma se associa por amor é o
sofrimento expiatório. O advento da ausência de Deus é o sofrimento
redentor.
O efeito da graça muitas vezes tem repercussões na natureza, es-
pecialmente ao recuar o limite onde começa o processo destrutivo da
aflição. Por exemplo, com santos, mártires. Como tudo o mais que
ocorre na natureza, isso não é bom nem mau, mas bom e mau junta-
mente. No geral, tem desvantagens e não o contrário, pois diminui
as possibilidades de sofrimento redentor. Falando de maneira geral,
é bem possível que a iluminação de nossa natureza pela graça não seja
de modo algum desejável, pelo menos no que diz respeito à parte
inferior de nossa natureza, a sensibilidade. (???)
O que exatamente é essa ausência de Deus produzida por ex-
trema aflição na alma que atingiu a perfeição? Qual é essa qualidade
ligada a ela e que chamamos de qualidade redentora?
É a pureza do mal, a perfeição do mal, a plenitude do mal, o
abismo do mal. O inferno é um falso abismo (cf. T.). O inferno é
superficial.
O inferno é uma má escolha. A destruição externa do eu é uma
coisa quase infernal, mas se antes disso desaparece completamente o
eu, se levado a um estado de revolta, teve tempo de odiar o bem,
ainda que por um instante; de fazer, se assim se pode dizer, um ato
puro de ódio em relação ao bem, então o inferno está realmente pre-
sente (mesmo depois da destruição do eu?). O mesmo pode acontecer
num caso diferente do da aflição, onde a alma, percebendo por um
instante toda a gama de faltas que cometeu e a distância que a separa
do bem, odeia o bem por causa dessa distância. A diferença entre os
dois casos está no facto de que no inferno existe ilusão. A forma
quase infernal de destruição produz um nada; o inferno é um nada

474
que afirma existir e dá a ilusão de existir. Expresso assim, é ininteligí-
vel; esta expressão é insuficientemente precisa.
O sofrimento redentor é aquilo pelo qual o mal realmente pos-
sui a plenitude da existência até o limite máximo de suas possibilida-
des de adquiri-la.
Por meio do sofrimento redentor, Deus está presente no mal
extremo. Pois a ausência de Deus é a forma divina de presença que
corresponde ao mal – uma ausência que é sentida. (Quem não sentiu
a presença de Deus em si é incapaz de sentir a Sua ausência.)
Esta é uma comparação (mas é apenas uma comparação?) – as-
sim como Deus está presente na perceção sensível de um pedaço de
pão através da consagração da Eucaristia, também está presente no
mal extremo através do sofrimento redentor, através da Cruz.
E esta presença não é possível a Deus, exceto por meio da coo-
peração humana. Depende do homem que Deus seja capaz de atra-
vessar a criação de ponta a ponta e passar até a extremidade mais
distante, que é a extremidade do mal.
A presença de Deus deve ser entendida de duas maneiras. Na
medida em que é o criador, ele está presente em todos os lugares, em
cada coisa que existe, do facto de que essa existe. A presença para a
qual Deus precisa da cooperação da criatura é a Sua presença não
enquanto Criador, mas enquanto Espírito. A primeira presença cor-
responde à criação; a última corresponde à descriação.
A relação das Pessoas da Trindade com o homem. Deus consi-
derado como o singular e único eu não entra no homem. Nem é
dado ao homem abraçar Deus considerado como um objeto de amor.
Mas, por meio do desaparecimento do eu individual, o amor de Deus
por Deus passa pela alma de um homem como a luz atravessa um
pedaço de vidro. Isso é o que significa a presença do Espírito Santo
na alma.

475
Uma comparação melhor é que Deus, como objeto de amor, é
a luz e a alma humana é o olho, um órgão de visão; é o órgão do eu
individual. Mas quando o eu individual é obliterado, sem que o ór-
gão tenha perdido sua virtude, a alma torna-se um órgão da visão de
Deus. O Espírito é esta visão. (342-344)

O valor dos mistérios é experimental, pois reside exclusivamente


na sua infinita capacidade de fornecer verdades que podem ser apre-
endidas por quem os contempla por muito tempo com uma atenção
religiosa. Portanto, é perfeitamente verdade dizer que o valor do ca-
tolicismo só pode ser medido de dentro. Mas o mesmo é verdade para
qualquer outra religião, visto que é o repositório de mistérios. Como
saber se tais mistérios são capazes ou não de fornecer verdades que
podem ser apreendidas, se nunca se dirigiu a eles a atenção religiosa?
Só podemos supor sua incapacidade fundamental se observar-
mos, ou pensarmos que observamos, uma grande carência de tais ver-
dades em países cuja tradição se baseia nesses mistérios. Mas, eviden-
temente, esse não é o caso, muito pelo contrário, com esses países
possuindo uma civilização manifestamente muito rica. (Tampouco é
o caso, provavelmente, de um grande número de povos, que os pre-
conceitos europeus fazem que sejam investidos com o nome de “sel-
vagens”; pois existem verdades que podem ser apreendidas e que nos-
sos preconceitos nos impedem de apreender.)
Dizer, além disso, que esta riqueza da civilização não tem valor
quando comparada com o sobrenatural é um absurdo, uma vez que,
por definição, não se pode discernir o sobrenatural exceto onde pri-
meiro se voltou os olhos da fé, mas apenas os reflexos do sobrenatural
na natureza.
Suponhamos que me encontre numa sala através da janela da
qual posso ver o sol, e que haja uma porta de comunicação aberta

476
entre esta sala e outra, onde há outra pessoa, e que tem uma janela
voltada da mesma maneira. Pela porta, posso ver um retângulo de luz
projetado na parede. Eu poderia dizer: o pobre coitado ali! Aqui es-
tou eu, capaz de ver a luz do sol, enquanto tudo o que ele vê na forma
de luz é uma pequena superfície levemente iluminada numa parede.
Essa é exatamente a atitude dos católicos em relação às outras religi-
ões. (344-345)

Sofrimento redentor que transporta a presença de Deus até à


extremidade mais longínqua do mundo por meio da cooperação da
criatura. Podemos, portanto, explicar a adequação (no sentido usado
por Santo Tomás) da Encarnação, dizendo que não é adequado que
Deus dependa de sua criatura. Ele assumiu a forma de uma criatura
para que esse ato fosse realizado uma vez, perfeitamente e sem qual-
quer dúvida. A Cruz é a própria essência da Encarnação. (345)

Outras civilizações. Suas manchas são citadas como prova da


inadequação das religiões nas quais se fundam. No entanto, não terí-
amos dificuldade em encontrar manchas equivalentes na Europa ao
longo dos últimos vinte séculos de história. A destruição da América
pelo massacre e da África pela escravidão, os massacres no sul da
França, etc. – certamente tudo isso não é melhor do que a homosse-
xualidade na Grécia ou os ritos orgíacos praticados na Grécia e na
Índia. Uma orgia de sangue não é melhor do que uma orgia de liber-
tinagem. Mas dizemos que na Europa houve manchas apesar da per-
feição do Cristianismo, e em outras civilizações por causa da imper-
feição de sua religião.
Um exemplo brilhante – que deve ser amplamente contemplado
– do mecanismo do falso julgamento. Uma questão de separação. Ao
avaliar o valor da Índia ou da Grécia, colocamos o mal em relação ao

477
bem. Ao avaliar o valor do Cristianismo, separamos o mal.
Assim, da mesma forma, em minhas conversas com D. sobre o
assunto do tabaco, eu separaria, sem ter consciência do facto, as cir-
cunstâncias do momento, a própria conversa em que estava envol-
vida.
Separamos sem saber – aí reside precisamente o perigo. Ou en-
tão, o que é pior, separamos por um ato de vontade, mas um ato de
vontade furtivo em relação a nós mesmos. E depois não sabemos
mais que separamos. Não queremos saber e, por não querer saber,
acabamos por não saber. Este é um fenômeno que é o oposto do da
inspiração como recompensa pela forma mais elevada de atenção. É
muito útil no caso de coisas que olhamos de frente por um período
de tempo suficiente e que, à força de olhar para elas, fomos clara-
mente levados a concluir que devemos separar.
Em todos os outros casos, é monstruoso.
A justiça consiste em todos os casos análogos ao estabelecimento
de relações idênticas entre termos homotéticos. Cf. a semelhança de
triângulos. “Deves perceber, Cálicles, o grande poder exercido pela
geometria tanto entre deuses como entre homens.” Como podemos
reconhecer que dois casos não são análogos? Isso é uma questão sim-
ples. Imediatamente percebemos uma semelhança de qualquer as-
peto que possa ser, e por mais superficial, parcial, desprovido de sig-
nificado que possa parecer, devemos procurar estabelecer a analogia.
Se tivermos sucesso em fazer isso, deve ser contemplado. Se foi con-
templado por muito tempo, e continua a manifestar-se, isso mostra
que há uma analogia.
Se não conseguirmos estabelecer a analogia, ou se ela não supor-
tar o escrutínio prolongado da contemplação, aqueles elementos que
são incompatíveis com ela, os fatores que contribuem para a não-ana-
logia, devem ser claramente definidos. Mas esses fatores devem ser

478
factos ou então conexões manifestamente contidas nos factos e capa-
zes de resistir ao escrutínio prolongado da contemplação; não peda-
ços arbitrários acrescentados procedentes da imaginação. Pois é óbvio
que se pode destruir qualquer analogia, qualquer que seja, acrescen-
tando a um dos objetos as características que foram transferidas para
ele.
Um exemplo notável de diferenciação é aquele oferecido pelas
práticas relativas ao leite e à carne, as dos judeus e as outras observa-
das por Frazer. Matar animais benéficos que dão leite é crime. Mas o
crime consiste na conexão entre o ato de matar e o serviço benéfico
prestado. Se as duas coisas estão separadas, não há crime. Essa cone-
xão nunca existirá se nunca for permitida à carne estar em qualquer
lugar próximo ao leite. E como então não haverá crime, também não
haverá a punição correspondente que consistiria na perda do leite.
As crianças estão sempre fazendo coisas semelhantes.
Todos os homens, também.
Assim como as pessoas a que Frazer se refere acreditam que não
há crime se o leite e a carne não entrarem em contato no estômago,
todos nós acreditamos que não há crime se as duas coisas cuja cone-
xão constitui crime não estão em contato uma com a outra na mente.
Assim, essa faculdade de separar legitima todos os crimes. No
caso de tudo aquilo que está fora da esfera em que laços sólidos, difí-
ceis de destruir, foram forjados pela educação e formação, representa
a chave para a licenciosidade absoluta. Isso é o que torna possível aos
homens adotarem essas formas incoerentes de comportamento.
Especialmente quando o elemento social desempenha um pa-
pel, como nos sentimentos coletivos, guerra, rivalidades nacionais,
ódios de classe, lealdade a um partido, a uma Igreja, etc. Tudo o que
é coberto com o prestígio ligado às questões sociais é colocado em
outro compartimento separado do resto e tornado independente de

479
certas conexões.
Também utilizamos essa chave quando cedemos às seduções do
prazer.
Faço uso dela quando protelo no dia a dia o cumprimento de
alguma obrigação. Sinto isso claramente. Separo a obrigação do fluxo
do tempo. Essa é uma das razões que tornam o fluxo do tempo uma
experiência tão dolorosa para mim.
Não há nada que devamos desejar mais do que jogar fora esta
chave. Deve ser lançada no fundo de um poço, de onde nunca pode-
remos recuperá-la. Mas não devemos orar por força para jogar fora
essa chave, para ser impelido a jogá-la fora. Ela representa a esfera
reservada à criatura, na qual Deus se proibiu de intervir no próprio
ato de criar. Constitui o crime de tentar a Deus pedir sua ajuda nesta
esfera.
[N.B. Existem três coisas que não devemos fazer. Pedir a Deus
pão natural. Cabe à necessidade cega supri-lo ou recusá-lo, conforme
o acaso decida. Pedir-lhe que intervenha na esfera reservada ao exer-
cício da vontade da criatura. E desejar prestígio social, que pertence
ao diabo.]
A ação de jogar fora a chave, de jogar fora o anel de Giges, re-
presenta o esforço pessoal da vontade, o progresso cego e doloroso
para fora da Caverna.
Enquanto a chave permanecer nas nossas mãos, estamos na Ca-
verna e imaginarmos que estamos do lado de fora é uma ilusão ridí-
cula e perigosa.
É onde eu mesma estou.
Meus defeitos podem, infelizmente, causar danos a outras pes-
soas, mas eles são muito úteis para mim pessoalmente, pois fornecem
provas claras e indubitáveis de que estou na Caverna.
O anel de Giges, que me faz invisível – é precisamente nisso que

480
consiste o ato de separar. É separar-me a mim mesma do crime que
cometo; não estabelecendo a conexão entre os dois. Eu existo e o
crime acontece.
É em nome do bem que devemos proceder desta forma; embora
ligeiramente diferente. Não: eu existo, e a bela linha de poesia, o ato
de caridade, etc., acontece; mas: eu não existo, e essa coisa, seja o que
for, acontece.
Quanto ao crime, ele ocorreu, é verdade; e na medida em que
me forço a colocar o eu em relação ao crime, na medida em que des-
truo parte do eu em mim mesma, degradarei uma parte de mim à
posição de matéria. Isso é o que constitui arrependimento, de onde
vem a absolvição. (345-348)

No caso de Giges: tornei-me rei e o outro rei foi assassinado.


Nenhuma conexão entre as duas coisas. Temos aqui o anel.
No caso do dono de uma fábrica: eu gozo de tais e tais prazeres
caros, e meus operários sofrem com a pobreza. Ele pode sentir muito
sinceramente por seus operários, e ainda assim não formar a cone-
xão.
Pois nenhuma conexão é formada a menos que a mente a pro-
duza. Dois mais dois permanecem indefinidamente dois mais dois, a
menos que a mente os some de modo a formar quatro.
Odiamos aquelas pessoas que gostariam de nos levar a formar
conexões que não desejamos formar.
Estabelecer, no caso de coisas análogas, conexões idênticas entre
termos homotéticos, mesmo quando algumas dessas coisas e não ou-
tras me dizem respeito pessoalmente ou estou apegada a elas – é nisso
que consiste a verdadeira justiça.
Essa virtude, assim concebida, está situada no ponto de contato
entre o natural e o sobrenatural. Pertence ao domínio da vontade e

481
da inteligência clara, portanto, à Caverna (pois nossa clareza é, de
facto, escuridão); mas não podemos manter-nos firmes nela se não
passarmos para a luz.
As virtudes naturais – se aplicamos à palavra virtude o seu ver-
dadeiro significado, isto é, excluindo as imitações sociais da virtude
– só são possíveis como modos de comportamento permanentes para
quem tem a graça sobrenatural. Sua duração é algo sobrenatural.
“Aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.” Isso refere-se a
alguém em quem as virtudes sociais ocupam um lugar importante. A
graça encontra pouco espaço vazio nele. Obediência à Grande Besta
de acordo com o bem – é aí que residem as virtudes sociais.
Justiça é um número igualmente igual.
Significa exatamente isso; a saber, estabelecer conexões idênti-
cas entre termos homotéticos no caso de coisas análogas. (348-349)

A esperança da aproximação do fim do mundo moldou toda a


atitude da Igreja Primitiva. Eles acreditavam, como era natural, que
a crucificação formava o verdadeiro limiar da descriação; e, portanto,
a encarnação foi essencialmente única. Pensaram que deviam anun-
ciar um facto cuja anunciação só eles testemunharam com seus pró-
prios olhos (ou ouviram da boca de quem o viu), a saber, o fim do
mundo que se aproximava. Eles tiveram de apressar-se em espalhar
esta notícia. Quem não acreditou nela negligenciou colocar-se num
estado de perfeição, sem o estímulo necessário, e por isso perdeu-se.
Era preciso afastar as pessoas de suas crenças para colocá-las frente a
frente com esse facto tremendo do fim do mundo. [Era um pouco
como o que é hoje, para os comunistas, a crença no facto iminente
da Revolução Mundial. Quem não acreditar e consentir doravante
em pensamento, e não aderir a ela como algo desejável, será conde-

482
nado, ou seja, por ela destruído quando ocorrer.] Essa crença na apro-
ximação do fim do mundo produziu neles aquele “esquecimento da
imensa distância que separa o necessário do bem.”
(Além disso, eles eram judeus em cujo sangue havia um ódio
cego pelo que chamavam de idolatria.)
Hoje em dia, quando separamos à força a noção de crucificação
daquela do fim do mundo considerado como uma consequência ime-
diata, a Igreja, no entanto, preservou em grande parte esta atitude
primitiva, exatamente da mesma forma que os primeiros automóveis
preservaram a forma de veículos puxados por cavalos. Mas no caso
da Igreja a coisa durou mais tempo.
A crença no facto do fim iminente do mundo impôs o Cristia-
nismo à Grande Besta.
Mesmo assim, não se pode, de facto, ser partidário do que não
existe. Por exemplo, não se pode ser a favor do restabelecimento da
dinastia carolíngia no trono da França; ou um adepto da religião ca-
tarista ou da Ordem dos Templários.
A ideia de que algo que não existe mais pode ser bom é dolorosa
e nós a colocamos de lado. É submeter-se à Grande Besta.
Aqueles que hoje [nota do tradutor na versão em inglês: “Escrito
em 1941-1942”] acreditam que um dos dois antagonistas está do lado
do bem também acreditam que a vitória será sua.
Ver como algo bom, amado como tal, permanece como que con-
denado pela marcha dos acontecimentos que se aproxima é uma
fonte de sofrimento intolerável.
“O gênio consegue sempre vencer.” Uma expressão de submis-
são à Grande Besta.
A força espiritual dos comunistas provém do facto de que se
estão movendo não apenas na direção daquilo que acreditam ser o

483
bem, mas na direção do que acreditam irá acontecer em breve e ine-
vitavelmente. É assim que podem, sem serem santos – estão muito
longe de o ser –, de enfrentar perigos e sofrimentos que só um santo
suportaria somente por causa da justiça.
Em certos aspetos, o estado de espírito dos comunistas asseme-
lha-se muito ao dos primeiros cristãos.
Essa propaganda escatológica explica perfeitamente bem as per-
seguições que marcaram o período inicial.
A conceção do bem implica necessariamente uma orientação
para o futuro. Tais estados de espírito, tais crenças investem o futuro
com a consistência do passado, do presente, do facto consumado.
A extraordinária difusão do cristianismo pode ser explicada, por
um lado, pela qualidade dinâmica inerente à crença escatológica,
quando esta é suficientemente forte e encorajada, como era então o
caso, por circunstâncias externas; e, por outro lado, pelo facto de que
o Cristianismo, apesar de sua originalidade fundamental, não era
algo essencialmente novo, muito pelo contrário, mas o legítimo her-
deiro de todo bem que havia sido destruído pelo Império Romano e
pelo o qual os homens haviam conservado um anseio intenso.
Esse anseio generalizado foi satisfeito por uma revelação dirigida
a todo um grupo de nações; assim como no caso de um indivíduo, a
sede pelo bem acaba sendo satisfeita por uma inspiração. Esse vazio,
esse deserto interno, é claro, não trouxe ou provocou, mas atraiu,
tornou possível, o maravilhoso movimento de descida que foi reali-
zado na Judeia sob Tibério.
Hoje, se forças cegas conseguirem destruir a existência temporal
do Cristianismo, podemos muito bem imaginar a possibilidade, após
passarem várias gerações, de uma nova revelação. (No final de alguns
séculos apenas.)

484
Implica uma revelação uma encarnação? Não estava tão implí-
cita na revelação de Israel ou do Islão. Por outro lado, temos Osíris,
Dionísio, Krishna, Melquisedeque...
(E no próprio Islão não existiram crenças secretas derivadas da
Pérsia?) Tudo depende talvez da qualidade da revelação.
Infelizmente, não há mais bárbaros para infundir sangue novo
numa nova fé.
O que está acontecendo com a humanidade na atualidade é
como o que acontece com um homem em quem a aflição, de fora,
matou parcialmente o eu. Os eventos contemporâneos estão em pro-
cesso de destruir na humanidade como um todo parte da energia
disponível para transmutação em energia espiritual, e não há como
reparar esta perda. Os acontecimentos contemporâneos são uma afli-
ção e isso é um facto inalterável. Devemos contemplar esta aflição em
toda a sua amargura e sem consolo, amando a Deus como autor de
todas as coisas – entre as quais esta mesma aflição – e ao mesmo
tempo como autor exclusivamente do bem.
No que diz respeito à questão do bem e do mal, podemos talvez
censurar os maniqueus por terem diminuído a impenetrabilidade do
mistério por sua maneira de enunciá-lo. Mas os católicos, exceto
aqueles que alcançaram o nível mais alto, o diminuíram muito mais
por sua conceção da Providência, e numa categoria muito inferior
por sua representação “do Deus bom”. (349-352)

A sede do bem nunca é inútil, não apenas se considerarmos o


caso de um indivíduo, mas também o da massa geral dos homens. A
quantidade de bem que é produzida para a humanidade num deter-
minado período (o significado desta palavra período é difícil de defi-
nir exatamente) é matematicamente igual à soma total de sede indi-
vidual de bem formada por todos os seres humanos que viveram no

485
mundo durante o curso desse período.
Essa é simplesmente uma crença que é necessário ter em mente,
mas à qual não devemos apegar-nos de forma alguma. Seria perigoso
fazer isso. Melhor renunciar a ela. Devemos esvaziar-nos do bem es-
piritual.
“Ele pensou que não era roubo ser igual a Deus.”
(Criação, encarnação e inspiração são, com respeito às três Pes-
soas da Trindade, o mesmo ato correspondente ao que é represen-
tado no caso do Homem pelo desapego – mas tais pontos de vista
são muito perigosos.) (352)

Ações que não suportamos que se revelem abortivas e que, con-


sequentemente, em caso de fracasso, se repetem indefinidamente
sem que possamos detê-las, salvo à custa de uma terrível torção (rogos
de Ovídio; eu e R., por exemplo) – são nestas que se gasta, para obter
um resultado, uma quantidade de energia superior àquela da que na-
turalmente dispomos.
Ou seja, para obter um resultado, arrancamos a energia vegeta-
tiva de nós mesmos e, daí em diante, a energia vegetativa faz-nos de-
pender desse resultado.
Isso está fadado a produzir sempre uma progressão exponencial
no gasto de energia e apego vegetativo e, portanto, uma escravidão
cada vez maior de um tipo exponencial; ou, se a vontade ou circuns-
tâncias externas romperem o apego, uma morte parcial do eu que não
é do melhor tipo a ser desejado (nos piores casos, uma morte total);
ou ainda, fenômenos expressivos de reversão, compensação, rancor,
ódio, vingança ou repulsa (e mais particularmente se o resultado pre-
tendido for alcançado).
Consequentemente, devemos ter muito cuidado para nunca ar-

486
rancarmos de nós a energia vegetativa com vistas a obter algum resul-
tado particular, seja para o serviço de Deus, para a salvação da alma,
para a segurança da pátria, seja para qualquer coisa mais no mundo.
Muito menos para alguma vantagem pessoal, obviamente.
Devemos conceder toda a energia suplementar disponível que
possuímos, seja ela muito ou pouco, às coisas que são capazes de ser
claramente representadas pela inteligência e escolhidas pela vontade.
Isso é necessário como condição para produzir o bem e, muitas vezes,
é extremamente difícil. Mas não é o que realmente produz o bem.
O que produz o bem é a atenção voltada amorosamente para a
forma não-representável do bem, da qual não podemos aproximar-
nos, uma atenção que vem acompanhada de atos não solicitados por
qualquer operação seletiva, salvo de tipo eliminatório, no estilo de
inspiração poética acompanhado de palavras rítmicas. Há um enrai-
zamento de energia, portanto, um dispêndio de esforço; mas são es-
forços que não produzimos nós mesmos, que são produzidos em nós,
como acontece no caso do parto. Se esses esforços são ou não bem-
sucedidos, não importa, eles mantêm sempre toda a sua utilidade.
Quando este enraizamento de energia, que avança sempre em pro-
fundidade, começa a cortar na energia vegetativa, o ser humano atra-
vessa um umbral e entra no caminho da perfeição que o torna capaz
de um sofrimento redentor.
Como, para o adequado manejo da energia disponível, saber
que não estamos indo longe demais, que não estamos usando a ener-
gia vegetativa? É muito simples: devemos ter a atenção voltada apenas
para a idoneidade ou necessidade da ação (tomando a necessidade
no sentido estrito ou no de obrigação) e não sobre o resultado. O
resultado já foi julgado desejável, caso contrário, não teríamos feito
uma escolha. Mas, uma vez feita essa escolha, devemos prestar aten-

487
ção não à imagem mental do evento julgado desejável, mas aos moti-
vos que determinaram a escolha particular e são compostos de rela-
ções. A consideração das relações, que é o conhecimento do segundo
tipo e que a exaustão oblitera, não tem ação sobre a energia vegeta-
tiva. Consequentemente, dependendo das circunstâncias, ou orien-
tamos a energia disponível e deixamos por aí, ou então se à escolha
uma vez claramente realizada a inspiração (sempre supondo que al-
guém é capaz de inspiração) é adicionada, adicionamos o que temos
– se na verdade, temos alguma – da energia espiritual sobrenatural-
mente transposta para a energia disponível.
E como sabemos que não fomos até ao limite da energia dispo-
nível, quando cometemos o pecado da preguiça? Devemos conceber
que tal seja o caso quando, ao contemplar as coisas que permanecem
por fazer, um sentimento de remorso surge na alma. Seria difícil en-
contrar outro meio de julgamento. Ou, falando de maneira mais ge-
ral, se as coisas deixadas por fazer nos machucam, inspiram-nos com
tentações de mentir a nós mesmos, fazem-nos recorrer à chave da li-
cenciosidade, o anel de Giges.
Ações que são realmente realizadas, mas são, em essência, ima-
ginárias. Como podem ser definidas? (E também ações de outras pes-
soas cujos efeitos são sofridos?) (353-355)

Licenciosidade. Qual o grau de licenciosidade que nos é permi-


tido? Aquele que não desvia a atenção – pelo menos implícita – do
bem inconcebível; aquele que é compatível com o que São João da
Cruz chama de oração interior ininterrupta (mas da qual nem sempre
estamos cientes).
Semelhança entre o alto e o baixo na ordem inversa e equivalên-
cia de nível entre os contrários. Requer maior contemplação. (355)

488
Cahiers du Sud
Artigo sobre Moral e Literatura [nota do tradutor na versão em
inglês: “Artigo de Simone Weil que apareceu no Cahiers du Sud de
Janeiro de 1944, sob o pseudónimo de Emile Novis”] – como a liga-
ção está ausente, o resultado é que nossa vida real é mais do que três
partes composta de imaginação e ficção. Raros são os contatos com
o bem e o mal. (355)

Aflição que destrói o eu. Ela destrói parte da realidade; retira


alguma realidade do mundo; mergulha-nos num pesadelo. Mas a
ação correspondente também transmuta parte da realidade em so-
nho. (356)

Alguns atos tornam-nos conscientes da existência de outras pes-


soas; outros anulam essa consciência em nós. Não apenas a crueldade
tem este último efeito; coisas vergonhosas também. (357)

O fogo referido em Heráclito, uma vez que é trocado em todas


as coisas, é energia.
Em Deus, é a energia de Deus.
O fogo está no mundo, mas o raio é uma forma transcendente
de energia. (357)

Dizer que Deus se pensa a si mesmo é dizer (1) que ele nada
mais é do que pensamento e (2) que ele não pensa em nada além de
si mesmo. Todas as afirmações a respeito de Deus são, em seu verda-
deiro sentido, negações.
As Três Pessoas. Deus é tanto sujeito que, considerado como
objeto, continua sendo sujeito, e considerado em relação ao objeto,

489
continua sujeito. (A verdadeira revelação recebida por Moisés é o mo-
mento em que Deus lhe diz: “Assim dirás aos filhos de Israel: EU
SOU enviou-me a vós.”)
Distinguimos entre “eu” e “mim”; mas o eu de Deus ainda per-
manece eu. Em todos os aspetos possíveis, ele é sempre aquele que
diz “eu”.
Na peça de Lope de Vega (El mejor Alcalde el Rey), a passagem
sobre Yo. Transposta em mito, essa história seria esplêndida. O sobe-
rano que anuncia sua chegada fazendo com que seu capanga diga que
aquele que está ali é “eu”. E o senhor feudal que usurpou uma falsa
soberania, que envia de volta a resposta que só ele nesta terra tem o
direito de se chamar “eu”. Então, quando percebe que é o rei, ele cai
de joelhos; mas é punido por seus crimes com a morte. (357-358)

“Pois tive fome, e vós me destes de comer – Senhor, quando foi


que te vimos..?” Eles não sabiam quando foi. Não devemos saber
quando foi.
O pensamento de Deus não deve interpor-se entre nós e outras
criaturas. Não deve tornar o contato entre nós e elas menos direto.
Pelo contrário, por meio dele o contato deve ser mais direto.
O verdadeiro objetivo não é ver a Deus em todas as coisas; mas
que Deus por meio de nós veja as coisas que vemos. Deus tem de
estar do lado do sujeito e não do lado do objeto durante todos aque-
les intervalos de tempo em que, abandonando a contemplação da
luz, imitamos o movimento descendente de Deus para nos voltarmos
para o mundo.
Não devemos ir em ajuda de nosso próximo por Cristo, mas por
meio de Cristo. Deixemos que o eu desapareça de tal maneira que
Cristo, graças ao intermediário formado pela nossa alma e corpo, vá

490
ele mesmo em auxílio do nosso próximo. Devemos ser o servo envi-
ado por seu senhor para dar uma determinada ajuda a uma determi-
nada pessoa em perigo. A ajuda vem do mestre, mas é dirigida à pes-
soa em perigo.
De um modo geral, “por Deus” é uma expressão inadequada.
Deus não deve ser colocado no dativo.
Durante os atos de oração e contemplação, toda a alma deve
ficar quieta e sofrer o vazio para que a parte sobrenatural possa ser
ativa – ativa de forma gratuita, suspensa no ponto mais alto da ener-
gia acumulada da alma.
Em todas as outras ocasiões, Deus deve estar ao mesmo tempo
presente e ausente nas partes naturais da alma voltadas para o exte-
rior, da mesma forma que está presente e ausente na Criação.
São diferenças de nível, iguais no universo e na alma, no macro-
cosmo e no microcosmo.
Quando um amo envia seu servo para levar ajuda a alguém em
perigo, não se pode dizer que a ajuda é destinada ao amo; destina-se
a quem está em perigo; vem do amo. Quanto ao servo, ele não tem
nada a ver com isso.
Cristo não sofreu por seu Pai. Ele sofreu pelos homens pela von-
tade do Pai.
Não se pode dizer do servo que vai buscar ajuda que o faz pelo
seu amo. Ele não faz nada; mesmo que, para alcançar a pessoa em
perigo, tenha de andar descalço sobre pregos. Ele então sofre; mas
ainda não faz nada. Pois é um servo.
“Somos servos inúteis”, quer dizer, nada fizemos.
Para ser pura e simplesmente um servo, devemos ir em ajuda do
nosso próximo apenas quando formos obrigados a fazê-lo através da
clara perceção de uma necessidade, isto é, de uma obrigação absolu-

491
tamente estrita, ou irresistivelmente impelidos para ela por um im-
pulso transcendente. Também acontece de surgir na alma uma incli-
nação natural para ir em ajuda de outros: devemos então examinar
com muito cuidado se há alguma desvantagem séria a ser temida
como consequência e, se não, abandonar-nos ao impulso. Exceto nes-
ses casos, não devemos fazer nada.
Se – [e isso deve ser temido especialmente no primeiro caso,
apenas no primeiro caso talvez, desde que seja simplesmente uma
questão de fraqueza] se o servo não partir imediatamente ao receber
as ordens do amo, mesmo com pregos, deve ser disciplinado com o
chicote e com torrões de açúcar, mas principalmente com o chicote.
As ordens do amo são dadas na forma de diretrizes gerais esta-
belecidas de uma vez por todas, ou então de forma oral. São os dois
primeiros casos mencionados acima.
O servo não precisa treinar-se, mas precisa ser treinado. Aí re-
side uma dificuldade a ser examinada de perto, uma fonte de novos
conhecimentos sobre este ponto. Só ele deve permitir-se ser treinado.
(358-359)

Quando cometo uma manifesta falha, isso vem de uma quanti-


dade finita do vício correspondente em mim mesma, que precisa sair
antes que possa ser exaurido. Deveria, portanto, alegrar-me com essa
falha. Mas deve ser realmente um vício que sai e não volta mais. É o
arrependimento que causa isso. O arrependimento é a própria con-
ceção real, concebida de toda a alma.
Alegria (pura alegria é sempre alegria no belo) é o sentimento
de realidade. A beleza é a manifesta presença da realidade.
É a própria coisa, e não qualquer outra coisa, de que fala Platão
– tò on (aquilo que é).
(Era exatamente isso o que eu pensava aos vinte anos, quando

492
escrevia “Éclair”, mas não sabia que estava em Platão.)
Presença real. (360)

Não devemos aproximar-nos do nosso próximo por causa de


Deus, mas ser impelidos por Deus para o nosso próximo. Como a
flecha disparada em direção ao alvo pelo arqueiro. Devemos ser um
meio de contato entre o nosso próximo e Deus, pois a caneta está
entre mim e o papel. (360)

Existem três aspetos da presença de Deus no universo que cor-


respondem às três Pessoas. Sua presença com respeito à criação. Sua
presença como objeto visível ao homem: ordem do mundo (alma do
mundo), encarnação. Sua presença na alma: inspiração. Sua presença
criativa é de igual densidade em todos os fenômenos e em todas as
possíveis inter-relações dos fenômenos. Sua presença inspiradora está
apenas na parte silenciosa da alma. Não consigo ver nenhum espaço
para uma presença intencional sua em assuntos individuais.
Sua presença inspiradora exerce influência sobre todas as partes
do ser, alma e corpo, de acordo com a natureza individual e as leis
próprias de cada parte; mas exerce uma influência apenas, e não
desce a elas. (360)

Milagres, estigmas, etc. Existe contato entre Deus e a parte so-


brenatural da alma. Sabemos experimentalmente que tal contato é
acompanhado por fenômenos psicológicos. Também sabemos expe-
rimentalmente que esses fenômenos psicológicos são acompanhados
por fenômenos de descrição nervosa. Produzem estes últimos, por
seu próprio mecanismo, fenômenos fisiológicos? Ou preferimos pen-
sar que Deus precisa usar outra forma de ação distinta para produzir

493
ao mesmo tempo certos efeitos no corpo, independentemente daque-
les produzidos na alma? Que significado poderia ser atribuído a tal
absurdo?
O aparecimento milagroso de coisas desta ordem induz algumas
pessoas a acreditar. Certamente é a vontade de Deus. Podemos ter
certeza disso, não tanto porque essas coisas são necessariamente boas
em si mesmas, o que é extremamente duvidoso; mas pelo simples
facto de que existem. Mas esse efeito persuasivo é produzido pela apa-
rência milagrosa e não tem necessidade nenhuma da realidade do
milagre.
Deus confiou todos os fenômenos, sem exceção, ao mecanismo
deste mundo.
E no caso da inspiração considerada um fenômeno? Aí está o
grande mistério. (360-361)

Beleza – a manifesta presença da realidade; de uma realidade


transcendente. Mas isso está implícito. A realidade é apenas transcen-
dente. Pois tudo o que nos é dado é a aparência. Tò on. (361)

A verdadeira relação com Deus consiste no amor ao contemplar,


na obediência cega ao agir. Mas não devemos misturar as duas coisas.
Devemos agir como servos enquanto contemplamos com amor; mas
não devemos agir assim por causa daquilo que amamos.
Tudo aquilo que o eu faz é mau, sem exceção, inclusive o bem,
porque o próprio eu é mau.
Quanto mais me oblitero a mim mesma, mais Deus está pre-
sente neste mundo. (361)

O critério da realidade. É a necessidade – sempre – em todas as


ordens da realidade. Existem muitas estradas que levam a Paris, mas

494
todas elas têm algo em comum. Por exemplo, todas devem ou manter-
se por muito tempo para o leste, ou então cruzar o Loire. Se penso
que pego o barco, que vou para o Sul, e que o barco me leva a Paris,
é tudo um sonho. Viajar de um lugar para outro envolve certas coisas
necessárias que tem haver com a sequência das várias etapas.
(Coisas necessárias que são diferentes da necessidade matemá-
tica, e ainda assim relacionadas.)
Relatórios de viagens, mapas, são, portanto, meios de discrimi-
nação.
O mesmo acontece com os relatos de experiências místicas, se
tal uso for feito delas. (361-362)

Não pertence a mim amar a Deus. Deixa a Deus amar-se a si


mesmo através de mim como meio. (363)

Cada criatura pensante, tendo alcançado um estado de perfeita


obediência, constitui um modo singular, único, inimitável e insubs-
tituível da presença, do conhecimento e da ação de Deus no mundo.
Conceber o que representa o preço da obediência, e não mudar
como resultado, é destruir algo de valor infinito.
Aqueles cujo olhar interior não está voltado para a fonte da
graça de maneira a receber a luz, podem, no entanto, experimentar
um verdadeiro contato com Deus se, em resultado de um maravi-
lhoso encontro, forem objeto de uma ação da parte de alguma cria-
tura humana que por obediência perfeita se tornou apenas um sim-
ples intermediário.
Tenho de retirar-me para que Deus possa entrar em contato com
os seres humanos que o acaso coloca no meu caminho e que ele ama.
Minha presença denota falta de tato, como se me encontrasse entre
dois amantes ou dois amigos.

495
O que importa o que tenha em termos de energia, dons, etc.?
Sempre terei mais do que o suficiente para desaparecer de vista.
Deixar de ser, por amor.
O papel privilegiado da inteligência no verdadeiro amor provém
do facto de que a natureza da inteligência consiste nisso, que é algo
que se apaga pelo próprio facto de ser exercida. Posso fazer um es-
forço de abrir caminho em direção às verdades, mas quando elas es-
tão ali diante de mim, estão, e não tenho nada a ver com o assunto.
(363-364)

Para alcançar a obediência perfeita, é preciso exercer a vontade,


esforçarmo-nos até que tenhamos esgotado em nós a quantidade fi-
nita do tipo de imperfeição correspondente ao esforço e ao exercício
da vontade. O esforço da vontade tem de desgastar essa quantidade
finita de imperfeição, da mesma forma que uma pedra de amolar
desgasta um pedaço de metal. Depois disso, não há mais uso para
esforço ou exercício da vontade. Tudo aquilo que, enquanto estamos
ao nível da vontade, parece uma resistência a vencer – inércia, can-
saço, qualidade inferior do desejo – tudo isso, tão logo ultrapassamos
um determinado limiar, converte-se em sofrimento ao qual nos sub-
metemos passivamente, e movimentos nossos não representam mais
ações do que a falta de movimento. Quando alcançamos esse estágio,
podemos dizer que há obediência genuína.
O uso do dever, tal como nos é representado, é exercer a von-
tade nesta tarefa de esgotá-la. Quando chegamos ao fim do mal, não
há mais lugar para o dever.
Não que isso impeça a conformidade entre comportamento e
dever. Pois, em primeiro lugar, não há nada que se oponha ao cum-
primento do dever e, em segundo lugar, há algo que impele irresisti-
velmente a cumpri-lo, a saber, o pensamento daqueles que estão num

496
estágio inferior e precisam de um exemplo. Pode haver outros fatores
ainda; mas de qualquer forma existe esse. (364-365)

Não há nada que se aproxime da verdadeira humildade do que


a inteligência. É impossível sentir orgulho da própria inteligência no
momento em que a exercemos real e verdadeiramente. E quando o
fazemos, não fica apegados a ela. Pois sabemos que, mesmo que nos
tornemos idiotas no momento seguinte e permaneçamos assim pelo
resto da vida, a verdade continua existindo. (365)

O apego nada mais é do que uma insuficiência no sentimento


de realidade. Estamos apegados à posse de uma coisa porque pensa-
mos que, se deixarmos de possuí-la, ela deixará de existir. Daí a ati-
tude da mulher que, ao passar por uma fila em frente a uma peixaria,
parava, porque continuasse caminho sem obter o peixe que se vendia,
este teria se perdido. Ela pensava que a comida que ela e seus famili-
ares não comiam não existia. São muitas as pessoas que não sentem
de toda a alma que existe toda a diferença no mundo entre a destrui-
ção total de uma cidade e o seu próprio exílio irremediável longe
dessa cidade. (365)

Assim que sabemos que algo é real, não podemos mais perma-
necer apegados a isso.
Aqueles que desejam a sua própria salvação não acreditam real-
mente na realidade da alegria encontrada em Deus.
“Que tua alegria esteja no desapego.” Nada é literalmente mais
verdadeiro. (366)

A alegria pura e o sofrimento puro são igualmente acompanha-


dos pelo sentimento irresistível: isto não pode continuar; mais um

497
minuto e isto terminará. Mas em cada caso, o sentimento é muito
diferente.
A vulnerabilidade das coisas preciosas da vida é bela, porque a
vulnerabilidade é um sinal de existência.
Assim, a falta de calor físico ou alimento material experimen-
tado pela alma celestial ligada a um corpo mortal é uma coisa bela; e
o sentimento de bem-estar produzido pelo fornecimento de calor fí-
sico ou alimento material é uma coisa bela; pois o sentimento de
bem-estar é um sinal ainda mais patente de vulnerabilidade do que o
próprio sofrimento físico. Foi isso que Milarepa experimentou. Se-
gue-se que, se alguém encontrasse Cristo faminto, seria capaz de ali-
mentá-lo sem ser culpado de impiedade.
A beneficência é permissível precisamente porque constitui uma
humilhação ainda maior do que o sofrimento físico, uma prova ainda
mais íntima e patente de dependência. E a gratidão é ordenada por
isso, porque é justamente esse o uso a ser feito do benefício recebido.
Mas tem de ser uma dependência com respeito ao destino, e não com
respeito a qualquer ser humano em particular como tal. Razão pela
qual o benfeitor tem a obrigação de se dissociar totalmente do bene-
fício conferido. E a gratidão não deve, de forma alguma, constituir
um apego, pois esse é o tipo de gratidão característica dos cães.
Um benefício não elimina a aflição do passado como tal. Soma-
se à experiência individual de dependência formada pela aflição –
experiência que é já um facto consumado – uma experiência nova e
diferente de dependência, que apresenta uma oportunidade de pro-
gredir no autoconhecimento, se a pessoa obrigada souber fazer uso
dela.
Segue-se daí que a inclinação para ajudar os outros não entra
em conflito com a aceitação da miséria fundamental da humanidade.
A beneficência é parte integrante dessa condição de aflição; e, como

498
no caso da aflição, seu valor está em constituir um meio de contato.
(366)

Batismo.
Água e espírito. Pneuma, que é a energia natural ou a energia
sobrenatural (neste caso, o Espírito Santo). A seiva vegetal, combina-
ção de água e energia solar graças à ação da clorofila, entra em nós e
transforma-se em sangue. (Timeu.) (Conexão entre vinho e sangue.)
Os hebreus pensavam que sangue é vida. De certo modo – muito
difícil de discernir com clareza – conseguimos decompor a vida em
nós, morrer, tornar-nos água novamente. Ou melhor, devemos enten-
der de toda a nossa alma que, vista desde o ângulo do sobrenatural,
a vida que está em nós está morta; que no plano sobrenatural estamos
mortos e que não temos sangue em nós, apenas água. Assim que sai-
bamos disso de toda a nossa alma e realmente desejemos a luz do Sol
da compreensão, então a contraparte sobrenatural das propriedades
contidas na clorofila faz seu aparecimento em nós, e a energia sobre-
natural, que emana do Sol espiritual, combina graças à sua ação com
a água de que somos compostos para formar um novo tipo de vida,
outra espécie de sangue.
É aí que reside o significado contido nas palavras: “Se o homem
não nascer da água e do pneuma.” E aí está o significado do batismo.
Pneuma – (espírito).
Entre os estoicos, seguidores de Heráclito, o pneuma é energia
(no sentido em que usamos essa palavra na ciência tanto física quanto
psicológica), que eles representavam para si mesmos na forma de
fogo.
A energia sobrenatural é o Espírito, que é representado nos
Evangelhos como fogo. Em Heráclito, o raio e o fogo são imagens do
Espírito Santo.

499
Na linguagem dos antigos, pneuma é também a energia vital en-
tre os vivos e corresponde à anima.
Platão (Timeu, 80e) – E mudas frescas de substâncias afins, sejam os
frutos da terra [incluindo sementes] ou ervas do campo... adquirem todos os
tipos de cores por sua mistura; mas o vermelho é o mais penetrante deles,
sendo criado pela ação cortante do fogo e pela impressão que ele causa numa
substância húmida; e, portanto, o líquido que circula no corpo tem uma cor
como a que descrevemos. O próprio líquido a que chamamos sangue, que
nutre a carne e todo o corpo.
Primeira epístola de São João 5:8 – E são três os que dão testemu-
nho na terra, o pneuma, e a água, e o sangue: e estes três são um.
Evangelhos – São João 3:5: A menos que o homem nasça (do alto)
da água e do espírito –
Os antigos (e mais particularmente os hebreus) acreditavam que
a vida reside no sangue, o sangue sendo composto de água e de ener-
gia ígnea. É preciso morrer e nascer de novo. A vida em nós deve ser
decomposta em seus elementos – água e pneuma, e então reconstitu-
ída a partir desses elementos. Mergulhamos completamente na água;
não há mais nada além de água. O pneuma então desce do céu sobre
a água. Os dois (pneuma e água) combinam-se para formar um novo
tipo de sangue, um novo tipo de vida. E o ser regenerado faz sua
aparição; não mais nascido da carne de seus pais, mas criado por
Deus da matéria inerte na qual se tornou novamente. (O sangue é a
mesma coisa que seiva ou vinho. A seiva vegetal, composta de energia
solar e água em virtude das propriedades contidas na clorofila, entra
em nós e torna-se sangue. A graça representa a nossa clorofila.) (367-
368)

A filosofia moral contida no Livro dos Mortos egípcio é sobrena-


tural, não contaminada pela Grande Besta. Tem uma pureza como a

500
de um canto gregoriano ou de Monteverdi. “Não fiz ninguém chorar.
Não deixei ninguém com medo. Não adotei um tom altivo. Não fiz
ouvidos moucos a palavras justas e verdadeiras.” A Grande Besta é
sensível ao prestígio. A humildade é a única virtude que não tem
imagem semelhante no sistema moral da Grande Besta.
Um fariseu é um homem virtuoso por obedecer à Grande Besta.
[Minha ideia de que o egoísmo não existe: a mesma ideia é en-
contrada no Simpósio.] (369)

A Grande Besta. É um animal real. É suscetível à força e esmaga


a fraqueza. Não considera a humildade uma virtude. (370)

As pontes dos gregos. Nós as herdamos. Mas não sabemos o que


fazer com elas. Imaginamos que era para construir casas sobre elas.
Assim, erguemos sobre elas arranha-céus aos quais estamos continu-
amente adicionando novos andares. Não percebemos que são pontes,
coisas feitas para serem cruzadas e que esse é o caminho que conduz
a Deus. (370)

Existem [três?] maneiras de amar um espírito por meio de uma


forma sensível: um escultor por meio de uma estátua; uma alma por
meio de um corpo – (e qual é a terceira via?) –
Um escultor cuja estátua seria seu próprio corpo… (371)

Gerado – equivalente da criação na dimensão do eterno.


Gerado. Deus, antes de criar o mundo, cria-se a si mesmo. É um
ato de conhecimento, e de amor, e de criação dirigido a si mesmo.
Todos os atos existem eternamente em Deus, dirigidos para dentro.
O Modelo é exatamente isso, esse próprio ato. (371)

501
Podemos, ao olhar para uma estátua, amar o escultor ou aquilo
que o escultor amava quando estava fazendo a estátua (uma forma
superior de amor).
A Palavra considerada ordenadora do mundo e mediadora en-
contra-se no ponto de intersecção do tempo com a eternidade. Platão
descreve a Alma do Mundo assim: fora do todo e dentro do todo (cf.
o Isa Upanishad).
O universo finito, imagem empregada pelos antigos – que não
possuíam a teoria dos todos – para indicar que existem ordens supe-
riores de infinitude.
O Bem é, do ponto de vista da criação, uma Pessoa, ou seja, o
autor do mundo. Também a Verdade, ou seja, o Modelo que vive
eternamente, o princípio espiritual vivo. Também o Ser, nomeada-
mente, a Alma do Mundo.
As Ideias, os pensamentos em si mesmos, esses pensamentos
que ninguém pensa – isso equivale a dizer que são os pensamentos
de Deus. Evidentemente, visto que concebê-los é imitar a Deus. Eles
estão implícitos no ato pelo qual Deus se conhece, se ama e se cria a
si mesmo.
Essa necessidade de ser o criador daquilo que amamos – isso
representa a necessidade de imitar a Deus. Mas é uma inclinação para
a falsa divindade. (A menos que se recorra ao Modelo visto do outro
lado dos céus.)
Platão pensava como construtor de um templo ou como escul-
tor. Pensamos em termos de um relojoeiro que ajusta um certo mo-
vimento específico para fazer um certo ponteiro específico funcionar.
Todos os nossos atos têm seu modelo analógico em Deus; mas é evi-
dente que aqueles de que podemos legitimamente fazer uso para as-
cender por analogia são aqueles no curso dos quais descobrimos que
recebemos algo de fora – uma inspiração.

502
O trabalho, como tal, não é uma imitação da Criação, mas da
Paixão. É como labuta que partilha de uma inspiração. Para quem
era tão forte que nunca ficava cansado e nunca sofria de forma al-
guma, o trabalho não poderia representar um ponto de apoio. Deve-
mos fazer uso de nosso corpo como se fosse um objeto morto, como
se fosse um instrumento de madeira. (371-372)

Uma peça da lateral e da coxa de uma estátua grega é tão bela


quanto uma estátua grega completa. Mas se estiver quebrada, se for
transformada em pó de pedra, não é mais bela. A criação, por mais
que se desça na escala de tamanho, possui a plenitude da beleza. E o
interior da estátua não é belo. Nem é o da criação.
As estátuas gregas como expressão da analogia – macrocosmo –
microcosmo. Escultura, um ato religioso. (372)

Toda obrigação de realizar algo grande ou pequeno que vai con-


tra a natureza deve ser uma oportunidade para uma compreensão
mais profunda do nosso estado de escravidão. (372)

A separação completa de funções na Cidade ideal. É o que diz


São Tomás com referência a Cristo. Deixando a cada função toda a
essência de sua própria natureza.
O objetivo da ginástica e da música é tornar a energia suplemen-
tar dócil à influência do sobrenatural.
Somente a energia vegetativa tem o direito de permanecer ape-
gada às coisas que são necessárias à vida vegetativa. Não devemos
apropriar-nos de nada, seja um objeto ou um ser, por meio do exercí-
cio da energia suplementar. Pobreza. Esse é o significado contido no
“comunismo” de Platão. (373)

503
República, 365a – Sacramentos na tradição Órfica.
República, 366c-d –
Ele não está zangado com os injustos, mas está pronto para perdoá-los,
porque também sabe que os homens não são justos por sua própria vontade
livre; a menos que, porventura, haja alguém a quem a divindade dentro dele
possa ter inspirado com ódio à injustiça, ou que tenha alcançado o conheci-
mento da verdade – mas nenhum outro homem. Ele só culpa a injustiça de
quem, por covardia ou idade ou alguma fraqueza, não tem o poder de ser
injusto.
(As críticas de Platão sobre o assunto dos mistérios assemelham-
se muito às atuais em relação à confissão e absolvição.)
A Paixão é a existência atual de justiça perfeita sem qualquer
mistura irreal. A justiça é essencialmente inativa. Tem de ser trans-
cendente ou então exposta ao sofrimento.
É então justiça puramente sobrenatural, totalmente desprovida
de qualquer apoio discernível pelos sentidos, mesmo o amor de Deus
na medida em que pode ser sentido.
É uma espécie de impiedade supor que isso representa um pe-
daço da imaginação, uma mera atitude por parte da mente, enquanto
a forma mista de justiça existe; a menos que se considere essa forma
mista de justiça como não tendo, na realidade, nenhuma parte ou
lote com a justiça, exceto na aparência.
A prova ontológica é misteriosa porque não se dirige à inteligên-
cia, mas ao amor. Uma encarnação também é uma questão de prova
ontológica, pois é apenas uma verdade no que diz respeito ao amor.
(374-375)

Não existe forma de felicidade que se possa comparar ao silêncio


interior. (375)

504
O sofrimento redentor é aquilo que revela a justiça em toda a
sua nudez e a transporta em toda a sua pureza até a existência. É isso
que salva a existência. A salvação das aparências. (375)

O pensamento de –. Se houve algo em mim capaz de formular


esse pensamento, sei que não há nada em mim que seja capaz de
sustentá-lo quando o olho de frente. E, no entanto, quando olho para
ele de frente, sei que aí está o meu caminho, se é praticável. É o cri-
tério do bem na ação. (375)

Deméter é a carne e Core é a alma que vê uma bela flor e é


sequestrada e carregada contra sua vontade para o outro mundo, la-
mentando a carne. Deméter reivindica Core de volta; mas foi Zeus
quem decidiu sobre esse sequestro. No entanto, como Deméter ame-
aça fazer cessar a vida, Zeus concorda com o retorno de Core. Mas
Core comeu a romã. (São João da Cruz)
A graça abduz (é um arrebatamento), então seduz. A alma não
se dá, ela é levada.
A alma compromete-se sem saber, devido à alegria. Quando re-
torna à carne, não pode mais pertencer à carne.
Dionísio é Hades e o vinho é a romã. Mas a imagem do vinho
representa acima de tudo inspiração, e a da romã, alegria.
Core (é tão óbvio que significa a alma) é filha de Zeus e de De-
méter, de Deus e da Terra. É Zeus quem na sua sabedoria a dá a Ha-
des por esposa.
“Ninguém vem a Mim, senão aqueles que me foram dados por
meu Pai.”
Depois, as duas deusas, unidas, sobem para o céu. Bem-aventu-
rados aqueles a quem amam.
Quando no homem a Natureza, estando divorciada de todos os

505
motivos carnais, cega e privada de toda luz sobrenatural, realiza ações
que estão de acordo com o que a luz sobrenatural ordenaria se esti-
vesse presente – isto é pureza na sua plenitude.
É o ponto focal da Paixão. Existe redenção; a Natureza tornou-
se perfeita. O Espírito, ao qual pertence somente a perfeição, tornou-
se Natureza para que a Natureza se tornasse perfeita.
O sofrimento está presente simplesmente para secar a fonte de
energia carnal, de energia vital, mesmo a vegetal. (375-376)

Um pedaço de pão é escolhido ao acaso para ser o meio de um


contato entre Deus e o homem, no decorrer de uma operação em
que esse pedaço de pão passa para o estômago e sofre certas ações
mecânicas e químicas que o destroem completamente. O pedaço de
pão não desempenha absolutamente nenhum papel neste movi-
mento descendente de Deus em direção ao homem que come. É ape-
nas consumido. (377-378)

Existem duas coisas que são impossíveis porque são contraditó-


rias: o contato entre a criatura pensante e a mente divina, e o contato
entre a mente divina e a criação vista de um ponto de vista individual.
Essas duas contradições nunca podem existir de maneira estável, mas
assumem um certo tipo de existência sob a forma de Devir, no curso
do processo numa alma por meio do qual aquilo que diz “eu” é feito
desaparecer aos poucos. A criatura pensante então alcança o absoluto
e Deus alcança o particular.
Assim que do alto um átomo de puro bem tenha entrado na
alma, isto é, um espaço vazio no qual Deus pôde passar, esse espaço
vazio aumenta de tamanho pela mera passagem do tempo de acordo
com uma progressão geométrica, de forma exponencial, desde que a
alma não seja culpada de qualquer traição. As fraquezas morais, por

506
mais sérias que sejam, não interrompem essa progressão; é por isso
que os discípulos que deixaram Cristo entregue à sua sorte, e Pedro
que o negou, não perderam o reino dos céus. A traição mesmo nos
mínimos detalhes, a recusa em obedecer, faz com que se perca. Mas
onde não há traição, é absolutamente certo que se a duração da vida
fosse indefinida, e não limitada pela morte, esse aumento exponen-
cial do bem, no tamanho do espaço vazio habitado por Deus, seria
continuado até o estágio de perfeição aqui em baixo ser alcançado.
Esse processo de destruição daquilo que diz “eu” às vezes é acom-
panhado de alegria, outras vezes de sofrimento; mas em ambos os
casos é essencialmente um processo feliz, por causa do lento cresci-
mento do silêncio interior. (378)

Todas as coisas que vejo, ouço, respiro, toco, como, todos os


seres que encontro – privo todos esses do contato com Deus e privo
Deus do contato com eles na medida em que algo em mim diz “eu”.
Há algo que posso fazer por todos esses e por Deus, que é afastar-
me, respeitar o face a face.
O cumprimento estrito de deveres humanos comuns é uma con-
dição que permite retirar-me. Pouco a pouco desgasta as cordas que
me mantêm estacionário e me impedem de fazê-lo.
Deus deu-me meu ser e, ao mesmo tempo, a possibilidade de
lhe dar algo de volta, deixando de ser. (378-379)

...Quão amplamente separada está a essência do necessário da-


quela do bem.
Quando Deus é concebido apenas como um e não como dois (e
daí três), isso obriga-nos, quando o representamos para nós mesmos
como criador, a confundir o necessário com o bem – como no caso
de Israel, Islão, os negros.

507
A Trindade é indispensável para a noção grega e cristã de Justiça.]
[Notemos que se consideramos Deus em si mesmo, o Espírito
forma a conexão entre o Pai e o Filho; se o consideramos em relação
ao mundo, o Filho forma a conexão entre o Pai e o Espírito.]
Deus como autor do necessário. Deus como autor do belo. Deus
como autor do bem. Pai, Palavra e Espírito. O belo é o necessário
que, permanecendo conforme à sua própria lei e só com ela, obedece
ao bem. Justiça encarnada na carne – isso é o que pode ser apropria-
damente chamado de belo, porque não há nada na carne que esteja
relacionado à justiça.
A distância entre o necessário e o bem é a mesma distância que
separa a criatura do criador. – Deus, com respeito à criação, na me-
dida em que perfeitamente presente e na medida em que perfeita-
mente ausente.
A Grande Besta esconde Sua ausência de nós.
A Alma do Mundo sofre, embora num estado de perfeita bem-
aventurança. O tempo e o espaço constituem o seu sofrimento.
A árvore da cruz. Se cortarmos a árvore do bem e do mal, se
renunciarmos a fazer uma escolha, teremos então a cruz, todo o peso
da pura necessidade. O ilusório poder de escolha está na raiz da ima-
ginação compensatória que nos impede de ser colocados sob o peso
total da necessidade.
Carregar a própria cruz – idêntico a carregar o Tempo.
As dimensões da caridade de Cristo representam a distância en-
tre Deus e a criatura. (379-380)

Toda grande pintura dá a seguinte impressão, que Deus está em


contato com um ponto de vista sobre o mundo, com uma perspetiva
dele, sem que nem o pintor nem a pessoa que admira o quadro este-
jam presentes para perturbar o face a face. Daí vem o silêncio contido

508
em toda grande pintura.
É por isso que não há grande pintura sem acompanhamento de
santidade, ou de algo muito semelhante a ela. (381)

Não é difícil compreender a beleza de certas esculturas negras


quando se sabe que um feiticeiro negro passa sete dias rezando antes
de fazer um fetiche. (381)

O simbolismo do Hino a Deméter é luminosamente claro. A


filha virgem de Zeus e da Mãe Terra é a alma. O narciso cujo perfume
faz todo o céu espalhado acima e toda a terra abaixo rir, e o inchaço
do oceano, é o sentimento de beleza que, quando surge, lança para
nós um sorriso de todo o universo. A alma sente um arrepio de prazer
e gostaria de se apoderar da beleza. Mas essa beleza é uma armadilha
– uma armadilha da parte de Zeus. Assim que a alma dá um passo
em direção à beleza, é agarrada por Deus. Deus, o criador, entregou-
a a Deus, o inspirador. A alma está envolvida numa terrível aventura,
totalmente contra sua vontade. Grita, quer ficar com a terra, com a
matéria sensorial, com sua mãe. Mas Deus a leva consigo para um
abismo onde não pode mais ver o céu, nem a terra, nem o mar; onde
perdeu o mundo. Pertence à morte. Deus, o criador, concorda em
devolvê-la a este mundo. Mas antes de tudo, Deus, o inspirador, pelo
uso da violência e das artes da sedução ao mesmo tempo, faz com que
ela coma uma semente de romã. Fica amarrada, não pode mais liber-
tar-se de seu raptor, nunca mais pode, mesmo que assim o deseje,
realmente retornar à terra. Daí em diante, é juíza e governante sobre
os mortos.
Deus é ao mesmo tempo seu pai e sua esposa; seu pai quando
visto como uma pessoa criativa, sua esposa quando vista como uma
pessoa inspiradora.

509
Deus criador e Deus inspirador são irmãos, representando a uni-
dade das duas pessoas; filhos de Cronos, que é Deus considerado sob
o aspeto da unidade absoluta. Deus o inspirador, Deus o salvador das
almas, Deus o governante sobre os mortos é chamado de Aidoneus,
que tem uma semelhança singular com Adonai, e significa ao mesmo
tempo invisível e eterno.
Deus toma posse da alma em duas operações. Para começar, gra-
ças à armadilha da beleza, leva-a de surpresa e com pura violência,
absolutamente contra a sua vontade e sem ela saber para onde vai;
então, por uma mistura de surpresa, constrangimento e sedução, ar-
ranca dela o seu consentimento, fazendo-a saborear um momento da
alegria divina. Ela fica presa para sempre.
A ação de Deus e a passividade da alma no processo de salvação
– aí está a grande lição a ser tirada desse mito, uma lição que só pode
ser revelada.
Existem dois limites a serem cruzados. O primeiro é quando
Deus nos arranca deste mundo, o segundo quando faz com que uma
partícula da alegria pertencente ao outro mundo entre na alma. Se
nenhuma traição ocorrer, este último limiar é decisivo.
Esses dois limiares são representados na Caverna de Platão por
uma queda das correntes acompanhada por uma colocação em mo-
vimento do corpo, seguida pela entrada na luz. (381-382)

Uma vez entrada na alma uma partícula de puro bem, a maior,


a mais criminosa fraqueza moral é infinitamente menos perigosa do
que a traição mais infinitesimal, mesmo que esta última seja apenas
um impulso puramente interior da mente, durando apenas um ins-
tante, mas que, no entanto, nela consentiu. Significa participar do
inferno. Enquanto a alma não provar o bem puro, ela está separada
do inferno assim como está do paraíso. Uma escolha diabólica só é

510
possível por meio do apego à salvação. Quem não deseja a alegria de
Deus, mas contenta-se de saber que realmente existe alegria em Deus,
cai, mas não trai. (382-383)

Hino a Deméter. A dor de Deméter: a menos que seja aplacada,


a humanidade perecerá e os deuses não receberão mais louvor. A
união de amor entre a alma e Deus que a arrebatou deve ser seguida
por um movimento descendente da alma em imitação da descida di-
vina, sem a qual a criação desapareceria antes de ser transfigurada.
Este mundo feito de sensações – cores, contatos, sons, cheiros,
sabores – se desvanece quando a alma é arrebatada a Deus, e é salva,
transfigurada por uma redenção quando a alma que esposou Deus
sente as sensações.
Assim como o ser intrínseco de Deus reside no facto de que ele
é bom – ele não é um ser a quem o bem é atribuído como um atri-
buto, mas é absolutamente o puro bem em si mesmo – assim o ser
intrínseco do mundo sensorial reside no facto que é sensorial. O ser
sensorial constitui sua própria realidade particular. E é por meio
disso que a pureza absoluta de uma alma finita – uma pureza que
implica sofrimento extremo – constitui a redenção do mundo. Cristo
redimiu o mundo em toda a extensão que é possível a um homem de
ser feita, um único homem, se ele for igual a Deus, e somente nessa
extensão; mas a redenção continua na pessoa de todos aqueles que,
antes ou depois de seu nascimento, imitaram o Cristo. (383)

Na realidade, existe apenas um meio de salvação descrito em


Platão; os vários diálogos indicam várias partes da estrada. Não nos é
dito na República quem é que comete a violência inicial ao cativo acor-
rentado de forma a remover suas correntes e arrastar o ser miserável
à força. Temos de procurar isso no Fedro. É a beleza por meio do

511
amor. (Todo valor que se torna visível no mundo sensorial representa
a beleza.) O Fedro, depois de lidar com a lembrança de Deus ter en-
trado na alma, passa a falar de estudos intelectuais, mas não especi-
fica quais. Devemos procurá-los na República. Esta última não diz o
que vem depois das ciências. Isso é indicado no Simpósio e no Filebo.
É a contemplação da beleza na ordem do mundo, concebida a priori.
Então vem a beleza como um atributo de Deus, e depois disso, o
Bem. O Timeu então lida com o retorno à Caverna.
O cativo na Caverna que é violentamente compelido a virar-se e
caminhar em direção à abertura, e que tenta voltar-se de novo para a
sua parede, e é novamente arrastado à força – esse é a Core no Hino
a Deméter. (383-384)

Encarnação em Platão. Deus, e os deuses, e as almas abençoa-


das, na sua festa participando do outro lado do céu, consomem a
realidade, nutrem-se com o conhecimento e devoram a própria jus-
tiça, a própria razão, a própria ciência e as outras realidades manifes-
tas. É claro que a justiça aqui referida é a justiça como um atributo
de Deus. República, V: A maneira de conceber a própria justiça.
Mesmo os homens mais justos estão apenas perto da justiça; eles não
são em todos os aspetos aquilo que a justiça é. Mas é preciso também
conceber como seria o homem perfeitamente justo, caso nascesse,
sem entrar na questão de se tal coisa é possível ou não. Agora, este
homem seria em todos os aspetos igual à justiça, em todos os aspetos
semelhante à justiça; portanto, apesar de estar na terra, ele pertence-
ria àquelas realidades que estão do outro lado do céu. Platão consi-
dera sempre o perfeito como mais real do que o imperfeito, e para o
homem não há outra realidade senão a da existência terrena. O ho-
mem deveria ter descido, não do céu onde residem os deuses, mas do
mundo que fica do outro lado do céu, e por um movimento no qual

512
a força gravitacional não desempenha nenhum papel. A gravidade faz
descer; asas nos fazem subir; que asas elevadas à segunda potência
podem fazer-nos descer sem gravidade? (384)

A justiça aparecendo nua e morta num ser vivo. Uma vida pura
como a morte. (384)

Epinomis. A assimilação entre dois números significou a desco-


berta de um meio proporcional.
Portanto, a assimilação do homem a Deus significou a desco-
berta de uma mediação.
A contradição é essa mediação. Beleza: Necessidade-Bem. Encar-
nação: Homem-Deus.
O homem perfeitamente justo: uma união de extrema justiça
com a aparência de extrema injustiça. Cristo não simplesmente so-
freu, mas sofreu uma forma penal de sofrimento, o tratamento dis-
pensado aos criminosos. Não foi tratado como um mártir, como os
santos, mas como um criminoso de direito comum. A extrema justiça
combinada com a aparência de extrema injustiça é um exemplo da-
quela contradição que conduz a Deus.
A contradição é o nosso caminho conduzindo a Deus porque
somos criaturas e porque a própria criação é uma contradição. É con-
traditório que Deus, que é infinito, que é tudo, a quem nada falta,
faça algo que está fora de si mesmo, que não é ele, ao mesmo tempo
que procede de si mesmo. (O panteísmo, que consiste na supressão
de um termo da contradição, é útil como uma transição que faz re-
tornar a contradição.)
A contradição suprema é a contradição criador-criatura, e é
Cristo quem representa a união dessas contradições. Essa contradi-
ção atinge sua expressão extrema quando a criatura é reduzida à

513
mesma quantidade de matéria que a constitui, quando é privada de
recursos externos e de energia suplementar, até mesmo então de ener-
gia vegetativa, em processo de abandono completo seguido de uma
morte lenta.
Duas imagens da morte estão no extremo oposto de Deus, con-
forme seja o tempo ou o espaço que é considerado; a morte lenta, ou
seja, a dispersão em pedaços de Osíris, de Dioniso (ou de Hipólito?).
No caso de Cristo, além desta última contradição, existe a maior
contradição possível vista do ângulo da criatura, a saber, aquela entre
a perfeição da justiça e a aparência como o pior dos criminosos.
Cf. nos contos de fadas, príncipes que têm a aparência de escra-
vos.
A união de contraditórios significa um esquartejamento espiri-
tual. É por si só uma paixão e é impossível sem sofrimento extremo.
A aflição é uma contradição (é por isso que é tão agudamente
sentida como algo impossível; além disso, o mesmo se aplica à pura
alegria, cuja natureza impossível, devido ao facto de ser uma contra-
dição, é tão manifestamente aparente no próprio momento em que
está sendo experimentada) quando desce sobre nós, na medida em
que não treinou a alma, e até esse ponto. A inconsciência oferece um
refúgio contra essa contradição e, consequentemente, contra o pró-
prio sofrimento. Daí o caráter insuportável daqueles momentos em
que a mente da pessoa que sofre a aflição é iluminada por uma cen-
telha de consciência. Uma adaptação completa à aflição por meio de
um processo gradual de desgaste destrói completamente e para sem-
pre na alma a capacidade de experimentar a contradição e, conse-
quentemente, mata a parte divina da alma. Esse é o resultado produ-
zido pela escravidão. Acaba tornando a pessoa incapaz de experimen-
tar a verdadeira alegria ou o verdadeiro sofrimento.
A tremenda grandeza do Cristianismo provém do facto de que

514
ele não busca um remédio sobrenatural contra o sofrimento, mas um
uso sobrenatural do sofrimento.
Devemos usar o sofrimento como contradição experimentada.
Ao usá-lo dessa forma, ele adquire um valor mediador e, consequen-
temente, redentor. Devemos usá-lo como esquartejamento espiritual.
A beleza é a manifesta aparência da realidade. A realidade repre-
senta essencialmente contradição. Pois a realidade é o obstáculo, e o
obstáculo para um ser pensante é a contradição. A beleza da matemá-
tica está na contradição. Incomensurabilidade, razões irracionais, foi
o primeiro resplendor de beleza manifestado na matemática.
O que é real na perceção não está no esforço (Maine de Biran),
mas na contradição experimentada pelo trabalho.
A contradição não é concebida pela mente sem um esforço por
parte da atenção. Pois, sem este esforço, concebemos um dos contrá-
rios, ou então o outro, mas não os dois juntos e, acima de tudo, não
os dois juntos no caráter de contraditórios. Além disso, contradição
é aquilo da qual a nossa mente tenta livrar-se e não consegue. Isso
vem de fora. É real.
Casos de consciência são favoráveis a uma decolagem espiritual.
Devemos conceber em conjunto as possíveis atitudes contrárias, jun-
tamente com suas respetivas razões, com a maior intensidade; e en-
quanto a mente em seu nível mais elevado está presa a essa contradi-
ção, a natureza, que é incapaz de entreter contradições, inclina-se
para um lado ou para o outro.
Ou a mente mantém dentro de si mesma a noção simultânea
dos contraditórios, ou então é agitada pelos mecanismos das com-
pensações naturais de um dos contrários ao outro. Isso é o que o Gita
quer dizer com “ter ultrapassado a aberração produzida pelos contrá-
rios”. Ele forma a própria base da noção de dharma, que também é
claramente aparente na esplêndida definição de Anaximandro. Ele

515
forma a base da noção de Némesis e representa a transposição desta
para o domínio da psicologia. É uma conceção essencialmente pita-
górica. É uma verdade da mais alta importância para a conduta de
vida. (385-387)

O que é belo na matemática é aquilo que deixa perfeitamente


claro que não é algo que nós mesmos fabricamos. Essa coisa é a con-
tradição. A coincidência também, mas na medida em que é contra-
ditória dentro do reino do necessário. A essência da beleza está na
contradição, no escândalo e não de forma alguma na adequação; mas
deve ser um escândalo que se impõe e enche o coração de alegria.
Nicom., II, 19: A harmonia é inteiramente produto de contrários. Re-
presenta a união numa única mente de mentes que concebem separadamente.
Não coisas concebidas separadamente, mas mentes que conce-
bem separadamente.
O que poderia possivelmente conceber mais separadamente do
que homem e Deus? A Encarnação é a plenitude da harmonia. (387-
388)

Ter fé na realidade de algo – se se trata de algo que não pode ser


verificado nem demonstrado – significa simplesmente conceder a
essa coisa uma certa qualidade de atenção. A fé na Encarnação repre-
senta a atenção mais completa possível concedida à harmonia mais
completa possível. (388)

A criação é composta do movimento descendente da gravidade,


do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da
graça elevado à segunda potência. (388)

Suponhamos uma ordem religiosa sem hábito ou insígnia de

516
qualquer espécie, composta de homens e mulheres (prometidos por
votos implícitos e não explícitos de pobreza, castidade e obediência
dentro dos limites compatíveis com as ordens recebidas diretamente
pela consciência), os quais receberiam a melhor formação estética,
filosófica e teológica, e que depois ficariam por um período de anos,
abstendo-se de todas as práticas religiosas se as circunstâncias assim o
exigissem, como criminosos nas prisões, como operários nas fábricas,
camponeses nos campos, e assim por diante. (388)

A divindade colocou na Natureza o selo da similitude – um selo


que permite a Electra reconhecer Orestes. No folclore, as histórias
sobre o reconhecimento de marcas distintivas são formas degradadas
de mitos que são imagens do reconhecimento de Deus pelo homem.
“E ela, supondo que era o jardineiro…” O selo é a Beleza. O reconhe-
cimento não significa apreender um determinado estado civil parti-
cular. Electra, tendo visto o selo e contemplando Orestes, vê clara-
mente, imediatamente, que ele é aquele de quem ela se lembra (o
tipo de lembrança descrita nos poemas órficos e no Fedro), e de quem
acreditava estar morto; ele que agora está diante dela e de quem ela
nunca mais quer separar-se.
Agamenon, Orestes, Electra; o Pai, o Filho, a Alma. Apolo; o
Espírito.
O reconhecimento significa leitura. (389-390)

Morte e estupro – duas metáforas para descrever a ação do Espí-


rito Santo na alma. Assassinato e estupro são crimes devido ao facto
de constituírem imitações ilegítimas da ação de Deus. (390)

Epinomis.

517
A existência simultânea, no comportamento da alma, de ele-
mentos incompatíveis; uma balança que se inclina para os dois lados
ao mesmo tempo – isso representa a santidade, a realização do micro-
cosmo, a imitação da ordem do mundo.
[Cada perturbação experimentada constitui uma falha. Cada fa-
lha representa uma pequena imperfeição que desaparece, desde que
tenhamos consciência de que é uma falha.]
A existência simultânea de virtudes incompatíveis na alma é a
condição necessária para sua estabilidade ao longo das provações da
vida, enquanto permanece vulnerável.
A disposição da alma que inclina a pessoa a amar um certo fim
particular difere daquelas que permitem empregar os meios necessá-
rios para alcançar esse fim, e muito frequentemente os dois tipos de
disposição são absolutamente incompatíveis. Assim, por natureza,
aqueles que são ou se tornaram capazes de servir a uma causa não
são, ou não são mais, os mesmos que são capazes de amá-la. Conse-
quentemente, aqueles que servem essa causa realmente servem a algo
diferente sob o disfarce de seu nome. Portanto, o Bem não é servido
e, portanto, não é realizado.
Se não possuímos o poder sobrenatural de conter virtudes in-
compatíveis, podemos muito bem, devotando-nos a uma causa e tor-
nando-nos capazes de lidar com os meios correspondentes, tornar-
nos ao final de um certo tempo incapazes de amar essa causa. Por
exemplo, um comunista em relação à justiça. (390-391)

Espaço e solidão na pintura. Espaço e solidão – a indiferença de


todas as coisas. Certos eventos não possuem maior significado do que
outros; mesmo a crucificação de Cristo não possui maior significado
do que uma agulha de pinheiro que cai ao chão; Deus deseja todas
as coisas em igual grau. O tempo e o espaço fazem-nos sentir essa

518
igualdade. O corpo de Cristo não ocupou uma maior parte do es-
paço, ocupou o espaço da mesma forma que o tronco de qualquer
árvore, e desapareceu de igual maneira pela ação do tempo. O tempo
e o espaço constituem o tema das artes, e o objetivo desta é represen-
tar essa indiferença.
“Que diferença existe entre a essência do necessário e a do bem.”
Quando entendemos isso, estamos desapegados com relação ao
bem.
Deus e a criação são um; Deus e a criação estão infinitamente
distantes um do outro: esta contradição fundamental reflete-se na-
quela que existe entre o necessário e o bem. Sentir essa distância sig-
nifica um esquartejamento espiritual, significa crucificação.
Conceber qual é o comprimento, largura e profundidade; e co-
nhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento...
O amor que o induziu a tornar-se uma coisa no espaço.
Sede arraigados e alicerçados no amor, para que possais compre-
ender com todos os santos qual é o comprimento e a largura, e co-
nhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento.
Assim como o espaço limitado significa que existe uma reali-
dade não espacial que é infinitamente maior do que todo o espaço,
da mesma forma a criação e o fim do mundo significam que existe
uma realidade não temporal que é infinitamente maior do que o
todo o tempo.
A infinidade do espaço nas suas três dimensões, a infinidade do
tempo – tudo isso representa a extensão da distância entre Deus e
nós. Essa distância só pode ser superada por um movimento descen-
dente, não ascendente. No facto de Deus se capaz de percorrê-la está
a prova de que ele é o Criador.
A Eucaristia. O dogma apenas significa que esse pedaço de pão
é um meio para efetuar um contato real com Deus. Se fosse apenas

519
um símbolo, constituiria simplesmente um meio entre nós e nossa
ideia de Deus (o que é assim no caso da maioria das pessoas). Mas
para aqueles que são dignos, ele puxa-os para Deus; realmente os des-
loca. (400-401)

O crescimento exponencial de uma partícula de puro bem, uma


vez que tal partícula tenha entrado na alma – é o que está indicado
na parábola do grão de mostarda.
É também o que é indicado pela semente da romã. Esta semente
representa o consentimento da alma para o bem puro, seu consenti-
mento genuíno e incondicional. As fraquezas mais criminosas já não
são capazes de separar-nos do bem puro, desde que não haja consen-
timento para elas de nossa parte.
O narciso cujo perfume trouxe um sorriso aos rostos da terra,
do mar e do céu – representa um momento de contemplação produ-
zido pela beleza.
Arrancar uma menina do lado da mão, contra sua vontade – a
maior e mais dolorosa forma de violência que um homem pode co-
meter – é o que nos serve de imagem da graça.
Cristo cruzou o espaço e tornou-se algo estendido. (401)

Ser para Cristo o que este lápis é para mim, quando, com os
olhos fechados, sinto seu ponto em contato com a mesa. Está ao
nosso alcance ser mediadores entre Deus e aquela parte da criação
que nos foi confiada. Nosso consentimento é necessário para que,
por meio de nós mesmos, Deus possa perceber sua própria criação.
Com nosso consentimento, ele pode realizar essa maravilha. Bastaria
eu conseguir sair da minha própria alma para que esta mesa que está
à minha frente tenha a sorte incomparável de ser vista por Deus.
Deus só pode amar em nós este consentimento que mostramos ao

520
nos afastar para deixá-lo passar, da mesma forma como ele mesmo, o
Criador, se retirou para nos permitir ser. Não há outro significado
além do amor associado a essa dupla operação, assim como um pai
dá a seu filho os meios para capacitá-lo a dar um presente ao pai em
seu aniversário. Deus, que nada mais é do que Amor, não criou outra
coisa senão amor.
Necessidade implacável, miséria, angústia, o fardo esmagador da
pobreza e do trabalho exaustivo, crueldade, tortura, morte violenta,
constrangimento, terror, doença – tudo isso é apenas o amor divino.
É Deus que por amor se afasta de nós para que possamos amá-lo. Pois
se fôssemos expostos ao brilho direto de seu amor, sem a proteção do
espaço, do tempo e da matéria, seríamos evaporados como a água ao
sol; não haveria eu suficiente em nós para ser possível amar, para re-
nunciar ao eu por amor. A necessidade é a tela colocada entre Deus
e nós para que possamos ser. Cabe-nos a nós perfurar a tela para que
deixemos de ser. Jamais a perfuraremos se não compreendermos que
Deus está além, a uma distância infinita, e que o bem está somente
em Deus.
Deus só pode atenuar as aflições do homem, sem deixar de per-
manecer afastado das suas criaturas, através da mediação daqueles
que o amam e que, por amor a ele, já não desejam ser.
A semente da romã. Não fizemos um acordo de amar a Deus; é
preciso consentir com o acordo que em nós mesmos foi feito sem a
nossa ajuda. (401-402)

Deus não envia os sofrimentos e as dores como provações; ele


permite que a Necessidade os distribua de acordo com seu próprio
mecanismo. Caso contrário, ele não estaria ausente da criação, como
precisa estar para que possamos ser e, portanto, consentir em não ser

521
mais. Os contatos ocasionais resultantes da inspiração entre suas cri-
aturas e Ele são menos miraculosos do que sua ausência eterna, e
constituem uma prova menos maravilhosa de seu amor.
A ausência de Deus é o testemunho mais maravilhoso do amor
perfeito, e é por isso que a necessidade pura, a necessidade que é
manifestamente tão diferente do bem, é tão bela.
O abandono, no ponto culminante da Crucificação – que amor
insondável isso revela de ambos os lados.
É necessário que conheçamos a ausência de Deus, exceto naque-
les raros momentos de destruição parcial do eu. Imaginar que Deus
pode estar por perto sem que essa proximidade destrua o eu é mos-
trar uma ignorância completa de quem Ele é. Tudo aquilo que mani-
festa essa ausência é belo. (403)

Devemos consentir no Bem, não em algum bem particular que


possamos apreender, que seja representável, nem com algo que repre-
sentemos para nós mesmos como sendo o Bem, mas dando nosso
consentimento incondicional ao Bem absoluto. A alma quase se sur-
preende em dar esse consentimento, e sem se dar conta, num mo-
mento de alegria sobrenatural, e quando tem tempo para refletir so-
bre o assunto, descobre que já está comprometida. (Core, e a semente
da romã.) (404)

Eu não sou a garota que está esperando pelo amante, mas a ter-
ceira parte cansativa que está sentada com dois amantes e tem de se
levantar e ir embora se esses quiserem ficar realmente juntos.
Devemos responder à ausência de Deus, que é Amor, com nossa
própria ausência e amor.
Minha presença prejudica infinitamente aqueles que amo ao
manter em posição a tela que formo entre eles e Deus, que ama tocá-

522
los, não só por dentro, por inspiração, mas também por fora, por
meio dos seres humanos que os encontram em seu caminho.
A criatura humana não se criou a si mesma e não lhe cabe a ela
destruir-se. Ela só pode consentir na destruição de si mesma que é
provocada por Deus. O único bom uso da vontade da qual somos
dotados é negativo. Não deve desviar-se da razão e do dever, tal como
são mostrados pela luz natural interior, pois dessa forma ela corta os
desejos que emanam do eu e formam o elemento em nós que se re-
cusa a consentir na destruição sobrenatural. A vontade só pode cortá-
los, não pode arrancá-los. No entanto, como no caso da raiz da erva,
tudo o que é necessário é cortá-los com frequência suficiente e, em-
bora pareçam a princípio crescer de novo com mais vigor, é certo que
esta operação, se repetida um certo número definido de vezes, será
suficiente para causar o desgaste da raiz.
Ao consentir naquilo que representamos para nós mesmos
como sendo o Bem, consentimos numa mistura de bem e mal, e esse
consentimento produz o bem e o mal; a proporção do bem e do mal
em nós não muda. O consentimento incondicional ao Bem que não
podemos e nunca poderemos representar para nós mesmos, este con-
sentimento incondicional é feito de puro Bem e só pode produzir o
Bem; e se continuar por tempo suficiente, no final, a alma inteira
não pode deixar de ser transformada no Bem.
A palavra “Bem” não tem o mesmo significado quando usada
como um termo da correlação Bem-Mal que tem quando designa o
verdadeiro ser de Deus.
Os três aspetos de valor distinguidos por Cousin – o verdadeiro,
o belo e o bom – são da mesma essência; representando a união de
contraditórios na forma de pinças para agarrar o inatingível. Os pita-
góricos sabiam disso.
A noção de graça – tão vividamente presente no pensamento

523
grego – estava implícita na sua visão da miséria humana. Alguns di-
riam que a visão da miséria humana pode facilmente levar ao deses-
pero. Mas não é assim, pois o desespero leva inevitavelmente à men-
tira. Não pode haver contemplação da miséria humana na sua pró-
pria verdade senão pela luz da graça.
A Ilíada: ela mostra a ausência de Deus. (404-405)

A impossibilidade de reunir as formas incompatíveis de compor-


tamento necessárias à realização do bem – ou, mais resumidamente,
a impossibilidade do bem desempenha para a vontade o mesmo pa-
pel que o absurdo dos dogmas religiosos para a inteligência. A expe-
riência dessa impossibilidade acarreta a transmutação da vontade em
amor.
Devemos estar sempre cônscios da impossibilidade do bem, isto
é, “do quanto a essência do necessário difere da do bem”. O único
bem é o bem sobrenatural.
Todo verdadeiro bem envolve condições contraditórias e, por-
tanto, é impossível. Aquele que mantém sua atenção realmente e ver-
dadeiramente fixada nesta impossibilidade, e age de acordo, fará o
bem.
Da mesma forma, toda verdade contém uma contradição.
A contradição é o ápice da pirâmide.
Uma montanha, uma pirâmide, uma torre de igreja torna-nos
conscientes da transcendência dos céus, fazendo-nos perceber que a
matéria pesada pode ir tão longe quanto elas e não mais alto.
A alma é composta de matéria pesada. (410)

A existência é apenas uma sombra da realidade. A necessidade


é uma realidade sólida. A impossibilidade é uma realidade manifesta.

524
A necessidade, sendo condicional, deixa espaço para os “se”. A im-
possibilidade impõe-se.
A necessidade é uma imagem ligeiramente degradada da impos-
sibilidade; e a existência da necessidade.
Temos de tocar na impossibilidade para sair do estado de sonho.
Não há impossibilidade nos sonhos; tudo o que existe nos sonhos é
simplesmente impotência.
A correlação de contraditórios significa desapego. O apego a
uma determinada coisa só pode ser destruído por um apego que seja
incompatível com ela. Daí as injunções: “Amai os vossos inimigos…”
(sem deixar de considerá-los inimigos), e “Aquele que não odiar pai
e mãe por minha causa... sim, e sua própria alma…”
Quando a atenção fixada em algo revela a contradição nele (pois
a contradição descansa no fundo de cada pensamento, de cada senti-
mento, de cada ato de vontade), ocorre uma espécie de processo de
desengaste. Perseverando neste caminho, finalmente alcançamos o
desapego.
Nossa vida nada mais é do que impossibilidade, absurdo. Cada
coisa que desejamos está em contradição com as condições ou as con-
sequências associadas a essa coisa; cada afirmação que fazemos im-
plica a afirmação contrária; todos os nossos sentimentos estão mistu-
rados com seus opostos. A razão é que somos feitos de contradição,
pois somos criaturas, e ao mesmo tempo Deus, e ao mesmo tempo
infinitamente diferentes de Deus.
Só a contradição nos faz experimentar o facto de que não somos
Tudo. A contradição é nossa miséria, e o sentimento de nossa miséria
é o sentimento da realidade. Pois nossa miséria não é algo que inven-
tamos. É algo verdadeiramente real. É por isso que devemos amá-la.
Tudo o resto é imaginário.
Para ser justo, é preciso estar nu e morto – sem imaginação. É

525
por isso que o ideal de justiça tem de estar nu e morto. Somente a
Cruz não está exposta a uma imitação imaginária.
Para que possamos sentir a distância entre nós e Deus, Deus tem
de ser um escravo crucificado. Pois só podemos sentir essa distância
olhando para baixo. É muito mais fácil colocarmo-nos a nós mesmos,
na imaginação, na posição de Deus Criador do que na de Cristo cru-
cificado.
Não é comendo o fruto de determinada árvore, como pensava
Adão, que alguém se torna igual a Deus, mas seguindo o caminho da
Cruz.
É óbvio que o puro ideal de justiça defendido, para ser imitado,
não deve possuir nada daquilo que as circunstâncias podem dar ou
tirar. Devemos apenas possuir no caminho das circunstâncias aquilo
que não podemos desejar. Desse modo, a semelhança que desejamos
adquirir nada tem a ver com as circunstâncias. Se esse ideal fosse um
rei justo, desejaríamos ser reis e não ser justos.
Podemos dar-nos a nós mesmos na imaginação tudo aquilo que
desejamos. Não podemos desejar a Cruz. Ao contemplar nossa misé-
ria em Cristo, aprendemos a amá-la.
A correlação de contrários que é representável à mente é uma
imagem da correlação transcendente de contraditórios.
As correlações de contrários são como uma escada. Cada uma
delas eleva-nos a um nível superior onde reside a conexão que unifica
os contrários; até chegarmos a um ponto onde temos de pensar os
contrários juntos, mas onde nos é negado o acesso ao nível no qual
estão ligados. Isso forma o último degrau da escada. Uma vez chega-
dos lá, não podemos subir mais; temos apenas de olhar para cima,
esperar e amar. E Deus desce.
É assim tanto no caso do pensamento como no da ação, no caso
da verdade como no do bem.

526
Corpos sólidos simétricos e a quarta dimensão são uma imagem
disso.
Um homem inspirado por Deus é um homem que tem modos
de comportamento, pensamentos e sentimentos que estão ligados
por um elo impossível de definir. (410-412)

Timeu. Um poema é belo na medida em que a atenção, en-


quanto ele estava sendo composto, se voltou para o inexprimível.
O mundo é belo. Deus compôs o mundo enquanto pensava em
si mesmo.
Para qualquer um com experiência da natureza transcendente
da inspiração no processo de criação artística, não há prova mais ma-
nifesta de Deus do que a beleza do mundo.
Assim como um poeta escreve um poema pensando no silêncio,
também Deus gerou a Palavra pensando em si mesmo.
O vazio que apreendemos entre as pinças da contradição é in-
dubitavelmente aquele que está acima, pois quanto mais aguçamos
as faculdades naturais da inteligência, da vontade e do amor, melhor
o apreendemos. O vazio que está abaixo é aquele em que caímos ao
permitir que as faculdades naturais se atrofiem.
Somos seres que conhecem intelectualmente, exercem a von-
tade e amam; e assim que voltamos nossa atenção para os objetos de
nosso conhecimento, nossa vontade e nosso amor, somos manifesta-
mente obrigados a reconhecer que não há nenhum deles que não
seja impossível. Somente a mentira pode ocultar esse facto de nós. A
consciência dessa impossibilidade força-nos a desejar apreender o ina-
tingível por meio e além de tudo aquilo que desejamos, sabemos e
queremos com nossa vontade.
A impossibilidade – isto é, a impossibilidade radical claramente
percebida, o absurdo – é a porta que leva ao sobrenatural. Tudo o

527
que podemos fazer é bater nela. É outro quem abre.
Enquanto não cruzarmos um limiar, estamos com relação às
questões espirituais como aqueles que sonham com relação às ques-
tões sensoriais; ou seja, pensamos que sentimos certas aptidões ou
deficiências imaginárias, mas não discernimos quaisquer condições,
necessidades ou impossibilidades. Mas, tendo cruzado o limiar, tudo
isso é visto claramente, e daí em diante a esperança, a fé e a caridade
tornam-se de alguma forma virtudes naturais dentro do domínio do
sobrenatural.
O limiar consiste em comer a semente da romã, num momento
de consentimento incondicional ao bem puro. Só depois é que se
percebe que o último foi concedido.
A lei soberana de Zeus: Conhecimento através do sofrimento.
É necessário sofrer para receber sabedoria e é necessário sofrer
para transmiti-la.
A forma mais amarga de sofrimento, o sofrimento penal, como
garantia de autenticidade. (412-413)

Bem que é impossível. Exemplo: Jaffier, na véspera do Whitsun-


tide.
O bem é duplamente impossível. Objetivamente, todo o bem
implica um mal que é tão ou quase tão terrível para a consciência
quanto o mal que esse bem pretende destruir; e realizar o bem sem o
seu mal gêmeo pressupõe condições contraditórias. Subjetivamente,
a realização de uma ação boa implica um modo de comportamento
que constitui, por outro lado, uma disposição para o mal; aqui, no-
vamente, a orientação para o bem e não para o mal correspondente
implica a coexistência de modos de comportamento essencialmente
incompatíveis de facto.
“O bem traz o mal em sua esteira, o mal o bem, e quando tudo

528
isso acabará?”
O mal é a sombra do bem. Todo bem verdadeiro, dotado de
solidez e densidade, projeta o mal. Só um bem imaginário é que não
projeta.
Da mesma forma, o falso é a sombra do verdadeiro. Toda afir-
mação verdadeira é um erro se não for concebida pela mente ao
mesmo tempo que seu oposto, e é impossível conceber as duas ao
mesmo tempo.
A contradição vivida nas profundezas do ser significa dilacera-
ção espiritual, significa a Cruz.
Criação: o bem quebrado em pedaços e espalhado sobre a face
do mal. Alma do Mundo no Timeu.
Uma verdade sem a menor sombra de falsidade – isso é algo que
a inteligência não pode afirmar; porque é em si mesmo contraditório.
Assim é no caso dos mistérios da Fé.
Um bem sem a menor sombra de mal deve ser algo impossível
de desejar.
A conexão objetiva entre o bem e o mal é irredutível. Quanto
ao subjetivo, é possível, ao conceber claramente a conexão entre o
bem que se busca e as manifestações vinculadas ao modo de se com-
portar envolvido nessa busca e às condições e consequências necessa-
riamente vinculadas à sua realização, direcionar a atenção apenas
para o bem.
Se desejamos apenas o bem, encontramo-nos em oposição à lei
que liga o bem real ao mal, da mesma forma que um objeto ilumi-
nado está ligado à sua sombra, e estando em oposição à lei universal
do mundo, cairemos inevitavelmente sob o golpe da aflição.
Uma vez que todo bem tem algum mal ligado a ele, segue-se que
se desejamos o bem e não queremos espalhar o mal correspondente
ao nosso redor, somos obrigados, uma vez que é impossível evitarmos

529
este mal, concentrá-lo em nós mesmos.
Consequentemente, o desejo absolutamente puro pelo maior
bem possível implica a aceitação para nós mesmos do último grau de
aflição – a Cruz.
Só Deus é puro bem. Sendo a criação Deus e diferente de Deus,
é essencialmente boa e má.
Deus só pode descer à terra, tornar-se encarnado e continuar a
ser puro bem, passando pela forma extrema de sofrimento.
Sócrates disse: “Não desejo ser nem autor nem vítima da injus-
tiça; mas, se tiver de escolher, prefiro ser a vítima.” Bem, na verdade,
temos de ser ou uma ou outra.
Precisamos ter um homem justo para imitar, para que a imita-
ção de Deus não permaneça simplesmente uma frase vazia; mas tam-
bém é necessário, para que possamos ser levados além dos limites da
vontade, que não possamos desejar imitá-lo. Não podemos desejar a
Cruz.
Podemos desejar o mais alto grau possível de ascetismo ou hero-
ísmo; mas não a Cruz, que é uma forma penal de sofrimento.
O mistério da Cruz de Cristo repousa numa contradição, pois é
ao mesmo tempo uma oferta livremente consentida e um castigo so-
frido inteiramente contra a sua vontade. Se víssemos ali apenas a
oferta, poderíamos desejar o mesmo para nós mesmos. Mas não po-
demos desejar um castigo sofrido contra a nossa vontade.
Aqueles que concebem a crucificação apenas sob o aspeto de
uma oferta retiram dela o seu mistério salutar e a sua amargura salu-
tar. Desejar o martírio é desejar muito pouco. A Cruz é algo infinita-
mente maior que o martírio.
A natureza irredutível do sofrimento, que torna impossível não
termos horror dele no momento em que o vivemos, visa, em última

530
instância, deter a vontade, assim como um absurdo detém a inteli-
gência, ou a ausência, a não-existência, detém o amor. Para que o
homem, tendo esgotado as suas faculdades humanas, possa esticar os
braços, parar, olhar para cima e esperar.
Olhar para cima e esperar – isso compõe a atitude que está em
consonância com a beleza. Enquanto formos capazes de continuar
concebendo, querendo, desejando, a beleza permanece oculta.
É por isso que em toda beleza está contida uma contradição ir-
redutível, uma amargura irredutível e uma ausência irredutível.
Devemos ir ao extremo de nosso ser para poder aspirar a não
mais ser. Só podemos desejar que de alguma forma isso possa acon-
tecer.
Se na criação, o mal não estivesse irredutivelmente misturado
com o bem, as criaturas não seriam capazes de desejar não mais ser.
Existe uma forma de sofrimento que representa o contrachoque
produzido pelo maligno. Esse é o sofrimento expiatório. Existe uma
forma de sofrimento que é a sombra do puro bem que desejamos.
Esse é o sofrimento redentor. Há também o tipo que está ligado ao
jogo cego da Necessidade: o sofrimento expiatório e o sofrimento re-
dentor também são produzidos por este último, pois o acaso faz parte
da natureza irredutível do sofrimento.
Uma lei misteriosa faz com que um ser humano que toca em
Deus seja, naquele momento, belo de se olhar. Da mesma forma são
as linhas, sons, combinações de palavras, etc., que dele emanam na-
quele estado. Algo atrai a carne para o divino; caso contrário, como
poderíamos ser salvos? O amor carnal constitui essa atração. O ho-
mem deseja possuir uma alma carnalmente. Daí o valor da castidade.
Se o desejo carnal fosse apenas mau, aqueles que o extinguem na
devassidão de forma a libertarem sua mente dele não estariam erra-
dos, pelo menos no que diz respeito a eles próprios. É apenas por ser

531
tão precioso que não deve ser satisfeito. (As crianças têm um pressen-
timento disso quando hesitam em comer alguma guloseima cuja de-
liciosa qualidade já é bem visível a olho nu. Parece-lhes melhor olhar
para ela e, embora finalmente acabem por comê-la, têm a sensação
de que ao fazer isso, estão se rebaixando um pouco. Isso já representa
um toque da beleza; pois um sabor delicioso que está presente à sen-
sibilidade sem que o experimentemos ou queiramos experimentar
através do paladar, é em certo sentido comparável à beleza. A beleza
excita sempre, de maneira misteriosa e gratuita, os sentidos que não
se ocupam em agarrá-la. Assim, a pintura excita gratuitamente o sen-
tido da audição, o sentido do tato, etc.)
O bem absolutamente puro deve ser tanto real como ineficaz.
O que é ineficaz quase sempre é imaginário. Mas a Cruz certamente
não é algo imaginário. Só ela pode cumprir as duas condições.
A contradição contida no Evangelho de São João e nos evange-
lhos sinópticos (a contradição fundamental, pois as contradições em
matéria de detalhe são devidas à imperfeição inerente a todos os mé-
todos humanos de transmissão), longe de ser um argumento contra
a crença, é um sinal do caráter sobrenatural da história contada lá.
(Um sinal muito mais certo do que os milagres!)
Toda impossibilidade frutífera de bem no reino do possível é
sobrenatural. A impossibilidade infrutífera é subnatural.
É boa aquela ação que podemos realizar mantendo a atenção e
a intenção totalmente orientada para o bem puro e impossível, sem
ocultar por mentiras de qualquer tipo ou a desejabilidade ou a im-
possibilidade do bem puro.
Desse modo, a virtude torna-se em todos os aspetos semelhante
à criação artística. É bom aquele poema que escrevemos mantendo a
atenção voltada para o inexprimível, como inexprimível.
O mesmo se aplica à invenção. É nova aquela ideia que surge

532
quando a atenção é orientada para a verdade inconcebível. Invenção
matemática. Galois.
Qualquer ação que obscureça ou distraia a atenção e a intenção
quando assim orientada é má.
É óbvio que devemos destruir em nós mesmos todas as inclina-
ções que se opõem ao cumprimento daquilo que consideramos ser o
nosso dever (todo homem, de facto, toma uma coisa ou outra como
seu dever), para poder captar o absurdo e a impossibilidade do puro
bem. Pois, até então, o bem só nos parece impossível de facto, não
em essência. O homem que acredita no princípio da propriedade e,
no entanto, não consegue evitar o roubo, jamais poderá apoderar-se
da impossibilidade do bem puro, do qual a propriedade é apenas uma
sombra.
Temos de realizar o possível para poder agarrar o impossível. A
maneira correta de exercer, de acordo com o dever, as faculdades na-
turais da vontade, da inteligência e do amor correspondem exata-
mente, no caso das realidades espirituais, ao que é o movimento do
corpo em relação à perceção dos objetos sensíveis. Maine de Biran
mostrou como um paralítico é incapaz de perceber.
Como é possível compreender um ser humano que se deixa pa-
ralisar pela anquilose, simplesmente por ter preguiça de se mover! No
entanto, esse é o meu caso.
Benefícios – estes são, de facto, boas ações se, ao realizá-las, esti-
vermos conscientes, de toda a alma, do facto de que conceder um
benefício é algo absolutamente impossível. (413-417)

“Fazer o bem.” O que quer que eu faça, sei perfeitamente que o


que estou fazendo não é “bom.” Pois o que eu faço não pode ser bom,
pelo simples facto de ser eu quem o faço. Só quem é bom faz o bem;
quem não é bom não pode fazer o bem. E “só Deus é bom.”

533
Não devemos dizer: “É bom que eu faça isso e aquilo”; mas “se-
ria mau se eu não fizesse.”
É mau falhar no cumprimento de um dever que consideramos
ser tal, ou desobedecer a um impulso que não temos razão para con-
siderar como inspirado pela carne ou pelo diabo.
É impossível, por definição, saber que Deus ordena uma deter-
minada coisa. Mas com a intenção voltada para a obediência a Deus,
a pessoa é salva, faça o que fizer, se colocar Deus infinitamente acima
de si mesma, e será condenada, faça o que fizer, se chamar o próprio
coração de Deus. No primeiro caso, a pessoa nunca pensa que aquilo
que fez, está fazendo ou fará pode possivelmente ser bom.
Não pedimos a Deus que nos conduza ao bem, mas que nos
livre do mal.
Em todas as circunstâncias (e não simplesmente, como afirma
Retz, naquelas em que caímos por nossa própria culpa), tudo o que
fazemos produz dano; fazemos o mal, e o pior tipo de mal.
Devemos pedir por circunstâncias tais que todo o mal que faça-
mos recaia única e diretamente sobre nós mesmos. Isso é a Cruz. (417-
418)

As Ideias contidas em Platão são não-representáveis para a


mente. Eles não têm, portanto, nada em comum com aquilo que os
comentaristas acreditam, aqueles que tentam visualizá-las para si mes-
mos. Isso é absolutamente certo.
Elas são os pensamentos de Deus concebidos como um Pensa-
dor impessoal. (418-419)

O eu – este é apenas a sombra lançada pelo pecado e erro que

534
obstrui a luz que vem de Deus, e que considero um ser.
Mesmo que alguém pudesse ser semelhante a Deus, seria prefe-
rível ser um punhado de lama obediente a Deus.
Verdade. A extremidade do amor divino que a ausência de Deus
revela na criação só pode ser respondida corretamente pela obediên-
cia.
O amor do homem por Deus deve conter todas as formas possí-
veis de renúncia, a de um amigo pelo outro, a de uma mulher pelo
seu amante, a de um filho pelo seu pai, a de um filho pela sua mãe.
É por isso que temos a Virgem. Até mesmo a renúncia dos filhos
pelos pais; é por isso que temos a Sagrada Família.
É impossível que Deus esteja presente na criação exceto sob a
forma de ausência. (419)

Não devemos lutar contra a força da gravidade por meio da


ação, mas por meio do pensamento; ao mesmo tempo em que perce-
bemos plenamente os efeitos que tem sobre nós e desejamos que pos-
samos ter asas; ou melhor, enquanto amamos a direção ascendente;
ou melhor ainda, enquanto amamos aquilo que está para além do
mais elevado.
Transfinitude. Cantor. Algo existe além do mais elevado. (419-
420)

Cada vez que detetamos em nós mesmos um sentimento invo-


luntário de orgulho ou vaidade, devemos voltar o olhar cheio de aten-
ção por alguns momentos para a lembrança de alguma humilhação
em nossa vida passada, escolhendo a mais amarga, a mais insuportá-
vel possível. Isso representa uma forma de treinamento.
O treinamento pelo uso do pensamento (mas pensamento real,
não imaginário) é de maior valor – possivelmente – do que aquele

535
provocado pelo sofrimento físico voluntário. Impor um pensamento
a si mesmo pode ser algo inteiramente real, ao passo que infligir um
sofrimento físico ou uma privação a si mesmo pode ser algo imaginá-
rio. (420)

Castidade. Eros, desejo, é essencialmente energia suplementar


que é dirigida aos objetos e faz com que sejam amados. As várias for-
mas de perversão indicam claramente que qualquer objeto (por exem-
plo, um sapato; cf. Restif de la Bretonne) pode tornar-se um objeto
de desejo. (Essa é a verdade em Freud.) Um homem pode amar sua
filha com um amor desejoso, idêntico ao amor sexual (Père Goriot);
um avarento pode amar seu tesouro da mesma maneira (Hárpago);
um soldado a vitória (analogia entre a tomada de uma cidade e o
estupro; afinidade entre o assassinato e o estupro). É assim que mui-
tas solteironas que nunca fizeram amor com ninguém despenderam
o desejo que estavam nelas em papagaios de estimação, cachorros,
sobrinhos favoritos ou parquets encerados. Portanto, não é surpreen-
dente que elas nunca tenham sido capazes de colher o fruto da casti-
dade, pois nunca foram castas.
Não existe tal coisa como castidade sem desapego. Castidade,
pobreza e obediência são inseparáveis.
O esponsal da pobreza – esta é a mais bela imagem.
Amor em Platão, que vai acompanhado de Dificuldades.
Desejo sem objeto.
Há algo de impossível no desejo; ele destrói o seu objeto. Os
amantes não podem tornar-se um, Narciso não pode tornar-se dois.
Don Juan, Narciso. Porque desejar algo é impossível, devemos desejar
nada.
O avarento, por desejo de seu tesouro, priva-se dele. Se podemos
colocar todo o nosso bem sem reservas em algo escondido na terra –

536
por que não em Deus?
Mas quando Deus se tornou tão significativo para nós como o
tesouro para o avarento, devemos continuar repetindo firmemente
para nós mesmos que Ele não existe, experimentar o facto de amá-lo
mesmo que Ele não exista.
É Ele quem, pela ação da “noite escura”, se retira, para não ser
amado como o tesouro é amado pelo avarento.
A pobreza de São Francisco era o desejo de ter um puro deleite
na criação. “Através do desapego, alimenta-te neste Tudo.” (421-422)

Não desejo de forma alguma deixar de ser capaz de sentir este


mundo criado, mas que não seja para mim pessoalmente que se torne
sensível. A mim ele não pode confiar seu segredo, que é muito ele-
vado. Mas se tão somente for embora, então a criação e o Criador
poderão trocar seus segredos.
A beleza de uma paisagem exatamente no momento em que nin-
guém está olhando para ela, absolutamente ninguém...
Ver uma paisagem como ela é quando eu não estou lá.
Quando estou em qualquer lugar, poluo o silêncio da terra e do
céu com a minha respiração e as batidas do meu coração. (422-423)

A recordação de sofrimentos e alegrias passados possui igual sa-


bor, embora específico em cada caso. Descobrir aquele sabor especí-
fico que a recordação revelará em cada sofrimento e cada alegria que
experimentamos.
O passado, quando a imaginação não se intromete nele – no
exato instante em que algum encontro casual o faz surgir em perfeita
pureza – é o Tempo com a tonalidade da eternidade sobre ele. Lá, o
sentimento de realidade é puro; e nisso reside a pura alegria; aí reside
a beleza. Proust.

537
O presente, estamos apegados a ele. O futuro, nós o constituí-
mos na nossa imaginação. Somente o passado, quando nos abstemos
de reconstituí-lo, é pura realidade. (423)

A unidade de Deus e o ato da Trindade; Héstia que fica ao lado


do fogo e Zeus que à frente dos deuses dirige sua carruagem e com-
partilha da realidade; o polo e a rotação da esfera celeste – são exem-
plos da combinação entre contemplação e ação.
Uma ação que se encerra em si mesma é uma imagem da con-
templação. Isso é impossível no caso de uma ação direcionada. A ação
deve, portanto, ser ao mesmo tempo direcionada e não-direcionada.
Uma roda. (423)

“Mas ela lembrou-se de comer quando se cansou de chorar.” O


último grau da miséria humana. (424)

Um poema deve significar alguma coisa e, ao mesmo tempo, nada


– aquele nada que pertence ao alto. (424)

A aparente ausência de Deus neste mundo é a realidade atual


de Deus. O mesmo é verdade para tudo. Tudo aquilo é aparência é
irreal.
A aparência possui a plenitude da realidade, mas apenas como
aparência. Como qualquer coisa além da aparência, constitui erro.
Este mundo, na medida em que está completamente vazio de
Deus, é o próprio Deus.
A necessidade, na medida em que é absolutamente diferente do
Bem, é o próprio Bem.
É por isso que qualquer forma de consolo na aflição afasta-nos
do amor e da verdade.

538
É aí que reside o maior de todos os mistérios. Quando puder-
mos colocar nosso dedo sobre isso, estaremos seguros.
Não devemos tentar mudar em nós mesmos ou eliminar desejos
e aversões, prazeres e dores. Devemos suportá-las passivamente como
se fossem sensações de cor e sem lhes atribuirmos qualquer impor-
tância maior. Se as janelas do meu quarto são vermelhas, não posso,
por mais que discuta comigo mesma dia e noite durante um ano, vê-
lo de outra forma que não seja avermelhada. Sei, além disso, que é
necessário, certo e bom que assim o veja. Ao mesmo tempo, apenas
atribuo a essa cor particular, considerada como um indício, uma im-
portância que é limitada pelo conhecimento de sua relação com as
janelas. É dessa forma e não de outra que devo aceitar os desejos e
aversões, prazeres e dores de toda espécie que se produzem em mim.
Tudo isso vem de Deus na medida em que vem da Necessidade abso-
lutamente cega; e não de qualquer outra maneira. (É isso que Spinoza
quis dizer com salvação por meio do conhecimento?)
Por outro lado, como também temos em nós mesmos um prin-
cípio de violência, a saber, a vontade, devemos também, de forma
limitada, mas na medida do possível, fazer uso violento desse princí-
pio violento; obrigarmo-nos pela violência a agir como se não tivésse-
mos aquele desejo ou aversão particular; sem tentar persuadir a sen-
sibilidade, mas forçando-a a obedecer. Ela então se rebela, e essa re-
belião deve ser suportada passivamente; deve ser degustada, sabore-
ada, experimentada e aceitada como algo exterior, como o averme-
lhado da sala com as janelas vermelhas.
Cada vez que fazemos violência a nós mesmos, nesse sentido,
avançamos genuinamente, muito ou pouco, na tarefa de treinar o
animal em nós mesmos. Como essa operação é finita, pois não há
infinitude no que é animal, podemos estar absolutamente certos de
que, a menos que a morte aconteça de antemão, o treinamento será

539
finalmente concluído. A única coisa é que não devemos parar antes
que este estágio final seja realmente alcançado.
Quanto ao ponto em que fixamos o limite (o limite da medida
em que permitimos que a vontade seja exercida com violência), isso
não importa muito. (Assim como não importa muito se nos propo-
mos a orar alguns minutos por dia ou sete horas, desde que o faça-
mos.) Naturalmente, para que tal operação sirva para fins de treina-
mento, devemos violentar a sensibilidade, especialmente quando ela
está em processo de despertar desejos ou aversões que são o oposto
daquilo que reconhecemos ser razoável, e não quando o desejos ou
aversões estão em conformidade com a razão ou não são importantes
de nenhuma das duas maneiras. Pois essa violência deve ser vista sim-
plesmente como um meio de treinamento. Quando te propões a trei-
nar um cão para o circo, tu não o chicoteias por chicotear, mas para
treiná-lo, e com esse objetivo tu só o chicoteias quando ele falha em
algum exercício. E de tempos em tempos não vês mal algum em trocar
o chicote por um torrão de açúcar (há ocasiões em que só o açúcar é
capaz de dar resultado); o que importa não é o chicote ou o açúcar,
mas o treinamento. Se você o açoitares sem rima ou razão, acabas por
torná-lo totalmente inadequado para qualquer tipo de treinamento:
é a isso que leva o tipo defeituoso de ascetismo.
Os métodos de violência dirigida contra o eu só são admissíveis
quando emanam diretamente da faculdade de raciocínio, ou então
quando são forçados por algum impulso irresistível; mas então não é
de nós mesmos que a violência realmente procede.
A primeira e mais necessária forma de violência contra nós mes-
mos consiste em praticar, de facto, aquilo que claramente representa-
mos para nós mesmos como dever. (424-426)

Anjos; deuses em Platão. Precisamente no mesmo momento da

540
eternidade, eles são trazidos ao ser e, por amor, deixam de ser.
Temos de cruzar – e Deus tem de o fazer primeiro para vir até
nós, pois é Ele quem vem primeiro – a espessura infinita do tempo e
do espaço. Aqui o amor é, se alguma coisa, maior. É tão grande
quanto a distância que tem de ser cruzada.
Para que seja o maior amor possível, a distância deve ser a maior
possível. É por isso que neste mundo o mal pode ir até o limite ex-
tremo, além do qual a própria possibilidade do bem desapareceria
por completo. É permitido tocar este limite. Às vezes, parece-nos que
vai além. Mas seja o que for que aconteça connosco ou com outros,
temos o dever de ter fé no facto de que não é assim.
Isso é, em certo sentido, exatamente o oposto da conceção for-
mulada por Leibniz. (Certamente é mais compatível com a grandeza
de Deus: pois se esta fosse a ideia de Deus para o melhor de todos os
mundos possíveis, significaria que não era capaz de produzir muito.)
Deus desgasta-se cruzando a espessura infinita do tempo e do
espaço para apoderar-se da alma, para dela tomar posse. Como ela
resiste e foge, ele tem muitas vezes de voltar ao ataque. Em parte por
surpresa, em parte pela força, em parte apelando para a ganância, ele
tenta fazê-la comer uma semente de romã. Se ela permite, mesmo que
por um momento, que uma expressão pura e absoluta de consenti-
mento seja arrancada dela, então Deus a conquistou. E quando final-
mente ela se entrega inteiramente a ele, ele a abandona. Ele a deixa
completamente solitária. Ela tem, por sua vez, e tateando da melhor
maneira que pode, de cruzar a espessura infinita do tempo e do es-
paço para ir até ao que ama. É isso é que constitui a Cruz.
O sofrimento físico levado ao limite, sem o menor consolo, por-
que é acompanhado de uma angústia moral absoluta e completa – é
o todo do Tempo e do Espaço entrando em alguns momentos e nas
profundezas de um único corpo, e dilacerando a alma. É assim, e não

541
de outra maneira, que a alma faz a jornada de retorno que Deus fez
para chegar até ela. (428-429)

A impossibilidade é a única porta que leva a Deus.


(Postular o contraditório. Querer o impossível. Amar o mal.)
Temos de amar o mal como tal. Mas essa atitude de nossa parte
só pode ser pura quando o mal é uma dor física, que suportamos,
que não buscamos, que faríamos qualquer coisa no mundo para evi-
tar. (431)

Suponhamos um homem cuja família inteira tenha morrido em


meio a torturas e que por muito tempo foi exposto à tortura num
campo de concentração; ou um índio americano do século XVI que
foi o único sobrevivente do massacre de seu povo. Homens como
esses, se alguma vez acreditaram na misericórdia de Deus, ou não
acreditam mais nela, ou a concebem de uma maneira totalmente di-
ferente daquela que faziam antes. Eu mesma não passei por essas coi-
sas. Mas sei que elas existem; daí que diferença faz? É, ou deveria ser,
a mesma coisa.
Devo desejar, esforçar-me para ter uma conceção da misericór-
dia divina de modo que não possa ser obliterada ou alterada qualquer
situação que o Destino possa impor a mim ou àqueles ao meu redor,
e que seja capaz de ser comunicada a qualquer ser humano (sempre
supondo que tenho o dom, que não tenho, de comunicar nada) sem
que isso seja para ele um insulto.
Apenas a inspiração é capaz de fornecer tal conceção, mas deve-
mos, por nossa própria iniciativa, deixar de lado todas as conceções
que não sejam essa. (432)

Discurso de Ivan no Irmãos Karamazov. Mesmo que esta enorme

542
fábrica produzisse as coisas mais maravilhosas que se possa imaginar
e custasse apenas uma lágrima de uma única criança, eu, de minha
parte, recuso.
Eu endosso totalmente esse sentimento. Nenhuma razão, seja
qual for, que me possa ser apresentada para compensar a lágrima de
uma criança, pode levar-me a aceitar essa lágrima. Nenhuma, absolu-
tamente nenhuma que a inteligência seja capaz de conceber. So-
mente uma – mas que só é inteligível ao amor sobrenatural: a de que
é a vontade de Deus. E, por esta última razão, aceitaria com a mesma
facilidade um mundo que só é mau e cujas consequências só seriam
más como uma lágrima de criança. (432-433)

Quando todo o universo está pesando sobre nós, não há outro


contrapeso possível para a outra escala da balança, exceto o próprio
Deus – o Deus real; os falsos deuses são inúteis, mesmo sob o nome
do verdadeiro. (433)

Em vez de visualizar a aflição que nos sobreveio contra a nossa


vontade como uma oferta feita a Deus por uma intenção específica,
devemos fazer exatamente o contrário. Quando por um motivo espe-
cífico, relacionado com o serviço ao próximo, ou então por obediên-
cia a uma inspiração, nos expusemos à aflição, devemos, quando a
aflição realmente descer sobre nós, pensar no nosso sofrimento não
como uma oferta, mas como um mal suportado absolutamente con-
tra a nossa vontade. Este é o significado da contradição entre São
João e os Evangelhos Sinópticos. Isso é o que o próprio Cristo fez.
Tudo está de cabeça para baixo em nosso mundo de pecado. O
que é negativo parece positivo e o que é autêntica e totalmente posi-
tivo parece-nos negativo. Isso constitui um critério. O que nos parece
positivo nunca é, não pode ser, positivo. Só o que nos parece negativo

543
é autenticamente positivo. Assim, o bem nunca consiste em fazer o
bem, mas em não fazer o mal. Simplesmente abster-se de dar, servir,
etc., em qualquer circunstância é praticar o mal. Mas mesmo quando
agimos, devemos considerar tal ação simplesmente como uma abs-
tenção do mal. “...o quanto a essência do necessário difere da do
bem.” Sempre voltamos a isso no final.
O bem é impossível. Mas o homem sempre tem sua a imaginação
à mão que lhe permite esconder de si mesmo em cada caso particular
a impossibilidade do bem (é suficiente se para cada evento que não
nos esmaga de facto, pudermos puxar um véu sobre parte do mal e
adicionar algum bem imaginário – e algumas pessoas conseguem fa-
zer isso mesmo estando tão arrasadas). A imaginação do homem, ao
mesmo tempo, impede-o de ver “o quanto a essência do necessário
difere da do bem” e de permitir-se realmente encontrar a Deus, que
não é outro senão o próprio bem – o bem que não pode ser encon-
trado em parte alguma neste mundo.
Desejamos o bem (desejar e desejar o bem são uma e a mesma
coisa) e ele não está neste mundo. Não podemos procurá-lo fora deste
mundo. Mas, se vier para se apossar de nós, é somente se o tivermos
em vão buscado neste mundo que nos permitiremos ser apanhados.
Se por meio de uma mentira nos fizemos crer que o encontramos
neste mundo, não nos abandonaremos àquilo que vem buscar-nos de
fora do mundo. O que é tão terrível é que é tão fácil dar o nome de
Deus a essa forma enganosa de bem no qual nos persuadimos a acre-
ditar por covardia. E Deus sofre do facto de seu nome ser usado de
alguma forma.
Se ao menos o nome do Senhor tivesse a virtude de tornar im-
possível mentir a nós mesmos...! Certamente que a tem, se correta-
mente pronunciado. (433-434)

544
Uma prova ontológica experimental. Não tenho o princípio de
elevar-me em mim. Não posso subir ao céu pelo ar. É apenas direcio-
nando meus pensamentos para algo melhor do que eu mesma que
sou puxada para cima por esse algo. Se sou realmente puxada, esse
algo que me puxa é real. Nenhuma perfeição imaginária pode puxar-
me para cima, mesmo por uma fração de polegada. Pois uma perfei-
ção imaginária está no mesmo nível que eu que a imagino – nem
superior nem inferior. Aquilo que nos puxa resulta de direcionarmos
nossos pensamentos para uma verdadeira perfeição. “Aquele que,
com seus pensamentos voltados para Zeus, canta seus louvores, esse
alcançará a plenitude da sabedoria.” (Ésquilo)
O que assim resulta da direção do pensamento não é de forma
alguma comparável à sugestão. Se eu disser a mim mesma todas as
manhãs: “Eu sou corajosa, não tenho medo”, posso, de facto, adqui-
rir coragem; mas essa coragem corresponderá ao que, no meu atual
estado de imperfeição, imagino sob esse nome e, consequentemente,
não irá além dessa imperfeição. Isso é apenas uma modificação no
mesmo plano, não uma mudança de plano.
A contradição é o critério. Não podemos por sugestão obter coi-
sas que são incompatíveis. Só a graça pode fazer isso. Uma pessoa
sensível que se torna corajosa por sugestão (como resultado de incli-
nar seus pensamentos para a necessidade de se adaptar às circunstân-
cias) endurece-se; muitas vezes pode até, com uma espécie de prazer
selvagem, livrar-se de sua sensibilidade por um processo de automu-
tilação. Só a graça é capaz de dar coragem, deixando a sensibilidade
intacta, ou sensibilidade, deixando a coragem intacta.
A metáfora da altitude corresponde a isso. Se estou na encosta
de uma montanha, de um ponto a certa altura no caminho posso ver
um lago; de outro ponto, depois de dar alguns passos, uma floresta.
Tenho de escolher: tem de ser o lago ou a floresta. Se quero ver o

545
lago e a floresta ao mesmo tempo, preciso subir mais alto.
A única coisa é que aqui a montanha não existe. É feita de ar.
Temos de ser puxados para cima.
A notável ideia ateísta é a ideia de progresso, que é a negação da
prova ontológica experimental, e implica que aquilo que é de quali-
dade indiferente pode por si mesmo produzir o que é da melhor qua-
lidade.
Mas toda a ciência moderna tende à eliminação da ideia de progresso
e ao estabelecimento de que todo progresso provém de uma fonte exterior.
Darwin foi responsável por destruir a ilusão de progresso interno que
se encontrava em Lamarck. A teoria das mutações deixa subsistindo
apenas o acaso e a eliminação. A energética propõe que a energia se
degrada e nunca sobe; que se esgota e nunca aumenta; que nada sobe
sem que algo mais tenha descido ainda mais além; e isso aplica-se até
mesmo à vida vegetal e animal.
Princípio do uso que deve ser feito da ciência moderna em apoio à ver-
dadeira fé. Muito importante.
A sociologia e a psicologia só terão uma base científica por meio
de um uso semelhante da noção de energia, um uso que é incompa-
tível com qualquer tipo de ilusão sobre progresso; e então serão ilu-
minadas com a luz da verdadeira fé.
No cerne da questão relativa ao mérito vinculado às obras está
a seguinte verdade – que Arjuna falhou em reconhecer, a saber, que
não nos elevamos por meio de nossos atos, mas apenas por meio de
nossa contemplação de Deus. Por meio de nossos atos só podemos
descer, deixar de cumprir nosso dever sendo um ato entre outros. Se
cumprirmos todo o nosso dever na esfera da ação, tudo o que fazemos
é simplesmente conseguir permanecer em nosso nível particular. Os
atos constituem o indicador da balança. Se movermos o ponteiro,
distorcemos o equilíbrio. “Estava nu e vós me vestistes.” Dar roupas

546
é apenas o sinal indicando o estado no qual se encontravam aqueles
que agiram dessa maneira. Encontravam-se em estado tal que não
podiam deixar de alimentar os famintos, vestir os que estavam nus;
de forma alguma o fizeram por Cristo; não podiam deixar de fazer
tais coisas porque a compaixão de Cristo estava neles. Assim como
São Nicolau, viajando com São Cassiano pelas estepes russas para se
encontrar com Deus, não conseguiu evitar chegar atrasado ao encon-
tro por haver parado para ajudar a retirar a carroça de mujique que
havia ficado presa na lama. O bem realizado dessa maneira, quase a
despeito de si mesmo, quase com vergonha e remorso, é puro bem.
É impossível querer realizá-lo assim. Todo o bem puro está completa-
mente fora do alcance da vontade. O bem é transcendente. Deus é
esse Bem. (434-436)

Boas obras. Não conseguimos – mesmo que o desejemos – dei-


xar de levar a cabo aquilo que nos sentimos inspirados a fazer, en-
quanto o nosso pensamento estiver voltado para a obediência.
Quanto ao que é ditado pela razão, mas ao qual se opõe a pre-
guiça ou o desejo, assemelha-se ao papel da correção no emprego da
inteligência. Quem fosse escrever um livro de apologética cheio de
citações erradas, por puro descuido e preguiça em dar os passos ne-
cessários para verificar suas fontes, não seria visitado pelo Espírito da
Verdade. Mas não verificamos uma citação em nome de Deus ou para
merecer inspiração, mas simplesmente por um sentimento de exati-
dão, que é uma condição meramente negativa de todas as formas de
vida espiritual. Ou ainda, é como o cuidado demonstrado em não
incluir um cal de treze sílabas num poema composto de alexandrinos.
(No entanto, é isso que faço continuamente...) (436-437)

Se alguém não ama a Criação, que pode ver, como pode amar a

547
Deus que não pode ver? – Com um verdadeiro amor, claro; pois com
um amor imaginário nada é mais fácil.
É como o “Sim” no casamento – “Eu quero”. (437-438)

A fé (quando se trata de uma interpretação sobrenatural do na-


tural) é uma conjetura por analogia baseada em experiências sobre-
naturais. Assim, aqueles que adquiriram o privilégio da contempla-
ção mística, tendo vivenciado a experiência real da misericórdia de
Deus, e sabendo que essa experiência lhes é comum com outros, su-
põem que, sendo Deus misericórdia, o mundo criado é uma obra de
misericórdia – fé, crença. Mas quando se trata de observar esse prin-
cípio misericordioso em ação na natureza, é preciso tornar-se cego,
surdo, desprovido de piedade para acreditar que podemos fazer isso.
É por isso que os judeus e os maometanos, que buscam as provas da
misericórdia divina na natureza, são, de facto, impiedosos. E os cris-
tãos também muitas vezes.
É por esta razão que o misticismo é a única fonte das virtudes
humanas. Pois, se acreditarmos que não há misericórdia infinita por
trás da cortina deste mundo, ou se acreditarmos que essa misericór-
dia está à frente da cortina – em ambos os casos, tornamo-nos cruéis.
(438)

O Simpósio. Assim como uma mulher em infortúnio se imagina


saindo dessa condição de uma vez por todas, obtendo um filho de
algum homem rico que a partir de então não poderá mais abandoná-
la – assim também o é a natureza humana no que diz respeito à En-
carnação. A natureza humana teve um filho de Deus e, desde então,
está certa de não ser abandonada.
Mito do homem redondo, que se movia rolando e que foi cor-
tado em dois e compelido a andar ereto como resultado do pecado

548
original do orgulho. O amor é a necessidade de emergir daquilo que
os hindus chamam de estado de dualidade, a separação entre sujeito
e objeto; imitar a Trindade, onde o amante e o amado formam uma
só entidade, onde o amante, pelo mesmo ato, cria, conhece e ama o
amado, que é ele mesmo. Em primeiro lugar, o desejo carnal, ao ab-
sorver toda a energia vital, faz com que haja apenas um objeto e tudo
o resto não exista; portanto, tornar-se uma e a mesma coisa que esse
objeto seria sair totalmente do estado de dualidade; o amor, se reali-
zasse seu desejo, seria assim a realização da conceção vedântica. Mas
não pode realizar seu desejo neste mundo. É forçado a subir em dire-
ção ao que está acima, do outro lado do céu. Se não o fizer, trans-
forma-se parcialmente em ódio. Como conseguiremos perdoar o ou-
tro por permanecer outro?
Aqui está, novamente, o facto da impossibilidade que leva a Deus.
Quando Lucrécio censura o amor por conter esse elemento de im-
possibilidade que lhe é essencial, o que ele não entende é que aí re-
side precisamente o princípio de seu desígnio providencial.
É por o amor homossexual ser impossível, uma vez que realizá-
lo constitui uma contaminação muito grande, que os gregos o colo-
caram num nível tão alto. Apenas por essa razão; pois Platão coloca
o amor entre mulheres no mesmo nível que o amor entre homens. E
Safo… Nos costumes morais dessa sociedade, o amor entre homens e
mulheres encontrou obstáculos insuficientes. Mais tarde, o cristia-
nismo e, mais ainda, os hábitos morais castos que os antigos alemães
trouxeram consigo, transformaram o amor entre um homem e uma
mulher em algo impossível. Daí em diante, a forma platônica de amor
homossexual tornou-se amor cavalheiresco e cortês. (442-443)

Somente o eterno é invulnerável ao tempo. Para que uma obra


de arte possa ser sempre admirada; para que um amor, uma amizade

549
possa durar uma vida inteira (até mesmo um dia inteiro, talvez); para
que uma obra de arte possa ser contemplada por horas e dias segui-
dos; para que uma conceção da condição humana seja capaz de per-
manecer a mesma em todas as incontáveis formas de experiência e
vicissitudes da fortuna – precisa haver uma inspiração que desça da-
quele mundo situado além do céu.
O tempo em seu curso desgasta e destrói o que é temporal (tam-
bém, infelizmente, muitas coisas essencialmente eternas, como poe-
mas e estátuas gregas, a religião dos druidas, etc.). Assim, há mais
eternidade no passado do que no presente, mesmo todas as coisas
sendo além disso iguais; ou melhor, há menos do temporal e, conse-
quentemente, uma proporção maior da eternidade. O valor da histó-
ria corretamente entendida é comparável ao da lembrança em Proust.
Desta forma, o passado oferece-nos algo que é ao mesmo tempo real
e melhor do que nós, que pode puxar-nos para cima, algo que o fu-
turo nunca faz.
A ideia de Progresso foi inventada no século dezoito. (Descartes
foi responsável por isso.) O século vinte é um de retorno à história.
Mas existe uma maneira certa e errada de fazer uso da história. Pode-
mos buscar nele algo que exalte a imaginação; ou então podemos
buscar nele algo que é mais puro do que nós.
A duração, quer se trate de séculos no caso das civilizações, quer
de anos e décadas no caso do ser humano, possui uma função darwi-
niana de eliminação dos inaptos. Aquilo que é adequado a todos os
propósitos é eterno. Livro da Sabedoria: “A sabedoria alcança todos
os lugares por causa de sua pureza.” (Esplêndido!) Só aí reside o valor
daquilo que chamamos experiência. Mas as mentiras mentais consti-
tuem uma armadura graças à qual o homem muitas vezes permite
que o elemento impróprio em si mesmo sobreviva a eventos que o
teriam matado sem tal armadura (como, por exemplo, o orgulho para

550
sobreviver às humilhações), e esta armadura é como se fosse nele se-
gredada pelo elemento inapto de forma a afastar o perigo ameaçador
(o orgulho na humilhação fortalece a mentira mental). Existe na alma
uma espécie de fagocitose; tudo aquilo que em nós pertence ao tem-
poral esconde-se atrás de mentiras para não morrer e na proporção
do perigo de morte. É por isso que não há verdadeiro amor à verdade
sem um consentimento total, e sem reservas, à morte. A Cruz de
Cristo é a única porta do conhecimento. (443-444)

Uma resolução é algo que deve durar ao longo do tempo. Pre-


cisa, portanto, haver tocado a eternidade. Só podemos ter certeza de
cumprir uma resolução se a tivermos tomado na presença de Deus.
Por outro lado, se tomarmos uma resolução na presença de Deus, é
absolutamente certo que iremos cumpri-la, mesmo a despeito de nós
mesmos – a menos que nos voltemos para o mal, se tal coisa for pos-
sível para alguém que uma vez amou. (Talvez seja impossível, mas não
devemos saber que é impossível?)
Deus é o Pai que está em segredo, e por isso uma resolução não
formulada – mesmo a respeito de si mesmo – tem maior chance de ter
sido realmente tomada na sua presença. (No carro naquele dia...)
Se colocarmos uma falha totalmente reconhecida como tal em
contato real com o próprio Deus, é certo que nunca mais a comete-
remos; que, mesmo que não seja destruída em nós imediatamente,
está fadada a murchar como uma planta cujas raízes foram cortadas.
Se formos capazes de tal operação, ela certamente deve ser preferida
ao processo de autotreinamento, que penosamente corta o tronco.
Além do mais, é mais difícil colocar nossa miséria espiritual sob a luz
de Deus do que partir para o autotreinamento. Como se tornar capaz
disso?
É preciso ter a coragem, quando na escola, de manter a atenção

551
inteiramente fixada por um certo tempo nos erros estúpidos que co-
metemos numa composição latina. A contrapartida sobrenatural de
tal coragem consiste em colocar nossa miséria espiritual em contato
com Deus. (444-445)

Cristo ofereceu sua vida; mas no momento em que a morte se


aproximava, seu sofrimento não lhe pareceu uma oferta; isso o en-
cheu de horror, e ele apenas aceitou como sendo a vontade de Deus.
Não o imitamos conformando-nos com os costumes atuais. (447)

Visto que é Deus quem deve vir em busca do homem e tomar


posse de sua alma, prendendo seus sentidos, apenas dois meios lhe
estão disponíveis para efetuar esse resultado: as belezas da Natureza
(céu, mar, as estações, planícies, montanhas, rios, árvores, flores,
grandes espaços – e os belos corpos e belos rostos de homens, mulhe-
res e crianças) – e os sinais sensíveis (linguagem, obras de arte,
ações…) emanando das almas nas quais Ele entrou.
Segue-se que sobre estes repousa uma imensa responsabilidade.
Cabe-lhes testemunhar como testemunha uma macieira em flor, ou
como fazem as estrelas. Isso só lhes é possível por meio de uma obe-
diência perfeita.
Aqueles que têm o privilégio de contemplar a Deus experimen-
tam o facto de sua misericórdia divina na parte sobrenatural de sua
vida interior. É a misericórdia divina de Deus como Espírito Santo.
Sua única razão para acreditar que Deus criador é misericordioso é
que esses estados contemplativos existem de facto e fazem parte de
sua experiência como criaturas. Há também outra razão – a beleza do
universo. Nenhum outro traço da misericórdia divina pode ser en-
contrado na criação. Mas esses seres privilegiados são exteriormente

552
uma testemunha do facto, na medida em que deixam cair sinais sen-
síveis daquilo que está dentro deles. A existência de tais sinais cons-
titui, de facto, um terceiro tipo de evidência da misericórdia divina.
Esses sinais só dependem deles da mesma forma que uma bela linha
de poesia depende de um poeta, por meio da extrema atenção com
que ele deixa de lado aquilo que está aquém das exigências de sua
inspiração. Da mesma forma, aqueles que amam têm o cuidado de
rejeitar qualquer tendência leve de agir de uma maneira que está
abaixo daquilo que é exigido pelo seu amor. (Devemos ter em mente
que, por exemplo, recusar e dar são atos com igual pretensão de se-
rem considerados tais.) E assim como o poeta não compõe um belo
verso para seus leitores, nem para Deus, ou para qualquer outra coisa,
mas porque foi tomado pela inspiração, e dessa realidade inexpressá-
vel se alimenta sua atenção (o que é algo divino, mas não a represen-
tação de Deus como uma Pessoa); o mesmo ocorre no caso do ato de
amor.
O poeta produz beleza fixando sua atenção em algo real. O ato
de amor é produzido da mesma maneira. Saber que este homem, que
tem frio e fome, existe realmente tanto quanto eu, e está realmente
com frio e fome – isso é suficiente, o resto segue-se por si mesmo.
Os valores puros e autênticos – verdade, beleza e bondade – na
atividade do ser humano são o resultado de um único e mesmíssimo
ato, de certa aplicação da atenção na sua plenitude ao objeto.
O ensino não deve ter outro objetivo senão preparar, treinando
a atenção, para a possibilidade de tal ato.
Todas as outras vantagens do ensino são sem interesse. (448-
449)

Simpósio, 196 – O amor não faz nem sofre violência; é perfeita-


mente justo. (450)

553
Não se submete à força, se é que algo o faz, pois não podes acei-
tar o amor à força. Nem força, se algo o faz, pois cada um em tudo
obedece voluntariamente ao Amor.
Amor é consentimento. (450)

Arte – Poesia – Tornar amáveis coisas horríveis como tais, sim-


plesmente porque existem, é fazer um aprendizado do amor de Deus.
Cf. a Ilíada. (451)

Timeu. O devir é princípio de feiura, não a matéria sem forma


da qual é produzido, a Mãe.
Todo fenômeno é uma relação (não há som feito por uma só
mão) e, como tal, limitado.
Deus colocou limites no mundo que correspondem ao nosso,
que são a condição de existência dos seres corporais e pensantes.
Reconhecer a obra da Providência no mundo com respeito ao
homem – se quisermos conceber o facto com clareza – é reconhecer
que, assim como existimos, de facto, como homens, assim também
as condições de nossa existência como homens, na verdade, existem
também; e reconhecer quais são essas condições.
A vaga noção de Providência é o véu que encobre a clara noção
de condição de existência.
A mediação entre a unidade e o ilimitado é a relação que limita
o ilimitado.
No domínio dos factos, a relação é a condição de existência.
Conceber a unidade, o limitador e o ilimitado coexistindo nos
fenômenos é reconcebê-los a priori, matematicamente. Essas coisas
não devem ser apreendidas pelos sentidos.
O empirismo só possui sentido como a pesquisa de termos cuja

554
relação, representável a priori, não é representada, mas é suposta.
Não há experiência, mesmo no caso da perceção, sem a noção
de necessidade, que é a do limitador.
Devemos conceber a natureza sensível matematicamente.
O belo na matemática é o imprevisível, o a posteriori contido no
a priori, sem o qual não haveria descoberta.
O desejo quer todas as coisas, mas é uma coisa, desde que emane
de mim.
Somos como barris sem fundo enquanto não tivermos enten-
dido que temos tal fundo.
O “alento central” que nunca se esgota – isso é Deus em nós.
(452-453)

Quando estamos com muita sede, gostaríamos de beber toda a


água que existe no universo. Tudo o que queremos é beber. E ainda
assim a sede é algo limitado. Midas queria que tudo se tornasse ouro.
Ao querer beber tudo, não fazer nada além de beber, bebemos
demais. E então, não temos mais vontade de beber.
Uma criança colocada na frente de bolos ou doces…
Uma criança não sabe que seu desejo por éclairs é limitado.
Nossos desejos são carnais, pertencem à matéria; é por isso que
são limitados.
A direção deles é ilimitada (apesar…), mas o movimento chegará
ao fim. (453)

Tendo como ponto de partida o movimento ilimitado em linha


reta, e não mais o movimento circular, a ciência não poderia mais ser
uma ponte que leva a Deus.
Precisamos devolver à ciência seu verdadeiro destino de ponte
que conduz a Deus. (453)

555
Gostaríamos que tudo o que tem valor seja eterno. Ora, tudo o
que tem valor é fruto de um encontro (em primeiro lugar, eu mesma:
que acaso foi aquele que no passado possibilitou o encontro do meu
pai com a minha mãe!... e há ainda todos aqueles que amo, e todos
os homens em geral, e tudo o que já foi feito por homens), persiste
graças ao encontro, e cessa assim que aquilo que foi reunido se se-
para. Este é o pensamento central por trás do budismo (uma conce-
ção heraclitiana). Isso leva direto a Deus.
Meditar sobre o acaso que foi responsável por aproximar meu
pai e minha mãe é ainda mais salutar do que meditar sobre o assunto
da morte.
Existe uma única coisa em mim cuja origem não possa ser ras-
treada até esse encontro? Só Deus. E mesmo assim, minha conceção
de Deus tem sua origem nesse encontro.
Uma verdadeira amizade é essencialmente algo eterno. Não po-
demos suportar a ideia de que deva acabar. No entanto, sabemos per-
feitamente que teve um começo.
Um puro acaso trouxe Platão à presença de Sócrates.
E supondo que o filho de Maria tivesse morrido de crupe?...
(454-455)

No Simpósio, a ideia contida no discurso de Agatão de que o


Amor é absolutamente livre de toda mancha de injustiça, porque não
faz nem sofre violência. Não conquista pela força, nem se deixa con-
quistar pela força. Isso só é verdade quanto ao consentimento secreto
e sem palavras por parte da alma. Existe algo em nós que está com-
pletamente fora do âmbito das relações de força, que não toca a força
e não é tocado pela força, e isso é o princípio sobrenatural da justiça;
pois a força é injustiça. A força é o princípio do mal. Reina em toda

556
a parte, mas nunca é capaz de contaminar o Amor pelo seu contato.
Uma conceção especificamente grega. Esplêndido!
Entre as palavras de Agatão e as de Diotima, a contradição é a
mesma – e repleta da mesma verdade essencial – que entre a divin-
dade de Cristo e as palavras: “Por que me chamas de bom? Ninguém
é bom, senão um, isto é, Deus.”
Este Amor que nunca compele, que nunca é compelido, é amor
sobrenatural, caridade. (456-457)

Languedoque, Grécia – duas civilizações nas quais não havia


adoração da força; porque ali o temporal era usado como ponte. Nem
buscavam estados espirituais caracterizados pela intensidade, mas
amavam a pureza de sentimento.
Somente o que não está sujeito à força é puro.
O amor era, para eles, puro desejo, destituído de todo espírito
de conquista. É esse o tipo que o homem sente por Deus. (457)

Um dos males da existência humana é que não podemos ao


mesmo tempo ter nosso bolo e comê-lo. As crianças têm plena cons-
ciência disso. O que é comido é necessariamente destruído. O que
não é comido, a realidade dela não foi ainda totalmente apreendida.
Na esfera sobrenatural, a alma “devora a verdade pela contemplação.”
“Participe deste Todo por meio da renúncia.”
Soneto de Rilke sobre os vários frutos. Com as crianças, o gosto
tem função estética. (Isso dura, talvez, até um pouco antes da puber-
dade, e então talvez o eros toma o lugar do sentimento pela comida?)
(461-462)

“Aquilo que limita e aquilo que não tem limite.”


A força considera-se infinita, ao passo que é apenas algo que em

557
si mesma não tem limite, mas sobre a qual é estabelecido de fora um
limite. Aquilo que limita a força não está sujeito à força, nem é do-
tado de força. E este princípio é a mesma coisa que o Amor.
Há algo infinito na força, mas essa qualidade infinita é finita em
relação a outro tipo de infinitude.
Devemos tentar conceber a mesma coisa, ao mesmo tempo,
como infinita e finita. (462)

Assim como há dois vazios, dois silêncios, etc. – o de cima e o


de baixo – então talvez também, se a morte é aniquilação, haja duas
aniquilações, aniquilação no nada e aniquilação em Deus. (463)

Centro de gravidade – um ponto que, se for sustentado, elimina


o peso.
O ponto sobrenatural de nossa alma, se é sustentado por Deus…
O ponto sobrenatural é a semente da romã no Hino a Deméter;
o grão de mostarda nos Evangelhos, que se torna uma árvore na qual
as aves do céu vêm e se hospedam; o átomo de puro bem que, uma
vez entrado na alma, cresce exponencialmente, sem que nada o possa
impedir, mesmo as mais criminosas formas de fraqueza – a não ser
que haja uma traição.
A relação entre os pesos numa balança não é de peso; não mais
do que uma relação entre lugares é uma de extensão espacial, ou uma
relação entre tempos é uma de passagem de tempo. (463)

Se visualizarmos a morte como sendo um aniquilamento, pode-


mos conceber que, no momento preciso da passagem da existência
ao nada, aquele que ama a Deus descobre uma eternidade de alegria
e aquele que ama a si mesmo uma eternidade de amargura.
Mas não há simetria real; a alegria é realmente eterna; ao passo

558
que a amargura é apenas suscetível de uma aparência de eternidade.
(464)

Não devemos desejar morrer para ver Deus face a face, mas viver
enquanto deixando de existir para que num eu que já não seja mais
o meu eu, Deus e a sua criação se encontrem face a face – e então,
mais tarde, um dia, morrer.
A liberdade sobrenatural (não existe outro tipo) é algo infinita-
mente pequeno na alma.
A glândula pineal de Descartes. O “terceiro olho” dos hindus.
Tem de tornar-se um olho, para entrar em contato com a realidade
sensível. (464)

Todos os nossos males espirituais vêm da Renascença, que traiu


o Cristianismo por causa da Grécia, mas, tendo procurado na Grécia
algo de natureza diferente do Cristianismo, não conseguiu entender
o que era verdadeiramente grego. A culpa é do Cristianismo, que se
acreditava diferente da Grécia.
Só remediaremos esse mal reconhecendo no pensamento grego
toda a fé cristã.
Temos de acabar com a própria noção de humanismo e, ao
mesmo tempo, com aquilo que se opõe ao humanismo, reconhe-
cendo o facto de que o humanismo é a fé cristã. (465-466)

É amor sobrenatural que é gratuito. Ao procurar forçá-lo, colo-


camos um amor natural no seu lugar. Mas, inversamente, a liberdade
sem amor sobrenatural – a de 1789 – é algo absolutamente vazio,
uma mera abstração, sem a menor possibilidade de tornar-se real.
A atitude expressa pela palavra Languedociana “Merci” é algo
muito próximo da Graça.

559
O amor natural, por outro lado, é escravidão e tende a escravizar
os outros.
É necessário também que o amor do cidadão pela sua cidade,
do vassalo pelo seu senhor seja um amor sobrenatural.
A fidelidade é o emblema do sobrenatural, porque o sobrenatu-
ral é eterno. (466)

O homem é um animal social e o elemento social representa o


mal. Não há nada que possamos fazer a respeito, mas ao mesmo
tempo não nos é permitido aceitá-lo como tal, sob pena de perdermos
nossa alma. Segue-se que a vida não pode ser outra coisa senão uma
laceração espiritual. Este mundo é inabitável. É por isso que temos
de fugir para o próximo. Mas a porta está fechada. Quantas batidas
são necessárias antes de abrir! Para poder realmente entrar, e não fi-
car na porta, é preciso deixar de ser um ser social.
Na sociedade, o indivíduo é algo infinitamente pequeno.
O equilíbrio representa a submissão de uma ordem a outra or-
dem que a transcende e está presente nela sob a forma de algo infini-
tamente pequeno.
Assim, uma verdadeira realeza representaria a cidade social per-
feita.
Cada um na sociedade é aquele algo infinitamente pequeno que
representa a ordem que transcende a ordem social e infinitamente
maior que esta última. Cf. os estoicos: o sábio é sempre rei, mesmo
que seja um escravo.
A força pode ser encontrada em tudo aquilo que cheira a ordem
social.
Só o equilíbrio pode abolir a força.
Se sabemos em que aspetos a sociedade é desequilibrada, deve-
mos fazer o possível para adicionar peso à mais leve das duas escalas.

560
Embora o peso esteja fadado a ser mau, ao usá-lo com a intenção de
restabelecer o equilíbrio, pode ser que evitemos qualquer degradação
pessoal. Mas precisamos antes de mais nada reconhecer claramente
onde está o equilíbrio e estar sempre prontos a mudar de lado, como
a Justiça, aquela “fugitiva do campo dos vencedores”.
Devemos agir de forma a diminuir o desequilíbrio? – Ou sim-
plesmente abstermo-nos de fazer qualquer coisa que possa aumentá-
lo?
Devemos ponderar sobre o equilíbrio e, na medida em que nos
for possível, fazer com que os outros também ponderem; discernir
onde está o desequilíbrio e descrevê-lo, se for possível, publicamente.
(466-467)

A vitória de Maratona salvou a Grécia dos persas, mas, a longo


prazo, a sujeitou a Roma.
O vínculo feudal, ao transformar a obediência em algo entre
homem e homem, reduz muito o papel desempenhado pela Grande
Besta.
A Lei é mais eficaz ainda nesse aspeto.
Devemos apenas mostrar obediência à Lei ou a um homem. Este
é quase o caso nas ordens monásticas. A cidade social deve ser cons-
truída neste modelo. (A civilização do Languedoque.)
Mostrar obediência ao senhor, um homem; mas um na sua nu-
dez, não investido com o tipo de majestade emprestado da Grande
Besta, mas com a única majestade do juramento. (467)

O estado de agonia constitui a suprema noite escura da alma,


da qual necessitam até mesmo os perfeitos para atingir a pureza ab-
soluta, e por isso é bom que seja amarga.
Para que depois de uma agonia perfeita e puramente amarga, a

561
criatura possa desaparecer numa explosão de alegria pura e perfeita.
Num estado de alegria, sentimos que, se continuasse aumen-
tando, não nos seria possível suportá-la por muito tempo sem reben-
tar. A alegria é algo que pertence a Deus, algo perfeito e puro, e faz
rebentar uma alma finita como uma bolha de sabão.
A morte é uma provação – a última. (467)

As três conceções, a primeira de aniquilação no sentido enten-


dido pelos ateus, a segunda a de reencarnação e purgatório, e a ter-
ceira a de paraíso e inferno – todas as três são indispensáveis à reflec-
ção sobre o assunto da morte – podem muito bem ser aceitas como
verdadeiras e concebidas simultaneamente, se tivermos em mente
que a morte está no ponto de intersecção entre o tempo e a eterni-
dade. Só nos parecem incompatíveis porque não conseguimos evitar
visualizar a eternidade como uma duração.
As três são necessárias. A reencarnação e o purgatório mascaram
a verdade de que esta vida é única, irreparável, a única na qual pode-
mos perder-nos ou ser salvos. O paraíso e o inferno mascaram a ver-
dade de que a salvação é apenas o acompanhamento da perfeição, e
a condenação apenas o acompanhamento da traição, e que a alma
que é imperfeita, mas ainda assim voltada na direção do bem, não é
suscetível de um ou de outro. A noção materialista de aniquilação
exclui a verdade essencial e primordial de que a única necessidade da
alma é a salvação, e que todo o sentido da vida está em preparar-se
para o momento da morte. A crença na imortalidade rompe a pura
amargura e a própria realidade da morte, que permanece para nós o
dom mais precioso da Providência divina.
Podemos acreditar (1) que a noite escura da agonia, no caso das
almas que cruzaram um certo limiar no caminho da perfeição, pro-

562
duz aquela purificação para a qual imaginamos que milhares de sécu-
los de purgatório seriam necessários; (2) que no final de tal período
de purificação, a alegria infinita, eterna e perfeita de Deus entra na
alma finita e a faz explodir, rebentar como uma bolha; e (3) que as
almas que não conseguiram cruzar esse limiar, por causa de seu apego
a si mesmas e a este mundo, simplesmente desaparecem, sentindo o
seu desaparecimento com intenso sofrimento, ou então num estado
de inconsciência. Tal desaparecimento constitui um mal infinito, re-
presentado pela noção de inferno.
Só podemos visualizar a existência em termos de tempo e, con-
sequentemente, não haveria nenhuma diferença do nosso ponto de
vista entre a aniquilação e a vida eterna, se não fosse pela luz. Uma
aniquilação que é luz – isso é a vida eterna.
O inferno é eterno. Isso não quer dizer que vai durar para sem-
pre, mas apenas que as almas que estão perdidas não têm outro fu-
turo pela frente; que nunca serão salvas. Isso é algo que devemos acre-
ditar – realmente devemos.
O inferno é uma chama que queima a alma. O paraíso também.
É a mesma chama. Mas, dependendo da orientação da alma, essa
chama única e singular constitui o mal infinito ou o bem infinito, o
fogo do inferno ou o do Espírito Santo. Esse fogo é “o instrumento
de borda dupla, a coisa de fogo, que vive eternamente, o raio.”
“O instrumento de borda dupla” – aí reside precisamente, tal-
vez, o significado deste epíteto, e do machado de dois gumes que, nas
pinturas cretenses, é o emblema de Zeus, lançador de raios?
A alegria perfeita, infinita e eterna de Deus – é exatamente isso
que queima a alma perdida.
Essa alegria é oferecida à alma, mas é recusada por ela, e essa
recusa constitui o inferno.
Assim é que o raio seja (cf. Heráclito) o fogo que captura e julga

563
todos os seres. Ele destrói os Titãs e traz o nascimento de Dionísio.
Zagreu, filho de Perséfone, o bebê recém-nascido que lança o
raio, é o mesmo que Dioniso, filho de uma mortal. (468-469)

Existem apenas dois momentos de nudez e pureza perfeita na


vida humana – nascimento e morte. Não podemos adorar a Deus na
forma humana sem manchar a divindade, exceto como um bebê re-
cém-nascido e como um homem moribundo. Natal e Páscoa. (469)

A comunhão é boa para os bons e má para os ímpios. Assim, as


almas dos condenados estão no Paraíso, mas para eles o Paraíso é o
inferno. (469)

Não acreditar na imortalidade da alma, mas olhar para o todo


da vida como destinada à preparação para o momento da morte; não
acreditar em Deus, mas amar o universo, sempre, mesmo nas dores
da angústia, como um lar – aí está o caminho para a fé pela via do
ateísmo. Esta é a mesma fé que brilha resplandecente nos símbolos
religiosos. Mas quando é alcançada por esta estrada, tais símbolos
não têm de forma alguma uso prático. (469)

O desejo terreno, o apego, é uma direção, uma orientação em


linha reta. Todo o ser é projetado em linha reta em direção a um
determinado objeto – o seu tesouro no caso do avarento, uma mulher
no caso do amante. Mas uma criança não é assim; está desapegada;
está orientada, mas não para nada em particular; está orientada gra-
tuitamente. Os antigos acreditavam que durante a infância o sêmen
circula, misturado com o sangue (ou melhor, implicado no sangue)
por todo o corpo. (Cf. Aristóteles.) Sem dúvida, em suas mentes, essa
circulação do sêmen por todo o corpo andava de mãos dadas com

564
essa forma de orientação não especificamente orientada. A crença de
que para o homem que não está apegado o sêmen mais uma vez cir-
cula por todo o corpo (cf. Dona David-Neele – a água e o sangue
fluindo do lado de Cristo?) está certamente ligada à conceção do es-
tado de infância como sendo idêntico ao estado de imortalidade que
é o portal para a salvação. Em vez de ser emitido fora do corpo, o
sêmen é emitido dentro do próprio corpo; assim como o poder cria-
tivo, do qual é ao mesmo tempo a imagem e, em certo sentido, a base
fisiológica, é emitido não fora da alma, mas dentro da própria alma,
no caso de qualquer pessoa orientada para o bem absoluto. Podemos,
assim, entender como é que na religião católica a emissão noturna e
involuntária de sêmen durante o sono é considerada um pecado.
(...Deixa que nossos corpos sejam contaminados.) O homem, ao emi-
tir seu sêmen dentro de si, gera-se a si mesmo. Certamente temos
aqui a imagem e, sem dúvida, efetivamente, por assim dizer, a condi-
ção fisiológica de um processo espiritual. Daí a analogia psicológica
entre estados místicos e estados amorosos. A transposição desta ima-
gem em relação a Deus, fornece a noção do Pai e do Filho – Deus
gerando-se eternamente. Os órgãos genitais decepados de Osíris – a
única parte do corpo de Osíris que Ísis não conseguiu recuperar –
corresponde à mesma conceção. É assim que devemos entender o
culto fálico egípcio. O que eles adoravam nesse culto ao falo não era
o órgão sexual como tal, mas esse órgão, uma vez cortado – a mutila-
ção nele praticada. Em outras palavras, não era nada além de casti-
dade. Qualquer que tenha sido a maneira de como se degradou, esse
culto era originalmente o oposto de um culto obsceno. Cf. Heráclito:
“Essas canções e danças seriam vergonhosas se não fosse o caso de que
este Dionísio, em cuja homenagem tanto dançam, ser o mesmo deus
que Hades.” O culto fálico egípcio correspondia exatamente ao pen-
samento expresso no dito de Cristo: “E há eunucos que se fizeram

565
eunucos por amor do reino dos céus.” O falo e a espada como atri-
butos da divindade correspondem, em certo nível, às forças criativas
e destrutivas da Natureza; e, num nível superior, ao dito de Cristo
acima mencionado, e a este outro: “Não vim trazer a paz, mas a es-
pada.” Descriação considerada como a conclusão transcendente da
criação; aniquilação em Deus que confere a plenitude do ser à cria-
tura assim aniquilada, plenitude que lhe é negada enquanto conti-
nuar existindo. (470-471)

A representação de Hermes em estado de ereção, com seu mis-


terioso significado, de que fala Heródoto, tem sem dúvida o mesmo
significado que aquele contido nas palavras de Ramakrishna: “Assim
como uma mulher volúvel, ao cuidar de seus afazeres domésticos, está
perpetuamente pensando no encontro que tem com seu amante –
então, da mesma forma, o que quer que estejas fazendo, nunca pares
por um momento de pensar em Deus.”
É certo que não podemos ser ao mesmo tempo avarentos e apai-
xonados como Hárpago. Isso significa, então, que o homem dispõe
apenas de um único e singular amor. Mas, nesse caso, que processo
fisiológico ocorre em alguém como Hárpago?
A doutrina de Freud seria absolutamente verdadeira se a conce-
ção por trás dela não estivesse orientada de tal forma a fazê-la absolu-
tamente falsa.
Censurar os místicos por amarem a Deus por meio da faculdade
do amor sexual é como censurar um pintor por fazer pinturas por
meio de cores compostas de substâncias materiais. Não temos nada
mais com que amar. Além disso, poderíamos muito bem dirigir a
mesma censura a um homem que ama uma mulher. Toda a doutrina
freudiana está saturada do próprio preconceito que tem por missão
combater, a saber, que tudo o que é sexual é baixo.

566
Por que a determinação de combater um preconceito é um sinal
certo de que a própria pessoa está saturada desse preconceito? Essa
determinação é necessariamente fruto de uma obsessão e constitui
um esforço totalmente vão de livrar-se dela. Nesse caso, somente a luz
da atenção pode ser eficaz e é incompatível com qualquer objetivo
polêmico.
Há um mundo de diferença entre o místico que violentamente
volta para Deus a faculdade do amor e do desejo, cuja base fisiológica
é a energia sexual, e aquela falsa imitação do místico, que, deixando
à sua faculdade sua orientação natural e fornecendo-a com um objeto
imaginário, rotula esse objeto com o nome de Deus. Discriminar en-
tre essas duas operações, a última das quais ainda pior do que a de-
vassidão, é certamente difícil, mas não impossível.
Todo apego a um objeto constitui a emissão de energia (fisiolo-
gicamente, como ocorre essa emissão em apegos que não são propri-
amente ditos serem amorosos?); o objeto restaura uma parte dessa
energia (possivelmente degradada?) emitida por ele. Quando o objeto
desaparece, a energia, conservando a mesma orientação, é emitida
num vácuo, no vazio que está abaixo, o vazio irreal, o nada. Esta é
uma morte parcial.
O desapego representa a emissão da quantidade total de energia
na direção de Deus. O símile hindu (talvez não seja apenas um sí-
mile?) do novo órgão produzido pela forma real de castidade, o desa-
pego, que faz com que a energia sexual suba até o topo da cabeça.
(Qual é a conexão entre este ponto no topo da cabeça e o “ter-
ceiro olho” e a glândula pineal?) (471-472)

Quando sofremos de dores de cabeça a ponto de todo o nosso


ser latejar de dor, as palavras de um amigo muito querido que voltou
depois de uma longa ausência não são menos infinitamente doces ao

567
ouvido. Assim é o efeito produzido pela aflição. (480)

Qualquer homem em contato com o sobrenatural é essencial-


mente rei, pois representa na sociedade a presença, na forma de algo
infinitamente pequeno, de uma ordem que transcende a ordem so-
cial.
Mas a posição que ele ocupa na hierarquia social não tem abso-
lutamente nenhuma importância. Ele é um centro de gravidade nessa
posição.
Ele é incapaz de agir, ou se o faz é como algo infinitamente pe-
queno, e sua ação é infinitamente pequena. É somente sua presença
que é infinita, transfinitamente grande.
Quanto à grandeza na ordem social, o único tipo de homem
capaz dela é aquele que conquistou uma proporção considerável da
energia que está na Grande Besta. Mas é então privado de qualquer
participação no sobrenatural.
Moisés, Josué – tal é a participação no sobrenatural daqueles
que conquistaram uma boa dose de energia social.
Israel representa a tentativa de uma forma sobrenatural de vida
social. Podemos supor que ela conseguiu produzir o melhor exemplo
de seu tipo. Isso basta. É inútil recomeçar. O resultado mostra o tipo
de revelação divina de que a Grande Besta é capaz. O Antigo Testa-
mento representa a revelação traduzida em termos sociais. Abraão
poderia muito bem humilhar-se diante de Melquisedeque.
Isaías é o primeiro a lançar alguma luz pura.
(O Justo feito sofrer – isso representa uma mistura entre o traje
do bode expiatório e as influências gregas? Este bode expiatório é de
facto uma cabra, não um cordeiro; não há nada que mostre que ele é
inocente.)

568
Roma representa a Grande Besta ateísta e materialista, ado-
rando-se apenas a si mesma. Israel representa a Grande Besta religi-
osa. Nem uma nem outra é uma visão agradável. A Grande Besta é
sempre repugnante.
A espiritualidade só pode existir em lugares onde a Grande
Besta é feita desintegrar-se; segue-se necessariamente que a vulnerabi-
lidade a perigos externos se torna assim considerável. No entanto, foi
o imperialismo, não a desordem interna, que foi a queda de Atenas
e, consequentemente, da Grécia. (481-482)

“Não vejo ninguém exceto Zeus a quem possa comparar, se devo


deixar de lado o fardo...” O próprio Deus possui um peso – isto é, o
Deus verdadeiro. É assim que ele pode ser reconhecido. Cristo colo-
cou seu peso na balança da Cruz.
Os falsos deuses às vezes também têm peso, isso é verdade –
como os dos seguidores de Cortez… Mas seu peso cai de forma dife-
rente. É imperativo discernir esta diferença.
A Encarnação é a presença daquilo que não tem peso, no meio
deste mundo de peso gravitacional, na forma de um ponto que possui
peso. (482)

Um mistério: a Necessidade é feita de condições, portanto de


possibilidades, mas é a base da realidade.
A vida humana está inteiramente ligada a mistérios tão inson-
dáveis quanto os da religião.
Nada é mais essencial do que a análise da perceção e a revelação
dos mistérios nela contidos.
“Identificação” (Mme de S.): nascemos para nos “identificar-
mos” a nós mesmos. O pecado consiste em identificarmo-nos com
aquilo que não é Deus.

569
Nunca somos nós mesmos. Somos sempre outra coisa. Não há
egoísmo. Mas essa outra coisa tem de ser Deus. Só assim podemos
realmente ser nós mesmos.
É como um ser limitado que devemos renunciar a nós mesmos,
e para isso tudo o que é necessário é reconhecermos todas as coisas
limitadas como sendo limitadas.
Se fosse pensar em tudo o que é limitado como limitado, não
haveria mais nada em meus pensamentos que emanasse do eu. Deus
e a criação estariam então em contato através de mim.
Os seres que amo são criaturas. Eles nasceram de um encontro
casual entre seu pai e sua mãe. Meu encontro com eles também é
uma questão de acaso. Eles vão morrer. O que pensam, o que sentem
e o que fazem é limitado e uma mistura de bem e mal.
Saber disso de toda a minha alma, e não os amar menos por
isso.
Contemplar a diferença entre saber e saber de toda a nossa alma.
Quando nos surpreendemos com o que havíamos previsto (coisa que
muitas vezes acontece comigo nestes tempos tempestivos), a razão é
porque não o previmos de toda a nossa alma.
Conhecer coisas e seres que são limitados como limitados, de
toda a nossa alma, e sentir um amor infinito por eles – isso é real-
mente deixar em nós mesmos uma passagem aberta para o contato
entre Deus e a criação.
Deus tem um amor infinito pelas coisas finitas como tais. (482-
483)

O sofrimento considerado como um koan. Deus é o mestre que


fornece este koan, planta-o na alma como algo irredutível, um corpo
estranho, impossível de digerir, e obriga-nos a pensar nele. O pensa-

570
mento do sofrimento não é do tipo discursivo. A mente esbarra con-
tra o sofrimento físico, a aflição, como uma mosca contra uma vi-
draça, sem poder fazer o menor progresso ou descobrir nada de novo,
e ainda assim incapaz de impedir-se de voltar ao ataque. É assim que
a faculdade da intuição é exercida e desenvolvida. Ésquilo: “Conhe-
cimento através do sofrimento.”
Tornar o sofrimento uma oferta é uma consolação e, portanto,
um véu lançado sobre a realidade do sofrimento. Mas o mesmo se
aplica se considerarmos o sofrimento uma punição. O sofrimento
não tem significado. Aí reside a própria essência de sua realidade.
Devemos amá-lo na sua realidade, que é a ausência de significado.
Do contrário, não amamos a Deus. (483-484)

Deus deu-me meu ser para que eu o devolva a ele. É como um


daqueles testes que lembram armadilhas e são encontrados em con-
tos de fadas ou histórias sobre iniciação. Se aceitar essa dádiva, ela
terá um efeito mau e fatal. A sua virtude se torna aparente por meio
de uma recusa. Deus permite que eu exista enquanto sou diferente
dele. Depende de mim recusar essa permissão.
A humildade consiste na recusa em existir. É a rainha das virtu-
des. (484-485)

A função judicial era considerada na Antiguidade como a fun-


ção essencial de um rei. E, no entanto, diz respeito apenas a alguns
casos individuais. Mas não basta que haja um rei que ame manifesta-
mente a justiça para que tudo se polarize na direção da justiça?
A ordem social só pode ser um equilíbrio de forças. Só o equilí-
brio é capaz de destruir a força, de aboli-la. O equilíbrio.
O mundo é um equilíbrio de forças. A ordem do mundo.
Uma sociedade que é inspirada pelo desejo de exagerar, adquirir

571
mais e mais é punida com bastante rapidez de forma automática.
Não importa muito que deva haver desigualdade numa socie-
dade, desde que seja impossível aumentar essa desigualdade.
Já que não podemos esperar que um homem sem a Graça seja
justo, precisamos de uma sociedade organizada de tal forma que as
injustiças automaticamente se punam umas às outras numa oscilação
perpétua.
O mesmo se aplica aos desejos que emanam da parte inferior da
alma? É assim que devemos conceber o treinamento do eu?
Na alma em equilíbrio, o centro de gravidade permanece está-
tico.
É um poste.
No campo da psicologia, existe uma verdade de ordem materia-
lista, a saber, a analogia.
Neste mundo, não existem corpos estáticos, exceto aqueles su-
jeitos a forças que se anulam.
O mesmo é verdade para a paz – tanto nas esferas sociais como
internacionais; representa duas guerras em pé de igualdade, cada
uma agindo em sentido contrário ao da outra.
E o que acontece na alma?
É a música uma representação disso?
A música não reside numa única nota, mas numa relação; e
ainda assim nos faz chorar. O homem é feito assim. Relações tocam
velozmente o seu corpo. Cf. os experimentos realizados por “behavi-
oristas” em animais: relações como excitantes dos reflexos condicio-
nais.
Uma relação nos que traz lágrimas aos olhos. – Efeito estranho.
A identidade dos opostos inconscientemente submetida consti-
tui o mal. Esta identidade devidamente entendida como tal constitui
o bem.

572
A superposição vertical de planos coexistentes que coincidem e
se transcendem produz beleza. Os opostos assim unidos representam
sua concordância completa e sua completa... [Nota do tradutor na
versão em inglês: “A frase está inacabada.”]
Essa é a ideia no Político. O verdadeiro rei ordena a sociedade de
acordo com sua própria imagem.
Os princípios limitantes e ilimitados. Em assuntos sociais, a lei
é o princípio limitador.
Quando falta a lei, a necessidade bruta atua como um princípio
limitador de tipo semelhante, mas num nível inferior. Essa seme-
lhança é obra da Providência.
Deus deixou no mundo a quantidade mínima de bem que é in-
dispensável para capacitar uma criatura pensante e carnal a conceber
o bem – o mínimo estrito. Ele colocou a maior distância possível en-
tre sua criação e Si mesmo, que é puro bem. Assim, a criação por si
mesma forma uma harmonia, uma união de opostos. A harmonia é
uma obra de amor. “Zeus, quando estava a ponto de criar, transfor-
mou-se em Amor.”
A harmonia é a essência dos mistérios da fé. (485-486)

Música. São os opostos representados pelos movimentos ascen-


dentes e descendentes?
Trata-se de tornar sensível a descida ao segundo grau – aquela
descida que representa o amor e não a força gravitacional?
A metáfora das notas “agudas” – data de quando? (486)

A busca do Bem em Platão. Somos constituídos de um movi-


mento em direção ao Bem. Mas estamos errados em buscá-lo em qual-
quer objeto particular. Todas as criaturas são o que são e boas a título
de adição; mas boas em certo aspeto, não em outro aspeto. O ouro

573
não é bom para comer, nem uma colher de ouro serve para mexer a
sopa. O bem reside apenas no nosso próprio movimento. Mas aí não
podemos agarrá-lo. Nós não somos Deus. Tudo o que podemos fazer
é deixá-lo funcionar gratuitamente.
O bem é a única coisa que realmente desejamos. Não queremos
ouro como tal, mas apenas na medida em que é bom. Mas é exata-
mente aí que erramos, por falta de uma compreensão adequada e da
capacidade de aplicar a noção de relação, de relatividade. Acredita-
mos que queremos o ouro como tal e, como resultado dessa crença,
o ouro como tal torna-se para nós não algo bom, mas algo necessário.
E somos confirmados nessa crença porque confundimos o necessário
com o bom. Tendo a impressão de que nós (ou seja, Hárpago e outros
semelhantes) não podemos continuar vivendo se um ladrão nos rou-
bar esse ouro, acabamos por considerá-lo absolutamente bom em si
mesmo. (Cf. Arnolfo e Agnes, Napoleão, o Estado, etc.)
A noção de relação é, portanto, indispensável para nos libertar
dessa ilusão. É algo à qual devemos agarrar-nos de toda a nossa alma.
O objetivo dos Livros VI e VII da República é o desapego.
Dizer que aquilo que realmente queremos é sempre e somente
o bem é como dizer que aquilo que desejamos é o desejado. É uma
declaração puramente gramatical. Desejamos aquilo que é desejável,
desejamos aquilo que se deseja, amamos aquilo que deve ser amado,
etc. Da mesma forma, o que realmente queremos é o bem. O bem
nada mais é do que o objeto de nossa vontade. Isso precisa ser colo-
cado em primeiro lugar. Posicionemos, então: o bem = o desejável.
(Defini claramente o objeto da vontade. Como todos os atos da
vontade constituem a volição, todas as coisas desejadas constituem o
bem.)
O que realmente queremos num objeto não é o todo dele, mas
o que há de bom nele. Considera o caso do pão: não o queremos

574
como algo que tem peso, que pode servir de combustível, etc., mas
como algo que nutre.
Em certo sentido, as coisas dão-nos mais do que realmente pe-
dimos; pedimos-lhes simplesmente o bem que nelas há, e elas nos
dão além dele todo o seu ser, todas as suas propriedades indissoluvel-
mente ligadas pela necessidade, por relações condicionais.
Mas elas também, em certo sentido, nos dão menos do que pe-
dimos delas. O bem nelas esgota-se, ao passo que nossa fome pelo
bem nunca se esgota. Depois de comer uma certa quantidade de pão,
o que sobra não traz mais nenhum bem para mim. Mas nunca pode-
rei ter o suficiente de bem – nunca, em nenhum momento; então
vou em busca de outro tipo de bem.
O bem não estava, portanto, no pão, mas na relação apropriada
existente entre o pão e minha fome.
Mas essa relação, também, contém apenas um bem que se es-
gota, pois é um que se anula a si mesmo. A adequação existente entre
minha fome e o pão é a plenitude, que, por sua vez, anula essa ade-
quação.
A única coisa que nunca se esgota é minha vontade de bem. O
bem puro e inesgotável reside apenas nesta própria vontade. Tudo o
que é necessário é perceber o facto.
Devemos desejar o bem única e incondicionalmente, seja ele
qual for, ou seja, nenhum objeto particular de qualquer tipo. Deve-
mos apenas querer objetos particulares sujeitos a condições. Deve-
mos desejar a vida se é para nós um bem, a morte se, etc.…, a alegria
se, etc.…, a dor se, etc.…; e tudo isso tendo consciência o tempo todo
que não sabemos realmente o que é o bem.
Em todos os nossos atos de querer, sejam eles quais forem, para
além do objeto particular, devemos querer gratuitamente, querer o

575
vazio. Pois este bem que não podemos visualizar nem definir repre-
senta para nós um vazio. Mas esse vazio significa mais para nós do
que todas as plenitudes juntas.
Se conseguirmos chegar a este ponto, estaremos sem problemas,
pois é Deus quem preenche o vazio.
Tudo isso nada tem a ver com um processo intelectual no sen-
tido em que a palavra “intelectual” é entendida hoje. A inteligência
não é chamada a descobrir nada, mas apenas a limpar o terreno. É
útil para realizar tarefas servis. (489-491)

Devemos saber que nada do que tocamos, ouvimos ou vemos,


etc., nada que visualizamos para nós mesmos, nada que pensamos é
o bem. Se pensarmos em Deus, isso também não é o bem. Tudo o
que concebemos na mente é imperfeito, como nós, e o que é imper-
feito não é o bem. [Tudo o que realizamos, ainda mais.]
O bem representa para nós um nada, pois nenhuma coisa é boa
em si mesma. Mas esse nada não é um não-ser, não é algo irreal. Tudo
o que existe é irreal comparado com ele. Esse nada é pelo menos tão
real quanto nós mesmos. Pois o nosso próprio ser nada mais é do que
essa necessidade de bem. O bem absoluto reside inteiramente nessa
necessidade. Mas não podemos ir e agarrá-lo ali.
Tudo o que podemos fazer é amar gratuitamente. Mas, como
precisamos de objetos sensíveis, amamos os seres e coisas finitos e
limitados que estão ao nosso redor; não, entretanto, como seres e
coisas dignas de amor, mas como indignas dele. “Se alguém vier até
mim e não odiar...” O amor sem objetos sensíveis é um amor imagi-
nário. (“Quem não ama a seu irmão, a quem viu, como pode amar a
Deus, a quem não viu?”) O amor que esconde de nós a ausência do
bem entre as criaturas não chega a Deus. É por isso que temos de
saber “o quanto a essência do necessário difere da do bem.” Agora,

576
tudo o que existe, sem exceção, está sujeito à necessidade – mesmo
as manifestações do sobrenatural enquanto manifestações. Tudo aqui
em baixo é necessidade, está contaminado pela força e, consequente-
mente, é indigno de amor.
Este mundo é a porta fechada. É uma barreira e, ao mesmo
tempo, uma passagem.
Se queremos apenas o bem absoluto, isto é, se rejeitamos todo
bem existente ou possível, sensível, imaginário ou concebível que nos
é oferecido pelas criaturas por ser insuficiente; se preferirmos não
escolher nada em vez de tudo isso, então (com o tempo), voltando-
nos para aquilo que não podemos conceber, uma revelação dele vem
a nós – a revelação de que esse nada é realmente a plenitude mais
plena possível, a fonte principal e princípio de toda a realidade. En-
tão, podemos verdadeiramente dizer que temos fé em Deus.
A dificuldade é que as formas limitadas de bem – modos de
vida, satisfação das necessidades materiais, a nossa família, amigos,
etc. – tudo isso nos é necessário; é delas que retiramos a nossa energia
vital. Tudo isso constitui alimento, e onde falta tal alimento produz-
se uma fome real. Achamos difícil conceber que aquilo que é neces-
sário para nós não seja automaticamente bom.
“Mas, milorde, eu tenho de viver de alguma forma! – Não vejo
necessidade disso.”
Devemos aceitar completamente a morte como uma aniquila-
ção.
A crença na imortalidade da alma é prejudicial porque não está
em nosso poder visualizar a alma como realmente incorpórea. Con-
sequentemente, essa crença é de facto uma crença no prolongamento
da vida e tira o uso prático da morte.
Um ente querido morre e, como resultado, sofremos uma dimi-
nuição genuína. Mas não há diminuição na quantidade de bem

577
quando sofremos uma diminuição.
Enquanto estamos vivos, continuamos a sentir desejo; e esse
mesmo desejo é o bem mais completo possível se o impedirmos de se
concentrar numa direção particular, de se subordinar a um objeto
particular que é apenas fracamente representativo do bem.
Na verdade, esse desejo é invariavelmente direcionado para o
que é necessário.
Consideramos tudo que aumenta nossa energia como um bem.
Mas estritamente não existe conexão entre eles. Nossa energia é ape-
nas um meio.
Devemos renunciar à existência.
Retornar do movimento em linha reta ao movimento circular.
Querer apenas direcionar nossos passos para acima – na direção
em que é impossível ir.
Querer o impossível. Abraçar o absurdo com a mente. Amar o
mal.
Procuramos tudo aquilo que aumenta nosso poder. Mas o poder
é apenas um meio. Amamos as coisas por nós mesmos. Mas não nos
satisfazemos com aquilo que somos. O desejo continuamente faz-nos
sair de nós mesmos. É um movimento alternante.
O movimento alternante é a imagem do movimento circular.
Este mundo – o domínio da necessidade – não tem absoluta-
mente nada a oferecer-nos, exceto uma série de meios. O bem relativo
representa os meios. A nossa vontade é jogada incessantemente de
um lado para o outro, de um meio para outro, como uma bola de
bilhar.
Todos os desejos são contraditórios, como o desejo por comida.
O bebê no peito pensa que o leite representa o bem. Se lhe dis-
sessem que um dia ele não terá mais vontade de sugar…
Aqueles que colocam sua vida fora de seus próprios corpos são

578
realmente mais fortes do que os outros, que parecem ser invulnerá-
veis…. Mas o destino descobre onde sua vida está guardada e os esva-
zia.
O homem que coloca sua vida na fé em Deus pode perder sua
fé. Mas o homem que coloca sua vida no próprio Deus – ele nunca a
perderá.
Devemos colocar nossa vida em algo que não podemos tocar sob
qualquer consideração. É impossível. É uma morte. Significa não es-
tar mais vivo. E isso é exatamente o que queremos. (491-494)

Amor. Eu quero que aquele que eu amo me ame. Mas se estiver


totalmente dedicado a mim, ele não existe mais. Deixo de amá-lo –
meu amor está satisfeito. Mas, enquanto não estiver totalmente dedi-
cado a mim, acho que não me ama o suficiente.
Ou então: supondo que eu queira seu bem pessoal. Mas qual
será esse bem? O que eu visualizo para mim mesmo como sendo o
seu bem? Mas ele não quer nada disso. (Ou se ele for completamente
submisso, não o amo mais.) Ou ainda, supondo que eu queira tudo
o que ele deseja? Nesse caso, as mesmas questões que surgiram em
relação ao meu desejo surgem agora em relação ao dele. O que ele
deseja? Ele ama alguém? Etc. (494)

O “meio-termo feliz” é exatamente aquilo que é mais contrário


à união dos opostos. (494)

Ao colocar todo o nosso desejo de bem num objeto, tornamos


esse objeto, para nós, uma condição de existência. Mas isso não sig-
nifica que, com isso, o tornamos um bem, pois nossa existência não
é um bem. Sempre queremos algo mais do que simplesmente existir.
(494)

579
O amor conforme representado no Fedro. A bela juventude
constitui um koan para a faculdade de amar, como a declaração in-
compreensível para a faculdade do saber. Como faculdades especiais,
ficam exaustas, e essa exaustão representa a salvação.
O mal em nós é finito; temos apenas de cortar o canal pelo qual
vem até nós e, pouco a pouco, será destruído.
Somos capazes de transportar esse desejo do bem, que é a nossa
existência, para qualquer coisa; mas na medida em que é existência,
não na medida em que é bom.
Don Juan pensa que realmente será possível amar a próxima
mulher. Consequentemente, ele nunca entende nada. O avarento
pensa que, quando seu tesouro ficar maior, será realmente um bem
que vale a pena ter. O homem ambicioso pensa da mesma forma.
O tesouro é aquilo que permite ao avarento continuar existindo,
mas o avarento deseja outra coisa do que simplesmente continuar
existindo.
O avarento quer continuar existindo apenas para o tesouro, que
é sua condição de existência.
A finalidade salta de um lado para o outro entre o avarento e
seu tesouro como uma bola faria se passasse indefinidamente de um
lado para o outro entre duas paredes sem afrouxar devido à resistên-
cia do ar.
Um afrouxamento semelhante ocorreria entre o avarento e seu
tesouro se o tesouro não fosse suscetível de um aumento ilimitado.
Todas as coisas criadas neste mundo, eu incluída, recusam-se a
ser fins para mim. Essa é a extrema misericórdia de Deus para co-
migo. Mas isso em si constitui o mal. O mal é a forma que a miseri-
córdia de Deus assume neste mundo.

580
O poder é o puro meio. Por isso mesmo representa o fim su-
premo no caso de todos aqueles que não entenderam.
A inversão de meios e fins, que é a própria essência de todo o
mal na sociedade, é inevitável, pela muito boa razão de que não há
fim algum. Consequentemente, o meio é considerado um fim.
“Estamos perfeitamente dispostos a aceitar a ilusão, a aparência,
em todas as coisas, exceto no que diz respeito ao bem. Mas quando
se trata do bem, temos de ter a realidade.” Consequentemente, do
bem procede a verdade.
Os objetos sensíveis são reais como objetos sensíveis, mas irreais
como manifestações do bem.
A existência só pode ser considerada como um fim quando es-
tamos de costas para a parede e o pelotão de execução está prestes a
disparar. Mas quando a nossa vida não está de forma alguma amea-
çada, a existência é tida como certa e o fim está noutro lugar.
A existência é apenas um fim do ponto de vista da energia vege-
tativa, que segue seu curso subterrâneo silencioso e só sobe à super-
fície ao toque da mão fria do medo.
(O ato de matar empurra-a de novo para as profundezas – mas
qual é o mecanismo envolvido?)
Somente quem ama a Deus com um amor sobrenatural é capaz
de considerar os meios simplesmente como meios, de tudo aquilo
que existe aqui simplesmente como a manifestação da necessidade.
(É algo ímpio aplicar a noção de finalidade aos fenômenos do
mundo sensível. Só lhes devemos aplicar a noção de condição de exis-
tência.)
A necessidade é a essência da realidade das coisas deste mundo.
Em outras palavras, sua essência é condicional. Sua essência reside
em não serem fins. Sua própria realidade consiste no facto de não
serem elas manifestações do bem.

581
Assim como Deus é um bem que nada mais é do que um bem,
a matéria nada mais é do que um não-bem.
Sempre confundimos, por engano, necessidade com desejo. Se
sofrer uma dor física muito intensa, preciso de um alívio; mas nada
me obriga a desejar tal alívio. Da mesma forma, preciso que aqueles
a quem amo me amem e me tenham em consideração; mas por que
deveria eu desejar tal coisa? O mesmo se aplica no caso da considera-
ção social, etc.
Eu mesma não sou nada mais do que uma manifestação do não-
bem.
Outros seres humanos estão numa situação semelhante. (494-
496)

Se meus olhos estão enfaixados, se minhas mãos estão presas


por correntes a um pedaço de pau, esse pedaço de pau me separa das
coisas, me impede de tocá-las, mas com a sua ajuda posso explorá-las.
Só consigo sentir o pau, só consigo perceber a parede ao redor. O
mesmo se aplica às criaturas no que diz respeito à faculdade de amar.
O amor sobrenatural toca apenas as criaturas e é dirigido apenas a
Deus. Ele só ama criaturas – o que mais temos para amar senão Ele?
– mas as ama como intermediários. Como intermediários, ele ama
todas as criaturas igualmente, inclusive a nós mesmos. (Amar os ou-
tros como a si mesmo implica em contrapartida: amar a si mesmo
como algo estranho, da mesma forma que uma coisa estranha.)
A essência das coisas criadas é ser intermediários.
Atuam como intermediários entre si, e sempre será assim. Elas
também agem como intermediários para Deus.
Devemos experimentá-los como tais na tríplice categoria de co-
nhecimento, amor e ação.
(A espiritualidade do trabalho. O trabalho faz-nos experimentar

582
de forma angustiante o fenômeno da finalidade como nos lançando
um lado para o outro como uma bola: trabalhar para comer, comer
para trabalhar. Se olharmos para qualquer um desses como um fim,
ou cada um como um fim tomado separadamente, estamos perdidos.
A verdade está no ciclo.)
Um esquilo girando na sua gaiola e a rotação da esfera celeste:
de um lado, miséria suprema; de outro, esplendor supremo.
É justamente quando o homem se vê como um esquilo girando
numa gaiola que, desde que não minta para si mesmo, está perto da
salvação.
O cachorro perseguindo a própria cauda.
Significado simbólico do labirinto.
As pessoas acham que, caminhando na horizontal, progridem.
Mas não progridem. Elas caminham em círculo. Só podemos progre-
dir verticalmente. (496-497)

Opostos. Hoje em dia, as pessoas têm sede e estão nauseadas


pelo totalitarismo; e quase toda a gente ama um tipo de totalitarismo
e odeia outro tipo.
Haverá sempre, portanto, uma identidade entre aquilo que ama-
mos e aquilo que odiamos? Quando odiamos uma coisa, sentimos a
necessidade de amá-la de alguma outra forma e vice-versa? (497)

Amor no Fedro. Não exerce nem sofre a força. Isto constitui a


única pureza. O contato com a espada causa a mesma contaminação,
seja através do punho ou da ponta. Para aquele que ama, sua frieza
metálica, venha o contato pelo cabo ou pela ponta, não destruirá o
amor, mas dará a impressão de estar abandonado por Deus. O amor
sobrenatural não tem contato com a força, mas também não protege
a alma contra a frieza da força, a frieza do aço. Somente um apego

583
terreno, se contiver em si energia suficiente, pode oferecer proteção
contra a frieza do aço. A armadura, como a espada, é feita de metal.
O assassinato congela a alma daquele que ama apenas com um amor
puro, seja ele seu autor ou sua vítima; e, de facto, tudo aquilo que,
sem ir tão longe quanto a morte real, constitui violência. Se quiser-
mos ter um amor que proteja a alma das feridas, devemos amar algo
diferente de Deus. (497)

Imaginemos dois presos, em celas vizinhas, que se comunicam


por meio de torneiras na parede. A parede é o que os separa, mas é
também o que os permite comunicar. É o mesmo connosco e com
Deus. Cada separação representa um vínculo. (497)

A pureza absoluta consiste na ausência de todo contato com a


força. A imagem de pureza consiste num equilíbrio de forças. A pu-
reza absoluta não significa nem sofrimento nem exercício de força. A
imagem dessa pureza está em sofrer e exercer força em tais proporções
que se estabelece uma espécie de equivalência.
Daí a necessidade de fazer outras pessoas pagarem por cada vio-
lência que nós sofremos.
E o que dizer daqueles que estão na base da escala social? De
que forma podem exercer força? Eles têm de ter algum tipo de parti-
cipação nela, caso contrário, degradam-se.
Entre aqueles que são continuamente submetidos à força, existe
uma sede insaciável de exercê-la.
(E no caso de quem a exerce, é verdade que “aspira a descer”?)
(498-499)

Amor, conhecimento, ação são todas elas coisas divinas coloca-


das por Deus num ser finito de maneira a formar a essência desse ser,

584
mas que são impossíveis para ele. (498)

O camponês de São Marcel, um viúvo. – Se não temos um ser


humano para amar, por quem viver, a vida não vale a pena. – Mas se
a vida humana não vale a pena, como podemos dar valor à nossa vida
associando-lhe a vida de outra pessoa como um fim? E para qual fim,
então, vive essa outra pessoa? Se vivo para alguém e esse alguém vive
para mim, estou vivendo para mim e de volta à minha solidão. (498)

Ações efetivamente realizadas, mas ainda assim imaginárias. Por


exemplo, um homem tenta o suicídio, falha na tentativa e não fica
mais desapegado depois do que estava antes; seu suicídio foi imagi-
nário. Sem dúvida o suicídio é sempre imaginário, por isso é proi-
bido. (498)

Na realidade, o homem apenas se submete à força e nunca a


exerce de facto, quaisquer que sejam as circunstâncias. A habilidade
de exercer força é uma ilusão; ninguém possui essa habilidade; a força
é um mecanismo. O diabo preside a esta ilusão (cf. São Lucas). A
força é uma pura concatenação de condições. Cada homem está su-
jeito ao peso de todo o universo. É apenas o mundo além do qual
pode agir como um contrapeso. A Cruz é a balança. (499)

A liberdade sobrenatural deve existir, mas sua existência assume


a forma de algo infinitamente pequeno. Toda realidade sobrenatural
aqui em baixo é algo infinitamente pequeno que aumenta exponen-
cialmente.
O silêncio na música, entre as notas, representa esse algo infini-
tamente pequeno.

585
O tipo de música mais belo é aquele que confere a máxima in-
tensidade a um momento de silêncio, que obriga o ouvinte a escutar
o silêncio. Em primeiro lugar, por meio do arranjo sucessivo de sons,
ele é levado a um estado de silêncio interior, ao qual é adicionado o
silêncio exterior.
O compositor deve ser o primeiro a saber escutar o silêncio –
usando essas palavras no seu sentido absolutamente literal; ter sua
atenção inteiramente absorvida pela faculdade de audição e concen-
trada na ausência de ruído.
Depois do silêncio – a passagem pelo transcendente – o movi-
mento descendente é soberano.
Para começar, o movimento ascendente varre tudo antes dele, e
as descidas intercaladas são gravitacionais; então chega o momento
em que a descida é uma de Amor.
Não encontramos esse mesmo movimento de dupla descida na
estatuária grega?
Não é o movimento descendente duplo a chave de toda a arte?
(500-501)

O mal só pode ser purificado por Deus. O mal tem de ser puri-
ficado, caso contrário a vida é impossível. Deus tornando o mal puro
– essa é a ideia por trás do Gita. É também a ideia que anima Moisés
e Josué, as Cruzadas, a conceção do hitlerismo. (Hitler considerado
pelos jovens como uma encarnação.) Mas essas são duas formas es-
sencialmente diferentes de purificação! Diferentes de que maneira?
Jeová, a Igreja da Idade Média, Hitler – todos esses são deuses
terrenos. A purificação que efetuam é imaginária.
Os erros de nosso tempo são o resultado do Cristianismo sem o
elemento sobrenatural. Isso deve-se ao “laicismo” (secularização) e,
em primeiro lugar, ao humanismo. (501-502)

586
A ideia central e fundamental em Platão é a do Bem. “O bem é
aquilo que toda alma busca e o fim de todas as suas ações, tendo um
pressentimento de que é alguma coisa definida (real), mas hesitante
e incapaz de compreender com suficiente segurança o que essa coisa
realmente é.” É dado no próprio movimento da alma. Entender isso
significa salvação. A ideia central e fundamental nos Upanishads é a
do Atman. “Devemos amar nossa esposa por causa do Atman, nossos
filhos por causa do Atman, nossas riquezas por causa do Atman.…
Somente o Atman é precioso.” Esta é exatamente, identicamente a
mesma ideia. As tradições grega e hindu representam a mesma coisa.
Devemos conceber a identidade das várias tradições, não as re-
conciliando pelo que têm em comum, mas apreendendo a essência
do que é específico em cada uma. Pois esta essência é uma e a mesma.
(502)

Para purificar o mal, existe apenas Deus ou então a Besta Social.


O Anticristo é a encarnação da Besta Social. A purificação consiste
em licenciosidade ilimitada. Tudo é permitido no serviço da Besta.
Tudo é permitido também no serviço de Deus. A única coisa é que
não podemos servir a Deus, que está noutro lugar, no céu.
Tudo o que desejamos fazer é deixar de lado o fardo insuportá-
vel do par de opostos Bom-Mal – o fardo assumido por Adão e Eva.
Para poder fazer isso, devemos ou confundir “a essência do ne-
cessário com a do bem” ou então sair deste mundo. (504)

Patriotismo. Não devemos ter outra forma de amor senão a ca-


ridade. Uma nação não pode ser objeto de caridade. Mas um país
pode ser, como fonte ambiental de tradições eternas. Todos os países
podem sê-lo. (504)

587
A escravidão é um crime, assim como o assassinato e o estupro,
porque estabelece uma relação entre os homens que só é apropriada
entre Deus e o homem. Só Deus tem o direito de matar, violar, redu-
zir à escravidão as almas dos homens. E é uma violência que deve ser
desejada acima de todas as formas possíveis de bem.
O totalitarismo moderno é para o totalitarismo católico do sé-
culo XIII o que o espírito do secularismo e da maçonaria é para o
humanismo da Renascença. A humanidade torna-se mais degradada
a cada balanço do pêndulo. Até onde irá esse processo? (504)

A atenção voltada com amor para Deus (ou, em menor grau,


para qualquer coisa que seja verdadeiramente bela) tem o efeito de
tornar certas coisas impossíveis. Tal é a ação não-ativa da oração na
alma. Existem certas formas de comportamento que cobririam essa
atenção, caso se manifestassem, e que tal atenção torna correspon-
dentemente impossível.
O serviço ao falso Deus (da Besta Social em qualquer forma)
purifica o mal, eliminando seu horror. Nada parece – ou pelo menos
não deveria mais parecer – mau para quem serve ao falso Deus, ex-
ceto lapsos no desempenho de seu serviço. O serviço do Deus verda-
deiro permite que o horror do mal subsista e até o torna mais intenso.
Enquanto tendo horror deste mal, ao mesmo tempo o amamos como
emanando da vontade de Deus.
A idolatria deve-se ao facto de que, embora desejosos do bem
absoluto, não possuímos atenção sobrenatural; e não temos a paciên-
cia para deixá-lo crescer.
A pureza purifica o mal; a força também, mas de outra maneira.
Tudo é permitido àquele que tudo pode fazer. Aquele que serve um
Ser Todo-poderoso pode fazer tudo por meio dele. A força liberta-o

588
do par de opostos Bem-Mal. Libera aquele que a exerce e mesmo
aquele que está sujeito a ela. Ninguém faz mal a um escravo. O pro-
prietário de um escravo possui licença completa. Também o escravo,
exceto na medida em que está sob coação (cf. Plauto, como prova
disso). A espada nas duas pontas, no punho e na ponta, liberta da
obrigação, que é o fardo insuportável. A graça também pode libertar,
mas só vamos em direção a ela pela via da obrigação. Nós escapamos
daquilo que limita ou por uma ascensão à unidade ou por uma des-
cida ao sem-limite.
O totalitarismo é uma forma substituta de Cristianismo.
O Cristianismo tornou-se um agente totalitário, conquistador e
destruidor porque não conseguiu desenvolver a noção da ausência e
não-ação de Deus aqui em baixo. Apegou-se tanto a Jeová quanto a
Cristo, e concebeu a Providência segundo o estilo do Antigo Testa-
mento. Somente Israel foi capaz de resistir a Roma, porque se asse-
melhava a Roma; e assim aconteceu que o Cristianismo recém-nas-
cido foi contaminado por Roma antes mesmo de se tornar a religião
oficial do Império. O mal feito por Roma nunca foi verdadeiramente
reparado.
O mesmo é verdade no caso de Alá, mas em menor grau, porque
os árabes nunca se tornaram um Estado. O tipo de guerra da qual ele
é o Deus é a razia. (504-505)

A caridade pode e deve amar, num país, tudo aquilo que é con-
dição do desenvolvimento espiritual dos indivíduos que ele contém,
isto é, por um lado a ordem social, mesmo que má, como sendo me-
nos má que a desordem, e, por outro lado, a linguagem, as cerimô-
nias, os costumes, etc. – tudo que compartilha da beleza, toda a poe-
sia que envolve a vida de um país. Podemos e devemos amar todos os
países dessa maneira, mas temos obrigações especiais para com os

589
nossos, em particular.
Mas uma nação como tal não pode ser objeto de amor sobrena-
tural. Não tem alma. É simplesmente uma Grande Besta. (506)

O pecado que está em nós sai de nós e propaga-se exteriormente,


por contágio, na forma de pecado. Assim, quando nos sentimos irri-
tados, o ambiente também fica irritado. Ou ainda, nas relações entre
superior e inferior, um temperamento violento da parte do primeiro
gera medo da parte do segundo. Mas quando entramos em contato
com um ser perfeitamente puro, uma transmutação é efetuada e o
pecado é transformado em sofrimento. O ser perfeitamente puro
transforma em sofrimento toda aquela parte do pecado do mundo
que o atinge. Essa é a função do Justo em Isaías, do Cordeiro de
Deus. Esse é o sofrimento redentor. Toda a violência criminosa do
Império Romano (pois era por terem medo de Roma que as pessoas
agiam como agiam) colidiu violentamente com Cristo, e nele tornou-
se puro sofrimento. Seres maldosos, por outro lado, transformam o
sofrimento comum (por exemplo, doença) em pecado.
Segue-se, talvez, que o sofrimento redentor tem de ser de origem
social. Uma doença comum não pode constituir sofrimento reden-
tor. O sofrimento redentor deve ser injustiça, violência exercida por
seres humanos. Tem de consistir em ser submetido à força.
Dentro da alma, a oração e o Sacramento devem transmutar o
pecado em sofrimento. (506)

O falso Deus transforma o sofrimento em violência: o verda-


deiro Deus transforma a violência em sofrimento.
São coisas da mesma ordem que a transmutação do desejo em
contemplação e a da aversão em puro sofrimento. Nem um nem ou-
tro podem ser realizados exceto por Deus.

590
Num poema como a Ilíada, há uma transmutação da violência
em sofrimento pelo poeta. Há uma participação na obra de redenção.
Por natureza, buscamos o prazer e fugimos do sofrimento. É uni-
camente por isso que a alegria serve como imagem do bem e a dor
como imagem do mal. Daí a imagem do paraíso e do inferno. Mas,
na verdade, na nossa vida atual, prazer-dor são um par de associados
inseparáveis.
Já neste mundo existem algumas dores quase infernais e alguns
prazeres quase infernais; pois existem algumas alegrias quase divinas
e alguns sofrimentos quase divinos.
Talvez, no momento da morte, a alma santa seja preenchida com
uma infinidade de alegria divina e ao mesmo tempo com uma infini-
dade de pura dor que a faz explodir e desaparecer na plenitude do
ser; enquanto a alma perdida vê-se a si mesma dissolver no nada com
uma mistura de horror e complacência medonha. (507)

Se podemos, por transposição analógica, falar de alegria perfeita


em Deus, por que não também de sofrimento perfeito em Deus? Bem
à parte até mesmo da Encarnação. É o que Platão indica pela disper-
são e crucificação da Alma do Mundo. Não é a distância que separa
a criação do Criador irremediavelmente dolorosa? Não é o movi-
mento descendente um de sofrimento?
É essa noção de sofrimento perfeito em Deus que concebemos
sob o nome de compaixão. A compaixão divina é para a forma mais
pura de sofrimento humano o que a alegria divina é para a forma
mais pura de alegria humana.
Num ser que é suficientemente puro para participar da Reden-
ção, a dor física é sentida diretamente, imediatamente como compai-
xão. É a compaixão que dilacera a carne; ou melhor, o único efeito
que a laceração da carne tem é transfixar a alma com compaixão.

591
O homem possui (talvez?) o poder de transformar toda a sua dor
em pecado e, portanto, de não sofrer. Como o gigante que escondeu
sua vida num ovo, que está no..., etc., que está num lago distante.
A pureza não é invulnerável enquanto pureza, no sentido de que
nenhuma violência pode torná-la menos pura; mas é eminentemente
vulnerável no sentido de que todo ataque do mal a faz sofrer, todo o
mal que a atinge passa para ela como sofrimento. (507-508)

Um ato bom é aquele que em determinada situação seria reali-


zado por Deus encarnado. (509)

Deus é a fonte de luz; isso significa dizer que todos os diferentes


tipos de atenção são apenas formas degradadas de atenção religiosa.
Só em Deus podemos pensar com a maior atenção possível. Por outro
lado, somente com a maior atenção possível é que podemos pensar
em Deus. Aqueles que são incapazes de tal atenção não pensam em
Deus, mesmo que chamem aquilo no qual estão pensando de Deus.
Mas se perceberem que não estão pensando em Deus e realmente
desejam fazê-lo, a graça ajuda-os a concentrar sua atenção cada vez
mais, e aquilo no qual pensam fica cada vez mais perto de Deus.
O maior êxtase é a atenção na sua plenitude.
É por desejar a Deus que alguém se torna capaz de atenção.
Deus é a fonte da realidade; isso significa dizer que a essência da
realidade está na beleza ou adequação transcendente.
Sem dúvida o universo sensível é feito de tal forma que se um
infusório, ou então uma estrela, fosse dotado do poder de raciocinar,
cada um, à sua medida, gostaria que encontrássemos o mundo per-
feitamente, inesgotavelmente belo. Mas só podemos confiar. Apesar
dos telescópios e microscópios, não podemos deixar nosso lugar na
escala das coisas. Por definição, tudo aquilo que vemos é cortado à

592
nossa medida.
O simbolismo dissolveria a realidade do mundo, se não se ins-
crevesse na própria necessidade. Assim inscrito, ele realiza essa reali-
dade. (515)

Existem duas coisas que nos vêm de fora, a necessidade e o bem;


e elas nos chegam juntas.
Na necessidade condicional, nenhum limite está inscrito. A se-
quência de condições é ilimitada. O limite só se inscreve na relação
entre várias condições que se compensam, numa ordem.
Talvez haja uma ordem do mundo correspondendo a cada lugar
na escala das coisas. Aquele que podemos apreender é como um de-
sign que encontraríamos na secção de um toco de árvore depois de
serrada. Em qualquer outro lugar, também teríamos encontrado um
design; um design diferente, mas não menos um design. Nosso uni-
verso é uma secção recortada do universo num ponto correspon-
dente às dimensões e estrutura do nosso corpo. Consequentemente,
o universo só pode ser conhecido por nós subjetivamente, como tam-
bém é o caso de nosso organismo; mas a adequação que une os dois
é um facto. (515-516)

A atenção voltada para aquilo que pode estar presente sem a


ajuda da atenção é de um tipo misto; há uma mistura de atenção e
impressão. Atenção absolutamente pura – atenção que nada mais é
do que atenção – é a atenção dirigida a Deus; pois ele só está presente
na medida em que existe tal atenção.
Assim como o bem, que nada mais é do que o bem, cuja única
existência consiste em ser o bem, é Deus; da mesma forma, o tipo de
atenção que nada mais é do que atenção é a oração.
A atenção é aquilo que se apodera da realidade, de modo que

593
quanto maior a atenção por parte da mente, maior a quantidade de
ser real no objeto.
As relações matemáticas não constituem quase nada sem aten-
ção (mas algo, mesmo assim; só Deus é que nada constitui sem aten-
ção). Algo melhor ainda são as relações entre essas relações (por exem-
plo, conceber a coincidência entre duas propriedades do círculo en-
quanto seu método de prova está presente na mente). E assim por
diante, de acordo com um padrão arquitetónico composto de dese-
nhos sobrepostos verticalmente. Quando o limite da atenção é atin-
gido desta forma, devemos fixar o olhar da alma naquele limite com
o anseio por aquilo que está além dele. (Isso não representa o mesmo
que o limiar da Caverna?) A graça cumprirá o resto, fazendo com que
alguém suba e apareça.
A atenção está intimamente relacionada com o desejo – não
com a vontade, mas com o desejo. (Ou, mais precisamente com o
consentimento; constitui consentimento. É por isso que está intima-
mente relacionada com o Bem.)
É o Amor que ensina os deuses e os homens, pois ninguém
aprende sem o desejo de aprender. A verdade é buscada não na me-
dida em que é verdade, mas na medida em que é Boa.
Cada coisa buscada não é buscada por si mesma, mas na medida
em que é Boa. Só o Bem é buscado por si mesmo. Assim, só o Bem
é absoluto.
A inversão do que é objetivo e do que é subjetivo.
Da mesma forma, a inversão do que é positivo e do que é nega-
tivo. Aqui reside também o significado da filosofia encontrada nos
Upanishads.
Nascemos e vivemos mal, pois nascemos e vivemos em pecado,
o que é uma inversão da ordem hierárquica. A primeira operação tem
de ser de reversão. Conversão.

594
De todas as coisas que não são o Bem, realidade e verdade são
as únicas relacionadas com o Bem. Pois quando queremos o Bem, o
queremos na sua realidade, não na sua aparência; e queremos possuí-
lo conscientemente, não inconscientemente. (527-528)

Maravilhosa coincidência entre a relação entre um ponto que se


move ao longo de uma circunferência e sua projeção no diâmetro, a
cuja projeção está ligado por um segmento que representa a média
proporcional entre as partes determinadas no diâmetro, e a relação
entre o Ato Divino, encerrado sobre si mesmo, nossos atos oscilantes
e mediação. Pitágoras poderia, com razão, oferecer um sacrifício aos
deuses.
Um movimento só é limitado se for a projeção de um movi-
mento circular.
O limite é imposto às coisas de fora. (528)

O Simpósio – O Amor é algo LÍQUIDO.


“Pois, se fosse algo sólido, não poderia entrar furtivamente nas
nossas almas, entrando e saindo delas, para começar, sem que per-
cebêssemos.”
Os filósofos da escola eleata – como Heráclito, como Platão –
foram mal compreendidos, porque nunca lhes ocorreu a ideia de ser
o objeto no qual seus pensamentos se fixavam outra coisa senão
Deus. (529)

O discurso de Aristófanes. O amor, que repara o pecado origi-


nal, acaba com a dualidade. “Cada um de nós é o símbolo de um ho-
mem (um símbolo sendo um sinal de reconhecimento constituído
por um objeto cortado ao meio), fazendo dois de um, como a solha

595
– e cada um de nós está sempre buscando seu símbolo.”
A unidade do homem é transcendente em relação à pessoa, como
no caso da Trindade.
Homens que têm a mulher como “símbolo”, a mulher que tem
o homem como “símbolo”, encontram sua unidade no ato carnal.
Os restantes não conseguem. Eles são os místicos. Os outros são adúl-
teros. (Portanto, a fidelidade conjugal já é uma forma de castidade.)
O homem foi dividido em dois como a Alma do Mundo.
O amor é o médico do pecado original.
Aos olhos de Platão, o amor carnal é uma imagem degradada
do amor verdadeiro; o amor humano que é casto é uma imagem me-
nos degradada dele. A ideia de sublimação é uma que só poderia ter
surgido em nossa atmosfera contemporânea de estupidez.
Simpósio, 193 – “Ninguém se oponha ao Amor. Aquele que se
opõe ao Amor é inimigo dos deuses. Mas se entrarmos num discurso
amigável com Deus, teremos sucesso em fazer contato com os verda-
deiros amores que buscamos.”
Amor e Bem estão inter-relacionados.
A fertilidade é de uma natureza ou corporal ou espiritual.
“Ele nunca irá gerar o que é feio.” Nunca geramos o que é feio.
Não há procriação sem alegria. A fonte de alegria só pode ser algo
real.
União de opostos: composição em pelo menos dois planos so-
brepostos verticalmente. Coisas opostas no primeiro plano tornam-
se um no segundo. (Assim, se numa imagem há uma continuidade
nas linhas e uma oposição nas cores – mas o exemplo talvez seja mau.)
Duas linhas de poesia que rimam, cujas formas correspondem e que
se opõem no significado? Ou o contrário? – Se a função dos dois
planos for transposta, um novo tipo de harmonia é adicionado. Os
vários tipos de harmonia devem ser empilhados uns aos outros até o

596
limite de seu poder de atenção.
A atenção insiste em haver uma duração; é por isso que não se
pode dedicar atenção ao que está em processo de mudança. (Experi-
ência: olhar para a água.) Na prática, conseguimos deixar de lado as
pequenas diferenças que existem; mas, nesse caso, a pessoa não está
de acordo com a verdade.
Certamente, uma página coberta com traços de lápis não é um
objeto mais belo do que o universo; mas é um objeto cortado à nossa
medida. (528-531)

A “noite escura” – no caso de todas as coisas, só o que nos chega


de fora, gratuitamente, de surpresa, como um dom do Destino, sem
que o tenhamos procurado, é pura alegria. Da mesma forma, o ver-
dadeiro Bem só pode vir de fora, nunca como resultado de nosso
próprio esforço. Jamais podemos, em nenhuma circunstância, pro-
duzir algo que seja melhor do que aquilo que realmente somos. Con-
sequentemente, nosso esforço genuinamente estendido na direção
do Bem não deve ter sucesso; é depois de um esforço prolongado e
infrutífero terminando em desespero, quando já não esperamos
nada, que de fora vem o dom, gratuitamente, como uma surpresa
maravilhosa. Nosso esforço tem sido o meio de destruir parte da falsa
plenitude que existe em nós; e o vazio divino, mais pleno do que
qualquer plenitude, veio habitar em nós. (531)

Filebo. A dor é a dissolução da harmonia. Resulta do desapare-


cimento da unidade que unia os opostos. Essa unidade que existia
no corpo desaparece dele, e o conflito entre os opostos penetra na
alma, onde o sentimento de impossibilidade é produzido. Mas a alma
que ama é então forçada a empreender a reconstrução da unidade
dos opostos dentro de si, para realizar, impelida pela graça de Deus,

597
mas em cooperação com Ele, o que Deus havia realizado no corpo
inteiramente sem o auxílio da alma. Quanto maior o número e o
significado dos opostos desconectados que entram na alma, mais ela
deve, para amar e por amor, começar de novo e imitar a obra de Deus.
Deus então refaz na alma, e em conjunto com ela, o que ele havia
feito anteriormente sem sua ajuda. É por isso que a Cruz é a porta de
entrada para as profundezas da sabedoria de Deus.
Em Deus, no ponto em que os dois opostos, Poder e Amor, es-
tão separados, existe uma angústia suprema. (A inimizade entre Zeus
e Prometeu é uma imagem dela.) Como vão o Deus Altíssimo e este
cadáver crucificado reunir-se de novo?
Para que haja um modelo perfeito, ideal da reunião dos opostos,
é necessário que a unidade dos dois opostos supremos seja interrom-
pida. O Espírito Santo retirou-se por um momento de Cristo. É assim
que a Paixão constitui ao mesmo tempo a Redenção.
O pecado é a dissolução do vínculo entre a criatura e o Criador.
A Palavra recapitula esta rutura divinamente e sem pecado, fazendo-
o ao mesmo tempo no vínculo fundamental, e repara os dois.
A dor, ao nos obrigar a associar-nos à ação harmonizadora de
Deus, só repara o pecado que nos separou de Deus.
Nós nos separamos de Deus pelo desejo de compartilhar sua
divindade por meio do poder e não por meio do amor, por meio do
ser e não por meio do não-ser.
Amar a dor significa associar-se à unidade, transcendente em
relação a nós mesmos, do poder e do amor de Deus.
Nosso pecado introduz uma discordância na harmonia perfeita;
só é possível reconstituir esse dano perfeito por meio de uma harmo-
nização perfeita que implica de antemão uma discordância completa.
Em certo sentido (mas em que sentido?) o pecado original, a

598
expulsão do Paraíso terrestre, a Paixão e a Ressurreição ocorrem jun-
tamente cada momento.
Mas em outro sentido (em que sentido?) eles são eventos histó-
ricos; pois são realidades, não apenas no céu, mas na terra. E não há
nenhum outro tipo de realidade aqui em baixo, exceto o que acon-
tece num determinado ponto, num determinado momento.
Esta necessidade é constituída pela Matéria, a Mãe, de onde pro-
cede a Encarnação. É a condição de existência.
Por isso, as orações dirigidas à Virgem têm um significado. Ave
cheia de graça! (538-540)

Devemos, sim, ter acumulado uma massa de crimes que nos tor-
naram amaldiçoados, para termos perdido toda a poesia inerente ao
universo. (540)

Ação não-ativa. O Espírito constitui o elo entre esses opostos,


que se separam quando se afasta de Cristo. O amor está do lado da
não-ação, da impotência: o amor que consiste em amar simplesmente
que uma coisa deva ser, em não querer interferir nela. Deus nos ama
dessa maneira; caso contrário, deixaríamos de existir imediatamente.
Seríamos aniquilados. Consentir por amor em não mais ser – como
temos de fazer – não é aniquilação, mas transporte para cima, para
aquela realidade que é superior ao ser.
Deus queria aniquilar os homens, que são uma nota discordante
no universo. Eles tinham de ser aniquilados ou então salvos. O poder
de Deus tende à aniquilação, mas seu amor produz a salvação. Essa
oposição entre o poder e o amor de Deus representa o sofrimento
supremo em Deus. E a reconciliação deste poder e deste amor repre-
senta a alegria suprema, e este sofrimento e esta alegria juntos fazem
um.

599
Obviamente, só podemos ver com os nossos olhos e apenas imi-
tar Deus-na-sua-impotência, e não Deus-no-seu-poder. Além disso, é
Deus-na-sua-impotência quem nos julgará e será o árbitro entre Deus-
no-seu-poder e nós. Cf. a história de Prometeu conforme relatada em
Hesíodo – Jó –
Deus aqui em baixo não pode ser outra coisa senão absoluta-
mente impotente. Pois todo poder limitado é uma união de poder e
impotência, mas de acordo com uma unidade pertencente a este
mundo; ao passo que em Deus a união desses opostos encontra-se no
seu grau mais elevado. É necessário que Krishna seja separado de seu
exército, para que apenas tome parte na batalha como um cocheiro,
como um servo.
Aqueles que não abraçam a Paixão intelectualmente devem con-
ceber a Deus no seu aspeto impessoal para poder conceber sua impo-
tência. (Existem no entanto outras razões para o aspeto impessoal de
Deus.) (541-542)

Só possuímos o que renunciamos. O que não renunciamos es-


capa-nos. Nesse sentido, não podemos possuir absolutamente nada
sem passar por Deus. (544-545)

É necessário que todas as texturas harmoniosas, sem exceção al-


guma, das quais nossa alma é tecida, sejam desfeitas para que possam
ser tecidas em nós por Deus com o nosso consentimento. É a morte
que precede a ressurreição. Desse modo, aceitamos ser e, mais ainda,
aceitamos não ser, pois reconhecemos consentidamente que é Deus
quem molda nosso ser. Deus criou-nos sem que o desejássemos. Ele
tem de recriar-nos com o nosso consentimento, pois ele não quer
fazer-nos a menor violência. E então, finalmente, com nosso consen-
timento, ele nos descriará. (545)

600
Cada coisa que tem propriedades não é apenas o bem, mas algo
mais. E por isso não é o bem completo, nem sempre e em todos os
aspetos. Tudo aquilo que tem propriedades é uma mistura do bem e
do mal. O bem não tem propriedade alguma, exceto o facto de ser
bom. É, então, vazio; é negativo? Sim, desde que não lhe dirijamos
toda a nossa atenção. Mas como não podemos voltar imediatamente
toda a nossa atenção para ele, como é necessário um longo aprendi-
zado, durante este tempo ele é negativo, vazio, e dirigimos nossa aten-
ção para o negativo e o vazio. É isso que constitui a noite escura de
São João da Cruz e que também se encontra em Platão. No final, esse
vazio aparece manifestamente como a única realidade verdadeira-
mente real, e já no decorrer da noite escura há momentos em que
temos o pressentimento disso. Mas qual é a agência estimulante ope-
rando durante esta noite? Simplesmente a inadequação de todos os
bens terrenos.
A educação da atenção – isso é o principal. (545)

O homem não considera sua existência um bem, ele sempre


quer algo mais do que simplesmente existir. Mas ele considera uma
condição externa de sua existência um bem.
A ideia de sacrifício é que as criaturas humanas – eu incluída, e
a mesma coisa se aplica a cada uma – empurram a finalidade para
trás. Eu sou apenas um meio, e um meio com vistas a quê?... Não sei
– “(Em tais e tais circunstâncias) ninguém tem nenhuma razão para
viver…”
A Ilíada. Essas pessoas vivem e agem tendo em vista o quê?
O avarento que guarda e aumenta o seu tesouro está apenas bus-
cando a sua própria existência, da qual o tesouro se tornou a condi-
ção. E, no entanto, a mera existência não é um bem; pois a motivação

601
principal que governa o apego do avarento ao seu tesouro reside no
facto de ele querer algo mais do que simplesmente existir. Assim, de-
vido ao facto de que o que realmente desejamos é outra coisa, atribui-
se a essa existência que nos é dada, que só precisamos aceitar, uma
condição e, a partir daí, somos obrigados a aplicar dia e noite todos
os esforços com esta existência como um fim.
A grande dor que acompanha o trabalho manual provém do
facto de sermos forçados a fazer todos os esforços por tantas horas a
fio simplesmente para existir.
O escravo é um homem a quem nenhum bem de qualquer es-
pécie é oferecido como fim e objeto de todo o seu cansaço, exceto a
mera existência.
Ele precisa então desapegar-se ou então cair para o nível vegeta-
tivo.
É assim que a avareza e as paixões semelhantes constituem uma
forma de escravidão.
O desapego consiste em fazer tudo o que fazemos, não com vis-
tas a um bem, mas por necessidade, e em tomar o bem apenas como
objeto de atenção.
Um homem que viveu para seu país, sua família, seus amigos;
com o objetivo de enriquecer, ou de subir na escala social.… Ocorre
uma guerra. Ele é levado cativo; e daí em diante, pelo resto de seus
dias, ele tem de esgotar cada grama de força que nele há, do amanhe-
cer ao anoitecer, simplesmente para existir.
Isso é algo terrível, impossível; e é por isso que não há fim, por
mais insignificante que seja, contanto que apenas se apresente, que
seja possível, ao qual ele não se apegue; como, por exemplo, ver o
escravo ao lado dele ser punido. Ele não tem mais escolha de fins.
Qualquer fim é como um pedaço de pau para um homem que se está
afogando.

602
Esses momentos que nos forçam a considerar a mera existência
como o único fim representam o horror total e sem mistura. É aí que
reside o horror da situação do condenado à morte e que o próprio
Cristo experimentou. (545-546)

“Níobe também, do lindo cabelo, pensou em comer.” Isso é sub-


lime, como o espaço nos afrescos de Giotto.
Uma humilhação que nos obriga a renunciar até ao desespero.
(546)

O desdém dos gregos pelas aplicações da ciência não surgiu de


uma mentalidade aristocrática, mas dessa verdade elementar de que
as aplicações podem ser tão facilmente más quanto boas.
Problemas insolúveis, como a relação entre as propriedades do
círculo, não têm solução em Deus. Como deveriam ter? Não existem
triângulos e círculos em Deus. Seu significado reside inteiramente no
valor educativo dessa própria insolubilidade. Cada um dos domínios
de conhecimento que se encontram abaixo de Deus é governado por
uma impossibilidade que lhe é própria e conduz ao domínio acima
dele. Esta impossibilidade não se resolve no domínio superior, pois
não pode ser separada dos termos, que continuam no seu próprio
domínio e não se movem para um superior. A impossibilidade cons-
titui a base do movimento ascendente, o que se opõe à gravidade.
R. – “Se eu trabalhasse simplesmente para viver, não teria gosto
pelo trabalho. Tenho de trabalhar com o objetivo de progredir no
mundo” – Aqueles que não conseguem “progredir” no mundo preci-
sam ter um fim transcendente.
Se pudéssemos ser egoístas, seria muito agradável. Seria um des-
canso adequado. Mas não podemos, literalmente, ser tais.

603
É impossível para mim, de qualquer maneira que seja, conside-
rar-me um fim; nem, consequentemente, considerar meu semelhante
um fim, visto que é meu semelhante; nem nada que seja feito de ma-
téria: a matéria é infinitamente menos capaz de receber finalidade do
que os seres humanos.
Só existe uma única coisa na terra que, de facto, é possível con-
siderar um fim, porque possui uma espécie de transcendência em re-
lação ao indivíduo humano, e isso é o “coletivo”. É por isso que esta-
mos por ela acorrentados à terra. É o objeto de todo o tipo de idola-
tria. Por exemplo, a avareza: o ouro é uma coisa social. O mesmo se
aplica a todas as formas de riqueza. Ambição: o poder é uma coisa
social. Ciência, arte também são coisas sociais. E quanto ao amor? O
amor é mais ou menos uma exceção; é por isso que podemos ir a
Deus por amor, mas não por avareza ou ambição. Não obstante, no
impulso que nos atrai para um ser humano, o caráter social desse ser
humano não está em nenhum sentido ausente. Por exemplo, os sen-
timentos de amor despertados em nós por príncipes, princesas, pes-
soas famosas, grandes coquetes, etc. – por todos aqueles que possuem
prestígio. Por outro lado, no amor que sentimos por alguém inferior
a nós, o espírito de dominação e posse não está ausente, e esse amor
tende à “devoração” de muitos indivíduos: por exemplo, Don Juan.
(546-547)

Ponto de contato entre o círculo e a linha reta (a tangente). Re-


presenta essa presença de uma ordem superior na inferior na forma
de algo infinitamente pequeno.
Cristo é o ponto de contato, o ponto tangencial, entre a huma-
nidade e Deus. (548)

604
A ilusão das coisas deste mundo não diz respeito à sua existên-
cia, mas à sua finalidade e ao seu valor. A imagem da Caverna diz
respeito à finalidade. Tudo o que temos são imitações obscuras do
bem. Além disso, é com relação ao bem que somos passivos, acorren-
tados (pelo apego). Aceitamos os falsos valores que nos são visíveis e,
quando pensamos que estamos agindo, na verdade ficamos imóveis,
pois permanecemos dentro do mesmo sistema de valores.
Da mesma forma, é na medida em que constituem um bem, um
valor e um fim, que a matemática é “uma sombra, mas uma divina,
uma imagem daquilo que é”. Querer entender um teorema matemá-
tico não é a mesma coisa que querer o bem; mas está mais perto do
querer o bem do que está o querer dinheiro.
Em tudo isso, não se levanta o problema do conhecimento, ex-
ceto se for o conhecimento do bem. O saber não tem interesse algum
além do conhecimento do bem.
É uma questão de ordenar as várias formas de bem em relação
ao nosso desejo, e para isso temos de fixar plenamente nossa atenção
em nosso desejo na sua pureza, no seu vazio. Exatamente como se
entre várias peças de metal mais ou menos polidas eu quisesse esco-
lher a mais polida – então a atenção tem de estar voltada para o plano
perfeito.
No entanto, não somos capazes de fixar nossa atenção em nosso
desejo mais do que somos capazes de ver nossa visão. Só podemos ver
os objetos iluminados pela luz do sol.
Assim, tudo o que podemos fazer é separar nosso desejo de to-
das as formas de bem e esperar. A experiência mostra que essa espera
é recompensada na medida do possível. (549-550)

“A extinção do desejo” (como no budismo); ou desapego; ou o


amor ao destino; ou o desejo pelo bem absoluto – equivale sempre à

605
mesma coisa: desejo de esvaziamento de todo o conteúdo, finalidade
de todo o conteúdo.
O valor da beleza está em ser uma finalidade sem fim.
Escutamos uma música perfeita com uma atenção desprovida
de desejo, à parte do desejo que vai incluído na atenção.
Isso também constitui a superioridade da intuição sobre a dis-
cursividade.
Afastar-se do devir significa não se voltar para o futuro.
Isso também é uma “morte”.
O tempo é a Caverna.
Depois de haver passado pelo caminho do bem absoluto, volta-
mos a esbarrar nas formas ilusórias e parciais do bem, mas dispostos
numa ordem hierárquica que nos permite buscar um determinado
bem dentro dos limites impostos pela preocupação por um certo ou-
tro bem particular. Esta ordem é transcendente em relação às várias
formas de bem e um reflexo do bem absoluto.
Esta ordem constitui o Dharma.
Essa ordem não é discursiva. É como o que se segue na compo-
sição de um poema, depois de passar pela pura inspiração.
O tesouro do avarento representa para ele uma sombria imita-
ção do bem: é duplamente irreal. Os meios como tais são algo total-
mente diferente das formas de bem. Quando separados de sua função
de meio, estão ainda mais distantes de serem formas de bem.
Consideramos as convenções sociais divorciadas de seu verda-
deiro propósito como coisas boas. Mas as convenções são objetos ma-
nufaturados. As superstições relativas a elas são sombras. E nós pró-
prios apenas nos valorizamos do ponto de vista social.
É com referência às apreciações de valor que a sensação é aquilo
que menos tem realidade.
O mito da Caverna só é compreensível quando considerado em

606
conjunto com o da Grande Besta.
Uma decoração, enquanto bem, é a sombra de um objeto ma-
nufaturado.
A inteligência discursiva (compreensão de relações) só pode que-
brar as várias formas de idolatria e permitir que olhemos tanto as
coisas más quanto as boas como limitadas, confusas, que se cruzam.
Tentar reconhecer o ponto onde o que é bom se transforma em
mal: na medida em que, na extensão que, em relação a, etc....
Tentar ir além da regra de 3! (550-551)

Carne e leite – ideia de criar, por assim dizer, um álibi, de enco-


brir a ingratidão não colocando a carne e o leite próximos um do
outro, porque a proximidade é uma forma de relação e implica um
sentimento de remorso em relação ao assassinato do gado em ques-
tão. Mas se acreditamos que o sacrifício foi consentido, não há mais
nenhuma questão de assassinato ou remorso. Podemos então cozi-
nhar o cabrito no leite, como costumava ser feito na festa de Astarte;
esta cerimônia produzindo um sentimento de pura felicidade. (Mas
tudo isso pode igualmente transformar-se em licenciosidade com-
pleta.) (551-552)

A ilusão que acompanha a Revolução consiste em acreditar que


como as vítimas da força são inocentes das brutalidades cometidas,
se a força for colocada em suas mãos, elas a usarão com justiça. Mas,
exceto no caso daqueles que estão pelo menos bastante próximos da
santidade, as vítimas são contaminadas pela força da mesma forma
que os algozes. O mal que se encontra no punho da espada é trans-
mitido para a ponta. E assim acontece que as vítimas, elevadas ao
pináculo do poder e intoxicadas pela mudança de situação, causam

607
tanto dano, senão mais, e logo depois voltam para onde estavam an-
tes.
O socialismo consiste em atribuir o bem aos conquistados; raci-
alismo, de atribuí-lo aos conquistadores. Mas a ala revolucionária do
socialismo faz uso daqueles que, embora de origem humilde, são por
natureza e por vocação conquistadores; e assim acaba no mesmo sis-
tema de ética.
O significado contido na Política de Platão é este, que o poder
deve ser exercido por um meio social composto de conquistadores e
conquistados. Mas isso é contrário à natureza; exceto quando os con-
quistadores são bárbaros. A este respeito, a vitória dos bárbaros sobre
os povos civilizados, quando não é de caráter destrutivo, é mais fe-
cunda do que a dos povos civilizados sobre os bárbaros. Cf. os arianos
na Índia, os helenos na Grécia. Os expositores do racismo viram com
bastante clareza o florescimento que resulta dessa conquista. Mas a
causa disso não deve ser encontrada numa raça, mas numa mistura
equilibrada de ambas as raças. No entanto, esses momentos são de
curta duração.
A ciência técnica, que coloca a força e a civilização do mesmo
lado, torna as regenerações desse tipo impossíveis. Está amaldiçoada.
Além de tais momentos de mistura racial, a divisão equitativa
de força entre fortes e fracos é contrária à natureza. Isso só seria pos-
sível com a intervenção de um fator sobrenatural.
Um fator sobrenatural na sociedade é a legitimidade sob sua
forma dupla de Lei e atribuição de máximo poder ao Estado. Uma
monarquia temperada por leis talvez consiga efetuar a mistura preco-
nizada na Política. Não pode haver legitimidade sem religião.
São as coisas como valores que são irreais para nós. Mas os falsos
valores também retiram realidade da própria perceção, devido à ima-

608
ginação que a envolve; pois os valores não são deduzidos, mas direta-
mente lidos na sensação com a qual estão ligados.
Por isso, só o desapego perfeito torna possível ver as coisas na
sua nudez e sem esta névoa de falsos valores. E é por isso que as úlce-
ras de Jó e o monte de esterco eram necessários para que lhe fosse
revelada a beleza do mundo. Pois não há desapego sem dor. E não há
dor suportada sem ódio e sem autoengano que não seja acompa-
nhado de desapego. (552-553)

A imaginação está sempre ligada ao desejo, isto é, ao valor. É


apenas o desejo sem um objeto que está vazio de imaginação. A beleza
está nua, não encoberta pela imaginação. A presença real de Deus
está em tudo o que não é encoberto pela imaginação. A consagração
da Hóstia é uma operação sobrenatural que reduz um pedaço de ma-
téria à nudez. A beleza apodera-se da finalidade em nós e a esvazia de
todo fim ulterior; apodera-se do desejo e o esvazia de todo objeto
ulterior, apresentando-lhe um objeto realmente presente e impe-
dindo-o de se lançar para o futuro.
Esse é o preço pago pelo amor casto; pois o prazer está no futuro.
Ao passo que se alguém simplesmente deseja que certo ser exista, ele
existe; o que resta então para desejar? O desejo choca com o ser real.
O ser particular é então real, nu, não envolto por algum futuro ima-
ginário. O avarento nunca contempla seu tesouro sem imaginá-lo n
vezes maior. É preciso estar morto para poder ver as coisas em sua
nudez.
Na amizade também há castidade ou falta de castidade, con-
forme o desejo esteja ou não voltado para o futuro. Um amor casto
aceita a morte do ente querido; tal morte não lhe arranca nenhum
futuro, uma vez que não estava direcionada para o futuro. (553-554)

609
A música desdobrando-se no Tempo, como o faz, apodera-se da
atenção e a liberta das mãos do Tempo, fazendo-a focar a cada ins-
tante aquilo que é. A espera é realizada no vazio, uma espera no ime-
diatismo. Não desejamos que uma única nota, um único intervalo de
silêncio, pare; ao mesmo tempo, não podemos suportar que nenhum
dos dois continue.
A música perfeita contém o máximo de monotonia suportável;
a menor quantidade possível de mudança consistente com a manu-
tenção da atenção no mesmo grau de intensidade. (554)

A beleza atrai o desejo e o satisfaz, mas o deixa suficientemente


insatisfeito para torná-lo incapaz de se voltar para outra coisa. (554)

A beleza contém, entre outras uniões de opostos, a do momen-


tâneo e a do eterno. (De onde vem o poderoso efeito do pôr do sol e
do nascer do sol.) Isso aplica-se a todas as artes.
Um homem que vive num mundo irreal e empunha uma espada
é capaz de mergulhar um povo inteiro na irrealidade. A mesma coisa
não acontece no caso de um terremoto. Nós sabemos por que esta-
mos sujeitos aos poderes manifestos da Natureza. Mas obedecer a ho-
mens cuja autoridade sobre nós não é santificada pela legitimidade é
apenas um pesadelo. Por exemplo, o caso dos cartagineses vis-à-vis
Roma.
Ser conquistado, exceto se a esperança de uma vingança perma-
necer guardada, esvazia a vida de finalidade. E pensar na vingança
guardada é a pior forma possível de finalidade.
A conquista destrói o que existe de reflexo de eternidade na vida
pública de um país. De que maneira?
Existe uma conexão entre as festas imóveis de um país e o caráter
legítimo das leis desse país – isto é, as festas que nos fazem sentir o

610
papel do número no Tempo.
[Quantas vezes a Páscoa cai na mesma data?]
A tortura infligida pelas celas das prisões que são ou completa-
mente escuras, ou então completamente brancas e sempre ilumina-
das pela eletricidade: a questão de separar o número do Tempo. O
caso de Z., que não se conteve de perguntar: Que horas são? (554-
555)

A existência de uma autoridade legítima confere uma finalidade


aos atos da vida social, às várias ocupações – uma finalidade diferente
da mera sede de sucesso na vida (o único motivo reconhecido pelo
liberalismo). Participar da religião do lar doméstico era, entre os gre-
gos, alguma atenuação da condição de escravidão (cf. Cassandra em
Ésquilo). A devoção demonstrada pelas mulheres cativas para com os
conquistadores que mataram todos os seus entes queridos vem do
facto de ser impossível à vida humana permanecer por um instante
sem uma finalidade de algum tipo. Mas uma raça inteira que foi con-
quistada não pode, pelo menos na primeira geração, colocar sua fi-
nalidade na raça conquistadora; e quando consegue fazê-lo degrada-
se, pelo facto de que seu fim reside numa coletividade, uma nação, e
não nas leis ou num homem legitimamente investido de soberania;
também porque a sua finalidade não vem das profundezas de um
passado imemorial.
Legitimidade representa continuidade no Tempo, permanência,
imutabilidade. Ela confere como finalidade à vida social algo que
existe e que sempre existiu e que está destinado a continuar a existir.
Obriga os homens, em todos os atos da vida social, a querer exata-
mente o que é.
O desenraizamento, a quebra da legitimidade, quando não é por
conquista, quando ocorre num país por abuso de autoridade legítima

611
que por si mesma destrói todo sentimento de legitimidade pelo uso
excessivo da força – tal desenraizamento inevitavelmente desperta o
ideia obsessiva de progresso e sede de enriquecimento e promoção
pública; a finalidade volta-se então na direção do futuro: por exem-
plo, 1789; Rússia.
Um futuro totalmente impossível, como o ideal dos anarquistas
espanhóis, é muito menos degradante e difere muito menos daquilo
que é eterno do que um futuro possível. Ele nem mesmo se degrada,
exceto por sua ilusão de possibilidade. Onde é realmente concebido
como impossível, ele se transporta para a região do eterno.
A única coisa que pode transformar a legitimidade, uma ideia
pura totalmente desprovida de força, em algo soberano – em
Dharma, que é a soberania das soberanias, e pela qual o que é fraco
equilibra o que é forte – é a mente: sempre foi assim, e sempre será
assim.
É por isso que uma reforma deve ter sempre a aparência, seja de
um retorno a um passado que se permitiu degradar, seja de uma adap-
tação de uma instituição a novas condições, sendo o objeto de tal
adaptação não uma mudança, mas, pelo contrário, a manutenção de
um rácio imutável; como se tivéssemos o rácio de 12/4 e este 4 se
tornasse 5; o verdadeiro conservador não é aquele que quer 12/5,
mas aquele que transforma 12 em 15.
A República – uma ideia revolucionária que permeou todo o
século XIX – não poderia tornar-se um regime legítimo até um século
depois de 1789; porque então 1789 estava suficientemente longe para
ser um objeto de reverência, e porque não há reverência sem legiti-
midade. E, no entanto, um século representa um tempo muito curto,
afinal, totalmente insuficiente para fundar uma ordem legítima.
Para tornar a realeza, na França, mais uma vez legítima, seria
necessário não ter de vincular a restauração a nada mais recente do

612
que Carlos V. Pois a monarquia francesa tornou-se uma tirania, isto
é, algo ilegítimo, sob Carlos VI. Desde então, nunca deixou de ser
odiada como tal.
Isso é muito claramente sentido nos escritos de Retz, Richelieu
e Montesquieu. (Mas como alguém conseguiria renovar uma tradição
ao longo dos séculos num país que desconhece tanto a história?)
Tanto a ideia de conservação quanto a de justiça deveriam estar
ligadas à Idade Média.
Uma vida pública em que em todas as obras, em cada um dos
atos separados da obra realizada, em todos os feriados nacionais, em
todas as relações existentes acima e abaixo na escala social, em toda
arte, em toda ciência, em toda filosofia, era possível ler as verdades
sobrenaturais.
E na guerra – o que podemos ler nela?... As verdades sobre o
mal. (555-557)

Uma sociedade bem ordenada seria aquela em que o Estado


apenas exercesse uma ação negativa, à maneira de um leme, dando
uma leve pressão no momento certo para compensar o primeiro sinal
de qualquer perda de equilíbrio. (559)

Prometeu – o homem cometeu pecado, Deus infligiu punição;


e a punição causa uma separação em Deus entre Poder e Amor: sofri-
mento divino. Mas a harmonia é necessária por trás desse sofrimento;
pois só o Amor divino apõe um limite ao Poder divino, e sem este
Amor o Poder gera um maior do que si mesmo, um novo Poder que
destrói a criação.
Deus desfaz a harmonia da qual Ele é constituído ao criar o ho-
mem – uma criatura que se prefere a Deus. A própria criação já é
uma paixão.

613
Deus é um ato eterno que está sempre se desfazendo e se refa-
zendo ao mesmo tempo. Em Deus, há eternamente e simultanea-
mente sofrimento perfeito e infinito e alegria perfeita e infinita.
A ideia grega de que a maldição trazida por um crime (seja de
desobediência ou de violência) só termina quando cai sobre um ser
perfeitamente puro. O verdadeiro golpe desta maldição consiste em
morrer ou matar, ou tanto morrer como matar. Consiste no contato
com o aço, seja na ponta ou no punho da espada, seja nas duas pon-
tas – Antígona – Orestes – Etéocles – mas na realidade só existe um
único ser perfeitamente puro, que é Deus.
O sacrifício de Ifigênia forma o pendente daquele de Isaque,
assim como o mal faz com o bem. É ao mesmo tempo violência e
desobediência.
Laio cometeu o pecado original de desobediência. Édipo é uma
vítima, mas impuro. Seu filho (Antígona ou Etéocles) é a vítima per-
feitamente pura. O pecado original foi transmitido a Édipo apesar de
si mesmo. (560-561)

Procuramos algo porque acreditamos que seja bom e permane-


cemos acorrentados a esse porque se tornou necessário para nós.
(562)

O materialismo ateísta é necessariamente revolucionário, pois a


fim de nos orientarmos para um bem absoluto nesta terra, temos de
situá-lo no futuro. Para que esse ímpeto seja completo, precisamos de
um mediador entre a perfeição que virá e a imperfeição presente. Esse
mediador é o Líder: Lenin, etc. Ele é infalível e absolutamente puro;
ao passar por ele, o mal transforma-se em bem.
Devemos amar a Deus, ou ser como acima, ou então deixar-se
ser jogado entre os pequenos males e os pequenos bens da vida diária.

614
Já Luís XIV e Napoleão eram mediadores entre o presente e o
futuro.
Esses mediadores são mediadores em relação ao mal.
É simplesmente uma questão de admitir que na escala do valor
– em oposição à escala da quantidade – o maior não pode proceder
do menor.
Nada nesta terra é realmente um objeto para o desejo que está
em mim. No entanto, não posso concluir disso que o mundo é mais
vil do que eu; pois faço parte do mundo. Já que eu existo e este desejo
de bem absoluto constitui o fundamento de meu ser, deve haver algo
na Realidade que possua pelo menos o mesmo valor que este desejo.
Mas estou separado dele; não consigo alcançá-lo. Tudo o que posso
fazer é saber que existe e esperar – mesmo que signifique por anos.
(562)

Aqueles que servem a uma causa não são aqueles que amam essa
causa. São aqueles que amam a vida que deve ser levada para servi-la
– exceto no caso dos mais puros, e são raros. Pois a ideia de uma
causa não fornece a energia necessária para servi-la. (562-563)

A invenção técnica é uma adaptação de meios aos fins. Mas a


verdadeira arte é uma finalidade sem nenhum fim vinculado a ela.
Portanto, a técnica do verdadeiro artista é transcendente. Uma téc-
nica transcendente é a mesma coisa que inspiração. Em certo sen-
tido, não há nada além de inspiração na arte, pois uma técnica não-
transcendente não deve desempenhar qualquer papel nela. Em certo
sentido, não há nada além da técnica, pois inspiração é técnica. (A
conexão entre as noções de ordem e técnica.) (563)

Um sorriso de Luís XIV, considerado como objeto de desejo, é

615
a sombra de um objeto manufaturado. O objeto manufaturado é a
instituição da realeza – uma instituição arbitrária, uma convenção;
mas ao mesmo tempo uma condição de equilíbrio social. Nossas coi-
sas boas são ilusões derivadas de convenções.
Tenho de fazer continuamente essa análise com relação a cada
objeto de desejo e persuadir toda a alma de que a análise é verdadeira.
(563)

A irrealidade que retira o bem do bem – é isso que constitui o


mal. O mal é sempre a destruição de objetos sensíveis nos quais o
bem está realmente presente. O mal é realizado por aqueles que não
estão cientes dessa presença real. Nesse sentido, é verdade que nin-
guém é intencionalmente mau. As relações de força dão à Ausência
o poder de destruir a Presença.
É apenas com as almas sobre as quais Deus já desceu e estabele-
ceu sua morada, que já experimentaram sua realidade por meio do
contato real – é apenas dessas que nada no mundo pode possivel-
mente tirar a presença de Deus. Mas o sentimento de sua presença
pode-lhes ser tirado. Foi tirado de Cristo.
É impossível contemplar sem terror a extensão do mal que o
homem é capaz de causar e sofrer.
Como acreditar que é possível encontrar uma compensação, um
possível consolo para esse mal, quando por ele Deus sofreu a crucifi-
cação?
É correto refletir sobre todo esse mal com horror e sem consolo
algum. (563-564)

Somos aquilo que está mais distante de Deus, na distância ex-


trema de onde ainda não é absolutamente impossível retornar a ele.
Em nosso ser, Deus está dilacerado. Somos a crucificação de Deus.

616
Minha existência crucifica a Deus. Assim como amamos um sofri-
mento insuportável porque é Deus quem nos envia, é com esse
mesmo amor, transposto além do céu, que Deus nos ama. O amor
de Deus por nós significa paixão. Como o Bem poderia amar o Mal
sem sofrer? E o Mal também sofre ao amar o Bem. O amor mútuo
entre Deus e o homem é sofrimento: por exemplo, Prometeu, Hipó-
lito.
A crucificação de Deus é algo eterno. “O Cordeiro morto desde
o princípio do mundo.” Deus é crucificado diariamente nos altares
pela consagração do pão na Eucaristia. Se, na comunhão, o sofri-
mento de Deus é alegria em nós, não devemos pensar que nosso so-
frimento, quando totalmente consentido, é alegria em Deus? Mas
para que se torne alegria em Deus, é preciso consentir na sua amar-
gura absoluta e completa.
Por que haveria de requerer qualquer tipo de consolo para su-
portar os meus sofrimentos sem deixar de amar a Deus, visto que
posso suportar sem ceder ao ódio os sofrimentos dos escravos roma-
nos, para os quais não há consolo algum? (564)

“Teu filho justo, Abel.” – Se nos colocarmos sob o ponto de


vista do dogma católico, como é possível supor que após a Queda, na
própria geração seguinte, possa ter havido um ser íntegro e irrepreen-
sível, um filho de Deus, se a Redenção não produziu essa pureza, se-
não como um facto realmente presente, como a revelação de um facto
por vir? (Se alguém admitir a possibilidade de várias encarnações, será
que alguém pode ir tão longe a ponto de considerar Abel sob esta
luz?) Se o sacrifício que Abel fez a Deus era uma imagem da Encarna-
ção, ele (Abel) deve ter sabido. Onde estaria a misericórdia de Deus,
se um ser justo estivesse entregue às trevas? Como nós, que não so-
mos justos, devemos entender o significado de seu ato melhor do que

617
ele mesmo?
Era necessário que Israel ignorasse a ideia da Encarnação para
que a Paixão fosse possível. Roma também. Esses foram talvez os úni-
cos dois povos que a ignoraram. Mas Israel tinha, no entanto, de ter
alguma parte em Deus. Toda aquela parte em Deus que é possível
sem espiritualidade, sem o sobrenatural (não pode haver vida sobre-
natural sem a Encarnação). A espiritualidade de Israel era exclusiva-
mente coletiva. É por causa dessa ignorância, dessa escuridão do en-
tendimento que era o “povo escolhido”. Assim, é possível compreen-
der as palavras de Isaías: “Endureci o coração deles para que não en-
tendam a minha palavra.” (564-565)

Uma harmonia mantém nossos poderes contraditórios entre


chave e fechadura. Estamos fechados entre elas. A dor gira a chave e
abre a porta. Se não nos mexermos, nossos poderes desaparecem. Te-
mos de nos levantar, caminhar, passar pela porta e fechá-la nova-
mente do outro lado. Então, encontramo-nos noutra sala e há outra
porta. E o processo se repete. Dessa forma, viajamos em nossa alma
de sala em sala até a sala central onde Deus está esperando por nós
desde a eternidade. (575)

Quando, depois de passar por porta após porta, aberta e tran-


cada atrás de si, sala após sala, um ser chega à parte central de sua
alma, que forma um único ponto, ele não se move mais dali; as portas
abrem e fecham novamente, de acordo com as circunstâncias; mas
ele não vai mais fechá-las. Sua presença é para sua própria alma como
a presença de Deus é para o mundo. Se todas as portas se abrirem
juntas sob o estresse da aflição, isso realmente significa participar da
Cruz de Cristo. (576)

618
Fecundação. O sêmen depositado por um homem numa mu-
lher no momento da conceção, e que posteriormente se tornará um
ser humano, deve conter uma energia transcendente em comparação
com a energia vital, exatamente como a energia vital em comparação
com a mecânica, química e elétrica, e a última em comparação com
o calor. Se o sêmen, em vez de ser descarregado, é destruído dentro
do corpo do homem, liberando essa energia – da mesma forma que
a destruição da madeira em cinzas libera energia mecânica e calorífica
– o homem dispõe de uma forma de energia superior à que poderia
possivelmente adquirir de qualquer outra maneira. A castidade é esse
acúmulo de energia de alto grau.
[Não possuem as mulheres tal fonte de energia? A inferioridade
delas no que toca à genialidade e mesmo no que diz respeito a certos
aspetos da santidade procede disso?]
Parece-me que a transformação da energia calorífica em energia
mecânica nunca ocorre realmente. Nos casos em que pensas perceber
tal transformação, o que ocorre deve realmente ser outra coisa. (?)
As mulheres também devem possuir uma fonte transcendente
de energia em comparação com a energia vital, caso contrário, a con-
ceção não exigiria a união dos sexos.
Na matéria viva existe algo que compartilha da indestrutibili-
dade, e esse algo é o que perpetua a espécie. Mas esse algo é compar-
tilhado entre o homem e a mulher, e unido novamente fora deles.
Masculino, feminino, criança: a criança é a harmonia nascida
da união dos opostos. Mas essa harmonia está fora dos dois termos,
uma terceira e distinta coisa.
A vida é dividida em duas por meio da divisão entre os sexos.
A questão do pecado original e a divisão entre os sexos em Pla-
tão. Texto cátaro: “Os anjos, ao se verem em corpos de lama e de

619
formas diferentes, choraram.” A Virgem, estando livre do pecado ori-
ginal, pôde dar à luz sem a intervenção de um marido terreno. Zeus
devorando sua esposa com um filho, Sabedoria, e dando à luz Atena
pela cabeça – (isso está conectado com a tradição hindu a respeito da
veia que sobe verticalmente dos lombos até o topo da cabeça, abre
uma cavidade ali e causa dessa forma a subida da energia sexual.)
Lucrécio: homem e mulher no ato sexual desejam tornar-se um,
mas não conseguem. É o único desejo físico que, pela natureza das
coisas, nunca pode ser satisfeito. A união deles, que é a criança, é algo
alheio a cada um deles.
No Simpósio e no Fedro, Platão parece considerar a castidade uma
autofecundação por parte do homem. O desejo promove a produção
de sêmen que, em vez de ser descarregado no exterior, engendra uma
forma superior de energia dentro do mesmo ser.
(A presença em cada sexo de características secundárias do sexo
oposto tem algo a ver com essa forma interior de fertilização? Em
todos os seres genuinamente de primeira classe, há algo de feminino
nos homens e algo de masculino nas mulheres. Isso explica aqueles
versos do Simpósio sobre as disposições de meninos e meninas desti-
nados à vida espiritual? A natureza asquerosa da homossexualidade
realmente procede do facto de representar uma degradação de al-
guma possibilidade superior?)
A noção atual de que os artistas precisam ter uma vida sexual
livre a fim de prosseguir com sua atividade criativa baseia-se, sem dú-
vida, num equívoco. Eles precisam de algum excitante, para que seu
organismo produza a energia necessária para sua arte. Mas a satisfa-
ção do instinto sexual, longe de ajudá-los, tira deles parte da energia
assim desenvolvida. Se continuam criando do mesmo jeito, é simples-
mente porque têm uma quantidade excedente de energia sobrando.

620
A divisão em dois, dualidade, é o infortúnio particular das coi-
sas criadas. O modo como a vida é dividida em dois sexos é um sím-
bolo disso. A divisão de Israel em dois reinos, após a morte de Salo-
mão, é considerada um símbolo da mesma verdade.
(A palavra símbolo, além disso, significa uma metade servindo
como um sinal.)
A Cruz simboliza ao mesmo tempo a união e a separação dos
opostos e a unidade que caracteriza essa união e essa separação.
O pecado é uma má união de opostos. A árvore do bem e do
mal. (577-578)

Não pode haver nenhum contato, como de uma pessoa a outra,


entre o homem e Deus, exceto por meio da pessoa do Mediador. Fora
dele, a única maneira pela qual Deus pode estar presente ao homem
é de forma coletiva, nacional. Israel, ao mesmo tempo, e de uma só
tacada, escolheu o Deus nacional e rejeitou o Mediador. É possível
que Israel possa, de tempos em tempos, ter buscado um monoteísmo
genuíno. Mas sempre recaiu sobre, e não poderia deixar de recair so-
bre o Deus tribal.
O Islão é uma ilustração da mesma lei. Alá, no Alcorão, é tam-
bém o Deus dos Beduínos armados. O Amado adorado pelos místi-
cos do século X não é esse Alá de forma alguma: ele é o Mediador. O
Mitras persa – o único deus adorado pelos persas em pé de igualdade
com Zeus – era o equivalente da Afrodite celestial.
A ambiguidade existente entre as noções do divino e do demo-
níaco é um obstáculo totalmente inevitável para a mente humana,
mas atinge sua expressão máxima na tradição religiosa de Israel. (581-
582)

Todas as uniões sexuais pelas quais Zeus produz seus filhos que

621
se tornam mediadores são ilegítimas. O papel do adultério na mistura
de amor e misticismo da Idade Média. A ideia de que a união entre
o homem e Deus é algo essencialmente ilegítimo, contrário à natu-
reza, sobrenatural – algo furtivo e secreto. (582)

Por causa da morte, os afetos humanos estão irremediavelmente


condenados e sem futuro. O que amamos quase não existe. Além
disso, para os objetos de nosso amor, a existência não é um bem.
Precisamos entender isso com a mente e aceitá-lo por amor a Deus.
O facto de não sermos capazes de considerar nossa existência
como um fim em si mesma mostra claramente que para nós, criaturas
finitas que somos, a existência não é um bem.
Não há nada de bom aqui em baixo além da Obediência.
Certa maneira de representar a vida eterna, na medida em que
nos induz a imaginar uma existência que é um bem, é impura.
O facto de a existência não ser um bem obriga o homem, que
não pode prescindir do bem, a viver na imaginação, isto é, numa at-
mosfera de falsidade. Somente a obediência pode salvá-lo dessa res-
trição. Só ela torna possível suportar o presente.
Presente, uma dádiva. Tudo o que está contido no momento
presente é uma dádiva. (582-583)

Cada ação, seja grande ou pequena, realizada por obediência,


destrói uma parte da quantidade finita de mal que está na alma.
Electra lamentando a morte de Orestes.… Se amarmos a Deus,
mesmo pensando que ele não existe, ele tornará sua existência mani-
festa. (583)

A natureza ambígua do divino e do demoníaco. Quando o ele-


mento sobrenatural entra num ser que não possui amor suficiente

622
para o receber, ele transforma-o em algo mau. Todo progresso espiri-
tual implica que recebamos mais do elemento sobrenatural do que
realmente possuímos no caminho do amor. De onde vêm as tenta-
ções dos santos. É suficiente permanecer voltado para Deus para po-
der superá-los. Caso contrário, toda a graça se transforma em ódio;
da mesma forma que pela conversão todo o mal se transforma em
amor. (585)

Amor. No caso de um ser que nos é necessário, que é para nós


uma condição de existência, achamos perfeitamente natural que se-
jamos um fim para ele; e parece-nos terrível, impossível, contra a na-
tureza, que não sejamos tal para ele.
Isso aplica-se também a coisas (por exemplo, formar uma cole-
ção, o tesouro do avarento); a seres coletivos (por exemplo, um grupo
sobre o qual exercemos uma certa autoridade), e também para o amor
imaginário de Deus. (Todos esses amores são imaginários.)
Podemos também considerar-nos um meio com respeito ao
objeto de nosso amor e, nesse caso, o amor também é imaginário – a
menos que o objeto seja Deus. (586)

Aqui na terra, podemos nos esconder atrás da carne. Na morte,


não podemos mais fazer isso. Somos entregues nus à luz; o que signi-
fica, conforme o caso particular, inferno, purgatório ou paraíso.
Morrer para não ter mais medo de morrer. Deixar de obedecer
a uma necessidade vital. O medo da morte – isso é necessidade. (586-
587)

Embora sejamos incapazes de nos considerarmos um fim, con-


sideramos um “bem” uma vontade que nos considera um fim. O po-
der consiste em ser um fim em relação à vontade dos homens. (589)

623
Um esquimó ditado: “O maior perigo da existência reside no
facto de que o homem só se alimenta de almas.” (589)

Palavras de um feiticeiro esquimó, um caçador de renas: “Toda


a verdadeira sabedoria só se encontra longe dos esconderijos dos ho-
mens, na vasta solidão; só pode ser alcançado por meio de sofrimen-
tos e privações. O sofrimento é a única coisa que pode revelar a um
homem o que está escondido de outros homens.”
Ou ainda: “É unicamente por meio de privações e dores que o
espírito do homem é capaz de penetrar nas verdades que permane-
cem ocultas dos comuns.”
Ainda outro: “…Procurei na escuridão. Solitário, no tremendo
silêncio da escuridão, mantive minha paz. Nos dias de nossos ances-
trais, os feiticeiros eram solitários. Hoje em dia…, eles praticam a me-
dicina, fazem previsões do tempo, abundam na caça ou procuram o
comércio… Os Antigos costumavam sacrificar-se para manter o equi-
líbrio do universo, em nome de coisas grandes e misteriosas.” (590-
591)

Trabalho – é sempre o homem agindo como contrapeso ao uni-


verso. E a dor do trabalho transforma-se em paixão quando o homem
trabalha sem motivos e incentivos pessoais.
Mas o que acontece quando o homem trabalha sob o chicote?
(592)

Quando um homem pensa e outros agem, o universo não pesa


sobre aquele que pensa. E, no entanto, a atenção também tem uma
forma de gravidade a superar.

624
No caso do trabalhador, o mal assume a forma de cansaço e des-
gosto.
Aquele que trabalha inconscientemente não imita a crucifica-
ção. (592)

Existem duas formas de bem, da mesma denominação, mas ra-


dicalmente diferentes um da outro: um que é o oposto do mal e outro
que é o absoluto – o absoluto que só pode ser o bem. O absoluto não
tem oposto. O relativo não é o oposto do absoluto; deriva dele por
meio de uma relação não comutativa. O que queremos é o bem ab-
soluto. O que está ao nosso alcance é o bem que está correlacionado
ao mal. Equivocadamente o tomamos como sendo aquilo que quere-
mos, como o príncipe que se propõe a fazer amor com a empregada
em vez da amante. O erro é devido às roupas. É o elemento social
que espalha a cor do absoluto sobre o relativo. Até o amor, até a ga-
nância, estão sob a influência social (moda...). O remédio é a ideia
de relação. A relação rompe violentamente com o social. É o mono-
pólio do indivíduo. Formas sociais de bem são formas convencional-
mente aceitas de bem. A convenção social, a conveniência das con-
venções sociais em geral, ou mais precisamente, o ordenamento da
Cidade, o Direito, constitui o fogo, a luz atual, ainda que terrena,
que lança as sombras. Convenções particulares, como a realeza, são
objetos fabricados. Procuramos as sombras das convenções. Estamos
acorrentados no meio da sociedade. A sociedade é a Caverna. A saída
é a solidão.
A faculdade de relacionar pertence ao espírito solitário. Ne-
nhuma multidão é capaz de conceber um relação. Uma certa coisa é
boa ou má com respeito a..., na medida em que... – isto escapa da
multidão. Uma multidão não pode somar coisas.

625
Aquele que está acima da vida social regressa a ela quando de-
seja, mas não aquele que está abaixo. O mesmo se aplica a tudo.
Existe uma relação não comutativa entre o que é melhor e o que é
menos bom. (592-593)

Lutar por necessidade e não por algum bem particular – ser im-
pulsionado, não atraído – para manter a existência como ela é, e não
para adquirir mais – isso é sempre servidão.
(O bem é sempre aquilo para o qual nos voltamos, o que nos
falta.)
Nesse sentido, a servidão dos trabalhadores manuais é irredutí-
vel, salvo em circunstâncias excecionais (por exemplo, a moderniza-
ção da indústria na Rússia; na América).
Esforço sem finalidade.
É terrível – ou a coisa mais bela de todas – se for uma finalidade
sem um fim conectado. Só a beleza permite que nos satisfaçamos com
aquilo que é.
Os trabalhadores precisam de poesia mais do que pão. Eles pre-
cisam que sua vida seja um poema. Eles precisam de alguma luz da
eternidade.
Só a religião pode ser a fonte de tal poesia.
Não é a religião, mas a revolução que é o ópio do povo.
A privação de tal poesia explica todas as várias formas de desmo-
ralização.
Mas o direcionamento da atenção para Deus precisa ser susten-
tada por intermediários. Isso é assim mesmo numa igreja, à qual va-
mos para o propósito acima. Quanto mais, portanto, no caso do tra-
balho.
Esses intermediários não devem ser fabricados; eles devem ser

626
encontrados inscritos na natureza das coisas, pois eles existem ali pro-
videncialmente.
Exemplo: a comparação entre a Cruz e uma balança.
Nenhuma finalidade terrestre os separa de Deus. Só eles estão
nesta situação. Todas as outras condições implicam fins individuais
que, mesmo sendo sagrados, atuam como uma tela entre o homem e
a forma mais pura de bem, a menos que o desejo seja capaz de pene-
trá-la. No caso deles, essa tela não existe. Nada há em excesso da qual
devam livrar-se, mas algo que está faltando. Nudez.
A escravidão é um trabalho sem qualquer luz da eternidade, sem
poesia, sem religião. É isso que constituiu a terrível miséria dos escra-
vos sob o Império Romano.
Que a luz eterna forneça, não uma razão para viver e trabalhar,
mas um sentimento de plenitude interior que torna desnecessária a
busca por tal razão.
Falhando isso, os únicos incentivos são a restrição e o desejo de
ganho: o primeiro implica a opressão do povo, o segundo, a corrup-
ção do povo.
O trabalho manual fornece um fim pessoal. Mas como é de par-
tir o coração, como é degradante quando colocas tudo o que tens em
algo, em ter como fim ganhar alguns centavos extras! – Pois realmente
colocas tudo o que tens em ti, as partes de ti mesma (as faculdades)
que não exerces mais ainda do que as que sim usas.
Preciso escrever um artigo sobre o assunto da dispersão do tra-
balho – as condições necessárias para que resulte num bem – coisas
contra o qual se precaver – o ritmo de trabalho. (595-597)

Estudos e fé. Visto que a oração é apenas atenção na sua forma


pura, e visto que os estudos constituem uma ginástica da atenção,

627
segue-se que todo exercício escolar deve ser uma refração da vida es-
piritual. Mas isso depende do uso de um método. Uma certa maneira
de fazer uma tradução para o latim, uma certa maneira de resolver
um problema de geometria – e não qualquer maneira – constituem
uma ginástica da atenção calculada a torná-la mais adequada à ora-
ção. (597)

Trabalho e paixão. Pelo trabalho, todo ser se sujeita à matéria, é


imobilizado pela matéria. Quer se trate de sofrimento ou não, trata-
se em todo o caso de submissão. Significa o abandono da vontade
pessoal – um abandono que permanece sem compensação.
No trabalho, tudo é intermediário, tudo é meio – o material, a
ferramenta, o corpo e a alma.
Condição essencial para qualquer forma de trabalho não servil.
(597)

O cansaço induzido pelo trabalho entorpece as faculdades dis-


cursivas, mas não as contemplativas. Só deve haver intermediários
que não sejam as faculdades discursivas.
Entre os trabalhadores, destaca-se o duplo tropeço gerado pelo
sentimento de inferioridade intelectual e pela autocomplacência.
Marx. A ideia da união entre o trabalho manual e o intelectual.
Tal união só pode proceder de um plano que transcende tanto um
quanto o outro.
Entre os “intelectuais”, existe um obstáculo igualmente grave.
Tudo o que é inspirado, heroico ou santo deriva da contempla-
ção.
Mesmo a invenção técnica implica o desvendar das já prontas
conexões que se tornaram em nós atitudes, em vez de relacionamen-
tos.

628
A verdadeira relação implica a união dos opostos, a saber, a da
conexão e da separação dos termos. Isso é obtido pela representação
mental de um relacionamento que é o mesmo para uma variedade
ilimitada de pares de termos e de um termo que fornece o material
para uma variedade ilimitada de relações. No entanto, a constante
estabelece um limite para tal variedade.
A constante pertence sempre a um domínio que transcende
aquele ao qual a variação pertence.
Tudo é uma mistura de variação e invariância. (597-598)

A monotonia pode ser a coisa mais bela do mundo ou a mais


atroz. A mais bela se for um reflexo da eternidade – por exemplo, o
canto gregoriano; o mais atroz em outros casos.
O círculo é o exemplo ideal do belo tipo de monotonia; o ba-
lanço de um pêndulo, de sua forma atroz. (598)

Arquitetura românica. O equilíbrio está acima da força da gra-


vidade, as pedras suspensas no ponto de equilíbrio, repousando neste
ponto, que está no ar e não no solo.
É o mesmo com o ponto de viragem na música. É necessário
que aquele que capta a atenção seja o de cima e não o de baixo. (598)

Tal como o poder, o dinheiro é puramente um meio. Seu único


valor reside na capacidade de adquirir coisas para nós. Mas nosso
bem supremo, nosso fim…
Aquilo que é puramente um meio é uma forma substituta do
fim absoluto por causa de sua onipresença.
Daí a comparação entre o reino dos céus e uma pérola.
O dinheiro é uma imagem. (598-599)

629
A fonte de minhas dificuldades reside no facto de que, por
exaustão, por falta de energia vital, estou abaixo do nível de atividade
normal. E se algo me agarra e me levanta, sou elevada acima dele.
Quando esses momentos chegam, parece-me uma calamidade desper-
diçá-los em atividades comuns. Em outras ocasiões, eu deveria ter co-
metido uma violência que, na verdade, continuo incapaz de fazer a
mim mesma.
Eu poderia consentir na anomalia de comportamento resul-
tante disso; mas sei, ou acredito que sei, que não deveria fazer isso.
Envolve crimes de omissão para com os outros. E quanto a mim, isso
aprisiona-me.
Que método existe então?
O certo é que devo praticar a transformação da sensação de es-
forço numa sensação passiva de sofrimento. Posso conseguir fazê-lo
de qualquer maneira no que se refere àqueles esforços – por mais
raros que sejam – que realizaria em qualquer caso. (601)

Uma má união de opostos. O imperialismo operário desenvol-


vido pelo marxismo. Provérbios latinos sobre a insolência de escravos
recém-libertados. A insolência e o servilismo são agravados um pelo
outro. O poder dos fracos em sua capacidade de fracos constitui o
bem. O exemplo de Cristo na Cruz. O que há de específico na má
união e na boa união dos opostos?
Anarquistas sinceros, vislumbrando como que através de uma
névoa o princípio da união dos opostos, pensaram que dando poder
aos oprimidos o mal poderia ser destruído.
A má união dos opostos (má porque falaciosa) é aquela que se
consegue no mesmo plano dos opostos. A verdadeira união ocorre
no plano superior. Matemática.
A função da dor é separar os opostos unidos e, então, uni-los

630
novamente (o que constitui alegria) num plano superior ao de sua
união inicial. Isso provoca uma pulsação mesclada de dor e alegria;
mas a alegria prevalece.
Dor é violência, alegria é gentileza, mas a alegria é mais forte.
Na música, as passagens lentas, descendentes, de piano, natural-
mente associadas a uma impressão de tristeza, exercem, no entanto,
a função de alegria, daquela doçura que é mais forte que a violência.
É uma união redobrada de opostos. É isso que torna a música sub-
lime – uma alegria intelectual.
A impressão de fraqueza, de ausência de força – uma fraqueza
comparável à de Cristo – domina em toda música pura.
Um artista genial coloca Deus não na intenção que motiva sua
arte, mas nos processos reais de sua técnica. (601-602)

Par de opostos dominação-opressão. Colocar o poder nas mãos


dos oprimidos é um sonho impossível. O que está acima da domina-
ção é o ponto de unidade, isto é, a limitação do poder. Por meio
disso, os fracos são mais fortes do que os fortes (cf. os Upanishads, o
Górgias). Eles são mais fortes por meio da Lei – a Lei que é equilíbrio.
A matemática fornece a prova de que tudo é obediente a Deus.
(602)

“Igualdade geométrica” no Górgias – refere-se à obediência.


(Igualdade geométrica é a mesma coisa que proporção.) Colocámo-
nos em algum tipo de igualdade de rácios com Deus obedecendo-lhe
– pelo menos na medida em que a semelhança geométrica pode ser
considerada semelhante à igualdade. A avareza é o pecado original; o
desejo de autoengrandecimento. Nove é para o três, assim como três
é para o um. Se passamos do nove para o oito, não chegamos mais

631
perto do um, afastamo-nos mais. (E se passarmos para o dez, ficare-
mos duplamente mais longe dele.)
Um – o menor dos números. “O Uno que é o único sábio.” Esse
é o infinito. Um número que aumenta pensa que está se aproxi-
mando do infinito. Ele está se afastando. Temos de se parar para su-
bir.
O círculo é um símbolo de multiplicação. Nós o contornamos
tantas vezes, e de acordo com a marcação deste ou daquele número
de pontos nele… No entanto, cada volta forma uma unidade.
De onde tiramos a comutatividade?
Se o 1 é Deus, o ∞ é o diabo.
Cada número torna-se unidade quando tomado como origem
de uma série de múltiplos. A transferência da unidade para o nú-
mero. Mediação. Quando a unidade é transferida para um número,
este número é transferido para a segunda potência.
Tomemos 9. No rácio de 9 para a unidade, 3 é ao mesmo tempo
3 e unidade. Portanto, 9 é ao mesmo tempo 9 e 3. E sendo 3, o nú-
mero 9 é algo correspondente a 1. (Pois é possível conceber um nú-
mero que é 3 para 9.)
Justiça é um número elevado à segunda potência. O justo é
aquele entre o qual e Deus a mediação é possível.
Mas através do destino reservado às figuras planas – que é uma
maravilha sobrenatural – há mediação entre a unidade e qualquer
número. Os números que não são naturalmente semelhantes à uni-
dade assemelham-se a ela de forma sobrenatural. (602-603)

Não há nada além da Beleza. Só o Bem é mais do que a Beleza;


mas não está além, está no fim da Beleza da mesma maneira que o
ponto que termina um segmento de uma linha reta. (605)

632
Existem poucas certezas internas que podem realmente e legiti-
mamente ser consideradas como certezas absolutas. O sentimento do
mal em nós mesmos é uma delas. Quando sentimos o mal em nós
mesmos, temos absoluta certeza de que ele existe; embora possamos
estar enganados em relação à localização atual dele.
Mas visto que Deus é a verdade, essa certeza representa o con-
tato com Deus. Devemos alegrar-nos por isso. Só a verdade pode des-
truir o mal em nós. Essa certeza do mal é ela mesma destrutiva do
mal, desde que seja apreendida como tal.
Mas é uma forma lenta de destruição. Precisamos ser pacientes
e ao mesmo tempo impacientes se quisermos apressar a destruição.
(605)

Existe uma doutrina esotérica contida no Timeu – a da semente.


Para descobri-la, devem ser colocadas lado a lado as várias passagens
deliberadamente espalhadas para cima e para baixo.
A alma imortal está situada na cabeça; a alma de valor entre o
pescoço e o diafragma; a alma que deseja comer e beber e de tudo o
que nossa natureza corporal necessita entre o diafragma e o umbigo.
O fígado reflete como um espelho [coragem] [força] a energia das
conceções derivadas da mente. Desse modo, a mente traz dor ou ale-
gria para a alma situada na região do fígado e, à noite, torna-a capaz
de adivinhação. O que constitui adivinhação está alojado na alma
inferior (70).
73 – “A origem dos ossos e da carne está na produção da me-
dula. Pois os laços da vida, visto que a alma está unida ao corpo,
sendo feita firmemente na medula, são a raiz e o alicerce do gênero
humano. A própria medula é gerada a partir de outros materiais. Deus
tomou todos os triângulos primários que eram retos e lisos e, conse-
quentemente, eminentemente adaptados para produzir precisamente

633
fogo, água, ar e terra, e os separou de seus respetivos tipos, mistu-
rando-os uns com os outros de acordo com uma proporção (isto é,
em progressão geométrica). Tendo assim elaborado uma semente uni-
versal para toda a humanidade, passou então a fazer a medula; e nesta
última substância ele plantou então as essências das almas. E essa
parte da medula que, como um campo, deveria receber a semente
divina, ele a fez de modo plena e chamou-lhe cérebro.”
A medula que contém a parte mortal da alma é redonda e alon-
gada e está alojada na medula espinhal.
O corpo é apenas a cobertura para a medula.
O crânio é uma cobertura óssea na qual há suturas. Uma humi-
dade sobe dessas suturas. “A diversidade dessas suturas é causada pelo
poder dos cursos circulares e da comida; quanto mais essas duas for-
mas de poder lutam uma contra a outra, mais numerosas são as su-
turas, e quanto menos o fazem, menos delas há.”
77 – Assim como os canais de irrigação, os dutos de reboque
situam-se dos dois lados da medula de geração, para que receba o
máximo de humidade possível, e daí a irrigação possa ser feita como
se fosse em um declive, produzindo assim uma humidade uniforme
em todas as outras partes do corpo.
“Aquele em quem a semente é produzida na medula espinhal
em grande quantidade e fluindo, e cuja natureza é como a de uma
árvore carregada de frutos, pois está sempre experimentando muitos
tormentos e prazeres em seus desejos e na prole de esses desejos, estão
na maior parte de sua vida perturbados, porque seus prazeres e dores
são tão grandes... é por um arranjo desordenado do corpo e uma
educação deficiente que alguém se torna mau.”
“Deus deu o tipo de alma que predomina em cada um de nós
para ser nosso espírito [tutelar].... Por meio de sua relação com o céu,
ela nos eleva acima da terra, transformando-nos em plantas não de

634
um terreno, mas de um celestial crescimento. Pois o poder divino
suspendeu nossa cabeça e raiz daquele lugar onde a geração da alma
primeiro começou, e assim tornou todo o corpo ereto.”
“...aquele que sempre serviu ao poder divino e preservou o espí-
rito que habita com e nele em perfeita ordem...”
“...dar a cada coisa o alimento e o movimento que lhe são natu-
rais...”
“Os movimentos que são naturalmente semelhantes ao princí-
pio divino dentro de nós são as conceções e [revoluções circulares]
ciclos do Universo. Cada homem deve esforçar-se a segui-las, corri-
gindo assim a corrupção dos períodos relacionados com o devir (ou
geração?). Em nossa cabeça através de um estudo da harmonia e dos
movimentos do Universo, assimilando o ser pensante ao pensa-
mento, de acordo com sua natureza original, e por esta assimilação
alcançando aquela vida perfeita que a divindade colocou diante da
humanidade, tanto aqui em baixo como daqui em diante.”
“E esta foi a razão do porquê (na segunda geração, quando cer-
tos homens maus vieram ao mundo como mulheres) naquela época
os deuses fixaram o desejo de relações sexuais, inventando no ho-
mem uma substância animada, e na mulher outra, que eles formaram
respetivamente da seguinte maneira. A saída de bebida pela qual os
líquidos, tendo atravessado os pulmões, passam sob os rins e na be-
xiga... foi perfurada e formada por eles com a ajuda da medula que
se origina na cabeça e passa daí ao longo do pescoço e através das
costas, e que já chamamos de semente. E esta semente, tendo vida e
sendo dotada de respiração, o órgão pelo qual ela respira produz nela
um impulso vital de emissão, e assim cria em nós o desejo de procriar.
É por isso que, nos homens, o órgão da geração é congenitamente
rebelde e tirânico, como um ser vivo que se recusa a ouvir a razão e
que, sob o impulso da necessidade, busca o domínio absoluto. E o

635
mesmo é o caso com o chamado útero ou matriz das mulheres, que
nelas é como um ser vivo desejoso de procriar filhos e que, ao perma-
necer infrutífero muito além do seu devido tempo, fica descontente
e zangado, e vagando em todas as direções através do corpo, fecha as
passagens da respiração, obstruindo assim a respiração, leva-os ao ex-
tremo, causando todas as variedades de doenças, até que finalmente
o desejo e o amor do homem e da mulher aproximando-se, eles, por
assim dizer, arrancando um fruto de uma árvore, semeiam no ventre,
como num campo, coisas vivas invisíveis por causa de sua pequenez
e sem forma.” (606-608)

A doutrina é clara.
A semente sobrenatural em nós é um ser vivo, diferente de nós,
um ser divino, um mediador. Seu corpo gira no crânio como uma
estrela. A cada revolução, ele sobe até a abertura no crânio (como os
deuses fazem com a abertura no céu no Fedro), e ali ramifica-se e re-
cebe seu alimento do céu no qual está suspenso, e no qual estamos
suspensos por meio dele. É a caridade, o órgão do amor sobrenatural.
Mas se devido à lentidão da mente não é transportado para cima pelo
movimento circular do cérebro, cai na medula espinhal, e a necessi-
dade urgente de respirar leva-o até os órgãos sexuais, de onde quer
emergir para viver. Só pode fazer isso, se masculino, por emissão se-
xual; se feminina, por meio do parto, após unir-se no ato da conceção
com a semente masculina. Depois do que, no novo ser assim produ-
zido, o mesmo processo recomeça.
Essa divindade em nós, uma vez caída na base do cordão espiri-
tual, onde mora a alma vegetativa, torna-se um poder demoníaco. Ela
exerce violência sobre a vontade e leva-nos ao mal.
De acordo com isso, todo apego, toda paixão, representa o de-

636
sejo sexual. O todo de Freud está contido em Platão. Mas não o con-
trário! Freud percebeu essa verdade e não entendeu nada sobre ela.
O alimento imortal sempre desce pelas aberturas no crânio; mas
dependendo se é assimilado na cabeça ou na região dos lombos, é
graça divina ou impulso demoníaco.
Toda a teoria hindu sobre a sexualidade está contida nesses tex-
tos.
A medula espinhal (éphine dorsale) é a árvore do pecado original,
a árvore do bem e do mal (eles, por assim dizer, arrancam um fruto
de uma árvore). E é a árvore da Vida: as duas coisas ao mesmo tempo.
Pois ela é vertical de cima para baixo e de baixo para cima. Por meio
dela, a semente desce até os lombos e, por meio dela, a semente tam-
bém sobe até o cérebro no processo de conversão.
O homem vem a este mundo com as revoluções de seu cérebro
tão desordenadas que a semente divina começa descendo até a base
da medula espinhal. Isso representa o Pecado Original.
A semente é o grão de milho no campo do útero. Também pode
ser um grão de milho semeado no cérebro.
As revoluções da alma são perturbadas pelo que entra e sai do
corpo – comida e sexo.
O movimento ordenado da alma é um movimento circular no
cérebro e um movimento alternado com o mesmo ciclo na medula
espinhal.
É sem dúvida assim que a música ajuda as revoluções da alma.
E ajuda a semente da imortalidade a permanecer e dar frutos no cé-
rebro.
A semente da imortalidade é o mesmo que amrtam, o alimento
ou bebida imortal.
Atena brotando do topo da cabeça de Zeus, após Zeus ter co-
mido sua mãe grávida, é uma imagem dessa doutrina.

637
Mas como vieram os gregos a artilhá-la com os hindus?
A injunção de apenas realizar o ato sexual com o propósito de
ter filhos deve, sem dúvida, ser interpretada de forma muito mais
estrita do que a da Igreja; não no sentido de que a possibilidade de
ter filhos legitima o ato sexual; mas no sentido de que, depois de tê-
lo renunciado totalmente, recorre-se a ele em algumas ocasiões ao
longo da vida em obediência às palavras “aumentai e multiplicai-vos”,
exceto onde mesmo isso é descartado como resultando de uma voca-
ção poderosa. Desta forma, dificilmente haveria qualquer diferença
entre o pai de família e um monge, no que diz respeito à castidade.
Certamente, isso não é para todos. Mas, então, amar a Deus
também não é para todos. A castidade deve ser um mandamento
como o amor de Deus, ou seja, uma sugestão de polarização, não uma
regra fixa. As regras estabelecidas devem apenas proibir o que consti-
tui crime contra o próximo. O que é necessário é, ao mesmo tempo,
muito mais rigor e muito menos. Muito mais em definir o que cons-
titui o bem; muito menos em definir o que é proibido. (608-610)

A conceção de punição no Górgias. Quando o punho de uma


espada é segurado por uma mão pura, a ponta purifica-se. Assim,
toda dor enviada por Deus é purificatória. Para aquele que ama a
Deus, toda dor que ocorre é enviada por Deus. Mas não no caso de
outras pessoas; pois as criaturas humanas formam uma tela. Assim,
se causamos sofrimento a alguém que não é santo – a menos que
sejamos obrigados a fazê-lo por algum dever avassalador, que lhe es-
teja ao mesmo tempo ligado – somos nós que realmente lhe fazemos
mal. E a mesma coisa se aplica se não aliviarmos o sofrimento de
outra pessoa quando estamos em posição de fazê-lo.
O mesmo amor é feito da aceitação de todo sofrimento irreme-
diável, da tristeza por toda a dor humana, e da caridade ativa para

638
com o próximo. (610)

Para que o ato de gerar seja realmente uma imitação da criação


divina, terá de ser um ato de generosidade e não de desejo. O ho-
mem, tendo atingido um estado de perfeita castidade e estando ple-
namente consciente do seu valor, calmo na posse deste dom, teria em
certa ocasião que renunciar a uma partícula desta energia supra-vital
para que outro ser fosse trazido à existência. E o mesmo se aplica à
mulher.
O amor paterno e maternal seria então pura generosidade e a
gratidão filial teria uma justificativa. “Dar à luz” teria um significado.
Falhando isso, um Pecado Original deve necessariamente existir
em cada família. (610)

A vida humana é feita de tal modo que muitos dos problemas


que se apresentam a todos os homens, sem exceção, são insolúveis
fora da santidade.
O destino espiritual dos pais no momento da conceção deve ter
uma influência maior na disposição congênita de um ser humano do
que a posição das estrelas no momento do nascimento.
O sistema de castas estava ligado a esta ideia – com o pensa-
mento de que um homem e uma mulher que são verdadeiros brâma-
nes e cumprem as obrigações inerentes à sua condição em todos os
seus atos, e especialmente no ato sexual, só podem trazer ao mundo
um verdadeiro brâmane?
Esse sistema estaria longe de ser absurdo.
(No entanto, é certo que um verdadeiro brâmane pode nascer
nas classes inferiores.) (611)

Os atenienses, retornando como suplicantes a Delfos, após o

639
pronunciamento de um oráculo atroz sobre a destruição de Atenas:
“Ó rei, trata com respeito estes sinais de súplica.” (Heródoto, VII,
141)
Por meio da súplica, e não de outra forma, o homem se torna
um objeto de respeito da parte de Deus.
(Cf. no Prometeu de Ésquilo: “Tinhas reverência demais pelos
homens mortais...”)
Todo suplicante, se sua súplica se dirige a Deus, imediatamente
assume algo do divino.
É nisso, e não nos sentimentos de piedade, que o poder de sú-
plica reside no que diz respeito aos homens.
Qualquer homem que implorar outro homem desta forma não
se degradará. Mas sempre te rebaixas se pedes algo a alguém, sabendo
que por meio dele os teus pensamentos não podem ser canalizados
para Deus.
Os ramos dos suplicantes costumavam ser manchados ao serem
carregados para a Cúria Romana.
Qual é o significado do ramo suplicante? (611)

Deus é o único objeto de oração. A oração é um movimento em


direção a Deus. Pois o desejo só se torna uma operação autêntica
dentro da esfera do sobrenatural. É por isso que implorar a um ho-
mem como tal é uma ação degradante. Ser implorado é uma conta-
minação. (612)

A ordem do mundo é feita para nós, para nos fazer aceitar o


sofrimento, e estende-se a coisas que estão fora do nosso campo de
conhecimento; pois nos são inúteis, exceto na medida em que estão
fora de nós, indiferentes a nós. Jó.
Se nos vemos a nós mesmos como um fim no mundo, o mundo

640
é um caos e sem finalidade. Se nos eliminamos a nós mesmos, a fina-
lidade do mundo se manifesta; mas não há fim algum.
Deus é o único e singular fim. Mas ele não é realmente um fim,
visto que não depende de nenhum meio. Tudo aquilo que tem Deus
como fim é finalidade sem fim. Tudo aquilo que tem um fim próprio
é privado de finalidade.
É por isso que devemos transformar a finalidade em necessi-
dade. E é isso que conseguimos fazer por meio da noção de obediên-
cia.
O sofrimento que anda de mãos dadas com a necessidade con-
duz-nos à finalidade sem fim.
É por isso que o espetáculo da miséria humana é belo.
A beleza é a única fonte de alegria que nos está disponível. (613)

Heródoto, VII, 11 – “O ódio não contém nenhum grau inter-


mediário.”
Não é como o amor.
Limitação é a evidência de que Deus nos ama. (613)

A Criação é um ato de amor e algo que ocorre perpetuamente.


A cada momento nossa existência é o amor de Deus por nós. Mas
Deus só se pode amar a si mesmo. Seu amor por nós é amor por si
mesmo por meio de nós. Portanto, aquele que nos dá o nosso ser,
ama em nós o nosso consentimento em não ser. Se esse consenti-
mento for virtual, ele nos ama virtualmente.
Nossa existência nada mais é do que sua vontade de que consin-
tamos em não existir.
Ele está sempre implorando de nós a existência que nos dá. E
ele nos dá para implorá-la de nós. (613-614)

641
O papel da beleza é realizar a união eliminando a distância.
Temos de ficar quietos e unir-nos com o que desejamos, mas
sem nos aproximarmos...
Nós unimo-nos a Deus dessa maneira: não podemos aproximar-
nos dele.
A distância é a alma da beleza.
O conhecimento das distâncias que as coisas observam nos en-
sina a obediência, erradica o elemento arbitrário em nós, que é a
causa de todo erro. (615)

Visto que existe em Deus a contrapartida de todas as formas


humanas de bem, também existe obediência. É o jogo livre que, neste
mundo, ele deixa à necessidade. Não isto claro – independentemente
das evidências da ciência – da tentação de Cristo? (615)

[O cristianismo primitivo inventou o veneno representado pela


noção de progresso por meio da ideia de um sistema divino de edu-
cação que prepara os homens para torná-los aptos a receber a mensa-
gem de Cristo. Isso encaixava-se nas esperanças de uma conversão
universal das nações e do fim do mundo, ambos considerados imi-
nentes. Mas quando nenhuma dessas duas coisas aconteceu, no final
de dezasseis ou dezassete séculos essa noção de progresso foi prolon-
gada além do contexto temporal da revelação cristã. Consequente-
mente, estava fadada a voltar-se contra o Cristianismo.
No Apocalipse não há nenhum traço dessa ideia. Existe algum
em São Paulo? Não me parece. Sem dúvida, isso viria um pouco mais
tarde. – Em São Tomás? Tenho de descobrir.
Os outros venenos misturados com a verdade do Cristianismo
são de origem judaica. Mas este é especificamente Cristão.
A metáfora da pedagogia divina dissolve o destino individual –

642
o único que conta para a salvação – no dos povos em geral.
O Cristianismo tentou descobrir uma harmonia na história.
Este é o germe em Hegel e, consequentemente, em Marx. A noção
de história como uma continuidade direcionada é Cristã.
Parece-me que existem poucas ideias mais completamente falsas
do que esta. É buscar a harmonia no Devir, no que é exatamente o
oposto do eterno. É uma má união de opostos.
O humanismo e tudo o que seguiu seus passos não é um retorno
à antiguidade, mas um desenvolvimento dos venenos dentro do Cris-
tianismo.] (615-616)

O puro amor pelas criaturas; não o amor por causa de Deus,


mas o amor que passou por Deus como por um fogo. É um amor que
se desprende totalmente das criaturas para ascender a Deus, e depois
redescende de Deus ligado ao amor criador de Deus.
Desta forma, os dois opostos que separam o amor humano tor-
nam-se unidos: amar o ser amado como ele é e desejar criá-lo de novo.
(616)

A ideia do caos original corresponde à dupla causalidade ligada


a Deus. Deus é a causa de tudo, mas duplamente a causa do bem, e
através da causalidade que faz o bem proceder dele, não é a causa do
resto. A mesma coisa se aplica ao mundo e à ordem do mundo. Ele
é a causa de todos e o agente inspirador do bem; a causa do mundo
e o agente inspirador da ordem do mundo. (616)

Existem todos os graus de distância que separam a criatura de


Deus. Uma distância onde o amor de Deus é impossível. Matéria,
plantas, animais. Aqui, o mal é tão completo que se anula: já não há
mal: espelho da inocência divina. Estamos no ponto em que o amor

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é simplesmente possível. É um grande privilégio, pois o amor que faz
a ponte é proporcional à distância.
Deus criou um mundo que não é o melhor possível, mas pos-
suindo todas as fases do bem e do mal. Estamos situados no ponto
em que é tão mau quanto possível; pois além é o estágio onde o mal
se torna inocência. Loop, círculo, reversão dos opostos. (617)

O exercício da razão torna as coisas transparentes para a mente.


Mas não vemos o que é transparente. Vemos o que é opaco através
do que é transparente, o opaco que era invisível quando o transpa-
rente não era transparente. Vemos a poeira na vidraça ou a paisagem
além, mas nunca na vidraça. Limpar a poeira serve apenas para olhar
a paisagem. A razão só deve exercer a sua função demonstrativa para
atingir a fase de confrontação com os verdadeiros mistérios, os verda-
deiros indemonstráveis, que constituem a realidade. O não-compre-
endido esconde da vista o incompreensível e por isso deve ser elimi-
nado.
Na Caverna, os objetos iluminados são opacos.
Através do simples olhar para eles, finalmente conseguiremos
direcionar o olhar para a fonte pura de luz.
A inteligência se exercita na obediência, enfrentando o ininteli-
gível.
Na passagem referente à Caverna, o olho representa a faculdade
do amor, a habilidade de discernir fins. O olho não pode amar outra
coisa senão em Deus, ou melhor, pela mediação do amor divino.
Os homens na Caverna estão sempre se movendo em direção a
alguma coisa. A contemplação das relações das quais a força e a utili-
dade são excluídas significa exercer o movimento circular do cérebro,
que não se dirige a nada em particular.
Conceber tais relações concebendo limitações, constantes que

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exercem controle sobre as variações, uma obediência.
A constante e a variação constituem um movimento circular em
torno de um centro. A variação que obedece à constante não tende
a lugar nenhum.
A subordinação da variação à constante abole a direção, trans-
forma a variação numa simples imagem de imobilidade. Desse modo,
a atenção que se concentra na própria variação torna-se imóvel; está
polarizado para o que é, não para o que será.
Esse uso da matemática desaparece se forem empregados com o
objetivo de descobrir algo em particular.
Sair da Caverna significa aprender a não buscar a finalidade no
futuro.
O presente não atinge a finalidade. Nem o futuro, pois é apenas
o que estará presente. Mas não sabemos disso. A rejeição do presente
é patente. Se aplicarmos ao presente o ponto daquele desejo dentro
de nós que corresponde à finalidade, ele penetra direto no eterno.
É o uso do desespero que desvia a atenção do futuro. (617-618)

O amor pela pátria é puro enquanto for amor pelo que é, não
pelo que pode ser no futuro; desde que seja o amor do homem pela
harmonia que une o corpo coletivo dos cidadãos, e não uma partici-
pação no amor da Grande Besta por si mesma.
A Grande Besta é o único objeto de idolatria, a única forma
substituta de Deus, a única imitação de um objeto que está infinita-
mente distante de mim e ainda sou eu. (618)

Quando nos dececionamos com algum prazer que esperávamos


e que finalmente chega, a razão do nosso desapontamento é porque
esperávamos o futuro, e logo que ele está aí é o presente. Queremos
que o futuro esteja presente sem deixar de ser o futuro. Este é um

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absurdo para o qual somente a eternidade fornece a cura. (619)

Preciso que Deus me leve à força; pois se a morte, removendo a


tela da carne, me colocasse agora cara a cara com ele, e ele me dei-
xasse livre, eu fugiria. (622)

O que nos impede de fazer os esforços que nos aproximam do


bem é a aversão da carne; mas não é a aversão da carne diante do
esforço. É a aversão da carne diante do bem; porque por uma má
causa, se houver um incentivo forte o suficiente, a carne consentirá
em tudo, sabendo que pode fazê-lo sem morrer. A própria morte,
suportada por uma má causa, não é realmente morte para a parte
carnal da alma. O que é morte para a parte carnal da alma é ver Deus
face a face.
É por isso que fugimos do vazio interior, porque Deus pode en-
trar furtivamente nele.
A aversão por fazer uma boa ação é um sinal claro de que ela é
realmente boa. Não devemos procurar superar essa aversão. Devemos
considerar a ação com aversão e fazê-la.
[Mas considerar uma ação com aversão e não a praticar é uma
coisa indigna. Geralmente é o meu caso.]
Não é a busca do prazer e a aversão ao esforço que causa o pe-
cado, mas o medo de Deus. Sabemos que não podemos vê-lo cara a
cara sem morrer e não queremos morrer. Sabemos que o pecado nos
preserva muito efetivamente de vê-lo face a face. O prazer e a dor
apenas nos fornecem o ligeiro impulso indispensável para o pecado
e, sobretudo, o pretexto ou álibi ainda mais indispensável. Da mesma
forma que os pretextos são necessários para as guerras injustas – e
não importa que sejam desajeitados –, a promessa de algum bem falso
é necessária para o pecado, pois não somos capazes de suportar o

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pensamento de estarmos indo na direção do mal. Essa direção é im-
possível para nós. A carne fornece as falsas formas do bem. A carne
não é o que nos afasta de Deus; é o véu que colocamos diante de nós
para nos protegermos dele.
Este talvez seja o caso somente depois que um certo ponto for
alcançado. A imagem da Caverna parece sugerir isso. No início, é o
movimento que dói. Quando alcançamos a abertura, é a luz. Não
apenas cega, mas nos fere. Nossos olhos afastam-se dela.
[Não pode ser verdade que daquele momento em diante todos
os pecados que cometemos são pecados mortais? Usar a carne para
nos esconder da luz – não é um pecado mortal? Pensamento terrível.
Melhor ser um leproso.] (622-623)

Todo crime é uma transferência de mal daquele que age para


aquele que sofre o resultado da ação. Isso é verdade tanto para o amor
ilegal quanto para o assassinato. Quando existe uma quantidade igual
de maldade de cada lado, o crime se reduz a violência ou depravação
física.
A máquina da justiça penal foi tão contaminada pelo mal, de-
pois de todos os séculos durante os quais esteve, sem qualquer puri-
ficação compensatória, em contato com malfeitores, que uma sen-
tença judicial é muitas vezes uma transferência de mal da própria má-
quina penal ao condenado, um crime cometido contra o condenado;
e isso é possível mesmo quando ele é culpado e a punição não é des-
proporcional. Criminosos empedernidos são as únicas pessoas a
quem a máquina penal não pode causar danos. Isso causa um dano
terrível aos inocentes.
Quando há uma transferência de mal, o mal não é diminuído,
mas aumentado naquele de quem procede. Este é um fenômeno de
multiplicação. O mesmo é verdade quando o mal é transferido não

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aos seres humanos, mas às coisas.
Onde, então, devemos colocar o mal?
Temos de o transferir da parte impura para a parte pura de nós
mesmos – se tal coisa existe em nós, mesmo que seja apenas uma
partícula – transmutando-a em puro sofrimento. Devemos infligir a
nós mesmos o crime que está latente em nós.
Desta forma, entretanto, não levaríamos muito tempo para
manchar nossa própria partícula de pureza interior se não a renovás-
semos pelo contato com uma pureza imutável situada fora de nós,
além de todo alcance possível.
A paciência consiste em não transformar o sofrimento em
crime. Isso por si só é suficiente para transformar o crime em sofri-
mento.
Transferir o mal para coisas externas é distorcer a relação entre
as coisas. Aquilo que é preciso e fixo – proporção numérica, harmo-
nia, que suporta esta distorção. Qualquer que seja o meu estado, seja
de vigor ou de fadiga mortal, em cinco milhas há cinco marcos. É por
isso que o número dói quando estamos sofrendo: ele se opõe à ope-
ração de transferência. Fixar minha atenção no que é inflexível de-
mais para sofrer distorção por meio de minhas modificações internas
é preparar o surgimento em mim de algo que não pode ser modifi-
cado – desde que isso seja feito com essa intenção. (624-625)

“Ele rir-se-á do julgamento dos inocentes.” Silêncio de Deus. Os


ruídos aqui em baixo imitam esse silêncio. Eles não significam nada.
Chartier não entendeu bem onde reside o valor real da pura
necessidade.
Ouvir em todos os ruídos o silêncio de Deus.
Como poderíamos ouvir o silêncio de Deus se os ruídos aqui
em baixo significassem alguma coisa? Por efeito de sua bondade, eles

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não significam absolutamente nada.
Deus permitiu a Deus enviar um clamor a ele e não respondeu.
É quando, do fundo do nosso ser, precisamos de um som que
tenha algum significado – quando clamamos por uma resposta e ela
não nos é concedida – é então que tocamos o silêncio de Deus.
Via de regra, nossa imaginação põe palavras nos sons da mesma
maneira que brincamos preguiçosamente em distinguir formas em
linho amarrotado ou em grinaldas de fumaça. Mas quando estamos
exaustos demais, quando não temos mais coragem de brincar, então
precisamos ter palavras reais. Nós clamamos por elas. O choro rasga
nossas próprias entranhas. Tudo o que conseguimos é silêncio.
Depois de passar por isso, alguns começam a falar consigo mes-
mos como fazem os loucos. O que quer que façam depois, não deve-
mos ter outra coisa senão pena deles. Outros – e não são numerosos
– dedicam todo o seu coração ao silêncio.
Muitos seres humanos também, talvez, cheguem à morte sem
nunca terem passado por essa experiência. Mas quem sabe? Perma-
nece o segredo dos corações.
A Palavra é o silêncio de Deus na alma. É isso que Cristo é em
nós. (626-627)

Só Deus é capaz de sofrer injustiças sem que isso lhe cause dano.
Para sermos absolutamente justos, temos de ser capazes de sofrer a
injustiça sem que isso nos faça mal. Caso contrário, rapidamente nos
tornamos injustos quando debaixo de opressão. O absolutamente
Justo só pode ser Deus encarnado. (627)

Consideramos sempre para a estética um ramo especial de es-


tudo, embora seja, na verdade, a chave para verdades sobrenaturais.
(627)

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A grande aflição do homem, que começa na infância e o acom-
panha até a morte, é que olhar e comer são duas operações diferentes.
A beatitude eterna (cf. o mito do Fedro) é um estado onde olhar é
comer.
O que vemos aqui abaixo não é real, é um mero cenário. O que
comemos é destruído, não é mais real.
O pecado trouxe essa separação em nós. (637)

Desejo carnal e a atração sentida por belos rostos. A necessidade


que sentimos de quebrar, estilhaçar nossa própria impureza interior
contra alguma pureza exterior e perfeita, como contra uma pedra.
Mas aquilo em nós que é de segunda categoria rebela-se e requer, para
salvar sua vida, manchar essa pureza.
Sujar é modificar, tocar. A beleza é aquilo que não podemos de-
sejar mudar. Adquirir poder é sujar. Possuir é manchar. (637)

O medo de Deus considerado como o sétimo dom do Espírito


Santo – (cf. São João da Cruz). É o medo inspirado por uma alegria
muito grande e pura; o medo de uma mãe que vai ver seu filho nova-
mente após uma longa separação durante a qual ela acreditava que
ele estava morto, e tem medo de morrer de alegria. (637)

Ele entrou em meu quarto e disse: “Pobre criatura, que não en-
tendes nada, que não sabes de nada. Vem comigo e te ensinarei coisas
que não suspeitas”. Eu o segui.
Ele me levou a uma igreja. Era nova e feia. Me conduziu até o
altar e disse: “Ajoelha-te.” Eu disse: “Não fui batizada.” Ele disse:
“Ajoelha-te diante deste lugar, em amor, como diante do lugar onde
está a verdade.” Eu obedeci.

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Ele trouxe-me para fora e fez-me subir até um sótão. Pela janela
aberta via-se toda a cidade espalhada, alguns andaimes de madeira e
o rio onde os barcos estavam sendo descarregados. O sótão estava
vazio, exceto por uma mesa e duas cadeiras. Pediu para sentar.
Estávamos sozinhos. Ele falou. De vez em quando, alguém en-
trava, envolvia-se na conversa e depois ia embora.
O inverno havia acabado; a primavera ainda não havia chegado.
Os galhos das árvores estavam nus, sem botões, no ar frio cheio de
sol.
A luz do dia surgia, brilhava em esplendor e desaparecia; então
a lua e as estrelas entravam pela janela. E então mais uma vez o ama-
nhecer surgia.
Às vezes ele ficava em silêncio, pegava um pedaço de pão no
armário e nós o dividíamos. Este pão realmente tinha gosto de pão.
Nunca mais encontrei aquele sabor.
Ele derramaria um pouco de vinho para mim e um pouco para
ele – vinho com gosto de sol e do solo sobre o qual esta cidade foi
construída.
Em outras ocasiões, esticávamo-nos no chão do sótão e um doce
sono me envolvia. Então, eu acordava e bebia à luz do sol.
Ele havia prometido ensinar-me, mas não me ensinara nada.
Conversamos sobre todo o tipo de coisas, de forma desconexa, como
fazem velhos amigos.
Um dia ele me disse: “Agora vai.” Caí diante dele, agarrei seus
joelhos, implorei-lhe que não me afugentasse. Mas ele jogou-me na
escada. Caí inconsciente de qualquer coisa, meu coração como se es-
tivesse em pedaços. Vaguei pelas ruas. Então percebi que não tinha
ideia de onde ficava essa casa.
Nunca tentei encontrá-la novamente. Entendi que tinha vindo
atrás de mim por engano. Meu lugar não é naquele sótão. Pode ser

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em qualquer lugar – numa cela de prisão, numa daquelas salas de
estar de classe média cheias de bugigangas e pelúcia vermelha, na sala
de espera de uma estação – em qualquer lugar, exceto naquele sótão.
Às vezes não consigo deixar de tentar, com medo e remorso,
repetir para mim mesma uma parte do que ele me disse. Como vou
saber se me lembro bem? Ele não está lá para me dizer.
Eu sei bem que ele não me ama. Como poderia me amar? E, no
entanto, no fundo de mim algo, uma partícula de mim mesma, não
pode deixar de pensar, com medo e tremor, que talvez, apesar de
tudo, ele me ama. (638-639)

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