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Nascimento, Elvira Lopes. / Cristovão, Vera Lúcia Lopes. / Lousada, Eliane. (Orgs.)

Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios /


Elvira Lopes Nascimento, Vera Lúcia Lopes Cristovão, Eliane Lousada (Orgs.)
Campinas, SP : Pontes Editores, 2019

Bibliografia.
ISBN - 97885-217-

Índices para catálogo sistemático:


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2019 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.............................................................................................. 9

Eixo 1: Práticas de educação docente para os gêneros da educação básica

SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS E MULTILETRAMENTOS: NOVOS


DESAFIOS PARA A INOVAÇÃO DAS PRÁTICAS DOCENTES................. 15
Elvira Lopes Nascimento
Paula Baracat De Grande

LETRAMENTOS E GÊNEROS NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES


DE LÍNGUA INGLESA . ................................................................................... 45
Marta Cristina Silva
Tânia Guedes Magalhães

MULTILETRAMENTOS E ENSINO DE GÊNEROS TEXTUAIS MULTIMO-


DAIS: DESENVOLVENDO LETRAMENTO DE FUTUROS PROFESSORES DE
LÍNGUAS EM FORMAÇÃO SUPERIOR . ...................................................... 65
Antonia Dilamar Araújo

GÊNEROS DE TEXTO, ESCRITA E UMA PROPOSTA DE FORMAÇÃO CON-


TINUADA PARA O DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE..... 85
Ana Maria de Mattos Guimarães
Anderson Carnin
Eixo 2: Gêneros acadêmicos: ensino e aprendizagem, cultura
disciplinar e social

GÊNEROS TEXTUAIS NA UNIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DE


GRADUANDOS BRASILEIROS E CANADENSES........................................ 113
Eliane Gouvêa Lousada
Luzia Bueno
Olivier Dezutter

ARTIGO CIENTÍFICO: CAMINHOS METODOLÓGICOS PARA A


ELABORAÇÃO DE UM MODELO DIDÁTICO.............................................. 137
Lília Santos Abreu-Tardelli
Malu Ciencia Apostolo
Victória Moreira da Silveira

Eixo 3: Práticas sociais, gêneros e vozes

ENVIRONMENTAL DISCOURSE IN BRAZILIAN TEXTBOOKS FOR ENGLISH


TEACHING: GENRES, VOICES, UPTAKE AND AFFORDANCES.............. 169
Vera Lúcia Lopes Cristovão
Graham Smart

LETRAMENTOS ATIVISTAS: GÊNEROS DISCURSIVOS E PARTICIPAÇÃO


CIDADÃ DE ADOLESCENTES NA PRODUÇÃO ESCRITA DE TEXTOS
ARGUMENTATIVOS........................................................................................ 193
Orlando Vian Jr.
Fabiane Dalben de Faria

A PRODUÇÃO TEXTUAL NO VESTIBULAR UNICAMP 2019: LIBERDADE


DE CÁTEDRA E DIREITOS HUMANOS EM XEQUE................................... 213
Ana Paula Marques Beato-Canato
Cynthia Agra de Brito Neves

A DIMENSÃO POLÍTICA E AGENTIVA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS


E LETRAMENTO CÍVICO................................................................................ 245
Maria do Socorro Oliveira
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

GÊNEROS TEXTUAIS NA UNIVERSIDADE NA PERSPECTIVA


DE GRADUANDOS BRASILEIROS E CANADENSES1

Eliane Gouvêa Lousada


(USP)2

Luzia Bueno
(USF)

Olivier Dezutter
(U. de Sherbrooke)

Los textos son una parte crucial de los eventos letrados, de tal
forma que el estúdio de La literacidad es en parte un estudio
de textos, de la manera como se han producido y se han usado.
Barton e Hamilton (2004, p. 114)

INTRODUÇÃO

Este capítulo visa discutir as relações que graduandos estabele-


cem com a escrita de gêneros textuais na universidade, como ponto
de partida para a elaboração de materiais didáticos e programas de
apoio para o letramento acadêmico. Para isso, partirá dos resultados
das análises de questionários respondidos por estudantes em um pro-
jeto internacional sobre letramento acadêmico desenvolvido por 3

1 Pesquisa financiada pelo programa CAPES-DFATD 2018-2019.


2 Pesquisadora do CNPq (Bolsista de Produtividade 2).

113
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

universidades brasileiras (USP3, USF4 e UNESP5) e uma canadense


(Universidade de Sherbrooke6). Como aportes teóricos, assume-se os
estudos sobre letramento acadêmico e o quadro teórico-metodológico
do Interacionismo Sociodiscursivo.
O projeto internacional cujos resultados parciais apresentamos neste
capítulo teve início em 2014 e tem por objetivo principal propor uma
análise da situação existente nas quatro universidades-membro no que
diz respeito à escrita acadêmica e às iniciativas para ensiná-la, do ponto
de vista discente e docente. Como objetivos complementares, o projeto
almeja: a) contribuir para o avanço do conhecimento no que diz respeito
ao desenvolvimento de competências em letramento acadêmico em língua
materna, segunda e estrangeira e às práticas de formação mais efetivas
nessa área; b) aperfeiçoar as práticas e cursos de formação para a escrita
acadêmica, tanto do ponto de vista dos estudantes universitários, quanto
do ponto de vista dos professores e monitores que ensinam a escrita
acadêmica. Esse projeto teve diversos financiamentos (primeiramente,
MRI- Ministère des Relations Internationales, Francophonie et Com-
merce Extérieur du Québec; em seguida, da AUF-Agence universitaire
de la Francophonie) e, atualmente, é financiado pelo programa CAPES-
DFATD 2018-2019.
Reunindo pesquisadores das áreas da Educação e da Linguística
Aplicada, a primeira ação desenvolvida no projeto foi a de propor um
questionário a ser respondido por discentes e, posteriormente, por docen-
tes, visando a identificar as representações que eles constroem sobre os
gêneros textuais na universidade e, consequentemente, sobre a “relação
com a escrita” (BARRÉ-DE-MINIAC, 2002) que eles têm. Tratou-se, na
verdade, de conhecer as representações construídas pelos estudantes nos
questionários aplicados para, em seguida, propor ações que contribuam
para o desenvolvimento da escrita de gêneros textuais por meio de cursos,
presenciais e on-line, e de um site sobre o Letramento Acadêmico para
estudantes universitários e professores-formadores.
3 Pesquisadoras envolvidas: Profa. Dra. Eliane G. Lousada; Profa. Dra. Adriana Zavaglia.
4 Pesquisadora envolvida: Profa. Dra. Luzia Bueno.
5 Pesquisadora envolvida: Profa. Dra. Anise d’Orange Ferreira.
6 Pesquisadores envolvidos: Prof. Dr. Olivier Dezutter; Profa. Dra. Christiane Blaser.

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

O estudo da escrita acadêmica tem sido foco de inúmeras ações e


pesquisas no mundo anglófono, que têm a preocupação já consolidada
de contribuir tanto para a melhoria da produção textual para alunos cuja
língua materna é o inglês quanto para a integração de alunos estrangeiros
nos currículos das Universidades de países de língua inglesa. Exemplos
dessa perspectiva podem ser encontrados em estudos de pesquisadores
como Bazerman et al. (2005), Swales (1996), Thaiss et al. (2012). No
mundo francófono, encontramos preocupações semelhantes, embora
mais recentes e em menor número (CHARTRAND, BLASER, 2006;
DELCAMBRE et al., 2009). No contexto brasileiro, as pesquisas têm
focalizado no fato de que os alunos entram nas universidades sem o
preparo adequado para a produção de gêneros textuais que pertencem à
esfera universitária (LOUSADA, DEZUTTER, 2016) e nas dificuldades
decorrentes desse fato para que tenham sucesso no percurso que seguem
na universidade (BAZERMAN et al, 2005).
A proposta inicial do projeto internacional era portanto a de conhe-
cer as representações de alunos francófonos canadenses sobre a escrita
em francês como língua materna, de alunos brasileiros sobre a escrita
em português como língua materna e de alunos no Canadá e no Brasil
sobre a escrita de gêneros textuais em francês como língua estrangeira
ou segunda língua7. O objetivo era o de comparar as respostas dadas ao
mesmo questionário em contextos diferentes, procurando identificar as
semelhanças e diferenças encontradas, buscando uma interpretação dos
resultados que fosse o ponto de partida para propostas inovadoras de
formação.
Para atingir nossos objetivos, organizamos o capítulo em quatro
partes. Na primeira, apresentamos, de forma sucinta, as teorias que
embasaram nosso estudo. Em seguida, mostramos o questionário que
elaboramos e aplicamos aos alunos universitários. Na seção seguinte,
apresentamos alguns dos resultados que obtivemos com a aplicação
dos questionários e discutimos nossas constatações. Finalmente, nas
7 No Brasil, trata-se de um curso de Letras, no qual os estudantes da habilitação em Letras-Francês
aprendem o francês como língua estrangeira. Em Sherbrooke, trata-se de estudantes interna-
cionais que estudam o francês como segunda língua para poderem estudar na Universidade ao
lado de alunos francófonos.

115
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Considerações Finais, fazemos uma síntese do que concluímos com as


respostas a duas das questões dos questionários, que dizem respeito aos
gêneros mais frequentemente redigidos e às representações que os alunos
têm sobre a escrita acadêmica, e apresentamos uma proposta que é um
resultado pragmático do projeto internacional.

1. LETRAMENTO E ESCRITA

Orientando as nossas discussões no decorrer do projeto de pesquisa


realizado, estão as contribuições advindas a) dos Novos Estudos do
Letramento, de acordo com Street (2010, 2014) e Kleiman (1995); b)
do Interacionismo Sociodiscursivo, conforme Bronckart (1999); c) dos
trabalhos sobre a escrita de Dolz, Gagnon e Decândio (2010), Simard
(1992) e Barré-de-Miniac (2002).
Dos Novos Estudos do Letramento, assumimos a perspectiva de um
letramento plural, conforme Street (2014), ou seja, cada grupo social e
cada esfera de atividade engendra diferentes relações com a leitura e a
escrita, gerando práticas sociais de letramento diferentes. Assim, podemos
falar em letramento jurídico, religioso, literário, acadêmico, que sofrem
variações em cada grupo social.
Compartilhamos também a premissa de Kleiman (1995) e de Street
(2014) de que as relações que os grupos estabelecem com as formas de
letramento que não fazem parte de seu cotidiano são conflituosas, tensas,
dinâmicas, o que certamente gerará consequências no modo como os in-
divíduos irão empregar ou mesmo descartar os novos modos de agir que
acompanham o novo letramento que lhe foi apresentado. Assim, para
alunos não acostumados à escrita acadêmica, pode parecer desnecessário
indicar em seus textos, na universidade, as fontes das ideias apresentadas
em um texto, como vemos muitas vezes na produção de ingressantes, que
assustam-se, quando descobrem que, ao recortar e colar ideias alheias,
cometeram plágio e que isso é crime, no mundo acadêmico.
Em Street (2014), encontramos vários relatos de experiências de
alfabetização realizadas pelo Reino Unido em diferentes países que

116
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

tiverem problemas porque não se considerou o letramento que os gru-


pos já tinham e nem que eles poderiam ter outras visões diferentes do
letramento que lhes estavam sendo proposto. Conforme Street (2014),
este seria um cuidado especial a ser tomado: ao se tentar trabalhar com
um novo letramento, seria necessário compreender o que os indivíduos
de um lugar já sabem e mesmo como veem esse letramento que lhes está
sendo introduzido.
Desse modo, para se focar no letramento acadêmico de alunos uni-
versitários, faz-se necessário partir da compreensão da relação deles com
esse tipo de letramento, pois só temos por ora a visão dos pesquisadores
sobre esse fenômeno. Zavala (2010) analisa os depoimentos de uma es-
tudante de mestrado no Peru, levanta os conflitos vividos por esta frente
ao letramento acadêmico e constata que a discente não se identifica com
as práticas de escrita de que participa na universidade. A aluna chega
mesmo a expressar que “queria que meus professores aprendessem a outra
forma como vou dizer” e “gostaria que dissessem a que estás adentrando
[no letramento acadêmico] mas que é interessante o que tens [o que traz
do seu letramento vernáculo]”. (ZAVALA, 2010, p. 93).
Conforme Lea e Street (2014), o trabalho com a leitura e a escrita no
contexto universitário vem se desenvolvendo a partir de 3 perspectivas ou
modelos: (a) modelo de habilidades de estudo, (b) modelo de socialização
acadêmica e (c) modelo de letramentos acadêmicos.
No modelo de habilidades de estudo, escrita e letramento são vistos
como habilidades individuais e essa “abordagem concentra-se nos aspec-
tos da superfície da forma da língua e pressupõe que estudantes podem
transferir seu conhecimento de escrita e letramento de um contexto para
outro, sem quaisquer problemas” (LEA; STREET, 2014, p. 477).
No modelo de socialização acadêmica, parte-se do pressuposto de
que os “discursos disciplinares e os gêneros são relativamente estáveis
e, uma vez que os estudantes tenham aprendido e entendido as regras
básicas de discurso acadêmico particular, estão aptos a reproduzi-lo sem
obstáculo” (LEA; STREET, 2014, p. 477-478).

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

No modelo de letramentos acadêmicos, encontram-se semelhanças


com o modelo de socialização acadêmica, por focar em um trabalho
com gêneros acadêmicos, mas se consideram “os processos envol-
vidos na aquisição de usos adequados e eficazes de letramento como
mais complexos, dinâmicos, matizados, situados, o que abrange tanto
questões epistemológicas quanto processos sociais, inclusive relações
de poder entre pessoas, instituições e identidades sociais” (LEA;
STREET, 2014, p. 478).
Articulamos esse modelo de letramento acadêmico às discussões
do Interacionismo Sociodiscursivo (Bronckart, 1997/1999; 2017),
no qual se defende a centralidade da linguagem no desenvolvimento
humano e se busca compreender como se dá esse processo. Para o
ISD, retomando Marx, Vigotski e Volochinov, a palavra tem uma
importância central na formação da consciência, uma vez que ela é
um signo ideológico que reflete e refrata a realidade, contribuindo
para as decisões sobre o agir humano. Conforme Bronckart (1999,
2017), é nos textos, exemplares dos diversos gêneros textuais, que
encontramos a morfogênese do agir humano, pois, neles, por meio de
escolhas linguísticas, faz-se constantemente uma avaliação do agir
e uma divulgação deste, mesmo quando não haja a menor intenção
de se proceder desta forma.
O texto assume assim um papel muito importante: participa do
agir verbal humano; organiza esse agir e permite ainda refletir sobre
ele. E por isso o texto, articulado ao gênero textual de que é represen-
tante e aos modos de agir também articulados em um dado contexto,
precisa ser objeto de ensino de um trabalho com letramento. Contudo,
é preciso tomar o texto em sua complexidade, percebendo, conforme
Bronckart (1999, 2008) que, para a sua produção, o indivíduo articula
conhecimentos relativos à situação de produção e a uma arquitetura
textual que, no ISD, pode ser decomposta em um folhado textual com
uma infraestrutura textual (plano geral do conteúdo temático, tipos
de discurso, eventos sequências tipológicas), seguida de mecanismos
de textualização (coesão verbal e nominal, conexão) e mecanismos
enunciativos (modalização e vozes).

118
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Ao tratarmos do texto no letramento acadêmico na universidade,


é importante refletirmos também sobre como se organizam os gêneros
textuais nesse contexto (LOUSADA; DEZUTTER, 2016). Conside-
rando as diferentes situações de produção textual em contexto univer-
sitário, Lousada e Dezutter (2016) propuseram uma organização dos
gêneros nesse contexto, levando em conta os objetivos das produções
textuais (formação geral para formar-se em uma profissão ou formação
específica para a vida acadêmica), os destinatários das produções etc.
Essa reflexão levou à proposta do quadro abaixo, que apresenta as
diferentes produções textuais que convivem na Universidade, porém
com propósitos diferentes, que podem ser de formação universitária
ou de formação acadêmica: O quadro abaixo torna visível as duas
esferas que convivem na Universidade, a dos estudos universitários e
a da carreira acadêmica:

119
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Figura 1: As esferas (dos estudos universitários e da carreira acadêmica) que convivem na


Universidade (LOUSADA, DEZUTTER, 2016)

120
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

No caso da escrita, Dolz, Gagnon e Decândio (2010) retomaram


a proposta de Simard (1992) que destaca a importância de se perceber
também o conjunto de dimensões que a envolvem e que vão além dos
fenômenos linguageiros, pois há também os psicológicos e os sociais,
como se pode ver na figura 2. Do ponto de vista dos fenômenos psico-
lógicos, “o sujeito escritor mobiliza o pensamento, os afetos e implica
seu corpo no gesto gráfico”, (DOLZ, GAGNON; DECÂNDIO, 2010, p.
20). Em relação aos fenômenos sociais, ao escrever, o sujeito se engaja
em uma interação em dado lugar social, o que lhe impõe limites e abre
também possibilidades, pois para redigir uma dissertação deverá seguir
regras mais restritas que ao escrever um conto por prazer. Além disso,
há também os aspectos culturais, como o modo como a escrita de cada
esfera de atividade é vista em dada sociedade e as implicações que isso
gera ou, ainda, as particularidades próprias a cada disciplina. Assim,
ao escrever, a pessoa retoma e reorganiza esses aspectos, produzindo
textos singulares, mas que trazem em si “as significações construídas
pelo escritor a propósito da escrita, de sua aprendizagem e de seus
usos”8(BARRÉ-DE-MINIAC, 2002, p. 29). Em síntese, a escrita articula
diferentes dimensões:

Figura 2: As dimensões da escrita (DOLZ, GAGNON e DECÂNDIO, 2010, p. 20,


com base em SIMARD, 1992)

8 Traduzido do francês pelos autores: “des significations construites par le scripteur à propos de
l’écriture, de son apprentissage et de ses usages. »

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Segundo os autores (SIMARD, 1992; DOLZ, GAGNON, DECÂN-


DIO, 2010), a escrita como fenômeno psicológico pode ser entendida como
um fenômeno cognitivo e afetivo, já que o sujeito que escreve mobililza
seu pensamento, seus afetos e engaja seu corpo no gesto gráfico. Enquanto
fenômeno linguageiro, a escrita pode ser compreendida do ponto de vista
pragmático, ou seja, da adaptação à situação comunicativa específica de
produção textual; do ponto de vista textual, da organização do texto a
ser produzido, bem como do ponto de vista da microestrutura, ou seja,
levando-se em conta os aspectos sintáticos, lexicais, ortográficos e gráficos.
Finalmente, a escrita como fenômeno social leva em conta tanto a estrutura
interacional, ou seja, das interações ou contexto mais amplo, institucional,
no qual os textos foram produzidos, mas, também, do ponto de vista cultural
que leva em conta as referências e representações culturais em sua origem.
Partindo dessa compreensão da escrita com suas várias dimensões
e da noção de que os estudantes podem construir diferentes relações na
prática do letramento acadêmico, aplicamos e analisamos um questionário
aos estudantes, que será melhor descrito nas próximas seções.

2. O QUESTIONÁRIO

O questionário foi elaborado pelos pesquisadores do projeto contan-


do também com a ajuda e opinião de alunos de graduação e pós-graduação
para a elaboração das questões e para os pré-testes. Na versão final, que foi
aplicada, ele foi construído no GoogleForms, foi organizado em 4 seções
e continha 15 questões. Após a apresentação dos objetivos da pesquisa e
o termo de consentimento para participar dela, a primeira seção abordou
os gêneros de textos já redigidos na universidade e no ensino médio; na
segunda, abordou-se a relação com a escrita em contexto universitário e
com os gêneros acadêmicos; na terceira, o uso de recursos digitais para
a escrita; na quarta, identificação dos participantes.
Para este capítulo, escolhemos abordar duas questões, uma questão
fechada, extraída da parte 1, sobre os gêneros já redigidos e outra questão
aberta, extraída da parte 2, sobre a relação com a escrita:

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Questão 1.1: os gêneros textuais já redigidos


Questão 2.1: a relação com a escrita de gêneros acadêmicos
A seguir, discutiremos os resultados que obtivemos nos três con-
textos: Universidade de São Paulo (USP), Universidade São Francisco
(USF) e U. De Sherbrooke.

3. RESULTADOS

Os questionários foram aplicados na Universidade São Francisco


e FAE (Faculdade de Administração e Economia), que são instituições
administradas por uma mesma mantenedora, na Universidade de São
Paulo, na Universidade de Sherbrooke e na UNESP-Araraquara�.
Na Universidade São Francisco e FAE, o questionário foi aplicado
no primeiro semestre de 2015, em uma página de um curso online que
era ofertado a todos os estudantes da instituição. Contudo, somente 74
estudantes responderam, mas 10 não autorizaram que suas respostas
fossem usadas em nossa pesquisa. Dentre os sessenta e quatro estudantes,
vinte e quatro eram da FAE, somando quarenta alunos da USF. Quanto
às idades, a maioria dos estudantes têm entre 18 a 35 anos, havendo
apenas 10 graduandos acima de 35 anos. Esses alunos eram de diversos
semestres, do 1º ao 8º, de cursos de graduação das diferentes áreas de
Humanas, Exatas e Biológicas. Em relação ao gênero, a maioria dos
participantes era mulheres, 40 no total. Nesse caso, tratou-se de alunos
brasileiros, cuja língua materna é o português.
No caso da Universidade de São Paulo, o questionário foi aplicado
no 2º semestre de 2016 às turmas de Francês 2, 4, 6 e Monografia, que
representavam, de certa forma, a totalidade das disciplinas em francês
nas quais os alunos estariam inscritos naquele momento na Habilitação
em Letras-Francês. Obtivemos, no total, 131 questionários respondidos
pelos estudantes de Letras, habilitação em Francês. Nesse caso, tratou-
se, também, de alunos brasileiros, que tinham o português como língua
materna, mas aprendiam o francês, em diferentes níveis�, como língua
estrangeira.

123
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Em Sherbrooke, tivemos um total de 55 questionários respondidos


em 2015. Desses respondentes, 18 tinham o francês como segunda lín-
gua, assemelhando-se ao caso da USP. Eles estavam inscritos em um
curso sobre redação acadêmica para alunos não francófonos. Por outro
lado, 37 respondentes tinham majoritariamente o francês como língua
materna ou estavam cursando uma disciplina para a qual o francês era
requisito prévio, assemelhando-se ao caso da USF/FAE, por se tratar de
graduandos de cursos de psicologia ou trabalho social.

4. OS GÊNEROS TEXTUAIS PRODUZIDOS NO PERCURSO UNIVER-


SITÁRIO OU NO ENSINO MÉDIO

Para a primeira pergunta “Na lista abaixo, assinale se você já teve


que escrever o gênero textual no Ensino médio, em seu percurso univer-
sitário, em ambos ou se nunca o produziu”, temos as respostas que apre-
sentaremos a seguir, indicando com os algarismos 1,2 ,3 e 4, o primeiro,
o segundo, o terceiro e o quarto (quando for relevante), respectivamente
mais escolhidos. No Ensino Médio, notamos que um gênero que os alu-
nos tanto da USF/FAE quanto da USP produziram é o resumo de livro.
Mas enquanto na USF/FAE este era o mais produzido, na USP e na U.
de Sherbrooke, ele fica em terceiro ou segundo lugar. As respostas da
USP e U. de Sherbrooke são, aliás, muito semelhantes.

Quadro 1 - Gêneros mais produzidos no Ensino Médio (1 = mais produzido

Gêneros USF / USP Sherbrooke


FAE
Resumo de um livro 1 3 2
Esquema ou carta conceitual 2
Artigo jornalístico 3
Resposta dissertativa a uma questão 1 1
Análise de um texto 2 1

124
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Foi possível também verificarmos com esta pergunta os gêneros


menos produzidos pelos alunos, como expomos no quadro 2 a seguir.
Novamente, as respostas obtidas na USP e na U. de Sherbrooke são muito
semelhantes. Pode-se inferir que os alunos têm pouco contato com textos
científicos no Ensino Médio:
Quadro 2 - Gêneros menos produzidos no Ensino Médio (1 = menos produzido)

Gêneros USF/FAE USP Sherbrooke


Artigo científico 1 3 3
Resumo de um artigo científico 2
Trabalho de conclusão (trabalho longo de 3 2 2
mais de 3 páginas)
Resumo para uma proposta de comunicação 1 1
em um colóquio
Projeto de pesquisa 4 4

Em relação aos gêneros produzidos tanto no Ensino Médio quanto


na Universidade, encontramos a “análise de um texto”, a “resposta dis-
sertativa a uma questão” e o “texto argumentativo (uma a duas páginas)
apresentando opinião pessoal sobre um tema”, que aparecem assim sem
uma nomeação específica de gênero nos dois níveis de ensino:
Quadro 3 - Gêneros mais produzidos no Ensino Médio e na Universidade
(1=mais produzido)

Gêneros USF/FAE USP Sherbrooke


Análise de um texto 1 2 1
Resposta dissertativa a uma questão 2 1 3
Texto argumentativo (uma a duas páginas) 3 3 2
apresentando opinião pessoal sobre um tema

125
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

E os menos produzidos são o relatório de estágio, o ensaio, o tra-


balho de conclusão e o resumo para uma proposta de comunicação em
um colóquio:
Quadro 4 - Gêneros menos produzidos no Ensino Médio e na Universidade
(1=menos produzido)

Gêneros USF/FAE USP Sher-


brooke
Relatório de estágio 1 3 3
Ensaio 2 2
Trabalho de conclusão (trabalho longo de mais 3 2
de 3 páginas)
Resumo para uma proposta de comunicação em 1 1
um colóquio

No conjunto, parece-nos que, no Ensino Médio, os alunos tiveram


contato maior com gêneros textuais mais expositivos, havendo um tra-
balho com a argumentação, mas sem a explicitação clara de um gênero e,
possivelmente, tratou-se de uma argumentação menos complexa, ou seja,
a partir de gêneros que têm uma organização textual mais simplificada.
Na universidade, há uma diferença entre os contextos. Enquanto na
USF / FAE os alunos apontam como mais produzidos os gêneros artigo
científico, projeto de pesquisa e trabalho de conclusão, na USP, aparecem
a resposta dissertativa a uma questão, análise de um texto e trabalho final
(de mais de 3 páginas), seguindo o que havia também no Ensino Médio. Já
na U. de Sherbrooke, o trabalho final (de mais de 3 páginas) e a resposta
dissertativa a uma questão são os gêneros mais produzidos. Por um lado,
é importante ressalvar o fato de que, devido à quantidade de alunos por
sala, é mais comum em universidades privadas brasileiras haver mais
situações em que os discentes trabalhem com questões objetivas, havendo
uma produção de textos como artigos e projetos para aqueles que fazem
a iniciação científica. Por outro, as denominações “artigo científico” e
“trabalho” costumam não ser muito claras no nível escolar, de modo geral,

126
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

o que pode ter interferido nas respostas encontradas. Além disso, pelo
fato de que, na USP, tratou-se de um contexto de curso de Letras, isso
deve ter influenciado no ítem “análise de um texto”, visto que a prática
da análise de textos literários é frequente.
Quadro 5 - Gêneros mais produzidos na Universidade (1 = mais produzido)

Gêneros USF/FAE USP Sherbrooke


Artigo científico 1
Projeto de Pesquisa 2
Trabalho de Conclusão (trabalho longo de mais 3 3 1
de 3 páginas)
Resposta dissertativa a uma questão 1 2
Análise de um texto 2

Ao observarmos os gêneros menos produzidos, vemos que na USF/


FAE e USP são muito diferentes, provavelmente pelo fato de que, no curso
de Letras na USP é comum o fato de fazer análises de textos literários e
resumos de livros, enquanto que esses são os gêneros menos produzidos
na USF/FAE. Já os resultados da U. de Sherbrooke assemelham-se aos
da USP no que diz respeito ao fato de não ser frequente produzir um
resumo para uma proposta de comunicação em colóquio e aos da USF/
FAE pelo fato de que tampouco os estudantes canadenses produzem
resumos de livros e análises de textos, provavelmente pelo tipo de curso
em que estudam, já que, contrariamente ao caso da USP, em que se trata
de estudantes de Letras, na USF e em Sherbrooke, os estudantes cursam
Engenharias, Psicologia ou Trabalho Social.

127
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Quadro 6 - Gêneros menos produzidos na Universidade (1= menos produzido)

Gêneros USF/FAE USP Sherbrooke


Resposta dissertativa a uma questão 1
Resumo de um livro 2 2
Análise de um texto 3 3
Esquema ou carta conceitual 1
Resumo para uma proposta de comunicação em 2 1
um colóquio
Relatório de experiência 1

Em relação aos gêneros nunca produzidos pelos alunos, tanto na


USF quanto na USP e na U. de Sherbrooke, os alunos apontaram que
nunca produziram o resumo para uma proposta de comunicação em um
colóquio.
Quadro 7 - Gêneros nunca produzidos pelos alunos

Gêneros USF/FAE USP Sherbrooke


Resumo para uma proposta de comunicação em X X X
um colóquio

Ao verificarmos essas respostas dos alunos, observamos que não há


uma progressão entre os gêneros do Ensino Médio e os da Universidade,
ainda que haja alguns textos que se repetem como a resposta dissertativa,
a análise de texto e o texto argumentativo. De certo modo, como apontam
Lea e Street (2014), parece que continua subjacente a ideia de um tra-
balho que não precisa focalizar em gêneros específicos e de que haveria
habilidades gerais que bastariam para o sucesso na produção de textos.
Essa observação nos ajuda a refutar ainda mais a teoria de déficit
dos alunos em relação ao domínio de um letramento acadêmico, uma vez
que não há como apresentar um conhecimento sobre algo que se desco-

128
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

nhece. Mesmo se considerarmos que alguns textos se repetem, temos


que levar em conta que, certamente, há uma diferença entre a expectativa
dos professores sobre eles no Ensino Médio e no Ensino Universitário.
E essa expectativa em relação às produções dos alunos não costuma ser
verbalizada, apenas cobrada, como expõe Zavala (2010) ao tratar do
contexto peruano.
Contudo, não podemos concluir a partir desta análise que seria o caso
de fazermos o Ensino Médio passar a centrar-se nos gêneros desejados
na Universidade. Não é este o caso. Cada nível de ensino deve ter seus
objetivos que não podem ficar restritos somente a atender às necessida-
des da próxima etapa de escolaridade. Na verdade, cada nível deveria
procurar focar nos gêneros que são necessários para o desenvolvimento
do aluno naquele momento de sua vida escolar (e profissional, no caso
no ensino superior).
Podemos inferir também que seria interessante trabalhar com gêne-
ros textuais mais facilmente definidos, assumindo os textos exemplares de
gêneros como objetos de ensino, descartando os “trabalhos”, as “análises”
ou os “textos argumentativos” que, apesar de serem constantes nos espa-
ços escolares, têm contornos pouco identificáveis. Geralmente, no caso
desses textos, não há um consenso sobre como são e sua forma varia de
acordo com os professores de cada contexto. Uma consequência disso é
que os alunos têm dificuldade de transferir as capacidades de linguagem
que desenvolveram com um desses textos para um outro de um gênero
específico, quando chegam ao nível superior. Tal situação cria obstácu-
los para o agir do aluno que podem ser evitados ao se tomar os gêneros
textuais no processo de ensino, conforme Schneuwly e Dolz (2004).

5. A RELAÇÃO COM A ESCRITA

Além de buscarmos saber sobre os gêneros com que os alunos con-


viviam mais no espaço escolar do Ensino Médio e Superior, intentamos,
com a segunda questão que analisaremos a seguir, também compreender
suas relações com a escrita (BARRÉ-DE-MINIAC, 2002), apoiando-nos,

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

para isso, nas discussões de Simard (1992) e Dolz, Gagnon e Decândio


(2010) sobre as dimensões da escrita enquanto fenômeno psicológico,
linguageiro e social. No entanto, ao analisar as respostas dos alunos aos
questionários, observamos que era possível identificar diferentes mani-
festações de cada dimensão, nem todas relacionadas ao que havia sido
encontrado pelos autores. Por outro lado, algumas dimensões descritas
por eles diziam respeito ao caso de crianças que aprendiam a escrever
e não a adultos, como em nosso caso. Essas observações nos levaram a
complementar as categorias de Simard (1992), como, por exemplo, ao
compreendermos a escrita como fenômeno social, levando em conta as
interações que estão na sua origem ou os aspectos culturais que a deter-
minam, assim como incluir uma quarta dimensão, relacionada à escrita
enquanto fenômeno físico, já que, muitas vezes, os alunos se referiam
ao cansaço físico decorrente da escrita, tanto no plano fisiológico, do
cansaço dos músculos e do esforço repetido dos mesmos órgãos físicos,
quanto ao lado material da escrita, envolvendo o tempo que se leva e a
necessidade de preparação e dedicação à tarefa. Diante das respostas que
encontramos, propusemos as seguintes categorias:

a) Fenômeno Psicológico: Cognitivo (C) e Afetivo (A);

b) Fenômeno Linguageiro: Textual e pragmático (T) e Sintático, lexical,


ortográfico e gráfico (L);

c) Fenômeno Social:– Interacional (I) e Cultural (C), e

d) Fenômeno Físico: Fisiológico (F) e Material (M).

A segunda pergunta é “Para mim, escrever um trabalho universitário


é:” e exigia uma resposta aberta. Ao analisarmos as respostas, encontra-
mos exemplos como os do quadro a seguir sobre as dimensões da escrita
e suas manifestações. Como veremos, para muitas das respostas abertas
foi possível identificar mais de uma dimensão e/ou manifestação:

130
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Quadro 8 - Exemplos de dimensões da escrita e suas manifestações91011

Pergunta Dimensões da escrita


Para mim, escrever um trabalho Psicológico Linguageiro Social Físico
universitário é ...
A C T L C I F M
muito gratificante X
adquirir conhecimento X
expor minhas ideias sobre diferen- X X
tes temas
muito difícil, estudei sempre em X X X
escola pública e o ensino médio
fiz supletivo, não tenho muita
base cultural e escrevo muito
errado.
elaborar um texto, embasado em X X X X
informações, comprovadas com
bibliografia, a respeito do texto
proposto pelo professor.
uma tortura X X X
difícil, algo lento e penoso pois X X X X
exige muito esforço para orga-
nizar o raciocínio, por demandar
mais tempo e dedicação
algo cansativo, que exige muitos X X X
conceitos e bagagem acadêmica
fatigante X X
longo e demanda muita pesquisa e X X X
muito tempo10
agradável11 X

Legenda: Fenômeno Psicológico – Cognitivo (C) e Afetivo (A); Fenômeno Linguageiro –


Textual e pragmático (T) e Sintático, lexical, ortográfico e gráfico (L); Fenômeno Social
– Interacional (I) e Cultural (C); Fenômeno Físico - Fisiológico (F) e Material (M)
9 O quadro aponta apenas alguns dos resultados obtidos, a partir de respostas de diferentes alunos,
nos três questionários aplicados. Optamos por representar dessa forma os resultados, mas, a
título de exemplo, tivemos aproximadamente 50% das respostas classificadas na dimensão
psicológica.
10 Tradução de : « long et demandant beaucoup de recherche et beaucoup de temps »
11 Tradução de: “plaisant”

131
Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

Em relação à incidência de cada dimensão nas respostas, observa-


mos que a psicológica é a predominante tanto na USF/FAE quanto na
USP e na U. de Sherbrooke, contribuindo para percebermos que a escrita
implica mais que o nível linguageiro. Há na escrita, como em qualquer
ato de linguagem, uma pessoa por inteiro com suas emoções, intencio-
nalidades e saberes. E isso precisa ser considerado em um trabalho de
letramento que não vê a linguagem como neutra ou isenta de ideologias
e interesses. As pessoas são afetadas pelos textos, pela produção textual,
por sua demanda e agem ou reagem a eles. A escrita como fenômeno
linguageiro apareceu em segundo lugar nas três universidades, como
se poderia esperar, devido à importância atribuída à produção textual
como forma de avaliar o desempenho nas disciplinas12. Porém, também
observamos a dimensão social como bastante importante, quase tanto
quanto a linguageira, tanto do ponto de vista das interações sociais que
influem na produção textual (professor, situações sociais etc) ou cultural,
ou seja, do contato com obras culturais, bibliografia, conhecimentos etc.
que influenciam na produção textual. Finalmente, a dimensão física apa-
receu como um dado novo, mas importante, nas respostas, pois o relato
das dificuldades geradas pelo cansaço físico ou pela demanda de tempo
para escrever foram frequentes.
As respostas acima nos ajudaram a compreender que o processo de
ensino e aprendizagem precisa partir do conhecimento das relações com
a escrita dos alunos de diferentes contextos, para que se possa elaborar
materiais, estratégias, propostas que levem em conta as várias dimen-
sões que têm influência na escrita, para além da dimensão linguageira.
Acreditamos que conhecer as representações dos alunos sobre a escrita
pode contribuir para que as propostas de produção textual auxiliem os
estudantes a ampliar o seu letramento acadêmico, mas sem que, para isso,
precisem tentar apagar as suas emoções relacionadas a ela, os aspectos
físicos nela envolvidos ou, ainda, as relações sociais que a permeiam.
Todavia, contemplar as emoções, os aspectos físicos e sociais não sig-
nifica restringir a dimensão linguageira da escrita. Um bom trabalho

12 Também a título de exemplo, enquanto que a dimensão psicológica representou 50% das
respostas, a linguageira representou 35% e a social: 15%.

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

deveria centrar-se no psicológico, linguageiro, social e físico e poderia,


como um dos resultados, levar os alunos a conseguir responder a questão
“Para mim, escrever um trabalho universitário é” de modo a explicitar a
sua compreensão dessas várias dimensões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados que obtivemos nos questionários se centraram no que


Lousada e Dezutter (2016) chamam de esfera dos estudos universitários,
ou seja, naquela em que estudantes universitários produzem textos com
um objetivo de formação geral. Essa observação é importante, pois,
talvez, se o questionário tivesse sido aplicado a alunos de mestrado ou
doutorado, as respostas teriam sido diferentes.
A primeira conclusão a que chegamos foi algo que não é novo nas
pesquisas sobre escrita acadêmica: os alunos chegam à universidade
despreparados para produzir os gêneros textuais que circulam na esfera
universitária, o que dificulta seu desempenho nas disciplinas que com-
põem o currículo universitário. Embora isso já tivesse sido demonstrado
por inúmeros pesquisadores (BAZERMAN et al, 2005; FERREIRA,
LOUSADA, 2016), nosso questionário permitiu investigar quais são, de
fato, os gêneros produzidos no ensino médio e no ensino universitário
e nos auxiliou a compreender que, embora alguns gêneros trabalhados
no ensino médio tenham características dos textos expositivos e/ou
argumentativos solicitados na universidade, os alunos não transferem
automaticamente o que aprenderam para a produção de textos quando
chegam à esfera universitária. Uma das hipóteses que levantamos é a de
que, por não se centrarem nos gêneros textuais como objetos de ensino e
ao demandarem textos que não têm contornos específicos e nem estão as-
sociados a situações sociais, como é o caso do trabalho final, por exemplo,
os alunos não compreendem que podem transferir o que aprenderam para
a produção de gêneros textuais com características semelhantes. Nesse
sentido, a conscientização sobre os gêneros textuais, suas situações de
produção e suas características poderia ser bastante útil.

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

A segunda conclusão a que chegamos é que as relações que os alunos


têm com a produção escrita são multifacetadas, ultrapassando, muito, a
dimensão linguageira à qual se costuma dar destaque nos contextos esco-
lares e universitários. Dessa forma, compreendemos que, nas propostas de
trabalho com a produção textual, poderia ser de grande interesse discutir
com os alunos as diferentes dimensões da escrita (SIMARD, 1992), a re-
lação que eles têm com ela e, por quê não, os aspectos afetivos envolvidos
na produção textual e o que significam para eles. A nosso ver, além de
contribuir para que, ao ter mais consciência sobre o processo, os alunos
possam ter mais facilidade na tarefa de escrever, a conscientização sobre
as dimensões envolvidas na escrita e sua relação com elas poderia permitir
um letramento acadêmico que levasse em conta, como apontam Lea e Street
(2014), a complexidade, a dinamicidade, as relações de poder, os processos
e identidades sociais que o caracterizam. Tratar-se-ia de propor um trabalho
com o todo que caracteriza a produção textual na sociedade e não apenas
com a dimensão linguageira presente nos textos, partindo da compreensão
das situações sociais de produção textual (BRONCKART, 1999), em se-
guida para conscientização das dimensões da escrita (SIMARD, 1992) e
de sua relação com ela (BARRÉ-DE-MINIAC, 2002), para, apenas então,
abordar as camadas que caracterizam os textos (BRONCKART, 1999).
Essas conclusões obtidas a partir de respostas de estudantes univer-
sitários de três contextos nos conduziram a elaborar um site destinado
ao letramento acadêmico e que conterá, além dos dados da pesquisa que
o originou, propostas para trabalhar a produção textual na universidade
a partir de múltiplos instrumentos: um questionário sobre os gêneros
textuais mais/menos frequentes, mais/menos fáceis/difíceis e a relação
com a escrita, que pode ser aplicado aos alunos; vídeos que abordam di-
ferentes facetas da produção textual e conscientizam sobre as dimensões
com a escrita e sobre a importância de se conhecer sua relação com ela;
vídeos que abordam situações de aulas e, também, entrevistas com alunos;
materiais didáticos que podem ser usados por alunos e professores; entre
outros. O site13 pretende se tornar, assim, nossa contribuição de ordem
13 Trata-se do site LITERAC (www.literac.fflch.usp.br), construído no quadro do projeto in-
ternacional que mencionamos a partir de diversos financiamentos para a pesquisa obtidos
consecutivamente: MRI-Canadá, AUF, CAPES-DFATD.

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

pragmática que fará a ponte entre os saberes produzidos na universidade,


por meio de um projeto de pesquisa internacional, e as necessidades da
sociedade que ingressa na esfera universitária.

REFERÊNCIAS

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Gêneros de texto/discurso: novas práticas e desafios

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