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Flávia de Almeida Moura

Larissa Leda F. Rocha (orgs.)

Experiências Expandidas
em Comunicação

SÃO LUÍS

2019
Copyright © 2019 by EDUFMA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Profa. Dra. Nair Portela Silva Coutinho


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Projeto Gráfico
Patrícia Azambuja

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Experiências expandidas em comunicação / Flávia de Almeida Moura,


Larissa Leda F. Rocha (orgs.). — São Luís: EDUFMA, 2019.
178 p.
ISBN: 978-85-7862-834-5 (e-Book Formato PDF)
1. Comunicação. 2. Cultura popular. 3. Mídia. 4. Identidade. 5. Tel-
evisão. I. Moura, Flávia de Almeida. II. Rocha, Larissa Leda F.

CDD 302.2
CDU 316.77

Elaborada por Marcia Cristina da Cruz Pereira CRB-13 / 418


SUMÁRIO
1. A prática da pesquisa em estudos culturais: 11
em foco os sujeitos
Ana Carolina D. Escosteguy

2. A mídia na constituição da identidade 22


dos artistas sertanejos de São Luís
Márcio Monteiro

3. Telenovela além da televisão: 43


transmidiação e conversação
Larissa Leda F. Rocha

4. Espaços de trabalho compartilhados: 64


dinâmicas produtivas e processos de vinculação social
Ramon Bezerra Costa
Francine Tavares

5. Mídia e sujeitos: a busca pelas representações 80


de agentes da rede de combate ao trabalho escravo
Flávia de Almeida Moura

6. Quem define o que é ou não é a identidade 98


brasileira?: uma revisão conceitual sobre cultura popular
à luz dos estudos culturais
Letícia Conceição Martins Cardoso

7. TV pública no Brasil: a primazia 116


histórica do acesso restrito
Melissa Moreira Rabêlo

8. Redes sociotécnicas, híbridos e três controvérsias 136


metodológicas pelo viés da Teoria Ator-rede
Patrícia Azambuja
Ana Paula Pereira Coelho

9. O rádio debate a cidadeº: a participação 163


dos ouvintes nos programas jornalísticos
das emissoras AM em São Luís
Ed Wilson Ferreira Araújo
APRESENTAÇÃO
Para inaugurar esta primeira publicação do Grupo de Pesquisa - ObE-
EC, trazemos nesta coletânea textos diversos, elaborados a partir de esforços
de pesquisa dos professores com seus alunos vinculados ao Departamento de
Comunicação Social da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) e tam-
bém em diálogo com outros professores, pós-graduandos e pesquisadores de
outras universidades brasileiras.
O fio condutor que une esses textos trata-se dos processos de comuni-
cação e/ou da cultura pensados como agentes de transformação social que
configuram a vida dos sujeitos. E esses sujeitos aparecem transversalmente
em todas as pesquisas aqui apresentadas, seja pela perspectiva dos estudos
culturais, como o texto de abertura da coletânea, escrito pela professora e pes-
quisadora Ana Carolina Escosteguy, da Universidade Federal de Santa Maria
(RS), em ocasião de sua participação da IV Jornada de Pesquisa e Extensão
em Comunicação, ocorrida em junho de 2017 na UFMA; como na discussão
conceitual sobre sujeitos e identidades a partir da cultura popular, apresentada
pela professora da UFMA, Letícia Cardoso, além de outros textos inspirados
neste protocolo metodológico e configurados como estudos de recepção,
com os artigos dos professores da UFMA, Ed Wilson Araújo e Márcio
Monteiro.
Também compõem a presente coletânea outros textos que se apro-
ximam dessa vertente dos estudos culturais, como os artigos das profes-
soras Flávia de Almeida Moura, que discute representações a partir da
mídia, e Larissa Leda Rocha, que apresenta uma reflexão sobre transmi-
diação e conversação para além da televisão.
Além disso, relatos de pesquisa discutem relações entre sujeitos e
Comunicação em outras perspectivas teóricas e metodológicas, como o
da professora Patrícia Azambuja em coautoria com a sua ex-aluna na
UFMA e atualmente doutoranda em Comunicaçao e Cultura Contem-
porânea pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), Ana Paula Pereira
Coelho, que utilizam principalmente a metodologia Ator-rede de Bruno
Latour (1997); o relato de pesquisa da professora Melissa Moreira, resul-
tado de sua tese de doutoramento sobre TV pública no Brasil numa pers-
pectiva das políticas públicas da Comunicação; e, finalmente, um ensaio
escrito pelo professor da UFMA, Ramon Bezerra Costa, em coautoria
com a doutoranda em Comunicação e Cultura na ECO-UFRJ (Escola
de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Francine
Tavares, sobre dinâmicas produtivas e processos de vinculação social, na
perspectiva de Muniz Sodré (2014).
Neste sentido, categorias analíticas e palavras-chave como repre-
sentações, identidades, vínculos sociais, convergência midiática, narra-
tivas transmidiáticas, recepção, participação e organização produtiva
perpassam todos os capítulos aqui reunidos com a proposta de produ-
zir sentidos de reflexão acerca dos processos de comunicação pensados,
principalmente, a partir dos sujeitos.
O primeiro capítulo intitulado A prática da pesquisa em estudos culturais:
em foco os sujeitos, escrito por Ana Carolina Escosteguy em ocasião de sua
participação como conferencista da IV Jornada de Pesquisa e Extensão
em Comunicação da UFMA, em junho de 2017, traz uma reflexão acer-
ca dos sujeitos e de suas práticas. E para falar disso, tornam-se visíveis
intersecções entre três temas-chave: o sujeito e sua ação num determina-
do marco histórico; o reconhecimento de processos de exclusão, diferen-
ciação e dominação como historicamente construídos; e a compreensão
contemporânea da esfera cultural e dentro dessa, a comunicação e a
mídia múltipla1.
Partindo de um texto mais teórico e conceitual, passamos para um
relato de experiência de pesquisa empírica do professor Márcio Montei-
ro, intitulado A mídia na constituição da identidade dos artistas sertanejos de São
Luís. O autor observa que o cenário sertanejo da capital maranhense tra-
ta-se de uma combinação de fatores que tem a mídia como agente prin-
cipal. O texto indica pontos de análise sobre a proliferação da música
sertaneja na capital maranhense com o surgimento e a consolidação de
um circuito em que artistas locais se apropriam das músicas veiculadas
exaustivamente pela mídia, incorporam-nas ao seu próprio repertório e
as executam em bares e casas de shows, de modo que os frequentadores
desses espaços possam consumi-las em uma experiência ao vivo.
Já o terceiro capítulo, escrito pela professora Larissa Leda Rocha e
intitulado Telenovela além da televisão: transmidiação e conversação, a discussão é
marcada sobre os novos modos de ver televisão. Neste contexto, a autora
traz a discussão do YouTube como a metáfora perfeita para pensar no
enfrentamento e choque entre duas lógicas ou dois modelos, o broadcasting
– que designa os modos do sistema de mídia convencional – e práticas da
cultura digital – que remetem aos modos que emergem junto ao desen-
volvimento das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação,
marcadas por três conceitos de Jenkins (2008): convergência dos meios de
comunicação, cultura participativa e inteligência coletiva.
O quarto capítulo, intitulado Espaços de trabalho compartilhados: dinâ-

1 O termo foi introduzido por Nick Couldry, em 2011, para falar do atual ambiente midiático como uma
complexa rede de múltiplas plataformas – no original: a complex web of delivery plataforms. Ver Life
with the media – Between freedom and subjection (COULDRY, 2016).
micas produtivas e processos de vinculação social, escrito pelo professor Ramon
Bezerra Costa e a doutoranda Francine Tavares, tem como objetivo prin-
cipal refletir sobre os processos de construção dos “vínculos sociais”, que
são entendidos a partir de Muniz Sodré (2014) como o que caracteriza o
processo da comunicação, que tem relação com a constituição de sujeitos
e a produção de modos de vida. Nessa perspectiva, segundo os autores, a
vinculação social se dá por meio da instauração de um “comum” – não
“algo em comum”, nem uma “coisa” ou “substância”, mas uma relação
que se constrói, uma espécie de compartilhamento de referências cons-
truídas que passam a ser partilhadas.
O quinto capítulo, intitulado Mídia e sujeitos: a busca pelas representações
de agentes da rede de combate ao trabalho escravo, escrito pela professora Flávia
de Almeida Moura, busca compreender a participação da mídia brasilei-
ra nas representações (Hall, 2010; 2012) do trabalho escravo contempo-
râneo junto a um grupo de agentes de entidades governamentais e não
governamentais que integram a rede de combate ao trabalho escravo
contemporâneo no Maranhão e no Brasil. O estudo traz elementos de
análise para a questão da representação dos sujeitos envolvidos a partir
das representações midiáticas, principalmente da televisão. Com o ma-
peamento das estratégias de comunicação das entidades envolvidas bem
como suas relações com os aparatos midiáticos, a pesquisa traz à tona
aspectos interessantes da temática, que é sociabilizada entre os agentes
pesquisados e o grupo de pesquisadores envolvidos, descortinando pro-
duções de sentido sobre a condição da escravidão contemporânea bem
como suas representações na mídia.
Já o sexto capítulo, escrito pela professora Letícia Conceição Mar-
tins Cardoso, intitulado, Quem define o que é ou não é a identidade brasileira?:
uma revisão conceitual sobre cultura popular à luz dos estudos culturais, traz outra
discussão conceitual sobre a temática dos sujeitos e de suas identidades
a partir de uma discussão sobre cultura popular. O objetivo é revisitar
a questão da identidade nacional, tomando o caso do Bumba meu boi,
entre outras expressões populares, a fim de discutir antigas e novas con-
figurações teóricas sobre o conceito de “cultura popular”, o que leva a
pensar também no processo de implantação das políticas públicas de
cultura no Brasil.
O sétimo capítulo, também tratando sobre televisão, mas numa
perspectiva das políticas públicas da Comunicação, a professora Melissa
Moreira escreve sobre TV pública no Brasil: a primazia histórica do acesso restri-
to. Para a autora, mesmo com as transformações tecnológicas que pode-
mos acompanhar na atualidade, a televisão ainda deve ser tratada como
uma mídia massiva. E neste sentido, a TV teria duas funções centrais nas
democracias: o de manter a população informada, repassando dados e
informações sobre realidades diferenciadas e de exercer o controle social
sobre a ação governamental, garantindo que a coisa pública sirva, de
fato, aos interesses coletivos.
Já o oitavo capítulo, intitulado Redes sociotécnicas, híbridos e duas contro-
vérsias metodológicas pelo viés da Teoria Ator-rede, escrito pela professora Patrí-
cia Azambuja e doutoranda Ana Paula Pereira Coelho, apresenta dois
estudos nos quais a Teoria Ator-rede e o Princípio da Simetria oferecem
caminhos metodológicos no sentido em que propõem pensar o social
menos como categoria de base analítica, posta antecipadamente, e mais
como um processo contínuo, vinculado a uma rede de relações heterogê-
neas geradas no campo das experiências. Seguindo a ideia de descrever
sem explicar, ou narrar sem necessariamente demarcar soluções defini-
tivas para as controvérsias identificadas, rastreando as conexões a partir
de uma escrita etnográfica, a Teoria Ator-Rede (Latour, 1997) redefine a
noção de social para além dos limites humanos, como uma rede de (re)
associações entre elementos híbridos (humanos e não-humanos).
E para fechar a coletânea do Obeec, o nono capítulo, intitulado
O rádio debate a cidade: a participação dos ouvintes nos programas jornalísticos das
emissoras AM em São Luís também é desdobramento de pesquisa de douto-
ramento do professor da UFMA, Ed Wilson Araújo. Trata-se de um es-
tudo de recepção realizado na capital maranhense a partir do protocolo
teórico-metodológico do mapa noturno de Jesus Martín-Barbero (2001). O
objetivo principal é analisar a participação da audiência no contexto do
rádio AM de São Luís, influenciado pelo controle econômico e político
dos seus proprietários e pelas mudanças de constituição dos poderes exe-
cutivo e legislativo a cada eleição. Nessas circunstâncias, pode-se perce-
ber que a audiência participa dos programas de diversas formas (crítica,
propositiva, dialogada, contestatória, iconoclasta etc) tendo como eixo o
cotidiano da cidade.
Esperamos com esta primeira coletânea do ObEEC possa contri-
buir para as pesquisas no campo da Comunicação, principalmente as
interessadas em analisar a participação dos sujeitos nos processos de co-
municação, de vinculação social ou mesmo de midiatização da sociedade
contemporânea. Desejamos, assim, uma ótima leitura.

As organizadoras
A PRÁTICA
DA PESQUISA
EM ESTUDOS
CULTURAIS:
EM FOCO OS
SUJEITOS*
Ana Carolina D. Escosteguy**

* Palestra dada na IV Jornada de Pesquisa e Extensão em Comunicação da Universidade Federal do


Maranhão (UFMA), ocorrida em junho de 2017, cujo tema era O lugar do sujeito nas práticas de comunicação
contemporânea.
** Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Pesquisadora do CNPq.
12 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Este texto conserva as marcas da oralidade já que foi concebido para


ser apresentado como palestra, ainda que alguma coisa mais tenha sido
acrescentada e retrabalhada para ser, aqui, publicado. Faço uso, talvez
excessivo, de citações que, na ocasião, permitiam comentários e observa-
ções, justificando e ilustrando minha reflexão. Agora, esse procedimento
deixa-me muito próxima aos autores citados, no entanto, mantenho sua
forma já que se trata do registro da exposição realizada.
Para atender, pelo menos em parte, o tema proposto, O lugar do sujeito
nas práticas de comunicação contemporânea, vou estruturar minha apresentação
em três partes. A primeira esclarece as condições primordiais de meu
ponto de partida; a segunda aponta para a incorporação de um conceito-
-guia na prática da pesquisa em estudos culturais e mídia; e, finalmente,
a última articula dados coletados de uma pesquisa, coordenada por mim,
com alguns questionamentos. Faço isso para ilustrar as premissas teóricas
previamente apresentadas.

Do lugar a partir do qual se fala: estudos culturais


Tomo o âmbito dos estudos culturais que tem caracterizado minha
prática docente e as pesquisas que desenvolvo como o espaço onde situ-
ar e focar especificamente a problemática do sujeito. Sendo assim, este é
um relato necessariamente limitado e interessado pela minha trajetória
de afinidade com os estudos culturais - ou, até mesmo, com uma versão
deles.
Inequivocamente, no meu percurso, os estudos culturais dão pre-
ferência à materialidade social da cultura e à sua dimensão simbólico-
-política, ao contrário de outras versões que privilegiam a materialidade
estética. Daí a defesa de um determinado tipo de análise cultural.
O que faz a diferença é estar comprometido com uma determinada
forma de estudar a cultura, por um lado, marcada por uma abordagem
contextual e conjuntural. Como nos ensina Stuart Hall1, o objeto de estudo

1 Ver, por exemplo, a discussão teórica realizada em HALL, S. et al Resistance Through Rituals (1975) e
Policing the Crisis (1978).
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 13

está sempre centrado num contexto e nunca é um acontecimento isola-


do, mas uma “articulação estruturada de práticas”. Nenhum elemento pode
ser isolado de suas relações, mesmo que essas relações possam modificar-se e, de fato,
constantemente se modifiquem. E, por outro lado, é também uma abordagem
política, comprometida com o reconhecimento de diferenças culturais que
são atravessadas por relações de poder.
Faz-se, ainda, necessário complementar que me movo dentro do
âmbito das articulações entre estudos culturais e estudos de mídia o que signi-
fica apenas um lugar diante de tantas outras possibilidades para falar de
estudos culturais. Nessa direção, assinalo que assumo uma visão cultural e
historicizada de tecnologia, distante daquela que a compreende como cau-
sa, por si mesma, da mudança cultural ou social. Com esse entendimen-
to, faz-se fundamental resgatar os ensinamentos de Raymond Williams
a esse respeito que, nas palavras de Silverstone (2016, p. 16, no prefácio
a Televisão, tecnologia e forma cultural), é de “crença fundamental na efeti-
vidade do agenciamento humano: [na] nossa capacidade de perturbar,
interromper e desviar o que, sem isso, seria a lógica fria da história e a
unidimensionalidade da tecnologia”.
Assim, entende-se a mídia como a tecnologia que habilita a comunicação, sendo
vital identificar o conjunto de práticas sociais e culturais que se instituem ao seu redor
(VARELA, 2010, s/p). Portanto, afirmações como “a TV é a caixa que
mudou o mundo” ou “a Internet revolucionou o mundo” são postas sob suspeita
dentro desse enquadramento.

Vale citar textualmente Raymond Williams (2016, p. 139):


O determinismo tecnológico é uma noção insustentável,
porque substitui as intenções econômicas, sociais e políti-
cas pela autonomia aleatória da invenção ou por uma es-
sência humana abstrata. (...) Determinação é um processo
social real, mas nunca [...] um conjunto de causas com-
pletamente controladoras e definidoras. Pelo contrário, a
realidade da determinação é estabelecer limites e exercer
pressões, dentro dos quais as práticas sociais variáveis são
profundamente afetadas, mas não necessariamente con-
troladas.
14 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

É dentro desses marcos que situo minha atual prática de pesquisa e


docência. Essa versão retém o entendimento de uma prática em estudos
culturais que foca na tensão entre a capacidade criativa e produtiva do
sujeito e a pressão das determinações estruturais como dimensão subs-
tantiva na limitação de tal capacidade (REGUILLO, 2004). Em outros
termos, o desafio é como tratar das estruturas constituindo os sujeitos,
sem perder de vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na aná-
lise tanto a força objetiva das instituições, revelada nos seus produtos/
artefatos, quanto a capacidade subjetiva dos atores sociais. É a partir des-
sas premissas que se destaca a especificidade do âmbito do social e do
político na análise cultural.

Do que se fala: de sujeitos e suas práticas


Dentro desse âmbito, tornam-se visíveis intersecções entre três
temas-chave: o sujeito e sua ação num determinado marco histórico; o
reconhecimento de processos de exclusão, diferenciação e dominação
como historicamente construídos; e a compreensão contemporânea da
esfera cultural e dentro dessa, a comunicação e a mídia múltipla2.
Gostaria de notar que, nos Estudos Culturais, os primórdios dessa
compreensão remonta à Raymond Williams e Richard Hoggart, ainda
que em termos bastante distintos. No caso de Williams, encontramos o
gérmen dessa ideia quando ele insiste em pensar a cultura na sociedade
e, não, separada dela, definindo-a, por sua vez, pela “experiência vivi-
da” de homens e mulheres “comuns”, construída na interação diária
com os textos e práticas da vida cotidiana. Em Hoggart, detecta-se no
reconhecimento das experiências do homem simples, de suas atitudes,
dos valores compartilhados no cotidiano, dos seus hábitos e formas de
linguagem, enfim, na ênfase em considerar um modo de vida, por ele

2 O termo foi introduzido por Nick Couldry, em 2011, para falar do atual ambiente midiático como uma
complexa rede de múltiplas plataformas – no original: a complex web of delivery plataforms. Ver Life
with the media – Between freedom and subjection (COULDRY, 2016).
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 15

mesmo, e, não, apenas via inferências textualistas.


Contudo, contemporaneamente, vejo a abordagem das práticas, no
nosso caso, especialmente aquelas orientadas pela mídia (COULDRY,
2004; ESCOSTEGUY, 2011) como a possibilidade mais fértil para en-
campar pesquisas que deem conta da fluidez com a qual a mídia se es-
praia na esfera cultural, como também nas nossas vidas. Isto porque tal
perspectiva “sinaliza uma necessidade de ampliar radicalmente o marco
no qual pensamos o domínio do nosso trabalho como pesquisadores de
comunicação. [Isto é, aponta para] uma mudança em reconhecer o que
se faz em relação à mídia como imensamente mais variado do que per-
mite a velha tríade produção-distribuição-recepção dos estudos de mí-
dia” (COULDRY, 2016, p. 27).
De modo objetivo, o foco nas práticas pretende descentrar a análise
das relações discretas entre as audiências e a mídia, implicadas tanto nos es-
tudos de recepção quanto nos de consumo midiático. Para Elizabeth Bird
(2003, p. 93), pesquisadora que adota o conceito-chave de prática para
renovar os estudos de audiência, “numa cultura saturada pela mídia, não
é mais possível separar os ‘efeitos’ de uma mídia particular (se é que isso
foi viável em algum momento)”. Portanto, a abordagem das práticas per-
mite evitar a armadilha dos estudos circunscritos à produção, ao texto ou
ao consumo/recepção.
Esses estudos constituem-se em visões compartimentadas e não dão
conta da complexidade e abrangência da situação mencionada. Surge daí
um forte indicativo para direcionar a pesquisa para questões em torno da
mídia na vida cotidiana, neste caso, via a abordagem de práticas relacionadas
à mídia, considerando que estas são conformadas por hábitos, atividades
regulares, sem reflexão, fortemente ancoradas em contextos que lhe dão
sentido (ESCOSTEGUY et al, 2015/2016, p. 335).
Sinteticamente, a problemática da mídia na vida cotidiana, investigada
através da abordagem de práticas, abre pelo menos duas grandes vias de
estudo. Uma delas conecta-se com a produção de subjetividades – de certa
16 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

forma, explorada na linha de estudos de identidades3. E a outra sobre as


diversas formas de sociabilidade construídas em contextos particulares. Essa
abertura de ângulo beneficia os estudos de mídia e, sobretudo, incremen-
ta seus laços com uma prática antropológica. Mais especificamente, com
uma antropologia da mídia, área que vem se expandindo desde o final dos
anos 80 (POSTILL, 2010, p. 2), justamente, por compreender que todo
fenômeno social é sempre articulado com distintas esferas da vida. No
caso particular dos usos da mídia múltipla, ganha-se uma compreensão
mais adequada já que esses são analisados junto com outras práticas so-
ciais e não como atividades isoladas.
Logo, o estudo de tais práticas implica em atentar para a ação hu-
mana numa determinada organização social. Trata-se de observar que
“os atores se engajam em projetos concretos, informados pela cultura,
mas também produzindo e reproduzindo-a na prática” (CALHOUN;
SENNET, 2007, p. 10).
Essa abordagem, por sua vez, se relaciona com uma matriz socio-
lógica, constituindo uma abordagem sócio-histórica e cultural do sujeito.
Sendo assim, “ele é um sujeito social, um sujeito no mundo” (FRANÇA,
2006). De acordo com essa perspectiva teórica, os sujeitos são vistos mar-
cados pela classe social, por variáveis sócio-econômicas como renda, pela
escolaridade, pelo gênero, pela faixa étaria, pela religião, pelo tipo de ocu-
pação, entre outros fatores. Entretanto, como sujeitos sociais, não apenas
sofrem esses condicionamentos como limitações e pressões, mas também
essas mesmas estruturas/forças sociais lhes permitem agir no mundo.
Enfim, articulando as premissas do ponto de partida, expressas na
primeira parte desta exposição, com a abordagem de práticas relaciona-
das à mídia, busca-se a seguir explorar dados de uma pesquisa focada na
ação de sujeitos ‘dentro’ de culturas específicas – no caso, em contexto
sociocultural e espacial específico como é o meio rural contemporâneo
do Sul do Brasil.

3 Ver ESCOSTEGUY (2013) como ilustração dessa via.


EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 17

A veia aberta pelas práticas juvenis e a mídia múltipla


É consequência da abordagem das práticas que nosso objeto de es-
tudo se amplie e exija uma lente de tipo “grande angular” (SPITULNIK,
2010). O que acontece quando ampliamos o enquadramento de uma
pesquisa? A abertura do enfoque nos situa diante de inúmeras questões e
possibilidades. Porém, isso não nos exime de fazer escolhas.
No nosso caso, o recorte de práticas orientadas pela mídia de jovens
rurais4 se origina de pesquisa maior5 que trata dos usos e das relações
que se estabelecem com as Tecnologias de Informação e Comunicação
(TICs), por famílias agricultoras onde circunstâncias específicas referen-
tes às condições de trabalho (agricultura familiar6) e à vida social no rural
contemporâneo, caracterizam um contexto particular7.
Entre os jovens rurais, as TICs também têm se tornado uma reali-
dade, embora escassamente visível como tema de pesquisa. De imediato
se observou que há particularidades nos seus usos, decorrentes do acesso
mais dificultado pelas condições de infraestrutura do rural brasileiro,
pelas limitações econômicas e pelo próprio universo cultural do grupo
em questão.
Na pesquisa, a configuração do grupo de jovens – 10 informantes
4 A seguir se apresenta, resumidamente, alguns dados publicados em Juventude rural e novas formas
de sociabilidade: Um estudo do uso do celular no Sul do Brasil (FELIPPI; ESCOSTEGUY, 2017) para
exemplificar o tipo de abordagem que se está reivindicando.
5 A investigação “Tecnologias de comunicação nas práticas cotidianas: o caso de famílias relacionadas
à cadeia agroindustrial do tabaco” conta com financiamento do CNPq (2014-2017) e é coordenada por
mim. A investigação reuniu dois grupos de pesquisa, relacionados a dois programas de pós-graduação
distintos – um em Desenvolvimento Regional, da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), e outro
em Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – e uma
equipe com formações distintas.
6 Considera-se agricultura familiar uma categoria social composta por famílias de agricultores com a
propriedade de pequenas áreas de terra e que dispõem quase que exclusivamente ou exclusivamente do
trabalho familiar, com certa organização produtiva e social própria, ancorada na diversidade.
7 A pesquisa de campo ocorreu no município de Vale do Sol (RS), no período de 2014 a 2016. Sua popu-
lação é de 11.077 habitantes, com 88,72% (9.828) residindo em área rural (IBGE, 2010). Esses habitantes
constituem famílias de agricultores, com média de quatro ou cinco integrantes em cada, que cultivam
o tabaco como principal atividade agrícola, intercalado com outros cultivos ou atividades de pecuária,
grande parte para subsistência.
18 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

– não se deu apenas pelo recorte etário8 (faixa entre 14 e 25 anos), mas
sobretudo pela observação de um processo de identificação entre iguais
e diferenciação de outros, em especial dos adultos, no que diz respeito ao
uso do telefone celular, do computador e da internet.
Embora, em boa parte das propriedades, o celular e a internet te-
nham sinal inexistente ou precário, essas tecnologias têm estimulado con-
versas e envio de mensagens entre amigos, familiares e casais, entre ou-
tras formas mediadas de interação. Especialmente, entre os jovens, o uso
do celular tem se constituído como um elemento dinamizador de novos
espaços de sociabilidade (principalmente, a reutilização de espaços de wi-
-fi livre na localidade rural próxima às propriedades rurais como ponto
de encontro juvenil), viabilizando-se fundamentalmente como um dispo-
sitivo de lazer (jogos, redes sociais, conversas, escuta de música, meio para
colecionar fotografias).
É possível considerar que há uma intensificação da comunicação
entre os jovens que estão no meio rural, mas também desses com pessoas
que vivem nas cidades. Nessa última direção, nota-se a redução das dis-
tâncias entre espaço rural e urbano e um trânsito entre eles mais acentua-
do, seja pela melhoria da infraestrutura das estradas e do transporte, seja
via o uso de TICs, mais especificamente, o telefone celular. Talvez seja
essa uma razão para que não se observe no grupo estudado uma forte
atração para a migração.
Enfim, o estudo revela que tanto a vida social cotidiana, quanto as-
pectos de caráter mais pessoal/individual e, sobretudo, os modos de viver
dos jovens, estão sendo afetados e reorganizados pela presença das TICs,
principalmente, com a chegada do telefone celular e da internet. A nova
8 O recorte etário de juventude para a pesquisa se aproxima da faixa etária proposta pelo Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que considera jovens os indivíduos entre 15 a 29 anos, e pelos
organismos internacionais como ONU, que os considera entre 15 e 24 anos. Na pesquisa, incorporam-
-se jovens de 14 a 25 por se entender que no grupo das famílias estudadas, esses sujeitos apresentavam
comportamentos de uso das TICs que os aproximavam, com distinções dos demais sujeitos da pesquisa.
Assim, entendendo que não existe um limite etário universalmente aceito para definir juventude, assumi-
mos uma delimitação mais próxima de modos de vida, neste caso, associado sobretudo aos usos de TICs.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 19

mídia vem reconfigurando certas práticas e sentidos em torno da tecno-


logia, do trabalho, dos relacionamentos, enfim, da vida como um todo.
Embora a pesquisa mencionada já tenha levado em conta a aborda-
gem das práticas como ponto de partida, as observações recém-apresen-
tadas, obtidas mediante a aplicação da técnica da entrevista, poderiam
ainda gerar novo conjunto de perguntas.
Permanecendo com o foco nos sujeitos, entendidos como agentes so-
ciais com capacidade de apropriar-se de objetos tanto sociais e simbóli-
cos como materiais e, portanto, reconhecendo neles um papel ativo em
processos de negociação com determinadas estruturas (tecnológicas e/
ou institucionais – escola, família), poderíamos renovar e ampliar nosso
conjunto de questões, em torno da natureza social do uso de uma deter-
minada tecnologia – o telefone celular, num contexto particular – o rural
contemporâneo do Sul do Brasil.
Nessa direção, novos questionamentos poderiam ser construídos,
ainda que focados nas sociabilidades: com que frequência os jovens se jun-
tam nesse espaço aberto de wi-fi para conectar-se? A composição do gru-
po varia, é fluída ou são todos frequentadores assíduos desse local? Como
os jovens que aí se encontram, conheceram-se? Quanto tempo dura esses
encontros – ou seja, a sessão de acesso à rede wi-fi? Que tipo de conversa-
ção se estabelece entre eles enquanto acessam as redes sociais? Que outro
tipo de atividade realiza-se nesses encontros? Os jovens realizam outros
encontros para além desses ou se juntam em outras ocasiões?
Por outro lado, um novo direcionamento poderia explorar aspectos
mais biográficos ou de formação de subjetividades. A mesma técnica utilizada, a
entrevista, permite tanto penetrar no espaço e nos tempos de atividade/
ação dos atores juvenis, quanto reconstituir a história de relação de cada
informante com as distintas tecnologias. A própria “técnica” pode, in-
clusive, ajudar na elaboração do sentido que a mídia adquire em suas
vidas na atualidade. Além disso, o estímulo para que se conte uma histó-
ria ou se rememorem lembranças é colocado em ação desde o início da
20 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

entrevista e colabora para que toda a entrevista se concretize mediante


uma narrativa. Entende-se que ao coletar histórias e memórias, obtidas
mediante entrevistas, tem-se como resultado narrativas identitárias reve-
ladoras de um modo específico de ser que se constitui no próprio ato do
relato.
Enfim, meu objetivo, aqui, esteve concentrado em justificar e ilus-
trar uma abordagem possível, constituída dentro da Comunicação, para
tratar de práticas relacionadas à mídia em que é vital uma determinada
compreensão de sujeito. De nenhuma forma, desejo que minha exposi-
ção soe como algo novo e inaugural sobre o tema, embora para alguns
autores, como para o próprio Nick Couldry (2016), o enfoque das práti-
cas seja uma virada e um novo paradigma dentro dos estudos de mídia
já que se situa fora do âmbito dos modelos canônicos de comunicação
que postulam a existência de polos – emissão/produção e recepção, bem
como de uma sequência de elementos como emissor/produtor, mensa-
gem e receptor.

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A MÍDIA NA
CONSTITUIÇÃO
DA IDENTIDADE
DOS ARTISTAS
SERTANEJOS DE
SÃO LUÍS*
Márcio Monteiro**

* Este artigo é originado da tese de doutorado “A mídia na formação da identidade dos artistas sertanejos
de São Luís: uma análise cultural”, defendida pelo autor em 2015, no PPGCOM/PUCRS.
** Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMA (Universidade Federal do
Maranhão). Doutor em Comunicação/PPGCOM/PUCRS. Email: marcio.ufma@gmail.com.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 23

Introdução
A música sertaneja é um gênero musical surgido no Brasil, no final
da década de 1920, a partir da tentativa de registro em disco da música
caipira. Esta, por sua vez, está relacionada aos rituais religiosos, de lazer
e de trabalho de quem habitava e trabalhava nas fazendas e sítios de
cidades do interior paulista. O jornalista, escritor e folclorista Cornélio
Pires teria sido o responsável por viabilizar, no ano de 1929, a gravação
e prensagem de vinte e cinco mil discos, o que foi, de certa maneira,
fundamental para despertar o interesse das gravadoras pelo lucro que a
musicalidade caipira podia oferecer (FERRETE, 1985).
Os discos impuseram, contudo, um limite de tempo sobre o mate-
rial a ser gravado e a música caipira foi adaptada, por assim dizer, a esse
formato. Os vinte anos seguintes a essa experiência pioneira fizeram com
que o termo música sertaneja se popularizasse. A música produzida na
cidade, contudo, afastava-se em muitos aspectos daquela que original-
mente circulava no ambiente rural.
Esses discos e os que viriam a ser gravados nos anos seguintes, alia-
dos aos programas de rádio e ao circo, levaram a música sertaneja para
as cidades do interior de São Paulo e também para outros estados. Ain-
da hoje, aliás, o disco e o rádio, tendo a televisão como aliada, exercem
um papel fundamental na circulação e transformações do gênero musical
sertanejo pelo país. Festivais, casas de shows, boates e bares desempenham
um papel igualmente importante no que diz respeito ao alcance desse
tipo de música. Já a internet, por meio dos sites de redes sociais e pelo
compartilhamento de vídeos em plataformas como o YouTube, aumentou
exponencialmente a circulação da música sertaneja ao redor do mundo.
O que se observa no cenário sertanejo de São Luís é uma combi-
nação de fatores que têm a mídia como agente principal. A proliferação
da música sertaneja na capital maranhense se alargou com o surgimento
e a consolidação de um circuito em que artistas locais se apropriam das
músicas veiculadas exaustivamente pela mídia, incorporam-nas ao seu
24 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

próprio repertório e as executam em bares e casas de shows, de modo que


os frequentadores desses espaços possam consumi-las em uma experiên-
cia ao vivo.
Trata-se, assim, de um consumo de música sertaneja que se desdo-
bra em duas ocasiões bastante distintas, porém complementares. Em um
primeiro momento, intérpretes e músicos locais consomem de maneira
ativa e atenta o repertório disponibilizado através de discos de vinil, fitas
cassete, CDs, DVDs, Blu-Ray, programas de rádio e televisão e, mais re-
centemente, por meio da internet. Em seguida, nos bares, boates e casas
de shows da capital e de cidades do interior do estado, as músicas são
executadas ao vivo.
A apropriação feita pelos intérpretes e músicos locais não se limita,
entretanto, à sonoridade. Também é comum que se perceba a incorpora-
ção de elementos do figurino, sotaque e jeito de cantar e tocar de artistas
consagrados pela mídia. Novamente se evoca a centralidade da mídia
na construção da identidade do artista sertanejo de São Luís: sua perfor-
mance ao vivo é diretamente implicada pelo modo como os nomes de
maior visibilidade no gênero são midiaticamente representados.
A produção e o consumo de música ao vivo em São Luís estão im-
plicados pela hibridização (CANCLINI, 1997). Por ser fruto do talento
de artistas muito jovens, nascidos, em sua maioria, nos centros urbanos,
as referências acabam por se afastar de maneira radical da música caipi-
ra, que cantava a vida na roça. Isso tem a ver, entre outras coisas, com a
distância geográfica e também de contexto com o “sertão” (estados como
São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás).
Somado a isso, a relação com a música sertaneja gravada se dá,
além do contato com produtos tais como LPs, CDs e DVDs, por meio da
circulação promovida pela mídia e nos shows que alguns artistas de reno-
me fazem, eventualmente, na cidade. A mídia, de qualquer forma, é uma
das principais responsáveis pelo desenho desse sertanejo que mexe com
o imaginário dos jovens que formam duplas ou se lançam em carreira
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 25

solo. As identidades dos cantores e duplas sertanejas ligadas ao contexto


analisado são diretamente constituídas pelas apropriações mencionadas
anteriormente.
Esta análise tem início com uma discussão teórica sobre os modos
pelos quais as identidades são constituídas pelo consumo.

Sobre como as identidades são constituídas


Atribui-se ao consumo papel fundamental na construção das
identidades. A noção de consumo remete, nesse sentido, ao modo como
nos apropriamos e damos sentido às mais diversas formas culturais no
dia a dia (MACKAY, 1997). Segue-se a ideia de que o consumo não é de-
terminado pela produção, mas que há um processo de articulação entre
os dois momentos. Mackay (1997) lembra que a questão do consumo se
tornou foco de pesquisadores ligados ao campo dos estudos culturais a
partir da década de 1970. Esses pesquisadores teriam se deparado com
consumidores ativos, criativos e críticos em sua apropriação e transfor-
mação dos artefatos culturais, ao contrário do que sugeriu a crítica à
cultura de massa. As identidades são construídas, diz o autor, por meio
desses processos de apropriação.
Um dos aspectos mais importantes envolvidos no consumo de mú-
sica é o gosto. Este, muitas vezes, implica que determinadas pessoas as-
sumam o consumo de determinado gênero musical em detrimento de
outro. Essa é uma visão que tangencia a perspectiva de Bourdieu (2007)
acerca do assunto, isto é, que o gosto é um modo de distinção e se cons-
trói socialmente.
O que Bourdieu (2007) propõe, entende-se, é que o gosto não é ina-
to, não é algo que nasce com o indivíduo. Pela perspectiva apresentada,
o gosto é construído nas relações familiares e educacionais. Há, dessa
forma, um modo de se constituir identidade por meio do consumo que,
por sua vez, está implicado pelo que se admite ou se nega consumir.
A relação entre consumo e identidade foi tratada também por Ja-
26 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

notti Junior (2003), para quem o consumo está ligado a uma parte do
processo identitário, que envolve a tensão entre a cultura global e as apro-
priações locais. Seriam dois os possíveis desdobramentos desse processo:
1) ou há uma reestruturação do local frente à globalização; 2) ou ocorre
a solidificação de identidades híbridas que permitiriam um fluxo mais
fluido entre o local e o global.
Stuart Hall (1996) observa que a identidade não deve ser pensada
como um fato que, uma vez consumado, passa a ser representado pelas
práticas culturais. Ao invés disso, deve ser pensada como algo que nun-
ca se completa, sempre em processo, sempre constituída interna e não
externamente à representação. Para o autor, escrevemos e falamos desde
(ênfase do próprio Hall) um lugar e de um tempo determinados, desde
uma história e uma cultura que nos são específicas. “O que dizemos está
sempre ‘em contexto’, posicionado” (HALL, 1996, p. 68).
O conceito de identificação seria, para Hall (2013), uma alternativa
ao conceito de identidade, mas deve ser usado com cautela. A identifi-
cação é vista pela abordagem discursiva como uma construção, um pro-
cesso nunca completado. Ela poderia ser, sempre, sustentada ou abando-
nada. É, portanto, condicional. A identificação é, no fim das contas, um
processo de articulação (HALL, 2013).
Ainda de acordo com Hall (2013), as identidades surgem da narrati-
vização do eu e por isso, precisam ser compreendidas “como produzidas
em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações
e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas”
(HALL, 2013, p. 109).
A construção da identidade, conforme a posição assumida por Res-
trepo (2007), dá-se discursivamente. Sobre esse aspecto, o autor diz: “En-
quanto realidade social e histórica, as identidades são produzidas, dispu-
tadas e transformadas em formações discursivas concretas (RESTREPO,
2007, p. 27, tradução livre do autor)”. As identidades, contudo, não são
apenas discurso. As formações discursivas, advoga o autor, são tão reais
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 27

e com efeitos materiais sobre os corpos, espaços, objetos e sujeitos tanto


quanto qualquer outra prática social.
Identidades seriam, para Restrepo (2007), ao mesmo tempo, uma
questão de atribuição e de identificação. Toda identidade, diz ele, requer
que os indivíduos ou os grupos aos quais é atribuída se reconheçam nela
ainda que seja parcialmente, ou que pelo menos sejam interpelados por
ela. As identidades, que não são definidas de uma vez e para sempre,
requerem, portanto, ser atribuídas e assumidas.
Outro autor que atrelou a formação da identidade à questão do
consumo foi Canclini (1999), cuja preocupação se relaciona com as con-
sequências do processo de globalização, especialmente no que diz respei-
to à cultura. As identidades, que se configuram atualmente no consumo,
teriam passado a se organizar cada vez menos em torno de símbolos na-
cionais, para se formar a partir do que propõem, por exemplo, os canais
de televisão. O argumento do autor é de que as perguntas sobre como
as pessoas obtêm informações e quem representa seus interesses são res-
pondidas antes pelo consumo privado de bens e meios de comunicação
do que por regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva
em espaços públicos.
Canclini (1999) também propõe que se pense a identidade como
uma construção que se narra. O rádio e o cinema são meios de comu-
nicação que teriam contribuído, ele afirma, com a organização dos re-
latos da identidade, isto é, da representação, e do sentido de cidadania
nas sociedades nacionais. O papel das culturas nacionais, porém, foi se
reduzindo a partir dos anos 80, com a abertura econômica a mercados
globais e com os processos de integração regional. A transnacionalização
das tecnologias e da comercialização de bens culturais foi responsável
por diminuir, segundo o autor, a importância dos referentes tradicionais
de identidade.
Outro autor que segue, de certa maneira, esse ponto de vista é Mar-
tino (2010), para quem a relação entre a constituição da identidade e os
28 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

meios de comunicação é evidente. Ele observa que é através do discurso,


da narrativa, que se faz a exposição da identidade de alguém. É por meio
da narrativa que se dá a construção da representação que se faz a respeito
de uma pessoa. Algumas informações são privilegiadas em detrimento
de outras, propositalmente ocultadas. A narrativa que alguém faz de si,
que leva em conta escolhas entre muitos fatos e acontecimentos passados,
constrói uma imagem na mente do seu interlocutor. Trata-se, diz o autor,
de um “discurso escolhido e montado para representar um ‘eu’ diante
dos outros” (MARTINO, 2010, p. 12).
O autor afirma que a identidade se forma como resultado do cruza-
mento de muitos fatores e que é um processo contínuo em que oportuni-
dades de escolha se alternam com obrigações sociais e determinações psí-
quicas. A identidade se produz por meio do discurso, de uma mensagem,
que, por sua vez, está ligada à cultura de cada indivíduo. A identidade é
relacional, na medida em que alguém envia mensagens sobre si, dizendo
“este sou eu”, e recebe de volta mensagens de outros indivíduos com o
mesmo conteúdo.
Martino (2010) observa ainda que determinar uma identidade tem
a ver com a maneira como se explica o mundo, com os critérios que são
usados para definir as situações e as pessoas, com as narrativas que se
constroem a respeito da realidade. É uma questão reflexiva e autorre-
flexiva ao mesmo tempo, na medida em que as pessoas se definem em
relação a si mesmas, mas também em relação aos outros. É um processo
relacional, como já mencionado e reiterado.
Essa perspectiva tem amparo na proposição de Giddens (2002)
acerca da autoidentidade. Para ele, o eu não é uma entidade passiva, de-
terminada por influências externas. Os indivíduos, ao contrário, forjam
suas autoidentidades1. A vida social moderna, sugere o autor, é caracte-
rizada por processos de reorganização do tempo e do espaço associados

1 A autoidentidade é, para Giddens (2002), um projeto reflexivo do eu que consiste em manter narrativas
biográficas coerentes e, ao mesmo tempo, continuamente revisadas. Deve ser criada e sustentada rotinei-
ramente nas atividades reflexivas do indivíduo, propõe o autor.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 29

à expansão dos mecanismos de desencaixe, que descolam as relações so-


ciais de seus lugares específicos e as recombinam em outro tempo e lugar.
A influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos e sobre
as intimidades do eu se tornaria mais comum e a mídia exerceria um
papel central nesse processo. “A experiência canalizada pelos meios de
comunicação, desde a primeira experiência da escrita, tem influenciado
tanto a autoidentidade quanto a organização das relações sociais” (GID-
DENS, 2002, p. 12).
Giddens (2002) pontua que não apenas seguimos um determinado
estilo de vida, mas somos obrigados, pelas circunstâncias, a escolher um.
Estilo de vida, na concepção do autor, refere-se a “um conjunto mais ou
menos integrado de práticas que um indivíduo abraça, não só porque
essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão for-
ma material a uma narrativa particular da autoidentidade” (GIDDENS,
2002, p. 79). Seria resultado de uma escolha dentro de uma pluralidade
de opções possíveis, que, de alguma forma, é mais bem compreendido
como um estilo de vida adotado do que como outorgado. Todas as esco-
lhas feitas ao longo do dia levariam a certas práticas rotinizadas que, por
sua vez, são decisões não só sobre como agir, mas também sobre quem ser.
O autor adverte que “[...] a seleção ou criação de estilos de vida é
influenciada por pressões de grupo e pela visibilidade de modelos, assim
como pelas circunstâncias socioeconômicas” (GIDDENS, 2002, p. 81).
A pluralidade de escolhas deriva, segundo essa perspectiva, de várias in-
fluências e a experiência transmitida através da mídia seria um desses
fatores. A primeira questão a ser levada em conta é que a globalização da
mídia tornou visível um grande número de ambientes sociais. A manei-
ra como as informações televisivas e dos jornais são apresentadas daria
forma à justaposição desses ambientes e escolhas potenciais de estilos de
vida. O resultado, na perspectiva desse autor, é que a relação entre o am-
biente físico e a situação social fica enfraquecida.
Até este ponto, discutiu-se a construção da identidade como um
30 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

processo que envolve, entre outros aspectos, outros relatos de identidade


veiculados através da mídia. No próximo item, são apresentados dados
empíricos que sustentam a argumentação de que a mídia responde pela
constituição da identidade dos artistas que compõem o cenário sertanejo
em São Luís.

A música sertaneja na mídia


A música sertaneja é um gênero musical cuja história é marcada
por altos índices de popularidade e sucesso. Relatórios de venda e dados
sobre execução por emissoras de rádio são os principais indicadores da
notoriedade desse gênero. Tem sido assim desde que a música sertaneja
se tornou um produto passível de ser registrado em disco e, consequen-
temente, comercializado. Mais recentemente, com a popularização da
internet, dos sites de redes sociais, dos repositórios de música digital e dos
serviços de streaming, a quantidade de acessos, isto é, o número de vezes
em que determinada música foi executada, baixada, comprada, compar-
tilhada ou teve o videoclipe visualizado também se tornaram possíveis
indicadores de popularidade. Contudo, nesse ambiente online, pela quan-
tidade de ferramentas e serviços disponíveis, o sucesso ainda é difícil de
ser objetivamente mensurado.
Nesse gênero musical, toda a cadeia produtiva, ou seja, produção,
circulação e consumo, é profundamente implicada pelo deslocamento de
artistas e potenciais consumidores do campo para a cidade. São Paulo
passou a ser o destino inicial, como apontam os relatos, de qualquer um
que tivesse o sonho de se tornar artista. Esse cenário, entretanto, come-
çou a mudar a partir dos anos 2000. Outras cidades, como Campo Gran-
de, no Mato Grosso do Sul, e Goiânia, em Goiás, passaram a reunir as
condições técnicas necessárias para que o registro e a circulação da músi-
ca sertaneja se dessem localmente. Transformaram-se, de certo modo, no
novo destino para os aspirantes a ídolos do seguimento sertanejo.
Também a partir da década de 2000, a música sertaneja entrou
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 31

numa nova fase de transformações e algumas duplas e artistas solo co-


meçaram a compor o quadro do que veio a ser chamado de sertanejo
universitário. O sertanejo romântico continuou a lançar discos, mas co-
meçou a disputar espaço nas prateleiras das lojas, na programação do
rádio e, mais recentemente, na internet, com um produto voltado para
uma parcela bem mais jovem da população que quase não mantém vín-
culo com as raízes da música rural. Trata-se de um público que frequenta
os festivais e as baladas sertanejas realizadas por todo o país ao som de
músicas que tratam do consumo de bebidas alcóolicas, carros importados
e sexo casual.
A mídia da década de 2010 dá uma atenção significativa ao sertane-
jo universitário, principalmente em função de um interesse da Som Livre,
gravadora que pertence ao Grupo Globo, pelo gênero musical. Em julho
de 2015, por exemplo, o programa Profissão Repórter, da TV Globo,
abordou a questão dos custos para a fabricação de um novo artista ser-
tanejo. O programa começa reforçando que a trajetória dos artistas ser-
tanejos é mais ou menos parecida: alguns anos trabalhando na noite, em
bares, tentando conseguir a atenção dos consumidores. Um dos artistas
entrevistados, o cantor sertanejo Jeferson Moraes, afirmou que Goiânia
é a capital do sertanejo. Esse depoimento reforça a ideia de que o eixo
Rio-São Paulo, pelo menos no que diz respeito à produção de música
sertaneja, não é mais hegemônico.
Informações apresentadas por um dos repórteres do programa dão
conta de que o lançamento de um novo cantor sertanejo, incluindo ses-
sões de gravação, cuidados com a aparência e divulgação, pode chegar a
três milhões de reais. O repórter alerta, entretanto, que, diante das câme-
ras, ninguém fala abertamente sobre valores.
Existe um estilo mais ou menos padronizado de representação mi-
diática do sucesso na música: primeiro, faz-se exaustiva menção à consti-
tuição da identidade do artista; em seguida, trata-se de elementos relacio-
nados ao âmbito da produção, como a composição de uma determinada
32 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

letra, a gravação de um disco ou a preparação de um videoclipe; também


se aborda a amplitude do consumo, muitas vezes, tomando o depoimento
de fãs ou pessoas que apreciam música sertaneja como base; por último,
discutem-se as transformações que o mercado impõe sobre a criatividade
e as disputas de ordem simbólica em torno da noção de autenticidade e
legitimidade para representar o país no exterior.
Ao circularem pelo país, os produtos midiáticos servem como fonte
de inspiração para artistas em início de carreira, que almejam assinar
contrato com uma gravadora, vender quantidades significativas de dis-
cos, participar de programas de televisão e atingir a capacidade máxima
de público em um show. As narrativas de sucesso entusiasmam aqueles
que pretendem fazer sucesso no negócio da música em todo o país.
Os depoimentos de cantores, bandas (independentemente do gêne-
ro musical) e duplas sertanejas geralmente descrevem um longo período
em que os artistas se apresentaram em bares, para um público restri-
to, como forma de se sustentar financeiramente. O exemplo do cantor
sertanejo Gusttavo Lima, nesse particular, é esclarecedor: antes de ser
contratado pelo escritório do empresário Marcos Araújo e se tornar na-
cionalmente conhecido, cantou em bares durante dez anos. Mudou-se
sozinho para a capital goiana no final de 2006, em busca de realização
profissional. Cantou durante dois anos em bares de Goiânia até que, em
2009, foi descoberto. Em entrevista à Marília Gabriela, afirmou que che-
gou a cantar para conseguir pagar o aluguel e ter o que comer2.
O início da trajetória profissional em bares, boates e casas de
shows parece ser um indicador de que fazer carreira no ramo do entrete-
nimento ao vivo antecede a notoriedade na indústria do disco. Pensan-
do nisso, os artistas costumam encarar o tempo que passam tocando e
cantando na noite como uma etapa que os prepara para uma carreira
de sucesso na música. Alguns chegam inclusive a alcançar uma relativa
2 A entrevista foi ao ar no dia 9 de março de 2014, no programa De frente com Gabi. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=-RZGMCMVAoI. Acesso em: 15 out. 2015.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 33

popularidade no cenário onde se lançam.


As informações apresentadas até aqui reforçam a argumentação
de que a representação midiática exerce papel central na forma como
os cantores sertanejos de São Luís constroem suas identidades artísticas.
Além disso, salientam a ideia de que parte da produção sertaneja con-
temporânea se destina ao mercado de música ao vivo, ligado ao ramo do
entretenimento, que se propaga nos centros urbanos. Nesse contexto, a
música sertaneja se associa às festas não como parte de um ritual rural,
mas como uma forma de lazer geradora de lucro.

O cenário sertanejo de São Luís


A capital maranhense possuía, até 2015, cerca de quinze espaços
voltados, ainda que não exclusivamente, para a apresentação de artistas
ligados à música sertaneja. Esses foram os ambientes onde a etapa de ob-
servação direta da pesquisa de doutorado foi realizada. O foco da obser-
vação era, principalmente, a performance dos artistas no palco, a relação
deles com os consumidores, a organização do repertório e a sonoridade,
muitas vezes implicada pela mistura de gêneros musicais.
Além da observação, foram realizadas entrevistas com alguns dos
artistas sertanejos locais. O que se buscou através das entrevistas foi co-
nhecer a trajetória dos artistas, suas referências dentro da música sertane-
ja, a rotina de trabalho, a relação com a mídia e a leitura que eles fazem
do cenário em que se encontram.
A finalidade da pesquisa empírica era, a partir do que foi coletado
nas observações, nas entrevistas e em dados relativos ao contexto mais
amplo da música sertaneja, compreender as articulações que levam à
formação da identidade desses artistas. Mas, é claro, não apenas as arti-
culações: rearticulações e desarticulações também interessavam.
Em relação às duplas e aos cantores sertanejos locais, as observa-
ções apontam para procedimentos que são mais ou menos frequentes.
Primeiro, observou-se que os artistas precisavam adaptar seu repertório
34 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

para o local onde ocorreria a apresentação. Boates e casas de shows de-


mandavam um repertório mais dançante e atual, além de mais misturado
com músicas de outros gêneros. Nos bares, os artistas acabavam fazendo
um show mais acústico, com músicas mais antigas e geralmente optavam
apenas por música sertaneja.
Também era preciso se vestir adequadamente. Alguns artistas fa-
ziam uso de algum elemento no figurino que indicasse a vinculação com
a música sertaneja: um chapéu, um cinto com uma fivela maior, uma
bota ou acessórios. Mas não existia uma regra estabelecida na cidade em
relação ao estilo, havendo artistas que se apresentavam sem esses elemen-
tos de identificação.
Os artistas, na maioria das vezes, abriram a apresentação com as
músicas mais atuais ou com aquelas que haviam entrado no repertório
mais recentemente. As apresentações eram quase sempre não autorais, e
os artistas costumavam optar por músicas que estivessem fazendo sucesso
nos programas de rádio e televisão, assim como na internet. A intera-
ção com o público acontecia por meio de incentivos para que as pessoas
pedissem músicas de sua preferência; através de comentários aleatórios
a respeito da festa e sobre o quanto as pessoas estavam bebendo; e com
fotos tiradas em aparelhos celulares dos fãs e dos próprios artistas para
alimentar as redes sociais.
Após cerca de seis meses de observação, passou-se à realização das
entrevistas. O valor dos depoimentos apresentados está no fato de que
registram, pela primeira vez em uma produção acadêmica, a trajetória
de artistas que se apresentam na noite de São Luís. Também está em per-
mitir que a análise da realidade observada seja acrescentada pelas expe-
riências pessoais de cada cantor. Além disso, permitem que sejam abor-
dados aspectos subjetivos, como as razões que levaram os entrevistados
a se tornarem cantores profissionais, a predileção pela música sertaneja,
os critérios envolvidos na organização do repertório, os cuidados com a
aparência e as influências advindas do contato com a mídia.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 35

O cenário ligado à música sertaneja em São Luís se constitui numa


relação intensa com a mídia. Essa relação se evidencia especialmente nos
depoimentos que remetem aos primeiros contatos dos artistas locais com
o referido gênero ainda na infância e no que se refere à organização do
repertório.
Trata-se de uma atividade produtiva não autoral. Isso quer dizer
que o repertório executado nos bares e casas de shows é montado a partir
de músicas que já são sucesso dentro do segmento. Duplas como Jorge
& Mateus, Bruno & Marrone e Henrique & Juliano e cantores como
Luan Santana e Lucas Lucco parecem ser os artistas mais apreciados no
cenário investigado. São poucos os artistas locais que incluem músicas
próprias nas apresentações. Quando o fazem, ficam receosos quanto à
aceitação do público.
A ênfase colocada na organização do repertório se justifica porque
revela que os artistas que compõem o circuito da música sertaneja em
São Luís não têm o hábito de, nas suas apresentações, incluir músicas
de sua autoria. Organizam o repertório com base nos locais onde vão se
apresentar e com o intuito de agradar ao público que neles estará pre-
sente, e não pensando em divulgar suas composições. Eles formam seu
repertório, conforme demonstrado, a partir das músicas que alcançaram
alguma visibilidade através da mídia, ou seja, por meio do rádio, da tele-
visão e de sites da internet.
Infere-se, portanto, que a mídia é a principal fonte de renovação
do repertório dos shows, mas que também influencia todo o aspecto vi-
sual das apresentações. Nesse sentido, desempenha um papel central na
constituição da identidade dos artistas. Quando uma música é lançada, a
sua repercussão na internet, especialmente no YouTube, acaba servindo de
critério para que seja incorporada no repertório das apresentações. Com
base no que os artistas declararam, a televisão e a internet permitem que
eles não apenas ouçam as músicas, mas assistam às performances.
Todos os entrevistados fazem uso constante das edes sociais digitais
36 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

para divulgação da agenda e informações diversas. Não é muito comum


a utilização de sites ou do Twitter. Quando é o caso de o artista ou dupla
ter uma página, ela é bem menos utilizada que as outras ferramentas de
comunicação. É mais comum que o artista faça uso do perfil pessoal ou
da página no Facebook e do perfil no Instagram. Foi a partir do mapeamen-
to dessas publicações, inclusive, que se conseguiu entrar no campo que se
pretendia investigar.
Observou-se que a identificação dos artistas com a música sertaneja
é parte de uma escolha baseada no gosto pessoal em relação ao gênero,
com implicações diretas dos meios de comunicação. O rádio e os discos
têm papel central na formação cultural dos artistas durante a infância.
Quase todos mencionaram o contato que tiveram com a música serta-
neja através da mídia radiofônica ou com algum produto da indústria
fonográfica.
Convém ressaltar que o gosto desses artistas pela música sertaneja,
como também o gosto do público local por esse gênero, é midiaticamente
construído. A mídia exerce um papel fundamental, reafirma-se aqui, na
formação do gosto, ao veicular, através de programas de rádio e de tele-
visão, não apenas a música sertaneja em si, mas a representação de um
estilo de vida sertanejo adotado pelos artistas que estão vinculados a esse
gênero. Alguns depoimentos dos artistas entrevistados indicam a impor-
tância dos hábitos familiares de consumo de música sertaneja como parte
da gênese do interesse deles por esse tipo de música.
As identidades dos artistas locais são construídas, atestou-se, em
meio aos processos de apropriação que eles fazem do que parece ser um
cantor sertanejo. A representação midiática, ainda que seja quase sempre
estruturada a partir de estereótipos, contribui de maneira decisiva com
essa construção. A preferência deles pela música sertaneja em relação
a outros gêneros musicais os levam a assumir o consumo dessa música
e, também, a optar por ela na definição de um estilo de vida próprio.
Esse estilo de vida de artista sertanejo é, então, atestado por um discurso
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 37

construído em torno dessa identificação e também de práticas cotidia-


nas, como, por exemplo, uma rotina de ensaios e de shows. A identidade
sertaneja dos artistas locais é legítima, portanto, na medida em que se
consideram as posições que eles assumem e com as quais se identificam.
A escolha pela música sertaneja tem consequências numa dimensão
mais ampla e também numa dimensão local. Ao se designarem como
cantores sertanejos, os artistas locais assumem uma identidade atrelada
à sonoridade e à performance próprias desse gênero musical. É uma for-
ma de se posicionarem artisticamente, vinculando-se a um grupo mais
extenso que inclui outros artistas, músicos e ambientes. Mas é, ao mesmo
tempo, afastando-se de espaços e atores ligados, por exemplo, à cena rock
de São Luís.
Conforme já indicado, a fixação de um cenário ligado à música ser-
taneja em São Luís é parte de um fenômeno com uma dimensão muito
maior, que é a perda da relação natural da cultura com os territórios
geográficos e sociais. A causa desse fenômeno seria o processo de globa-
lização, que transformou o distante em próximo. Reitera-se aqui que a
música sertaneja é um gênero musical que foi, de certa maneira, relocali-
zado do campo para a cidade em função das migrações e de uma região
do país para outra por causa da disseminação midiática.
Em relação à mídia, intensificou-se a circulação da música sertaneja
pelo país e pelo mundo. Os artistas entrevistados relataram a influência
que tiveram da mídia no início de suas trajetórias na música. Entretanto,
mais do que uma simples influência, deve ser destacado que quando um
artista local declara que sua inspiração dentro do gênero são artistas re-
lativamente recentes como as duplas Zezé di Camargo & Luciano, Lean-
dro & Leonardo e Chitãozinho & Xororó, evidencia-se a centralidade da
mídia na construção da sua identidade sertaneja. As três duplas citadas
adquiriram relevância e reconhecimento em função da visibilidade pro-
duzida pela indústria do disco, pelo rádio e pela televisão. São represen-
tantes do chamado sertanejo romântico, que encontrou lugar nas trilhas
38 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

sonoras de telenovelas e programas de televisão de emissoras com altos


índices de audiência3.
Conforme já exposto, a mídia serve como fonte de inspiração para
artistas em início de carreira. Os depoimentos apresentados confirmam,
de certo modo, que as duplas e os cantores sertanejos de São Luís se es-
forçam – na fase em que se encontram – para conseguir oportunamente
assinar contrato com uma gravadora. Eles almejam, portanto, “estou-
rar”. Isso pode ser traduzido, como já indicado, por vender quantidades
expressivas de discos, estar com relativa frequência em programas de te-
levisão e rádio, “bombar” na internet e lotar shows. Anseiam, portanto,
alcançar um reconhecimento público que também passa pela mídia.

Considerações finais
As identidades são, conforme reiterado ao longo deste artigo, resul-
tado de um posicionamento assumido pelo indivíduo e, ao mesmo tem-
po, das posições atribuídas a ele pelos outros. No contexto examinado, ser
cantor sertanejo não é meramente uma atividade ocasional; é um estilo
de vida que se expressa no discurso e nas práticas cotidianas dos artistas.
A coleta de dados, inspirada pela abordagem etnográfica, possibilitou
que fossem identificados os modos como os artistas locais se assumem
discursivamente como sertanejos. Esse posicionamento é localizado, por
exemplo, nas descrições que eles fazem de si mesmos nos sites de redes so-
ciais. Também está nos flyers digitais que são compartilhados como parte
da estratégia de divulgação dos shows.
A identidade dos artistas sertanejos entrevistados é construída, se-
gundo o que se propõe, porque a mídia é um agente de circulação e
transformação da música produzida numa escala global e isso repercute
nos contextos locais. Esse aspecto tem relação direta com a questão do

3 Programas como Sabadão Sertanejo, exibido pelo SBT a partir de 1991, e Amigos & Amigos, veiculado
pela TV Globo em 1999, são alguns exemplos do espaço aberto pelas emissoras de televisão para a música
sertaneja na década de 1990. A série Bem Sertanejo, exibida pela TV Globo entre julho e novembro de
2014, constitui um exemplo contemporâneo.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 39

repertório, abordada acima. A internet, a televisão e o rádio são parcial-


mente responsáveis pelo sucesso internacional de músicas como Ai, se
eu te pego..., assim como pela popularização das vertentes romântica e
universitária da música sertaneja, do funk carioca ou da música eletrônica
em São Luís.
O processo de globalização atua sobre as identidades porque expõe
a cultura local a influências externas. As tensões entre o que é conside-
rado próprio da cultura maranhense e o que vem de fora podem levar à
resistência do primeiro elemento em relação ao segundo. Mas também
podem permitir a emergência de práticas culturais híbridas. O cenário
sertanejo local é resultado dessa exposição e, nesse sentido, também é
híbrido porque reúne a música sertaneja a um conjunto de outras sono-
ridades que circulam dentro dele, por exemplo, o forró, o funk, o arrocha
e a dance music. Difere, desse modo, do que supostamente ocorre na cena
rock ou no movimento reggae, que buscam preservar, por mais contraditó-
rio que isso pareça, uma relativa especificidade estética.
Outra razão que sustenta o argumento de que a identidade dos ar-
tistas locais é construída pela mídia é que eles são, antes de qualquer coi-
sa, consumidores de música sertaneja. Consumo, repete-se, tem o mesmo
sentido de apropriação. Eles não apenas escutam músicas ligadas a esse
gênero pelo prazer que elas causam. Consumir música sertaneja através
de discos, do rádio, da televisão e da internet é, também, parte do estilo
de vida que os artistas abraçaram. Faz parte do trabalho deles, do modo
como a maioria deles “ganha a vida”. A apropriação, conforme já assina-
lado, não se limita à sonoridade. Outro aspecto ao qual os artistas afirma-
ram prestar atenção é a performance, que num sentido mais amplo, tem
relação direta com a representação midiática da música sertaneja. A esse
respeito, pontua-se que elementos da performance que chegam aos artis-
tas principalmente através da mídia são adaptados para o cenário local.
A internet desempenha um duplo papel na carreira dos artistas
locais: é o lugar onde eles encontram músicas novas, cobertura jornalís-
40 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

tica de shows e festivais, fotos e vídeos relacionados à música sertaneja;


mas também é o meio mais utilizado para a divulgação e contato com o
público. Sites de redes sociais e aplicativos são ferramentas amplamente
utilizadas para proporcionar uma transmissão mais ágil de informações
sobre a agenda, por exemplo. Se parte da música sertaneja contemporâ-
nea chega até eles por meio da internet, é adequado que eles utilizem esse
ambiente para fazer circular sua própria produção.
O repertório executado é um dos indícios mais fortes de que a iden-
tidade artística dos cantores e duplas locais é construída pela mídia. O
cenário local não é propício para o trabalho autoral. Os artistas reconhe-
cem isso nas entrevistas, embora tentem timidamente fazer suas com-
posições circularem. A maior parte do que é cantado nas apresentações
é formada pelo que as emissoras de rádio e televisão e a internet apre-
sentam como sucesso. O que deve ser destacado sobre isso, entretanto, é
que esses artistas buscam imprimir uma marca pessoal nas músicas. Eles
observam que não querem simplesmente copiar ou imitar os cantores
que os influenciam; eles querem construir uma identidade própria, um
estilo individual.
Os cantores e duplas mantêm o foco no que entendem ser o
objetivo dos artistas independentemente do gênero musical ao qual se
vinculam: desenvolver um trabalho de qualidade, atendendo às expecta-
tivas do público que paga para assistir aos shows; compor e apresentar as
composições, de modo a torná-las conhecidas no contexto local; estar em
contato permanente, dentro do possível, com os fãs para receber deles
um retorno sobre as apresentações; gravar discos que funcionem como
material promocional e não apenas como meio para ganhar dinheiro; e,
além disso, assumir, nos palcos e diante das câmeras e microfones, uma
conduta coerente com o que se espera de um cantor sertanejo. Perfor-
mance e representação, nesse sentido, estão interligadas.
Conclui-se com essa análise cultural que a mídia desempenha
um papel central na formação identitária dos artistas locais. Esse aspecto,
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 41

entretanto, não diminui a autenticidade do cenário estudado. Se São Luís


está fora do sertão, isto é, fora do eixo onde a música sertaneja nasceu e
se desenvolveu, esse gênero musical se fixou de tal maneira na cidade que
um conjunto relativamente vasto de lugares e profissionais está ligado
a ele. Ser um cantor sertanejo, hoje, é se posicionar como tal, ou seja,
abraçar um estilo de vida que envolve discurso e prática. É também ser
reconhecido como um cantor sertanejo pelos outros atores que formam o
cenário local, por exemplo, donos de bares e produtores de eventos. O re-
conhecimento da imprensa também é importante. O público que aprecia
música sertaneja precisa ter, por meio do trabalho desenvolvido por esses
artistas, suas expectativas supridas. Ser um artista sertanejo hoje é, tam-
bém, seguir as convenções próprias desse tipo de música, mas estar atento
para o que a mistura com outros gêneros musicais pode proporcionar no
que diz respeito à sonoridade e à performance. A performance, por fim,
é outro critério que, ao articular identidade, representação, produção,
consumo e regulação, define o que significa ser um artista sertanejo hoje.
Ninguém precisa nascer ou morar em São Paulo ou em Goiás para se
considerar e ser considerado um cantor sertanejo autêntico. A música
sertaneja não se limita a uma região do país. A música sertaneja pertence
ao Brasil.

Referências

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2007. Disponível em: http://www.ram-wan.net/restrepo/documentos/
identidades-jangwa%20pana.pdf. Acesso em: 1 nov. 2015.
TELENOVELA
ALÉM DA
TELEVISÃO:
TRANSMIDIAÇÃO
E CONVERSAÇÃO*
Larissa Leda F. Rocha**

* Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no GP Ficção Seriada do XIII Encontro dos Grupos
de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Co-
municação e publicado nos anais do mesmo.
** Doutora em Comunicação Social pela PUCRS. Mestre em Comunicação Social pela UFF. Professora
Adjunta do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Autora do livro “Diluindo Fronteiras:
hibridizações entre a realidade e a ficcionalidade na narrativa da telenovela” (Edufma). Coordenadora
do grupo de pesquisa Observatório de Experiências Expandidas em Comunicação - ObEEC - registrado
no CNPq. Editora da revista Cambiassu, do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Email:
larissaleda@gmail.com.
44 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Considerações iniciais
A evolução do slogan do YouTube, de Your digital video repositor, em seus
primeiros anos, ao conhecido Broadcast yourself é, além de uma mudança
de caráter publicitário e/ou comercial, uma alteração que aponta para
uma nova direção, significativa e sintomática do que viria a revolucio-
nar nosso modo de absorver, transmitir e produzir conteúdo atualmente.
Burgess e Green (2009, p. 27) nos pedem para compreender o YouTu-
be como um “sistema de mídia estruturado e em evolução no contexto
social e econômico de uma mudança mais ampla nos meios de comu-
nicação e na tecnologia”. E é por este caminho que podemos pensá-lo
em um local de disputa entre a política da cultura popular e o poder da
mídia. É por meio de um evento relacionado aos grandes conglomerados
de mídia, que o YouTube tornou-se conhecido e foi pautado pela mídia
como algo ao qual deveríamos prestar atenção. O primeiro hit do site foi a
publicação de um quadro cômico do conhecido programa Saturday Night
Live1, em dezembro de 2005. Visto por mais de um milhão de pessoas
em seus primeiros dez dias online, chamou a atenção da NBC Universal,
a poderosa rede de televisão e rádio norte-americana que iniciou suas
atividades em 1926 e passou a transmitir o sinal audiovisual em 1938. A
empresa exigiu sua retirada do ar, junto com outros 500 vídeos, baseada
na ameaça de processo por desrespeito aos direitos autorais (BURGESS;
GREEN, 2009). Ora, uma das forças que alavancou o sucesso do site es-
tava relacionada justamente à tensão entre “velhas” e “novas” formas de
consumo de conteúdo.
Mas, como nos alerta Burgess e Green (2009, p. 14), é preciso pensar
o YouTube hoje como um site de cultura participativa, “cada um dos par-
ticipantes chega ao YouTube com seus propósitos e objetivos e o modelam

1 O Saturday Night Live é um programa humorístico da rede de televisão norte-americana NBC (National
Broadcasting Company). Com quadros de humor e música, está no ar desde outubro de 1975, sendo um
grande sucesso comercial da emissora, além de bastante premiado, é, por exemplo, o recordista mundial
de indicações do respeitado Emmy. O programa, semanal, já lançou diversos atores e escritores ao estre-
lato mundial.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 45

coletivamente como um sistema cultural dinâmico”. Ainda hoje o site é


fonte de severas desconfianças dos grandes grupos midiáticos. Grandes
produtoras de conteúdo nos Estados Unidos, como Warner e Universal
Music, já assinaram acordos comerciais com o YouTube, buscando um di-
álogo que traga conforto comercial para os envolvidos, em um cenário de
produção e consumo que não dá nenhuma demonstração de retroação.
Não é consenso. A Viacom, outra gigante multimídia, negou-se a fazer
qualquer acordo com o site, alegando que ele ignora as regras de direitos
autorais e lucra com isso (HELF apud BURGESS; GREEN, 2009).
O YouTube parece a metáfora perfeita para pensar no enfrentamento
– e choque – entre duas lógicas ou dois modelos, o broadcasting – que de-
signa os modos do sistema de mídia convencional – e práticas da cultura
digital – remetendo aos modos que emergem junto ao desenvolvimento
das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação, marcadas por
três conceitos que pediremos emprestado de Jenkins (2008): convergência
dos meios de comunicação, cultura participativa e inteligência coletiva.
No entanto, é possível um direcionamento que não seja tão vitimizado
por essa bipolaridade, tanto em um contexto mais geral, quanto em re-
lação ao YouTube em particular, pois, o site “não representa uma colisão
e sim uma coevolução aliada a uma coexistência desconfortável entre
‘antigas’ e ‘novas’ aplicações, formas e práticas de mídia” (BURGESS;
GREEN, 2009, p. 33). E são, mesmo, desconfortáveis.

Uma nova televisão


Negroponte (1995, p. 166) já nos falava da televisão que conhece-
ríamos em breve, como “qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer
lugar”. O subtítulo de seu livro nos fala de uma televisão herdeira de
meios de comunicação de massa que, na era da informação, “tornaram-
-se simultaneamente maiores e menores” (NEGROPONTE, 1995, p.
157). Nos anos 1990 os públicos cresceram massivamente, a radiodifusão
ampliou-se, mas exemplos do que chama de narrowcasting – a transmissão
46 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

voltada para grupos específicos – também passaram a fazer parte de nos-


sas vidas, como revistas especializadas, serviços de transmissão por cabos
e videocassetes, atendendo a demandas de consumo de conteúdos de pú-
blicos cada vez mais específicos e menores, com gostos e interesses cada
vez mais particulares. O autor nos fala de uma era de “pós-informação”,
na qual “o público que se tem é, com frequência, composto de uma única
pessoa” (NEGROPONTE, 1995, p. 157). Aparece a ideia da informação
personalizada, mas tão extremamente personalizada que há até mesmo
uma “extrapolação do narrowcasting”. Ou seja, começa-se com um grupo
grande, atendido pelo modelo de negócio do broadcasting, vai-se para um
grupo menor ainda – o narrowcasting – para, finalmente, chegar-se ao in-
divíduo.
Trata-se, portanto, de consumo assíncrono e por encomenda nas
previsões de Negroponte. Para o autor, que nos escreve nos anos 1990,
à medida que a televisão fosse digitalizada, não seria mais necessário o
consumo dos bits na mesma ordem ou velocidade com que fossem emi-
tidos. Libertar-se-ia, assim, o consumo das práticas comerciais e deci-
sões (sobre o tempo e o espaço das emissões) das redes de televisão e de
rádio, criando a possibilidade do consumo por encomenda, o chamado
broadcatching, focado no ato de “puxar” o conteúdo para o consumo,
ao invés de ele ser “empurrado” contra nossa absoluta e franca manifes-
tação de vontade.
Arriscamos entender a “televisão de fundo de quintal” do autor
como essa que hoje podemos experimentar com o YouTube. A previsão
de Negroponte falava de uma estação não autorizada de TV para cada
pessoa, a partir da internet, o que ampliava, sobremaneira, o modo de
compreendermos os meios de comunicação de massa que abandona-
riam o conceito restrito de uma televisão/rádio profissionais com altos
custos de produção.
Os bits que informam sobre bits vão produzir uma mu-
dança completa nas transmissões televisivas. Elas propor-
cionarão um gancho por onde agarrar o que for do seu
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 47

interesse, e dotarão a rede de um meio de despachar bits


para quem quer que os queira, onde estiver. As redes vão
afinal aprender o que é de fato uma rede (NEGROPON-
TE, 1995, p. 172).

Mas ao mesmo tempo que vislumbra uma televisão muito individu-


al, ultrapassando até mesmo o narrowcasting, que prevê uma televisão no
fundo do quintal de cada um, longe das amarras das grades de progra-
mação rigorosamente controladas pelos sistemas broadcasting, Negroponte
nos chama atenção para uma determinada fratura que – hoje podemos
perceber – permeia as lógicas de produção da ficção televisiva em seus
moldes convencionais de um lado e os usos da cultura digital marcados
pela convergência e participação, de outro lado. Diz Negroponte (1995,
p. 172) que as redes de televisão e as de computadores são quase que ao
contrário uma da outra. Enquanto aquela
é uma hierarquia distributiva dotada de uma fonte (a ori-
gem do sinal) e muitos escoadouros homogêneos (o desti-
no dos sinais). As redes de computadores, por outro lado,
formam uma treliça de processadores heterogêneos, todos
eles podendo atuar como fontes e como escoadouros.

E sendo ao contrário uma da outra, promoverão não apenas encon-


tro de interesses, gostos e inteligências, mas também destempos, fraturas
e reorganizações essenciais dos modos de estar juntos e viver em uma
coletividade cada vez mais multicultural (MARTÍN-BARBERO; REY,
2001). O desencontro dessas duas lógicas de práticas de produção, dis-
tribuição e consumo de conteúdos – a broadcasting e as práticas da cultura
digital – é o responsável pelo desconforto causado ao redor do YouTube,
como falamos no início, mas também deixa aparente esta tensão nos usos
das ficções seriadas da televisão no Brasil, nas tentativas da Rede Globo2

2 A emissora, fundada em 1962, faz parte das Organizações Globo, fundada em 1925, e hoje um conglo-
merado multimídia que reúne empresas de rádio, televisão, cinema, publicidade, jornais, sites e revistas.
Atualmente a Rede Globo cobre mais de 98% do território nacional, alcança mais de 99% da população
e tem mais de 90% de produção própria, incluindo mais de 3 mil horas de entretenimento, um recorde
mundial de teledramaturgia. Disponível em: <http://estatico.redeglobo.globo.com/2017/10/04/sobre_
globo.pdf>. Acesso em: 19. out. 2017.
48 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

“de se movimentar em direção à cultura digital, mas, e ao mesmo tem-


po, de continuar investindo em estratégias inerentes ao sistema broadcas-
ting” (BORELLI, 2011, p. 85). Pois se a Globo, a exemplo das emissoras
de TV convencionais, sente-se ainda presa à lógica dos meios massivos
tradicionais, a web 2.0 traz uma luz nova com possibilidades antes não
experimentadas de práticas comunicativas e culturais, pois é
fundamentada para que os usuários, convertidos em pro-
dutores e organizadores de grades televisivas, passem a
ser produtores, pesquisadores, agregadores de conteúdos
e construtores de bibliotecas acessíveis mediante as moda-
lidades de VoD ou Vídeo on Demand (LACALLE, 2010,
p. 87).

De modo bastante sucinto, podemos conceituar a web 2.0 como


uma rede cuja característica é uma plataforma aberta, construída e ba-
seada na participação dos usuários, ou seja, ela só se torna possível a
partir do entendimento de que a web 1.0, que a antecede, como que em
um processo de crescimento e desenvolvimento homogêneo, é apenas
um lugar para experiências multimídias, mas que a web 2.0 pode muito
mais, pois é feita de parceria e coletividade e não de demonstrações de
aparatos e ferramentas técnicas. Dito de outro modo, a web 2.0 respon-
de para além do desenvolvimento tecnológico, é também – e essencial-
mente – de natureza social.
A web 2.0 facilita a troca e a cooperação entre indivíduos
e gera novas possibilidades de construção social do co-
nhecimento, do compartilhar o saber mediante estruturas
abertas e horizontais, que promovem a intercriatividade
e a inteligência coletiva para benefício da comunidade (LA-
CALLE, 2010, p. 83).

Jenkins (2008) também nos chama a atenção para a natureza social


e cultural do processo ao explicar o cenário contemporâneo de comuni-
cação que emerge junto à web 2.0. Para o autor, as práticas da cultura
digital passam por três conceitos centrais, que já citamos anteriormente,
estruturais em sua obra: convergência dos meios de comunicação, cultu-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 49

ra participativa e inteligência coletiva. A convergência de meios, Jenkins


(2008, p. 28) enfatiza, “representa uma transformação cultural, à medida
que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fa-
zem conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos”. Para o autor, a
convergência refere-se a um processo, não a um ponto final e assim sendo
é possível compreendê-la como um fluxo de conteúdos, por meio dos
mais variados aparatos midiáticos; como a cooperação entre diferentes
mercados de mídia e como o comportamento pouco fiel e intensamente
migratório dos públicos que vão onde possível for ir em busca de expe-
riências simbólicas significativas que contribuam para o entretenimento
que desejam. E por mais que os equipamentos e aparelhos sejam tecno-
logicamente surpreendentes, é preciso deixar claro que a convergência
acontece “dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas
interações sociais com outros” (JENKINS, 2008, p. 28).
Trata-se naturalmente de uma mudança de paradigma, do broad-
casting para a cultura digital, de que falávamos antes. Jenkins considera
que o paradigma da revolução digital está abrindo caminho para o da
convergência. O paradigma da revolução digital – e o entendimento de
que esta é uma revolução ainda inacabada – pode ser compreendido na
obra de Dertouzos (2002). Para o autor, ainda é necessário amadurecer
uma “computação centrada no homem” que precisa desenvolver cinco
capacidades básicas. Os sistemas devem ser capazes de: conversar co-
nosco; fazer coisas para nós; obter a informação que desejamos; ajudar
em nosso trabalho com as outras pessoas; e se adaptar às nossas neces-
sidades individuais.
Se a revolução digital previa que novas mídias substituiriam as anti-
gas, o paradigma que agora emerge, o da convergência, fala-nos de uma
coexistência de novas e antigas mídias, interagindo de maneira cada vez
mais complexa. Mas, insistimos: há neste processo fissuras severas de-
mais, especialmente no nosso foco de análise – a ficção seriada na televi-
são brasileira – para serem desconsideradas em nome de uma “evolução”
50 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

em direção a um contexto de completa participação, quando o público


toma as narrativas midiáticas nas mãos e constrói algo novo com elas.
A convergência, nos lembra ainda Jenkins, é um processo tanto cor-
porativo, de cima para baixo, incentivado por pesados interesses comer-
ciais; quanto é um processo alternativo, de baixo para cima, incentivado
por amores profundos e desejos intensos de participação. Para Lacalle
(2010, p. 82), é o casamento entre a televisão e as novas tecnologias que
serve de base firme para a crescente construção das narrativas transmi-
diáticas, mas que isso acontece de um lado “por amor (por parte dos
destinatários), mas também por conveniência (por parte dos emissores)”.
E este casamento está “rejuvenescendo um meio cuja rentabilidade em
curto prazo passa precisamente pela parceria com as novas tecnologias”
(LACALLE, 2010, p. 82). Ora, se a convergência representa um ganho
comercial e a oportunidade de expandir os negócios – um filme para
o cinema, por exemplo, pode gerar um vídeo-game de grande sucesso
comercial, ou seja, trata-se da expansão de franquias de entretenimento
criando fortes ligações emocionais e usando-as para aumentar as vendas
– também significa um risco, já que as empresas podem perder o controle
do que fazem as pessoas com o conteúdo produzido, gerando uma “frag-
mentação ou uma erosão em seus mercados. Cada vez que deslocam um
espectador, digamos, da televisão para a internet, há o risco de ele não
voltar mais” (JENKINS, 2008, p. 45).
Descortina-se, diante de nós, um modo de relacionar-se com a mí-
dia e com os conteúdos que nos permite descobrir “novas estruturas
narrativas, que criam complexidade ao expandirem a extensão das pos-
sibilidades narrativas, em vez de seguirem um único caminho, com co-
meço, meio e fim” (JENKINS, 2008, p. 165). A narrativa transmidiática
(Transmedia Storytelling) é aquela que se desenvolve em múltiplos aparatos
midiáticos, sendo que cada novo texto não repete o anterior, mas traz no-
vos elementos e contribui para o andamento da história como um todo.
São aquelas narrativas que, complexas e sofisticadas demais para serem
contidas e esgotadas em uma única mídia, alastram-se por suportes mi-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 51

diáticos diferentes, que contam a parte da história, que contam melhor,


permitindo que o acesso à história se dê de qualquer ponto ou mídia, au-
tonomamente, incentivando e sustentando um tipo de experiência mais
profunda motivadora ainda mais do consumo.
As narrativas estão se tornando a arte da construção de
universos, à medida que artistas criam ambientes atra-
entes que não podem ser completamente explorados ou
esgotados em uma única obra, ou mesmo em uma úni-
ca mídia. O universo é maior do que o filme, maior, até
do que a franquia – já que as especulações e elaborações
dos fãs também expandem o universo em várias direções
(JENKINS, 2008, p. 158-159).

Nem todas as narrativas seguirão pelos caminhos da transmidiação,


e tampouco todos os fenômenos transmídias operam, de fato, uma nar-
rativa transmidiática, mas há aí um ponto essencial a ser considerado:
um envolvimento mais profundo com as histórias e com a transmidiação
continua sendo opcional – um modo de relacionar-se com as franquias
midiáticas que os consumidores decidem ou não fazer – e não o único
modo de empreender esta relação. Nossa preocupação, sugere Jenkins,
deve estar é no fluxo entre a mídia alternativa e a mídia de radiodifusão.
Enquanto aquela é marcada pela diversidade, esta é pela amplificação.
“O poder da participação vem não de destruir a cultura comercial, mas
de reescrevê-la, modificá-la, corrigi-la, expandi-la, adicionando maior di-
versidade de pontos de vista, e então circulando-a novamente, de volta às
mídias comerciais” (JENKINS, 2008, p. 326).
E é este fluxo entre a mídia alternativa e a mídia de radiodifusão que
parece não funcionar bem ao analisarmos a ficção seriada na televisão
brasileira. Tensionada e incentivada por este cenário, a Rede Globo, a
exemplo das emissoras nacionais, vem buscando adequar-se às exigências
apresentadas pelo paradigma da convergência, produzindo conteúdos di-
recionados às plataformas digitais. Mas, ao mesmo tempo, insiste na pre-
servação dos padrões culturais do broadcasting, sistema do qual a televisão
sempre foi o maior ícone (BORELLI, 2011).
52 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Porque a telenovela importa


Para pensarmos a convergência e a narrativa transmídia para tele-
novela3, é necessário, antes, compreender o lugar e a função da narrativa
de ficção seriada no contexto da urbanização e modernização brasileiras.
“A ficção televisiva não deve ser entendida como uma história específi-
ca, uma particular produção de gêneros na televisão, mas antes o intei-
ro corpus e fluxo das narrativas por onde assume a função de preservar,
construir e reconstruir um ‘senso comum’ da vida cotidiana” (LOPES;
MUNGIOLI, 2010, p. 251).
Lopes (2009) afirma que é importante entender a telenovela como
“recurso comunicativo” e como “narrativa da nação”. Pensar a novela
como recurso comunicativo exige vê-la como uma narrativa na qual se
desenvolvem ações pedagógicas implícitas e deliberadas, que podem ge-
rar políticas de comunicação e de cultura no país. Ou seja, “é reconhecer
a telenovela como componente de políticas de comunicação/cultura que
perseguem o desenvolvimento da cidadania e dos direitos humanos na
sociedade” (LOPES, 2009, p. 32). A novela constitui um recurso comuni-
cativo, pois junta sua matriz melodramática e folhetinesca4 ao tratamento
naturalista de temas de importância social “como ferramenta da verossi-
milhança de suas narrativas e do efeito de credibilidade que alcançou”.
A novela também pode ser compreendida como uma narrativa da
nação. Sendo o principal produto da indústria televisiva brasileira, a no-

3 Estaremos, neste trabalho, utilizando o termo telenovela e novela indiscriminadamente, mas nos refe-
rindo ao mesmo produto: narrativa de ficção seriada brasileira, apresentada de segunda a sábado, em ho-
rários pré-determinados, em capítulos que são encadeados em uma única narrativa longa, que se estende
por uma média de 200 capítulos.
4 Acompanhamos Martín-Barbero (2001) em sua consideração de que o melodrama e o folhetim são
matrizes culturais fundamentais da telenovela. Tais heranças podem ser recuperadas em alguns momen-
tos, que se fundem e hibridizam-se - além de se permearem com o histórico político, cultural e tecno-
lógico da história das comunicações no Brasil – para conformar os moldes do que hoje chamamos de
telenovela brasileira. Tais momentos são o melodrama e folhetim francês do século XIX, as radionovelas
e o cinema de lágrimas latino-americanos e a soap-opera norte-americana. Ver mais em: ROCHA, Laris-
sa Leda Fonseca. Diluindo fronteiras: hibridizações entre o real e o ficcional na narrativa da telenovela.
São Luís: Edufma, 2011.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 53

vela tem a capacidade de se colocar como um amplo espaço de proble-


matização do Brasil, tanto no que se refere à privacidade dos lares e à
vida experimentada, quanto ao que diz respeito aos problemas sociais
e à vida contada. Pode ser considerada como um dos fenômenos que
melhor representa a modernidade brasileira, “por combinar arcaico
com moderno, por fundir dispositivos narrativos anacrônicos e imaginá-
rios modernos e por ter sua história fortemente marcada pela dialética
nacionalidade-midiatização” (LOPES, 2009, p. 22). Por isso, podemos
considerá-la como uma “narrativa da nação”, na qual os brasileiros se re-
conhecem e se identificam. A novela tem o poder de “se expressar como
nação imaginada” (LOPES, 2009, p.31) que mesmo sujeita à imensa va-
riabilidade de interpretações, mantém sua verossimilhança, legitimidade
e credibilidade.
No Brasil, afirmam Martín-Barbero e Rey (2001, p. 120), desenvol-
veu-se um modo próprio de ficção seriada, o que chamam de “modelo
moderno”, cujo marco inicial é a novela Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968),
modelo este caracterizado pela presença da matriz melodramática, mas
que incorpora um realismo que permite a “cotidianização da narrati-
va”. As fases de desenvolvimento da narrativa da telenovela brasileira são
trabalhadas por Lopes (2009). Resumidamente, podemos dizer que há
três fases distintas: a sentimental (de 1950 até 1967), a realista (de 1968
até 1990) e a naturalista (desde 1990). A partir da fase realista, é possível
observar a cotidianização da narrativa, pois ela incorpora o realismo às
marcas do melodrama e permite o imbricamento constante de dois níveis
– o ficcional e o real – o que oferece à telenovela a possibilidade de tratar
temas nacionais complexos e polêmicos (como a doação de órgãos, justi-
ça agrária, violência doméstica, por exemplo) com a mesma naturalidade
com que decide o destino amoroso dos casais da história.
E se é verdade o que afirmam os dois autores, também é fato estu-
dado por vários pesquisadores5 que a televisão, no Brasil e na América
5 É possível citar, brevemente e de modo genérico, autores como Jesús Martín-Barbero, Nestor Garcia
Canclini, Dominique Wolton, Renato Ortiz, Silvia Borelli e Maria Immacolata Vassalo de Lopes.
54 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Latina, possui um caráter diferenciado daquele encontrado nos Estados


Unidos e na Europa. Apesar de nascida pelas mãos da iniciativa privada,
a televisão no Brasil sempre esteve ligada às estruturas governamentais,
tanto em relação ao aparato tecnológico fornecido pelo Estado, quan-
to pela exigência de um ideário pedagógico dos meios (MUNGIOLI,
2008, p. 2). A ideia da Ditadura Militar, durante a qual se desenvolveu e
consolidou uma indústria cultural televisiva no país, era integrar o Brasil
por meio da televisão e o resultado é que “desde sua fundação a televi-
são incorpora às suas atribuições o papel de mantenedora do laço social
que une a nação brasileira” (MUNGIOLI, 2008, p. 3). E o modo que
o Brasil, como nação, um país de iletrados, encontrou para definir sua
fisionomia foi principalmente pelas imagens vistas pelas telas da televisão,
que falam de nós e para nós e onde nós poderíamos nos ver, como em um
movimento especular. O laço é fundamental, faz com que nos sintamos
uma só nação, um só povo e como nos lembra Martín-Barbero e Rey
(2001, p. 114):
a televisão constitui um âmbito decisivo do reconhecimen-
to sociocultural, do desfazer-se e do refazer-se das identi-
dades coletivas, tanto as dos povos como as de grupos. A
melhor demonstração desses cruzamentos entre memórias
e formato, entre lógicas de globalização e dinâmicas cul-
turais, é constituída, sem dúvida pela telenovela: essa nar-
rativa televisiva, que representa o maior sucesso de audi-
ência, dentro e fora da América Latina, de um gênero que
catalisa o desenvolvimento da indústria audiovisual latino-
-americana, justamente ao mesclar os avanços tecnológi-
cos da mídia com as velharias e anacronismos narrativos,
que fazem parte da vida cultural desses povos.

Mas é também Martín-Barbero e Rey (2001, p. 115) que nos falam


que se dar conta deste papel da telenovela no cotidiano do povo latino não
pode nos cegar para conseguir ver que a longa experiência do mercado
para captar, na repetitividade da serialização das narrativas, as dimensões
da vida vivida de todos os dias, também deixa ao mercado a arte de saber
contar histórias e saber “conectar com as novas sensibilidades populares
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 55

para revitalizar narrativas midiáticas gastas”. Para Martín-Barbero e Rey


(2001, p. 36), os fluxos televisivos audiovisuais remetem, acima da experi-
ência estética, aos “novos modos de se estar juntos”, aos novos formatos
de sociabilidade que se desenham em meio ao caos e à violência urbanos
e que ao mesmo tempo em que torna opaco o sujeito em um anonimato
doloroso, introduz uma continuidade nova: a das redes e dos conectados.
Há, portanto, uma renovação dos públicos, que por meio do consumo de
textos que hibridizam melodramas nacionais, indústria transnacional e
transmissões locais, conectam seus desejos, interesses e aspirações muito
diferentes. “A renovação dos públicos é acompanhada pelas modificações
cognitivas, isto é, pelas diferentes formas de interpretação e apropriação
das mensagens televisivas e de sua localização em outros contextos de
suas vidas cotidianas” (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001, p. 71).
Há, portanto, a emergência de novas sociabilidades, de modos de
convívio e de consumo das narrativas televisuais. Emerge, neste cenário,
o paradigma da revolução digital e mais tarde, o paradigma da conver-
gência, de que fala Jenkins (2008). São os jovens, adverte-nos Martín-
-Barbero (1998), que desenvolvem sensibilidades mais de acordo com os
novos parâmetros, por estarem mais desligados das figuras da razão e do
conhecimento, de estilos e práticas de “velhas tradições”, o que os dota
de uma facilidade maior para os idiomas da tecnologia.
Essa empatia dos jovens com a cultura tecnológica vai da
informação absorvida pelo adolescente em sua relação
com a televisão – que corrói seriamente a autoridade da
escola como única instância legítima da transmissão de sa-
beres – à facilidade para entrar na complexidade das redes
informáticas e manejá-las (MARTÍN-BARBERO, 1998,
p. 58).

Essa empatia dos jovens é feita não só de facilidade para lidar com
as tecnologias audiovisuais, mas também por cumplicidade expressiva,
“é em seus relatos e imagens, em suas sonoridades, fragmentações e ve-
locidades que eles encontram seu idioma e seu ritmo”. São, na verdade,
56 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

novos modos de estar juntos e também de perceber e narrar a identida-


de, “identidades de temporalidades menos extensas, mais precárias, mas
também mais flexíveis, capazes de amalgamar e fazer conviver ingre-
dientes de universos culturais muito diversos” (MARTÍN-BARBERO,
1998, p. 59).
A juventude, portanto, é um elemento importante para se pensar
no paradigma da convergência – e na consequente dificuldade da ficção
seriada brasileira efetivar a narrativa transmídia. Lacalle (2010, p. 92)
afirma que a internet apresenta-se como uma oportunidade importante
para a televisão, pois permite personalizar o conteúdo e enfatizar espe-
cificamente a atividade interpretativa da audiência, indo contra o para-
digma tradicional do broadcasting. E que são justamente as características
específicas da mídia (com seu consumo disperso, que concorre com a
rotina das casas, e o modelo de serialização que a organiza) que “conver-
te a retroalimentação em uma prática produtivo-interpretativa”. E acres-
centa: “a retroalimentação entre ficção televisiva e a internet representa
sem dúvida a expressão máxima desse ir e vir das histórias entre um meio
e outro” (LACALLE, 2010, p. 81). A autora, no entanto, não se furta de
pensar na relação entre jovens, televisão e internet e é definitiva:
A ausência de uma programação específica para jovens,
os videojogos e as redes sociais são algumas das causas
de seu progressivo afastamento da televisão, ainda que a
passagem do espectador passivo a protagonista na Rede
também cumpra um papel importante na relação com a
Internet dos nativos digitais (LACALLE, 2010, p. 87).

É por meio dos jovens que a interconexão entre as narrativas


televisivas e as novas tecnologias transformaram espaços na internet em
extensões narrativas e criativas de programas de televisão, nos quais con-
teúdos são compartilhados e retroalimentados a partir de interpretações
que se constroem em comunidades interpretativas. Essas comunidades
deixam às claras o paradigma da convergência de Jenkins (2008), escan-
carando uma nova era para a televisão, mas também novos modos de
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 57

estar juntos, que são caracterizados pela “apropriação dos textos televi-
sivos por parte de uma recepção que substitui as tradicionais relações de
identificação e de projeção por uma verdadeira produção de significa-
ção” (LACALLE, 2010, p. 90).

Telenovelas, convergências e as dificuldades


Bem, não há mais praticamente nenhum programa de ficção tele-
visiva que não experimente o online, afima Lacalle (2010). E isso também
é verdade para a ficção seriada brasileira. Só que reside, justamente na
composição do público da telenovela, com 56% da audiência dos dez
títulos mais vistos do ano formada pela faixa etária acima dos 35 anos
(LOPES; GÓMEZ, 2015), um dos dificultadores das experiências de
narrativas transmidiáticas nas telenovelas brasileiras. Junto à composição
do público, soma-se ainda o prazo de duração da narrativa e a estrutura
orientada pelo melodrama.
Antes de nos apresentar estes dificultadores, Fechine e Figueirôa
(2011, p. 25-27) identificam duas grandes estratégias de como os con-
sumidores são convidados a participar do paradigma da convergência.
A primeira estratégia corresponde à narrativa transmidiática de Jenkins
(2008), ou seja, a experiência de expansão da narrativa de um meio a
outro. As chaves para a efetivação e compreensão desta estratégia são os
“desdobramentos” e a “complementaridade” entre narrativas que são
interdependentes, apesar de possuírem sentido individualmente. Há um
objetivo importante: o engajamento do fruidor. A segunda estratégia está
relacionada aos conteúdos que se ligam de uma mídia para a outra, mas
não estão implicados diretamente uns nos outros. As chaves de efetiva-
ção e compreensão são a “ressonância” e a “retroalimentação”. Ou seja,
há uma preocupação em repercutir um universo ficcional de uma mídia
para outra – acionando o gosto dos consumidores e fazendo com que se
fale do produto – mas isso não necessariamente enseja uma narrativa.
A ideia é manter o usuário envolvido com o mundo ficcional proposto
58 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

pela narrativa na mídia original (televisão, no caso), “seja convocando-o


a algum tipo de atuação colaborativa, seja simplesmente convidando-o
a dar ressonância aos conteúdos propostos, agendando-os entre outros
usuários ou em outras instâncias, constituindo comunidades de interesse”
(FECHINE; FIGUERÔA, 2011, p. 26).
Assim, Fechine e Figuerôa (2011, p. 27) optam pelo uso do termo
“transmidiação” para designar a produção de sentido fundada na “reite-
ração, pervasividade e distribuição em distintas plataformas tecnológicas
de conteúdos associados cuja articulação está ancorada na cultura par-
ticipativa estimulada pelos meios digitais”. Transmidiação, portanto, é
uma lógica de produção e consumo de conteúdos dentro do paradigma
da convergência, que faz um apelo poderoso à participação e/ou inter-
venção do consumidor que pode usar uma ou mais mídias para expandir
a experiência do consumo que, de outro modo, ele não teria, apenas com
um suporte de mídia específico. Logo, transmidiação é um “processo co-
municacional específico” e o que resulta dela, os autores designam como
“narrativa transmidiática”, acompanhando o conceito de Jenkins (2008)
– resultado da transmidiação que apela à primeira estratégia mencio-
nada (cujas chaves são desdobramento e complementaridade) – e como
“universos transmídias” – resultado da transmidiação que apela à segun-
da estratégia (apresenta como chaves a ressonância e a retroalimentação)
e que permite a criação de ambientes ficcionais multiplataformas, mas
não necessariamente tendo como resultado dessa experiência uma nar-
rativa transmidiática.
O esforço de delimitação conceitual de Fechine e Figuerôa (2011) é
recompensado na análise que fazem dos exercícios de transmidiação fei-
tos pela Rede Globo com suas telenovelas e as fissuras encontradas nesse
processo. Como já mencionamos, a composição do público é um primei-
ro problema. A maioria dos telespectadores das telenovelas brasileiras
é formada por uma faixa etária – acima dos 35 anos – que está pouco
disponível, inclusive tecnologicamente, para investir em uma expansão
enciclopédica do mundo ficcional, com entrecruzamento de histórias e
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 59

personagens, em múltiplas perspectivas e meios, numa complexa rede


de relações e situações (MURRAY, 2003). Não coincidentemente, gira
em torno da produção voltada ao público jovem da TV Globo, a soap
opera Malhação, os esforços mais consideráveis da emissora em termos de
recepção transmídia (LOPES; GÓMEZ, 2015, p. 142).
Uma segunda dificuldade é o prazo de duração da narrativa. Apesar
de comparativamente longa em relação a outras narrativas audiovisuais,
a telenovela estende-se por um prazo médio de oito meses, é apresentada
durante seis dias na semana e depois sai do ar, definitivamente. Cada
novo capítulo está separado por um espaço de tempo muito curto em re-
lação ao anterior (no máximo, dois dias para os capítulos apresentados na
segunda-feira), criando-se assim situações narrativas nas quais o capítulo
seguinte resolve as questões do capítulo anterior. Nisto, difere-se radi-
calmente da experiência de ficção seriada na televisão norte-americana
(âmbito das análises de Jenkins), cujas narrativas – além de terem um pú-
blico mais jovem, portanto, familiarizados com a cultura digital – são or-
ganizadas por temporadas e podem ficar anos no ar, deixando o público
durante muito tempo em contato com determinado universo narrativo
e tendo a possibilidade, entre os episódios e mesmo entre as temporadas,
de dedicar tempo e esforço na busca de informações complementares
e/ou incrementos na história. As telenovelas não parecem ter vocação
para as expansões enciclopédicas das quais fala Murray (2003), até mes-
mo porque as experiências feitas com extensões da telenovela na inter-
net (mídia preferida para as experiências de transmidiação na televisão
brasileira) assumem, geralmente, a proposta de conteúdos adicionais,
mas não implicam diretamente na trama principal, embora ajudem a
caracterizar o universo narrativo e conectem o consumidor no universo
criado. No entanto, apesar de não serem o espaço por excelência para
tais expansões, por conta de sua pouca capacidade enciclopédica, as te-
lenovelas têm uma amplidão das tramas e multiplicação das subtramas
que permite a narração de várias tramas secundárias ao mesmo tempo,
o que garante a “possibilidade de expansão e aceitação da história, que
60 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

pode ‘crescer’ ou se orientar em várias direções a depender do interesse


do público” (FECHINE; FIGUEIRÔA, 2011, p. 36).
Finalmente, a estrutura orientada pelo melodrama, com a constru-
ção de personagens mais tipificados e uma narrativa linear e progressiva
que privilegia uma compreensão rápida e fácil, orientada por uma re-
dundância organizativa da história para ajudar o público a acompanhar
as tramas e sub-tramas durante os longos meses em que fica no ar. Mar-
cada pelo melodrama e pela serialização, possui um sentido moralizante,
apesar do tom geralmente liberalizante e informativo. Como afirma Lo-
pes (2009, p. 29), “o tratamento vem sendo crescentemente informativo,
antidogmático e a favor da tolerância e do respeito às minorias”. Tais
características, a princípio, dificultam o exercício de narrativas transmi-
diáticas que precisam de aberturas e múltiplas subjetividades dos perso-
nagens para se efetivarem. A telenovela, ao mesmo tempo, é escrita en-
quanto é contada, o que abre sua produção para interferências oriundas
do público e de instituições envolvidas com a narrativa. Esses retornos da
audiência podem reorganizar os enredos das telenovelas, fazendo com
que tramas ganhem relevo, personagens aumentem sua importância ou
sejam retirados da história, por exemplo. Há, portanto, uma possibilida-
de de construção narrativa a partir de direcionamentos apontados pelos
gostos e humores do público. No entanto, sua estrutura melodramática
e serializada pode limitar a exploração de personalidades complexas e
subjetivas dos personagens, que é condição importante para a complexi-
ficação de uma narrativa que se pretenda transmidiática.
Além dessas questões teóricas apontadas, as experiências de trans-
midiação realizadas pela Rede Globo, por exemplo, deixam clara a ten-
são entre os modos de funcionamento do sistema broadcasting e da cultura
digital. Em pesquisa realizada com duas telenovelas de maior audiência
da emissora em 2010, Borelli (2011) chega à conclusão de que enquanto
produtora de conteúdo, a Globo, que investiu em homepages e blogs oficiais
das telenovelas, e, mais contemporaneamente, em fanpages em redes soci-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 61

ais digitais, busca inserir-se em contextos midiáticos, digitais e multipla-


taformas, mas consegue executar apenas “experiências preliminares da
convergência midiática e de construção de narrativas transmidiáticas” e
que as possíveis ampliações da autonomia dos usuários se deu nas redes
sociais, pelos receptores, deixando transparecer uma “conflituosa arti-
culação entre modelos – ‘velhas’ e ‘novas’ mídias – dentro da Globo”
(BORELLI, 2011, p. 115).
Consideração final semelhante chegam Fechine e Figueirôa (2011,
p. 56) que também analisaram projetos transmídias desenvolvidos pela
emissora. Tais projetos privilegiam, essencialmente, a relação entre te-
levisão e internet, “sobretudo para promover uma retroalimentação de
conteúdos que estimula a conversação em torno da novela (‘falar sobre’)
com o intuito de promover maior envolvimento com a história e aumen-
tar a audiência”. Mas o “falar sobre” é algo próprio da conformação
do gênero telenovela no Brasil e sua institucionalização na organização
da sociabilidade brasileira e no apoio à formação da ideia de nação e
povo. Independente da classe social, do gênero sexual, da faixa etária
ou das escolhas religiosas, as pessoas acabam participando do cenário
no qual circulam os sentidos das histórias. Ver a telenovela não se re-
sume ao momento em que se está diante da televisão, pois seu sentido
é permanentemente atualizado, ressemantizado, reelaborado, no “falar
sobre” ela. Como diz Lopes (2009, p. 29), a telenovela é “tão vista quanto
falada”, já que seus sentidos são o resultado tanto da narrativa produzida
pela televisão, quanto da “interminável conversação produzida pelas
pessoas”.
Sim, a telenovela vai além da tela da televisão. Presta-se a uma
transmidiação que cria um universo transmídia e reforça o laço do pú-
blico com a história por ressonância e retroalimentação dos conteúdos,
mas não opera, de fato, narrativas transmidiáticas, por questões que vão
da composição do seu público às estruturas que a tecem desde sempre.
Mas, a telenovela já ia além da tela antes do aparecimento do paradigma
62 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

da convergência. Pois é difícil esquecer não apenas seu papel na confor-


mação dos contornos do que é se sentir brasileiro (nos vemos na novela
e ela nos vê, falamos dela e ela fala de nós), mas também é difícil ignorar
que sempre vemos a novela, mesmo quando não a assistimos. Sempre
sabemos o que se passa lá, por mais que não seja possível acompanhar
o andamento das tramas. Afinal, a telenovela é tão vista quanto falada e
seus sentidos esparramam-se para além da tela, muito antes de se pensar
em transmidialidades.

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ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira
e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001.
ESPAÇOS DE
TRABALHO
COMPARTILHADOS:
DINÂMICAS
PRODUTIVAS E
PROCESSOS DE
VINCULAÇÃO
SOCIAL*
Ramon Bezerra Costa**
Francine Tavares***

* Texto revisado e atualizado a partir da versão apresentada no GT – Subjetividade, Narrativas e Produ-


ção de Sentido do 8º Coneco, que aconteceu em outubro de 2015 na PUC-Rio.
** Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Mestre e Doutor pelo PPGCOM-
-UERJ. E-mail: ramonbzc@gmail.com
*** Doutoranda em Comunicação e Cultura na ECO-UFRJ e bolsista Capes. E-mail tavarefrancine@
gmail.com
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 65

Introdução
Não é de hoje que profissionais como arquitetos, artistas e designers
alugam e dividem um espaço de trabalho visando diminuir os custos.
Vale lembrar que essa prática é, majoritariamente, característica dos “pe-
quenos profissionais”, pois símbolo de sucesso seria ter um escritório num
prédio próprio da empresa e quanto maior, mais alto, maior o sucesso.
No entanto, atualmente, o que se está chamando de espaços de traba-
lho compartilhados, seja os intitulados de coworking ou “casas abertas”,
parecem funcionar em outra lógica e considerar o “sucesso” de outra
maneira.
Existem diversos modelos. Alguns são empresas que funcionam de
maneira centralizada, no qual o pagamento de uma mensalidade permi-
te acessar os serviços; enquanto outros investem em modelos de gestão
horizontais e não visam ao lucro, funcionando como experimentos de
dinâmicas produtivas diferentes das usuais. O que todos esses modelos
parecem ter em comum é que os espaços, recursos e custos de um es-
critório são divididos entre os profissionais com a intenção de reduzir as
despesas de manutenção e contribuir para que as pessoas auxiliem umas
às outras, aumentando as possibilidades de networking – independente de
como essa dinâmica aconteça.
Para se ter uma ideia da dimensão desse fenômeno, uma pesqui-
sa realizada em 2016, conhecida como “Censo do Coworking no Brasil”
(EKONOMIO; MOVEBLA; COWORKING BRASIL, 2016), traz
alguns dados: existem 378 espaços ativos no país; as cidades com mais
espaços são: São Paulo (90), Rio de Janeiro (32), Belo Horizonte (24),
Curitiba (20). Dos 378 espaços, 173 responderam a um questionário que
oferece outros dados: 53 espaços funcionam 24h por dia, em 26% deles
é possível levar o animal de estimação e mais de 90% organizam eventos
no espaço. Além desses números, vários eventos têm acontecido no mun-
do para discutir essas formas de trabalho; sites dedicados ao tema foram
criados e as notícias sobre novos espaços e/ou seus modelos de negócios
são frequentes na mídia.
66 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Refletir sobre diferentes formas de compartilhar espaços de traba-


lho implica em abordar como essas dinâmicas produtivas funcionam,
como os recursos e espaços são geridos e acessados, como as pessoas inte-
ragem e criam relações. Análises essas que não podem ser desvinculadas
de considerações sobre as dinâmicas do capitalismo contemporâneo. É
importante enfatizar que o foco deste ensaio não é o trabalho em si, mas
a forma como ele se organiza nos espaços ditos compartilhados. Diante
disso é importante esclarecer duas questões.
Primeiro sobre o interesse deste ensaio. Focando na maneira como
a experiência de trabalho acontece, o objetivo é refletir sobre os proces-
sos de construção dos “vínculos sociais”, que são entendidos a partir de
Muniz Sodré (2014) como o que caracteriza o processo da comunicação,
que tem relação com a constituição de sujeitos e a produção de modos
de vida. Nessa perspectiva, a vinculação social se dá por meio da instau-
ração de um “comum” – não “algo em comum”, nem uma “coisa” ou
“substância”, mas uma relação que se constrói, uma espécie de compar-
tilhamento de referências construídas que passam a ser partilhadas. São
nesses processos de vinculação que se funda a existência social, uma vez
que, conforme defende Sodré (2007, p.21), a partir de Esposito, existimos
em relação: “não se parte do ‘eu’ ou do ‘não-eu’, mas do ‘com’ constituti-
vo”. O sujeito é, assim, o que se configura na relação na medida em que
se vincula; ele não existe antes, como algum tipo de essência.
A segunda questão que requer esclarecimento é que esses processos
de vinculação social se dão em uma dinâmica de afetação entre pessoas e
coisas, que acontecem em relação com lugares, discursos, práticas, insti-
tuições, objetos, nos quais a existência no mundo é organizada. Esses pro-
cessos de vinculação, ao produzirem as realidades – sociais, econômicas,
políticas – nas quais os sujeitos são constituídos ao mesmo tempo em que
constroem realidades, parecem funcionar como “redes sociotécnicas”,
que, com Bruno Latour, podem ser entendidas como séries heterogêneas
compostas de elementos humanos e não-humanos conectados e que se
afetam mutuamente (LATOUR, 2012). Assim, é fundamental conside-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 67

rar essa “dimensão sociotécnica” do fenômeno uma vez que, no caso do


compartilhamento de espaços de trabalho, essas experiências acontecem
em relação com lugares, discursos, práticas, procedimentos, instituições,
aplicativos, computadores, celulares, que organizam nossa existência no
mundo ao mesmo tempo em que são configurados pelos usos que impri-
mimos; fazendo com que tais “coisas” não sejam meros “instrumentos”
que ganham sentido pela ação humana, mas que também contribuem
para a existência de determinadas relações.
Os dados que fundamentam as reflexões apresentadas neste ensaio
são oriundos de observação participante de um dos autores em espaços
de trabalho compartilhados, de entrevistas realizadas e de revisão biblio-
gráfica sobre o tema.
Diante do exposto, o problema do qual se parte é: de que tratam e
como ocorrem os processos de vinculação social presentes nos espaços de
trabalho compartilhados? No intuito de facilitar a exposição, reflete-se
sobre esses espaços de trabalho a partir de três modelos: os “centraliza-
dos”, as “casas abertas” e os makerspaces.

Os modelos
O modelo mais comum para compartilhamento de espaços de tra-
balho é o que funciona de maneira centralizada: um proprietário, ou um
grupo de sócios, oferece um espaço equipado com as necessidades de um
escritório (mesas de trabalho, salas de reunião, telefone, acesso à inter-
net, gerenciamento de correspondências, central de recados, espaço para
eventos) e os profissionais interessados pagam por mês para utilizar todos
ou alguns dos serviços (existem vários planos), seja a partir de uma sala
privada ou de uma estação de trabalho em um grande salão com outras
pessoas. Vale lembrar que mesmo nesses modelos considerados “centra-
lizados” há, por parte dos que oferecem o serviço, o interesse em criar e
manter estratégias de integração entre os profissionais que lá estão. Para
isso, esses espaços costumam oferecer cursos e palestras regularmente e
muitos possuem serviços de bares, refeitórios, cafeterias, piscinas e outros
68 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

espaços que possam contribuir com a integração entre os membros, na


tentativa de investir em uma forma de vinculação entre os integrantes
diferente da que se teria em uma empresa tradicional.
Esse formato centralizado de coworking, gerenciado por uma pessoa
ou equipe a quem se pode recorrer no caso de algum problema e que
busca oferecer soluções rápidas e praticidade para as relações de traba-
lho, parece configurar um modelo de negócios rentável aos sócios/pro-
prietários em consonância com as dinâmicas de trabalho do capitalismo
contemporâneo, que pode ser caracterizado, dentre outras formas, por
certa flexibilidade, instabilidade, rapidez e fragmentação, conforme estu-
dou Richard Sennett (2012). O sociólogo acredita ainda que essa dinâ-
mica do capitalismo enfraquece os laços sociais duradouros, compromete
a vida familiar e acaba com os planos e projetos de longo prazo (SEN-
NETT, 2012). Longe de discordar da caracterização do capitalismo feita
por Sennett, ao levarmos em consideração o funcionamento desses espa-
ços de trabalho compartilhados um questionamento parece pertinente.
Assumindo que as formas de trabalho contemporâneas são mar-
cadas pelo enfraquecimento dos laços duradouros e da contiguidade
espacial, nessas experiências de trabalho compartilhado, ainda que não
duradouros, poderíamos nos perguntar em que consistem e como se es-
truturam esses laços que emergem dessa condição laboral, tendo em vista
que se tem como meta a promoção da integração entre os membros e a
criação de outras dinâmicas de produção. Essa questão dos “laços” lem-
bra o trabalho de Fabien Granjon (2001), que a partir de experiências de
ação política na internet observa formas de participação mais flexíveis,
caracterizadas por “laços frouxos”, sem “vínculos rígidos”, mas que “car-
regam” uma “potência”, isto é, eles podem ser “fortes”, dentro do que
se propõem, embora “temporários”. Será que ao invés de tentar mudar
o ambiente de trabalho e assumir sua condição fragmentada, “corrida”,
instável e buscar inventar experiências que mesmo nesse ambiente se
aproximem de algo que, na ausência de uma expressão melhor, pode-
-se chamar de “bem-estar”, não seria possível promover outros tipos de
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 69

vinculação social?1
Por exemplo, o espaço de coworking Casa de Viver, que funciona em
São Paulo, reúne as características de um espaço de trabalho comparti-
lhado, conforme descrito, com a possibilidade de se trabalhar perto dos
filhos. Enquanto o pai ou a mãe participa de uma reunião ou está escre-
vendo algo no computador, seu filho está em outro andar com educado-
res. Caso se queira ver o filho “no meio do expediente” é só ir para outro
espaço da casa, próprio para as crianças estarem com os pais, seja para
brincar ou trabalhar. Há ainda espaços para atendimento de saúde e co-
zinhar, seja junto com outros pais, sozinho ou mesmo comprar comida.
Espaços como a Casa de Viver parecem criar experiências curiosas
entre pais, funcionários e filhos, que acontecem em um determinado es-
paço físico com objetos, de computadores a brinquedos, configurando
o cenário da experiência. É um ambiente no qual a função de mãe/pai
parece coexistir com a de profissional. É como se houvesse uma confu-
são, ou junção, entre experiências características da vida privada (família)
com a vida pública (profissional).
Além dos modelos de espaços de trabalho compartilhados que se
está chamando de “centralizados”, há outros que surgem na tentativa de
investir em outro paradigma econômico e produtivo. Oswaldo Oliveira,
economista que trabalhou 15 anos no mercado financeiro, estava inte-
ressado em testar uma ideia: “ao contrário do que entende a tradição
econômica, o que existe é abundância de recursos, não escassez, tudo de-
pende da maneira como os recursos são geridos e as pessoas interagem”.
Para ele, o padrão organizativo mais distribuído e menos centralizado
geraria essa abundância (OLIVEIRA, 2014). Diante disso, ele decidiu
fazer um experimento. Em maio de 2013, conforme relatou em entre-
vista, alugou a parte de cima de um sobrado (com 30 metros quadrados)

1 Nesse contexto, é importante perceber ainda uma espécie de “precarização” que parece ser naturali-
zada, na qual a precarização pode aparecer como fonte de sujeição e exploração. Contudo, ao mesmo
tempo em que a “naturalização” dessas formas de trabalho pode levar a uma espécie de “exploração”,
pode também produzir outro tipo de experiência, como a colaboração e a aproximação entre as pessoas.
70 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

na Rua Madalena, 80, no bairro de Vila Madalena, em São Paulo. O


espaço possuía banheiros, cozinha e espaços parecidos com escritórios.
O economista tirou cópias das chaves e distribuiu entre conhecidos, que
por sua vez poderiam deixar que outros também fizessem suas cópias.
Cada uma dessas pessoas poderia usar o espaço para fazer o que quises-
se: trabalhar, cozinhar, encontrar os amigos. Não havia nenhum líder,
coordenador ou cargos para organizar a dinâmica na casa, só existia
uma regra: nenhuma ação realizada poderia comprometer a existência
da casa. As atividades eram organizadas em uma planilha pública no
grupo do Facebook da casa, cada pessoa inscrevia o espaço que usaria e
quando, para que não houvesse conflito.
Para pagar o aluguel e as contas do espaço, Oswaldo Oliveira,
vendo-se no papel de iniciador do processo, tomou as contas para si,
inicialmente, e colocou, em uma planilha pública, também no grupo do
Facebook da casa, a especificação de todas as despesas necessárias para
bancar o espaço e cada pessoa contribuiria com a quantia que quisesse,
mas ninguém era obrigado. Ao todo, era necessário cerca de 6 mil reais
para pagar todas as despesas. Embora a arrecadação estivesse, paulati-
namente, aumentando, sete meses depois a experiência da Madalena80
(como ficou conhecido o espaço) teve que acabar. O grande número2 de
pessoas circulando na parte de cima do sobrado a qualquer hora do dia
ou da noite, em um bairro residencial, deixou o proprietário do imóvel
preocupado com possíveis danos patrimoniais, roubos, acidentes e ele
pediu o espaço de volta.
Durante um mês, o experimento ficou sem sede, até que, em janeiro
de 2014, conseguiram alugar uma casa maior, com jardim, copa, salão e
outras áreas de convivência, totalizando 300 metros quadrados, também
na Vila Madalena, mas agora na Rua “Laboriosa, 89”, como passou a ser
conhecida a “nova casa”. O economista pagou um ano de aluguel adian-

2 Neste momento, eram cerca de 1500 pessoas circulando na casa, de acordo com Oswaldo Oliveira, que
se baseia no número de usuários do grupo do Facebook.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 71

tado e a arrecadação continuou voluntária com os custos abertos, como


antes, não estando vinculado o uso à contribuição. Mas agora, as contri-
buições podiam ser feitas de várias formas: dinheiro depositado em uma
caixa de acrílico localizada ao lado da porta de entrada, como antes, e
doações mensais feitas por meio do cartão de crédito ou boleto bancário.
O custo mensal da Laboriosa89 também cresceu (totalizava mais de
20 mil reais) e também o número de usuários: o grupo do Facebook possuía
mais de sete mil membros. O funcionamento continuava o mesmo, só
aumentou o número de empreendedores individuais, projetos e empresas
de áreas que vão desde culinária a consultorias, que utilizam o espaço
baseados na auto-organização para fazer reuniões, ministrar oficinas, dar
aulas de yoga, entre outras atividades.
A porta da Laboriosa89 ficava a maior parte do tempo aberta e a
chave sempre ao lado dela, juntamente com os cartões de vários chavei-
ros da região para quem quisesse copiar. Qualquer pessoa podia chegar e
fazer o que quisesse, desde que respeitasse a regra única de “não colocar
a casa em risco”. Quando Oswaldo Oliveira descreveu essas dinâmicas,
durante entrevista, pareceu estranho, mas foi o que um dos autores teve
a possibilidade de constatar na primeira visita à iniciativa: “entrei, andei
por todo o espaço, sentei e usei meu computador para acessar a inter-
net – a senha estava colada na parede. Algumas pessoas entravam e me
cumprimentavam com um sorriso simpático, mesmo eu nunca tendo es-
tado naquele espaço ou as visto antes. Depois de um tempo, encontrei
uma pessoa que, a meu pedido, me apresentou o espaço por ser minha
primeira visita”.
Oswaldo Oliveira, assim como nenhuma das outras pessoas na La-
boriosa89, obtém ou pretende conseguir algum tipo de ganho financeiro
com essa experiência, parecem buscar a existência de um espaço sem
regras fixas e papéis predeterminados, baseado na confiança, no respeito
ao outro e na emergência de um modelo organizativo apoiado em uma
espécie de “cultura do acesso”. Fala-se em “cultura do acesso” levando
72 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

em consideração o fato de que parece existir, em algumas áreas, uma es-


pécie de priorização do acesso em detrimento da propriedade, conforme
defende Jeremy Rifkin (2001) em sua ideia de “era do acesso”3. Parece
uma tentativa de trazer as facilidades de produção e circulação de conte-
údos existentes na internet para o mundo físico.
Nesse sentido vale retomar a ideia de Oswaldo Oliveira que o im-
pulsionou a criar esse experimento: “o que existe é abundância de re-
cursos, não escassez”. Conforme defende o economista britânico Lionel
Robbins (1945), em uma das primeiras definições contemporâneas de
economia e por muitos ainda a mais aceita, essa ciência teria como carac-
terística o estudo das ações humanas resultantes da relação entre as ilimi-
tadas necessidades humanas e os recursos escassos. Assim, a relação entre
“desejos ilimitados” e “recursos limitados” está na base da economia. No
entanto, isso talvez esteja mudando. Se tomarmos como referência o con-
sumo de audiovisual, música e textos por meio de plataformas digitais,
por exemplo, o que parece existir é abundância, não escassez, tendo em
vista que o acesso de alguém a uma música não inviabiliza o acesso de
outra ao mesmo produto digital. Porém, conforme defende Rifkin (2012),
esse fenômeno já muito conhecido está atingindo o “mundo material”,
passando dos “bits aos átomos” devido a outros paradigmas de produção
e consumo que estão emergindo. Isso é visível no campo energético, no
qual “pessoas comuns” estão não apenas consumindo energia de grandes
empresas, mas também produzindo e distribuindo a partir de suas casas
(RIFKIN, 2012). Passar da abundância à escassez não significa a desma-
terialização de um objeto físico, mas alterações nos modelos de gestão e
produção, tal como se observa na Laboriosa89.
Voltando à Laboriosa89, é importante notar que funcionar de acor-
do com outras premissas não significa inexistência de conflitos. Confor-

3 Diz respeito a um momento no qual a utilização do bem, o que ele proporciona, é mais importante do
que a propriedade sobre ele. É importante salientar que falar em “era do acesso” não significa considerar
o surgimento de uma nova sociedade ou de relações que nunca existiram, mas sim que atualmente existe
um ambiente que favorece essa forma de se relacionar com bens e serviços.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 73

me relatou Oswaldo Oliveira, “a abundância resolve o problema da es-


cassez, mas gera o problema da abundância”; pois em uma organização
sem cargos e líderes, na qual cada um faz o que quiser tendo como único
filtro para suas ações seu bom senso, é lógico que surgirão vários confli-
tos, como duas pessoas querendo usar o mesmo espaço simultaneamente.
Em situações como essa, relatou o iniciador da Laboriosa89, a tendência
das pessoas é “voltar à escassez e à centralização”: muitos recorriam a
ele, zangados, para pedir que resolvesse um problema, mas o economista
sempre respondia algo como: sou apenas o iniciador do processo, resol-
vam-se entre si.
Iniciativas como a Laboriosa89 permitem a experimentação de
processos de vinculação pouco usuais, especialmente entre desconheci-
dos: acordos não formais, confiar em estranhos, uso compartilhado de
espaços e objetos, ausência de regulação externa. Tais experiências talvez
“convidem” os que nela estão a existir ou funcionar de outra maneira,
conforme lembrou Oswaldo: “quando você não tem a proteção de um
cargo, nem está inserido em uma hierarquia, você passa a ser somente
você e a oferecer tudo o que sabe fazer” (JORGE, 2014).
Outro modelo de experiência de trabalho compartilhado são os es-
paços conhecidos como Makerspace ou “Fab Lab”: ambientes que funcio-
nam como uma oficina na qual os membros têm acesso a materiais e fer-
ramentas necessárias para a criação de objetos. Em geral, esses espaços
possuem cortadores a laser, impressoras 3D, laboratórios de eletrônica,
oficina mecânica e dependências para se trabalhar com metal, madeira,
têxteis, entre outros recursos. Esses espaços possibilitam a pessoas interes-
sadas em inventar objetos, mas que não têm condições financeiras para
pagar por essa estrutura ou espaço para armazenar máquinas grandes,
terem acesso às condições de produção. Tais ambientes também permi-
tem e estimulam a interação entre “profissionais” e “amadores” para que
possam criar juntos. O modo de funcionamento desses espaços é variado.
Há os que funcionam a partir do pagamento de uma mensalidade prévia
74 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

(como nos espaços de coworking centralizados) e outros que funcionam de


maneira semelhante à Laboriosa89.
Tais espaços de “fazedores”, como são conhecidas as pessoas en-
volvidas nesse modelo de produção, devem ser vistos como parte de um
contexto maior, o chamado “movimento maker”, uma espécie de “braço
tecnológico da cultura do Faça-Você-Mesmo”. Chris Anderson (2012b)
defende que estamos começando uma nova revolução industrial, com
uma diferença: agora as máquinas não vêm para ampliar a produção
em massa, mas para transferir a possibilidade de criar e produzir para
“pessoas comuns”, fora de grandes empresas proprietárias dos meios
de produção. Diante do barateamento e da popularização crescente de
diversas tecnologias, como cortadores a laser e impressoras 3D (que há
cerca de dez anos custavam em torno de um milhão de dólares e hoje é
possível adquirir uma por dois mil), é que Anderson (2012b) defende que
essas possibilidades de produção devem se espalhar a exemplo do que
aconteceu com o computador pessoal nos anos 1980. Anderson lembra
ainda que, no início da computação pessoal, apenas os interessados em
tecnologia tinham um computador em casa e hoje ninguém concebe a
vida sem um; assim como no início dos anos 1990 não estava claro para
que serviria a internet, no entanto, atualmente boa parte das experiências
sociais se baseiam nela (ANDERSON, 2012a). Para ele, assim também
será com objetos como impressoras 3D. Igualmente como aconteceu
com os computadores pessoais, essas impressoras estão cada vez mais
fáceis de manejar, tornando possível que crianças possam desenhar seus
próprios brinquedos no computador e imprimi-los em casa (ANDER-
SON, 2012a).
Essas possibilidades criam outras dinâmicas produtivas, por exem-
plo: a empresa que criou os famosos “Legos” não produz armas de brin-
quedo, mas um colecionador resolveu criar e imprimir armas para seus
bonecos de Lego em sua impressora 3D. A ideia deu certo, ele criou uma
empresa, a BrickArms, e hoje vende essas peças para vários países (AN-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 75

DERSON, 2012a). Além disso, já se fala na possibilidade das empresas


não entregarem fisicamente seus produtos, mas enviarem para que as
pessoas imprimam em casa (ANDERSON, 2012a).
A existência dos espaços makers, os inúmeros produtos que estão
sendo inventados neles4 e os empreendedores que têm investido nesses
modelos de produção5 são fatores que talvez sugiram de fato um tipo de
tendência, conforme defendem Anderson (2012b) e Rifkin (2012).
É importante lembrar que não só a possibilidade de produzir se
amplia, mas também as maneiras de buscar financiamento. O site Qui-
rky.com, por exemplo, funciona assim: qualquer pessoa com a ideia de
um novo produto pode submetê-la no site, que realiza votações entre os
membros para escolher as melhores ideias. As propostas escolhidas serão
elaboradas pelos profissionais do Quirky e divulgadas no site. Assim que o
produto tiver um número determinado de pessoas interessadas, ele será
produzido, com os lucros divididos entre o produtor e quem deu a ideia.
Parece existir aí um tipo curioso de vinculação entre inventor, produtor,
consumidor e financiador.

Últimas considerações
Devido aos limites do ensaio, não foi possível abordar outros
exemplos em cada um dos modelos adotados para pensar os espaços de
trabalho compartilhados. A forma como se desenvolveu a exposição, não
adotando nenhum exemplo específico no primeiro e no último modelos,
e tratando de uma experiência particular no segundo foi a opção que
pareceu mais adequada no intuito de exemplificar e refletir sobre a per-
gunta que move este ensaio.
Conforme foi indicado na introdução, os processos de vinculação
social dizem respeito à constituição de sujeitos. Diante disso, e eviden-

4 Guitarras, carros, drones, robôs, bengalas eletrônicas de baixo custo, entre outros.
5 O próprio Chris Anderson é um exemplo de profissional que largou o antigo emprego (editor-chefe
da revista Wired) para se dedicar a uma empresa fundada por ele para fabricar drones – a 3D Robotics.
76 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

ciando a primeira parte da questão que moveu este trabalho, como são
configurados os sujeitos nessas formas de organização produtiva? Uma
maneira que parece pertinente para visualizarmos esses processos é to-
marmos como exemplo algumas das diferenças que Rifkin (2012) aponta
entre as três revoluções industriais. A primeira teria sido caracterizada
pelas máquinas a vapor, pela imprensa e por modelos produtivos centra-
lizados; a segunda, por máquinas elétricas, broadcasting e também modelos
centralizados; enquanto a terceira, na qual os espaços de trabalho com-
partilhados parecem funcionar, teria como marca a internet, a colabo-
ração e a descentralização da produção, na qual “todos” são potenciais
produtores – conforme é possível notar nos espaços makers.
Cada uma dessas revoluções industriais pode funcionar como uma
figura dos processos de vinculação. Tais processos ocorrem, aqui se en-
fatiza a segunda parte da pergunta que orientou este trabalho, nesses
arranjos entre configurações físicas, espaciais, máquinas, ideias, que fun-
cionam produzindo diferentes experiências de vinculação e, consequen-
temente, de constituição de sujeitos, em cada momento.
No contexto dos espaços de trabalho compartilhados, os sujeitos pa-
recem atuar em um ambiente semelhante ao que Deleuze (2010) chamou
de “sociedade de controle”, na qual nunca se para de trabalhar e nunca
se termina nada. Os espaços de coworking que funcionam 24h e a jun-
ção entre as vidas pessoal e profissional ilustram isso, moldando a forma
como se vive, alterando as relações com o espaço, o tempo, a família, o
lazer, o trabalho e a visão de mundo.
Por outro lado, essas experiências de trabalho compartilhado, ao or-
ganizarem espaços físicos que estimulam a aproximação entre os sujeitos,
especialmente as “casas abertas”, mas não só, podem, talvez, também
indicar possíveis “linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 1995) nesse
cenário de controle. Enquanto as experiências de trabalho “convencio-
nais” são majoritariamente marcadas por comportamentos competitivos
e isolamento, tais espaços talvez criem possíveis “fissuras”, ao manter a
produção, mas de outra forma.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 77

A busca por trabalho com propósito, ligada ao empreendedoris-


mo presente em muitas das pessoas que trabalham nesses espaços com-
partilhados, talvez seja outro indício de fissura. Ao mesmo tempo, esse
ambiente empreendedor é marcado por certa instabilidade advinda dos
contratos temporários e, algumas vezes, informais. Diante disso, para ex-
perimentar essas condições de trabalho, talvez seja necessário segurança
financeira que, em muitos casos, parece vir de famílias com situações
financeiras que permitam a esses sujeitos experimentarem tais modelos
de trabalho.
Em julho de 2015, a Laboriosa89 fechou e em agosto do mesmo
ano outra casa semelhante, no Rio de Janeiro, também mudou seu mo-
delo de funcionamento. O fim dessas iniciativas e os processos que con-
duziram a isso não foram abordados, mais uma vez, por falta de espaço.
Contudo, o fim dessas experiências não parece diminuir a relevância do
fenômeno. Ao observar esses espaços, é curioso notar como as pessoas
envolvidas tentam garantir a existência das casas o máximo possível, mas
sem apego. Elas parecem partir do pressuposto de que outras casas surgi-
rão e também podem desaparecer. Talvez uma das potencialidades dessa
experiência de convivência esteja no não apego a sua perpetuação. As
pessoas envolvidas nessas casas parecem não buscar “chegar a um lugar
específico”, talvez pelo fato de não saberem que lugar seria esse.
Vale dizer ainda que, além do possível movimento de cooptação
que o capitalismo pode promover para se apropriar desses arranjos que
podem ser vistos como alternativos, é necessário atentar também para a
possibilidade das outras formas de organização do trabalho já fazerem
parte elas mesmas de outras formas de produção capitalista. Se a relação
entre tecnologias, capital e modos de saber compõem o capitalismo, o
que diferencia um capitalismo chamado de industrial de uma espécie
de “novo capitalismo” são as tecnologias mentais, afetivas e biológicas
e as “novas” relações de saber, como salienta o filósofo italiano Mau-
rizio Lazzarato (2001). À luz do pensamento de Lazzarato, os espaços
de trabalho compartilhados poderiam ser pensados como ambientes de
78 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

trabalho imaterial no âmbito do que ele chama de capitalismo cognitivo,


um sistema de produção socioeconômico baseado no conhecimento que
deriva da coletividade e das relações cooperativas de produção. Dessa
forma, esses espaços habitariam o lugar da contingência, relações e tec-
nologias de poder e potência, dependendo essencialmente das relações
que os produzem e dos vínculos que deles emergem.

Referências

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ton The New York Times/Latinstock. In: Revista Exame. 01 de dez. de
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DLEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2010.
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EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 79

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MÍDIA E SUJEITOS:
A BUSCA PELAS
REPRESENTAÇÕES
DE AGENTES DA
REDE DE COMBATE
AO TRABALHO
ESCRAVO*
Flávia de Almeida Moura**

* Texto revisado e oriundo de trabalho apresentado no GP Comunicação para a Cidadania do XIVII


Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVIIII Congresso Bra-
sileiro de Ciências da Comunicação.
** É do Departamento de Comunicação Social da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Mestre
em Ciências Sociais e doutora em Comunicação/PPGCOM/PUCRS. Email: flaviaalmeidamoura29@
gmail.com.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 81

Introdução
O presente artigo apresenta parte de uma etapa de pesquisa em cur-
so que busca compreender a participação da mídia, e mais propriamente
da televisão, nas representações (HALL, 2010; 2013) do trabalho escravo
contemporâneo junto a um grupo de agentes de entidades governamen-
tais e não governamentais que compõem a rede de combate ao trabalho
escravo contemporâneo no Maranhão e no Brasil.
No momento, o estudo está sendo desenvolvido por intermédio de
dois planos de trabalhos1 que buscam mapear as principais estratégias
de comunicação (BUENO, 2009) das entidades pesquisadas para ana-
lisarmos suas relações com as representações midiáticas sobre o tema.
Entendemos aqui como estratégias de comunicação o modo como emis-
sores/receptores constroem e dispõem de efeitos de sentido na cadeia de
comunicação. E essas estratégias têm como principal objetivo visibilizar a
temática, formando a opinião pública sobre o assunto a partir da mídia.
Para esta reflexão, trazemos a contribuição de autores que discutem
comunicação de forma abrangente, como é o caso de Cecília Peruzzo
(1998) que entende a comunicação como um espaço de trocas mútuas,
como ferramenta capaz de promover a democracia, como algo indispen-
sável para mobilização de grupos envolvidos com causas sociais.
[...] a comunicação é mais que meios e mensagens, pois
se realiza como parte de uma dinâmica de organização
e mobilização social; está imbuído de uma proposta de
transformação social e, ao mesmo tempo, de construção
de uma sociedade mais justa; abre a possibilidade para a
participação ativa do cidadão comum como protagonista
do processo (PERUZZO, 1998, p.20-21).

1 A pesquisa em curso é financiada pela FAPEMA (Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvi-


mento Tecnológico do Maranhão) e trata-se de um desdobramento da pesquisa doutoral, finalizada em
2015, que realizou um estudo de recepção junto a um grupo de trabalhadores rurais maranhenses que
foram submetidos a condições de trabalho escravo contemporâneo. Participam atualmente do projeto de
pesquisa cinco alunos de iniciação científica que cumprem, em conjunto, dois planos de trabalho – um
para investigar entidades governamentais (MTE, MPT-MA e TRT-MA) e outro, não governamentais
(CPT, Repórter Brasil e CDVDH/CB), descritas no decorrer deste artigo.
82 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Para a realização do estudo em curso, foram escolhidas três enti-


dades governamentais e três não governamentais, que têm uma atuação
na rede de combate ao trabalho escravo tanto no estado do Maranhão
quanto no Brasil. Compõem o primeiro grupo a Superintendência Re-
gional do Trabalho, órgão ligado ao MTE (Ministério do Trabalho e
Emprego), o TRT-MA (Tribunal Regional do Trabalho no Maranhão) e
o MPT-MA (Ministério Público do Trabalho no Maranhão). A escolha
dessas três entidades públicas se justifica pela atuação conjunta em ações
de fiscalização do trabalho escravo com consequentes desdobramentos
legais, como pagamento de verbas rescisórias e processos administrati-
vos. Já, para compor o segundo grupo – de entidades da sociedade civil
– foram escolhidas três entidades, sendo duas com atuação nacional, a
CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a ONG Repórter Brasil; e uma com
atuação estadual, o CDVDH/CB (Centro de Defesa da Vida e dos Direi-
tos Humanos Carmen Bascarán), localizada no município de Açailândia
(MA). Essas três entidades do movimento social apresentam atuação sis-
temática no combate ao trabalho escravo contemporâneo: a CPT, enti-
dade que tem 40 anos e é ligada à igreja católica, desde os anos de 1970
denuncia condições de escravidão contemporânea no Brasil; já a Repór-
ter Brasil, criada em 2001, é responsável por publicizar e pautar a grande
mídia de temáticas relacionadas a trabalho escravo e meio ambiente; por
sua vez, o Centro de Defesa de Açailândia, criado em 1996, denuncia
questões relacionadas a violações de direitos humanos, dentre eles, o tra-
balho escravo contemporâneo, e realiza um trabalho de prevenção junto
às famílias de trabalhadores na região de fronteira entre Pará, Tocantins
e Maranhão há quase 20 anos.
Como o mapeamento das estratégias de comunicação dessas enti-
dades está em curso, apresentamos nesta comunicação uma discussão
teórica e metodológica que embasa esta etapa da pesquisa empírica e
que acumulamos no decorrer dos estudos acerca das representações dos
sujeitos a partir da mídia. Nas considerações finais, apontamos alguns
caminhos sobre os olhares dos agentes das entidades investigadas acerca
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 83

das representações midiáticas do trabalho escravo contemporâneo e os


tratamos como resultados preliminares desta pesquisa em andamento.

Mídia como instituição social


Vivemos em um mundo saturado pela mídia (SILVERSTONE,
2002) e a sua presença faz parte do processo social. Concebemos a mí-
dia, portanto, como instituição social, constituinte da sociedade contem-
porânea.
Nesta perspectiva, entendemos a mídia como um tipo de institui-
ção, capaz de formar uma rede que ocupa uma determinada posição na
constituição da sociedade através da qual acessa o mundo social como
um todo.
A mídia, portanto, faz parte da sociedade. É a partir desta perspec-
tiva que a concebemos nesse estudo e entendemos ser mais interessante
olharmos o fenômeno a partir dos sujeitos que o compõem. Dessa forma,
entendemos a mídia como uma instituição constituinte da vida cotidiana
desses sujeitos (ESCOSTEGUY, 2013).
Neste momento, interessa-nos considerar a partir de quais perspec-
tivas tratamos a mídia, bem como explicitar quais pontos de partida tra-
çamos para analisar o fenômeno midiático, que concebemos fazer parte
do cotidiano dos sujeitos entrevistados.
Concordamos com Silverstone (2002) ao afirmar que a mídia, ape-
sar de sua diversidade e sua flexibilidade, ainda se apresenta como uma
forma dominante de comunicação, capaz de constranger culturas locais,
mesmo que não as subjugue. Acreditamos, neste sentido, que a mídia
participa da constituição das representações sobre trabalho escravo con-
temporâneo junto ao grupo estudado. E esta participação tem relevância
para esses sujeitos pesquisados, agentes de entidades governamentais e
não governamentais, que compõem a rede de combate ao trabalho escra-
vo no Maranhão e no Brasil.
É interessante pensarmos nesta perspectiva proposta pelo autor,
uma vez que muitos grupos sociais acabam pautando suas vidas a partir
84 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

do que a mídia oferece como notícia ou mesmo como entretenimento.


No caso da televisão, isso fica bem evidente principalmente devido à ca-
pilaridade que essas informações alcançam, uma vez que este veículo ain-
da lidera os rankings de audiência da cultura de massa. Por isso, buscamos
entender antes as estratégias de comunicação dessas entidades que visam
a esse relacionamento com a mídia para, em seguida, compreender as
representações desses sujeitos a partir de materiais midiáticos, principal-
mente da televisão e em algumas experiências da internet.
Ao estudarmos a mídia, estamos lidando com seres humanos e suas
comunicações, com linguagem e fala, com o dizer e o dito, com reconhe-
cimento e mau reconhecimento e com a mídia vista como intervenções
técnicas e políticas nos processos de compreensão (SILVERSTONE,
2002, p. 19).
O autor propõe estudar a mídia como dimensão social e cultural,
mas também política e econômica; estudar sua onipresença e sua com-
plexidade, como parte da “textura geral da experiência”. Procuramos en-
tender como a mídia participa da vida social e cultural contemporânea.
Investigamos quais as formas desta participação no caso das representa-
ções do trabalho escravo contemporâneo. E, para isso, examinamos a mí-
dia como processo, “como uma coisa em curso e uma coisa feita”, isto é,
como uma instituição capaz de constituir representações e também ope-
rar a partir de representações já construídas em outras instâncias sociais.
Tratamos nesse estudo de uma nova realidade midiática (e a mídia
como espaço de repercussão e criação de acontecimentos), que incide
na configuração e dinâmica da realidade de nossa vida cotidiana, e na
forma de convivência e atravessamento entre as múltiplas realidades que
compõem o mundo da vida.
(...) a mídia faz parte da sociedade, está inserida nela
como estão os postos de saúde, as defensorias públicas, os
estádios esportivos, por exemplo. É uma das instituições
da sociedade, e congrega os múl­tiplos dispositivos através
dos quais essa sociedade produz e faz circular suas infor-
mações e representações. De resto, a mídia constitui talvez
a instituição que melhor caracteriza o cenário contempo-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 85

râneo; a face da nossa sociedade, nosso comportamento,


nossas ações são hoje o que são porque dispomos de tais
meios, espaços, instrumentos para nos informarmos, nos
exprimirmos, formatarmos nossas ações e nosso cotidia-
no. A mídia é o espaço privilegiado no qual a sociedade
fala consigo mesma, a propósito de si mesma (FRANÇA,
2012, p. 11-12, grifo nosso).

Como nos aponta Silverstone (2002), a mídia depende do “senso


comum”2. “Ela o produz, recorre a ele, mas também o explora e dis-
torce”. (SILVERSTONE, 2002, p. 21). Nos interessamos por esse sen-
so comum, pensado como um contínuo, que requer nossa participação
ativa, entendido tanto como expressão quanto como “precondição da
experiência”. É no mundo mundano que a mídia opera de maneira mais
significativa. Ela filtra e molda realidades cotidianas por meio de suas re-
presentações singulares e múltiplas, fornecendo critérios, referências para
a condução da vida diária, para a produção e a manutenção do senso
comum (SILVERSTONE, 2002, p. 20).
Entendemos, neste contexto, que a mídia pode participar do sen-
so comum dos agentes investigados, uma vez que a concebemos como
uma instituição social que contribui para a experiência dos indivíduos
na sociedade, ou seja, uma instância capaz de propor representações de
grupos sociais que consomem, de alguma forma, esses produtos midi-
áticos. A experiência, tanto a mediada quanto a da mídia, exprime-se
no social, nos discursos, nas representações, nas falas e nas histórias de
vida cotidiana.
Concebemos, portanto, a mídia como um processo de mediação,
que envolve o movimento do significado de um texto para outro; de um
discurso para outro; de um evento para outro. Neste sentido, acredita-
mos que os receptores contribuem na produção e que mediação é tanto
produção e sentido – pelo contexto cultural saturado de textualidades
midiáticas em circulação – quanto tradução, relacionado à ação huma-

2 O conceito utilizado por Silverstone (2002) é de perspectiva gramsciana.


86 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

na; a um posicionamento ativo.


A circulação de significado, que é a mediação, é mais do
que um fluxo em dois estágios – do programa transmitido
via líderes de opinião para as pessoas na rua -, como Katz
e Lazarsfeld (1955) defenderam em seu estudo seminal,
embora ela apresente estágios e realmente flua. Os signifi-
cados mediados circulam em textos primários e secundá-
rios, através de intertextualidades infindáveis, na paródia
e no pastiche, no constante replay e nos intermináveis dis-
cursos, na tela e fora dela, em que nós, como produto-
res e consumidores, agimos e interagimos, urgentemente
procurando compreender o mundo, o mundo da mídia, o
mundo mediado, o mundo da mediação (SILVERSTO-
NE, 2002, p. 34).

Martín-Barbero (1995) destaca a importância desses estudos da vida


cotidiana reintroduzirem uma velha e importante categoria já tratada
por nós neste trabalho. Trata-se da categoria gramsciniana de “senso
comum” no sentido de qualquer cidadão como sendo um filósofo, um
intelectual, que faz perguntas porque pensa, duvida, questiona, no sen-
tido diverso do senso comum. Neste ponto, chamamos a atenção para
a importância de repensar a produção cotidiana de sentidos do ver, do
gostar, do “sentido comum”.
Acreditamos, por outro lado, que sujeitos ordinários, e aqui nos re-
ferimos aos próprios trabalhadores que são submetidos a condições de
trabalho escravo contemporâneo3, são capazes de produzir suas próprias
representações, bem como as representações sobre o trabalho escravo
e, consequentemente, produzir sentidos distintos de como a mídia os
aborda, embora possam se identificar com alguns pontos tratados. En-
tendemos que, nestes casos, os sentidos podem variar também de acordo
com a forma de abordagem das reportagens. Por exemplo, quando há
uma narrativa jornalística que destaca as dificuldades de acesso aos lo-
cais fiscalizados. Para muitos trabalhadores, estradas de terra e precárias
condições de transporte fazem parte de uma rotina e, dessa forma, essas
3 O relato da pesquisa doutoral sobre olhares de trabalhadores rurais maranhenses acerca do trabalho
escravo a partir da mídia pode ser encontrado nos Anais do INTERCOM 2015, sob minha autoria.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 87

condições podem ser menos enfatizadas na perspectiva desses sujeitos em


detrimento da mídia.
Neste ponto, temos de levar em consideração sempre o contexto de
quem está recebendo as informações. Para Martín-Barbero (1995), a re-
cepção não é apenas uma etapa do processo de comunicação. Trata-se de
um lugar novo, de onde devemos repensar os estudos e a pesquisa em Co-
municação; de onde devemos pensar todo o processo de comunicação.
Para ele, a proposta do processo de comunicação e do meio não está nas
mensagens, mas nos modos de interação que o próprio meio transmite
ao receptor. Assim, concordamos quando o autor defende “a recepção
como um espaço de interação”.
Essas considerações nos alertam para não idealizarmos o grupo
social estudado e tentarmos trazer as suas representações como “reais”
ou “verdadeiras”, em detrimento de outras “forjadas” ou “falsas”, en-
contradas na mídia. O que nos propomos estudar a partir da mídia diz
respeito a um modo mais amplo de interagir não só com as mensagens,
mas com a sociedade, com outros atores sociais, e não só com os aparatos
midiáticos. Estamos interessados, dessa forma, mais com a circulação da
significação do que com a significação do texto televisivo como estrutura,
como linguagem, por si mesmo.
Neste contexto, o conceito de mediações4 (MARTÍN-BARBERO,
2001) nos interessa, uma vez que trata de um conjunto de influências
que estrutura, organiza e reorganiza a percepção da realidade em que
está inserido o receptor, tendo poder também para valorizar implícita
ou explicitamente esta realidade. As mediações produzem e reproduzem
os significados sociais, sendo o “espaço” que possibilita compreender as
interações entre a produção e a recepção (JACKS, 1996).

4 A obra “Dos Meios às Mediações”, publicada em 1987, é revisitada pelo autor no ano de 1997, mo-
mento em que ele propõe que o título seja invertido, resultando em “Das Mediações aos Meios”, indican-
do a necessidade, a partir da perspectiva econômica-cultural das novas tecnologias, de que os meios sejam
levados em conta na constituição das políticas culturais, a fim de que se enfrente o efeito dessocializador
do neoliberalismo e se insira a indústria cultural no contexto econômico e político das regiões dos países
latino-americanos.
88 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Pensar as mediações neste trabalho é deslocar a atenção dos estudos


das mensagens (como o caso de propor técnicas de análises de textos
midiáticos para entender a representação da televisão sobre o trabalho
escravo) para os significados sociais das mesmas junto ao grupo de agen-
tes sociais investigados.
Interessamo-nos pela socialidade (ou sociabilidade) que Martín-Bar-
bero (2001) trata como uma das “entradas” para as mediações5, uma vez
que diz respeito às relações cotidianas, nas quais se baseiam as diversas
formas de interação dos sujeitos e a constituição de suas identidades. Ela
conecta a tradição cultural com a forma como os receptores se relacio-
nam com a cultura massiva.

Televisão como forma cultural


No mesmo sentido em que concebemos a mídia como uma insti-
tuição social, compreendemos a televisão como uma tecnologia e como
uma forma cultural, nos termos de Raymond Williams (1997). A televi-
são é, portanto, uma construção social no sentido de que se desenvolve
em um contexto econômico, social e cultural particular e cumpre funções
fundamentais nessa formação. Ela não se configura somente a partir de
possibilidades tecnológicas, mas na sua combinação com as condições
históricas, sociais, econômicas e culturais.
Neste sentido, falar de televisão no Brasil é falar da própria cultura
brasileira. Ortiz (2001) afirma que a televisão se concretiza como veículo
de massa no país em meados dos anos 60, consolidando um mercado de
bens simbólicos e culturais. Para o autor, o desenvolvimento da televisão é
o que melhor caracteriza o advento e a consolidação da indústria cultural
5
Para o autor, a “entrada” para esses três lugares de práticas sociais; as mediações, podem se dar pela so-
cialidade (ou sociabilidade), ritualidade e tecnicidade. A primeira diz respeito à apropriação cotidiana da
existência fora da ordem da razão institucional, cuja dinâmica tem a capacidade de fissurar o sentido he-
gemônico através da multiplicidade de modos e sentidos que se dão nas interações sociais. A segunda trata
da forma que adquire a sociabilidade para garantir a repetição e a operacionalidade, na busca do sentido.
A terceira, a tecnicidade, é o “organizador perceptivo” que articula as inovações à discursividade nas
práticas sociais, cuja dinâmica tem materialidade histórica. Isto é, a técnica é dimensão constitutiva da co-
municação, a qual transforma as práticas sociais originando novas formas de sociabilidade (JACKS, 1996).
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 89

no país. E, se há um lugar no qual se configura a circulação mundializada


da cultura e, simultaneamente, o crescimento das afirmações locais, este
lugar é o da televisão.
Mais de cinquenta anos depois, em meio a tantas transformações
tecnológicas com a internet e as possibilidades de transformação da co-
municação de massa com as outras telas, a televisão se porta ainda como o
principal veículo de informação e entretenimento para grande parcela da
população brasileira. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras
por Domicílio), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), em 2013, 97,2% das residências brasileiras possuíam apare-
lhos de televisão, conforme pode ser visto em gráfico e quadro abaixo:  

Gráfico 1 - Domicílios Brasileiros (%) com acesso às TICs


(Tecnologias de Informação e Comunicação)

Fonte: PNAD/IBGE (2013)


90 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Quadro 1 – Evolução da penetração das TICs por ano

Fonte: PNAD/IBGE (2013)

Esta realidade também é encontrada em municípios do interior do


Maranhão, local de origem e residência dos trabalhadores submetidos
a condições de escravidão contemporânea e também de agentes sociais
que compõem a rede de combate ao trabalho escravo no estado. Segun-
do a PNAD (2013), o estado do Maranhão, embora seja um dos maiores
em extensão territorial do nordeste brasileiro, destaca-se pela baixa aqui-
sição de bens duráveis em relação aos outros estados da mesma região.
Entretanto, em 2013, 87,3% dos domicílios maranhenses possuíam apa-
relhos de televisão.
De acordo com o Anuário de Mídia (IBOPE, 20096), a participação
de audiência entre as redes de televisão de sinal aberto no Brasil, em
relação ao total de aparelhos ligados, aponta que 47,92% dos brasileiros
estão mais ligados na Rede Globo; enquanto 15,70%, no SBT; 14,33%,
na Record; 5,19%, na Rede Bandeirantes; 2,45%, na Rede TV; 1,90%,
em redes públicas; sendo 12,51%, em outras emissoras.
A média por estados da federação acompanha a mesma lógica e,
segundo dados da Telecom (2010), os dois primeiros canais que apare-
cem no ranking de audiência, Globo e SBT, estão presentes nos 27 estados

6 As informações foram retiradas do site do IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística).
Disponível em www.ibope.com.br. Acesso em: 11/11/2014.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 91

brasileiros e no Distrito Federal. Enquanto a Record está presente em 21


estados; a TV Bandeirantes, em 20; a TV Cultura, em 12, e a Rede TV,
em 11 estados brasileiros. No Maranhão, as quatro principais emissoras
líderes de audiência possuem afiliadas e/ou emissoras locais que transmi-
tem parte da programação nacional.
No Brasil, o sistema central de mídia é estruturado a partir das redes
nacionais de televisão. Mais precisamente, os conglomerados que lideram
as cinco maiores redes privadas (Globo, Band, SBT, Record e Rede TV)
controlam, direta e indiretamente, os principais veículos de comunicação
no país. Este controle não se dá totalmente de forma explícita ou ilegal7.
Em relação à penetração de audiência por meios, a TV aberta con-
tinua liderando, com 95,8%. O rádio surge na segunda posição, com
71,3%, seguido pela internet, com 60,4%. Na quarta, quinta e sexta
posições, temos, respectivamente, TV paga (44,4%), jornal (40,4%) e
revista (31,6%)8.
Talvez a sedução pela imagem pontue e mobilize, de muitas for-
mas, a vida e as ações de milhares de pessoas. “A televisão faz parte,
enfim, da vida nacional. Ela está presente na estruturação da política,
da economia e da cultura brasileiras” (RIBEIRO; SACRAMENTO;
ROXO, 2010, p.34).
Partimos do pressuposto de que a televisão tem inúmeras faces e
guarda estreita relação com a vida social, da qual, aliás, faz parte e de
cuja dinâmica participa.
Fazendo parte do tecido social, e como uma de suas ins-
tâncias, a TV acompanha seus movimentos e tendências,
é instrumento de veiculação de suas normas e valores,
mecanismo de reprodução e manutenção da ordem do-
minante. Instância ativa, lugar de expressão e circulação
de vozes, do cruzamento de representações e cons-
tituição de novas imagens, a televisão é também um vetor

7 Disponível em: www.donosdamidia.com.br Acesso: 11/11/2014.


8 Dados do Ibope Media – Target Group Index – ano 14, jul. 12-ago. 13, retirados do Anuário OBITEL
(Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva), 2013.
92 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

de dinamismo e modificação do seu entorno (FRANÇA,


2012, p. 30, grifo nosso).

Mais do que tratar de modelos de televisão, nosso interesse versa


em perceber traços, tendências e características que estão na televisão e
estão na vida da sociedade, conforme apontado pela autora. Buscamos
aqui, ao justificar a escolha pela televisão dentre as outras mídias para a
realização deste estudo, problematizar as relações que existem entre esse
texto televisivo escolhido e os sujeitos pesquisados, inseridos no contexto
da realidade brasileira, que se apresenta com uma cultura voltada para o
consumo da televisão.
Segundo John Fiske (1991), em Television Culture, por ser popular, o
texto da televisão tem que ser lido e apreciado por uma diversidade de
grupos sociais, de modo que seus significados sejam capazes de ser flexio-
nados em um número de maneiras diferentes.
O texto da televisão é, portanto, mais polissêmico e mais
aberto do que os teóricos anteriores permitiram. (...) Isso
significa que a leitura não é uma coleta dos significados do
texto, mas é um diálogo entre o texto e o leitor socialmente
situado9 (FISKE, 1991, p. 66).

No contexto brasileiro, esse “leitor socialmente situado”, ao qual o


autor se refere, consome mais televisão em detrimento de outras mídias,
conforme o indicado anteriormente em dados atualizados, apresentados
pelo IBGE.
A inclusão de novos temas na televisão, a partir dos anos 90, como
o caso estudado nesta pesquisa, com a temática do trabalho escravo con-
temporâneo, põe em movimento outras mediações da recepção, enten-
didas como diferentes instâncias culturais em que o público das mídias
produz e se apropria do significado e do sentido do processo comunicati-
vo (MARTÍN-BARBERO & REY, 2001).

9 “The television text is therefore more polysemic and more open than earlier theo-
rists allowed for. (...) This means that reading is not a garnering of meanings from the
text but is a dialogue between text and the socially situated reader”.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 93

Nesta perspectiva, Orozco (1996) entende as mediações como um


“processo estruturante”, que configura e reconfigura tanto a interação
dos membros da audiência com a televisão como a criação por eles do
sentido desta interação. No caso estudado, acreditamos que a temática
do trabalho escravo vista pela televisão pode ser capaz de colocar os
sujeitos investigados neste estudo em situações mais próximas à sua co-
tidianidade.
As temáticas dos direitos humanos, em geral, ganham força na mí-
dia brasileira a partir dos anos 90, principalmente influenciadas pela
pressão de movimentos sociais de publicização das questões de violação
de direitos e as consequentes respostas do governo. Notamos este fato nas
questões do trabalho escravo, principalmente a partir do reconhecimento
do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1995, de que no
país havia escravidão contemporânea. Neste mesmo ano, o MTE (Mi-
nistério do Trabalho e Emprego) iniciou uma ação de fiscalização rural
específica para trabalho escravo, criando o grupo móvel e envolvendo
auditores fiscais de vários estados da federação numa espécie de força-
-tarefa numa tentativa de repressão desta prática.
A Constituinte de 1988 e os seus desdobramentos nas questões de
cidadania, bem como na concepção da dignidade da pessoa humana
também fazem parte desse processo, como, por exemplo, da criação do
ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), em 1992, que versa sobre
trabalho infantil, indicando caminhos de repressão desta violação de di-
reitos também de crianças e adolescentes.
A contribuição da mídia nesse processo de ressignificação dos direi-
tos humanos no Brasil pode ser exemplificada pelo próprio tratamento
dado a esses temas em coberturas jornalísticas televisivas, dando sentido
a um processo comunicativo capaz de criar instâncias culturais de recep-
ção, como afirmam Martín-Barbero e Rey (2001).
Segundo relatório da OIT (2011), nos anos 2000 houve um aumen-
to considerável do tema trabalho escravo na imprensa brasileira. Segun-
94 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

do o estudo, este aumento não é apenas quantitativo, mas a mídia tem


impacto direto no combate ao trabalho escravo, tanto no sentido de cons-
cientizar para o problema quanto de defender os agentes que lutam para
erradicar essa prática.

Considerações finais
Buscamos entender nesse estudo de que formas a mídia, e mais pro-
priamente a televisão, participa das representações dos agentes da rede
de combate ao trabalho escravo no Maranhão e no Brasil. E para isso,
buscamos analisar primeiramente as estratégias de comunicação dessas
entidades governamentais e não governamentais para, depois, relacioná-
-las com as representações midiáticas sobre a temática. Para isso, iremos
escolher um corpus documental formado por, no máximo, dez reporta-
gens veiculadas em canais comerciais e abertos da televisão brasileira nos
últimos cinco anos.
Sabemos que representantes dessas entidades são as principais vozes
que aparecem na mídia sobre o tema. Em conversas informais durante
trabalho de campo com alguns agentes de entidades da sociedade civil,
como o caso do Centro de Defesa de Açailândia, em geral, eles afirma-
ram que as reportagens televisivas dão visibilidade ao problema e, de
alguma forma, legitimam o trabalho de denúncia realizado pelo movi-
mento social.
Entendemos essas afirmativas aqui como algo preliminar, que será
analisado e sistematizado no decorrer das entrevistas de pesquisa. Mas
trazemos aqui algumas impressões desses sujeitos. Na ocasião da conver-
sa, realizada em dezembro de 2015, eles relataram o caso de um traba-
lhador que, após ter assistido a uma reportagem sobre trabalho escravo,
tomou coragem e denunciou as condições similares em que viveu em
fazenda de gado em Açailândia (MA).
A principal crítica dos representantes do movimento social feita
em relação às representações midiáticas sobre o trabalho escravo está
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 95

na superficialidade com que são tratados os casos, em geral, de forma


pontual, nos momentos de fiscalização. Segundo eles, não há discussão
de questões estruturais, como as fundiárias e judiciais, isto é, as causas e
as consequências do problema, que para eles centram-se na ausência de
políticas públicas básicas para os trabalhadores e na impunidade dos que
cometem o crime de trabalho escravo, no caso do Maranhão, principal-
mente, os latifundiários.
Os agentes da CPT e da ONG Repórter Brasil também apontaram
recortes feitos na edição de algumas reportagens veiculadas em televi-
são comercial aberta em 2015. Neste sentido, segundo eles, as informa-
ções tendem a ser “genéricas”. Como eles já foram muito entrevistados,
afirmaram que sempre ficam com a sensação de que a “imprensa não
aborda os fatos como eles são”; principalmente porque “recolhem um
grande número de informações que depois não são aproveitadas”. Um
exemplo recorrente é com relação à vida dos trabalhadores após o resga-
te, bem como seus anseios e sonhos em dar continuidade a uma trajetória
de trabalho de forma digna, enfrentando problemas de (re)inserção no
mercado de trabalho devido tanto a questões estruturais como a falta de
políticas públicas; quanto pessoais, como é o caso dos sujeitos que sofrem
sequelas físicas e psicológicas decorrentes do trabalho escravo e que, mui-
tas vezes, não são indenizados por isso.
Os dados preliminares que trazemos para esta comunicação são de
agentes de entidades da sociedade civil. Sobre as entidades públicas, ainda
não tivemos a oportunidade de conversar pessoalmente com seus repre-
sentantes a respeito de suas relações com a mídia, mas pelo levantamento
preliminar (documental) da pesquisa, esses sujeitos são as principais vozes
que aparecem na mídia, principalmente em reportagens que tratam da
fiscalização realizada por auditores fiscais do MTE e procuradores do
trabalho do MPT. Em trabalhos anteriores, constatamos que essas vozes
são as mais legitimadas hoje pela televisão para falar sobre a temática,
além de serem os principais mediadores entre o Estado e os trabalhado-
res que são submetidos a condições de trabalho escravo contemporâneo.
96 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

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QUEM DEFINE O
QUE É OU NÃO
É A IDENTIDADE
BRASILEIRA?: UMA
REVISÃO CONCEITUAL
SOBRE CULTURA
POPULAR À LUZ DOS
ESTUDOS CULTURAIS
Letícia Conceição Martins Cardoso*

* Professora do Departamento de Comunicação da UFMA (Universidade Federal do Maranhão). Gra-


duada em Comunicação e Letras. Doutora em Comunicação pela PUCRS. Coordenadora do Projeto
de Pesquisa “Metodologias de Pesquisa em Estudos Culturais: olhar comunicacional sobre as culturas
populares no Maranhão”, financiando pela FAPEMA. E-mail: leticiaufma@gmail.com.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 99

Introdução
Este é um recorte do nosso estudo de doutorado1, no qual investi-
gamos o Bumba meu boi do Maranhão como um processo completo e
complexo de comunicação, a partir dos Estudos Culturais. Com a refe-
rida tese, construímos um protocolo teórico-metodológico, baseado na
teoria das mediações latino-americana (MARTÍN-BARBERO, 2008),
capaz de empreender análises comunicacionais sobre objetos de culturas
populares - e não apenas sobre objetos ligados aos meios de comuni-
cação, aos suportes midiáticos e tecnológicos. A proposta foi operar o
mapa das mediações para compreender o processo de comunicação do
grupo cultural Bumba meu boi de Maracanã, identificando as instâncias
da produção, da circulação e do consumo desta prática cultural num
contexto de cultura e política no estado.
Extraindo dessa discussão maior os elementos para a construção
deste artigo, temos aqui o objetivo de revisitar a questão da identidade
nacional, tomando o caso do Bumba meu boi, entre outras expressões
populares, a fim de discutir antigas e novas configurações teóricas sobre o
conceito de “cultura popular”, o que leva a pensar também no processo
de implantação das políticas públicas de cultura no Brasil.
Primeiramente, buscamos evitar o estudo da cultura popular de for-
ma essencialista e universalizante, como se houvesse apenas uma cultu-
ra popular que abarcasse todas as práticas culturais oriundas do povo.
Sobre essa problemática, Canclini (1983) adverte que o termo “cultura
popular”, no singular, não dá conta de traduzir a multiplicidade de sen-
tidos possíveis nos processos culturais gerados pelo povo, entidade não-
homogênea, ao contrário do que pressupõem as teorias do Estado-nação.
Assim, não caberia determinar «a cultura popular» de um país, de uma
região, mas identificar culturas populares que traduzem os sentidos da

1 CARDOSO, Letícia Conceição Martins. As mediações no Bumba meu boi do Maranhão: uma pro-
posta metodológica de estudo das culturas populares. 2016. 268 f. Tese. (Doutorado em Comunicação).
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
100 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

existência de grupos sociais, de coletividades. Contribuindo para essa li-


nha de pensamento, por sua vez, Martín-Barbero (2005, p. 68) afirma que
“não é possível ser fiel a uma cultura sem transformá-la, sem assumir os
conflitos que toda comunicação profunda envolve”, sugerindo uma per-
cepção sobre as culturas populares dinâmica, antropológica e relacional.
A questão das culturas populares e das identidades culturais na
América Latina é rica de uma vasta memória política (MATTELART,
2004, p. 142). No Brasil, já nos anos 1960, Paulo Freire trabalha com a
“pedagogia do oprimido” remetendo a uma reflexão sobre os elemen-
tos de resistência historicamente contidos nas culturas populares. Re-
nato Ortiz desenvolve estudos sobre “moderna tradição brasileira” e a
globalização do “internacional-popular” nos anos 1980. Além disso, as
contribuições de Jesús Martín-Barbero (“mediações”) e de Néstor García
Canclini (“hibridismo cultural”) tornam-se fundamentais no campo da
Comunicação e da Cultura para a institucionalização da pesquisa sobre
as culturas populares no Brasil, que se estruturou ainda submetida ao
regime totalitário e desenvolveu-se na transição democrática.
Segundo Martín-Barbero (2008, p. 289), vários fatores contribuí-
ram para o desenvolvimento de relações entre os campos da cultura e
da política na América Latina. Entre eles: a) as experiências marginais
de resistência e oposição nos países de regimes autoritários (grupos de di-
reitos humanos, comunidades cristãs, movimentos artísticos); b) o fato de
que a coerção dos regimes militares estava aliada a mecanismos de trans-
formação do imaginário, de fabricação de símbolos e novas formas de
convivência social; c) e a cultura que, com a escolarização e propagação
dos meios de massa, colocou-se no centro da cena política e social. Esses
fatores se desenvolveram de formas peculiares em cada país. No Brasil,
vários elementos de identidade étnica, oriundos de classes populares, fo-
ram apropriados pela política, o que aconteceu com o Bumba meu boi,
também acionado como fonte para a construção da identidade nacional/
regional, num jogo de disputas e apropriações com a política.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 101

Intelectuais e Estado: disputa pela definição


de cultura popular
A compreensão do sentido do “popular” nos dias atuais requer a
contextualização dos estudos existentes a seu respeito, pois a produção
científica e intelectual, de um lado, e as culturas vividas, de outro, influen-
ciam-se e integram um mesmo processo social.
[...] o popular não se define por uma essência a priori, mas
pelas estratégias instáveis, diversas, com que os próprios
setores subalternos constroem suas posições, e também
pelo modo como o folclorista e o antropólogo levam à
cena a cultura popular para o museu ou para a academia,
os sociólogos e os políticos para os partidos, os comunicó-
logos para a mídia. (CANCLINI, 2011, p. 23)

É muito pertinente a avaliação de Canclini ao chamar a atenção


para o papel dos pesquisadores na configuração do que conhecemos por
“popular”. De acordo com levantamento realizado para esta pesquisa, os
estudos de cultura popular no Brasil receberam marcada influência, além
do campo político, dos pressupostos ideológicos e das visões de mundo do
Movimento Modernista (1920-1930) e do Movimento Folclórico Brasilei-
ro nos anos 1950.
Como registrou Canclini (2011, p. 207), na América Latina, o po-
pular não é o mesmo “quando é posto em cena pelos folcloristas e antro-
pólogos para os museus (a partir dos anos 20), pelos comunicólogos para
os meios massivos (desde os anos 50), e pelos sociólogos políticos para o
Estado ou movimentos de oposição (desde os anos 70)”.
O processo de assimilação do Bumba meu boi e outras ma-
nifestações populares pela sociedade brasileira, a exemplo
do samba, do carnaval, do reisado, do tambor de crioula,
foi desencadeado por dois fatores fundamentais ligados à
construção de uma identidade nacional/regional para o
país, como estudado em pesquisa anterior (CARDOSO,
2008): a) o trabalho de pesquisa e registro dos folcloristas e
estudiosos da cultura popular no Brasil, a partir dos anos
1920; b) e estratégias políticas oficiais de difusão e divul-
gação das culturas populares associando-as à imagem do
102 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Estado, ou seja, a manipulação de símbolos étnicos pelo


Estado para a criação de símbolos nacionais (CARDOSO,
2016, p.).

Como lembra Strinati (1999, p.20), a ideia moderna de cultura po-


pular está associada às primeiras formas de consciência nacional no final
do século XVIII na Europa, que consistiu numa tentativa dos intelectuais
de transformar a cultura popular em cultura nacional. De acordo com
Raymond Williams (1992 apud STRINATI, 1999) houve uma mudança
de perspectiva sobre a noção de cultura popular do século XVIII para
o XIX: popular era o que podia ser tomado do ponto de vista do povo.
Com o passar do tempo, o popular foi interpretado como “um tipo in-
ferior de trabalho” ou ainda como “uma obra deliberadamente agradá-
vel”. Mais tarde, vigorou outro significado: “coisa apreciada por muitos”.
E, a acepção mais recente é a de “cultura feita pelo próprio povo”, que é
muito confundida com o folclore2.
Num contexto de profundas transformações nos modos de orga-
nização social, de produção e de circulação do capital ocasionadas pela
industrialização, as sociedades modernas do século XIX assistem à cres-
cente substituição da vida no campo pelas cidades, solidariedades tradi-
cionais pelas relações contratuais, dos laços familiares pela impessoalida-
de. Nesse ambiente, a tradição parece atropelada pela modernidade, o
que levou artistas e intelectuais europeus da época a demarcar o espaço
da tradição, numa “busca pelo elo perdido” das raízes culturais da na-
ção, retomando o passado. Com forte apelo preservacionista, portanto,
surgem os primeiros estudos sobre o folclore. Aliada a essa inquietação,

2 Teixeira Coelho retoma a Carta do Folclore Americano para definir o termo: “conjunto de bens e
formas culturais tradicionais, predominantemente de caráter oral e local, e que se apresentam inalteráveis
em seus modos de apresentação”. No entanto, apesar de entender o folclore como depositário privilegiado
da identidade de cada país e núcleo central de seu patrimônio cultural, o autor discorda que ele corra
perigo diante dos meios de comunicação que promoveriam, segundo os folcloristas, a desintegração desse
patrimônio e a perda da identidade dos povos. Para Teixeira Coelho, não se trata mais apenas de formular
programas de preservação de tradições arcaicas, supostamente inalteradas, mas de examinar as interações
entre o folclore e os demais modos culturais modernos e determinar suas atuais funções na dinâmica
cultural. (COELHO, 1997, p.176).
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 103

os intelectuais brasileiros que iniciaram estudos sobre o folclore no final


do século XIX se faziam outra pergunta, diretamente ligada à questão da
identidade nacional: “quem somos, afinal?”, o que motivou e ainda hoje
motiva muitos estudos sobre cultura em nosso país.
A conquista da autonomia política da colônia em relação a Portugal
em 1822 e a força do movimento abolicionista na segunda metade do sé-
culo XIX no Brasil repercutem na busca de uma identidade para o (novo)
Estado Nacional Brasileiro. Ao que parece, a tentativa de legitimar-se
como país autônomo, de conhecer suas próprias origens, de encontrar
uma unidade nacional, em meio a tantas transformações, eleva as tra-
dições populares a objeto de inspiração e de análise de intelectuais. A
cultura popular, neste momento, é percebida a partir de uma assimilação
de elementos étnicos e atrelada à ideia de constituição do Estado-Nação.
As produções científicas e/ou literárias de Celso Magalhães, Aluísio de
Azevedo, Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha foram
decisivas nessa tentativa de construir um modelo de identidade nacio-
nal brasileira que contemplasse a nova realidade social, com elementos
“autênticos”, “reais” e “originários” do Brasil, mas de modo diferente do
ufanismo romântico (que idealizava o índio segundo padrões estéticos
europeus medievais, a exemplo de O Guarani, de José de Alencar, expo-
ente da corrente indigenista na literatura romântica). Gradualmente, a
identidade do Brasil pensada por esses intelectuais passa a ser produto da
mestiçagem de três “raças”: a branca, a negra e a índia.
Na primeira metade do século XX, o crescimento da urbanização e
da industrialização, o surgimento do proletariado urbano e consequente
desenvolvimento de uma classe média inserem o país no processo capita-
lista. Essas transformações estruturais serão refletidas no campo artístico-
-cultural, dando continuidade ao projeto identitário para o país, mas sob
novas perspectivas.
A partir de 1922, o debate sobre cultura popular passa a despertar
o interesse da sociedade letrada, quando, com o objetivo de discutir a
identidade e a cultura nacional e os rumos das artes, artistas e intelectuais
104 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

organizam no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Mo-


derna – marco do movimento modernista no Brasil – que representou
uma abertura para que o país acompanhasse o mundo culturalmente
e buscasse as veias de uma concepção de cultura direcionada para suas
origens étnicas (CARDOSO, 2008).
Para os modernistas, o Brasil deveria acompanhar as mudanças do
mundo. Assim, o panorama das artes brasileiras no século XX começa a
sofrer uma mudança profunda: vertentes conservadoras contrapunham-
-se ao Movimento Pau-Brasil, ao Antropofagismo, ao Movimento Verde-
-Amarelo, entre outros. A partir dessa efervescência cultural, a temática
do nacional-popular vai ganhando força entre intelectuais e artistas. E
os modelos essencialmente universalizantes da arte clássica passam a dar
lugar a uma arte do dia-a-dia dos brasileiros, de caráter social, trazendo
à tona questões polêmicas para a época (a violência colonialista, a explo-
ração do índio e do negro, as desigualdades de classe).
Desse modo, os modernistas aproximam a língua literária da língua
falada pelas classes populares; zombam do passado, da arte clássica e da
herança colonial / aristocrática. É recorrente a temática da formação
multicultural do Brasil mostrando-a como uma junção de elementos di-
ferentes, mas revelando o caráter desordenado da formação nacional.
Mário de Andrade, um dos expoentes da Semana de Arte, teve um
papel decisivo no registro e na visibilidade das culturas populares do país,
por meio de seus estudos sobre folclore e de sua atuação no poder públi-
co. Recolheu materiais e informações de interesse cultural, como poemas
e canções populares, modinhas, ritmos, festas religiosas e de folia, lendas
e músicas indígenas, objetos de arte, entre outros. Em seu estudo “As dan-
ças dramáticas do Brasil” (1934-1944), tratou o Bumba meu boi como
“a mais exemplar” e também “a mais complexa, estranha e original de
todas as danças dramáticas”.
Há no Brasil desse período uma tentativa de valorização da cultu-
ra popular (produzida pelas classes populares) nas diferentes linguagens,
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 105

em contraposição a uma cultura clássica (de elite e europeia)3. A cultura


popular ingressa, assim, na pauta de discussão de artistas e intelectuais
brasileiros no início do século XX ainda como resultado da dicotomia
entre uma cultura folclórica e uma cultura de elite.
Também foi importante para a ampliação da discussão, do ponto de
vista acadêmico, sobre cultura popular no Brasil, a criação da Comissão
Nacional de Folclore, em 1947, que, organizada por subcomissões esta-
duais, formou uma rede de pesquisa nacional, congregando diversos in-
telectuais e pesquisadores, tais como Renato Almeida, Câmara Cascudo,
Afrânio Peixoto e Mário de Andrade. O objetivo maior da entidade era
criar a ciência do folclore nas universidades brasileiras, bastante influen-
ciada pelas metodologias de cunho predominantemente positivista, com
registros e descrições das manifestações da cultura popular. As Comissões
ficaram muito próximas e dependentes dos poderes executivos estaduais
e trouxeram algum prestígio para o folclore como objeto de investigações
eruditas. Mas também funcionaram (funcionam ainda), em certa medi-
da, como mecanismo de legitimação das ações do Estado no campo da
cultura.
Para Renato Ortiz (2005, p.142), “a relação entre nacional e po-
pular se manifesta no interior de um quadro mais amplo, o Estado”. E,
nesse contexto, os intelectuais são responsáveis por “descolarem as ma-
nifestações culturais de sua esfera particular para as articularem numa
totalidade que as transcende”.
Especialmente durante os regimes autoritários, a relação da polí-
tica (o Estado) com as culturas populares no Brasil tornou recorrente
a manipulação de símbolos étnicos para a criação de símbolos nacio-
nais (OLIVEN, 1983). Como registra Canclini (1983), esse processo está
presente em grande parte dos movimentos populistas latino-americanos.
Em terras tupiniquins, esse processo é fundamentado na ideologia da

3 Podem-se citar vários exemplos: na escultura, a Bailarina, de Vitor Brecheret; nas artes plásticas, as telas
Antropofagia e Abaporu (1929), de Tarsila do Amaral; e Cinco moças de Guaratinguetá (1930), de Di Cavalcanti;
na música, Uirapuru e Tocata (O trenzinho do caipira), de Heitor Villa-Lobos.
106 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

democracia racial, segundo a qual a mestiçagem originará uma convi-


vência harmoniosa e democrática, sem conflitos (de raça ou de classe)
entre as três matrizes étnicas que formaram o país. Os elementos étnicos
são ressemantizados e transformados em cultura nacional, perdendo sua
especificidade de origem. Foi o que aconteceu com o carnaval, o samba e
o futebol, exemplos de culturas populares, antes negados, reprimidos ou
considerados inferiores pela elite e pelo Estado; hoje, essas práticas são
amplamente apreciadas e promovidas com o status de cultura brasileira/
nacional. Como avalia Martín-Barbero (2008, p. 242):
[...] talvez em nenhum outro país da América Latina como
no Brasil a música tenha permitido expressar de modo tão
forte a conexão secreta que liga o ethos integrador com o
pathos, o universo do sentir. E que a torna por isso espe-
cialmente apta para usos populistas. O que aconteceu no
Brasil com a música negra, o modo desviado, aberrante,
com que ela obteve sua legitimação social e cultural, põe
em evidência os limites tanto da corrente intelectualista
quanto do populismo, na hora de compreender a trama
de contradições e seduções que compõe a relação entre
o popular e o massivo, a emergência urbana do popular.

Outras ações que concorreram para o reconhecimento social da


cultura popular no país, identificadas nas pesquisas de Ortiz (1985) so-
bre a identidade nacional, são: a instalação do Ministério da Educação
e Cultura, em 1953; a expansão das universidades públicas nacionais;
a campanha de Defesa do Folclore e a criação do Instituto Superior de
estudos Brasileiros (ISEB), órgão vinculado ao MEC. O ISEB dedicou-
-se a estudos, pesquisas e reflexões sobre a realidade brasileira e foi o
maior produtor do ideário nacional-desenvolvimentista no país, conside-
rado verdadeira ‘fábrica de ideologias’. Além disso, vale lembrar os Cen-
tros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPCs da
UNE), de 1961 a 1964, que movimentaram o debate público sobre políti-
ca e cultura pela juventude brasileira. Neles, a cultura popular é discutida
sob um viés revolucionário, em que artistas e intelectuais dos movimentos
estudantis tentam fazer da arte popular um instrumento de revolução.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 107

Baseados na máxima “fora da arte política não há arte popular”, para os


CPCs a forma verdadeira de cultura seria a arte engajada, única resposta
possível ao processo de alienação. As demais expressões culturais, da elite,
da indústria cultural, das classes populares eram consideradas alienadas
ou falsas consciências. Mesmo com equívocos, o movimento serviu para
aproximar intelectuais e artistas da discussão sobre cultura popular, até
então dispersa no cenário nacional, e evidenciar a emergência de novos
parâmetros, categorias e conceitos para analisar as culturas populares,
tendo como representante de destaque o poeta maranhense Ferreira
Gullar, que assumiu uma atitude literária de engajamento político e so-
cial. Mas as instâncias de repressão do período pós-64 inviabilizaram a
continuidade dos CPCs e do ISEB (ORTIZ, 1985, p. 69-73).
O Governo militar desenvolvimentista, possibilitado pelo Golpe de
1964, atuou incisivamente no campo cultural no Brasil. Ao reorganizar
a economia brasileira, inserindo o país no processo de internacionaliza-
ção do capital, a nova ordem econômica fez crescer não só o mercado de
bens materiais, como também impulsionou o mercado de bens culturais
(consolidação da indústria cultural) no país, com o incentivo de uma
produção oficial da cultura, promovendo o futebol, festivais de música,
programas de rádio, implantação da TV no país, tudo isso baseado na
ideologia da segurança e integração nacional. Então, a repressão simbó-
lica se dava não só através da censura, mas também por meio de uma
forte produção cultural controlada, com conteúdos convenientes ao Re-
gime Militar.
Contrapondo-se ao autoritarismo, jovens artistas criticam a cultu-
ra e a realidade brasileiras da época em movimentos culturais como o
Tropicalismo (1967). Com uma linguagem verbal e musical diferente da
então predominante, os tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal
Costa, Maria Betânia, Tom Zé, Os Mutantes, inspirados nos ideais an-
tropofágicos de Oswald de Andrade, unem as inovações da Bossa Nova
de João Gilberto e Tom Jobim, às guitarras elétricas de The Beattles e ao
108 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

regionalismo de Luís Gonzaga e João do Vale. Mais uma vez, a cultura


popular ganha visibilidade no cenário nacional, o que será reforçado no
campo acadêmico com o florescimento dos Estudos Culturais na Amé-
rica Latina.

Toma Lá, Dá Cá: apropriação cultural


no Bumba meu boi
Os estudos de Chartier (1995, p.183) sobre a construção histórica do
conceito de cultura popular informam que por muito tempo nos países
ocidentais a concepção clássica e dominante de cultura popular no cam-
po científico foi baseada em três ideias: (1) que a cultura popular podia
ser definida por contraste com o que ela não era, ou seja, com a cultura
letrada e dominante; (2) que seria possível caracterizar como “popular”
o público de certas produções culturais; e (3) que as expressões culturais
podem ser tidas como socialmente puras e, algumas delas, como intrin-
secamente populares.
Acredita-se que esses postulados não dão conta de compreender as
configurações plurais da cultura popular nos dias de hoje. Recorre-se à
littérature de colportage, obras populares difundidas por vendedores ambu-
lantes do século XVI ao XIX na França, cujo equivalente no Brasil seria
a literatura de cordel, para entender o porquê. Chartier argumenta que
essa literatura considerada popular não é tão radicalmente diferente da
literatura da elite, que impõe seus repertórios e modelos, já que é compar-
tilhada por meios sociais diferentes, e não apenas pelos meios populares,
sendo, ao mesmo tempo, aculturada e aculturante (CHARTIER, 1995).
Nesse aspecto, é possível estabelecer um diálogo com Martín-Barbero,
que tira a seguinte conclusão do debate sobre a literatura de colportage na
França:
se alguns [teóricos] tendem a uma imagem açucarada e
espontaneísta da cultura popular, outros tendem a repro-
duzir a dicotomia que nos impede de pensar a complexi-
dade da circulação cultural: o que vem de cima não chega
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 109

a tocar os de baixo, porque não tem nada a ver com estes,


ou se chega, nada faz além de manipular e alienar, como
hoje a cultura de massa (MARTÍN-BARBERO, 2008,
p.157-158).

Parece que ambos os autores concordam que é inútil querer identifi-


car a cultura popular a partir da distribuição supostamente específica de
certos objetos ou modelos culturais, ora como se estivessem apartados do
mundo urbano, sem relações com a sociedade capitalista (visão român-
tica baseada na pureza do popular); ora como se a cultura popular não
pudesse ter interesse pela indústria cultural, considerando essa aproxima-
ção uma forma de dominação ideológica que afetaria a cultura popular a
ponto de transformá-la “apenas” em cultura de massa.
Os Estudos Culturais, corrente de estudos em que se vinculam
Martín-Barbero, Nestor Garcia Canclini, Renato Ortiz, Roger Chartier
(este último nos estudos culturais dentro da história), entre outros autores,
fornecem conceitos e ferramentas teórico-metodológicas que permitem
uma compreensão da cultura popular como um modo de vida em con-
dições de igualdade de existência com qualquer outro. O que permite
enxergar as relações e constituições do popular com os fluxos comunica-
cionais, políticos, sociais; conceber o popular a partir de sua apropriação4
pelos grupos ou indivíduos.
A noção de apropriação de Chartier é aqui muito válida, na me-
dida em que se percebe que os brincantes das culturas populares não só
são apropriados pelo Estado e pelo mercado, mas também fazem apro-
priações da indústria cultural, da política e de outros circuitos com que
dialogam em seu processo produtivo, como acontece com o Bumba meu
boi no Maranhão.
Até os anos 1960, os grupos de Bumba meu boi eram constante-

4 Apropriação é percebida a partir da “elaboração de uma história social dos usos e das interpretações,
relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os constroem”.
Considerar as apropriações que as pessoas fazem da arte, dos bens culturais significa estar atento “às con-
dições e aos processos que muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido”
(CHARTIER, 1995, p.184).
110 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

mente expulsos das áreas nobres e centrais da capital São Luís à base de
força policial. Para ultrapassar essas barreiras físicas, o Boi teve que se
enquadrar em alguns padrões de normalidade das elites, além de con-
tar com a ajuda de políticos, passando por um processo de “assepsia”,
em que elementos considerados grotescos, oriundos das culturas negras,
sofreram adaptações. Houve uma ressemantização de conteúdos que fa-
ziam parte do processo criativo dos folguedos, gerando novas práticas,
táticas e sentidos. Hoje, o Bumba-boi é símbolo de identidade regional,
divulgado e financiado pelo poder público estadual e municipal.
Uma das repercussões desse processo é que os agentes passam a
lidar com o fenômeno cultural de modo diferente, ao passo em que assu-
mem compromissos perante o Governo, tanto para propagar a cultura
local quanto para divulgar a imagem do político que os ajudou. Assim,
o Bumba meu boi, expressão musical, cênica e de dança, originário das
classes populares e das periferias, da cultura negra, perseguido e proibi-
do, acaba sendo apropriado por políticos e pelas elites, aceito e veiculado
midiaticamente como autêntico símbolo da cultura estadual. Num pro-
cesso muito parecido com o que ocorreu com o samba – antes restrito às
classes populares e circunscrito aos morros, transformado em símbolo de
identidade nacional pelos militares –, o Bumba foi introduzido em outro
circuito, ao ser incorporado pelo mercado de bens simbólicos e apropria-
do por ações estatais.
Marcelino Azevedo, dono do Boi de Guimarães, importante repre-
sentante da cultura negra no Maranhão, reforça a ideia aqui defendida
ao contar sua experiência:
Quando eu me entendi, eu ainda conheci gente que foi
escravo, as velhinhas já tavam velhinhas, mas elas conta-
vam alguma coisa. A gente novinho deixou na memória.
[...] Já brincavam, mesmo escravos. O Boi nessa época não
era como agora. Ele era reprimido e era proibido de brin-
car em algumas partes, em praça... Eles brincavam mais
era no quilombo, eram tratado como baderneiro. É muito
relativo isso. Depois, de uns tempos que eles [as elites lo-
cais] foram se acostumando e até quando eu comecei a
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 111

brincar Boi [década de 50] eles já chamavam pra brincar


na porta deles. Mas antigamente era um outro patamar.
Hoje, não. O Boi tem que ser mais sofisticado. O vestiário
dos brincantes tem que ser mais sofisticado. [...] Porque a
gente saindo de Guimarães pra brincar um Boi aqui [na
capital], a gente vai se encontrar com o turista (informa-
ção verbal)5.

O brincante reconhece que o Boi conquistou um novo espaço na


cultura local, sendo não só aceito como requisitado pelas elites durante
as festas juninas, mas também como representante do Estado do Ma-
ranhão em eventos oficiais nacionais e internacionais e como produto
turístico que impulsiona a economia no Estado. No entanto, a moeda de
troca para obter esse novo “patamar”, foi “sofisticar” a brincadeira6 para
atender as exigências do mercado turístico e dos compromissos políticos.
A apropriação do Boi pelo Estado, pelo mercado, pelas elites urba-
nas compõe um movimento de perdas e ganhos para a brincadeira. De
um lado, “sofisticar” a brincadeira significa estar atento para novas ques-
tões como a renovação das indumentárias anualmente, a gravação de
CD para expandir a circulação em rádios e outras cidades, cumprir ho-
rários rígidos nas apresentações, transformar as brincadeiras dos terreiros
em espetáculos de palco nos arraiais urbanos, entre outros fatores que
ressignificam as relações comunitárias e familiares, as solidariedades tra-
dicionais dos brincantes. Enfim, a experiência do brincante com seu fazer
cultural passa a ser reconfigurada por relações contratuais, pelo tempo e
espaço urbanos, pela lógica da sociabilidade em massa. Do outro lado
da moeda, está o novo “patamar” alcançado pelo Bumba meu boi, que
pode ser traduzido na maior visibilidade que a manifestação adquiriu na
sociedade local e nacional, na cultura como fonte de trabalho e de renda
para a comunidade, na profissionalização dos sujeitos, na possibilidade
de os grupos de Boi tornarem-se espaços estratégicos de acesso às políti-

5 Entrevista concedida para esta pesquisa por AZEVEDO, Marcelino. São Luís: 09.10.2012.
6 Expressão nativa usada para se referir às práticas culturais populares. Assim, os sujeitos que integram os
grupos populares sao os brincantes.
112 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

cas públicas do poder executivo, como é o caso dos Pontos de Cultura7.


O Bumba meu boi tornou-se uma forma híbrida do popular (CAN-
CLINI, 2011), em que uma cultura tradicional, de origem popular, peri-
férica e rural, une-se sincreticamente a diversas modalidades de cultura
urbana e massiva. O amo Marcelino explica que para colocar em prá-
tica seus saberes e tradições - oriundos de uma experiência rural e su-
balterna -, tem que pensar também em questões financeiras, materiais,
contratuais e de produção da cultura - oriundas da experiência urbana
e massiva. Só para transportar o seu grupo de Bumba-boi, formado por
88 membros, da cidade de Guimarães para a capital, precisa contratar
dois ônibus em São Luís:
Eu pago 18 mil reais de carro pra trabalhar uma tempo-
rada [junina] pra mim, e ganho 35 mil [por 10 apresen-
tações no São João do Governo do Estado]. Ainda têm
os instrumentos, as roupas. Eu que mando fazer tudinho:
seja bordar, fazer Boi, tudo é pago! Não dá! E ainda tem a
comida do pessoal aqui (informação verbal)8.

Antes da divulgação do Boi como “produto turístico maranhense”,


“símbolo oficial de identidade do estado”, os brincantes produziam suas
próprias roupas e instrumentos; o Boi brincava no seu terreiro ou na
porta da casa de alguma personalidade importante (empresário, político,
entre outros) recebendo “cachaça e merenda” como pagamento.
Em estudo anterior (CARDOSO, 2008), identificou-se que a ges-
tão cultural nos Governos de Roseana Sarney tendeu a se apropriar de
expressões culturais populares, como o Bumba meu boi, no processo de
produção de símbolos identitários para o Estado, o que contribuiu para
a legitimação da governadora como a “protetora” da cultura popular do
Maranhão. Nesse processo, o caráter contestatório do Bumba meu boi
7 De acordo com o Site do MINC: “Ponto de Cultura é a entidade cultural ou coletivo cultural certi-
ficado pelo Ministério da Cultura. Trata-se de uma política cultural que, ao ganhar escala e articulação
com programas sociais do governo e de outros ministérios, pode partir da Cultura para fazer a disputa
simbólica e econômica na base da sociedade”. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cul-
tura. Acesso em: 29.01.2016.
8 Entrevista concedida para esta pesquisa por AZEVEDO, Marcelino. São Luís: 09.10.2012.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 113

foi atenuado por uma estratégia de poder que o elegeu como símbolo
de identidade local. Essa eleição ressignificou o auto do Bumba meu boi
(que até início do século XX servia de denúncia, momento em que po-
pulação podia falar das desigualdades): hoje, a crítica política raramente
aparece nas toadas, cedendo lugar cada vez mais à exaltação das belezas
naturais, do amor, do próprio grupo e de seu padrinho político-financeiro
e a temáticas genéricas como preconceito, drogas, ecologia, futebol. Por
essa estratégia, o poder instituído abrandou o caráter contestatório do
Bumba meu boi, investindo em práticas discursivas que transformaram o
folguedo em símbolo de identidade maranhense.
Várias Leis foram acionadas por conta de lutas por direitos cultu-
rais, demandadas pelo movimento organizado do Bumba meu boi, mas
também da articulação dos grupos junto a agentes políticos específicos
(vereadores, deputados, prefeitos, secretários, governadores) que têm in-
fluência nos processos de decisão. Exemplos: Lei Municipal 4.544/2005,
Dia do Brincante; Lei 4.487/2005, institui o nome da Avenida São Mar-
çal, padroeiro do Bumba boi maranhense; a Lei 4.806/2007 intitula o
Bumba boi Patrimônio Cultural Imaterial da cidade de São Luís; a Lei
Federal 12.103/2009 estabelece o Dia nacional do Bumba meu boi (30
de junho). A agência dos brincantes é um indicativo de que exercem
algum poder junto à política, ainda que relativizado e não comparado
ao peso do poder estatal. Esse fato, junto a outros identificados em nossa
pesquisa, sugere que não se deve falar em dominação do Estado sobre
a cultura popular, mas num jogo de disputas e trocas, em proporções
diferenciadas, em que brincantes são sujeitos conscientes de seu poder
político.

Considerações inconclusivas
Os Estudos Culturais vêm desencadeando um olhar inovador sobre
a cultura comum/ordinária, vista como um modo de vida em condi-
ções de igualdade de existência com qualquer outro. Por esse viés teórico,
adotado no trabalho, o campo do popular passou a ser interpretado sob
114 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

a ótica da resistência e não apenas da submissão, o que vem conferindo


força aos Estudos Culturais nos países latino-americanos, desde os anos
1980. Considera-se essa tendência de estudos um marco para o reco-
nhecimento da cultura popular como objeto válido e legítimo no campo
acadêmico da Comunicação.
Atualmente, tende-se a uma redescoberta do popular com a “[...]
revalorização das articulações e mediações da sociedade civil, sentido
social dos conflitos para além de sua formulação e síntese política, re-
conhecimento de experiências coletivas não enquadradas nas formas
partidárias” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 286). Há em curso uma
nova construção da concepção de sujeito político, já que política seria
elaborar e decidir continuamente os objetivos da sociedade, o que pode
ser feito, no cotidiano das pessoas, ao se organizar em associações, ao
exigir direitos, ao fiscalizar o emprego dos recursos públicos, ao denun-
ciar irregularidades na administração pública, ao conservar as praças de
sua cidade, ao ocupar espaços para ações culturais. Ou seja, a dimensão
política pode ser exercida em várias esferas, de diversas maneiras e não
apenas no âmbito do Estado.
Nem toda ação política terá força para integrar a política oficial ou
fará parte das decisões estatais ou institucionais, no entanto, é preciso
reconhecer que os cidadãos fazem parte do jogo político. Para que isso
aconteça, é necessária uma mediação entre a cultura e a política, na qual
pesquisadores e intelectuais, além dos profissionais da comunicação, de-
vem ser sujeitos comprometidos com esse processo. São os interesses dos
grupos sociais e do Estado, em disputa, que acabam decidindo o sentido
e a importância de cada expressão cultural, e consequentemente, os ca-
minhos da política pública cultural no país.

Referências

AZEVEDO, Marcelino. Entrevista concedida para esta pesquisa. São


Luís: 09.10.2012.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 115

CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalis-


mo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
__________. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da mo-
dernidade. São Paulo: EDUSP, 4 ed., 5 reimp., 2011.
CARDOSO, Letícia Conceição Martins Cardoso. O teatro do poder:
cultura e política no Maranhão. 2008. 178f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais). Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2008.
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toriográfico. In: Estudos históricos, v. 8, n. 16. Rio de Janeiro: 1995, p.
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ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São
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derna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
STRINATI, Dominic. Cultura popular: uma introdução. São Paulo:
Hendra, 1999.
TV PÚBLICA NO
BRASIL: A PRIMAZIA
HISTÓRICA DO
ACESSO RESTRITO
Melissa Silva Moreira Rabêlo*

* Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da UFMA. Mestre e doutora em Políticas


Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. E-mail: melissasmoreira@gmail.com.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 117

Introdução
Apesar das recentes mudanças no negócio de televisão no mundo,
ainda podemos considerar o papel de destaque obtido por este veículo
no cenário atual como meio de comunicação de massa, em virtude do
seu poderio comercial e pelo acúmulo de grandes audiências. Citamos
também sua capacidade de estar em muitos lugares ao mesmo tempo1,
com imagem e dinamicidade, assim como sua variedade de programas
de informação e entretenimento, que passa pelo jornalístico, esportivo,
de bem-estar, de auditório, humorístico, novela, etc.
Nessa perspectiva, a mídia teria duas funções centrais nas democra-
cias: o de manter a população informada, repassando dados e informa-
ções sobre realidades diferenciadas e de exercer o controle social sobre a
ação governamental, garantindo que a coisa pública sirva, de fato, aos
interesses coletivos. Como lembra Couto (2003), a influência que a mí-
dia exerce é vista como uma forma legítima de embate de ideias numa
sociedade democrática, justificando, assim, a conquista de espaço e re-
conhecimento, visto que, “sem os meios de comunicação não se pode
conquistar o consentimento da população para as diferentes dinâmicas
do mundo político, existindo, entretanto, formas diferentes de encará-los
e administrá-los” (COUTO, 2003, p. 17).
Por outro lado, na medida em que os órgãos da mídia são empresas
privadas, nem sempre é possível estabelecer uma articulação entre esse
objetivo e os interesses dos grupos que representam, portanto, os interes-
ses de acumulação do capital.
Importante destacar que o processo de informar legitimamente rea-
lizado pelos veículos de comunicação não é, a rigor, livre de ideologias. A
própria inserção do indivíduo, sujeito produtor e divulgador de notícias,
em conjunto com as empresas de comunicação, num ambiente social
amplo e complexo, gera uma série de novas formas de dar e receber a
notícia ou informação.
Mas o aspecto central diz respeito ao fato de que a notí-
118 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

cia como mercadoria possui uma especificidade ausente


nos outros tipos de mercadoria, pois sua veiculação pode
causar danos a pessoas, instituições, grupos sociais e às so-
ciedades, na medida em que possui (a notícia) o poder de,
no limite: fabricar e distorcer imagens e versões a respeito
de acontecimentos e fenômenos, simultaneamente à sua
função de informar. É claro que não se trata de considerar
o processo de informar como neutro, pois ele próprio é
submetido a um conjunto de variáveis, tais como a visão
do consumidor das notícias, das testemunhas, das fontes, e
do próprio “processo produtivo” das notícias, intrinseca-
mente complexo. (FONSECA, 2011, p. 43).

Contudo, é certo que há um abismo entre as questões intrínsecas


de construção e disseminação da notícia (informação) e as condições
impostas por interesses políticos, econômicos e sociais dos proprietários
dos meios para o delineamento do cenário informativo no qual estamos
expostos. Essa perspectiva toma força quando o próprio Estado e entida-
des reguladoras por ele instituídas não constituem mecanismos sérios de
responsabilização da mídia, além de não regulamentarem as condições
legais de proteção à própria sociedade.
Parece-nos claro, que tratamos de um tipo de mercadoria diferen-
ciada, a qual deve ser cercada de instrumentos e regulamentos próprios,
tomada essa especificidade. Os meios de comunicação, sejam públicos
ou, principalmente, privados, não devem tratar a sua mercadoria ape-
nas sob o viés econômico, com o risco de causar danos irreparáveis à
sociedade e ao seu próprio negócio. Justifica-se, então, a necessidade do
entendimento de que se trata de um tipo de negócio específico, que tem
em sua mercadoria o aspecto ideológico e não, puramente econômico.
Dessa forma, essa discussão acerca do papel da televisão na socieda-
de contemporânea nos remete à importância do tema nos dias de hoje,
pois se trata da conquista da hegemonia por uma classe ou por outra,
em que a televisão privada tem alcançado grande destaque quanto ao
acesso, à falta de concorrência (monopólio), aos investimentos, tanto go-
vernamentais (através de verbas para publicidade legal e estatal) quanto
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 119

de empresas estrangeiras, etc., estando no caminho contrário da televisão


pública, que enfrenta problemas com acesso, investimentos e forte con-
corrência.

O caminho da televisão pública brasileira


A apresentação de um modelo de televisão pública independente
do Estado e com participação pública foi muito exposta no Brasil nos
últimos anos devido a diversas iniciativas por parte de organizações do
setor, preocupadas em construir um espaço destinado à comunicação e
à deliberação pública, independente do legado estatal de radiodifusão já
existente no país. A criação da EBC em 2007 possibilitou a criação de
um espaço livre de participação de diversas organizações e instituições
da sociedade em geral, criando, assim, a possibilidade de atuação pública
num setor dominado pela iniciativa privada. Para apreendermos de que
forma tudo isso foi constituído, torna-se necessário um resgate histórico
e conceitual que possibilite a reunião de dados suficientes e que possam
apresentar os avanços que ocorreram no setor desde a criação da EBC.
Necessário ainda, identificar como as novas tecnologias podem auxiliar a
sociedade para garantir o acesso a esse tipo de serviço público universal,
que é a comunicação.
Todavia, em 1988, pela promulgação da Constituição, institui-se a
separação da radiodifusão em três modalidades complementares: priva-
da, pública e estatal. Este, talvez, seja o ponto de maior polêmica quando
o assunto é radiodifusão no Brasil. O artigo 223 da Constituição Federal
de 1988 deixa claro que:
compete ao Poder Executivo outorgar e renovar conces-
são, permissão e autorização para o serviço de radiodifu-
são sonora e de sons e imagens, observado o princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal
(BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988 inovou nos termos do parágrafo primeiro


do mesmo Artigo, quando estendeu aos deputados e senadores a função
120 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

de referendar as outorgas e renovações de concessões, porém sem pode-


rem interferir na decisão do Executivo. Essa mudança foi considerada um
importante avanço no sentido da redemocratização das comunicações.
Vale ressaltar que o termo “público” amplamente exposto, serviu
para caracterizar um sistema diferente do privado e do estatal que segun-
do Cabral Filho:
Não correspondeu à necessidade de explicitar caracterís-
ticas, composição, finalidade e sustentação, implicando
em limitações que aprofundam a ausência de um sistema
democrático de comunicações no Brasil, no qual o mo-
nopólio e o oligopólio das comunicações são a marca da
atividade no setor, a despeito de sua proibição também
manifesta no Artigo 221, parágrafo 5, do texto da Consti-
tuição Federal (CABRAL FILHO, 2007, p.1).

Quando se observa especificamente a televisão pública no mundo,


nota-se que ela surge de forma diferente. Nos Estados Unidos, por exem-
plo, ela nasce num ambiente dominado pela lógica da televisão comercial,
e consequentemente, por um modelo de venda de espaços publicitários,
como acontece também no caso brasileiro. Já na Europa, desde o início,
as televisões públicas têm lugar de destaque em detrimento da privada.
Os Estados Unidos tentaram algumas ações para fortalecer o cará-
ter público e reverter tal situação, através da criação de uma rede pública
de comunicação.
Todavia, essas cadeias de televisão caracterizam-se por
uma programação marginal, dirigida principalmente às
elites, não conseguindo, ainda hoje, uma força que lhes
permita uma forte implantação na paisagem audiovisual
americana (LOPES, 1999 apud ROCHA, 2006, p. 26).

Na Europa, a televisão pública seguia em caminho diferente, volta-


do ao serviço, tendo o Estado como controlador do sistema.
Na prática, o rádio e depois a televisão, vinham somar-se
aos empreendimentos culturais responsáveis por gerar e
disseminar a riqueza linguística, espiritual, estética e ética
dos povos e nações. Eles se colocavam no mesmo setor da
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 121

sociedade em que estavam localizadas as universidades,


as bibliotecas e os museus, e a população os reconheciam
dessa forma, distante da esfera dos negócios ou da política
de partidos ou grupos (LEAL FILHO, 2007, p.18).

No caso europeu, observa-se desde o início a preocupação em asse-


gurar a proteção do debate público. Em termos habermasianos, segundo
Bucci (2010), a intenção era assegurar aos atores o diálogo na esfera pú-
blica, tendo no fluxo de notícias e diálogos o pressuposto à igualdade de
condições de acesso à informação. Com isso, as emissoras não comerciais
e não governamentais teriam o papel de proteger a esfera pública. Por
isso, até hoje a televisão pública tem presença forte nos países europeus,
mesmo com o declínio que vem se observando nos últimos anos.
Para Wolton (1996 apud ROCHA, 2006, p.27), a história da televi-
são na Europa tem três fases distintas:
A primeira compreende o período de 1950 a 1970, é cha-
mada de dominação do modelo de televisão de serviço público, que
se referia à produção de programas de caráter educativo e
ao mesmo tempo popular. Porém, a interferência política
atrapalha o projeto original e acaba despertando um sen-
timento de desconfiança sobre o que ela realmente deveria
ser, dificultando a formação de uma televisão pública no
período.

De 1970 a 1980 surge a segunda fase que foi denomina-


da de confronto dos dois modelos. Nesse período observa-se
uma inversão: o modelo da televisão privada passa a ser
atraente e irresistível. Os profissionais da televisão pública
não conseguem demonstrar superação do modelo público
através da construção de um discurso autônomo, nem de-
monstrar que a mesma poderia se modernizar.

A última etapa, de 1980 a 1990, foi chamada de a troca. A


televisão privada se sobrepõe à pública, não por ser con-
siderada a melhor, mas devido à posição de inferioridade
em que a própria televisão pública se encontrava. Nesse
período, se estabeleceu também a ideia de que era preciso
desvincular a televisão pública da política, e consequente-
mente, do Estado.
122 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

A partir desse momento, a televisão já se encontrava consolidada


em todo mundo como grande instrumento de comunicação de massa,
despertando interesses não só dos Estados e dos poderes políticos, mas
também das grandes corporações industriais que estavam convencidas
de ter encontrado um valoroso instrumento de promoção e influência.
No entanto, o serviço público de televisão pode ser consi-
derado a prestação de um serviço, a preocupação com a
qualidade dos programas, é estar atento ao conteúdo, não
esquecendo a quem está dirigindo e o que se está falando,
é tratar o telespectador como cidadão e não meramente
como um consumidor em especial (ROCHA, 2006, p. 33).

Sabe-se que o lado mais frágil do serviço público de televisão está


no fato de pertencer ao Estado, pois sua sobrevivência está diretamente
ligada às correntes ideológicas que estão no poder, e inevitavelmente, in-
fluenciam a manutenção de seu financiamento e podem, de certa forma,
manipular política, ideológica e financeiramente.
Este aspecto pode ser constatado ao longo da história do serviço
de comunicação pública no Brasil, e na história mais recente, com os
governos Dilma Rousseff (de 1 de maio de 2011 até 12 de maio de 2016),
quando quase nada foi feito para o avanço do setor e sua efetiva demo-
cratização; e do presidente Michel Temer (de maio até os dias de hoje de
2017), que deu grandes indícios de que o setor da comunicação pública
será duramente atingindo por cortes orçamentários.
Porém, é nos canais públicos de comunicação que a prática legítima
da cobertura nacional da atividade política se encontra. Sendo ou não
obrigação do Estado, é importante ressaltar que ele acaba, também, ten-
do papel fundamental de estimular o crescimento e desenvolvimento do
setor, além de intervir na vida da sociedade. A televisão pública deve ser,
portanto, uma alternativa aos canais privados, contendo uma programa-
ção diferenciada, voltada não só à educação, mas à cultura e diversão,
abandonando a troca comercial que rompe com suas responsabilidades
culturais e de identidade. Além disso, é preciso levar em consideração
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 123

o papel estratégico e social que esse veículo exerce nos dias de hoje. A
televisão mostra o mundo ao vivo e em cores. Tem-se numa perspectiva
o desenvolvimento do saber, da ciência, dos avanços tecnológicos e da
riqueza; em outra, o contraste da pobreza, da ignorância e da miséria da
grande maioria da população. É necessário entender que num país onde
a população analfabeta2 tem na televisão uma de suas únicas fontes de in-
formação, o papel desse veículo precisa ser muito bem engendrado com
aspirações ao desenvolvimento social, cultural, educacional e da identi-
dade, e não meramente como um veículo de transmissão de informações.
Dessa forma, entende-se que a proposta de um sistema de comunicação
pública, tendo como principal veículo a televisão, pode corroborar com
este anseio. Sem falar nas possibilidades que as novas tecnologias da in-
formação oferecem para o setor: acesso aos conteúdos televisivos atra-
vés de suportes diferenciados, como computador, tablet ou celular, além,
claro, do próprio aparelho televisor, aumentando significativamente seu
potencial de acesso e consequente alcance do serviço público à sociedade.
Sendo assim, importante ressaltar de que serviço público estamos
tratando, através dos conceitos que regem o serviço público de televisão,
segundo Rocha (2006, p.35):
a) Diversidade: compreende que uma programação pode ser diversi-
ficada, desde que atinja os preceitos da informação, da formação
e do entretenimento;
b) Universalidade: fazer com que a televisão chegue a todos os cida-
dãos em igualdade de condições;
c) Financiamento público: poderia ser por meio de uma taxa paga
pelo cidadão ou através de recursos fornecidos pelo Estado;
2 Em relação à população analfabeta no Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2014, mostra uma
taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos ou mais estimada em 8,3% (13,2 milhões de pessoas).
No ano anterior, 2013, esse índice era de 8,5% (13,3 milhões de pessoas). O número de analfabetos está
fortemente concentrado na região Nordeste e na população de maior idade, sendo importante destacar
que a situação pode ser mais grave uma vez que a pergunta da Pnad é autodeclatória, podendo a pessoa
ter pequeno domínio na leitura, mas não se declarar analfabeta. Disponível em: http://brasilemsintese.
ibge.gov.br/educacao/taxa-de-analfabetismo-das-pessoas-de-15-anos-ou-mais.html
124 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

d) Independência: esta questão está ligada, sobretudo, à forma de


financiamento, porém, independentemente de como a televisão
é financiada, só é possível alcançar a independência ignorando a
influência de fatores externos, sejam eles de ordem política ou de
interesses particulares;
e) Identidade nacional: preocupação particular com os sentimentos
de identidade nacional e de comunidade refletidos na programa-
ção;
f) Minorias: atenção às minorias, em especial, as menos favorecidas
(ex.: deficientes auditivos);
g) Competição: esse princípio refere-se ao estímulo à qualidade do
que propriamente à disputa por índices de audiência;
h) Criação: orientações públicas que devem servir para dar liberdade
aos produtores ao invés de limitá-los.

Assim, é importante observar como se configura o campo das TVs


públicas, especificamente no Brasil.
Apesar de ter em comum uma aura pública, são canais com
características bem distintas, processos próprios de cons-
trução e consolidação, apresentam origens, práticas e ob-
jetivos distintos. São produzidas em condições políticas,
administrativas e técnicas próprias, além de sofrerem dife-
rentes regulamentações. (TORRES, 2009, p. 28).

Já se sabe que o sistema público de comunicação é formado por


um conjunto de veículos integrados com objetivos, gestão e formas de
financiamentos específicos. Esses veículos podem ser rádio, televisão ou
transmissão via Internet.

A configuração do campo público de comunicação


Verifica-se a existência de alguns modelos de televisão pública que
podem ser agrupados em duas modalidades: aquelas em que o poder
público é proprietário direto e aquelas que são formadas por entidades
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 125

autônomas, independentes. Esse campo público é composto, portanto,


por emissoras de televisão educativas, universitárias, legislativas e comu-
nitárias.
A televisão educativa é a mais conhecida no Brasil no campo públi-
co. A pioneira foi a TV Universitária de Pernambuco em 1968, seguida
pela TV Cultura de São Paulo (1969) e pelas TVE do Maranhão (1969) e
TVE do Rio de Janeiro (1973). A legislação dessas TVs as caracterizavam
como emissoras que prestavam serviços de televisão educativa, a serem
explorados pela União, estados, territórios, municípios, universidades e
fundações, com objetivo estrito de divulgar programas educacionais, me-
diante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates.
Desde 1998 estão reunidas na Associação Brasileira das Emissoras
Públicas Educativas e Culturais (Abepec), estando presentes nas princi-
pais capitais do país. Segundo Torres (2009), em 2007 representavam
1.885 TVs, entre geradoras, afiliadas e retransmissoras.
Em seguida, surgem os canais de acesso público, criados pela Lei da
TV a Cabo, nº 8.9773, de 06 de janeiro de 1995. O artigo 23, capítulo V,
instituiu às operadoras de TV a cabo a disponibilização de canais básicos
de utilização gratuita, destinados à promoção de cidadania e ocupados
pelos poderes Legislativo e Judiciário, entidades sem fins lucrativos, ór-
gãos governamentais, educacionais, culturais e universidades. Porém, es-
ses canais de acesso público estão restritos aos assinantes das TVs fecha-
das e corresponderam, no mês de fevereiro de 2016, segundo a Anatel, a
18,96 milhões de acessos de TV por assinatura (27,94% dos domicílios) e
9,2 acessos/100 habitantes4.
Tem-se, ainda, os canais universitários que são compartilhados por
universidades e instituições de pesquisa, localizados no mesmo município
da prestação do serviço. Esses canais são geridos, em sua quase maioria,

3 Lei da TV a Cabo: disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8977.htm. Acessado em 24


de março de 2011.
4 Disponível em: http://www.anatel.gov.br/institucional/index.php/noticias/1055-tv-paga-fecha-feve-
reiro-de-2016-com-18-96-milhoes-de-assinantes. Acessado em 20 de agosto de 2016.
126 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

por entidades mantenedoras criadas pelas próprias instituições com esta


finalidade. O orçamento que mantém esses canais é oriundo das mesmas
instituições, variando de R$ 30 mil a R$ 1,5 milhões anuais. Em 2004,
de acordo com a pesquisa realizada para a Organização das Nações
Unidas - ONU, intitulada “Mapa dos Canais Universitários no Brasil”5,
foram contabilizados mais de 30 canais de cabodifusão mantidos por 64
Instituições de Ensino Superior (IES), sendo 11 canais compartilhados
por várias universidades, como é o caso do Canal Universitário de São
Paulo (CNU) e 20 canais exclusivos, ou seja, ocupados por apenas uma
IES. Operando em radiodifusão, o estudo mostrou que existe mais de 20
canais dirigidos por outras instituições. Com exibição mista (cabodifu-
são e radiodifusão, canais abertos e fechados) havia 36 canais, ligados a
13 Instituições de Ensino Superior. Incluindo a transmissão em MMDS
(micro-ondas, a TV FAG, de Cascavel-PR), totalizaram 85 IES ocupan-
do 73 canais de televisão no Brasil. A Associação Brasileira de Televisão
Universitária (ABTU) lançou em 2006, viabilizada pela Rede Nacional
de Ensino e Pesquisa (RNP), a Rede de Intercâmbio de Televisão Univer-
sitária (RITU), com o intuito de compartilhar programas e a operação
em rede das TVs universitárias, via Internet de banda larga. As opera-
ções da rede são centralizadas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos), em São Leopoldo-RS.
Os canais Legislativos também compõem o campo público atuando
em âmbito nacional, estadual e municipal. O setor é composto por várias
emissoras das assembleias legislativas e das câmaras dos vereadores. Se-
gundo Santos (2006), são 17 canais legislativos estaduais e 49 municipais,
até junho de 2005, via TV a Cabo por assinatura, além dos canais da TV
Câmara e TV Senado, que têm transmissão para todo o país também em
canal fechado, e, em algumas cidades, em canal aberto. Esses canais com-
põem a Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas (Astral).
As televisões comunitárias são geridas por organizações não gover-
5 No site da ABTU (www.abtu.org.br) é possível verificar uma versão ilustrada do estudo, organizada pela
equipe do professor Juliano Carvalho, da PUC de Campinas-SP.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 127

namentais e sem fins lucrativos e completam o campo público no setor.


Essas entidades são responsáveis pela produção de conteúdo de forma in-
dependente e autônoma, mas enfrentam grandes dificuldades de cunho
financeiro para viabilizar a infraestrutura necessária e a produção da pro-
gramação. Muitos consideram os canais comunitários como os canais
verdadeiramente públicos. Porém, é preciso criar condições de formação
de rede, aprimorar o controle social e aumentar a representatividade pe-
rante a sociedade local.

A televisão pública no Brasil


A televisão pública se caracteriza, portanto, pela independência,
tanto no âmbito político (relações com o governo, o Estado e os políti-
cos), quanto econômico (relações com o mercado), seja em que modelo
se apresente.
Segundo Bucci (2010, p.14), “a emissora pública não deve prestar
contas ao governo nem ao capital, mas isso justamente porque já as pres-
ta, recorrentemente, ao público e à sociedade”.
A partir do panorama histórico construído em torno das relações
políticas e dos empresários dos meios de comunicação de massa, acaba
surgindo uma grande confusão na determinação do que é público e do
que é privado no setor da televisão brasileira. Dessa forma, para delimi-
tar esta análise, as TVs públicas que serão referidas a seguir (Tabela 1)
são as que compõem o chamado campo público, principalmente a expe-
riência das TVs Educativas. Sabemos que este campo público é formado
também pelas emissoras de canais de acesso público da TV a Cabo, po-
rém, este quesito não é foco desta discussão.
No Brasil, a TV pública, que se contrapõe à TV comercial, apesar
de ambas terem em comum a concessão pública, apresenta característi-
cas e processos próprios de construção e consolidação. Além disso, sua
regulação é diferenciada, além das condições políticas, técnicas e ad-
ministrativas. A própria política de radiodifusão brasileira, desde o seu
128 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

início, privilegiou os interesses de grupos econômicos e de políticos, em


detrimento do interesse público. Muitas vezes, é notório que o mercado
pressiona fortemente políticos para que o Estado garanta o interesse dos
radiodifusores.
A tabela a seguir, apresenta as entidades habilitadas a explorar o
serviço de radiodifusão:

Tabela 1: Entidades habilitadas a explorar serviço de


radiodifusão de sons e imagens.

Fonte: Nazareno (2007)

Os canais de caráter público – não comerciais nem privados – sur-


gem com as televisões de cunho educativo veiculados na TV aberta, no
período em que a hegemonia da Inglaterra era superada pela indústria
norte-americana, mais acelerada e com características de acumulação de
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 129

capital. Antes com o rádio e, em seguida, com a televisão, o presidente


Getúlio Vargas impunha o nacionalismo através dos meios de comunica-
ção de massa, que ocupavam papel de destaque na sociedade da época.

A regulamentação no setor da comunicação pública


No que se refere à regulamentação da televisão enquanto meio de
comunicação, independentemente de seu caráter educativo, comercial
ou comunitário, pode-se perceber que não passou de uma cópia da regu-
lamentação do rádio, em que já eram determinados os fins educacionais
de interesse público, mas que não foram atingidos na prática. Já para a
televisão educativa, de caráter público, regulamentada depois, foi vedado
o caráter comercial, proibindo, inclusive, a veiculação de propaganda,
bem como patrocínios.
O artigo 13 do decreto-lei 263/67, chega ao ponto de de-
finir que ‘a televisão educativa se destinará à divulgação de
programas educacionais mediante a transmissão de aulas,
conferências, palestras e debates’, restringindo brutalmen-
te as suas possibilidades de ação, tanto em seus aspectos
formais quanto de conteúdo (BOLAÑO, 2007, p.16).

Porém, a mesma legislação que impunha o caráter educativo das


emissoras também deixava espaço para a utilização dessas concessões
como moeda de troca entre políticos (como já citado), o que ficou conhe-
cido como coronelismo eletrônico. O mesmo decreto também eximia as
outorgas de TVs Educativas da necessidade da publicação de edital, indo
contra o que previa o Código Brasileiro de Telecomunicações.
A trajetória brasileira, no que se refere às emissoras educativas e
culturais, pode ser ilustrada com a concessão de outorga de canais edu-
cativos, em 1952, pelo presidente da República, Getúlio Vargas, para
várias instituições sediadas no então Distrito Federal, a cidade do Rio
de Janeiro, quando um grupo de comunicadores, liderado por Edgard
Roquete-Pinto (1884 -1954), conseguiu a concessão do canal 2.
O decreto presidencial nº 30.832, de 10 de maio de 1952, outorgava
130 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

concessão à Prefeitura do Distrito Federal para estabelecer, por intermé-


dio da Rádio Emissora Roquete-Pinto, uma estação de televisão. Com a
verba aprovada pela Câmara de Vereadores e também pelo Tribunal de
Contas, a prefeitura poderia dar continuidade ao projeto.
Algumas questões políticas da época interceptaram repentinamente
as providências que já estavam sendo tomadas em relação ao projeto da
emissora educativa, a reestruturação física do prédio da Rádio Roquete-
-Pinto para receber um canal de TV e a aquisição de equipamentos dos
Estados Unidos para sua instalação.
Logo em seguida, em 1957, no governo de Juscelino Kubitschek,
essa concessão educativa foi redistribuída, e o canal 2, que deveria ter
hospedado a primeira emissora exclusivamente educativa, acabou sendo
concedido ao Grupo Excelsior e mais tarde à Rádio Mayrink Veiga. Isso
fez do Brasil um dos primeiros países do mundo a buscar a implantação
de um sistema de comunicação de massa com conteúdo educativo.
A TV Educativa foi criada em 3 de janeiro de 1967, a partir da ideia
do professor e educador Gilson Amado, que criou a FCBTVE, a qual ini-
cialmente funcionava em circuito fechado, em um pequeno apartamento
de quarto e sala no bairro de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro.
Em 1970, obteve concessão para se estabelecer como rádio e televi-
são por meio da Portaria Interministerial nº 408. Em 1972, recebeu da
Fundação Konrad Adenauer, da Alemanha, os primeiros equipamentos
para seu estúdio e ganhou a concessão do canal 2 do Rio de Janeiro, ocu-
pado anteriormente pela TV Excelsior.
Nos anos 1970, as televisões educativas foram concebidas primor-
dialmente com objetivos instrucionais aliados à tecnologia, já que tínha-
mos um país imenso e havia muitas lacunas no que se referia ao ensino
básico. Logo se percebeu que a televisão não poderia substituir a escola,
e nos anos 1980, elas passaram a apresentar uma programação “com-
prometida com a identidade nacional, a cultura brasileira, a cidadania e
a formação profissional do comunicador social financiadas sempre pelos
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 131

governos federais e estaduais” (CARMONA, 2008, p.8)6.


No Maranhão, a TVE entrou no ar na cidade de São Luís em 1969,
mantida pela extinta Fundação Roquette Pinto7, sendo a segunda emis-
sora a funcionar na região e uma das primeiras TVs educativas do Bra-
sil. Instaurada inicialmente pelo governo do Estado, tinha o objetivo de
transmitir programas de televisão com conteúdo educativo em escolas
públicas, de 5ª a 8ª séries do 1º grau. Esses programas/aulas vinham
prontos do Governo Federal e eram transmitidos aos alunos com a ajuda
das assistentes pedagógicas, que trabalhavam o conteúdo mais profunda-
mente após sua apresentação.
Nos anos 1970, a TVE do Maranhão foi uma das primeiras a entrar
em rede nacional com a TVE Brasil. Também possuía programação lo-
cal como programas educativos, sendo exibidos pela manhã e pela tarde
entre os anos de 1996 a 2006, e o único telejornal da emissora, o TVE
Notícias.
Nos anos seguintes, as TVs educativas e culturais tiveram que bus-
car novas ferramentas para não deixar de oferecer à sociedade uma pro-
gramação diferenciada, mesmo concorrendo com os grandes sistemas de
comunicação comerciais, e ainda, enfrentando dificuldades financeiras
que impossibilitavam a manutenção deste tipo de programação.

6 Beth Carmona é radialista e jornalista formada pela USP e diretora-geral e editorial do ComKids,
canal especializado no público infantil da Globosat. Foi presidente do MIDIATIVA – Centro Brasileiro
de Mídia para Crianças e Adolescentes, diretora de Programação na TV Cultura de São Paulo de 1987 a
1998, diretora de programação e produção dos canais do grupo Discovery Channel para América Latina,
entre 1999 a 2003. Foi presidente da Associação de Comunicação Educação Roquette Pinto - ACERP,
mantenedora da TVE e da Rádio MEC, desde 2003. Em 2007, em virtude da criação da nova TV
pública que incorporava a antiga TVE, a presidente deixa a ACERP alegando estar impossibilitada de
permanecer devido à dualidade de comando, se tornando a primeira diretora-presidente da TV Brasil.
7 Extinta fundação do governo federal que tinha como função a prestação de serviços à comunidade
voltada à educação e cultura, através dos meios de comunicação. Devido à falta de uma política clara
de comunicação e a falta de responsabilidade fiscal, a fundação quebra financeiramente, o que provoca
uma mudança radical na forma de administração por parte do Governo Federal. A fundação foi então
sucedida, em 1998, pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP, por meio da
medida provisória nº 1648-7, que passa a ser qualificada como a Organização Social ACERP, assumindo
seus bens, funcionários e concessões. Mais tarde, a ACERP foi extinta (nos moldes anteriores) e seus
servidores, bens e concessões foram repassados para a Empresa Brasil de Comunicação – EBC, em 2007.
132 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Nesse quesito, o que notamos é que emissoras públicas adotam dife-


rentes estruturas administrativas e de financiamento e mantêm relações
distintas com o Estado e a sociedade civil. Com vistas a uma maior liber-
dade administrativa, a maioria das emissoras transformou-se em insti-
tuições de direito público. A TV Cultura, da fundação Padre Anchieta,
segue o modelo da BBC de Londres, uma das principais referências em
televisão pública no mundo.
A falta de uma televisão pública atuante culminou na não formação
de um público mais crítico em relação à TV comercial, o que resultou na
falta de modelos alternativos.
Um momento de significativa importância para a televisão pública
brasileira foi a convocação pelo Ministério da Cultura do 1º Fórum Na-
cional de TVs Públicas, que aconteceu em 2007. O objetivo era reunir
experiências concretas de produção e veiculação realizadas pelas televi-
sões públicas do país e ainda discutir seu futuro.
Leal Filho (2007) chama atenção para três questões fundamentais a
respeito do papel da TV pública, levantadas a partir do Fórum: a) a so-
cialização de bens simbólicos produzidos no país; b) o formato de trans-
missão em rede; e c) a relação da TV pública e democracia.

Conclusão
A partir do modelo hegemônico comercial de televisão no Brasil,
surgem as dificuldades de acesso a um modelo de televisão que não trans-
forme os bens culturais em mercadoria. Os motivos “vão desde a fragili-
zação das identidades à inibição do surgimento de novas manifestações
culturais e artísticas, vítimas da falta de reconhecimento público” (LEAL
FILHO, 2007, p. 7).
Com isso, observamos que ao longo da história da televisão pública
no Brasil, nos seus mais variados formatos, a questão do acesso ao seu
canal de maneira direta e gratuita não acompanhou o avanço tecnológi-
co imposto pela televisão privada comercial, concebido através de alian-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 133

ças políticas e imposição de poder econômico. É notório, portanto, que


esta questão foi de fundamental importância para delinear a primazia do
acesso restrito aos conteúdos da televisão pública.
Indicamos as características da televisão pública, sua jornada his-
tórica no Brasil, seu arcabouço legal e sua extrema importância para o
processo de democratização de qualquer sociedade contemporânea. En-
tendemos, entretanto, que não devemos deixar que a história se repita
por mais 50 longos anos. A sociedade brasileira precisa de modelos alter-
nativos para assistir à televisão, uma vez que esta ainda se mantém como
o principal meio de informação da população, mesmo num momento de
congruência e evolução tecnológica, quando os meios de comunicação
de massa se confundem com a Internet, instaurando um modelo de con-
vergência midiática8.
Nossa perspectiva segue na direção de que somente com a garantia
de acesso amplo aos canais públicos de televisão, poderemos ter uma so-
ciedade potencialmente democrática, utilizando-se para isso, do suporte
que essas mesmas novas tecnologias nos dão nos dias atuais. Para isso,
devemos desenvolver discussões acerca da evolução tecnológica do setor
nos últimos 20 anos, analisando o comportamento dos sujeitos frente a
essas mudanças e a tendência dessa nova configuração capaz de consti-
tuir uma alternativa de aumento de acesso à televisão pública no Brasil.

Referências

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tiva do Brasil. Brasília: Senado, 1990.
BRASIL. Medida Provisória n.º 398 de 10 de outubro de 2007. Institui
os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados
pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração
indireta, autoriza o Poder Executivo a constituir a Empresa Brasil de Co-
8 O termo “convergência midiática” se fundamenta nas discussões do autor Henry Jenkins (2008), no li-
vro Cultura da convergência, em que se caracteriza num cruzamento de mídias alternativas que é assistido por
múltiplos suportes. Na atualidade, os conteúdos de velhas e novas mídias se cruzam, tornando-se híbridos,
remodelando a relação entre as tecnologias, indústria, mercados, gêneros e públicos.
134 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

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Empresa Brasil de Comunicação - EBC aprova seu Estatuto e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 out. 2008.
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em: 15 mar. 2011.
REDES
SOCIOTÉCNICAS,
HÍBRIDOS E
CONTROVÉRSIAS
METODOLÓGICAS
PELO VIÉS
DA TEORIA
ATOR-REDE*

Patrícia Azambuja**
Ana Paula Pereira Coelho***

* Este texto é o resultado da compilação de alguns trabalhos publicados em outros momentos, e que utili-
zam a Teoria Ator-rede como inspiração metodológica para compreensão de processos de comunicação.
** Professora Adjunta do Curso de Comunicação Social - UFMA, doutora em Psicologia Social pela
UERJ e mestre em Artes Visuais pela UNESP. Autora do livro Televisão Híbrida: recepção de TV sob a
perspectiva sociotécnica da Teoria Ator-rede, também coordena o Projeto de Pesquisa “Mise-en-scène plástico:
culturalmente construído ou pela imaginação subvertido?” (Financiado pelo FAPEMA). Email: patri-
ciaazambuja@yahoo.com.br.
*** Graduada em jornalismo pela UFMA, mestre em Comunicação pela UFES e doutoranda em Comu-
nicação e Cultura Contemporânea pela UFBA. Email: ana.coelho.jornal@gmail.com.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 137

TAR: performatividade do método


O sociólogo francês Bruno Latour (1994), em Jamais Fomos Modernos,
apresenta a ele e a seu grupo de amigos1 como estudiosos de situações
estranhas que a cultura intelectual não consegue classificar. Também se
autodenominam “sociólogos, historiadores, economistas, cientistas polí-
ticos, filósofos, antropólogos [...] acrescentando sempre o genitivo: das
ciências e das técnicas” (LATOUR, 1994, p.9). No interior de instituições
científicas, buscam descrever as tramas atravessadas por acontecimentos
ligados à ciência, política, economia, direito, religião, técnica, ficção e a
toda mistura responsável por tecer as teias do corpo social. Seguem as
tramas aonde elas os levem, tomando como meio de transporte a noção
de tradução ou de rede. “Mais flexível que a noção de sistema, mais his-
tórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é
o fio de Ariadne destas histórias confusas” (LATOUR, 1994, p.9). Apesar
de os estudiosos serem considerados por demais calculistas e instrumen-
tais, às vezes, marginais, Latour (1994) avisa que isso acontece por equí-
voco no entendimento dos seus trabalhos, pois suas pesquisas não estão
interessadas em discutir a natureza ou o conhecimento puros (ontologia e
epistemologia), mas as suas relações, os seus envolvimentos com coletivos,
sujeitos e objetos, sem redução a uma coisa ou a outra.
John Law (2008), no artigo On sociology and STS, discorre sobre a for-
mação interdisciplinar no campo Science, Technology and Society, e pondera,
na relação entre o campo estudado e metodologias pragmáticas, a possi-
bilidade de inclusão que ele identificou como princípio de simetria. Para
ele, “[...] A teoria é feita sob a forma de estudos de caso” (LAW, 2008,
p.630, tradução nossa)2 , uma “etnometodologia”3 em descompasso com
1 Composto por Michel Callon, Steve Woolgar, John Law, Madeleine Akrich, Vinciane Despret, Isabel- le
Stengers, Annemarie Mol, entre outros pesquisadores do campo de estudo chamado “Ciência, Tecno-
logia e Sociedade” (CTS). vinculados ao Centre de Sociologie de l’Innovation (CSI) da École Nationale
Supérieure des Mines, em Paris.
2 [...] theory is done in the form of case studies.
3 Bruno Latour (1997) analisa a etnometodologia como um movimento de reação ao abuso da metalin-
138 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

a ideia de grandes narrativas, que traça relações entre ciência, aspectos


culturais, práticas cotidianas e estudos de caso empíricos. Bruno Latour
(1997) apresenta o princípio de simetria como meio para analisar, sob as
mesmas bases, a produção de crenças verdadeiras ou falsas, privilegiando
a prática dos cientistas com o seu campo de investigação. “A noção de
simetria […] cumpre tratar nos mesmos termos os vencedores e os venci-
dos da história das ciências, mas também […] a natureza e a sociedade”
(LATOUR, 1997, p.24), os humanos e os não-humanos. Vinculados ao
campo STS (ou CTS para a sigla em português), estudos orientados pela
Teoria Ator-rede (TAR) alertam para a necessidade de definições mais
performativas e menos dogmáticas. A regra não pode ser a ordem. Para
os sociólogos das associações (LATOUR, 2001, 2005), a regra é perfor-
mativa, e as exceções, os conflitos, a criação também devem ser contabi-
lizados nas redes analisadas. Nesse caso, Latour (2000, p. 421) apresenta
sua primeira regra metodológica: “Estudamos a ciência em ação, e não a
ciência ou a tecnologia prontas; para isso, ou chegamos antes que os fatos
e máquinas se tenham transformado em caixas-pretas4, ou acompanha-
mos as controvérsias que as reabrem”.
Assim sendo, propomos para esse artigo apresentar alguns estudos
já publicados no campo da comunicação para os quais a TAR nos ofe-
rece caminhos metodológicos coerentes com as incertezas presentes ao
longo do decurso. Seja sobre televisão ou através das redes digitais de
compartilhamentos, o Princípio da Simetria supõe pensar o social me-
nos como uma categoria quantitativa de base analítica posta antecipa-

guagem em sociologia. “Em lugar de imputar aos atores sociais, a cada vez, interesses, cálculos, classes,
hábitos, estruturas, supondo-os marionetes da sociedade, a etnometodologia quer esvaziar a sociologia de
toda a sua metalinguagem e quer tomar o ator e sua prática como o único sociólogo competente. Entre
o sociólogo falastrão e o ator, é melhor confiar no ator. Entre o sociólogo que põe ordem e o ator que
acrescenta desordem, é melhor confiar no ator – e pior para a desordem” (p.28).
4 “A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de coman-
dos se revela complexo demais” (LATOUR, 2000, p.14). Há, portanto, relação com fatos ditos incontes-
táveis, os quais adquirem estabilidade ao conseguirem neutralizar incertezas e controvérsias ao seu redor.
Neste caso, a caixa-preta está fechada; ficando a cargo de algum tipo de polêmica ou mudança no cenário
geral de existência do fato o poder de reabri-la. Nota incluída pela autora.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 139

damente, e mais como um processo contínuo, vinculado a uma rede de


relações heterogêneas geradas no campo das experiências. Seguindo a
ideia de descrever sem explicar, ou narrar sem necessariamente demar-
car soluções definitivas para as controvérsias identificadas, rastreando as
conexões a partir de uma escrita etnográfica, a TAR redefine a noção de
social para além dos limites humanos, como uma rede de (re) associações
entre elementos híbridos - humanos e não-humanos.
Considerada pelos próprios autores uma ferramenta metodológica,
não pretende a universalidade de uma teoria, nem privilegia os aspec-
tos humanos daqueles normalmente conhecidos como atores sociais. Por
outro lado, a sigla para Actor-Network-Theory (ANT) e seu significado em
inglês, formiga, funcionam perfeitamente como analogia para a impor-
tância das pequenas conexões. John Law (2008) discorre sobre a necessi-
dade de buscarmos métodos de investigação científicos condizentes com
“realidades performativas”. Para ele, a teoria deve ser feita sob forma de
estudo de caso: ao invés de seguir regras metodológicas capazes de ilumi-
nar objetos preexistentes, a TAR busca analisar as condições de possibili-
dades abertas aos novos actantes5, ao múltiplo e ao heterogêneo. Este tra-
balho portanto referencia-se na performatividade do método, a partir da
qual a pesquisa empírica tem como objetivo dar luz a conexões invisíveis,
às vezes, consideradas irrelevantes, ou numericamente insignificantes.
Ao abrir a caixa-preta dos fatos científicos, não ignoráva-
mos que abriríamos a caixa de Pandora […] Agora que ela
foi aberta, espalhando pragas e maldições, pecados e doen-
ças, só há uma coisa a fazer: mergulhar na caixa quase va-
zia para resgatar aquilo que, segundo a lenda venerável, fi-
cou lá no fundo - sim, a esperança (LATOUR, 2001, p.37).

Caixa-preta 1: televisão híbrida e


uma perspectiva sociotécnica

5 De acordo com Bruno Latour, a palavra ator, do inglês actor, se limita a humanos, por isso, muitas ve-
zes utiliza actante (actant), termo emprestado da semiótica, para incluir não-humanos no entendimento
sobre coletivo.
140 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Já fazendo alusão à Teoria Ator-rede, são muitas as caixas-pretas


envolvidas na relação com os meios de comunicação. A primeira a ser
considerada aqui é uma proposição bastante presente nos estudos em
torno dos processos comunicacionais convencionais, e dá conta de um
telespectador absolutamente manipulável pelas estruturas de comuni-
cação de massa. Por outro lado, instabilidades também são observadas
quando, ao contrário, outros debates evidenciam que estas mesmas es-
truturas vêm sendo transformadas pela digitalização dos suportes e pela
possibilidade de distribuição descentralizada dos conteúdos. O encontro
entre tecnologias analógicas (massivas) e digitais (também consideradas
pós-massivas) esquenta esta discussão: de um lado, otimistas que visuali-
zam na digitalização a salvação de todos os problemas da humanidade;
de outro, opiniões que apontam para a subserviência absoluta a estes
mesmos aparatos tecnológicos, utilizados para manipular e controlar a
sociedade. E, entre as mais diversas elucubrações teóricas, os actantes hu-
manos e não-humanos que se ajustam através de conexões parciais, nessa
rede em movimento permanente. De onde se imagina possam emergir as
mais diversas configurações.
De maneira nenhuma, o trabalho aqui proposto tem como objetivo
(mesmo parcial) a anulação das reflexões com foco nas Teorias da Comu-
nicação, minimizando a importância da interpretação dos conteúdos das
mensagens e seus efeitos. Entretanto, propõe certo distanciamento da
ideia de mensagem e emissor como artifícios centrais e únicos fatores de
influência. O receptor tem muita coisa a dizer e, por isto, empenhamo-
-nos, a partir do olhar direcionado às possíveis controvérsias encontra-
das no campo, em observar questões de forma menos normativa, e mais
circunstanciada. Neste desvio proposto às “grandes narrativas” (LAW,
2008; LATOUR, 1997) temos a pretensão de produzir interferência e
visualizar outras questões performadas, ao dar voz aos que nos pareciam
desconhecidos até este momento. Para John Law (2008), pesquisar é in-
tervir, e assumimos aqui esse comportamento.
O método performativo permite reconhecer o híbrido nessas rela-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 141

ções ao considerar detalhes esquecidos em outras análises, ou variações


das observações já em curso. Propor um pensamento a partir da ideia
de sociotécnica enfraquece qualquer observação de um envolvimento
puramente humano (baseado exclusivamente na análise de habilidades
incorporadas) ou não-humano (favorecendo uma ideia de preponderân-
cia absoluta da técnica). Neste caso, as observações estão atentas aos
vínculos e ao aprofundamento em torno das múltiplas possibilidades
que emergem das relações presentes entre os sujeitos e os modos como
utilizavam suas ferramentas comunicacionais: um coletivo pulsante de
intenções e práticas. Em outras palavras, propomo-nos “a abandonar a
dicotomia sujeito-objeto, que impede a compreensão de coletivos” (LA-
TOUR, 2001, p. 208).
O equívoco do paradigma dualista foi sua definição de
humanidade. Até a forma dos humanos, nosso próprio
corpo, é composta em grande medida de negociações e
artefatos sociotécnicos. Conceber humanidade e tecnolo-
gia como pólos opostos é, com efeito descartar a huma-
nidade: somos animais sociotécnicos e toda interação hu-
mana é sociotécnica. Jamais estamos limitados a vínculo
sociais. Jamais nos defrontamos unicamente com objetos
(LATOUR, 2001, p.245).

Os resultados da abertura dessa primeira caixa-preta - uma investi-


gação social com inspiração etnográfica, que acompanhou ao longo de 4
anos 11 famílias nas suas relações como meios de comunicação6 - consta-
tam que a programação de TV não ocupa de forma soberana os espaços
de recepção. Outros interesses, intenções, ações objetos e emoções tam-
bém se fazem presentes, e são preponderantes pelas instabilidades que
promovem na rede de relações coletivas.
Tudo preparado para a ocasião: verde e amarelo na decoração da casa, roupas e cabelos.
Cumprindo um dos seus papéis mais requisitados, a programação de TV ajuda a compor
o cenário para um evento coletivo: a Copa do Mundo de Futebol. A televisão confirma
o seu papel de integradora, somada à cerveja estupidamente gelada e muita comida.

6 Objetivos, princípios metodológicos e análises completas estão publicadas em AZAMBUJA, Patrícia.


Televisão Híbrida: recepção de TV sob a perspectiva sociotécnica da Teoria Ator-rede. São Luís: Edu-
fma, 2017.
142 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Alimentação controlada? “Só quando a Copa acabar”, afirma o torcedor (TRECHO


EXTRAÍDO DO DIÁRIO DE CAMPO).

Para alguns telespectadores - um actante dessa rede complexa - o


encontro nem sempre era o mais importante e múltiplas condições de
possibilidades estavam sendo potencializadas no campo em observação.
Em uma situação suis generis, por exemplo, um sujeito presente no am-
biente coletivo saiu da festa e voltou para sua casa, argumentando que
naquele lugar não conseguiria a concentração necessária para assistir ao
jogo. Portanto o primeiro nó da rede - articulada de início por interesses
aparentemente comuns - desdobrou-se em um segundo conjunto de nós,
a partir do estabelecimento de uma nova configuração possível.
O representante dissidente da ‘festa’ da Copa do Mundo é o típico fanático por esporte.
Ele passa bastante tempo em frente à TV, pois diz não gostar muito de sair de casa.
Assiste aos jogos de futebol, vôlei, comentários, entrevistas, bate-papo, entre filmes que
coleciona. Compra pacotes especiais para assinantes, aparelhos de última geração e cons-
truiu um espaço em casa todo especial para a TV (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE
CAMPO).

Dar voz às pequenas narrativas:


objetos também agem
Em linhas gerais, a programação - voltada ao lazer, momentos de
descontração ou informação - incorporou diferentes facetas dentro do
espaço doméstico. O hábito de assistir ao conteúdo veiculado também
parecia ajustado à dinâmica da própria casa, sua estrutura física ou ativi-
dades diárias de cada morador.
À noite não é o único momento em que assistem à televisão juntos (em um ambiente
grande e compartilhado), mas certamente, é o momento mais curioso. Isto porque, pa-
ralelamente ao ato de ver TV, os diferentes integrantes da família sempre estão com sua
atenção dividida com outras tarefas. Uma particularidade: os espaços da casa foram
reestruturados no sentido de facilitar essa interação (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE
CAMPO).
O quarto é o espaço de recepção para os jogos do Botafogo. Localizado no segundo
pavimento da casa, tem acesso restrito através de uma escada em caracol. Autoriza-
da naquele momento, subo ao “quartel general” após ser anunciada pela filha. Como
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 143

era de imaginar, estavam os dois, ele assistindo às preliminares do jogo e a esposa no


computador. Certamente, aquele ambiente não se mostrou favorável a minha presença
(ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE CAMPO).
A estrutura da casa oferece espaços bem definidos. Curiosamente, um aparelho de TV
específico está presente em quase todos, inclusive, no banheiro e no carro [...] Repeti essa
visita algumas vezes, neste mesmo horário, e quase sempre, ele estava assistindo à TV na
varanda (lugar mais ventilado da casa), aproveitando para fumar, fazer seu passatempo
ou conversar com os vizinhos. A esposa estava no quarto, assistindo à outra programação
(ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE CAMPO).

Assim, refazer o social a partir da costura de vínculos das diferenças


torna possível demonstrar como os próprios actantes - coletivo híbrido
entre humanos e não-humanos - estabilizam suas controvérsias. As es-
tabilizações observadas evidenciam que o espectador não está sozinho,
apresentam conexões materiais claras, com o espaço, o corpo, os objetos,
a memória, com hábitos adquiridos, aspectos emocionais e sensoriais.
O meu espaço no fundo da casa é para o futebol, preparado especialmente para isto.
É mais amplo, ventilado, televisor e sofá maiores e onde eu fico deitado. Quase nunca
assisto ao futebol no quarto, pois depois de um jogo do meu time, eu fico muito tenso e
demoro pra relaxar (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE CAMPO).

Os de vôlei eu me programo pra tá realmente analisando as novas tendências do jogo. É


mais trabalho... Inclusive eu sento, faço avaliação do jogo, faço cálculos [...] deixa de ser
lazer. Eu me sento à mesa, porque eu só estudo assim, eu não estudo deitado. Quando eu
tô assistindo ao jogo eu boto uma mesa, daí eu me sento e fico fazendo anotações. Mas se
for como lazer, eu durmo. Por exemplo, uma corrida é legal, mas eu não tenho interesse
nenhum. Eu fico curtindo, olhando [deitado na rede] (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO
DE CAMPO).

O controle remoto, por exemplo, tem a capacidade tanto de fazer


emergir um sujeito fragmentado e passivo a partir do zapping aleatório,
e associado aos momentos de relaxamento, como parece ser a evidência
material de que este mesmo sujeito não se conforma com sua exposição
aos conteúdos uniformes e pouco circunstanciados. Ao que parece, o fato
de existirem estabilizações - rituais seguidos a partir de certo automatis-
mo - não justifica condições de recepção homogênea como regra geral.
Interessante a questão: quem tem o controle do controle? Assim como,
144 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

sua relação com a terceira fonte de incerteza de Bruno Latour (2005):


objetos também agem.
Ester comenta: ‘Gosto de assistir televisão na sala, pois eu tenho o controle só pra mim.
No quarto, o Eduardo controla’ (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE CAMPO).

David Morley (1992) destaca essa discussão ao analisar as relações de


poder que emergem desta problemática. O poder e o controle de quem
vai dar a última palavra sobre a escolha da programação. Curiosamente,
em suas observações de campo, Morley (1992) avalia que nenhuma das
mulheres, nas famílias acompanhadas por ele, tinha acesso ao dispositivo.
A posse (também simbólica) era do pai, tanto que o objeto ficava no bra-
ço da cadeira de uso exclusivo dele.
Em relação ao que parece profetizar o conteúdo desta caixa-preta,
sobre questões de gênero ou categorizações socioculturais muito espe-
cíficas, pode-se dizer: as mulheres aqui acompanhadas talvez não tives-
sem a posse do controle remoto, em contrapartida, tinham acesso ao seu
próprio aparelho de TV, entre os muitos distribuídos pela casa. O que
não minimiza questões vinculadas ao poder, mas demonstra a diversifica-
ção significativa da audiência nos momentos de recepção dos conteúdos
transmitidos nos dias de hoje. A pretensa homogeneidade das práticas,
consideradas desde então, conduz, na verdade, ao reconhecimento de
um coletivo instável e ajustável às múltiplas conexões estabelecidas em
cada momento de uso, e por cada rede de actantes.
O entendimento deste estado de fragmentação nas condições de
recepção contribuiu, também, na investigação em torno dos conteúdos
transmidiáticos. Uma de nossas informantes justificou sua preferência
pela internet pelo mesmo motivo: liberdade de escolher o quê, quando,
como, onde e porquê. Por isto mesmo, fazia tudo ao mesmo tempo, estu-
dava, se divertia, conversava com os amigos e buscava informação. Situ-
ações não apenas presentes no espaço da WEB, pois estava quase sempre
integrada com os ambientes físicos, com o aparelho de TV convencional
e com os demais integrantes da sua família.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 145

Se por um lado, ela não gostava do hábito da mãe de ficar zappe-


ando - por considerar que o espectador de TV suprimiria parte da pro-
gramação quando mudasse de canal (conteúdo transmitido) -; por outro,
ela achava que com a internet poderia ser diferente (conteúdo disponi-
bilizado), isto porque mesmo pulando páginas sabia que não perderia
informação, considerando que todo o conteúdo sempre permaneceria
ali, disponível. Sendo assim, duas pessoas, de gerações e hábitos diferen-
tes ou fazendo uso de tecnologias aparentemente dissonantes em termos
de acesso, no fundo, apresentavam comportamentos similares. Televisão
e internet de fato não eram estruturas orientadas por uma mesma lin-
guagem, no entanto, uma pessoa na TV (utilizando o controle remoto)
ou outra na internet (fazendo leituras técnicas, atualizando as informa-
ções ou lendo e-mails), ambas, produziam um percurso de recepção com
aspectos comuns, uma gramática compatível para audiências distintas:
fragmentada, seletiva e instável. Situações muito próximas às discussões
promovidas hoje em torno do conceito de hipertextualidade. Logo, se
para alguns pesquisadores, televisão e internet são consideradas tecno-
logias completamente diferentes nas suas formas de uso, também parece
claro que as ações que vem sendo produzidas entre esses dois ambientes
estimulem a percepção de outras evidências. Janet Murray (2003, p.237)
as situa: “De atividades sequenciais (assistir e, então, interagir), para ati-
vidades simultâneas, porém separadas (interagir enquanto assiste), para
uma experiência combinada (assistir e interagir num mesmo ambiente)”.
Estas questões são aprofundadas no livro O fim da televisão, organizado por
Mário Carlón e Yvana Fecchine (2014).

Em uma rede de conexões heterogêneas, as


instabilidades do campo querem dizer mais
Passados sete anos de trabalho, contabilizadas 7h18min em áudio
com entrevistas, 15h25min em imagens de vídeo transformadas em 52
páginas com detalhes específicos sobre o campo, registros fotográficos,
prints de redes sociais, análises de questionários e praticamente 15 meses
146 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

de convívio com os integrantes das famílias e nos sites de relacionamento


acompanhados […] foi possível buscar entender o que realmente impor-
tava na observação sobre consumo de TV.
Incontestável: foram as experiências vividas com um dos informan-
tes que tornaram tudo mais claro. Convivendo com ele, foquei minha
atenção nas suas conexões com a música. O quanto apreciava ocupar um
ambiente doméstico sonoro, o quanto isto poderia ter relação com o ato
de cozinhar, beber vinho, ou mesmo perambular pelo centro da cidade à
procura de relíquias em vinil. Outros vínculos estavam conectados ao ou-
vir: MP3, acessar e-mails, entre outros. Apesar de esses movimentos não
estarem relacionados diretamente aos seus momentos com a TV (veículo
com o qual mantinha um relacionamento muito pontual), esse tempo de
convivência foi esclarecedor no sentido em que me fez despertar para o
quanto o volume de informações e a velocidade de acesso, cada vez mais
determinantes nos processos de comunicação atuais, poderiam revelar
antigos hábitos (ou mesmo promover a manutenção de outros).
Daí chegou o momento em que eu tinha, sei lá, 100 Giga de música em MP3, que eu
colocava no player para ir variando, ficava ouvindo as músicas em uma ordem aleatória,
não sabia qual era o álbum, não sabia como era o disco [...] às vezes, nem sabia quem
tava cantando. E acabou perdendo o valor de você ouvir um álbum, o disco completo, de
saber quem são os músicos [...] Daí eu ganhei uns discos de vinil da minha sogra […]
e hoje virou um hobby em casa, de botar um disco, olhar a capa, ler sobre o disco, em
que ano foi feito [...] O ato de ouvir música virou uma coisa mais prazerosa [...] A obra
não é um bando de música empilhada!! (ANOTAÇÕES DO DIÁRIO DE CAMPO).

O hábito - por vezes considerado um comportamento automático


e pouco racional - demonstrou o poder de materializar ações ligadas ao
conforto. Um dado da memória afetiva, de cunho puramente emocional,
ligado ao prazer, ou que talvez estivesse associado ao puro ócio, na práti-
ca, envolveu uma trama de conexões complexas e abertas, eventualmen-
te, a sentimentos também de contemplação e relaxamento.
Esse informante, de fato, performou vários vínculos ao ouvir mú-
sica, ações, sensações, objetos, enfim, actantes conectados, nem sempre
subjugados ao seu controle absoluto. O que apareciam como elementos
residuais passaram a ser incorporados como indícios elementares para
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 147

compreensão das redes de associações até então mapeadas. Outros re-


síduos foram significativos, entre eles, uma indicação desprezível à pri-
meira vista: minhas próprias percepções ao serem confrontadas com os
diversos depoimentos. As sensações que algumas pessoas observadas ti-
nham com a novela, por exemplo, eram muito similares às de quem as
observava - chegar em casa, sentar em frente ao aparelho de TV, tirar os
sapatos, esticar as pernas e não pensar em mais nada. Ações involuntárias
nunca antes percebidas começavam a caracterizar etapas de um ritual
com elementos imprescindíveis entre si.
O movimento constante entre uma associação e outra estabelece
as condições para a análise sociotécnica proposta e, neste sentido, utili-
zar a metodologia com base na Teoria Ator-rede é dar condições para
que outros actantes possam fazer parte do coletivo observado através de
suas pequenas conexões e narrativas: entidades igualmente completas,
ubíquas, respeitáveis e empíricas formam o material não-social do social
aqui acompanhado.
Para este trabalho de campo, as ferramentas de investigação foram
orientadas no sentido de análise de realidades complexas, seguindo os
seguintes princípios: 1) o princípio de simetria, isto é, a não distinção pre-
estabelecida dos agentes que compõem a trama híbrida entre sociedade
e natureza (rede sociotécnica); 2) a produção do conhecimento se estabe-
lece em rede através de múltiplas conexões em processo, estando o social
baseado nas interações sempre ativas e podendo ser performado em sua
atuação coletiva; 3) o conceito de cognição distribuída: em rede, aberta
e instável; 4) os objetos como actantes; e 5) a mediação não entendida
como interlocução pura, mas com poder de transformar ou deformar.
Basicamente levamos em consideração o que Latour (2005) chamou de
produção cooperada entre humanos e não-humanos, pois os teóricos da
TAR acreditam ser razoável aceitar que o curso da ação raramente con-
siste de ligação humano-humano ou objeto-objeto, mas segue provavel-
mente em zigue-zague, a partir de um para outro.
148 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Na ação metodológica em si, Bruno Latour (2005) aconselha cum-


prir, sucessivamente, três tarefas distintas. Primeiro, aprender a seguir
controvérsias, para assim conseguir ampliar a quantidade de participan-
tes possível de existir em qualquer futuro agenciamento, sem necessa-
riamente restringir o social a um domínio específico. Segundo, rastrear
a maneira como os próprios actantes estabilizam estas controvérsias. Só
então, observar através de quais procedimentos as agências reunidas con-
seguem refazer as relações sociais.
Se seguir controvérsias nos serve de orientação metodológica para
analisar o consumo de televisão, o que dizer das relações que se estabe-
lecem a partir do uso de redes sociais digitais? A abordagem seguinte
discorrerá acerca de outras conexões possíveis nos processos de comuni-
cação, e das instabilidades previstas pela TAR.

Caixa-preta 2: conexões entre online e offline7


Reportagem recente8, baseada em dados disponibilizados pela ONG
Safernet Brasil9, afirma que o número de vítimas do compartilhamento
de fotos íntimas pela internet dobrou nos últimos dois anos no país: de
42 atendimentos, no ano 2012, para 101 em 2013. Algumas expressões
surgem no sentido de definir comportamentos que evidenciam novas ma-
neiras de expressar sexualidade entre os jovens, e o nude selfie, ou selfie com
nudez, marca essa nova forma de comunicação por imagem, que viabili-
za muitas vezes uma prova de cumplicidade entre parceiros. No entanto,
o que alguns desses indivíduos nem parecem desconfiar, é que essas fotos,
uma vez disponibilizadas no espaço online, passam a ocupar um campo de
7 O artigo completo, com todos os resultados e análises dessa pesquisa, está publicado em AZAM-
BUJA, Patrícia K.; COELHO, Ana Paula. Ações, Rastros e Controvérsias Online/ Offline: possibili-
dades metodológicas a partir da Teoria Ator-rede. Estudos e Pesquisas em Psicologia (Online), v. 15,
p. 1201-1223, 2015. Disponível em: < http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/
view/20254/14597>. Acesso em: 20 jan. 2016.
8 Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/04/vitimas-de-nude-selfie-e-sexting-
-na-internet-dobram-no-brasil-diz-ong.html>. Acesso em: 15 abr. 2014.
9 Disponível em: <http://www.safernet.org.br/site/>. Acesso em: 23 abr. 2014.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 149

dinâmica própria, e aparentemente sem limites ou controle. Reverberan-


do inclusive situações e desdobramentos nos espaços offline.
Definimos nosso ponto de partida para esta investigação: assimilar
as interconexões quase sempre nebulosas entre as fronteiras online e offline.
Isto é, ações observadas no mundo das trocas virtuais que transitam de
forma “espontânea”, e sob várias nuanças, por entre os espaços material-
mente percebidos. Se por um lado, configuram movimentos e consequ-
ências nem sequer percebidas por boa parte dos usuários, por outro, po-
dem causar muito tumulto ou servir de embriões conscientes para ações
efetivas e mudanças significativas em toda a sociedade.
Se Bruno Latour (2005) nos convoca a seguirmos controvérsias, o
foco inicial é sempre a complexidade, e para esse segundo trabalho es-
colhemos o Caso Marie10: jovem brasileira, de 20 anos, que teve imagens
suas, em momento íntimo com o namorado, visualizadas em diversas
mídias sociais. Assim, instabilidade aparece como uma palavra de ordem,
principalmente, quando um fato absolutamente particular se revela efi-
caz em mobilizar um grande contingente de pessoas e de diferentes ações:
comentários que recriminam a atitude da adolescente, do namorado, ou
mesmo de quem recrimina, além de outras vítimas, que encorajadas pela
publicização do evento, saem do anonimato e se posicionam em favor de
Marie. A partir desse caso, o assunto ganha visibilidade, propondo a to-
dos os envolvidos um olhar mais crítico em relação ao tema, assim como,
ações públicas mais contundentes a esse tipo de atividade na internet.
De início, os vídeos pessoais da adolescente migraram de mensagens
no Whatsapp para as redes sociais e sua vida privada foi invadida de forma
rápida e avassaladora. Em matéria veiculada no portal G1, observamos
os efeitos iniciais do fato na vida de Marie: “mãe de uma menina de 2
anos, teve que mudar a aparência e parar de trabalhar. Hoje, ela evita

10 Os nomes reais e identidades de nossos informantes foram alterados por versões fictícias, na medida do
possível, no sentido de preservar minimamente sua privacidade.
150 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

sair de casa”.11 Uma pesquisa rápida com ferramenta de busca localiza,


aproximadamente, 13.700.000 resultados, em 0,24seg. Os 200 primeiros
links, das formas mais variadas, estavam vinculados ao caso em questão,
sendo que as fotos íntimas ilustravam o topo da página. Em pouco tempo,
havia links para o vídeo que já estava no Youtube, comentários, compar-
tilhamentos, memes, críticas, grupos de discussão, matérias na imprensa
nacional e local. Blogs de diversos tipos, de grande alcance, comentavam
o fato, e o número de apoiadores (ou não) à Marie aumentava. Setores
feministas, familiares e amigos se uniram contra o cyberbulling12, e solidá-
rios à jovem. Os embates giravam em torno do julgamento em relação
à atitude da jovem de se expor através de fotografias, de ideias a respeito
da liberdade do corpo feminino, a moral, machismo etc. A violência e o
apoio surgiram de diversas partes e de diversas formas, sendo multiplica-
dos nas redes sociais de modo quase instantâneo. Rapidamente foi criada
uma página no Facebook, chamada Apoio Marie, produzida por amigas
e que possuía uma linha claramente feminista. Na página eram divulga-
das matérias sobre o assunto, depoimentos de pessoas que passaram pela
mesma situação ou da própria Marie, que, na época, havia cancelado sua
conta no Facebook.
Enquanto isso, outras páginas também eram criadas com o objetivo
de ridicularizar o caso e a própria Marie, considerando o destaque dados
às suas imagens.

Cartografia de controvérsias: versão didática da TAR


Para os teóricos da TAR - de base etnometodológica amparada em
trabalho empírico - o curso da ação social deve seguir as tramas de co-

11 Trechos de matéria veiculada em 17/11/2013. Disponível em: < http://g1.globo.com/fantastico/no-


ticia/2013/11/nao-tenho-mais-vida-diz-fran-sobre-video-intimo-compartilhado-na-web.html>. Acesso
em: 18 nov. 2014.
12 É o uso do ciberespaço para comportamentos de hostilização de indivíduos. A ação consiste no uso do
espaço da internet para humilhação pública.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 151

nexões oferecidas pelo encontro entre o pesquisador e o contexto socio-


técnico observado (e não concluído). Cabe, portanto, seguir as ações não
visíveis imediatamente e não abandonar a árdua tarefa de seguir todas
as interferências. Latour (2005) acentua no requisito ator-rede (actante) o
que representa uma fonte de incerteza significativa, relacionada à origem
da ação, que precisa ser assumida (segunda fonte de incerteza). “É por
isso que, paradoxalmente, devemos considerar todas as incertezas, hesi-
tações, deslocamentos e enigmas como nossas referências centrais” (LA-
TOUR, 2005, p.47, tradução nossa)13. Para ele, as entrevistas individuais,
as narrativas e os mínimos comentários fornecerão ao pesquisador um
conjunto de informações representativas sobre o curso da ação. Devemos
evitar ouvidos distraídos para o que parece estranho ou complicado, é
preciso compreender a diversidade das agências que funcionam ao mes-
mo tempo no mundo, e dar atenção às controvérsias da ação em curso.
Pressupõe-se, neste caso, a sua quinta fonte de incerteza, sobre a escrita
de relatos de risco. Segundo Latour (2005), é preciso colocar em primeiro
plano o próprio ato de compor relatos, questionando a suposta objetivi-
dade científica, pois pesquisadores não estão simplesmente olhando por
trás de uma vidraça, eles efetivamente escrevem textos.
Assumimos como metodologia o caminho da percepção de tensões
e complexidades: abrir caixas-pretas e cartografar controvérsias. Para
Tommaso Venturini (2010), a cartografia de controvérsias é o conjunto
de técnicas para observar instabilidades e descrever questões que surjam
daí. Trata-se de uma versão didática da Teoria Ator-rede.
O que parece importante para estes pesquisadores são as possibili-
dades de ampliação nos modos de existência dos actantes, possíveis não
na ideia de esgotamento ou criação de fronteiras conceituais ou de mo-
dos de coleta, mas na tessitura constante da rede de conexões em ação.
Para Venturini e Latour (2010), a fraqueza de abordagens dualistas - a
partir das quais, métodos quantitativos descrevem estruturas globais ape-

13 This is why we should paradoxically take all the uncertainties, hesitations, dislocations, and puzzle-
ments as our foundation.
152 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

nas quando estão estabilizadas e métodos qualitativos concentram-se em


interações locais somente quando circunscritos pelos participantes (como
instâncias no passado) - é evidente, isso porque são impotentes diante de
fenômenos emergentes.
Em vez de concentrar-se nas áreas de consenso, os autores voltam-
-se para o estudo das controvérsias. Onde as disputas são furiosas, onde
os jogadores não chegam a um acordo, onde os laços sociais são liqui-
dados ou, simplesmente, onde as mudanças ocorrem tão rapidamente
que as velhas instituições não conseguem reconhecê-las. Controvérsias,
em Ciências Sociais, são normalmente fenômenos residuais. As análises
preliminares sobre os desdobramentos do Caso Marie apresentam por
si só muitas questões além da simples dicotomia de opiniões e ações nas
redes sociais digitais. Outras movimentações na rede foram significativas
ao longo do processo de observação - de outubro de 2013 a abril de 2014.

1. A primeira ação é a própria controvérsia: enquanto uma pessoa tem


sua intimidade exposta a partir de aplicativo de conversa de celular
(Whatsapp), o que se observa em linhas gerais são tensões favoráveis e
desfavoráveis que apenas alimentam ainda mais a rede de violência
e preconceito, que se espalha de forma rápida e incontrolável.
2. A complexidade da rede se apresenta através das muitas vozes diver-
gentes nas páginas criadas, nas fotografias, memes ou links comparti-
lhados. E uma página de apoio é produzida por amigas, promoven-
do uma ação mais “solidária” em torno do Caso Marie.
3. A partir deste caso em específico, outros casos semelhantes são apre-
sentados à sociedade, com desenlaces danosos para os envolvidos
(suicídios, entre outros). Assim os meios de comunicação passam
a dar atenção ao tema, e vínculos concretos são observados entre
ações online e desdobramentos offline.
4. Mobilizações e ações dentro e fora da rede ganham apoio dos legis-
ladores, e as vítimas começam a vislumbrar amparos nas leis, com
a possibilidade de penas mais severas aos agressores e aos sites que
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 153

postam esse tipo de conteúdo.


A “simples” visualização dos embates e desdobramentos que emer-
gem de um fato íntimo inicial já nos serve de reflexão sobre o ato consi-
derado “simples” de compartilhar ou curtir mensagens nas redes sociais
digitais. Além disso, sinalizam para o que Steven Johnson (2003) chama
de aprender com sistemas a partir dos quais a adaptabilidade advém de
conhecimento local: a informação local pode levar à sabedoria global.
Vemos comportamentos emergentes em sistemas como os
de colônias de formigas, onde os agentes individuais do
sistema prestam atenção a seus vizinhos mais próximos em
vez de ficarem esperando por ordens superiores. Eles pen-
sam localmente, e agem localmente, mas sua ação coletiva
produz comportamento global (JOHNSON, 2003, p.54).

Um fato que aparentemente só dizia respeito ao casal passou a tema


polemizado por um “grupo de amigos”, seu significado e suas conse-
quências passam a envolver um coletivo de pessoas, ferramentas e insti-
tuições. Os acontecimentos ganhavam uma dimensão de problema a ser
resolvido socialmente e politicamente, somando iniciativas do âmbito das
esferas privada e pública.

Online/ Offline: formas híbridas


de organização do espaço público
O que percebemos, a partir desse pequeno mapa e da observação
mais detida das ações na rede, é que o que configura essas manifestações
não se constitui pela diferenciação entre online e offline, mas sim por suas
múltiplas possibilidades de intersecção e coexistência, assim como, pela
conexão entre os indivíduos, os valores que possuem, os lugares que ha-
bitam, os dispositivos que usam, suas associações e movimentos. Além do
seu potencial ligado aos jogos de lazer, a comunicação interpessoal ou a
simples divulgação de conteúdos de informação e entretenimento ligados
às corporações midiáticas, a internet e as redes sociais digitais podem ser
observadas como espaços para além do conversacional, de ideias soltas
154 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

na nuvem, são claramente mediadoras do discurso social, do debate ideo-


lógico, da mobilização coletiva, em alguns casos, uma oportuna “arma”
contra-hegemônica.
Por esta ótica, algumas redes digitais que se formam dão vazão a
anseios sociais de minorias, de segmentos de toda sorte. Logo, parece-nos
evidente a grande diversidade de temas, informações, contextos, confi-
gurações espaciais/ materiais e comportamentos, sempre em constante
movimento. O que, por outro lado, também não aparece dissociada das
antigas formas de organização, nas redes sociais offline do “passado”. Ma-
nuel Castells (2003) utiliza como exemplo o movimento operário na Era
Industrial, que tinha a fábrica como infraestrutura material de mobiliza-
ção (ou como alguns historiadores afirmam, também, os pubs). Assim, o
que temos na Era da Informação são outras configurações e ajustes, con-
siderando novas práticas de organização a partir da WEB. A “internet
não é simplesmente uma tecnologia: é um meio de comunicação (como
eram os pubs), e é a infraestrutura material de uma determinada forma
organizacional: a rede (como era a fábrica)” (CASTELLS, 2003, p.116).
Castells (2003) pontua três razões que destacam as redes digitais como
componentes indispensáveis para pensar as formas de organização que
emergem na sociedade atual:
os movimentos sociais na Era da Informação são essen-
cialmente mobilizados em torno de valores culturais; […]
têm de preencher o vazio deixado pela crise das organi-
zações verticalmente integradas, herdadas da Era Indus-
trial; [e considerando que] o poder funciona cada vez mais
em redes globais, passando em grande parte ao largo das
instituições nacionais, os movimentos se defrontam com a
necessidade de obter o mesmo alcance global dos poderes
vigentes, exercendo o seu próprio impacto sobre a mídia,
através de ações simbólicas (CASTELLS, 2003, p.116-
118).

Pensar a mobilização social no contexto das tecnologias em rede


passa inevitavelmente pela percepção detalhada também de valores cul-
turais, anseios e necessidades expressas pelos cidadãos e suas possíveis
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 155

conexões locais e globais, considerando as relações para além do discurso


e da linguagem, constatando desdobramentos materiais do espaço onde
essas relações estão instituídas.
Quando utilizamos o Caso Marie como recorte para as investiga-
ções, visamos performar um pequeno mapa de tensões, debates e influ-
ências, a partir do qual, torna-se possível observar as nuanças entre os
ambientes online e offline, variações em torno das opiniões dos coletivos,
os diferentes comportamentos individuais, consequências danosas, ações
criativas, questões privado/público, entre outras. Observamos um tema
eclodir da relação entre duas pessoas, sua mediação online, à condição
de pauta relevante para a sociedade. Logo, não nos passa desapercebido
o conceito de Pierre Levy (1996) sobre “virtualização como dinâmica”
(p.17), como potência a ser atualizada. O virtual online, para Levy (1996,
p.16) não se opõe ao real offline, uma vez que, “o virtual é como o com-
plexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha
uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer,
e que chama um processo de resolução: a atualização”. De fato, essa po-
tência tem relação direta com a forma, como os organismos coletivos se
rearranjam, organizam suas pautas e utilizam ferramentas digitais para
isso: um percurso comunicacional que parte do espaço virtual desmate-
rializado às questões do espaço concreto - político - social, ativando ações
entre humanos e não-humanos. Constatamos o potencial de transforma-
ção latente desse conjunto de conexões, a necessidade de condutas mais
conscientes, capazes de agregar e organizar ações coerentes e proposi-
ções de metas claras.
Foi perceptível que nos períodos de outubro a dezembro de 2013,
o termo tenha sido mais utilizado em decorrência, sobretudo, da aten-
ção que os casos receberam com as notícias de suicídio de adolescentes
superexpostas. O assunto acabou saindo dos círculos pessoais das redes
sociais digitais e ganhando espaço nos meios tradicionais de comunica-
ção, gerando discussões mais acaloradas e exigindo ações mais severas no
156 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

tocante à legislação vigente e à ação criminosa.


Não só a legislação, mas o debate feminista ocupou a pauta e os
espaços de discussão, de luta e, assim, as próprias vítimas conseguiram
algum conforto. A ideia central defendida é a de que a culpa do vaza-
mento do conteúdo não poderia ser, única e exclusivamente, da vítima,
mas também de quem posta ou de quem compartilha. As meninas, mui-
tas vezes, são imediatamente julgadas porque se deixam filmar, fotografar
ou, simplesmente, pelo fato de serem mulheres. E a velocidade dos com-
partilhamentos através dos dispositivos móveis favorecem a multiplicação
rápida dos conteúdos colocados na rede, além da espantosa impossibili-
dade de contê-la. Muitas vezes, mesmo sem intenção, um despretensioso
“curtir” colabora com ações maliciosas. As vítimas, então, são expostas
a partir das imagens, dos comentários maldosos ou das opiniões mais
contundentes de quem nem mesmo as conhecem. Os fatos atingem um
grande contingente de pessoas, que se sente na obrigação de ter algum
tipo de opinião sobre o comportamento das vítimas e, nesse instante, o
cyberbulling ganha a dimensão de julgamento popular.
Percebe-se, a partir da estabilização temporária dessa rede de co-
nexões, que o movimento da ação social não se esgota naquela ação in-
dividual. Nesse caso, um “simples” compartilhamento não é isolado, ou
completamente local, sempre ganha adeptos que, primeiramente, con-
cordam ou discordam dele. Através de comentários, vai sendo ampliado,
podendo atingir proporções de grande evento. Casos como de Marie le-
vantam questões importantes sobre o modo como compartilhamos infor-
mações hoje. Nem sempre ponderação é um actante presente na rede, ou
reflexão sobre efeitos e consequências. A impulsividade, a necessidade de
pertencimento a determinado grupo, ou simplesmente a vontade de ser
ouvido a qualquer custo, parecem ditar as regras do jogo. Acabamos não
percebendo que, ao curtir, comentar, buscar reconhecimento pessoal ou
recompensas, alimentamos uma rede bem maior que aquela imediata-
mente à vista. No mínimo, somos coautores das ações resultantes.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 157

Enfim, reflexões gerais sobre o método


Sobre as condições a partir das quais fomos incentivadas a iniciar
esses trabalhos, declaramos: são muitas as caixas-pretas nos estudos de
comunicação que nos estimularam a escolher uma abordagem com base
na Teoria Ator-rede. Neste caso, ou nos renderíamos a elas - escolhendo
as nossas versões confiáveis da realidade -, ou tentariam abri-las e seguir
suas controvérsias. Para os sociólogos das associações, as exceções são
estabilidades que também devem ser analisadas. Por isso iniciamos as
observações pelas diferenças, pelo residual, pelo normalmente despreza-
do ou, pelo menos, tentando inclui alguns dos seus rastros nas análises
de campo.
Ao considerar as fontes de incertezas enumeradas por Latour
(2005), compreendemos que ao nos alinharmos a elas abrimos mão de
decidirmos de antemão como deve ser a aparência das coisas - quarta
fonte de incerteza: questão de fato versus questão de interesse. Para John
Law (2008), pesquisar é intervir. Assim, o social passa a ser entendido não
como um domínio especial da realidade, mas como um princípio de co-
nexões rastreáveis. Na ação de montar (e remontar) as conexões sociais,
a sociedade passa a ser compreendida como coletivo, identificado na vi-
sualização de rastros das ligações temporárias entre actantes. Ao incor-
porar a ideia de processo, inevitavelmente, cedemos ao reconhecimento
das contradições e possibilidades de reconfigurações sociais, e assim o
entendimento em torno dos movimentos que existem ou passam a existir
entre actantes. “Viajando com a TAR, eu temo avisar, o processo vai
se tornar agonizantemente lento. Os movimentos serão constantemente
interrompidos, interferidos e deslocados pelas cinco fontes de incertezas”
(LAW, 2008, p.25, tradução nossa)14. E orientadas pela fonte de incerteza
original, “no group, only group formation” (LATOUR, 2005, p.27, tra-

14 Traveling with ANT, I am afraid to say, will turn out to be agonizingly slow. Movements will be cons-
tantly interrupted, interfered with, disrupted and dislocated by the five types of uncertainties.
158 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

dução nossa)15, nos damos conta de quão descentralizado, fragmentado e


pouco consensual nos aparecem as abordagens aqui descritas.
Seja na percepção fragmentada do consumo de televisão, ou mes-
mo, pelos comportamentos interpessoais versus coletivos que transitam
de forma fluída entre os espaços online e offline, nos propusemos não ape-
nas pensar a TAR como ferramenta metodológica, mas aplicá-la no en-
tendimento de processos complexos de comunicação, inclusive na sua
possibilidade de combinação com outras metodologias, como no exem-
plo publicado na revista GEMInIS16, sobre o tema aborto. A partir do
quantitativo divulgado por pesquisa do IBOPE e do resultado de moni-
toramento com a ferramenta RowFeeder17, mapeou-se a multiplicidade de
relações entre hashtags em redes sociais, opiniões dispersas, movimentos
organizados do coletivo ciberativista e a política em geral, inclusive, na
formulação de leis. Seguindo o fluxo contrário à ideia de comedimento,
simplificação do campo, ou até mesmo da aparente coerência, buscamos
iluminar a dinâmica de circulação de informações que, orientada pela
abordagem proposta pela TAR, estimula ao contrário da objetividade a
abertura das caixa-pretas e da percepção das inúmeras possibilidades da
rede em fluxo.
O uso de ferramentas de coleta em banco de dados computacionais
é considerado hoje um recurso importante para o entendimento do volu-
me de conexões - um opulento, complexo e polifônico universo de dados
disponíveis e, muitas vezes, inacessíveis. Para Fernanda Bruno (2012), as
redes digitais favorecem o trabalho de rastreamento,
de modo que se pode, ao mesmo tempo, seguir uma série
de ações e associações locais e ver como cada uma delas
participa da construção de coletivos. A passagem de uma

15 […] no group, only group formation.


16 AZAMBUJA, Patrícia; COELHO, Ana Paula. Hashtag controvérsias: ações, vínculos temporários
e ativismo feminista em rede sociotécnica. REVISTA GEMInIS, v. 1, p. 27-53, 2016. Disponível em:
<http://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/251>. Acesso em: 12 fev. 2017.
17 Plataforma de monitoramento, de serviço pago. Disponível em: <https://rowfeeder.com/>. Acesso
em: 28 ago. 2015.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 159

escala a outra se torna facilitada: é possível manter simul-


taneamente o foco (local) e a amplitude da observação,
como num movimento zoom (BRUNO, 2012, p.698).

Tommaso Venturini e Bruno Latour (2010) afirmam sobretudo que


os meios digitais oferecem uma chance de reconstruir o estudo dos fenô-
menos sociais, no entanto, algumas ferramentas disponíveis não permi-
tem examinar interações específicas ou perceber a superfície das estrutu-
ras globais. Nesse sentido, Fernanda Bruno (2012) propõe a renovação
das estratégias de leituras dos processos sociais. Com base no texto de
Venturini e Latour (2010), para quem a estatística como atalho cria ape-
nas uma distinção fictícia entre dois mundos, acredita-se que este meca-
nismo apenas facilita para os pesquisadores sociais observarem interações
locais sem se misturar com o emaranhado de influências em torno de
cada evento social. O que pode ser funcional mas talvez restritivo, pois o
que parece vital hoje é podermos “explorar os rastros digitais não mais
como evidências atreladas à identificação de indivíduos ou à previsão
de padrões comportamentais, tal como querem a política e o comércio”
(BRUNO, 2012, p.699).
Cartografrar controvérsias e continuar abrindo caixas-pretas era
o comportamento metodológico exigido por esse trabalho. Logo, uma
pesquisa inicialmente voltada ao entendimento das tecnologias comuni-
cacionais começou a apresentar outro sentido. A prioridade deixou de
ser aos poucos a análise dos conteúdos ou efeitos quantitativamente enu-
meráveis, interpretáveis e passou a ser o encontro com o campo. Tudo
fez mais sentido nos momentos de imersão com aquele universo de cone-
xões. A aparência de conclusão romantizada foi estabelecida com o obje-
tivo de responder duas questões que pareciam incompatíveis à primeira
vista. Que mundo procurávamos construir com estes trabalhos? Após
toda a vivência com o campo, a resposta não poderia ser outra. O mundo
da diversidade! Um desejo que ia de encontro a algumas caixas-pretas e
tensões descritas.
160 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Uma controvérsia central dizia respeito à visão bipartida entre o


domínio quase absoluto dos meios de comunicação sobre o coletivo de
receptores ou, ao contrário, a possibilidade de libertação a partir do uso
da WEB, blogs, redes sociais, enfim, dos aparatos digitalizados cada vez
mais acessíveis e “democratizantes”. Se interagir via sistemas informáti-
cos aparecia como sinônimo de autonomia e liberdade, também parecia
urgente entender as circunstâncias e as consequências desses atos.
Nesse sentido, algumas decisões também eram políticas, pois esta-
vam sendo performadas pelo encontro de pesquisadoras com o campo
escolhido. Nos assumimos presentes em cada situação descrita, a cada
ação observada nas redes e, como escolha central para as pesquisas, a
meta de instituir ferramentas que pudessem arriscar-se nestes desvios.
Entendendo o desvio como pressuposto criativo para tornar possível
problematizar, transformar ou quem sabe, simplesmente, localizar os
modos como humanos e não-humanos performam algumas de suas re-
lações sociais.
Bruno Latour (2005) analisa na Sociologia das Associações o seu
“projeto político” (p.260), além do seu caráter descritivo, de abertura e
não de fechamento. Os consensos quase sempre não dizem muita coisa.
São as diferenças que nos levam a refletir e compreender a complexidade
do mundo. Se teremos que lutar contra uma força que é maior, invisí-
vel e onipresente, seremos impotentes e, inevitavelmente, derrotados ao
legitimá-la. Por isso, seguimos as forças e controvérsias que alimentam os
laços menores, testando um a um, para assim buscarmos as nossas pró-
prias estabilizações, e versões de mundo.
A cartografia de controvérsias propõe maneiras de nos relacionar-
mos com o social: pelo caminho do contraditório, do residual, do que
deve ser negligenciado. Assim nos permitimos observar, dar visibilidade a
outras falas, outras opiniões sobre um fato. Abrimos mão de um modelo
explicativo, para darmos voz a um coletivo que apenas precisa dizer algo.
Certamente hoje, estas redes não poderiam ser vistas da mesma
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 161

maneira, ou com a mesma configuração. Outro social se faria presente,


outro coletivo estaria sendo formado por outras relações oportunas. Para
Fernanda Bruno (2012, p.700), quando “entendemos a tarefa da política
como a composição progressiva de um mundo comum”, compreende-
mos também a necessidade de “ampliar os modos de existência que de-
las participam, distribuindo a ação e fazendo proliferar os mediadores”
(p.700).
De todo o modo, não cabe a esse método julgá-las. Talvez, nesse
primeiro momento, apenas fazê-las existir já possa ser útil.

Referências

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spectiva sociotécnica da Teoria Ator-rede. São Luís: Edufma, 2017.
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Controvérsias Online/ Offline: possibilidades metodológicas a partir
da Teoria Ator-rede. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.15, 2015.
______ . Hashtag controvérsias: ações, vínculos temporários e ativ-
ismo feminista em rede sociotécnica. REVISTA GEMInIS. , v.1, 2016.
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em: 04 jul. 2014.
O RÁDIO DEBATE
A CIDADE: A
PARTICIPAÇÃO
DOS OUVINTES
NOS PROGRAMAS
JORNALÍSTICOS DAS
EMISSORAS AM EM
SÃO LUÍS
Ed Wilson Ferreira Araújo*

* Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMA (Universidade Federal do Mara-


nhão). Doutor em Comunicação/PPGCOM/PUCRS. Email: blogdoedwilson@gmail.com.
164 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Introdução
As cinco emissoras de rádio AM sediadas no município de São Luís
- Educadora (560 Khz), Mirante (600 Khz), Difusora (680 Khz), Capi-
tal (1180 Khz), Timbira (1290 Khz) e São Luís (1340 Khz) - veiculam
diariamente programas jornalísticos abertos à participação de ouvintes.
As demandas, sugestões e críticas da audiência versam sobre os mais va-
riados temas: funcionamento dos serviços públicos, atuação dos poderes
Executivo, Legislativo, Judiciário e do Ministério Público, observações
sobre a situação das ruas da cidade, abastecimento de água, iluminação
pública, funcionamento dos orelhões e da telefonia celular, coleta de lixo,
desenhos da conjuntura política, resultados do futebol, atendimento nos
hospitais públicos, valor das tarifas e serviços, comentários sobre decisões
políticas e judiciais de grande abrangência, transporte coletivo e valor
das passagens, atuação dos políticos em temas de impacto na cidade e
tantos outros.
A partir do ano 2000, a audiência ativa nos programas dessas rá-
dios, mas individualizada e dispersa nos bairros, passou a constituir-se
sob a égide da Sociedade dos Ouvintes Maranhenses de Rádio (Somar),
entidade sem fins lucrativos, formada por pessoas de diversos ramos de
atividade profissional e estratificação econômica, bem como distintos ní-
veis de educação formal.
O rádio é, portanto, uma tribuna em que diversos atores dialogam
sobre a cidade. No polo da produção, as emissoras têm os apresentadores
fixos nos estúdios e os repórteres percorrendo a cidade ou fazendo co-
berturas setoriais na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa.
Na recepção, os ouvintes interferem na programação participando prin-
cipalmente com entradas ao vivo por telefone, ou pelas plataformas na
internet (redes sociais, blogs e outros), mensagens de texto e aplicativos de
celular, enviando fotografias e vídeos.
O tecido informativo do rádio é costurado por múltiplas vozes. À
fala institucional dos profissionais do rádio, operadores do conteúdo
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 165

jornalístico, é acrescentada a participação da audiência, evidenciando


que a recepção tem um papel considerável na produção dos referidos
programas, conforme apontado por diversos autores que argumentam a
favor da comunicação em múltiplos fluxos informativos: Santaella (2001),
Prata (2002) e Jenkins (2009). Brecht (1981), apresentando o conceito de
ágora eletrônica, eleva o rádio a um patamar de meio de comunicação
com dupla mão de direção.
Em nossa tese de doutorado1, nosso objetivo foi analisar a partici-
pação da audiência no contexto do rádio AM de São Luís, influenciado
pelo controle econômico e político dos seus proprietários e pelas mu-
danças de constituição dos poderes executivo e legislativo a cada eleição.
Nessas circunstâncias, a audiência participa dos programas de diversas
formas (crítica, propositiva, dialogada, contestatória, iconoclasta etc),
tendo como eixo o cotidiano da cidade. A contradição entre o controle
das emissoras de rádio por grupos político-midiáticos e a expressiva par-
ticipação dos ouvintes nos programas jornalísticos é o nosso problema
central. Nas rádios controladas, o ouvinte fala. Porém, sua participação
é atravessada por filtros que podem levar a limitações ou expansão nos
níveis de interferência na programação, dependendo das circunstâncias e
dos momentos conjunturais.

Desenvolvimento
Utilizamos como aporte metodológico o “mapa noturno” (MAR-
TÍN-BARBERO, 2009), fundamentado na teoria das mediações. Assim,
propomos cercar o objeto na perspectiva dos momentos (matrizes cultu-
rais, lógicas de produção, formatos industriais, competências de recepção)
e das mediações (institucionalidade, tecnicidade, ritualidade e socialida-
de), visando dar conta da complexidade do processo de produção, circu-
lação e consumo nos programas jornalísticos das emissoras de rádio AM.

1 “A palavra falada em pulsação: produção e recepção dos programas jornalísticos nas emissoras AM, em
São Luís”, defendida em 2016, no PPGCOM/PUC-RS.
166 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Na aplicação do “mapa noturno” importa o foco na recepção, bus-


cando compreender como se dá a articulação entre as lógicas de produ-
ção (apresentadores) em diálogo com os ouvintes, atuando na fronteira
demarcada pela linha editorial de cada emissora, geralmente sob influ-
ência dos interesses político e econômico que perpassam os conteúdos
jornalísticos.
Transitando nessas circunstâncias, o ouvinte é um sujeito dotado
de poderes, compõe uma audiência reflexiva, plural e descentrada, de
identidades multifacetadas. Ele manifesta-se ativamente no consumo,
nas práticas culturais, nas modelagens e ressignificações articuladas entre
a produção, os gêneros e formatos, a recepção e as matrizes culturais.
Transversal a essas instâncias, o núcleo cultura/política/comunicação
demarca o centro do “mapa noturno” formulado por Martín-Barbero
(2009, p. 16) para entender as mediações.
O esquema move-se sobre dois eixos: o diacrônico, ou his-
tórico de longa duração – entre Matrizes Culturais (MC)
e Formatos Industriais (FI) – e o sincrônico – entre Ló-
gicas de Produção (LP) e Competências de Recepção ou
Consumo (CR). Por sua vez, as relações entre MC e LP
encontram-se mediadas por diferentes regimes de institu-
cionalidade, enquanto as relações entre MC e CR estão
mediadas por diversas formas de socialidade. Entre as LP
e os FI medeiam as tecnicidades e entre os FI e as CR, as
ritualidades (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.16).
O mapa noturno pode ser lido em espiral, atendendo à inspira-
ção histórica da relação entre suas partes constituintes e a totalidade
do processo comunicativo, em uma perspectiva associada que percorre
produção, circulação e recepção. No detalhamento do “mapa noturno”
temos o movimento das matrizes culturais para os formatos industriais
correspondendo às mudanças ocorridas nos gêneros, em que o arcaico
é processado gerando o novo. Já o movimento das lógicas de produção
para as competências de recepção diz respeito ao processo articulado
entre o fazer jornalístico, sob a coordenação dos gestores da informação;
e o consumo, referente ao momento em que os bens simbólicos são rece-
bidos e interpretados pela audiência.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 167

Articuladas aos dois eixos, as mediações formatam o mapa. A insti-


tucionalidade está sob influência direta das regras do Estado e do merca-
do, incidindo sobre a regulação dos discursos, atravessados pelos grupos
de pressão de ordem econômica e política, cujos impactos vão incidir na
produção dos conteúdos e no direcionamento dos meios. A tecnicidade
corresponde à retomada do sentido do discurso e da práxis política, o
novo estatuto social da técnica e da cultura. Em nossa investigação, a
tecnicidade vai buscar respostas às ressignificações da tecnologia, partin-
do da oralidade primária – a fala – processada no telefone e no rádio. O
recorte da abordagem nesta mediação é a relação entre o rádio, a cida-
de e os ouvintes na dimensão espaço-temporal que possibilita a conexão
entre as pessoas através de duas lógicas ou eras culturais (SANTAELLA,
2007): a palavra falada e a oralidade mediatizada. Recorre-se também ao
conceito de ágora eletrônica (BRECHT, 1981).
A ritualidade diz respeito aos usos sociais dos meios, “[...] remete-
-nos ao nexo simbólico que sustenta toda comunicação: à sua ancoragem
na memória, aos seus ritmos e formas, seus cenários de interação e repe-
tição [...]” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 19). A ritualidade configura
a relação dos meios com a audiência, ou seja, os usos do olhar, da escuta,
da leitura. O rito de ouvir rádio e participar sistematicamente da progra-
mação coloca a ritualidade como mediação fundamental para entender
a movimentação da audiência nos programas jornalísticos das emissoras
de rádio AM.
Remetendo às matrizes culturais, a socialidade completa o circuito
do “mapa noturno” como espaço de afirmação dos sujeitos da recepção,
lugar da ação, permeado pela eclosão dos fatos na ruptura e costura do
tecido social, lugar em que se faz e desfaz o cotidiano com as múltiplas
narrativas. A socialidade é a estrada do cotidiano onde a História pavi-
menta sua escritura, retornando à espiral das matrizes culturais. Os ou-
vintes de rádio, participantes dos programas jornalísticos, estão situados
nas competências de recepção em dupla dimensão: são consumidores e
produtores.
168 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

Compreendendo mediação como relação dos usuários com os


meios, a fronteira aberta, plataforma de fluxo, membrana porosa, situ-
ação de transformação cultural, capturamos a atividade do ouvinte de
rádio inserido na relação entre produção e consumo. A partir do “mapa
noturno”, estudamos os processos de produção de conteúdo nos progra-
mas jornalísticos das emissoras de rádio, com ênfase na participação dos
ouvintes. No contexto dos momentos e das mediações, todas as etapas
foram importantes para compreender a dinâmica e as especificidades da
geração de conteúdo. As competências de recepção e as mediações (ri-
tualidade e socialidade) mereceram um olhar teórico e empírico mais
apurado, devido ao foco do artigo estar concentrado na atividade dos
ouvintes. Assim, a produção, a circulação e o consumo, vistos de forma
articulada, foram estudados à luz do “mapa noturno”, dando ênfase às
competências de recepção, fechando o contorno do mapa, eixo da pro-
posta metodológica.

A seleção dos entrevistados


O contato com os informantes foi realizado mediante a aproxima-
ção com o presidente da Sociedade dos Ouvintes Maranhenses de Rádio
(Somar), João Carlos Silva Gomes. Ele forneceu, a princípio, uma lista
com 30 (trinta) nomes e os telefones, consultados em sua agenda pessoal
(de papel). Solicitamos que ele incluísse pelo menos dois fundadores da
Somar. Esta opção tornou-se necessária porque a entidade constitui um
passo fundamental para entender o enredamento dos ativistas radiofôni-
cos em uma organização específica de ouvintes de rádio. Pedimos tam-
bém que indicasse ouvintes com participações assíduas e ocasionais nos
programas a fim de termos uma população heterogênea.

O trabalho de campo
Cumprida esta etapa, iniciamos os contatos por telefone para agen-
dar as entrevistas. Não houve delimitação na quantidade de informan-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 169

tes até que fosse atingido o nível de saturação das informações colhidas.
Neste percurso, entrevistamos 15 (quinze) ouvintes, do total de 30 (trinta)
listados por João Carlos. Registramos entre os entrevistados dois ouvintes
cegos, um deles fundador da Somar. As entrevistas aconteceram entre o
segundo semestre de 2013 e os dois primeiros meses de 2014: o primeiro
informante foi ouvido dia 6 de outubro e o décimo quinto em 13 de feve-
reiro. Todos os ouvintes foram entrevistados em São Luís. O tempo das
entrevistas durou, em média, uma hora e meia.
Nas competências da recepção, utilizamos entrevista semiestrutura-
da e diário de escuta para coleta de dados. As entrevistas foram transcri-
tas e analisadas para elaboração das categorias.
A audiência sistemática dos programas jornalísticos das emissoras
de rádio AM permitiu conceituar a escuta atenta e focada como um “diá-
rio de escuta”, através do qual pudemos confirmar ou refutar impressões
observadas a partir das entrevistas.
Na análise, destacamos cinco aspectos relevantes recortados nos tó-
picos mais representativos dentro da área de interesse focado da pesquisa,
a saber: a) Encontro com o rádio: para saber em qual etapa da vida e
sob quais influências o informante começou a ouvir rádio; b) Significado
do rádio: buscou verificar a relação emotiva, social ou política do ou-
vinte com o rádio; c) Motivação para participar dos programas: objeti-
vou mapear as pulsações que levam o ouvinte a acionar o interesse pela
participação; d) Temas abordados e repercussão: que tipo de situação,
problema, reivindicação eram levantados pelo ouvinte nos programas; e
e) Relação com o apresentador: como se dava o diálogo entre o ouvinte
e o apresentador.
Os entrevistados, para garantia do anonimato, foram identificados
por nomes bíblicos.

Resultados e discussão
Do total de 15 entrevistados, 09 (nove) foram identificados como
militantes e 06 (seis) sazonais ou esporádicos. A duração das entrevistas
170 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

foi maior com os militantes.


No tópico “encontro com o rádio”, a infância foi predominante-
mente o período em que aconteceram os primeiros contatos com o meio
radiofônico. Dos 15 entrevistados, 11 registraram a vivência com o rádio
ainda crianças, influenciados pelos pais ou pelos avós. Apenas 4 ouvintes
iniciaram a audiência na idade adulta, por diferentes caminhos: moti-
vado por colega de trabalho, interesse em aprender línguas estrangeiras
através de emissoras internacionais (ondas curtas), curiosidade pelo rádio
AM e contatos anteriores com outros meios de comunicação (televisão).
O significado do rádio teve variações no universo dos 15 entrevista-
dos, demonstrando diferentes interpretações da audiência sobre os sen-
tidos do meio radiofônico. Era opção de lazer, cultura, terapia, alimen-
to, remédio, utilidade, entretenimento, hobby, herança cultural, cumpria
papel educativo, servia de amparo aos mais desprovidos e possibilitava o
exercício da solidariedade. Também era uma paixão do ouvinte, lugar
de encontro entre as pessoas para fazer amizade, plataforma para obter
informação com agilidade, ambiente de visibilidade e reconhecimento,
lugar de disputa e formação de opinião, ouvidoria gratuita, extensão da
vida cotidiana, observatório da coletividade e ambiente para dialogar,
debater, formular e intervir nos assuntos de interesse da coletividade.
Ao justificar o significado de ouvidoria gratuita, os informantes ele-
varam a condição do ouvinte ao papel de “repórter voluntário”. O en-
cadeamento entre a produção e a recepção foi entendido assim, segundo
Simão: “o rádio depende dos ouvintes. Sem ouvinte não há emissora,
sem ouvinte não há patrocínio, sem patrocínio não há rádio e sem rádio
não tem como saber notícia”, enumerou.
O “observatório da coletividade” foi explicado a partir de uma au-
diência de monitoramento das emissoras. Através do rádio, segundo Je-
sus, seria possível saber o que “[...] está acontecendo na cidade e o que
as pessoas estão falando sobre o cotidiano. A partir do que se debate no
rádio AM você começa a descobrir as movimentações das lutas sociais, a
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 171

opinião. O programa de rádio é muito importante para você conhecer a


realidade” (informação verbal).
A motivação para participar dos programas, no geral, esteve rela-
cionada aos assuntos do dia-a-dia da cidade, às situações relacionadas
ao desempenho do poder público e às imprevisibilidades do cotidiano,
principalmente. Os ouvintes exercitavam a crítica às administrações, ou
seja, ao desempenho dos gestores nos níveis municipal, estadual e federal
nas áreas de saúde, educação, segurança e infraestrutura.
O rádio se mostrou importante para cobrar a atuação dos órgãos
públicos, fiscalizar o desempenho dos gestores e fomentar o debate sobre
a cidade. As palavras do ouvinte Tomé indicam isso. “Todo problema
que tem aqui eu torno público. As pessoas me procuram e eu coloco no
ar, principalmente problemas de água, buracos nas ruas, coleta de lixo
etc. As pessoas me contam e pedem uma força. Aí eu falo no rádio” (in-
formação verbal).
A motivação para participar dos programas de rádio foi uma exten-
são de outras atividades na vida de Tadeu:
Eu sempre participei de atividades comunitárias, associa-
ção de moradores, organização de arraiais e eu usava o es-
paço do rádio para divulgar as atividades festivas. Depois,
foi evoluindo para as necessidades da comunidade, serviço
de água, enchentes (drenagem). Aí eu comecei a reivin-
dicar no rádio, depois comecei a participar de militância
política e usei o rádio para colocar os projetos e as ideias, e
aí foi... (informação verbal).

O sentimento de ativista já presente em José potencializou sua moti-


vação para participar dos programas de rádio. “Eu me sentia na respon-
sabilidade de interagir com o público e com os comunicadores das rádios.
Tenho essa participação mais ativa até por uma convicção filosófica de
que não estou nesse mundo apenas para ver o trem passar” (informação
verbal), teorizou. Sua principal motivação é como agente transformador
da sociedade.
Quanto aos temas abordados e à repercussão, os entrevistados ma-
172 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

nifestaram maior interesse pelos assuntos relacionados às condições da


cidade (funcionamento dos serviços públicos), o futebol e política partidá-
ria. Pedro comentou no geral sobre a maioria dos problemas que afetam
o cotidiano dos moradores: buracos nas ruas e avenidas, falta de água,
iluminação pública precária, esgoto a céu aberto, falta de segurança, des-
caso da administração pública com escolas e hospitais, falha na coleta de
lixo, decisões parlamentares e dos tribunais. Francisco tinha preferência
pelo tema da mobilidade urbana, principalmente a situação do trans-
porte público de São Luís, que ele considerava caótica. Ele costumava
comentar também sobre política, educação e saúde, mas nunca teve re-
sultado nas reivindicações que fez no rádio. Já, Bartolomeu gostava de
pautar suas participações em temas relacionados à Filosofia, Sociologia e
Política, dependendo do assunto do dia.
Todos os assuntos relacionados ao cotidiano, de acordo com o tema
em pauta na emissora, interessavam a Mateus: meio ambiente, acessibi-
lidade, mobilidade, trânsito e transporte etc. Política e futebol eram as
preferências de Tiago. Por se considerar uma pessoa de “direita”, defen-
sor da ditadura militar, ele disse que suas opiniões são muito contestadas
e polêmicas, “por causa do meu posicionamento filosófico em termo de
política aqui no Brasil” (informação verbal), detalhou.
Temas da política também foram destaque na atuação de José. Ele
justificou: “a política é a atividade que determina todas as outras ativi-
dades da humanidade (informação verbal)”. Ele costumava falar sobre o
tema tratado no momento ou colocando outro, procurando influenciar
no conteúdo. Só evitava o assunto religião para não criar hostilidade ou
ferir os ouvintes na sua crença. Jesus geralmente participou abordando
vários temas: questões ambientais, moradia, reforma agrária, direitos hu-
manos, cobranças das autoridades para o cumprimento de suas atribui-
ções e apoio a campanhas de solidariedade. Relatou que em várias situa-
ções obteve respostas positivas, devido à força do rádio para mobilizar os
atores responsáveis pela administração pública.
No que diz respeito à relação com os apresentadores, a quase tota-
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 173

lidade dos entrevistados referiu-se à censura nos programas, atribuída ao


controle político e comercial das emissoras, bem como na relação com o
Governo do Estado e a Prefeitura de São Luís. A censura refletiu-se no
trato direto, às vezes ao vivo, entre apresentadores e ouvintes. Pedro afir-
mou que os apresentadores, diante das circunstâncias do controle acio-
nário das emissoras, costumavam fugir do debate, evitando a polêmica.
Francisco queixou-se, em especial, do veto à participação dos ouvintes na
única rádio pública – a Timbira – durante o governo de Roseana Sarney
(PMDB), no período de 2007 a 2014. Bartolomeu relatou que sua fala era
sempre refutada nos programas. Para ele, o controle político não permite
a democracia no rádio.
Tadeu partiu do princípio de que os meios de comunicação eram
controlados pelos políticos. No embate com os apresentadores, revelou
que na maioria das vezes eles discordavam. “Quando concordam com
minha opinião fazem um argumento em cima do meu tema abordado.
Para alguns apresentadores, o ouvinte é um parceiro, a partir do momen-
to em que aborda temas e colabora na formação de opinião” (informa-
ção verbal), discerniu, mas sem descartar a censura nas emissoras.
José relatou duas situações em que foi censurado, mas teve boa aco-
lhida com a maioria dos apresentadores, inclusive com palavras elogiosas
e carinhosas sobre a participação dele. Reforçou o papel do ouvinte na
geração de pauta dos programas e na sinergia de opinião gerada por uma
fala contundente. Muito próximo da análise de Tadeu, para Jesus, o con-
trole político das emissoras era determinante no conteúdo. Ele contou
que foi censurado em um programa, “porque o dono da rádio e o gover-
no proibiram.” Mas, apesar desse controle, relativizou: o desempenho do
programa depende muito da postura e do compromisso de cada apre-
sentador. Segundo ele, alguns eram abertos à dissidência dos ouvintes e
outros tinham compromisso com as forças políticas que influenciavam na
linha editorial das emissoras. Destacou:
Eu também tenho escutado alguns radialistas, mesmo sen-
do do lado do governo, fazer elogios à minha participação,
174 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

até porque eu sou uma pessoa que busco estudar muito e


gosto de colocar os assuntos que eu penso que contribuem
para o desenvolvimento humano (informação verbal).

As falas e o diário de escuta, à luz do “mapa noturno” (MARTÍN-


-BARBERO, 2009), permitiram analisar a participação dos ouvintes nos
programas jornalísticos das emissoras de rádio AM com alguns aportes
que evidenciam a dimensão cultural da comunicação, sedimentada na
prática da audiência ativa.
A mediação institucionalidade configurou a interferência das ins-
tâncias de poder governamental e dos anunciantes na programação das
emissoras, provocando o cerceamento à livre participação da audiência.
Os discursos dos ouvintes foram regulados pelos financiadores das emis-
soras, que funcionavam como grupos de pressão para controlar a partici-
pação da audiência. A tecnicidade remeteu à ressignificação da fala - da
oralidade primária à oralidade secundária ou mediatizada, processada
no telefone e no rádio. Na escalada do desenvolvimento tecnológico, a
descoberta da impressão como estágio posterior da escrita demarcou um
efeito de comparação distinto do processo desencadeado com a desco-
berta dos meios eletrônicos de comunicação. Diferente do manuscrito e
da tipografia, o salto tecnológico do rádio e da televisão colocou a orali-
dade em outro patamar.

Nossa compreensão das diferenças entre oralidade e cul-


tura escrita não pôde se desenvolver antes da era eletrôni-
ca. Os contrastes entre a mídia eletrônica e a impressão
aguçaram nossa percepção do contraste anterior entre
escrita e oralidade. A era eletrônica é também uma era
de “oralidade secundária”, a oralidade dos telefones, do
rádio e da televisão, cuja existência depende da escrita e
da impressão (ONG, 1998, p. 11).

A ritualidade e a socialidade aproximam-se para explicar a vivência


cotidiana dos ouvintes nos programas jornalísticos, a partir dos rituais de
escuta e participação. A primeira refletiu a narrativa dos ouvintes sobre
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 175

a herança cultural da audiência, marcadamente presente na infância,


transmitida pelos avôs e pais. Memória, interação e repetição compõem
o tripé da ritualidade.
A socialidade é o lugar de afirmar a condição dos sujeitos da re-
cepção. Falar no rádio é agir, romper a condição de passividade da au-
diência, transpor a barreira que separa produtores e consumidores. O
cotidiano dos bairros ganha visibilidade nos programas através da ação
dos ouvintes, com seus reclames, denúncias, reivindicações, propostas,
críticas, elogios e repúdios. Articulada a dois momentos - condições de
recepção e matrizes culturais -, a socialidade configura a força da audi-
ência no processo de narrativa do cotidiano, interferindo nas lógicas de
produção.

Conclusão
As reflexões teóricas e o trabalho de campo permitiram tecer con-
siderações sobre a participação da audiência nos programas jornalísticos
de rádio AM. O apresentador, na condição de locutor autorizado, é ten-
sionado pelo ouvinte que deixou de ser o receptor passivo das reporta-
gens, notícias, notas, comentários e editoriais para se tornar um sujeito
de poder, quando ingressa na rede dos oradores oficiais (apresentadores
e repórteres) apresentando suas narrativas oriundas dos bairros, das ruas
e praças da cidade. A palavra, portanto, é tomada por outros locutores,
não oficiais (os ouvintes), que compartilham enunciados no ambiente ra-
diofônico.
Nesse contexto, a participação da audiência nos programas radiofô-
nicos tem sido objeto de reflexões teóricas em diversos estudos. “Durante
décadas, o emissor, principalmente, foi o foco das atenções mas, agora, há
uma intensa procura sobre o que pensa, o que quer, o que deseja e como
age o receptor e, mais do que isto, entender o receptor como sujeito do
processo de comunicação.” (PRATA, 2002, p. 1).
Brecht (1981) partia do princípio de que o rádio, instalado nas re-
sidências, poderia proporcionar mecanismos de transmissão e recepção
176 EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO

capazes de formar uma espécie de “ágora” eletrônica, na qual as pessoas


pudessem ser consultadas, opinar sobre os temas e tomar decisões no
âmbito da administração de uma cidade, por exemplo, através de assem-
bleias permanentes transmitidas pelo rádio.
A prática cultural dos ouvintes de rádio em São Luís evidencia, por
um lado, uma ampla participação da audiência. Esta, porém, é restringi-
da pelos interesses corporativos (econômicos e políticos) que permeiam o
controle dos meios de comunicação. Tensionados entre a “ágora” eletrô-
nica e o monopólio midiático, os ouvintes percorrem o dial em busca de
brechas no controle das emissoras. Portanto, as pulsações democráticas
no rádio, através da participação da audiência nos programas jornalísti-
cos, se por um lado reiteram a tese do controle acionário das emissoras,
por outro retiram da audiência a condição de passividade.
Os ouvintes falantes são críticos, propositivos, colaborativos e vigi-
lantes. Participam ativamente da programação, interferem na produção,
mas são limitados pelo controle das emissoras. Estas, por sua vez, nem
sempre controlam tudo e todos. As contradições internas entre os grupos
político-midiáticos permitem à audiência o exercício do ativismo radio-
fônico, fomentando uma cultura participativa no rádio. No centro dos
debates estão a cidade e a sua dinâmica, narrada pelos locutores oficiais
e pelas vozes informais, oriundas dos bairros. As emissoras de rádio AM,
com seus programas jornalísticos, constituem, portanto, parlamentos in-
formais de São Luís, esboço da ágora eletrônica idealizada por Brecht
(1981).

Referências

BRECHT, Bertolt. Teoria de la radio (1927-1932). In: BASSETS,


Lluís (ed.). De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona, Gustavo Gili,
1981.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunica-
ção, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. 6. ed.
EXPERIÊNCIAS EXPANDIDAS EM COMUNICAÇÃO 177

MEDITSCH, Eduardo. O rádio na era da informação: teoria e


técnica do novo radiojornalismo. Florianópolis: Insular, 2007.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da pa-
lavra. Campinas – SP: Papirus, 1998.
PRATA, Nair. A fidelidade do ouvinte de rádio. XXV Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Salvador, 1 a 5 de
setembro, 2002.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Variações sobre a técnica do
gravador no registro da informação viva. São Paulo: CERU e
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SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa: projetos para mes-
trado e doutorado. São Paulo: Hacker, 2001.
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Paulo: Paulus, 2007.

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