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É possivel definir a
liberdade?
O texto a seguir, de Fernando Savater, disserta sobre o seguinte pressuposto relacionado
ao sentido das ações humanas: o ser humano tem liberdade para escolher agir de uma
forma e não de outra. Isso quer dizer que essa liberdade pode estar, ou não, associada a
um projeto, a uma essência, a uma natureza humana. A liberdade, de certo modo,
implica uma maneira de inventar o que é o ser humano. O grau de invenção, o quanto se
pode realmente escolher ou não, irá depender de como se entende a liberdade e de como
se enxerga o próprio ser humano. É o que será estudado neste capítulo.
Definições de liberdade
Quando se pensa sobre liberdade, primeiro é preciso entender que essa palavra não é
unívoca, uma vez que pode admitir diferentes significados ou interpretações. Portanto,
quando alguém pergunta se é possível definir liberdade, deve-se considerar que sim,
mas que há diferentes possibilidades de compreender esse termo.
A seguir, você vai ver qual o sentido de cada uma delas e quais filósofos sobre elas
dissertaram.
Liberdade de ação
Além disso, o conceito de liberdade de ação pode ser adotado no sentido político, isto é,
em sua prática na sociedade. O Estado seria uma força que limita, organiza e controla
esse tipo de liberdade. Isso significa que as pessoas não podem fazer tudo o que
quiserem em sociedade. Em outras palavras, em sociedade a liberdade de ação está
regulada pela lei.
Outro filósofo inglês do século XVII, John Locke, considera que onde não há lei não há
liberdade. Com isso, Locke está também pensando na liberdade de ação. Se não há lei,
nada impede, por exemplo, que uma pessoa, ou um grupo de pessoas, venha a escravizar
outras. A lei, desse modo, irá garantir um conjunto de possibilidades de ação. Nesse
sentido, a liberdade de ação necessita de uma regulação para que possa haver uma
comunidade ou uma sociedade.
Quando os revolucionários franceses, no final do século XVIII, reclamaram por
liberdade, era a liberdade de ação que estavam reivindicando. Quando os norte-
americanos, na segunda metade do século XVIII, combateram pela independência do
território em que viviam, o estavam fazendo pela liberdade de ação. Quando, no Brasil,
nos anos 1980, houve o movimento das Diretas Já, a população do país estava lutando
pela liberdade de ação.
Quando os revolucionários franceses, no final do século XVIII, reclamaram por
liberdade, era a liberdade de ação que estavam reivindicando. Quando os norte-
americanos, na segunda metade do século XVIII, combateram pela independência do
território em que viviam, o estavam fazendo pela liberdade de ação. Quando, no Brasil,
nos anos 1980, houve o movimento das Diretas Já, a população do país estava lutando
pela liberdade de ação.
Liberdade da vontade
Foi justamente por ter conflitos entre as vontades que Agostinho pôde notar que a
dimensão da liberdade é mais complexa, isto é, que podem existir diferentes vontades
dentro da pessoa. Por exemplo, quando uma pessoa quer uma coisa, mas faz outra, isso
quer dizer que ela não conseguiu de fato querer o que inicialmente queria. Ora, mas
como isso é possível? – perguntava-se Agostinho.
Em primeiro lugar, depois de refletir sobre esse questionamento, Agostinho chegou à
conclusão de que a liberdade é própria da vontade, e não da razão. Isso significa que a
razão pode conhecer o bem, mas a vontade pode rejeitá-lo. Em outras palavras, a
vontade é uma faculdade diferente da razão. Ainda que esteja ligada à razão, a vontade
pode escolher até mesmo o irracional.
Em segundo lugar, o conflito das vontades revela que há tipos diferentes de vontades.
Quando uma pessoa, por exemplo, quer estudar mas acaba escolhendo iniciar um game,
acessar suas redes sociais ou distrair-se de outra forma, isso quer dizer que sua escolha
original acabou escolhendo ceder a uma outra escolha. Mas esse escolher ceder foi
totalmente livre, uma vez que a pessoa poderia escolher voltar a estudar. Assim, quando
Agostinho reflete sobre a espontaneidade da liberdade, chega à conclusão de que o
arbítrio da vontade é verdadeiramente livre. É espontâneo, nada o determina.
Assim, como o ser humano faz para conseguir querer o que quer? No caso do exemplo
anterior: como se faz para querer efetivamente estudar? Retomando a abordagem de
Aristóteles, como se faz para querer o bem e o verdadeiro?
Agostinho responde que a liberdade só consegue querer o que realmente quer – no caso
dele, querer a conversão cristã – quando recebe auxílio divino. A graça divina é que
ajudaria o homem a querer o bem.
Em resumo, a liberdade da vontade – a espontaneidade do querer – é o poder de o
indivíduo determinar a si mesmo, sem ser determinado por nada. É a possibilidade de se
decidir em função da própria vontade, sem nenhum condicionamento. Santo Agostinho
chama essa dimensão justamente de livre-arbítrio.
Liberdade da razão
Há, ainda, o conceito de liberdade como liberdade da razão, que se refere à relação entre
a liberdade e o conhecimento verdadeiro. Como se processa a liberdade quando se está
diante da verdade? Por exemplo, na resolução de uma equação matemática, como 10x +
5 = 205, o resultado, a verdade sobre a equação, isto é, que x = 20, se impõe ao
indivíduo que efetuou corretamente o cálculo, quer ele queira ou não. O resultado da
equação independe de um processo de escolha. Em outras palavras, e recorrendo a esse
exemplo, que x seja igual a 20 é uma verdade mesmo que se pretenda escolher, ou se
escolha, outra resposta.
Isso implica considerar que o conhecimento verdadeiro, a razão, liberta a pessoa de si
mesma, na medida em que lhe retira a possibilidade de escolha. Não há possibilidade de
escolha diante da verdade; se algo é verdade, não se pode simplesmente escolher que
não seja (sem dúvida, pode-se escolher ignorar essa verdade, mas isso não muda o fato
de que a verdade é a verdade). Isso quer dizer que, quanto mais conhecimento
verdadeiro, menor é a necessidade de escolhas.
Alguns filósofos, como o francês André Comte-Sponville, consideram que a liberdade
da razão retira o ser humano do particularismo de suas escolhas e o abre para a
veracidade do conhecimento universal. Comte-Sponville também expõe que por esse
motivo é que tiranos não têm apreço pela verdade, porque seria preciso segui-la. A
liberdade da razão envolve, portanto, a necessidade de escolher obedecer à verdade.
Pode-se escolher ignorar a verdade, mas não se pode escolher mudá-la.
De qualquer maneira, para obter uma compreensão mais clara e profunda da liberdade, é
preciso, sempre antes, considerar de que liberdade se está falando. Uma vez entendidos
os diferentes sentidos dessa dimensão, pode-se compreender como as diferentes
liberdades se relacionam entre si. Nos próximos capítulos, você verá como essas
relações se efetivam.