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“A Objetividade Transfiguradora (1930-1934): Alguns apontamentos nevrálgicos

sobre a Filosofia Social de Max Horkheimer e dos seus colaboradores de primeira


geração”
Kevin Lara Schumacher

“Tudo o que o homem se compromete a realizar, seja pela ação, pela palavra ou de
outro modo, deve brotar do conjunto de suas forças reunidas; tudo o que é isolado deve
ser rejeitado.”
Goethe (1811)

“As verdades científicas serão sempre paradoxais se julgadas pela experiência de todos
os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas.”

Karl Marx (1859)

Desde a posse de Max Horkheimer (1931), o Instituto para Pesquisa Social de


Frankfurt passou a ter uma diretriz bem objetiva em torno de suas atribuições. Alinhando-
se como herdeiros críticos da filosofia clássica alemã e do materialismo, ou seja, se
dirigindo por aquele fio condutor da razão emancipadora, então indispensável para o
amadurecimento das colunas do movimento operário que, através de uma síntese
impecável, Engels descreveu em seu elogio fúnebre para o fundador do materialismo
dialético1. Foi desse desenvolvimento teórico que os frankfurtianos, na década de 30,
alçaram suas bases e definiram claramente as expectativas em torno de um
posicionamento intelectual preciso diante das demandas sociais do seu respectivo
presente histórico. Antes de tratarmos diretamente dos problemas imediatos da Escola, é
de total importância uma reflexão afinada dessa tradição em toda a sua formação
geracional e cultural (bildung), desde a aurora do século XIX até o monocapitalismo
conterrâneo.

A maioria dos estudos e ensaios da década de 30, tem por recorte um marco temporal
muito claro em torno do ‘objeto’ das pesquisas, voltam-se sempre para as tendências
acerca do caráter inteligível da filosofia racionalista moderna que se originou em
Descartes, segundo a concordância comum à historiografia filosófica. Assim como Marx,

1
ENGELS, Friedrich. “Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã” (1886). In: Obras Escolhidas
de Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, s/d. Vol. 3, pp. 171-207.
através de uma extensa investigação crítica-estrutural da Economia Política2, “achou” a
unidade contraditória elementar do modo de produção, circulação e acumulação
capitalista, Max Horkheimer alertou-nos para a necessidade de uma profunda reflexão
crítica acerca do nascimento do sujeito moderno, cindido entre a sua substância espiritual
e material, entre o ser e pensar.

A avaliação depurada desse ponto cardinal para o moderno, tornou-se possível graças
a tradição oitocentista, especialmente, aquela alicerçada no nascimento da dialética
histórica de Hegel então entendida, na posse do spiritus rector dos frankfurtianos, como
o alvorecer da filosofia social dissolvedora do solipsismo cognoscente do idealismo
subjetivista e de seu dever através de seu imperativo categórico3. No entanto, como
estamos no campo do idealismo, a constatação do ponto nevrálgico não significa
necessariamente em seu desenlace real, característica consonante ao aspecto contraditório
da conciliação entre método e sistema. O todo se concilia como afirmação da sociedade
ao tratar com enaltecimento a conservação das figuras que já deveriam ser superadas no
processo, desprezando assim, o itinerário da alienação do sujeito (entäusserung) através
do movimento de interiorização das formas de objetividade, então revogadas
misticamente no sujeito imanente e transcendente. Mesmo assim, podemos constatar nas
de obras de juventude de Hegel, inúmeras manifestações de sobriedade racional diante de
uma compreensão adequada à relação entre o universal e a complexa possibilidade de sua
transformação através dos indivíduos conscientes:

“O universal, estilhaçado nos átomos dos indivíduos absolutamente múltiplos – esse


espírito morto -, é uma igualdade na qual todos valem como cada um, como pessoas.
(...) Nós vimos as potências e as figuras do mundo ético naufragarem na necessidade
simples do destino vazio. Essa potência do mundo ético é a substância refletindo-se em
sua simplicidade; porém a essência absoluta que reflete sobre si mesma – justamente
aquela necessidade do destino vazio – não é outra coisa que não o Eu da consciência-
de-si.”4

Contraditoriamente, devemos considerar o seu sistema como o de maior expressão da


afirmação da consciência-de-si do homem moderno que, através da elaboração de uma
estrutura adequada ao seu caráter embrionário, a posteriore, se tornou o grande

2
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Trad. César Benjamin. Rio de
Janeiro: EDUERJ; Contraponto, 2001.
3
HORKHEIMER, Max. “A Presente Situação da Filosofia Social e as Tarefas de um Instituto de Pesquisas
Sociais” (1931). Vários tradutores. Revista praga, n. 7. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 122.
4
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito (1807). Trad. Paulo Menezes. – 9. ed. – Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014. pp. 324-325.
responsável pela gestação do comportamento crítico, de modo que tenha sido basilar para
a formação do pensamento dialético não-conclusivo, isto é, daquele capaz de refinar o
entendimento condizente com a totalidade social.

A transição do idealismo subjetivo (Kant e Fichte) para o objetivo (através do


rompimento de Hegel com Schelling), foi um grande salto qualitativo para o social, por
assim remeter o problema da essência humana para a égide do movimento histórico e do
princípio objetivo-teleológico do trabalho onde, subentenda-se, foi elaborado idealmente
como o singular que se universaliza (List der Vernunft)5. Ainda assim, constata-se que
esse método objetivo em torno das necessidades humanas é transfigurado pelo maior
infausto do primeiro Horkheimer: a reverência transcendental como negação da
apreensão real da organização da consciência dos sujeitos históricos. Sendo assim, se
compreende como dever filosófico possível na crise da primeira metade do século XX,
solapar o pensamento metafísico e, principalmente, seu caráter confuso quanto ao destino
dos homens, isso através de um movimento mediado da filosofia ao social (Horkheimer).

Por ser um amante impenitente da razão6, a busca por uma efetiva sociedade racional
se converteu na grande tarefa de Horkheimer e de seus companheiros, delineando assim,
o reencontro da própria filosofia enquanto meio da plena realização da vontade unificada
do sujeito em sociedade (sujeito-objeto idêntico). O giro copernicano necessário em seu
presente histórico, não passa pela busca do sujeito estigmatizado em sua
transcendentalidade (que foi de grande relevância para a emancipação do indivíduo do
iluminismo através dos direitos universais dos homens), em outras palavras, por aquela
subjetividade geral de que depende a cognição individual condicionada pelo poder da
lógica transcendental. A roda da História girou, transformando assim o conceito
condicionante do sujeito produtor e, por consequência, fazendo com que todos os
princípios progressistas do iluminismo - através do perecimento de seus conceitos fixos
e imutáveis - demonstrassem, já em sua origem, o caráter regressivo e evanescente (“o

5
Idealisticamente, Hegel vê no trabalho a mobilização das forças da natureza independentemente de
suas tendências naturais, até mesmo contra suas tendências naturais, com base no conhecimento de
causalidade nelas presente e de sua utilização pela teleologia do trabalho concreto enquanto força
separável da matéria não qualificada. In:
ENGELS, Friedrich. Dialética da natureza. Trad. Nélio Schneider -1 ed. -São Paulo: Boitempo, 2020. p.
188.
6
Em torno de uma perspectiva sintética sobre a discussão acerca da angustiante aporia reflexiva do
autor, engendrada pela radical crítica autorreferente da razão pós-Dialética do Esclarecimento (1944):
HABERMAS, Jürgen. “Max Horkheimer: Para a história do desenvolvimento de sua obra”. In Textos e
Contextos. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 85-102.
início é o fim”). Hegel, com sua típica astúcia do movimento contraditório, indicou-nos
a propensão da racionalidade em seguir por caminhos obscuros, isso caso a sua crítica
negativa assumisse uma postura negligente diante do pensamento condicionado. Através
de seu clamor à História, ele imputa que o “não saber o verdadeiro e só reconhecer a
aparência do temporal e do aleatório – somente o que é vão, foi esta vaidade que se
alastrou na filosofia e ainda hoje continua a se alastrar e a falar alto”7.

Para a teoria crítica da sociedade, não há como adversar quanto a tautologia de que
essa tendência se tornou predominante após tal declaração. Hegel enunciou,
inconscientemente, a progressiva limitação compulsória da reflexão filosófica e da
percepção humana como uma possibilidade efetiva do vir-a-ser. De forma panorâmica,
podemos descrever essa trajetória da progressiva décadence através da simplificação
expositiva do sequenciamento entre Iluminismo, Positivismo e Irracionalismo: Aqui jaz
o primeiro esboço do que, posteriormente, foi consagrado como um grande aforismo da
dialética frankfurtiana de “esclarecimento como mistificação”. Limitada neste momento
de juventude da Escola, ao recorte moderno desvinculado daquela longue durée
compreendida pelos estudos em torno da pré-história da reificação, isto é, daquele trauma
com que os homens conceberam a compulsoriedade da dominação social ao se depararem
com a natureza enquanto totalidade indomável; enquanto ‘apoteose xamânica’.8

A partir dos seus primeiros ensaios da década de 30, Horkheimer desenvolveu suas
precisões racionais sempre levando em consideração as desmedidas do modo de vida
capitalista, isso porque o infortúnio do progresso que se arruinou já se manifestava como
o cerne da sua compreensão acerca da consolidação monumental da burguesia9. Um
pouco mais tarde, ele definiria esse conceito dialético totalizante da seguinte maneira: “A
maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” 10. Toda essa insensatez
objetivada é latente à condição disparatada de que, nunca antes foi materialmente possível

7
HORKHEIMER, Max. “Materialismo e Metafísica” (1933). In: Teoria Crítica I – uma documentação.
Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 52.
A referência à Hegel, citado pelo autor, trata-se do Discurso na abertura de suas aulas em Berlim, em 22
de outubro de 1818, Sämtliche Werke, Glockner, tomo VIII, Stuttgart, 1929, p. 35.
8
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido A. de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 36 e p. 40.
9
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” (1940). In Obras Escolhidas – vol. 1: Magia e técnica;
Arte Política. Tradução de Sergio Paulo Rounet. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Contida na Tese VII: “(...) Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie”.
10
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Ibidem. p. 41.
satisfazer as necessidades humanas e os símbolos de seus desejos como no agora, mas
mesmo assim, a humanidade se consumiu nas chamas de uma inédita barbárie mecanizada
de proporções ímpares. A natureza da crise, aparentemente permanente, tornou-se o
grande tormento da sua existência intelectual. Já a partir da segunda metade da década de
30, verifica-se cada vez mais elaborado em seus ensaios a constatação de que o âmago
dessa desmedida se encontrava na ideia de compulsoriedade humana extraída do conceito
elaborado por Marx da livre troca de mercadorias. Ao voltarmos ao método de exposição
d’O Capital, percebe-se que só foi possível elaborar um rigoroso encadeamento dialético
dos conceitos originados na economia política num “circuito fechado”, graças a
compulsoriedade do conceito básico da mercadoria, onde “então é deduzido, numa
construção puramente mental, o conceito de valor”11. No devir da sociedade burguesa,
compulsoriedade é o pressuposto da racionalidade e, graças a tal condicionamento, então
central às ponderações de Horkheimer, assim como foi inicialmente desenvolvido por
Marx, se reconhece que “a forma atual da sociedade ainda está compreendida na crítica
da economia política”.12 Conforme esse desígnio teórico, o sentido de todos os processos
sociais nas áreas econômicas, políticas e todas as demais áreas da cultura humana devem
ser facilitados por aquele conhecimento irradiador. Isso porque:

“O sentimento de culpa, da obrigação pessoal, para retomar o fio de nossa


investigação, teve origem, como vimos, na mais antiga e primordial relação pessoal, na
relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira vez
defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra.”13
De Marx à Horkheimer, essa ideia geral do movimento do pensamento que, abstraído
de sua história passada para a constituição do conteúdo da lógica do presente, se configura
como referência inicial indispensável e que deve ser levada às suas últimas instâncias
dentro do seu próprio rigor mediado racionalmente. Entretanto, essa universalidade não
é realizada através de um verdadeiro regozijo do sujeito histórico: o rompimento dessa
falsa totalidade é a ambição principal do post festum possível pela lógica marxista. Aqui
jaz a natureza da razão dialética na teoria da práxis em sua primazia no tocante aos
problemas das análises economicistas da II Internacional, então “cachorro morto” após a
derrota do proletariado com advento do nacional-socialismo e demais regimes de

11
HORKHEIMER, Max. “Sobre o problema da verdade” (1935), op cit., p. 164.
12
Ibidem.
13
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma Polêmica (1887). São Paulo: Companhia das Letras,
1999. p. 59.
capitalismo de Estado. Isso porque a apreensão das leis tendências capitalistas, devem ser
o cerne da reflexão crítica dos processos contra tendenciais e, diga-se isso, em todas as
formas de manifestação fenomênica passíveis de uma investigação crítica como, por
exemplo, através das pesquisas sociais desenvolvidas pelo Instituto e demais
colaboradores, isto é, daquilo que se convencionou a denominar como “materialismo
interdisciplinar” 14.

Graças a naturalização dos pressupostos imanentes à sociedade burguesa, tornou-se


possível que os homens não realizassem seu próprio trabalho segundo sua vontade
comum, mas sim baseando-se em uma crescente dependência e insegurança geral, onde
os sujeitos “em vez de senhores, se tornam escravos do seu destino”. Saliento novamente
que a necessidade da lógica interna da forma-relacional do capital, própria do verdadeiro
sentido da sociedade enquanto seu conceito objetivo, cunha os fenômenos que neles se
manifesta e se oculta. Ilustro essa compreensão lógica através da ‘lei da ruína’ de Marx,
deduzida a partir da tendência da queda das taxas de lucro, sendo que, por mais
irreconhecível que possa ser na superfície das relações sociais induzidas a desviar ou adiar
a tendência própria do sistema, ela jamais deixará de existir como determinação
orientadora da vida dos indivíduos de uma sociedade fragmentada nos retalhos da divisão
social do trabalho. Isso se percebe em vários graus de mediações que agem sobre os
sujeitos cindidos nas condutas de suas respectivas classes, desta forma, a tendência é
infligir negativamente cada vez mais indivíduos atomizados na massa, conforme o
percorrer das tendências monopolistas15. Com o processo de acumulação ampliada de
capital sendo esticada ao máximo, seus limites produtivos são rompidos constantemente
pelo capital acionário que detêm a sua relativa autonomia quanto ao realocamento
civilizatório assentado na exploração do trabalho global: As tendências intelectuais dessa
época certamente são influenciadas pela duplicidade característica da personalidade dos
principais porta-vozes do mercado de créditos contemporâneos à Marx, quer dizer, por
aquele “agradável caráter híbrido de vigaristas e profetas”.16

Posto isto, podemos pressupor que do mesmo modo que a sociedade burguesa, desde
os seus primórdios, nunca abandonaria suas exigências fundamentais, os seus exaltadores

14
HABERMAS, Jürgen. Ibidem. p. 87.
15
HORKHEIMER, Max. “Ascensão e declínio do indivíduo”. In: Eclipse da razão (1947). São Paulo:
Centauro, 2003.
16
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista.
Trad. Rubens Enderle; edição de Friedrich Engels. - 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2017. p. 499-500.
jamais deixariam de adversar no que diz respeito à efetividade das presunções
elementares como desencadeadores das principais morbidades sociais. Desde então, tanto
o racionalismo como o irracionalismo estão a serviço da transfiguração da realidade, isso
independe do fato do seu âmago teórico achar insuportável o inevitável destino (ex. a
resignação weberiana e de todo aquele clima pessimista do pensamento filosófico dos fins
do oitocentos). Nessa altura, começamos a compreender melhor o combate dos
frankfurtianos diante das pretensões ideológicas da metafísica...

Em 1930, inicia-se o momento de deflagração contra as teorias sociais equivocadas de


seu tempo. Podemos ter como marco relevante o combate travado por Horkheimer contra
a então Sociologia do Conhecimento17 pois, vale ressaltar que, para a realização de uma
crítica imanente é necessário várias questões pertinentes e, cautelosamente, encadeadas
nas ideias postas em movimento pela razão dialética. Por mais que se tem por referência
teorias extremamente apuradas em seu rigor formalista e analítico, trata-se de “esquemas
sem vida” abstraídos de suas circunstâncias históricas particulares. Assim como David
Ricardo foi o grande expoente da economia política clássica, segundo Marx, Karl
Mannhein foi um grande destaque no campo da epistemologia social cabível às ideias de
sua época. Apesar de não ter tanta profundeza como a autêntica filosofia da vida de
Dilthey, ele proporcionou bons pontos de contato para a crítica de Horkheimer. Desta
forma, podemos ter como regra geral que, os movimentos teóricos que acarretam nos
grandes lampejos da teoria crítica, nasceram do juízo interno das ideias de pensadores
capazes de sintetizarem partes importantes da áurea reflexiva de seu tempo. Isso é
evidente desde os campos de batalha das intermináveis querelas da metafísica na
primeira idade da filosofia clássica alemã.

Partindo da compilação de teorias não relacionadas dialeticamente, Mannheim alça as


bases para a sua sociologia do conhecimento através da conciliação entre a teoria da
dominação marxista (abstratamente subentendida), o existencialismo do em-si valorativo
de Max Scheler e o perspectivismo de Nietzsche, poderíamos também tecer uma ligação
com o método compreensivo weberiano, todavia, este era um lugar comum na tradição
sociológica neokantiana das três primeiras décadas do século XX. Sendo assim, ao se

17
HORKHEIMER, Max. “Um Novo Conceito de Ideologia” (1930). Trad. Vladimir Puzone da edição
original In: Gesammelte Schriften vol. 2. Frankfurt am Main: Fischer, 2012. pp. 272-294.
declarar um aguerrido combatente das tendências dualistas e formalistas, através de um
novo revigoramento da experiência social, ele presumiu ter preenchido adequadamente
os limites das determinações situacionais do sujeito em sociedade - uma nobre intenção,
desde que sejam realmente reconhecidas as verdadeiras circunstâncias materiais das
condições históricas. Assentado no relacionismo entre as grandes visões de mundo
(weltanschauung), ele julgou estar elevado sob a sociedade enquanto objeto em-si do
conhecimento sociológico. É inevitável dizer que, Mannheim se acorrentou ao mesmo
dualismo racionalista a qual, em sua principal obra, considerou refutar partindo da
primazia da sociologia. Particularmente, ele apresenta ferramentas analíticas bem
interessantes, mas que se entendidas na inteligibilidade de sua própria teoria social, tende
assumir a intenção política desfiguradora do proletariado. Sendo assim, Mannheim nos
oferece certas cogitações verdadeiras, mas que evidenciam-se como mal desenvolvidas
no seu todo teórico.

Dentre essas questões, a mais profícua é aquela que aborda a intenção de descobrir os
motivos que, parcialmente, condicionam os indivíduos a interpretarem o mundo a partir
de uma perspectiva embasada em uma visão particular do totalizante. Em outros termos,
como através do seu próprio reconhecimento social, o sujeito cognoscente desenvolve a
sua ideia perpassada por categorias específicas e que, geralmente, pressupõe limites em
torno do seu próprio campo de atuação na experiência. No entanto, embriagado pelo
caráter resignativo da tradição teórica já denunciada acima, Mannheim absolutizou tais
fronteiras cognitivas por mais que busque inúmeros recursos que demonstrem a
possibilidade da desfixação das determinações ideológicas, principalmente, através da
circulação dos membros em sociedade (ex. deslocamentos entre rural e urbano). Talvez
essa última intuição somente poderia tornar-se atrativa por meio da possibilidade de uma
catalisação da mobilidade social, pois a simples circulação espacial não expandiria a
weltanschauung do indivíduo, mas surtiria um efeito de afirmar a sua condicionalidade
através do retorno de sua consciência-de-si, isso após uma experiência aleatoriamente
imediata e que acabou por assumir o caráter de uma realidade aparente/ilusória (Schein-
Wirklichkeit)18.

18
Para uma compreensão etimológica depurada desse conceito para a teoria marxista:
MARCUSE, Herbert. “Sobre o caráter afirmativo da cultura”. In: Cultura e sociedade, vol. 1, p. 89-136.
São Paulo, Paz e Terra, 1997. p. 118.
Sendo assim, através do seu âmbito contemplativo que resguarda a teoria dentro de
uma aparência imparcial, Mannheim pouco mudou em relação a longa tradição ao qual
buscou pertencer. Nos parece que se apegou mais as preleções de Simmel do que as de
Lukács, já que a depuração das formas dos limites humanas ficou muito mais no campo
da aparência, designando a essência ao âmbito oculto do intraespiritual. É inegável que
ele poderia ter desenvolvido uma crítica construtiva da categoria generalizante da
consciência atribuída do jovem Lukács, já que o próprio o fez posteriormente, ao declarar
de maneira enfática ter sido “mais hegeliano do que o próprio Hegel”19. No entanto, em
sua Ideologia e Utopia, Mannheim prescindiu da necessidade de “tornar acessível ao
entendimento comum, o racional no método que Hegel descobriu e em seguida
mistificou”20 para, em seguida, assumir um posicionamento crítico quanto ao pensamento
dialético já estereotipado.

Nesta obra21, a atenção dispendida ao filósofo do alvorecer do oitocentos, tem como


central a sua fase tardia, caracterizada pelas vicissitudes da elaboração de sua Filosofia
da História e, de certo, em relação ao teor político conservador daquele período a qual o
filósofo evitou escrever livros acabados, temendo ser acusado de um transparente
servilismo ao Estado de Friedrich Wilhelm III. Naquele estágio, Hegel dispendia toda a
sua cobiça intelectual para o desenvolvimento da forma mais elevada da substância do
espírito, aquela que tudo conserva em seu interior no post festum através da re-
memoração (Er-innerung) manifestada pela Razão na História. A respeito da negligência
em relação ao método dialético autêntico se prova, em oposição à convicção idealista de
Mannheim acerca da “capacidade de perceber a substância sempre existente do
conflito”, a relevância teórica do núcleo racional do hegelianismo. Sobre a possibilidade
da apreensão auto-reflexiva dos pressupostos que organizam as condições necessárias do
saber do sujeito histórico, o ‘grande enciclopedista’ já demonstrara para os epígonos
críticos os fundamentos lógicos da contradição organizada: “a dialética é esse processo
imanente de transcendência, em que o caráter unilateral e limitado das determinações
do entendimento apresentam-se como aquilo que são, isto é, como sua negação.”22

19
LUKÁCS, György. “Prefácio” (1967). In: História e Consciência de Classe – estudos sobre a dialética
marxista (1922). Trad. Rodnei do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
20
MARX, Karl. Carta de 16 de janeiro de 1858. Marx-Engels Werke, vol. 29, p. 260.
21
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia (1929). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
22
HEGEL, G W. F. Encyclopädie, §81 (1817). cit. In: LUKÁCS, Georg. “A reificação e a consciência do
proletariado” (1922). op cit., p. 355-356.
Deste modo, percebe-se o quanto a consciência contemplativa se demonstra imprecisa
quando concede espaço ao menosprezo diante do caráter transfigurador das ideologias,
aceitando passivelmente os delírios das relações de forças e dos arbítrios das mais
mirabolantes e vertiginosas visões de mundo. Vale ressaltar que, para isso, é preciso cair
em um mar de contradições que só podem ser resolvidas idealmente em um plano
suprassensível. No entanto, Mannheim nem mesmo se deparou com o sujeito real ao
declarar que esse pode falhar cognitivamente em sua orientação em sociedade, o motivo
dessa falha é o mesmo ensejo do sujeito reificado. Por mais que se argumente o contrário,
Mannheim permaneceu cativo da autodeterminação subjetivista e relativista presente
desde o alvorecer do mundo burguês. Essa longa trajetória da autoafirmação do potencial
dos indivíduos na teoria in stricto sensu, foi um dos grandes marcos ideológicos das
antinomias do pensamento moderno, mesmo que na realidade progressiva, os indivíduos
estejam com seus sentidos globais totalmente dilacerados (ex. empirismo e, na décadence,
niilismo). A impropriedade orientativa das visões de mundo pelo à qual os sujeitos
atuantes acabam por se submeter, é um fator de grande magnitude que não pode ser
minimamente rejeitado.

Para Horkheimer, “os capítulos mais importantes da Crítica da Razão Pura, Kant
tentou fundamentar com maior precisão essa “afinidade transcendental”, essa
determinidade (Bestimmtheit) subjetiva do material sensível, sobre o qual o indivíduo
nada sabe.”23 Sendo assim, a natureza dos seus limites cognitivos, a impossibilidade de
realizar-se através do conjunto de suas forças reunidas, passa a ser um problema de
extrema importância a partir de Hegel. Em última instância, a condicionalidade
primordial são os aspectos materiais da vida em sociedade, aquelas capazes de levantar
as barreiras do embrutecimento humana diante do horizonte da emancipação do
proletariado, aqueles obstáculos representados, idealmente, pelas imposturas do reino
animal do espírito (Hegel, 1807): “uma condição de miserabilidade tende a gerar uma
consciência miserável”24. Desta maneira, vemos uma virada decisiva nos ensaios de
Horkheimer em defesa do materialismo histórico e contra toda pretensiosidade teórica
negligente aos alicerces indispensáveis para a cultura (interior) e civilização (exterior)
humana.

23
HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937). In: Textos Escolhidos (Os Pensadores).
São Paulo: Abril Cultural, 1991 (5. Ed.). p. 41.
24
ENGELS, Friedrich. “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1845). São Paulo: Boitempo.
2007.
II

Como já foi tratado acima, o materialismo histórico não se originou de motivos


puramente teóricos, mas sim da necessidade de pensar a sua realidade contemporânea.
Nele está exortado a ideia de uma sociedade melhor, mas não se permite ao utopismo,
pois não tem a pretensão de solidificar as ideias da história como independentes dos
homens, mas tem plena consciência da possibilidade de elas assumirem forças
determinantes na realidade. Sendo assim, o desenvolvimento teórico da crítica ao
idealismo metafísico tem como objetivo trazer as ideias ao chão das possibilidades
históricas.

Longe de qualquer criticismo, a teoria passa a ser uma concatenação de conhecimentos


que resultam de uma determinada prática, de determinadas metas (pôr teleológico). O
materialismo não tem por finalidade a negação da ideia, mas a sua própria determinação
histórica que sujeita os homens atuantes e cognoscitivos: “A prática já organiza o
material de que cada um toma conhecimento, e a exigência de registrar fatos isentos de
teoria é errada, se isto significa que nas realidades objetivas já não agem elementos
subjetivos”25. Podemos levar em consideração tais apontamentos também para a
formação dos princípios morais, já que para o materialismo, não há uma suposição de que
atrás da moral haja uma instância supra-histórica, mas sim a necessidade de buscar essa
transcendentalidade em sua origem na autoridade religiosa: desde o jovem Marx sabemos
como “todos os deuses existiram” enquanto determinações sociais. Portanto, não existem
preceitos morais obrigatórios, pois o materialismo não encontra um âmbito que
transcenda o homem e que antagonize o bem e o mal em uma instância infinita (‘para
além do bem e do mal?’). Ao buscar sua fundamentação na inteligência terrena, a
eticidade apoia-se em evidentes ilusões harmonísticas desde Adam Smith e Immanuel
Kant. Isso porque a conciliação ética com a realidade está assentada em uma afirmação
de duas contraposições necessariamente interconectadas, uma estreita ligação
inseparavelmente contraditória do progresso com um rebaixamento da humanidade ou,
melhor dizendo, a aquisição do progresso ao preço desse rebaixamento: este é o núcleo
real do que Hegel denominou como “tragédia no ético”26.

25
HORKHEIMER, Max. “Materialismo e Moral” (1933). In: Teoria Crítica I – uma documentação, op. cit.,
p. 88.
26
LUKÁCS, György. “A tragédia no ético”. In: O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista
(1938). 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
Essa tendência harmonística da realidade, arrebatada em princípios morais e éticos,
está embriagada por uma equivocada interpretação da complexa relação entre a realidade
natural e social. Já que nessa perspectiva, visando os interesses comuns inatos ao
desenvolvimento das forças produtivas, se estaria partindo da necessidade de sacrifícios
humanos em prol de uma advinda promessa de felicidade que, no falso idealismo
moderno, só se encontra no mundo das intuições estéticas acerca das plenas realizações
humanas, ou seja, interiorizado nas profundezas da monadal alma humana (vida
privada) 27. No entanto, essa conceitualização macabra não pode se efetivar no vir-a-ser,
pois tais imolações não foram oferecidas às exigências de um demiurgo histórico (Hegel
jamais aceitaria a primazia da matéria sob a infinitude do pensar absoluto), mas sim a
mamon e sua cobiça desenfreada deduzida da acumulação ampliada de capital. É possível
até compreender com certa dignidade as nobres intenções da filosofia e economia clássica
em sua época áurea, mas elas só podem ser um embrionário estágio da enunciação dos
problemas da sociedade capitalista, não as armas teóricas de sua superação efetiva.

Deixando as interpretações herméticas para depois - já que elas jamais deixariam de


justificar a sociedade burguesa e mais ainda, podemos até dizer que, conforme o avanço
das tendências monopolistas, tais concepções se manifestaram das formas mais múltiplas
possíveis (ex. relação promíscua entre o obtuso positivismo e o seu ornamento espiritista
como uma das fendas para o pensamento irracionalista*), - devemos voltar novamente à
atenção para o caráter transfigurador da metafísica do idealismo clássico, através da
hispostasiação do transcendente, mesmo que esse parta do problema do sujeito
cognoscente de maneira muito mais aparatosa do que o existencialismo posterior.

O acerto de contas com a tradição da filosofia clássica alemã, desde os primórdios na


juventude hegeliana de esquerda, foi alçada a um plano principal na teoria crítica, pois
nela pode ser expresso o interregno entre dois métodos gnosiológicos imperativos da
modernidade: o racionalismo fundamentado por Descartes e a crítica da economia
política.28 Dentro desse intermezzo, as considerações filosóficas mais importantes podem

27
HORKHEIMER, Max. “Egoísmo y movimento liberador” (1936). In: Teoria Crítica. Buenos Aires/
Madrid: Amorrotu Editores, 2003. pp. 151-222.
* Marx demonstra de maneira genial a relação entre o entusiasmo espiritista no período reacionário
(pós-1948) e o caráter “sensível-suprassensível” (sinnlich übersinnliche) da mercadoria. In:
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo:
Boitempo, 2013. p. 146.
28
HORKHEIMER, Max. “Filosofia e Teoria Crítica” (apêndice a Teoria Tradicional e Teoria Crítica, em Os
Pensadores), op. cit., pp. 69-75.
ser remitidas a Kant e a Hegel. O primeiro expoente do idealismo clássico busca, através
de sua “doutrina da sensibilidade meramente passiva e do entendimento ativo,
amadurecer o problema da previsão segura pelo entendimento em relação ao múltiplo
da realidade sensível”. Sua explicação, sintetizada por Horkheimer é a de que “as
aparências sensíveis do sujeito transcendental já estão enformadas (geformt) através da
atividade racional quando registradas pela percepção e julgadas com consciência” 29.

Todavia, surge na própria intuição kantiana o embargo obscurantista diante da


atividade supra-individual, em outras palavras, o produto do trabalho para as lutas dos
indivíduos de seu tempo estão voltadas para objetivos privados do sujeito burguês recém
emancipado: “A afirmação de Kant de que a eficácia desta atividade [social] está
envolvida por obscuridade, ou seja, apesar de toda a racionalidade é irracional, não
deixa de ter um fundo de verdade”30. A irracionalidade estendida ao social não pode ser
obstruída pela perspicácia da razão individual, definindo assim a forma contraditória da
atividade humana que foi tornada mais evidente no sentido de sua posterioridade. Todo
trabalho desperdiçado e liquidado pela autonomização, faz com que a objetividade da
sociedade e sua dinâmica própria se afaste cada vez mais do modelo da lógica formal
kantiana, tomando em si um sentido coisificado, o vir-a-ser social do capitalismo. Porém,
pode-se também dizer que as dissonâncias do social são remitidas ao interior do ser, ou
seja, às profundezas do inconsciente humano para o ulterior psicanalítico. O sujeito
transcendental não está errado quanto a sua forma, mas nele está pressuposto o sujeito
reificado: “A problemática não solucionada da relação entre atividade e passividade,
entre o a priori e o dado sensível, entre filosofia e psicologia, não é por isso uma
insuficiência subjetiva, mas, ao contrário, uma insuficiência necessariamente
condicionada”31.

Tal antinomia pode ser deduzida das suas análises da gnose, preceito que interioriza
de modo intransparente, toda marca do passado histórico no Eu da subjetividade
transcendental; aqui também podemos manter uma comparação de semelhança com a Er-
innerung hegeliana, mas que se alocam em posições distintas em seus respectivos arranjos
conceituais. A demonstração desses aspectos limites do entendimento racional, implica
em uma crítica cabal de Kant ao desenvolvimento de uma psicologia empírica no esteio

29
HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937), op. cit., p. 41.
30
Ibidem, p. 41.
31
Ibidem, p. 42.
da ciência, isso em contraposição às percepções irracionais. Do desenvolvimento do
conceito de gnose, podemos nos orientar pela perspectiva do romantismo crítico,
perpassadas por inúmeros pensadores desde Schiller e Goethe à Nietzsche. Para o último,
a gnose passa pela a suspeita daquilo que denominou como transmundano, já que a
essência (Wesen) oculta vem ao encontro do pensamento dialético na medida em que
constitui desordem, abuso (Unwesen)32. Portanto, podemos concluir através deste ponto
que, graças ao caráter violento da vida real dos homens singulares, Kant mantem uma
certa repulsão racional diante do irracional real devido a necessidade da constituição de
uma categoria afirmativa para a totalidade, por mais que as atrocidades e o arbítrio sejam
o essencial no “estado exceção” geral dos homens oprimidos no conceito da História.
Partindo desse pressuposto, chegamos em uma convicção importante para toda a
posterioridade da tradição frankfurtiana, que já começa a ser desenlaçada aqui, nas
interpretações dos anos 30, acerca da metafísica idealista alemã: A totalidade constitui
uma categoria essencialmente crítica! Posteriormente, um Adorno tardio demonstraria
claramente os limites dialéticos da totalidade, pois:

“O conhecimento, e isto de maneira alguma ocorre por acidente, constitui um exagero.


Pois tão pouco como algo singular é ‘verdadeiro’, mas, graças à sua mediação,
também forma seu próprio outro, assim também o todo não é verdadeiro. Sua
permanência como inconciliável com o singular constitui expressão de sua própria
negatividade. A verdade é a articulação desta relação.”33
Já quando nos referimos a Hegel, percebe-se que ele se livrou do embaraçoso sujeito
transcendental, da absolutização da razão subjetivista e de seu ‘nós retórico’, pois a
dialética se satisfaz tão pouco com o conceito subjetivo de razão, quanto lhe serve de
substrato o indivíduo. Como já foi dito anteriormente, Hegel concilia todo o
desenvolvimento das contradições numa esfera espiritual mais elevada, onde “a razão
não precisa ser meramente crítica consigo mesma, ela se tornou afirmativa com Hegel
antes mesmo de ser possível afirmar a realidade como racional”34. Suponha-se que o
problema em si gira em torno da proposição hegeliana de que o “real é racional”, pois,
por mais permeado de vertiginosas irracionalidade seja a realidade, é necessário o
desenvolvimento de um entendimento racional dessas discrepâncias para empurrar as

32
“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na
memória". In: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma Polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999. p. 50.
33
ADORNO. Theodor W. “Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã” (1967). In:
Textos Escolhidos (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1991 (5. Ed.). p. 133, grifo meu.
34
HORKHEIMER, Max. Ibidem, p. 42.
consciências para o entendimento acerca da predição do perecimento de suas formas de
vida.

Em seus Cadernos filosóficos, Lenin transcreve duas vezes a afirmação segundo a qual
“a razão governa o mundo”, para assim destacar a sua importância para a teoria da
emancipação, mas além disso ele faz um apontamento preciso em torno dessa assertiva:
“O que é real é racional, mas há uma diferença entre mundo fenomênico e efetividade”35.
É através da efetividade que é possível delimitar um sentido estratégico que, por mais
inseparável que esteja da imediatez empírica, jamais pode ser alçado ao mundo
suprassensível do espírito enquanto determinação sócio-histórica: Aqui jaz o conceito que
ficou alcunhado como comportamento crítico pois, para “os sujeitos [deste
comportamento], o caráter discrepante cindido do todo social, em sua figura atual, passa
a ser contradição consciente”, que entende a condicionalidade social atual como “uma
função que advém da ação humana e que poderia estar possivelmente subordinada à
decisão planificada e a objetivos racionais”36.

Quando no início desse escrito adjetivei o Horkheimer da década de 30 como “um


amante impenitente da razão” não foi uma mera figura de linguagem, pois trazer o
pensamento racional ao mundo das aparências fenomênicas foi o maior objetivo de seus
ensaios dessa época. Trazer a razão ao mundo das relações sociais imediatas é fulcro da
teoria da práxis e, mais complicado torna-se essa tarefa, quanto mais progressivamente a
objetividade social assume um caráter irracionalista e de falsa existência. Toda essa
falsificação – enquanto transcendência e revelação do além – se fertilizou e cresceu no
solo da vida social empobrecida. Enquanto isso, “a razão não pode tornar-se, ela mesma,
transparente enquanto os homens agem como membros de um organismo irracional”. 37
Toda essa concepção de razão dialética já foi enunciado por Marx numa famosa
proposição: “[...] toda a ciência seria supérflua, se a forma de aparecimento e a essência
das coisas coincidissem imediatamente” 38. Nesses termos, o engajamento racional
seguiu essas linhas diretivas durante os tempos fatigantes da ascensão do “reich de mil
anos”.

35
LÊNIN, Vladímir I. Cadernos Filosóficos: Hegel (1914-1915). Trad. Edições Avante! e Paula Vaz de
Almeida, São Paulo: Boitempo, 2018. p. 288.
36
HORKHEIMER, Max. Ibidem, p. 44.
37
Ibidem, p. 45.
38
MARX, Karl. O Capital. Livro III, Tomo II. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p. 271.
III

A ascensão do Estado total-autoritário só se tornou possível após a desagregação


histórica do movimento operário, isso porque tal derrota foi concebida pela plena
integração das organizações de trabalhadores ao “espírito administrativo” do capitalismo
monopolista. Aliás, essa foi uma circunstância determinante para a transição do
monocapitalismo ao capitalismo de Estado, pois esse solapamento da razão emancipadora
do proletariado é adequado a peripécia de que suas bases sejam, reificadamente, anexadas
ao sentido do progresso irrefreável daquele. Indiretamente, aqui nos referimos à
conservação do devir típico do idealismo tecnocrático da II Internacional (ex. renegado
Kautsky) que, levou à sua própria negação, através da paulatina crise do reformismo da
social-democracia alemã: “Tudo o que quer crescer à sombra do poder, corre o risco de
reproduzi-lo”39.

Parte considerável desse problema, pode ser explicado pelo equívoco teórico de
conceber a revolução proletária sob a forma estrutural das revoluções burguesas: isso
porque, muitos dos críticos da revolução bolchevique de 1918 (enfoque para a dissolução
da Assembleia Constituinte pela guarda vermelha de então) flertaram com esse engano.
Acredito que esse não seja o caso de Horkheimer, pois tal concepção parte do pressuposto
de que o desenvolvimento natural do capitalismo - principalmente, a partir da perda da
legitimidade técnica do proprietário privado em relação as finalidades dos grandes
negócios movidos pela esfera tecnocrática do mercado de capitais – levaria à uma maior
socialização dos ganhos derivados do progresso. No entanto, ao negligenciar que a
definição conceitual para Marx é distinta dessa tendência, já que ele não parte do caráter
afirmativo como Hegel, mas sim da relação entre a realidade e o seu conceito, acabou-se
por desprezar o fato de que a objetividade é “sempre o produto da adaptação do poder à
suas condições de existência”.40 Diferentemente da burguesia nascente, o movimento
operário não tem o respaldo alcançado pelo poderio material antes mesmo da tomada do
poder político, pois a realpolitik progressista da patogênese do burguês já tinha
encontrado um fecho e penetrado na estrutura do Estado absolutista em sua dissolução
enunciada pelo devir de uma totalidade ética (ex. a tentativa de ocultamento do processo
de dissolução fracassado pelo dualismo moral de Turgot)41. Na crise iminente do

39
HORKHEIMER, Max. Estado Autoritario. Itaca: México, 2006. p. 12.
40
Ibidem. p. 24.
41
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. o. Rio de
Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 2016. pp. 121-137.
capitalismo, “não só a liberdade é possível, mas também futuras formas de opressão” e,
nessa encruzilhada, o SPD optou por se apegar a constituição política e a miragem da
troca de equivalentes da burguesia: Se esse último apreço livre-cambista tinha a intenção
de “velar a desigualdade, a planificação fascista é o roubo declarado”.42

Nessa sequência, torna-se possível entender alguns pontos centrais da transição entre
as ideias liberais apologéticas do capitalismo monopolista (ex. economia vulgar das
aparências) para as ideias irracionalistas do Estado total-autoritário: apesar de suas
diferenças, ambas são imperiosas quanto a defesa irrestrita da propriedade privada
(‘aufhebung’). Nesse aspecto, podemos compreender claramente a dívida histórica do
liberalismo tardio com o nazifascismo, principalmente, na esfera dos economistas mais
vulgarizadores (ex. von Mises)43. Na prática, vemos que o confluir dessas forças obscuras
podem ser constatadas pelos acontecimentos que levaram o Terceiro Reich a quebrar a
espinha dorsal do sindicalismo de esquerda, digo isso, enquanto continuum da mesma
ordem dos eventos que aniquilaram os conselhos de fábricas através dos freikorps (os
embriões dos SA). O Reichsleiter Robert Ley, chefe da Frente Alemã do Trabalho,
prometeu que seria concedida a “autoridade absoluta ao dirigente natural da fábrica,
quer dizer, ao patrão [...] Só o patrão pode tomar decisões. Durante muitos anos, os
patrões tiveram de pedir licença ao “dono da casa”. Agora vão ser eles de novo o ‘dono
da casa’”44.

No âmbito da transformação da filosofia política e de sua legitimidade metafísica,


podemos explorar na obra de Max Scheler, a transição da forma do governo liberal para
a totalitária ou, com outras palavras, a transição da fenomenologia racionalista para o
existencialismo irracionalista durante o entre guerras. Uma figura de conservação
importante entre os dois períodos é a da imprecisão em torno de uma compreensível
configuração acerca do “conteúdo e estrutura da relação fundamental de autoridade”45.
No imanente desenrolar desse campo teórico, podemos observar como a ratificação da
autoridade autêntica, se desabrocha em si próprio, através da introjeção de seu domínio
sem a mediação ou qualquer respaldo da intelecção de indivíduos então possuídos

42
HORKHEIMER, Max. Ibidem, p. 25.
43
MARCUSE, Herbert. “O combate do liberalismo na concepção totalitária do Estado”. In: Cultura e
sociedade, vol. 1. São Paulo, Paz e Terra, 1997. p. 55.
44
SHIRER, William L. The Rise and Fall of the Third Reich. A History of Nazi Germany, 2 vols., London: The
Folio Society. p. 220, minha tradução.
45
HORKHEIMER, Max. “Autoridade e Família” (1936). In: Teoria Crítica I, op. cit., p. 208.
ideologicamente. Ao percebemos esse aspecto nos termos do desenvolvimento histórico
tratado até aqui, Max Scheler representa o continuum daquela tendência limitativa da
percepção dos sujeitos históricos, no entanto, o problema se agravou porque agora eles
são subordinados à interiorização completa do racionalismo analítico que foi
desenvolvido até então pela grande indústria monopolista. Apesar de todas as premissas
éticas indispensáveis ao conhecimento filosófico, o pensador da valoração em-si, não
ignorou o direito relativo do pragmatismo científico, permanecendo assim, apesar de toda
a sua base existencialista, no esteio da história concreta das ideias positivistas de ciência.
O avanço da interiorização da razão instrumental, por si só já legitimada enquanto
hypóstasis do lógos, foi condição sine qua non para o avanço irrefreável da objetividade
transfiguradora.

Nos escritos de Ernst Jünger, o aspecto mistificador da racionalidade técnica, através


do em-si valorativo da coisa, se apresenta de modo extremamente desinibida: “A própria
técnica tem origem no culto, que ela dispõe de símbolos próprios e que, atrás dos seus
processos, se esconde uma luta entre formas”46. Através dessa perspectiva distópica, é
imprescindível constatar a linha tênue entre o racionalismo técnico e o campo da estética
reveladora do “realismo heroico-popular” o que, de modo concreto, reflete no caráter
simbólico que as lutas assumiram ao exteriorizar uma ideia de eternidade através das
máquinas de guerra (ex. insígnia militar da Eisernes Kreuz enquanto figura ideal da
perenidade da matéria densa). Todo esse itinerário da coisificação metafisizante durante
o entre guerras, representa no campo da história das ideias, a incoerente ‘superação’ dos
limites do positivismo, já que somente certos conteúdos são protegidos do pensamento
analítico, ao serem removidos para “o refúgio do irracional”47. Esse marchar para os
mundos obscuros da metafísica coisificante, enformou os indivíduos com os seus nervos
à flor da pele, pois os sacrifícios do nosso tempo “devem ser avaliados bem mais alto, já
que foram feitos no limite do absurdo”48. Nessa circunstância determinada, a totalidade
social agrilhoa as necessidades do sujeito produtor, que agora centra-se na busca pela sua
autoconservação que está à deriva do destino ou, melhor dizendo, da objetividade da

46
HORKHEIMER, Max. “Da discussão do Racionalismo na Filosofia Contemporânea”. In: Teoria Crítica I,
op. cit., p. 108.
47
Ibidem, p. 107.
48
JÜNGER Ernst. Der Arbeiter, 2. Ed., Hamburgo, 1932, p. 71. cit. In: HORKHEIMER, Max. “Da discussão
do Racionalismo na Filosofia Contemporânea”, op. cit., p.130.
* John Ramsay MacCulloch (1789-1864): economista inglês, autor do livro "A Literatura de Economia
Política" e outros, vulgarizador da doutrina econômica de Ricardo.
sociedade capitalista. Sendo assim, todo pensamento crítico que se opõe à essa condição
de padecimento social, deve ser ‘taxado’ como materialismo filisteista (Alfred
Rosenberg), então em voga pela dominação ideológica consonante com os arbítrios dos
donos do poder desde o advento da burguesia industrial moderna. Para compreender esse
continuum, Marx denuncia que:

“Todo o mundo objetivo, o ‘mundo das mercadorias’, submerge-se aí em mero


momento, em mera atividade que desaparece e de contínuo se renova dos homens que
produzem socialmente. Agora compare-se esse ‘idealismo’ com o grosseiro fetichismo
material a que se traduz a teoria ricardiana ‘nesse incrível borrador’, MacCulloch*,
para quem se desfaz a diferença entre homem e animal. E mesmo entre seres vivos e
coisas. E depois se diga que a oposição proletária, em confronto com o espiritismo
sublimado da economia burguesa, tem apregoado um materialismo grosseiro voltado
apenas para a necessidade brutal.”49
Nesse sentido, todas as expectativas desvairadas do Comintern em torno do
“socialfascismo” foram, praticamente, ceifadas na Noite das Facas Longas (1934), a
justificativa social do novo regime alemão assumiu um caráter progressivamente
transfigurador e o sacrificium intellectus tornou-se a grande realização do sujeito através
da morte desumanizada. O existencialismo político escancarou suas verdadeiras garras,
as mesmas daquele caráter “vampiresco” que Marx pressupôs para a jornada de trabalho:
“O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho
vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”50. A transfiguração irracionalista
da realidade, materialistamente, é equivalente à eficiente transfiguração do orgânico em
inorgânico (coisificação). Num filme cuja primeira projeção em Berlim contou com a
presença de Hitler, apenas três dias depois de ter sido nomeado chanceler, meditava um
dos personagens, comandante de um submarino durante a primeira guerra mundial:
“Talvez a morte seja o único acontecimento da vida”. E noutra sequência: “Nós, alemães,
talvez não saibamos viver, mas sabemos morrer melhor do que ninguém”51.

***

NOTA IMPORTANTE: O interesse principal do escritor desse texto, é a busca por uma
orientação acadêmica do prof. Ricardo Musse. Visando assim, o aprimoramento e
desenvolvimento adequados acerca dos argumentos aqui enunciados sinteticamente e

49
MARX, Karl. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico, Vol. III. Trad. Reginaldo
Sant’Anna. São Paulo: Difel, 1985. p. 1.316.
50
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São
Paulo: Boitempo, 2013. p. 307.
51
Morgenrot (1933), filme realizado por Gustav Ucicky e com argumento de Gerhard Menzel.
limitados cronologicamente. Com a entrega do seu trabalho final, me formo na graduação
em História (FFLCH-USP) e ambiciono não perder o contato intelectual como o senhor...

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