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de Riordan
Resumo: Este artigo propõe uma análise crítica do estilo de Rick Riordan a partir
de sua série de livros para o público infanto-juvenil Percy Jackson e os Olimpianos. O
objetivo é investigar as estratégias de articulação do texto homérico em um romance de
aventura para crianças do século XXI por meio de um recorte do volume final da série,
O Último Olimpiano, em que há uma adaptação da famosa cena da Ilíada de Homero, a
hýbris de Aquiles. Com base no célebre texto de Auerbach, A Cicatriz de Ulisses,
refletiremos sobre as características da literatura para crianças de Riordan no contexto
contemporâneo.
Abstract: This article proposes a critical analysis of the Rick Riordan's style
based on his book series for children and young people Percy Jackson and the
Olympians. Our goal is to investigate articulation strategies of the Homeric text in an
adventure novel for children of the 21st century through an excerpt from the final
volume of the series, The Last Olympian, in which there is an adaptation of the famous
scene of Homer's Iliad, the Achilles hýbris. Based on the Auerbach's famous text
Odysseus’ Scar, we will analyze the characteristics of Riordan's books and reflect on
children's literature in the contemporary context.
Esses aspectos são, sem dúvida, relevantes para a abordagem da série. Entretanto,
é possível observar uma lacuna tanto em relação à análise da linguagem usada pelo
autor, como nas estratégias de articulação dos mitos com a realidade contemporânea. O
objetivo deste artigo é, assim, identificar e analisar o estilo de escrita do autor Rick
Riordan em sua série de livros Percy Jackson e os Olimpianos por meio de um estudo
comparativo, a fim de refletir sobre a prosa do autor e a literatura contemporânea para
jovens.
A leitura crítica proposta aqui será feita por meio de um recorte de uma cena da
saga em que o autor realiza uma apropriação de um conhecido trecho da Ilíada de
Homero: a hýbris de Aquiles, a morte de Heitor. Nosso interesse é investigar a
elaboração literária de Riordan justamente para contrastá-la com a forma do texto
homérico. Utilizando uma estratégia comparativa, que tem como alvo o texto
contemporâneo, refletiremos, como diria Auerbach, sobre esse “mundo de formas”
(2021, p. 63) que a literatura contemporânea de Riordan revela.
Acreditamos que essa abordagem comparativa que propomos aqui não seja
comumente aplicada a escritores voltados para o público infanto-juvenil, principalmente
os de grande sucesso no mercado editorial. No meio acadêmico, a literatura infantil e
juvenil (LIJ) é muitas vezes vista como um gênero menor ou como uma expressão
artística que teria menor complexidade em comparação às obras feitas para o público
adulto. A obra infanto-juvenil é concebida ainda como uma configuração de linguagem
simples, pouco elaborada, fruto muito provavelmente da maneira como as crianças, e a
infância, são muitas vezes percebidas nos espaços de comércio cultural.
PJO tem como personagem principal o menino Percy Jackson que descobre ser
um semideus filho de Poseidon, o deus grego do mar. Ele é levado para o Acampamento
Meio-Sangue, onde é treinado com outros semideuses para sobreviver a ataques de
monstros, aprender sobre seres mitológicos, participar de tarefas perigosas enviadas por
seus pais divinos, e, assim, se tornarem bons heróis.
Além da presença dos doze deuses do Olimpo, existem titãs, ciclopes, fúrias,
pégasos, centauros, dríades, sátiros. Durante os cinco volumes da série, o leitor visita as
cidades de Nova Iorque e São Francisco, O labirinto de Dédalo e o Triângulo das
Bermudas. Percy luta contra o Minotauro e faz amizade com um centímano: trata-se de
uma narrativa que se estrutura por meio de aventura, ação e humor, em que a mitologia
grega ocupa um papel que iremos especificar à frente.
O enredo principal de PJO foca em Cronos, rei dos titãs, que põe em ação seu
plano de fugir do Tártaro e recuperar sua forma original (agora despedaçada no Mundo
Inferior) para destronar os deuses e erradicar a raça humana. No volume final, nosso
foco de análise, O Último Olimpiano, o exército de Cronos se dirige para Manhattan
para atacar o Empire State Building, a entrada para o Olimpo. Percy e os outros
semideuses do Acampamento Meio-Sangue tentam impedir a aproximação dos
combatentes inimigos, quando Cronos manda ao seu encontro um drakon, um monstro
mitológico que se assemelha a um dragão.
Crianças procuram aprender mais sobre esses assuntos após lerem Percy Jackson
assim como fãs de Harry Potter passam dias e noites estudando sobre a história das
casas de Hogwarts, ou como fãs do jogo League of Legends passam horas nas redes
sociais discutindo sobre lore e o backstory de seus personagens favoritos. Para eles,
tudo isso faz parte do mundo mágico de Percy Jackson; eles estudam sobre isso porque
são fãs interessados por uma obra.
A mitologia, então, aparece nos livros da série Percy Jackson quase como textura,
ou, em outros termos, como um material de superfície que é mobilizado pela aventura,
aventura esta que de fato estrutura a narrativa. A mitologia e referências à Ilíada e à
Odisseia são uma espécie de preenchimento “culto” usado para, digamos assim, colorir
as aventuras de Percy, fornecendo novos monstros e seres mitológicos para a ação. Elas
surgem para fornecer vilões e situações que irão colocar Percy, o herói-narrador, em
perigo e gerar a cena ação, que é o principal, pois é o que sustenta a elevada tensão
narrativa.
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Throughout history, myths have often been reused and reimagined as “allusive poetic shorthand,” but
erudite and coded meanings are unlikely to figure for children who may be meeting myth for the first time
through Percy Jackson. Instead, I shall argue that it is the creativity of Riordan’s approach, and the sense
of identification that it fosters, that makes these myths meaningful for children. At the same time, though
these stories may be consumed by children, they are created by an adult: interrogating Riordan’s own
political and aesthetic take on myth will, therefore, deepen our understanding of how classical myth can
be received today. (PAUL, 2017, p. 232)
Auerbach apresenta como a estrutura do texto homérico é organizada por meio de
uma tensão narrativa débil, ou sem a estratégia de continuamente provocar suspense, em
uma comparação das diferentes expectativas de leitores modernos e contemporâneos às
epopeias:
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Esse texto de Auerbach foi escrito em 1942, embora a publicação seja um pouco posterior, no imediato
pós-guerra.
humor. Especificamente neste último livro em foco aqui, toda a tensão dramática tem
como ponto de fuga uma batalha “épica” contra o vilão final, o titã Cronos.
Vamos entrar mais a fundo no momento em que Riordan usa como base para a sua
construção a vingança de Aquiles. Nessa adaptação, há um grande corte do enredo da
Ilíada, justamente com o objetivo de sustentar um ritmo acelerado e manter elevada a
tensão dramática, de maneira coerente a esse estilo e a esse dispositivo forjado pelo
autor. Vamos ao trecho:
Mesmo com o autor fazendo uso da astúcia de Percy à maneira de Teseu, a morte
aparece relativizada nessas construções que fazem uso da mitologia: em PJO, não se
pode matar um monstro mitológico de verdade. Quando os semideuses os matam, são
transformados em pó, e vão se reerguer novamente no Tártaro depois de um certo
tempo, podendo voltar para atormentar os heróis no futuro. Essa é uma forma “leve” de
tratar a morte de inimigos, se tivermos em mente as batalhas sangrentas da Ilíada ainda
mais; Percy não precisa se sentir culpado em ter matado tantos seres mitológicos. Dessa
forma, o leitor também não precisa questionar a moral de Percy, que continuará aos seus
olhos como o herói “perfeito”.
A própria cena de luto desesperado no final do trecho homérico acima não teria
qualquer espaço dentro da estratégia literária de Riordan. A cena do luto de Clarisse
(que seria Aquiles na elaboração de Riordan) por Silena (equivalente a Pátroclo) dura
aproximadamente duas páginas, pois é logo cortada para se concentrar nas discussões de
estratégias de batalha entre os outros personagens. O luto em relação à Silena poderia
ter maior complexidade na trama, já que descobrimos que ela era infiltrada de Cronos
no Acampamento Meio-Sangue. Porém, qualquer sentimento mais pesado é deixado de
lado para voltarmos à ação:
Segundo Freud, em seu conhecido estudo Luto e melancolia, atesta que “via de
regra, luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu
lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (FREUD, 2010, p. 171-172). Esse “estado
de ânimo doloroso” traz o “afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver
relação com a memória do morto”. A perda, em muitos casos, desencadeia um “trabalho
realizado pelo luto”, que suspende a relação do sujeito com o mundo anterior à perda e
instaura uma temporalidade mais propícia para essa elaboração:
No canto XVI, por exemplo, Pátroclo pede a armadura para Aquiles. Em PJO, há
um roubo. Por ser um livro de ação, aventura e mistérios a serem descobertos, há
mentiras, informações ocultadas, falta de comunicação entre os personagens que vão
levando a desentendimentos e revelações inesperadas. Os Cantos XVII (disputa pelo
corpo de Pátroclo) e XVII (Aquiles descobre a morte de Pátroclo e a mãe lhe dá uma
nova armadura) não são aproveitados na construção de PJO. Clarisse presencia a morte
de Silena, pega a lança e mata o drakon: tudo acontece dentro dessa necessidade de
movimentação ágil que a prosa estabelece.
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Essa “falha” é tratada na série seguinte de mitologia do autor, chamada Os Heróis do Olimpo (2010-
2014). Nesses livros, temos no mínimo três narradores semideuses em cada volume, intercalados a cada
capítulo. Dessa forma, o problema de atos ficarem fora dos pontos de visão dos narradores é resolvido:
basta encerrar um capítulo e começar outro, contando a cena de um ponto de vista principal sempre que
necessário.
Existe uma pausa para mostrar a cena da morte da Silena nos braços dos amigos, e
para que os leitores descubram que Silena estava do lado dos titãs como espiã, o que é
mais uma “revelação”, um plot twist, algo que não seria possível dentro da economia
estilística de Homero, em que tudo precisa ficar aparente em primeiro plano. Esse plot
twist não acontece, claro, na Ilíada; seria impensável dentro da forma de Homero
vermos Pátroclo se revelar um espião dos Troianos, por algo que se deu fora do campo
visual do leitor.
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Adorno e Horkheimer no conhecido ensaio A indústria cultural, escrito para caracterizar um contexto
distinto ao de PJO, os final dos anos 1930 e começo dos 1940, já chama a atenção para a necessidade de
suprimir, muitas vezes, construções que exijam esforço intelectual em demasia do consumidor cultural:
toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os
desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da ideia
do todo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128-129).
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Can’t believe Homer went to all that trouble just to write two supplementary texts to Percy Jackson and
the Olympians (KOH, 2021).
Bibliografia:
ALMEIDA, Maria do Carmo Souza de; TEODORO, Thelma Maria Figueira. Percy
Jackson e o Ladrão de Raios: proposta de atividade de multiletramento e de dialogismo.
EntreLetras, v. 9, n. 3, p. 277–289, out-dez. 2018.
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. 2a ed. São Paulo:
Pulo do Galo, 2012.
HOMERO, Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2013.
KOH, Michael. “Can’t believe Homer went to all that trouble just to write two
supplementary texts to Percy Jackson and the Olympians”. 27 de fevereiro. 2021.
Twitter: @michaelkoh1995. Disponível em:
https://twitter.com/michaelkoh1995/status/1365698619333091335?s=19. Acesso em:
15/05/2021.
PAUL, Joanna. The Half‐Blood Hero: Percy Jackson and Mythmaking in the Twenty
First Century. In: ZAJKO, V.; HOYLE, H. A handbook to the reception of classical
mythology. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2017. p. 231–241.