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Kayque Eduardo de Souza

LIBERDADE SOCIAL E FETICHISMO, APONTAMENTOS SOBRE


MARX E HONNETH

RESUMO

A presente reflexão visa dar apontamentos a respeito da relação entre Marx e Honneth a
partir da noção de Honneth de Liberdade Social, fundamental para conceber sua noção de
Liberdade em seu texto ‘’Direito da Liberdade’’, em relação ao conceito de fetichismo em
Marx. Em ambos os casos, aparenta existir um movimento bem semelhante que as relações
sociais acabam tomando. De um lado, de acordo com Honneth, a liberdade, do outro, de
acordo com Marx, fetichismo.

PALAVRAS CHAVE: Marx, Honneth, Liberdade, Fetichismo, Direito, Capital, Valor.

ABSTRACT

The present reflection aims at giving notes about the relationship between Marx and Honneth
from Honneth's notion of Social Liberty, fundamental to conceiving his notion of Liberty in
his text ''Freedom Right'', in relation to the concept of fetishism in Marx . In both cases, there
appears to be a very similar movement that social relations end up taking. On the one hand,
according to Honneth, freedom, on the other, according to Marx, fetishism.

KEYWORDS: Marx, Honneth, Freedom, Fetishism, Right, Capital, Value.

Kayque Eduardo de Souza


HONNETH E A(S) LIBERDADE(S)

Axel Honneth, concebe seu ‘’Direito da Liberdade" para poder responder a questões
contemporâneas, cujo motor principal do texto gira em torno da ideia de liberdade como uma
liberdade social. O autor perpassa fazendo a crítica de duas concepções de liberdade que
estariam dominantes na filosofia até então e aponta a solução de inspiração hegeliana a
respeito desta tal liberdade.
Dito de um modo mais direto, a noção de liberdade privilegiada no autor é a noção que toma
os indivíduos, de acordo com suas palavras: ‘’[...]se baseia numa ideia de instituições sociais,
que assim sendo, permite os sujeitos se relacionarem uns com os outros, já que eles poderiam
compreender a sua parte como outro de si mesmo’’(HONNETH, p.85). A evidente inspiração
hegeliana está clara, no entanto, para chegar a tal conclusão, o autor discorre sobre dois
conceitos de liberdade, liberdade negativa e reflexiva respectivamente. Ambos os conceitos
se tornarão, como veremos, insuficientes para conceber a liberdade, diante de sua inspiração
Hegeliana para concebê-la.
Em um primeiro momento, Honneth tematiza o que se entenderia como liberdade negativa,
esta seria a liberdade tomada a partir do indivíduo que não encontra ausência de oposição ou
de resistências para a realização da vontade de sua vontade, cujo principal representante de
acordo com o autor seria Thomas Hobbes1, já que é com ele que a noção de liberdade
negativa ganha sua forma mais completa, como aponta o autor:

‘’Em seu nível mais elementar, a liberdade para Hobbes, é a ausência de


resistências externas que poderiam obstruir os movimentos possíveis dos
corpos naturais.[...]Hobbes traça uma inferência para a liberdade de seres
que como os homens, diferentemente de meros corpos, possuem uma
vontade;assim sua liberdade consiste em não ser obstruído por resistências
externas na busca por realizar seus objetivos que se impõe para
ele’’(Honneth, Axel, 2015, p.44-45)

1
Outro autor que também é mencionado por Honneth é Jean-Paul Sartre, que para ele também é um partidário
dessa liberdade negativa. Do ponto de vista da reflexão aqui exposta, as noções de liberdade de acordo com
Honneth pouco se diferem, sendo assim neste caso, essencial focar no que consiste de fato essa liberdade
negativa, que apesar de autores diferentes, para Honneth acabam sempre se enveredando ao mesmo problema.
Colocada assim, a liberdade é, portanto, uma ausência de coerção externa na qual pode
delimitar o movimento de um corpo. No caso dos homens, esse movimento ainda tem para si
adicionado o fato de que este possui uma vontade, portanto, a liberdade é exercida quando
essa vontade não é efetivamente obstruída ou bloqueada por qualquer outra instância externa
que possa limitá-la de alguma maneira em direção aos objetos. Mas de acordo com o próprio
autor isso ainda seria insuficiente para pensar a liberdade pois faltaria ainda um caráter pelo
qual o próprio agente colocaria seus objetivos para além de si mesmo. De acordo com o
autor, essa noção de liberdade afetaria a noção de justiça como uma noção negativa, pois

‘’O direito aqui[...]reduz-se a uma determinada esfera de perseguição


irrestrita dos próprios objetos;que são eventualmente arbitrários e
idiossincráticos;[...]Portanto, da determinação meramente negativa da
liberdade, tem-se de certo modo uma, uma transição contínua para o
negativismo da justiça que dela resulta.’’(Honneth, Axel, 2015, p.57)

Desta forma, a ausência de reflexividade da liberdade, como mero hedonismo, de alguma


forma solicita uma noção melhor pensada da mesma. Essa outra noção de liberdade posta, é a
liberdade reflexiva.
No que diz respeito a liberdade reflexiva, ela consiste no fato de que o sujeito tem sua
liberdade no fato de que este é capaz de se colocar leis a partir do ato de reflexão, leis essas
que são pensadas por si mesmo de maneira autônoma, o autor dá a definição a partir das
seguintes palavras

‘’A ideia de liberdade reflexiva se estabelece, antes de tudo, somente pela


relação do indivíduo consigo mesmo; segundo essa ideia, é livre o indivíduo
que consegue se relacionar consigo mesmo de modo em que seu modo de
agir ele se deixe conduzir apenas por suas próprias intenções’’(Honneth,
Axel, 2015, p.58-59)

Os representantes dessa ideia são diversos, mas o que mais se destaca para poder apontar no
que consiste essa liberdade reflexiva é certamente Kant2, pois no seu conceito de liberdade
está posto justamente o fato de que a liberdade não é mais um mero fazer independente da
2
Kant é o expoente aqui pois apesar de Honneth citar diversos autores, a exposição da liberdade reflexiva ganha
um caráter bem mais concreto a partir deste autor. Nomes como Rousseau, Herder, são citados por Honneth
como possíveis expoentes para pensar essa liberdade, mas é em Kant que esse conceito se revela de uma
maneira mais visível.
vontade, mas o ato de se legislar. A relação consigo mesmo é reposta agora como uma
reflexão que coloca leis para o querer que vão além da vontade individual isolada. Leis estas
que no autor são de corte universal e racionais. A liberdade aqui se liga radicalmente com a
escolha moral, quando essa lei se universaliza enquanto um imperativo categórico. Podemos
encontrar o cerne do que seria a liberdade reflexiva enquanto essa relação do sujeito consigo
mesmo, que é capaz de se auto-legislar e a partir disso se autorrealizar a partir dessas leis
postas por si mesmo. No entanto, essa ideia ainda sofre de limitações para pensar a liberdade
enquanto tal.

Se trata, de acordo com Honneth, da abstração das condições sociais desse pensamento, pois
para o autor, a liberdade reflexiva se restringe tão somente ao ato do sujeito de voltar para
dentro de si mesmo, se dar leis e a partir disso, o seu ‘’ao redor’’ ficaria bloqueado ou não
tematizado. Se trata das condições institucionais para poder levá-la a cabo de uma maneira
em que não se perca em constructos artificiais, nas palavras deste

‘’Em nenhum dos dois modelos de liberdade[...]foram indicadas as


condições sociais que possibilita o exercício da liberdade, em cada caso, já
como componentes da liberdade.Ao determinar a liberdade, são deixadas
artificialmente as condições e formas institucionais que sempre deveriam
aparecer para se iniciar a reflexão, para levá-la a bom uso’’(Honneth, Axel,
2015, p.80)

Essas condições sociais que são postas, são o objetivo no qual o conceito de liberdade aqui é
abordado e o sentido pelo qual a reflexão deverá caminhar. Se trata, a partir dessas limitações
colocadas em ambos os conceitos de liberdade até então tematizados, descobrir o modelo de
liberdade defendido em Honneth. O modelo de liberdade que resta para a defesa do autor é o
modelo de uma liberdade tomada como ‘’Liberdade social’’.
Como o próprio nome já diz e tomando retrospectivamente a crítica dos dois modelos de
liberdade até aqui, se trata logicamente de uma liberdade que faz um movimento que não está
prescrito nos outros dois tipos de liberdade. O movimento referido é justamente o levar em
conta deste entorno social no qual a própria liberdade se efetiva.
É de inspiração hegeliana clara a concepção que é conservada e usada por Honneth como o
modelo de liberdade, de acordo novamente com suas palavras, para o autor, a liberdade social
não toma suas condições como externas ou como algo que deve ser abstraído na reflexão do
sujeito. Se trata, dessas condições se tornarem fundamentais para a concepção da liberdade
‘’a liberdade social é a circunstância, determinada instituição da realidade social não é mais
considerada um mero ato aditivo, mas enquanto condição e meio para o exercício da
liberdade’’3(HONNETH, p.81)
Neste caso, não existe uma instância externa que seja alheia a liberdade que deva ser
abstraída, se trata dela mesma ser a condição pela qual a liberdade pode se efetivar. As
instituições sociais não aparecem como um produto estranho aos indivíduos, mas sim,
enquanto um produto de suas ações. Cabe desvendar essas ações e entender que a aparência
de externalidade, de não-liberdade é justamente a condição fundamental para que a liberdade
se inscreva no mundo real.

O inspirador dessa posição em Honneth é Hegel, pois ali, na sua ‘’Filosofia do Direito’’, esse
conceito de liberdade mostra toda sua riqueza. Aqui, a liberdade não se resolve como uma
teoria da justiça negativa ou da moralidade que lhe acompanha. Aqui, se trata de ambos os
momentos estarem caminhando juntos como condições de sua realização e o indivíduo ao não
se relacionar como algo estranho com essas instituições termina por se reconhecer no fundo.
De acordo com Honneth, em Hegel a noção de reconhecimento nessas instituições é levada,
pois o reconhecimento nada mais é do que a possibilidade de reconciliação nessa esfera que
em um primeiro momento, do ponto de vista da reflexão colocada na ideia de liberdade
reflexiva, parece vir de fora, aqui, é justamente o campo no qual essa liberdade se faz
presente, como objetividade ou então ‘’Sob a influência de práticas institucionalizadas,
aprendem a alinhar seus motivos e fins internos’’(HONNETH, p.92)

Essas instituições, como o Estado, o Direito, o Mercado são justamente esses momentos pelos
quais o indivíduo se coloca na vida em sociedade e se vê livre efetivamente. É necessário, por
exemplo, no caso da reflexão aqui proposta, levar o mercado como um momento no qual a
liberdade social é posta de acordo com Honneth. O mercado é uma instância de
reconhecimento, onde os indivíduos podem se relacionar com o outro a partir de si mesmo e

3
Honneth ainda menciona como expoentes dessa liberdade social, no fim da seção da liberdade reflexiva,
autores como Apel e Habermas. Nesse sentido, os indivíduos são participantes do discurso e por isso, estão
sempre com um o seu outro como pressuposto. No entanto, para a exposição aqui, se trata de reter essa ideia
melhor recolocada na posição hegeliana, pois é o que irá tematizar a posição de Honneth.
o outro não é um estranho, mas pelo reconhecimento, se trata de um outro de si mesmo. Em
uma troca, onde os indivíduos se engajam nessa relação, que aparenta ser externa, mas no
fundo, garante-lhe a liberdade por exemplo de comerciar seus bens.
Em nome da reflexão aqui proposta, onde se ambicionava chegar, se trata justamente, de
mostrar que para Honneth, essa esfera que engloba por exemplo o mercado, de uma liberdade
institucional que não diz mais respeito ao ‘’Eu’’ somente, mas o ‘’Eu’’ que se passa pelo
outro, é o grau mais alto da liberdade. O contraponto, no entanto, que será colocado, será a
partir de Marx, nos escritos de ‘’O capital’’, principalmente, a seção do fetichismo que nessa
noção de liberdade, se contraposta, aparenta ser uma forma certamente irônica de tematizar
essa retomada de Honneth por Hegel para justificar sua noção de liberdade. As conclusões
em Marx, no entanto, podem se mostrar um tanto quanto pouco animadoras para quem quer
conceber a liberdade, já que para Marx, aparentemente o sinal de positivo retirado dessa
dialética em Honneth, é para Marx, negativo.

MARX E O FETICHISMO

O capítulo de ‘’O capital’’ que irá versar sobre o fetichismo está justamente na última seção
do primeiro capítulo de ‘’O Capital’’. Mas o que seria fetichismo e o que esse tema teria a
ver com a reflexão aqui proposta? Ora, para Marx, os indivíduos na sociedade capitalista são,
antes de tudo, portadores de mercadorias. E as mercadorias são objetos banais que servem
para satisfazer necessidades diversas, desde as necessidades do estômago até as postas na
fantasia4. Concebida assim, a mercadoria é um valor de uso, um objeto útil no qual se
direciona para essas necessidades. No entanto, a mercadoria não se encerra aí. Ela é também
um objeto que é destinado para a troca. A mercadoria tem um caráter muito específico que é
próprio dela, porque a primeira vista, tomada como mera utilidade, ela é um objeto banal,
mas na sua segunda determinidade5, ela é valor de troca, ela a partir disso aponta a um caráter
muito abstrato e de acordo com o autor ‘’Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito
intrincada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos’’(MARX, p.146).

4
‘’A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz
necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do
estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão’’(p.113)
5
O termo aqui, remete à Lógica em Hegel, que Marx usa para poder expor o seu objeto, no caso, a sociedade
capitalista moderna. Determinidade significa a possibilidade de abarcar determinações na coisa.
Este caráter intrincado da mercadoria é justamente a porta de entrada na qual a reflexão
permite uma relação mais clara com Honneth. A mercadoria, quando apresenta sua segunda
determinidade, o valor de troca, ruma para um caminho bastante obscuro, pois aqui, ela não é
mais um objeto para saciar uma necessidade somente, mas também um objeto no qual
incorpora trabalho humano, enquanto objeto pronto para a troca, ele pode expressar vários
valores de troca, como 1 casaco = 2 metros de linho, 1 bíblia, etc. No entanto, nessa
expressão, algo nem tão banal se esconde, que é justamente o fato de que todas as
mercadorias são produtos do trabalho humano. 1 casaco ser igual a 2 metros de linho anuncia
o fato de que ambos são produtos de trabalho humano.
O caráter desse trabalho, de acordo com Marx, não é um trabalho específico somente, que
segundo o autor, produziria valores de uso6, mas um trabalho igual, reduzido a esforço
fisiológico para a produção. A partir disso, a mercadoria expressa, portanto, o seu valor de
troca. A grandeza desse valor, nada mais é do que o tempo desse trabalho socialmente
necessário. Uma medida objetiva que não se refere à capacidade do trabalhador individual,
mas a algo social, imposto para ele.

‘’Poderia parecer que, se o valor de uma mercadoria é determinado pela


quantidade de trabalho despendido durante sua produção, quanto mais
preguiçoso ou inábil for um homem, tanto maior o valor de sua mercadoria,
pois ele necessitará de mais tempo para produzi-la. No entanto, o trabalho
que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio da
mesma força de trabalho humana. A força de trabalho conjunta da
sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale
aqui como uma única força de trabalho humana, embora consista em
inumeráveis forças de trabalho individuais’’(Marx, Karl, 2013, p.116-117)

Posto assim, a mercadoria possui em si, a determinação de ser algo útil e ao mesmo tempo
também, um suporte desse valor de troca, nas palavras de Marx

6
A referência aqui é a página 119 ou a seção do capítulo correspondente que versa sobre o duplo caráter do
trabalho, onde Marx expõe que o trabalho não é só essa atividade concreta para produção de valores de uso, mas
ganha um caráter distinto na sociedade capitalista.
‘’As mercadorias vêm ao mundo na forma de valores de uso ou corpos de
mercadorias, como ferro, linho, trigo etc. Essa é sua forma natural.Porém,
elas só são mercadorias porque são algo duplo: objetos úteis e, ao mesmo
tempo, suportes de valor. Por isso, elas só aparecem como mercadorias ou só
possuem a forma de mercadorias na medida em que possuem esta dupla
forma: a forma natural e a forma de valor. ‘’(Marx, Karl,, 2013, p.124)

Ao vir ao mundo também como suporte desse valor, a mercadoria anuncia algo deveras
peculiar nas instituições capitalistas, pois ela é um objeto bastante complexo, pois esta forma
anuncia as mercadorias como objetivações dos produtos dos trabalhos humanos, enquanto
suportes desse ‘’valor’’ que é designado como essa igualdade na qual o trabalho humano tem
de se conformar.
Tudo se passa, tudo aparenta como se a própria coisa, a mercadoria, fosse dotada disso. E
enquanto mercadoria e graças ao caráter social do trabalho, de incorporar esse caráter social
do trabalho em seu corpo. Nas palavras de Marx:

‘’O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente


no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores.’’(Marx,
Karl, 2013, p.147)

Marx, então, nos diz que essa relação acontece, portanto, à margem dos seus produtores e
assim, abre para uma relação que se desenha aos poucos em direção a Honneth. O segredo da
seção sobre o fetichismo não é tão somente esse caráter místico da mercadoria, mas
justamente esse caráter de móbil das relações sociais na sociedade moderna capitalista.
Enquanto sociedade, a sociedade capitalista é uma sociedade produtora de mercadorias e
enquanto mercadoria, estas lançam os seus produtores a relações que acontecem a sua
margem ou então, estes não controlam, esses nexos não se apresentam de maneira clara e
distinta para os homens, mas sim como obscuridades ou relações que são coisificadas, de
acordo com Marx. O fetiche está justamente nessa encarnação coisal da mercadoria de
relações sociais que não são coisas, mas que se apresentam para seus agentes enquanto uma
instância que está a sua margem, que eles ‘’não sabem, mas o fazem’’(MARX, p.149). Este
movimento aqui que me refiro da mercadoria a partir de Marx, se efetiva enquanto uma
espécie de quiproquó no qual todas as relações sociais se alinham de maneira automática de
acordo com a troca de mercadorias, como se os homens fossem ligados por fios invisíveis7. O
caráter fetichista, está ligado, portanto, com o trabalho e seu caráter no capitalismo e que está
imediatamente colado à mercadoria assim que ela é produzida enquanto tal. Em uma
definição sumária de Marx, se trata

‘’É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que
aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas[...]A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do
trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é
inseparável da produção de mercadorias.’’(Marx, Karl, 2013, p.147-148)

Sendo assim, o fetichismo seria justamente esse nexo no qual todas as relações sociais do
capitalismo, ao menos suas fundamentais, se articulam, e como o capitalismo expressa por
excelência a sociedade moderna burguesa em Marx, as coisas começam a ficar mais claras na
relação Honneth

A relação com Honneth se mostra a partir do seguinte: Para Honneth, a liberdade só pode ser
concebida como uma liberdade social, uma liberdade que só é uma liberdade construída e
constituída a partir do seu outro, esse outro não é uma limitação e nem algo que pode ser
abstraído para a realização da liberdade, é a sua possibilidade, os indivíduos a partir disso,
constituem instâncias nas quais a liberdade se realiza e não são um conteúdo completamente
estranho a ela, são instâncias nas quais o reconhecimento pode ser completado na justiça, no
direito, onde a liberdade efetivamente se mostra enquanto algo objetivo e real.
Para Marx, se trata do contrário, partindo de pressupostos parecidos, pois para o autor, as
7
A expressão ‘’fio invisível’’ é usada por Marx adiante para poder apontar como funciona a relação do capital
com o trabalhador, como a exploração decorre de maneira velada e ao mesmo tempo, tão efetiva para o
trabalhador. Esse fio invisível, seria a maneira pela qual o capital se efetiva pela produção de mais-valor. Aqui,
não cabe apontar isso, mas no entanto, pela natureza da exposição de Marx, esses elementos começam a
aparecer ou dar indícios para o leitor.
relações sociais são o pressuposto para a produção de mercadorias, mas a mercadoria
enquanto tal, é um objeto tão intrincado que no final de toda sua análise, se descobre o
inverso de Honneth. Pois se a liberdade se realiza a partir do seu outro como um momento
necessário para sua efetivação, de acordo com a reflexão Honnetheana, para Marx, esse
pressuposto não está negado na produção de mercadorias, ora, ele é o pressuposto aceito por
Marx.
No entanto, dentro dessa exposição, a produção de mercadorias faz um giro em que a ideia de
Liberdade que é defendida por Honneth pode se tornar o contrário. Pois a relação a partir do
seu outro, em Marx, é na verdade o quiproquó das mercadorias que efetivam as leis do
mercado capitalista, esse pressuposto que une os indivíduos em uma só direção a partir desse
nexo fetichista do valor, em Marx produz de fato instituições sociais que ajudam a realizar os
indivíduos, mas aqui, não mais de acordo com um princípio de liberdade, mas pelo seu
contrário. Se trata de sua redução a suportes (Träger) dessas relações sociais. O vislumbre da
liberdade de Honneth perde um tanto seu significado, mesmo partindo desse pressuposto da
sua relação com o outro, dos caracteres sociais dessa liberdade.

De uma forma bem irônica, se possível, é capaz de se colocar em Marx uma espécie de
releitura na chave da ironia dessas relações sociais típicas da sociedade moderna, onde a
relação com o outro não aparece mais como as sociedades antigas, uma dominação direta,
mas aqui, se tecem fios invisíveis às costas dos indivíduos, pois, os indivíduos os fazem sem
saber. Se em Honneth, essa liberdade social se mostra no final a um reconhecimento de que
estamos ligados e a que a partir dessas condições podemos ser livres, para Marx, não se
reconhece, se ora, longe disso. De acordo com o autor, se trata de fazer, sem saber o que está
fazendo. Esse ‘’fazer sem saber’’ se trata justamente desse caráter automático no qual é
introjetado nas sociedades modernas, nas relações com os outros e que em Honneth, é
vislumbrado como liberdade, aqui, como algo movido por uma instância instituída por esses
indivíduos a partir da produção de mercadorias. Para Marx, reconhecido por exemplo por
Honneth, esse sistema não deixa a liberdade social de lado, de acordo com Honneth, Marx
viria a tematizar o mercado como uma esfera na qual os indivíduos perdem sua liberdade
individual num esquema coercitivo. 8 Para Marx, se trata da existência dessa liberdade, como
reconhecida por Honneth de certa maneira, quando ele se refere aos seus escritos da
juventude. No entanto, não é só esse horizonte que é necessário se ter em conta. Para Marx,

8
P.g 338 de ‘’O Direito da Liberdade’’ de Axel Honneth
essa liberdade existe e é necessária para a própria troca de mercadorias, pois de acordo com
este ‘’As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras.
Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias’’(MARX,
p.159). Marx ainda segue sua exposição nos seguintes termos em capítulos posteriores:

‘’A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se


move a compra e a venda [...]é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos
inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da
propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de
uma mercadoria,[...]são movidos apenas por seu livre-arbítrio’’(Marx, Karl,
2013, p.250)

Assim, deste modo, a liberdade está de fato também presente na sociedade moderna
capitalista. O que muda bastante o sentido da reflexão, no entanto, é o fato de que essa
liberdade no fundo acaba subvertida na não-liberdade a partir do desenvolvimento dessa
própria liberdade dada aos produtores de mercadorias que compram e vendem mercadorias de
acordo com seu gosto, com sua vontade e essas relações se traçam. Não se trata de uma
negação abstrata da liberdade nesse caso que é posta em Marx, mas uma torção de seu
conceito, uma dialética interna típica da sociedade moderna que subverte seus valores nos
seus contrários, numa espécie de reedição do mesmo mestre de Honneth, Hegel, mas agora
sob um outro ponto de vista, o da contradição que pode mover essa sociedade a outra, a partir
de si, que não reduza seus indivíduos a suportes dessas mercadorias ou meros possuidores,
mas indivíduos efetivamente livres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS, IRONIA, LIBERDADE SOCIAL, FETICHISMO E


SUAS CONSEQUÊNCIAS.

Fica claro, portanto, a partir do que pretendi expor na presente reflexão que o ponto de toque
entre Marx e Honneth, entre ambas as tradições, ambas as compreensões, está justamente
ligada no fato de que em Marx ,a liberdade social é lida na verdade como um sinal negativo,
ao contrário de Honneth que a recebe de maneira positiva. Peculiaridades históricas a parte,
pois Honneth participa de eventos históricos que Marx não participou, eventos estes que
poderiam de alguma forma explicar sua recusa à solução marxista e um retorno a Hegel,
aparentemente, tais apontamentos de Honneth, no entanto, não parecem a partir de seu
movimento interno contestar Marx diretamente. Para Honneth, se trata da possibilidade de
entender a relação com os outros homens de outro jeito, se trata de uma mudança mais
interna dessa sociedade do que uma mudança que traga algo externo, algo novo.

Por mais que se deva com toda razão levar em conta o próprio contexto em que Marx
empreende essas reflexões, a lógica na qual ela é desenvolvida, ainda precisa ser vista com
mais cuidado, porque nos tempos atuais de capitalismo, os diagnósticos de Marx parecem se
tornar cada vez mais presentes, enquanto Honneth aparenta ainda apaziguar o fogo que
circunda à sociedade.
O ‘’Direito da Liberdade’’ de Honneth, perpassa justamente, a partir da defesa da liberdade
social mecanismos pelos quais esse fogo que circunda a sociedade pode ser apaziguado sem
que se possa destruir a estrutura social, as estruturas nas quais a própria liberdade pode se
realizar. Aqui, claro, não foram abordados em sua totalidade, mas que a partir da Liberdade
social, apontam o seu caminho, de poder refazer essa positividade a partir dessa negatividade
que a circunda.

Já em Marx, se trata de uma análise objetiva dessa sociedade que entende que os mecanismos
internos dela, introjetam justamente para fora dela, para buscarmos soluções para além dela.
Não é por acaso que o resultado disso é negativo e não uma análise que tenta repor a
positividade como é no caso de Honneth. Salta aos olhos também do leitor que teve contato
com ambos os textos o caráter de leitura de Hegel que ambos empreendem, pois de um lado
temos um Hegel bastante reformista, uma leitura mais ‘’fiel’’ a Hegel, no caso de Honneth
que tenta repor seu modo de pensar. Em Marx, há uma aproximação de Hegel por sua
negação. É a contradição que acaba se saindo, um Hegel, se colocado diretamente contra seus
textos, deveras profano de Marx que pode ser usado para contrapor Honneth.

Em ambos os casos, são direções distintas. A presente reflexão, tentou a partir dessa
confrontação de ambos, mostrar que para Marx, nesse caráter negativo, se suscita uma
possível compreensão que pode ser irônica dessa liberdade social. Todos somos livres, todos
nos relacionamos nos reconhecendo uns aos outros como portadores de mercadorias. Mas no
desenvolvimento desta tese Honnetheana (e Hegeliana), os valores se subvertem, de modo
que a liberdade social é o caminho para Marx conceber a crítica direta ao modo de produção
capitalista, fiel com seu projeto revolucionário de mudança. A concepção deveras que acaba
preconizando a ironia de Marx, se mostra assim como uma espécie de sátira de Marx das
tentativas de reformar a sociedade capitalista por dentro, pois seus mecanismos, embora
conjuguem a noção de liberdade, acabam traindo esse próprio fundamento positivo. A
liberdade social, no entanto, é relida por uma outra chave e assim se tensiona seu próprio
conceito numa dialética de corte negativo. Mostrando justamente os limites dessa liberdade
social tomando esse próprio contexto no qual ela se dá. De um lado, portanto, está a
revolução e do outro, a reforma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HONNETH, AXEL, O Direito da Liberdade, Martins Fontes, São Paulo, 2015.

MARX, KARL, O Capital, Crítica da Economia Política, Boitempo, São Paulo, 2013

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