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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

S487c Serrani, Silvana (org.).


Cultura e Literatura no ensino de língua-discurso: a proposta multirrede-discursiva na
formação docente e no ensino-aprendizagem de línguas materna e estrangeira /
Organizadora: Silvana Serrani; Prefácio de Angela B. Kleiman.– 1. ed.– Campinas, SP :
Pontes Editores, 2020.
296 p.; il.; tabs.; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-217-0278-8
1. Análise do Discurso. 2. Ensino de Espanhol. 3. Ensino de Inglês. 4. Ensino de línguas.
5. Ensino de Português. 6. Formação do Professor. 7. Linguística Aplicada. 8. Literatura.
I. Título. II. Assunto. III. Serrani, Silvana.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Formação de professores – Estágios. 370.71


2. Didática - Métodos de ensino, instrução e estudo. 371.3
2. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418.007
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2020 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

apresentação............................................................................................9
Silvana Serrani

prefácio........................................................................................................17
Um percurso sólido e coerente, uma proposta modelar.
Angela B. Kleiman

A PROPOSTA MULTIRREDE-DISCURSIVA: ANTECEDENTES,


DESCRIÇÃO GERAL E EXEMPLOS.............................................................29
Silvana Serrani

LITERATURA E CULTURA NA AULA DE PORTUGUÊS (LÍNGUA


MATERNA): A PROPOSTA MULTIRREDE-DISCURSIVA EM UMA
EXPERIÊNCIA DIDÁTICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II...................65
Tainá Lopes

ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA: O GÊNERO


BIOGRAFIA EM PERSPECTIVA MULTIRREDE-DISCURSIVA...............101
Patricia H. Franzoni
Germán Correa

PROPOSTA MULTIRREDE-discursiva PARA ESTUDANTES DE LÍNGUA


PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO – O GÊNERO CRÔNICA.................133
Silvânia Siebert
SUBSÍDIOS PARA A COMPLEMENTAÇÃO MULTIRREDE-DISCURSIVA
DE LIVRO DIDÁTICO DE ESPANHOL A PARTIR DE UM CONTO
CUBANO: O UNIVERSO FEMININO COMO TEMA CULTURAL............157
Yamilka Rabasa

COMPONENTE CULTURAL-LITERÁRIO PARA ANÁLISE E


COMPLEMENTAÇÃO DE LIVRO DIDÁTICO: UM CASO DO
ENSINO DE ESPANHOL NO BRASIL...........................................................197
David Bueno

O ENSINO DE INGLÊS NA PERSPECTIVA DA PROPOSTA


MULTIRREDE-DISCURSIVA (MR-D): O ESTÁGIO SUPERVISIONADO
DE FORMAÇÃO .............................................................................................229
Ana Emília Fajardo Turbin

DESCONSTRUINDO ESTEREÓTIPOS CULTURAIS: ANÁLISE E


COMPLEMENTAÇÃO MULTIRREDE-DISCURSIVA EM LIVRO
DE INGLÊS.......................................................................................................255
Silvana Serrani

SOBRE A ORGANIZADORA.........................................................................289

SOBRE OS COLABORADORES....................................................................291
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA:


O GÊNERO BIOGRAFIA EM PERSPECTIVA
MULTIRREDE-DISCURSIVA

Patricia H. Franzoni
(UBA e UNER, Argentina)

Germán Correa
(UNER, Argentina)

Introdução

Nas últimas décadas, impulsionado pela intensificação de intercâm-


bios comerciais e culturais entre países da América Latina e pelos efeitos,
mesmo que flutuantes, do Mercosul, o português brasileiro, enquanto
objeto de estudo, foi entrecortado pelo viés de um imaginário diversifi-
cado. Concebido como língua estrangeira, língua regional ou língua de
vizinhança em contextos hispanofalantes como Paraguai, Uruguai ou
Argentina – que conformam um território linguístico complexo e multi-
facetado –, o português é ensinado em escolas e universidades públicas e
em diferentes espaços da educação não formal. Aprender a ler, escrever
ou falar em português para ganhar uma bolsa de estudo, para fazer pós-
graduação no Brasil, para ouvir música e desfrutar de um romance ou
uma telenovela, para fazer negócios ou, simplesmente, para ir de férias,
entre muitos outros motivos, não é algo exatamente novo, mas evidencia
um vivo interesse pela língua e a cultura brasileira.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Como formadores de professores de línguas para Educação Básica


e Superior, com experiência na elaboração de diretrizes curriculares e
materiais didáticos, concebemos o ensino das línguas estrangeiras en-
quanto educação linguística. Nessa linha, entendemos que o processo
envolve, muito além da possibilidade de se comunicar em uma língua
diferente, o acesso à cultura letrada e a compreensão da diversidade, ao
mesmo tempo que a reflexão sobre as línguas e a linguagem incide na
construção da identidade sociocultural dos aprendizes (cf. FRANZONI,
2015). Na Argentina, nosso contexto de trabalho, a abordagem sociocul-
tural da educação linguística é promovida por referenciais curriculares
que regulam tanto as trajetórias escolares quanto a formação de profes-
sores de línguas estrangeiras1. Ora, como esses princípios de educação
linguística e cultural se concretizam no cotidiano das aulas? O material
didático, em seus diferentes formatos e suportes e, em particular o li-
vro didático (LD), constitui um instrumento mediador produtivo nessa
direção? De que instrumentos o professor dispõe para desenhar um
itinerário que lhe permita integrar, articular saberes teóricos e práticos,
organizando o trabalho de forma sistematizada? Do ponto de vista do
traçado de percursos didáticos, foco do nosso trabalho, essa capacidade
de articulação permitiria abordar de forma significativa a análise e a
seleção de materiais. Isto diz respeito à compreensão de seus princípios
teórico-metodológicos para, assim, poder avaliar suas possibilidades
de uso e, na sequência, gerar condições para a elaboração de propostas
potenciadoras, em sintonia com os contextos de ensino.
Preocupados em oferecermos uma contribuição significativa,
nesse sentido, para o ensino de português, nível inicial, na Argentina,
tomamos por base a proposta Multirrede-Discursiva (MR-D) de Serrani
(2010; 2014; 2020, capítulo 1 deste volume) para apresentar exemplos
de análise e complementação de sequências retiradas da Unidade 4 do
LD, correspondente ao Ciclo Básico – Níveis 1 e 2 da Coleção Brasil
Intercultural – Língua e cultura brasileira para estrangeiros, de Mendes
et al., 2014. De uso frequente no Ensino Médio e em outros cursos desti-
1 Destacamos que, com alcances diferentes, os documentos oficiais enumerados a seguir reco-
nhecem a relevância do ensino de português: ARGENTINA, 2011a; ARGENTINA, 2011b;
ARGENTINA, 2012.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

nados a adolescentes, jovens e/ou adultos, conforme informação fornecida


por colaboradores do Centro-Leste argentino – região que concentra o
maior número de instituições dedicadas ao ensino de português no país
(cf. CORREA; AMABLE, 2015) –, a Coleção está organizada em “quatro
ciclos de aprendizagem de português para falantes de outras línguas, com
enfoque mais específico nos falantes de língua espanhola” (MENDES;
GUIMARÃES; NASCENTE BARBOSA, 2015, Apresentação, s/n).
Ao decidirmos analisar e complementar sequências destinadas a alunos
principiantes, pensamos no interesse de mostrar exemplos sobre como
o aluno pode participar de uma experiência de ensino em perspectiva
sociocultural, mesmo sem a necessidade de ele conhecer o sistema lin-
guístico do português em sua complexidade específica.
Quanto aos textos abordados, optamos por aqueles que, de um
modo geral, localizamos próximos do gênero biográfico. Esse recorte,
acreditamos, pode ser produtivo em um nível inicial de aprendizagem de
língua estrangeira, uma vez que o contato com textos – orais e escritos
– relacionados com a vida dos outros constitui uma experiência signifi-
cativa para impulsionar a tomada da palavra sobre si e sobre os contextos
próprios2. Dessa forma, o trabalho com narrativas de vida pode oferecer
uma prática relevante para o aluno expressar em português suas emoções
e opiniões, retratando pessoas e lugares, para ele conhecer personalidades
destacadas da sociedade brasileira e (re)descobrir, assim, personalidades
da sociedade argentina, ou para ele entender que uma mesma história
pode ser contada de diferentes pontos de vista. Com efeito, a compreensão
de como são construídas diferentes perspectivas enunciativas sobre um
mesmo assunto é crucial na formação de um leitor crítico e de um enun-
ciador responsável de seu dizer. É nesse sentido que o perfil biográfico
pode propiciar, a nosso ver, experiências de aprendizagem enriquecedoras
do ponto de vista intercultural e linguístico-discursivo.

2 Consideramos relevante salientar que, atentando sempre aos contextos linguísticos de partida,
esta modalidade de trabalho pode orientar o ensino de línguas tanto maternas quanto estrangeiras
ou segundas. Assim, o português brasileiro será uma língua outra lá onde o espanhol é a língua
que circula socialmente; já no Brasil, ele constitui o contexto linguístico de base para transitar
a educação formal e, também, para ser estudado por falantes de outras línguas – comunidades
indígenas, imigrantes residentes ou estrangeiros visitantes.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

1. A perspectiva Multirrede-Discursiva em diálogo com a Coleção Bra-


sil Intercultural: uma proposta de análise pré-pedagógica

A proposta MR-D constitui, como sabemos, um novo avanço no


percurso de Serrani por defender a inclusão sistemática do compo-
nente cultural nas aulas de línguas. A designação da primeira versão,
multidimensional-discursiva, de um lado, evocava as pesquisas de Stern
(1993) e Coste (1996) quanto à necessidade de todo e qualquer processo
de ensino de línguas considerar as diversas dimensões da linguagem3; de
outro lado, o adjetivo discursiva anunciava um distanciamento teórico,
um deslocamento epistemológico significativo quanto a uma considera-
ção apenas descritiva do componente linguístico. Assim, defendendo o
princípio de que “a língua só acontece em processos discursivos e, por
sua vez, que estes não podem ocorrer sem a materialidade da língua e da
história” (SERRANI, 2010, p. 34), a autora postulou um componente de
língua-discurso. Já a mudança de multidimensional para multirrede dá
conta de um outro avanço quanto à inter-relação entre os componentes
constitutivos da proposta, nomeadamente: (1) Intercultural Multirrede-
Discursivo; (2) de Língua-Discurso e Gêneros discursivos; (3) de Práticas
de Linguagem(ns) em Oficinas Multirrede-Discursivas.
À luz do exposto no capítulo 1 deste volume, observamos que a
noção de rede é especialmente produtiva: de um lado, ela desestima
qualquer consideração de hierarquias entre os componentes da proposta;
de outro, ela remete à combinação concomitante e reticular dos três com-
ponentes, ilustrando, assim, que seus conteúdos devem ser considerados
de forma interdependente, em torno de um tópico cultural relevante. Cabe
frisarmos, também, que o conceito de rede mantém a filiação a Stern
em termos da pluralidade de dimensões e perspectivas de análise que a
MR-D inclui: intercultural, enunciativa, interdiscursiva e morfossintática.
A análise pré-pedagógica de materiais de ensino constitui, a nosso
ver, um passo prévio ineludível do processo de planejamento de aulas

3 Segundo Stern (op. cit.), qualquer situação de ensino de línguas deveria considerar as dimensões
linguística, cultural, comunicativa e experiencial.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

de línguas4. Esse passo inclui uma leitura minuciosa do LD, atendendo a


seus princípios orientadores e à coerência em concretizá-los nas diversas
tarefas propostas. A análise pré-pedagógica servirá, assim, para sabermos
o que esperar e o que não caberia solicitar de um LD determinado. Da
nossa perspectiva, nenhum material “fala por si”; a intervenção didática
do professor, reguladora da interlocução em sala de aula, é indispensável
para o trabalho fazer sentido (cf. FRANZONI, 2014).
Para melhor entendermos o diálogo entre a proposta MR-D e o
Ciclo Básico da Coleção Brasil Intercultural (CB-BI), apresentamos,
nesta seção, os pressupostos teóricos e metodológicos da Coleção e, na
sequência, explicitamos a relação entre os componentes MR-D e o LD,
incluindo, antes, breves esclarecimentos sobre os contextos de produção
e circulação de materiais de ensino de português na Argentina. Dife-
rentemente do que aconteceu durante muitos anos no Brasil, a seleção
de livros para o ensino de línguas na escola argentina não se encontra
regulada por um sistema equivalente ao Plano Nacional do Livro Didático
(PNLD) brasileiro.
No que tange aos contextos de produção, além dos exemplares
publicados no Mercosul e em Portugal, e comercializados por diferentes
editoras, na Argentina é possível, também, aceder a um acervo pequeno
de livros digitais elaborados por iniciativa oficial, em resposta a polí-
ticas educacionais estaduais e nacionais5. Assim, mesmo constituindo
um repertório de conteúdos pedagógicos e um suporte privilegiado para
promover conhecimentos, o LD também é, ao mesmo tempo, um instru-
mento de políticas curriculares para o ensino de português na educação
formal e uma mercadoria do mundo editorial, configurada por técnicas
de fabricação e comercialização inerentes aos interesses do mercado.
Quanto aos contextos de circulação, observamos que o LD de por-
tuguês se inscreve em uma dinâmica de usos e cenários diferentes. Com
particularidades e implementações variadas, o português está presente
4 A expressão “análise pré-pedagógica”, cunhada por Sophie Moirand (1979), teve desenvolvi-
mentos muito produtivos na análise dos materiais de ensino de línguas (cf. SERRANI, neste
volume).
5 CORREA; RODRÍGUEZ, 2012; FERRADAS, 2009; FRANZONI et al., 2015; FRANZONI,
2015.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

na educação básica, em cursos de extensão de universidades e institutos


de ensino superior, em oficinas oferecidas por bibliotecas, sindicatos e
centros culturais, dentre outras instituições, e como espaço curricular em
cursos de formação docente inicial e de outras áreas profissionais. Nesses
âmbitos, o uso do LD para o ensino de português convive há tempos com
a utilização de outros materiais e recursos. Com efeito, sem desconhecer-
mos que seria uma prática docente bastante comum, podemos afirmar que
a elaboração de materiais “próprios” para “compensar” o que é percebido
como “falta” sempre caracterizou o campo de português. Nos primeiros
anos do Mercosul, porque os materiais disponíveis eram escassos; mais
tarde, por causa da frágil articulação entre as propostas editoriais e ins-
titucionais em circulação e os diferentes contextos de ensino.
De fato, nos professores de português, assim como em professores
de outras línguas, prevalece um sentido de incompletude a propósito do
uso exclusivo de um determinado LD. De modo geral, predomina uma
visão crítica, bastante generalizada, quanto à dificuldade de o LD ofe-
recer uma atualização significativa e uma experiência contextualizada
das denominadas “questões culturais”. Nessa lógica, é muito frequente
que o material de ensino “próprio” seja elaborado a partir da combina-
ção de seções de diferentes livros, ou com base na seleção de alguns
gêneros textual-discursivos que seriam recopilados para complementar
ou substituir uma proposta editorial. O material didático utilizado para
o ensino de português e de outras línguas revelaria, assim, uma práti-
ca de montagem realizada de modo não sistemático, com improviso,
como uma colcha de retalhos de textos desconexos. Esse material, que
passaria a fazer parte de uma nova série textual, revela, provavelmente,
uma experiência de letramento próxima à modelada pelo uso efêmero e
aleatório da mídia digital.
É, pois, no contexto acima referido que situamos a circulação dos
três volumes do CB-BI: Livro do Aluno (LA), de 2014, em versão im-
pressa; Livro de Exercícios (LE), de 2013, acessível em versão analógica
e digital, e Manual do Professor (MP), de 2015, em formato e-book.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

2. Identificação dos princípios norteadores da Coleção

Como primeiro passo da análise pré-pedagógica, conferimos os


pressupostos teóricos e metodológicos da Coleção. Os autores do CB-BI
se manifestam a favor do trabalho com a língua em uso, em situações
contextualizadas, defendendo uma concepção de língua como “lugar de
interação, como dimensão mediadora das relações que se estabelecem en-
tre sujeitos e mundos culturais diferentes…” (MENDES; GUIMARÃES;
NASCENTE BARBOSA, 2015, Apresentação, s/n), e atendendo tanto
aos sentidos sociais e culturais quanto aos aspectos formais da língua.
Apoiam-se, para tanto, no uso de material autêntico e no tratamento de
temáticas contemporâneas em gêneros textuais diversos, bem como em
tarefas de compreensão e produção oral e escrita, esclarecimento de léxico
e mecanização de questões linguísticas. Como é habitual em conjuntos
didáticos para o ensino de línguas estrangeiras, o LD conta com apêndice
gramatical e materiais adicionais, exercícios complementares e arquivos
de áudio e vídeo que podem ser acessados no site da Coleção. Quanto
ao papel outorgado a professores e alunos, os autores declaram concebê-
los enquanto “mediador(es)(a)(s) culturais, sujeitos ativos e conscientes
de seus papéis dentro do processo [de ensino e aprendizagem]” (Idem).
Considerando pressupostos dessa ordem, selecionamos a Unidade
4, intitulada Infância, sob o prisma de uma análise que nos permita es-
tabelecer critérios de complementação MR-D. Nessa linha, observamos
que o roteiro da unidade é baseado em três tópicos: (1) lembranças, (2)
brinquedos e brincadeiras e (3) personagens de tirinhas e de programas
de TV. Verificamos, inicialmente, que o tema da infância, elo da unidade,
identifica-se com o gesto retrospectivo da lembrança, das memórias, de
uma concepção de mundo de cunho autobiográfico. Incluem-se, assim,
poemas, depoimentos, artigos jornalísticos, desenhos e fotografias,
gêneros que contribuem para evocar recordações pessoais de fatos que
foram vivenciados na infância. O tempo passado é retomado através de
metáforas poéticas, de acontecimentos noticiados sobre brinquedos e
brincadeiras e das imagens de tiras e cartuns, tendo como referência o
uso do pretérito imperfeito do indicativo (no MP, na seção em que são

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

anunciados os conteúdos de análise linguística da Unidade 4), sem se


discutir sobre outros procedimentos textuais.
Neste conjunto, a narrativa biográfica se apresenta nos depoimentos
da tarefa 2, em que diferentes personalidades brasileiras comentam sobre
um episódio da sua infância, e é apenas aludida na tarefa 3, quando se
solicita fazer anotações sobre um momento especial da vida do aluno
para, depois, comentar oralmente com o colega. Outras tarefas de produ-
ção abordam, antes, a formulação de um texto de opinião sobre diversas
problemáticas: o sentido de “saudosismo”, o projeto de lei que proíbe o
castigo físico em crianças, a diferença entre brinquedos de antigamente
e os de hoje em dia. Assim, diferentemente da proposta inicial – isto é, a
restituição de experiências passadas e o relato de reminiscências sobre a
infância –, a Unidade 4 oferece tarefas de produção de breves sequências
argumentativas. Nesse ponto, a infância – e sua memória biográfica –,
contornada pela imagem das boas lembranças, dos brinquedos e dos
cartuns, deriva para o tratamento de informações suplementares que
oportunizam a redação de textos de opinião.

3. O gênero biografia em perspectiva Multirrede-Discursiva, no livro


didático analisado

Ora, como entendemos o gênero biografia no CB-BI à luz dos


componentes MR-D?

1. Componente Intercultural Multirrede-Discursivo


A análise desse componente, como sabemos, remete ao tratamento
da diversidade cultural, observando-se, principalmente, a identificação
de três coordenadas: os territórios, espaços e momentos sócio-históricos,
especificados nos contextos geográficos e históricos; os grupos sociais,
em função do posicionamento enunciativo dos sujeitos, e os legados
culturais, que aludem à importância simbólica e material de certas ma-
nifestações particulares da cultura. Assim, ao examinarmos os elementos
da Unidade 4 do CB-BI que designam, em épocas e lugares diferentes,
diversas práticas da cultura brasileira, constatamos que as memórias de

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

infância, retratadas por personalidades de destaque como grupo social de


referência, revelam-se em pensamentos e em obras que, embora aludam
ao mundo das crianças, não dizem respeito nem aos modos de circulação
desses discursos nem à informação biográfica sobre os próprios autores.
No entanto, a biografia constitui uma manifestação cultural que
está presente em situações cotidianas de comunicação e que se realiza
em gêneros discursivos muito diversos. Assim, as diferentes narrativas
biográficas podem sensibilizar os alunos quanto à diversidade cultural,
e mobilizar reflexões sobre o modo em que damos sentido aos territórios
em função das condições históricas e dos grupos sociais de pertencimento,
tomando como referência os legados linguísticos e culturais que contri-
buem significativamente para a construção de estilos de vida6.
Para tanto, concentramos nossa atenção no trabalho com o gênero
biografia, enfocando a referência a dez personalidades que ocupam,
em diferentes âmbitos, segundo o CB-BI, uma posição de destaque na
sociedade brasileira: Boris Fausto, Casimiro de Abreu, Gilberto Freyre,
Irene Ravache, Martha Medeiros, Paulo Vilhena, Ruth Rocha, Sílvia
Pfeifer, Toquinho e Wanessa Camargo. Acreditamos que aprofundar a
discussão sobre o gênero contribui para o aluno descobrir e analisar a
natureza processual da linguagem e, também, para compreender a rela-
ção entre os procedimentos textuais e o contexto social e histórico dos
enunciadores. Enfatizamos, portanto, a inserção das histórias de vida na
sociedade atual, não só no que se refere à infância, tópico da Unidade 4,
mas também a outros momentos da vida considerados, eventualmente,
mais próximos do aluno destinatário dessa complementação.
Como veremos, a descoberta da trajetória biográfica dessas perso-
nalidades permitiria, ainda, compreender a importância da experiência
estética, do saber acadêmico e da expertise técnica, a título de legado que
contribui para a configuração da brasilidade. É importante frisar, aqui,
que a problemática identitária constitui uma especificidade característica
do ensino de português como língua estrangeira, bem como de outras
línguas. Nesse sentido, o trabalho com biografias pode proporcionar ao
6 Para saber mais sobre o gênero biográfico, recomendamos, dentre outros autores, a leitura de:
DOSSE, 2007; HOLROYD, 2011; VILAS-BOAS, 2014a e 2014b.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

aluno uma paisagem social que, na imaginação cotidiana, cria relações


de pertencimento à outra cultura, estabelecendo, desse modo, critérios
que tendem a focalizar semelhanças e diferenças interculturais.

2. Componente de Língua-Discurso e Gêneros discursivos


Esse componente corresponde aos conteúdos da materialidade
linguística, considerados, sempre, em relação aos gêneros e processos
enunciativo-discursivos em que estão inseridos. Tomando por base o
tema que norteia nossa análise do CB-BI, abordaremos, em termos de
gêneros, de um modo geral, a narrativa de vida. Consideramos que, em
suas diversas manifestações – biografias (autorizadas ou não), autobio-
grafias, cadernos de viagem, relatos de vida, diários íntimos, memórias,
perfis, confissões, depoimentos –, ora como acesso ao conhecimento de
vidas consideradas “modelares”, ora retratando, simplesmente, o “ho-
mem comum”, o gênero biográfico vai muito além de uma mera relação
cronológica de fatos relativos a alguém. Ele possibilita, antes, uma via
de acesso ao contexto histórico e social das vidas narradas.
Assim, o perfil biográfico nos permite focalizar em características
linguístico-discursivas próprias do gênero – as marcas de tempo e lugar,
os tempos verbais que organizam a narrativa, entre outras – e, ao mesmo
tempo, salientar as diferentes perspectivas enunciativas, os pontos de
vista dos quais uma história de vida pode ser contada.

3. Componente de Práticas de Linguagem(ns) em Oficinas Multir-


rede-Discursivas
Conforme detalharemos no desenvolvimento do trabalho de com-
plementação, propiciaremos oficinas de práticas de leitura, de início à
compreensão e à produção oral, bem como instâncias de reflexão linguís-
tica, visando aprofundar uma proposta editorial que, entendemos, aborda
de modo fragmentário a temática que nos interessa analisar. Isto posto,
cabe perguntarmos por que postular uma complementação relacionada
com a biografia e, também, como este gênero é abordado no LD que
estamos discutindo

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

4. Análise pré-pedagógica da Unidade 4 do Ciclo Básico da Coleção

Observemos que o LD Brasil Intercultural apresenta mais de trinta


biografias – retiradas, em sua maioria, da Wikipédia – de represen-
tantes brasileiros de diferentes âmbitos. Chama a atenção, entretanto,
que os perfis biográficos das personalidades mencionadas na Unidade
4 do livro do aluno são inexistentes ou apenas insinuados em breves
referências.
Assim, encontramos, em primeiro lugar, tarefas que incluem obras
dos escritores José Casimiro de Abreu (LA, tarefa 1, p. 67) (Fig. 1)
e Ruth Rocha (LA, tarefa 5, p. 73). Trata-se dos primeiros versos de
“Meus oito anos”7, poema em que Abreu evoca a concepção idílica
de um espaço campestre, e do poema “Ai que saudades…”8, em que
Rocha apresenta, em território urbano, uma imagem desidealizada da
infância. Nessa direção, observamos que, se bem a leitura dos poemas
promove, em diálogo intertextual, uma visão retrospectiva, as infor-
mações biográficas dos próprios autores não são fornecidas9. A única
referência encontrada indica data e lugar de nascimento de Abreu e
um breve comentário sobre a doença de que o poeta padeceu até sua
morte, sem, por outro lado, incluir qualquer referência à trajetória de
Rocha no âmbito da literatura infantil brasileira.

7 Disponível em: http://academia.org.br/academicos/casimiro-de-abreu/textos-escolhidos. Acesso


em: 8 out. 2019.
8 In: ABRAMOVICH, F. (Org.). O mito da infância feliz. Antologia. São Paulo: Summus, 1983,
p. 105-106.
9 Lembremos nesse ponto que, conforme o quadro atual no campo da teoria literária, a análise da
obra não poderia reduzir o sentido estético às vicissitudes das experiências pessoais do autor.
No entanto, no âmbito do ensino de línguas, a consideração da biografia ganha importância
dado que, para o aluno de uma língua estrangeira, a história de vida dos escritores constitui
um elemento relevante da memória discursiva e da identidade sociocultural dessa língua.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Figura 1 – Página da Unidade 4 do livro Brasil Intercultural – Ciclo Básico

Fonte: Mendes et al., 2014, p. 67

No LA, as questões sobre os versos de Abreu solicitam ao aluno:


relacionar o poema com a imagem de uma pipa, explicar a que tipo de
saudosismo os versos se referem e falar sobre um momento especial de
sua vida sem oferecer exemplos prévios de como formular esse relato. Já
no MP, a orientação pedagógica para abordar o poema de Abreu sugere
que o professor “conte um pouco” sobre a literatura romântica brasileira,
suas características e contexto histórico, omitindo dados biográficos do
poeta. Por outro lado, centra o trabalho em torno da palavra “saudade”,
incluindo, para tanto, a origem do termo, tomada de Wikipédia, e a lei-
tura das poesias “Saudade” e “Mar Português”, do moçambicano Mia
Couto e do português Fernando Pessoa, respectivamente. As orientações
metodológicas visam, dessa forma, abrir um “diálogo com as culturas
lusófonas”. Uma última sugestão, no MP, propõe a escuta da poesia de
Abreu na voz do ator Paulo Autran (cf. p. 56).
Ao poema de Rocha, explicitamente apresentado como paródia
dos versos de Abreu (tarefa 5), seguem, de um lado, questões pro-
pondo comentários sobre o sujeito poético e sobre o título; de outro,

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

tomando por base a palavra “tortura”, solicita-se uma comparação


entre o poema e uma reportagem incluída na tarefa anterior, que
aborda a questão da lei que proíbe o castigo físico a crianças. No
MP, além de sugerir-se a leitura em voz alta do poema, o trabalho
com a fonologia e o esclarecimento de dúvidas lexicais, propõe-se
indagar sobre o sentido do termo “paródia”, bem como sobre as
diferenças entre literatura romântica e contemporânea. Uma última
proposta remete à escuta de Sol de giz de cera, do músico paulistano
Emicida, como ilustração das relações pais-filhos (cf. p. 58). As su-
gestões metodológicas enumeradas, mesmo que diversas, carecem da
necessária articulação para propiciar os saberes linguístico-culturais
que pretendem ser ensinados, observando-se, curiosamente, a falta
de informações adicionais sobre Ruth Rocha.
Como síntese do exposto, observamos que da leitura dos versos de
Abreu passa-se, imediatamente, para a história do termo “saudade” e, daí,
para a questão da lusofonia. Do poema de Rocha, destaca-se seu valor
de paródia e solicita-se explicar o termo “tortura”. Para ambos os textos,
anuncia-se seu pertencimento às literaturas romântica e contemporânea,
respectivamente. Cabe destacar que o LD propõe o diálogo com outras
textualidades; no caso de “Meus oito anos”, com um texto imagem; no
exemplo de “Ai que saudades…”, com um texto jornalístico. Por último,
constatamos que no livro destinado a exercícios não são oferecidas tarefas
vinculadas a esses textos.
Como decorre da análise, as propostas de trabalho estabelecem,
numa progressão indireta, conexões fragmentárias, distantes, a nosso
ver, do eixo temático sugerido pela proposta editorial, desatendendo o
fornecimento de referências contextuais, entre elas as informações bio-
gráficas, cuja inclusão favoreceria a compreensão intercultural.
Na segunda tarefa da Unidade 4, intitulada Ai que saudades da
minha infância querida (tarefa 2, p. 68 e 69), são apresentados Boris
Fausto, Irene Ravache, Martha Medeiros, Paulo Vilhena, Sílvia Pfeifer e
Wanessa Camargo evocando, em breves depoimentos, um acontecimento
importante de sua infância.

113
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

As orientações previstas para essa tarefa no CB-BI enfocam, con-


forme o MP, apenas a introdução e apresentação formal do Pretérito
Imperfeito do Indicativo (p. 56), a leitura em voz alta com correção da
fonética e a explicação de palavras e expressões, desconsiderando os
procedimentos textuais que caracterizam a construção de uma narrativa
de vida e, também, desatendendo a possibilidade de os alunos escreverem
sobre as próprias lembranças.
Por outro lado, referidos como “celebridades” e “famosos”, os seis
entrevistados são situados no âmbito do espetáculo, reduzindo-se sua
diversidade profissional ao impacto da notoriedade mediática. Obser-
vamos, aqui também, a ausência de referências biográficas que ajudem
a interpretar os depoimentos com relação a uma história de vida, e a
contextualizar as personalidades no cenário da cultura brasileira.
Na tarefa 11, por seu turno, solicita-se escutar a música Aquarela e
completar a letra, preenchendo lacunas. Alinhada à direita, a fotografia
de um dos compositores, Toquinho, em um show ao vivo, sem legenda
ou descrição que adicione outras referências sobre o artista ou sobre a
história da música proposta para o trabalho de compreensão oral. O MP,
no entanto, disponibiliza a biografia de Toquinho, na versão de Wikipédia,
e sugere a pesquisa sobre outros dados “interessantes” para conversar com
os alunos (MENDES; GUIMARÃES; NASCENTE BARBOSA, 2015,
p. 61). Observamos, entretanto, que a música Aquarela e a biografia de
Toquinho são utilizadas, basicamente, para desenvolver o campo lexical
e ensinar o nome das cores.
Completando a relação das dez personalidades incluídas na Unida-
de 4 do CB-BI, encontramos uma referência a Gilberto Freyre no texto
Brinquedo sem preconceito (p. 74) (Fig. 2), adaptado de uma matéria da
revista IstoÉ. Nesse artigo de 2010, em que se comenta a comercialização
da boneca Barbie negra no Brasil, menciona-se apenas a contrariedade do
sociólogo com relação aos sentimentos preconceituosos e aos “sonhos de
loirice” que as bonecas europeias teriam provocado nas meninas do século
XIX. Observamos que, se bem Freyre é referido como voz autorizada
para falar sobre a sociedade brasileira, sua trajetória não é explicitada no

114
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

LA, e só no MP sugere-se ao professor “falar um pouco” sobre sua vida


e obra, bem como sobre a Lei Áurea (p. 59). Entretanto, de acordo com
alguns pesquisadores como, por exemplo, Oliveira (2011), no âmbito
dos trabalhos sociológicos, Freyre seria pioneiro no Brasil nos estudos
sobre a infância. Nesse cenário, a apresentação da biografia do sociólogo
destacando, por exemplo, seu interesse pela história social da meninice,
desde o período colonial até a República, a análise dos papéis sexuais
das diferentes infâncias e dos padrões de sociabilidade na família, na
escola e nos jogos, permitiria enriquecer o componente cultural na aula
de português.
Figura 2 – Excerto da Unidade 4 do livro Brasil Intercultural – Ciclo Básico

Fonte: Mendes et al., 2014, p. 74

A proposta do CB-BI sobre Freyre se desloca, como vimos, por


aspectos associados ao castigo infantil, ao preconceito, ao racismo e à
escravidão, direcionando as tarefas por uma trilha periférica a respeito das
lembranças de infância, que constituem o ponto de partida da unidade.
Por outro lado, a pesquisa solicitada no MP sobre a vida de Freyre carece
de orientações precisas acerca de como trabalhar com a informação cole-
tada. Nesse percurso, a figura do intelectual é costurada a modo de breve

115
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

digressão e não parece intervir, de forma decisiva, nos tópicos culturais


apontados, ampliando-se a proposta, apenas, como um desvio flutuante.
A nosso ver, entretanto, a consideração da biografia permitiria
compreender a espessura social e histórica de questões que contribuem
para a configuração da brasilidade. Nesse sentido, a leitura da vida e obra
do sociólogo poderia propiciar um conhecimento maior sobre o gênero
e, junto com os outros perfis biográficos, possibilitar um itinerário de
trabalho mais significativo.
A análise de todas as tarefas mencionadas revela que as refe-
rências às personalidades incluídas nesta unidade são escassas e
estão organizadas a partir de informações avulsas, o que faz com
que as diferentes temáticas sejam abordadas negligenciando aspectos
importantes, como as narrativas biográficas e as histórias de vida.
Entendemos, por fim, que o discurso pedagógico do LD se filia ao
modo em que o discurso jornalístico tematiza o repertório informati-
vo, a modo de “magazine”, circulando de forma efêmera por tópicos
de interesse conjuntural.
Dando por finalizada a análise pré-pedagógica, apresentamos, em
seguida, uma proposta de complementação MR-D, visando ampliar o
percurso sugerido pelo CB-BI. Esclarecemos que, a nosso ver, qualquer
proposta de complementação deveria reconhecer o aspecto problemático
do convívio de práticas e materiais ancorados em abordagens de cunho
intercultural, comunicativo-instrumental, estruturalista e gramaticalista.
Não é raro, como sabemos, que em qualquer campo de conhecimento, os
âmbitos de ensino ou de formação docente se caracterizem pela circu-
lação simultânea de abordagens distintas. Entretanto, o reconhecimento
dessa diversidade de perspectivas e, portanto, de concepções de língua/
linguagem, é para nós um ponto de partida ineludível – e talvez, o desafio
maior – para podermos organizar um trabalho coerente e sistematizado
de complementação, orientado a propiciar uma abordagem sociocultural
de ensino de português.

116
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

5. A biografia em uma proposta de complementação: integrando


saberes teórico-práticos em oficinas de leitura e oralidade

Para o planejamento da complementação optamos, atendendo ao


espaço disponível nesta publicação, por nos circunscrever ao texto que
alude ao sociólogo Gilberto Freyre, considerando que tarefas similares
poderão ser propiciadas para uma intervenção didática sobre as outras
personalidades mencionadas.
Nesse sentido, organizamos uma pesquisa sobre biografias de
Freyre publicadas na web, tomando por base os critérios a seguir: di-
versidade de fontes, acessibilidade do material de leitura, extensão e
complexidade linguístico-discursiva dos textos escolhidos, conforme o
conhecimento de português dos destinatários da complementação que,
lembramos, corresponde a um nível básico. Procuramos, dessa forma,
contar com uma seleção de exemplos que nos permita ilustrar como,
mesmo pertencendo a um mesmo gênero – biografia – e abordando um
mesmo assunto – vida e obra de Gilberto Freyre –, cada um dos textos
compõe sua singularidade, seu próprio ponto de vista. Nessa linha, den-
tre as numerosas opções disponíveis online, escolhemos quatro textos
publicados por diferentes entidades, três brasileiras e uma portuguesa10:
a página web do Projeto Releituras, especializada em divulgar a obra de
autores consagrados (texto A); o website da Biblioteca da Secretaria de
Cultura da Prefeitura de São Paulo, da qual Freyre é patrono (texto B);
o Site Oficial da Livraria da Travessa que, respondendo a estratégias de
comercialização, publica um perfil biográfico do autor (texto C) e, por
último, o blog do Núcleo de Toponímia do Departamento de Patrimônio
Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, anunciando que o nome do
sociólogo foi dado a uma rua dessa cidade (texto D).
A diversidade de fontes e a natureza distinta de cada biografia
fornece, de um lado, a possibilidade de se contar com uma pluralidade
10 Como é sabido, os textos retirados da internet podem conter imprecisões de ortografia, pontu-
ação e digitação, entre outras. Consideramos imprescindível, portanto, uma revisão prévia do
material que for selecionado, para os eventuais ajustes serem feitos ora antes de sua apresentação
à classe, ora em parceria com os alunos. Os quatro textos aqui incluídos já foram revisados
para este capítulo.

117
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

de vozes, isto é, de perspectivas de enunciação (cf. AUTHIER-REVUZ,


1990), o que, a nosso ver, abre um espaço muito enriquecedor para
trabalhar, nas oficinas de leitura, a formação de um leitor crítico, con-
forme anunciamos no início deste capítulo. Por outro lado, o trabalho
de pesquisa que a MR-D mobiliza, ao organizarmos o planejamento da
complementação, nos oferece a oportunidade de aprender, de ampliar
nossos próprios conhecimentos. Sabíamos, por exemplo, que Freyre é
patrono da biblioteca paulistana, que uma rua de Lisboa leva seu nome
ou, ainda, que ele foi pioneiro em estudos sobre a infância no Brasil?
Vejamos, a seguir, os textos selecionados.

Texto A

Nasce no Recife, em 15 de março de 1900, Gilberto Freyre, filho do Dr. Al-


fredo Freyre – educador, Juiz de Direito e catedrático de Economia Política
da Faculdade de Direito do Recife – e de D. Francisca de Mello Freyre.
Aos seis anos de idade, tenta fugir de casa, escondendo-se em Olinda, cidade
à qual devotou grande amor e da qual escreveria, em 1939, o 2º Guia Prático,
Histórico e Sentimental.
Inicia seus estudos frequentando o Jardim da Infância do Colégio America-
no Gilreath, em 1908. Faz seu primeiro contato com a literatura através das
Viagens de Gulliver. Mas, apesar de seu interesse, não consegue aprender
a escrever, fazendo-se notar pelos desenhos. Toma aulas particulares com
o pintor Telles Júnior, que reclama contra sua insistência em deformar os
modelos. Começa a aprender a ler e escrever em inglês com Mr. Williams,
que elogia seus desenhos.
Em 1909 falece sua avó materna, que vivia a mimá-lo por supor ser o neto
retardado, pela dificuldade em aprender a escrever. Ocorrem suas primei-
ras experiências rurais de menino de engenho nessa época, quando passa
temporada no Engenho São Severino do Ramo, pertencente a parentes seus.
Mais tarde escreverá sobre essa primeira experiência numa de suas melhores
páginas, incluída em Pessoas, Coisas & Animais.
Nas férias de 1911, passa seu primeiro verão na praia de Boa Viagem, onde
escreve um soneto camoniano e enche muitos cadernos com desenhos e
caricaturas.

118
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Dá as primeiras aulas no Colégio, em 1913.


Em 1914, ensina latim, que aprendeu com o próprio pai, conhecido humanista
recifense. Toma parte ativa nos trabalhos da sociedade literária do colégio.
Torna-se redator-chefe do jornal impresso do colégio: O Lábaro. (…)

Disponível em: http://www.releituras.com/gilbertofreyre_bio.asp.


Acesso em: 10 abr. 2019.

De início, para organizarmos os espaços de oficina, e retomando o


interesse de Freyre pela infância e pela vida cotidiana na formação do povo
brasileiro, sugerimos ao professor explicar a importância de se conhecer
o legado intelectual e cultural de personalidades destacadas do Brasil,
como patamar para compreender aspectos do imaginário social da língua.
Na sequência, poderá ser explicitado à classe que a biografia do Projeto
Releituras – da qual selecionamos apenas um fragmento, dada sua exten-
são – apresenta, pelo menos, duas particularidades. Após uma primeira
leitura feita pelo professor, os alunos perceberão rapidamente que o texto
oferece numerosos detalhes da infância de Freyre, em um registro extenso
e minucioso que respeita a narrativa linear de uma ordem cronológica dos
acontecimentos enumerados, como é frequente neste tipo de texto. Já do
ponto de vista morfossintático, pode ser interessante propor aos alunos o
traçado de uma linha de tempo no quadro, incluindo os acontecimentos
enumerados na biografia, e as respectivas marcas de tempo e lugar, cha-
mando também a atenção sobre o fato de o tempo organizador do relato ser
o presente do modo indicativo, em seu valor de presente histórico. Seria
oportuno, por outro lado, localizar em um mapa a cidade de Recife e do
Estado de Pernambuco, além das outras localidades mencionadas e, se for
viável, planejar um trabalho integrado em parceria com Geografia.
Quanto aos acontecimentos mencionados, acreditamos que seria
interessante salientar as dificuldades referidas sobre a relação de Freyre
com as práticas de escrita durante sua infância, bem como o vínculo
adiantado com o inglês, o latim, a pintura e o exercício do ensino. Em
uma roda de conversa, o professor poderá propiciar espaços para o in-
tercâmbio de opiniões, ora em espanhol ora em português, ajudando os
alunos a perceber que os vários aspectos de uma vida não constituem

119
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

uma trajetória retilínea, uma sucessão unitária de fatos, mas um percurso


sinuoso e contraditório. Com base neste primeiro exemplo, o professor
também poderá incentivar os alunos a pesquisar, tendo em vista o caso de
Freyre, sobre o acesso de crianças e adolescentes à educação, em épocas
diferentes e de acordo com as diversas posições sociais.

Texto B

Biografia do patrono Gilberto Freyre


Antropólogo, historiador, escritor e pintor, Gilberto de Mello Freyre foi
também um dos mais importantes sociólogos do século XX.
Nos Estados Unidos, tornou-se bacharel em Artes Liberais pela Universidade
de Baylor e obteve grau de mestre pela Universidade de Columbia. Retor-
nando ao Brasil, tornou-se o redator-chefe do jornal Diário de Pernambuco.
Foi professor de sociologia em universidades do Brasil e dos Estados Unidos.
Com sua obra Casa grande & senzala traduziu a pluralidade étnica e cultural
brasileira. Escreveu, entre outras obras, Sobrados e mocambos, Nordeste,
Um engenheiro francês no Brasil e Problemas brasileiros de antropologia.
Recebeu o título de Doutor honoris causa pelas universidades de Columbia,
Baylor, Oxford, Sorbonne, Munique e Salamanca, e homenagens dos Estados
Unidos, da França, da Inglaterra, de Portugal, da Espanha, entre outras.
Recebeu também o título de “Sir”, Cavaleiro do Império Britânico, pela Rainha
Elizabeth II da Inglaterra; recebeu o prêmio internacional “La Madonnina” e
o prêmio “Aspen”, pelo que há de original, excepcional e de valor permanente
em sua obra. Foi eleito, por aclamação, Membro da Academia Pernambucana
de Letras, ocupando a cadeira n° 23.
Nasceu em 15 de março de 1900, em Recife, Pernambuco, e morreu em 18
de julho de 1987.
Consulte no catálogo online as obras de Gilberto Freyre existentes nas
bibliotecas. Conheça, também, site oficial sobre a vida e obra do escritor
pernambucano e a Fundação Gilberto Freyre, fundada em 1987 e situada na
residência onde o estudioso pernambucano viveu durante muitos anos.

Disponível em:
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliotecas/bibliotecas_bairro/
bibliotecas_a_l/gilbertofreire/index.php?p=5253.
Acesso em: 10 abr. 2019.

120
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

A segunda tarefa de leitura convida os alunos a observar que a


biografia postada pela biblioteca paulistana privilegia a diversidade das
ocupações de Freyre, como legado, destacando sua atuação na sociologia
do século XX e salientando o papel da obra Casa grande e senzala, que
“traduziu a pluralidade étnica e cultural brasileira”. Pode ser de interesse
comentar, brevemente, a importância histórica da casa senhorial rural
construída no Brasil pelos colonizadores portugueses e do conjunto de
alojamentos destinado aos escravos, denominado com um termo de
origem africana: senzala. Após a reflexão sobre a relevância cultural da
obra, o professor poderia aproveitar para projetar a tirinha Casa-Grande
e Senzala em quadrinhos, adaptação de Estêvão Pinto para a editora
Global11, incentivando os alunos a intercambiar pontos de vista acerca do
sentido dos desenhos na capa do livro, e promovendo sua leitura em casa.
Figura 3 – Website da Biblioteca da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo

Fonte: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/bibliotecas/bibliotecas_
bairro/bibliotecas_a_l/gilbertofreire/index.php?p=525312

11 Disponível em: http://historianreldna.pbworks.com/w/file/fetch/101643889/CasaGrandeSen-


zala-%20quadrinhos.pdf. Acesso em: 10 abr. 2019.
12 Acesso em: 10 abr. 2019.

121
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Visando aprofundar a reflexão intercultural, pode ser promovida


uma pesquisa sobre intelectuais da cultura de partida dos estudantes, no
caso, argentinos que tenham desenvolvido estudos semelhantes acerca
da história e da sociedade do país.
Do ponto de vista da materialidade morfossintática, pode se expli-
car, no quadro, que o pretérito perfeito dominante organiza um registro
apurado da formação acadêmica de Freyre e das distinções e reconheci-
mentos outorgados por instituições brasileiras, da Europa e dos Estados
Unidos sem atender, desta vez, a uma ordem cronológica. A enumeração
dessas instituições, por sua vez, fornece uma boa oportunidade para
os alunos conhecerem – e pesquisarem sobre – centros acadêmicos de
renome internacional, levantando também informação sobre entidades
argentinas equivalentes. Ainda da perspectiva do sistema linguístico do
português brasileiro, as formas verbais “consulte” e “conheça”, do último
parágrafo, convidam a saber mais sobre Freyre, a consultar o catálogo da
biblioteca e a visitar seu site oficial. O valor do modo imperativo como
convite ou sugestão é um exemplo excelente para o professor deslocar a
representação cristalizada que os alunos costumam ter desse modo verbal
apenas como indicador de ordens.

Texto C

Gilberto Freyre nasceu no Recife (PE), em 1900. Iniciou seus estudos no


Colégio Americano Gilreath e completou a sua formação nos Estados Unidos,
onde frequentou as universidades de Baylor (Texas) e Colúmbia (Nova York).
Retornou ao Recife em 1923, passando a exercer diversas atividades no âmbito
da cultura e do ensino no Brasil e no exterior. Ocupou o cargo de deputado
federal (1946-1950), quando criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais. Dedicou-se aos estudos sobre cultura e sociedade brasileiras, orga-
nizou congressos e realizou diversas conferências. Fez carreira acadêmica,
de artista plástico, jornalista e cartunista no Brasil, na Europa e nos Estados
Unidos. Manteve, porém, uma grande ligação com Pernambuco, em especial
com Olinda e Recife. Com o livro Casa-Grande & Senzala, publicado em
1933, Gilberto Freyre revolucionou a historiografia. Ao invés do registro

122
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

cronológico de guerras e reinados, ele passou a estudar o cotidiano por meio


da história oral, documentos pessoais, manuscritos de arquivos públicos
e privados, anúncios de jornais e outras fontes até então ignoradas. Usou
também seus conhecimentos de antropologia e sociologia para interpretar
fatos de forma inovadora. Freyre recebeu diversas homenagens. Entre elas,
em 1962, o desfile da escola de samba Mangueira, com enredo inspirado em
Casa-Grande & Senzala. Foi doutor pelas universidades de Paris (Sorbonne,
França), Colúmbia (Estados Unidos), Coimbra (Portugal), Sussex (Inglaterra)
e Münster (Alemanha). Em 1971, a rainha Elizabeth 2a lhe conferiu o título
de “Sir” (Cavaleiro do Império Britânico). Seu livro Casa-Grande & Senzala
está entre as obras essenciais para o entendimento da identidade brasileira.
Freyre faleceu em 1987, aos 87 anos.

Disponível em: https://www.travessa.com.br/talvez-poesia/artigo/2075e082-977c-4f5d-


ac60-e2afb60f552d.
Acesso em: 10 abr. 2019.

A terceira tarefa de leitura poderá revelar que a presença do pretérito


perfeito organiza também, do ponto de vista morfossintático, uma narra-
tiva sequenciada cronologicamente da vida e obra de Freyre. Com efeito,
partindo da data e lugar de nascimento, o aluno poderá perceber que são
enumerados, com marcas de tempo e lugar, os estudos que o sociólogo
realizou e as ocupações, homenagens e distinções que ele recebeu ao
longo de sua vida. O professor poderá chamar a atenção sobre como a
narrativa salienta a diversidade de interesses de Freyre – “acadêmico”,
“artista plástico”, “jornalista”, “cartunista” – e destaca sua atuação na
historiografia brasileira como revolucionária e “inovadora”, a partir da
publicação de Casa-grande e senzala, obra considerada “essencial para
o entendimento da identidade” do Brasil.
A escolha de substantivos e adjetivos delineando a figura de Freyre
é também, a nosso ver, um elemento da materialidade linguística inte-
ressante de ser considerado no trabalho de oficinas para ilustrar a orga-
nização da perspectiva enunciativa. O professor poderá guiar os alunos
para registrar no caderno substantivos e adjetivos, agrupando-os, por
exemplo, em: 1. interesses pessoais: “artista plástico”, “cartunista”, “jor-

123
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

nalista”, “deputado federal”; 2. revolução acadêmica: “historiografia”,


“antropologia”, “sociologia”, “cotidiano”, “história oral”, “documentos
pessoais”, “manuscritos”, “anúncios”, “inovadora”; 3. homenagens e
distinções: “desfile”, “doutor”, “Cavaleiro” e seu equivalente, em inglês,
“Sir”. Dessa maneira, ademais de aprender unidades lexicais, o aluno
será levado a refletir sobre o funcionamento enunciativo-discursivo dos
vocábulos e das construções linguísticas, a valorizar as possibilidades
expressivas das palavras.
Tomando por base a trajetória acadêmica de Freyre, pode ser inte-
ressante, com a orientação do professor, a realização de uma minipes-
quisa envolvendo cursos, localização e características do campus das
universidades referidas na biografia e de instituições universitárias do
Brasil e da Argentina.

Texto D

A rua dedicada a Gilberto Freyre do luso-tropicalismo


Por proposta do Sr. Appio Sottomayor e do Prof. Esteves Pereira, enquanto
membros da Comissão Municipal de Toponímia, foi atribuído o nome de
Gilberto Freyre em Lisboa, o que se concretizou pelo Edital municipal de
26/12/2001, na Rua M4 da Zona M de Chelas, em Marvila, sendo também
atribuída a Rua Jorge Amado nas proximidades, fazendo com que no presente
a Rua Gilberto Freyre una a Rua Jorge Amado à Avenida Vergílio Ferreira.
Gilberto Freyre (Brasil – Recife/15.04.1900 – 18.01.1987/Recife – Brasil) foi
um sociólogo brasileiro que se distinguiu pela criação do conceito de luso-
tropicalismo: uma natural e inata capacidade de adaptação dos portugueses
aos trópicos teria permitido uma miscigenação cultural de índios, negros e
lusos, sendo essa a característica da colonização portuguesa. Politicamente,
esta tese teve grandes repercussões no Brasil, por valorizar o papel importante
dos índios e negros na formação da sociedade brasileira.
A sua obra mais conhecida é Casa-Grande & Senzala (1933), onde traçou
um quadro da fusão de raças e das heranças culturais com base luso-africana
e o modo como esta fusão contribuiu para a identidade brasileira, pelo que
recebeu elogios de Roland Barthes e Fernand Braudel.

124
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Foi na sequência de uma visita a Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola,
Moçambique e Goa, a convite do governo português, que Gilberto Freyre lan-
çou o conceito de tropicalismo e luso-tropicalismo expresso nas suas obras O
mundo que o português criou (1940), O luso e o trópico (1961), Arte, ciência
e trópico (1962), Homem, cultura e trópico (1962), A Amazônia brasileira
e uma possível lusotropicologia (1964), para além de, em 1966, ter iniciado
um Seminário de Tropicologia que dirigiu até sua morte.
Refira-se, ainda, que Gilberto Freyre se exilou em Portugal de 1930 a 1933,
acompanhando o governador de Pernambuco, de quem era secretário parti-
cular, na fuga provocada pela Revolução de Outubro de 1930, que colocou
Getúlio Vargas no poder.

Disponível em:
https://toponimialisboa.wordpress.com/2017/01/29/a-rua-dedicada-a-gilberto-freyre-do-
luso-tropicalismo/.
Acesso em: 10 abr. 2019.

Encerrando a proposta de complementação, observamos que a


inscrição de personalidades salientes no espaço público é um tópico
intercultural interessante, a nosso ver, de ser levado em consideração
em aulas de línguas destinadas a adolescentes, jovens e adultos. Com
efeito, conhecer o significado dos nomes que designam uma praça, uma
instituição ou uma rua abre um espaço enriquecedor de formação cidadã,
de vinculação com a história e a identidade sociocultural. Assim como,
no texto B, trabalhamos com um perfil biográfico do site oficial de uma
biblioteca municipal brasileira que leva o nome de Gilberto Freyre, o
texto D, retirado do blog do Núcleo de Toponímia da Câmara Municipal
de Lisboa, oferece a oportunidade de conhecermos a história da inscrição
do sociólogo no espaço público português.

125
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Figura 4 – Blog do Núcleo de Toponímia da Câmara Municipal de Lisboa

Fonte: https://toponimialisboa.wordpress.com/2017/01/29/a-rua-dedicada-a-gilberto-
freyre-do-luso-tropicalismo/13

Muito diferente com relação às biografias anteriores, este perfil, que


anuncia que uma rua de Lisboa levará o nome do sociólogo, é constru-
ído com base em um conceito freyriano crucial, o de luso-tropicalismo.
Nesta narrativa, que inicia, como muitas biografias, com referências de
tempo e lugar sobre o nascimento e morte de Freyre, seria interessante o
professor destacar que o sociólogo é apresentado, apenas, por seu vínculo
com Portugal e pela criação do conceito de luso-tropicalismo, definido
como “uma natural e inata capacidade de adaptação dos portugueses aos
trópicos (…)”. O aluno observará que da leitura e da análise decorre uma
visão crucial do papel de Portugal no itinerário acadêmico e político de
Freyre: assim, conforme o ponto de vista desse texto, o exílio de Freyre
em território lusitano e sua visita a diferentes países africanos, a convite
do governo português, teria lhe possibilitado cunhar o conceito de luso-
tropicalismo. Caberia, neste caso, uma explicação do professor acerca
do modo em que o texto salienta as repercussões positivas que a tese do
luso-tropicalismo teve no Brasil, pela valorização do papel dos índios
13 Acesso em: 10 abr. 2019.

126
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

e dos negros na formação da sociedade brasileira sem, contudo, fazer


qualquer referência às críticas que Freyre recebeu por ter “amenizado”
a figura do colonizador português14. Temos aqui mais um exemplo de
quanto as condições de produção de um texto se relacionam com os efeitos
de sentido que ele pode produzir. O professor poderá também, eventual-
mente, propor uma pesquisa sobre os países em que o português é língua
oficial ou a leitura de biografias das personalidades mencionadas no
texto – Jorge Amado, Roland Barthes, Fernand Braudel e Getúlio Vargas.
Por outro lado, podemos avaliar a pertinência de outros percursos
de trabalho em sala de aula como, por exemplo, a análise de outras tex-
tualidades para mobilizar a importância da figura de Freyre enquanto
legado cultural, disponibilizando materiais audiovisuais com olhares
diferentes sobre o perfil biográfico do sociólogo como, por exemplo,
os documentários Leituras do Brasil: Casa Grande e Senzala (1995),
de Marya Inês Landgraf, para a TV Cultura15, e Casa Grande e Senzala
(2000), de Nelson Pereira dos Santos16.
Cabe observar que o trabalho de oficinas MR-D é capaz de promo-
ver diferentes abordagens da biografia de Freyre, tanto da perspectiva
enunciativo-discursiva – as vozes singulares das diferentes fontes e pontos
de vista que elas configuram –, quanto da materialidade linguística –
diferentes extensões, mais ou menos detalhes, uso do pretérito perfeito
ou do presente histórico como tempos organizadores, a título de exem-
plo. Podemos dizer, por último, que na dinâmica complexa do diálogo
intercultural, do deslizamento entre o próprio e o alheio, o professor de
línguas irá descobrir um caminho de aprendizagem a ser construído e
reconstruído continuamente. Com efeito, cada experiência deveria nos
oferecer a possibilidade de aprendermos mais no trabalho cotidiano, pro-
fessores e alunos, aprimorando e renovando nossos saberes, promovendo
a criatividade e a cooperação para exercer nosso lugar de enunciadores.

14 Com relação a essas críticas, ver Medina, 2000.


15 http://tvcultura.com.br/videos/8581_leituras-do-brasil-casa-grande-e-senzala.html.
16 https://www.youtube.com/watch?v=-RwJKqS4xUk.

127
cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Considerações finais: relevância social e discursiva de um gênero como


o biográfico para o ensino MR-D de português língua estrangeira

Nesta proposta, desenvolvemos a análise pré-pedagógica e ilustra-


mos um percurso de complementação de LD no relativo à inclusão da
biografia em oficinas de leitura e práticas de oralidade, em consonân-
cia com um tratamento crítico e revelador dos efeitos de sentidos e da
importância social desse gênero, visando oferecermos um referencial
significativo sobre o papel desempenhado pela dimensão cultural no
ensino de português LE. Aliado ao desejo de autonomia na utilização dos
materiais disponíveis e na elaboração de materiais novos, o trabalho de
complementação coloca a necessidade de aproximar as paisagens sociais
e culturais das motivações e interesses dos alunos, professores e insti-
tuições, promovendo outros modos possíveis de tematizar e sequenciar
o currículo a ser ensinado.
Em face dessas considerações, todo e qualquer gesto de reapropria-
ção de materiais didáticos, traduzido na criação de novas e mais diversas
experiências de aprendizagem, pode encontrar seu ponto de apoio na
proposta Multirrede-Discursiva, atendendo especialmente à necessidade
de se integrar saberes teóricos e práticos de maneira sistemática e de se
traçar um roteiro que cada professor levará a termo, cuidando, certamente,
a especificidade de seu contexto de ensino.
Consideramos, finalmente, que o material linguístico-discursivo
utilizado em nossas aulas é, na verdade, um elemento que faz parte de
um complexo cenário sociocultural, e que ele pode ser aproveitado em
itinerários de trabalho diferentes, segundo o mapa que decidirmos traçar.
Essa interconexão constitutiva entre os materiais, enquanto acontecimen-
tos de língua/linguagem, deveria ser, portanto, nosso ponto de partida
para inúmeras possibilidades de ensino. Dessa perspectiva, convidamos
a repensar nossa relação com os materiais didáticos, com o objetivo de
situar o aluno de LE na construção dos sentidos, em atenção à tomada
da palavra e à participação ativa na vida social e cultural.

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cultura e literatura no ensino de língua-discurso

Referências

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Livros didáticos

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Livro de exercícios. Níveis 1 e 2. 1. ed., 1. reimp. Buenos Aires: Casa do Brasil –
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MENDES, Edleise (Coord.); NUNES DE CASTRO, Giselle; NASCENTE
BARBOSA, Cibele; MOREIRA, Aline. Brasil Intercultural. Língua e cultura
brasileira para estrangeiros. Ciclo Básico - Níveis 1 e 2. Livro do aluno. Buenos
Aires: Casa do Brasil, 2014.
MENDES, Edleise (Coord.); GUIMARÃES, Fabiana; NASCENTE BARBOSA,
Cibele. Brasil Intercultural. Língua e cultura brasileira para estrangeiros. Ciclo
Básico - Níveis 1 e 2. Manual do professor. E-book. Buenos Aires: Casa do Brasil,
2015. Disponível em: http://www.brasilintercultural.com.ar/files/ciclo_basico_
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