Você está na página 1de 7

Capítulo 2:

É possivel definir a
liberdade?
O texto a seguir, de Fernando Savater, disserta sobre o seguinte pressuposto relacionado
ao sentido das ações humanas: o ser humano tem liberdade para escolher agir de uma
forma e não de outra. Isso quer dizer que essa liberdade pode estar, ou não, associada a
um projeto, a uma essência, a uma natureza humana. A liberdade, de certo modo,
implica uma maneira de inventar o que é o ser humano. O grau de invenção, o quanto se
pode realmente escolher ou não, irá depender de como se entende a liberdade e de como
se enxerga o próprio ser humano. É o que será estudado neste capítulo.

[...] A ação – no sentido humano e humanizador que aqui damos ao termo – é o


contrário do cumprimento de um programa. As funções vegetativas e os instintos são
programas, as rosas e as panteras estão “programadas” para ser o que são, fazer o que
fazem e viver como vivem. Nós, seres humanos, estamos programados também, mas de
forma diferente: nossa estrutura biológica responde a programas precisos, mas o mesmo
não ocorre com nossa capacidade simbólica (de que dependem nossas ações). Digamos
que os seres humanos estão programados enquanto “seres”, mas não enquanto
“humanos”. Com nossa dotação genética, recebemos a capacidade inata de levar a cabo
comportamentos não inatos. [...]
SAVATER, Fernando. A importância da escolha. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2012. p. 21.

Definições de liberdade

Quando se pensa sobre liberdade, primeiro é preciso entender que essa palavra não é
unívoca, uma vez que pode admitir diferentes significados ou interpretações. Portanto,
quando alguém pergunta se é possível definir liberdade, deve-se considerar que sim,
mas que há diferentes possibilidades de compreender esse termo.

Do ponto de vista da Filosofia, podem-se identificar três significados básicos para a


liberdade:
> a liberdade de ação;

> a liberdade da vontade;

> e a liberdade da razão.

A seguir, você vai ver qual o sentido de cada uma delas e quais filósofos sobre elas
dissertaram.

Liberdade de ação

No contexto da compreensão da liberdade enquanto liberdade de fazer ou liberdade de


ação, está o filósofo inglês Thomas Hobbes (século XVII). Para ele, a liberdade é
ausência de impedimentos, isto é, a ausência de obstáculos para se conseguir executar
determinada ação. Nesse sentido, uma pessoa é livre para agir quando ninguém e nada a
impede.
É importante considerar que uma liberdade desse tipo nunca é absoluta, e também quase
nunca é nula. Não é absoluta porque sempre pode haver obstáculos. Por exemplo, se
uma pessoa está presa no trânsito, não é livre para deslocar seu veículo para qualquer
lado. Mas essa liberdade é também raramente nula, porque, normalmente, há sempre
alguma possibilidade de agir. No caso do trânsito, há a possibilidade de sair do carro,
abandonando-o.
Outra situação: um prisioneiro está privado de boa parte de suas possibilidades de
liberdade de ação. Por exemplo, no cárcere, ele está privado de sua liberdade de ação de
ir e vir. Em alguns países também está privado de sua liberdade civil, sem, por exemplo,
o direito de votar. Ao mesmo tempo, esse prisioneiro nunca está completamente privado
da liberdade de ação, porque, ainda nas condições em que se encontra, ele conta com a
liberdade de praticar certas ações dentro da própria cela, ou dentro do pátio da prisão,
etc. Há ainda outras possibilidades dentro da sua liberdade de ação: comportar-se
adequadamente para conseguir a redução da pena, desenvolver habilidades de trabalho e
estudo, ou, antagonicamente, não apresentar comportamento adequado, tentar fugir etc.

Além disso, o conceito de liberdade de ação pode ser adotado no sentido político, isto é,
em sua prática na sociedade. O Estado seria uma força que limita, organiza e controla
esse tipo de liberdade. Isso significa que as pessoas não podem fazer tudo o que
quiserem em sociedade. Em outras palavras, em sociedade a liberdade de ação está
regulada pela lei.
Outro filósofo inglês do século XVII, John Locke, considera que onde não há lei não há
liberdade. Com isso, Locke está também pensando na liberdade de ação. Se não há lei,
nada impede, por exemplo, que uma pessoa, ou um grupo de pessoas, venha a escravizar
outras. A lei, desse modo, irá garantir um conjunto de possibilidades de ação. Nesse
sentido, a liberdade de ação necessita de uma regulação para que possa haver uma
comunidade ou uma sociedade.
Quando os revolucionários franceses, no final do século XVIII, reclamaram por
liberdade, era a liberdade de ação que estavam reivindicando. Quando os norte-
americanos, na segunda metade do século XVIII, combateram pela independência do
território em que viviam, o estavam fazendo pela liberdade de ação. Quando, no Brasil,
nos anos 1980, houve o movimento das Diretas Já, a população do país estava lutando
pela liberdade de ação.
Quando os revolucionários franceses, no final do século XVIII, reclamaram por
liberdade, era a liberdade de ação que estavam reivindicando. Quando os norte-
americanos, na segunda metade do século XVIII, combateram pela independência do
território em que viviam, o estavam fazendo pela liberdade de ação. Quando, no Brasil,
nos anos 1980, houve o movimento das Diretas Já, a população do país estava lutando
pela liberdade de ação.

Liberdade da vontade

Há também um segundo sentido para a palavra liberdade, que é a chamada liberdade de


vontade. Trata-se de uma liberdade mais filosófica, cuja compreensão pode exigir um
pouco mais de atenção. De maneira sintética, pode-se dizer que essa é a liberdade de o
ser humano querer aquilo que ele quer.
Uma coisa é a liberdade de ação, isto é, a liberdade de conseguir fazer, realizar, pôr em
prática determinada possibilidade. Outra coisa é a liberdade de querer escolher
determinada coisa. Quando se escolhe uma ação, faz-se a escolha por alguma razão ou
por pura vontade? Em outras palavras, quando uma pessoa escolhe algo, ela faz isso
determinada, influenciada, orientada por algum motivo ou sua escolha não é
influenciada por nada? Será que a escolha é um ato que parte absolutamente do nada?
Quando uma pessoa escolhe, escolhe espontaneamente ou escolhe direcionada por
alguma razão, força, instância etc.?
A liberdade da vontade trata, então, da espontaneidade do querer. É justamente o que
pensa Aristóteles. Quando, em Ética a Nicômaco, o filósofo diz que uma coisa é
conhecer o bem e outra coisa é praticá-lo, deixa claro que há uma liberdade de escolha
na ação humana.
Dessa forma, a ética aristotélica traz subentendida uma noção de liberdade. Quando o
Estagirita se pergunta se a escolha é espontânea ou não, está se perguntando quais
seriam os processos psíquicos que constituem a escolha. Para ele, esses processos
envolvem três dimensões: a deliberação, a escolha e a volição.
Na deliberação, há o processo de saber quais e quantos são os meios aos quais se
recorrerá para chegar a determinado fim. Isso quer dizer que a deliberação elenca os
meios para a ação. É uma organização do que se deve ou não fazer. Logo, a deliberação
não engloba ainda o fazer a escolha, apenas dá o contexto no qual se irá agir.
Por sua vez, a escolha justamente envolve o operar sobre esses meios, transformando-os
em ato. Por meio da escolha, o indivíduo se torna responsável pela ação em específico.
Em último lugar, deve-se considerar a escolha propriamente dita entre o bem e o mal,
ou seja, a escolha ética, que é própria da chamada volição. Esta significa, na concepção
aristotélica, a vontade orientada para a escolha do bom e do verdadeiro, isto é, aquilo
que faz a pessoa escolher a virtude.
Aristóteles segue explicando que ser uma pessoa boa é querer justamente o bom e o
verdadeiro. Entretanto, também diz que só consegue fazer essa escolha aquele que é um
indivíduo bom. Nesse contexto, pode-se notar que Aristóteles fica como que procurando
alguma parte do processo de liberdade que se encontra além da deliberação, da escolha
e da volição.
O que Aristóteles procura é o que irá ser chamado de livre-arbítrio. Mas é só com o
pensamento cristão que o Ocidente irá descobrir de maneira mais completa o conceito
de liberdade da vontade nesse sentido.
O filósofo Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona, que viveu nos primeiros séculos
do cristianismo, foi o primeiro a conceber a liberdade da vontade como livre-arbítrio.
Como ele chegou a essa visão? Quando estava para se converter à fé cristã, ele prestou
atenção em si mesmo e notou que havia conflitos em suas vontades. Escreve o filósofo
em sua obra Confissões: “[...] Era eu que queria e eu que não queria: era exatamente eu
que nem queria plenamente, nem rejeitava plenamente. Por isso, lutava comigo mesmo
e dilacerava-me a mim mesmo [...]”.

Foi justamente por ter conflitos entre as vontades que Agostinho pôde notar que a
dimensão da liberdade é mais complexa, isto é, que podem existir diferentes vontades
dentro da pessoa. Por exemplo, quando uma pessoa quer uma coisa, mas faz outra, isso
quer dizer que ela não conseguiu de fato querer o que inicialmente queria. Ora, mas
como isso é possível? – perguntava-se Agostinho.
Em primeiro lugar, depois de refletir sobre esse questionamento, Agostinho chegou à
conclusão de que a liberdade é própria da vontade, e não da razão. Isso significa que a
razão pode conhecer o bem, mas a vontade pode rejeitá-lo. Em outras palavras, a
vontade é uma faculdade diferente da razão. Ainda que esteja ligada à razão, a vontade
pode escolher até mesmo o irracional.
Em segundo lugar, o conflito das vontades revela que há tipos diferentes de vontades.
Quando uma pessoa, por exemplo, quer estudar mas acaba escolhendo iniciar um game,
acessar suas redes sociais ou distrair-se de outra forma, isso quer dizer que sua escolha
original acabou escolhendo ceder a uma outra escolha. Mas esse escolher ceder foi
totalmente livre, uma vez que a pessoa poderia escolher voltar a estudar. Assim, quando
Agostinho reflete sobre a espontaneidade da liberdade, chega à conclusão de que o
arbítrio da vontade é verdadeiramente livre. É espontâneo, nada o determina.

Assim, como o ser humano faz para conseguir querer o que quer? No caso do exemplo
anterior: como se faz para querer efetivamente estudar? Retomando a abordagem de
Aristóteles, como se faz para querer o bem e o verdadeiro?
Agostinho responde que a liberdade só consegue querer o que realmente quer – no caso
dele, querer a conversão cristã – quando recebe auxílio divino. A graça divina é que
ajudaria o homem a querer o bem.
Em resumo, a liberdade da vontade – a espontaneidade do querer – é o poder de o
indivíduo determinar a si mesmo, sem ser determinado por nada. É a possibilidade de se
decidir em função da própria vontade, sem nenhum condicionamento. Santo Agostinho
chama essa dimensão justamente de livre-arbítrio.

Liberdade para escolher o que se é, e vice-versa

Você viu que o livre-arbítrio consiste na liberdade da vontade para determinar a si


mesmo. Estudará agora essa questão sob outro ponto de vista.
O ser humano é livre para querer uma coisa que não quer? Ou ele pode querer ser uma
coisa que não é? Essas questões implicariam dizer que, se uma pessoa é algo – certa
pessoa, por exemplo, é um músico angustiado –, então suas escolhas serão determinadas
pela sua condição ou personalidade?
Segundo o conceito de livre-arbítrio, isso não é verdade, uma vez que ele corresponde
justamente à ação de determinar a si mesmo. Nesse caso, sob essa ótica, pode-se
considerar que o livre-arbítrio vem antes da personalidade. Em outras palavras, a
decisão vem primeiro, e a personalidade vem depois. A personalidade é justamente fruto
das escolhas.
Em relação a isso, já no século XX, o filósofo francês Jean-Paul Sartre afirmou que a
liberdade da existência de um indivíduo não é determinada por sua essência. Isso quer
dizer que primeiro há a liberdade, isto é, a existência, e só depois essa liberdade fará as
escolhas sobre a personalidade, ou seja, sobre a essência.
Na concepção de Sartre, “a existência precede a essência”, conforme suas palavras em
O existencialismo é um humanismo. Sob essa visão, o ser humano tem sua essência
vinda de suas escolhas, feitas em sua liberdade. Aos poucos, ele vai tomando
consciência de si, de sua existência. Ao ser “jogado” no mundo, ele começa sua
permanente autoconstrução.
Dessa forma, sempre haverá, para a essência humana, a possibilidade de mudanças.
Sempre haverá, por exemplo, a possibilidade de o músico angustiado deixar de ser
angustiado, e também a de deixar de ser músico. Portanto, para o filósofo francês, o ser
humano é livre para ser o que não é e também para não ser o que é.
SAIBA MAIS:
 No pensamento de Santo Agostinho, por outro lado, não se inclui qualquer
consideração de que o fato de o livre-arbítrio poder escolher algo diferentemente
do que a pessoa é ou do que ela quer ser seria prova de algo como a ideia da
existência precedendo a essência. Para o filósofo cristão, a essência permanece
ali, em potência, esperando para ser escolhida pelo livre-arbítrio. Cabe lembrar
que o livre-arbítrio só consegue escolher quem o ser humano deve ser com a
intervenção divina.
 Em relação à expressão “em potência”, que consta do ponto anterior, observe o
seguinte: Aristóteles, na sua concepção sobre o ser, considera dois modos de ser
distintos e divergentes, o ser em potência e o ser em ato. Dizer, nesse contexto,
que algo é em ato equivale a afirmar que esse algo existe concretamente. Ser em
potência, por outro lado, é a referência a algo que tem a capacidade de
concretizar a sua existência, ainda não realizada. Exemplo: uma semente pode
ser considerada uma “árvore em potência”, enquanto uma árvore propriamente
dita já é uma “árvore em ato”.

Quando põe na equação da liberdade a variável da essência ou personalidade, uma


pessoa se vê obrigada a pensar também na questão da libertação. Esse é um tema do
qual Sartre também trata, argumentando que ninguém nasce livre, mas sim se torna livre
– livre para se tornar, na prática, aquilo que escolher ser primordialmente.

Liberdade da razão

Há, ainda, o conceito de liberdade como liberdade da razão, que se refere à relação entre
a liberdade e o conhecimento verdadeiro. Como se processa a liberdade quando se está
diante da verdade? Por exemplo, na resolução de uma equação matemática, como 10x +
5 = 205, o resultado, a verdade sobre a equação, isto é, que x = 20, se impõe ao
indivíduo que efetuou corretamente o cálculo, quer ele queira ou não. O resultado da
equação independe de um processo de escolha. Em outras palavras, e recorrendo a esse
exemplo, que x seja igual a 20 é uma verdade mesmo que se pretenda escolher, ou se
escolha, outra resposta.
Isso implica considerar que o conhecimento verdadeiro, a razão, liberta a pessoa de si
mesma, na medida em que lhe retira a possibilidade de escolha. Não há possibilidade de
escolha diante da verdade; se algo é verdade, não se pode simplesmente escolher que
não seja (sem dúvida, pode-se escolher ignorar essa verdade, mas isso não muda o fato
de que a verdade é a verdade). Isso quer dizer que, quanto mais conhecimento
verdadeiro, menor é a necessidade de escolhas.
Alguns filósofos, como o francês André Comte-Sponville, consideram que a liberdade
da razão retira o ser humano do particularismo de suas escolhas e o abre para a
veracidade do conhecimento universal. Comte-Sponville também expõe que por esse
motivo é que tiranos não têm apreço pela verdade, porque seria preciso segui-la. A
liberdade da razão envolve, portanto, a necessidade de escolher obedecer à verdade.
Pode-se escolher ignorar a verdade, mas não se pode escolher mudá-la.
De qualquer maneira, para obter uma compreensão mais clara e profunda da liberdade, é
preciso, sempre antes, considerar de que liberdade se está falando. Uma vez entendidos
os diferentes sentidos dessa dimensão, pode-se compreender como as diferentes
liberdades se relacionam entre si. Nos próximos capítulos, você verá como essas
relações se efetivam.

Você também pode gostar