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«1. Introdução
A posição de que não há verdadeiramente conflito entre determinismo e livre-
arbítrio — que o livre-arbítrio e o determinismo são compatíveis — é conhecida como
compatibilismo. […] O compatibilismo tornou-se a mais popular doutrina da filosofia
moderna porque fornece o que parece ser uma solução clara e simples para o
problema do livre-arbítrio. Se não há realmente conflito entre livre-arbítrio e
determinismo, como defendem os compatibilistas, então o velho problema do livre-
arbítrio está definitivamente resolvido.
O compatibilismo foi defendido por alguns filósofos antigos, como os estóicos, e
talvez também por Aristóteles, segundo alguns investigadores, mas popularizou-se
durante o século XVII. Filósofos influentes da idade moderna, como Thomas Hobbes,
John Locke, David Hume e John Stuart Mill, foram compatibilistas. Encaravam o
compatibilismo como a via de reconciliação entre a experiência vulgar da liberdade e
a visão científica do universo e dos seres humanos. O compatibilismo continua
popular entre os filósofos e cientistas actuais por razões similares. Se os
compatibilistas estão certos, podemos ser livres e determinados, e não precisamos de
nos preocupar com a possibilidade de a ciência futura vir a destruir a nossa convicção
comum de que somos agentes livres e responsáveis.
Em segundo lugar, este poder ou esta capacidade, é a minha liberdade e implica que
não há constrangimentos ou obstáculos que me impeçam de fazer o que quero. Não
seria livre para apanhar o autocarro se houvesse impedimentos como, por exemplo,
estar na prisão, ou se alguém me amarrasse (constrangimento físico); ou se alguém
me estivesse a apontar uma arma, ordenando-me que não me movesse (coacção); ou
se não houvesse autocarros hoje (falta de oportunidade); ou se a fobia a autocarros
cheios me levasse a evitá-los (compulsão), e por aí adiante.
Mas não será que a liberdade requer ainda que existam cursos de acção alternativos e
consequentemente a liberdade de agir de outra forma? Como encaram os
compatibilistas clássicos a liberdade de agir de outra forma? Começam por definir
liberdade de agir de outra forma em termos das mesmas condições 1 e 2. És livre de
agir de outra forma que não apanhar o autocarro se 1) tens o poder ou a capacidade
de evitar apanhá-lo, o que implica 2) que também não existam constrangimentos que
te impeçam de não apanhar o autocarro, se assim o quisesses (por exemplo, se
ninguém estiver a apontar-te uma pistola, forçando-te a apanhar o comboio).
3. Livre-arbítrio
Será a visão compatibilista clássica da liberdade plausível? Parece captar
as liberdades superficiais[…]. As liberdade superficiais são aquelas liberdades comuns
como a liberdade de comprar o que queremos, andarmos onde queremos, apanhar os
autocarros que queremos, sem que alguma coisa nos impeça. Estas liberdades
comuns parecem relacionar-se com 1) o poder ou capacidade de fazer o que se quer
e deseja (e o poder de agir de outro modo, se quisermos) e 2) de o fazer sem
constrangimentos ou obstáculos que se metem no caminho. Mas se a análise do
compatibilismo clássico capta estas liberdades comuns de acção […], será que
apreende o sentido "mais profundo" da liberdade, o livre-arbítrio?
"Tudo depende do que queiras dizer com "livre-arbítrio". Num certo sentido, livre-
arbítrio possui um sentido bastante comum. Para a maioria de nós,
significa liberdade de escolha ou de decisão. Mas a liberdade de escolha ou decisão
pode ser analisada da mesma maneira que nós compatibilistas analisamos
genericamente a liberdade de acção. És livre de escolher emprestar dinheiro a um
amigo, por exemplo, se 1) tiveres o poder ou a capacidade de escolheres emprestar
dinheiro no sentido de que 2) nenhum constrangimento te impede de realizar essa
escolha, e se quisesses, em alternativa, nada te impediria de escolher
diferentemente(escolher não emprestar dinheiro), se tivesses escolhido
diferentemente."
"Se ainda não estás satisfeito com esta concepção de livre-arbítrio, então não há
dúvida que estás a pensar no livre-arbítrio de uma forma que não a simples
capacidade de escolher ou decidir como se quer sem constrangimento. Deves estar a
pensar no livre-arbítrio como algo mais "profundo" […]. Como um tipo de
controlo últimosobre o que desejas ou queres em primeiro lugar: um controlo
incompatível com a determinação da tua vontade por qualquer tipo de
acontecimentos no passado relativamente aos quais não tens controle. Ora, os
compatibilistas podem obviamente apreender este sentido profundo do livre-arbítrio,
independentemente do que façamos, porque é incompatível com o determinismo.
Mas, como compatibilistas, acreditamos que o tal sentido profundo de livre-arbítrio —
ou qualquer tipo de livre-arbítrio que requer indeterminismo — é incoerente.
Ninguém pode ter um livre-arbítrio neste sentido mais profundo."
Este cenário não faz sentido, afirmam os compatibilistas. Seria absurdo e irracional a
Molly escolher a firma de Austin dados exactamente os mesmos motivos e o processo
de raciocínio prévio que a conduziram de facto a acreditar que a firma de Dallas era
a melhor solução para a sua carreira. Afirmar que a Molly "poderia ter escolhido
diferentemente" nestas circunstâncias deve querer dizer outra coisa qualquer, dizem
os compatibilistas — outra coisa como: sea Molly tivesse tido crenças e desejos
diferentes, ou se tivesse raciocinado de maneira diferente, ou se outros pensamentos
tivessem entrado na sua mente antes de ter escolhido a firma de Dallas, entãotalvez
tivesse decidido a favor da firma de Austin e a tivesse escolhido. Mas esta
interpretação mais sensível de "poderia ter agido de outra forma", dizem os
compatibilistas, significa apenas que a Molly teria agido de outra forma, se as coisas
tivessem sido diferentes — se o passado tivesse de alguma forma sido diferente. E
esta afirmação, insistem, não entra em conflito com o determinismo. Com efeito,
esta interpretação de "poderia ter agido de outra forma" encaixa perfeitamente na
análise condicional ou hipotética do compatibilismo clássico — "Molly poderia ter
escolhido de outra forma" significa "Ela teria escolhido de outra forma, se o tivesse
desejado (se os seus processos mentais tivessem sido de alguma forma diferentes)". E
tal hipotética interpretação de "poderia ter agido de outra forma" é, como vimos,
compatível com o determinismo.
O primeiro pensamento relativamente a este argumento é que deve haver uma certa
forma de avaliar a conclusão de que a escolha da Molly é indeterminada, e devia ser
capaz de escolher de outra forma "dadas as mesmas circunstâncias passadas". Mas o
que se passa é que não é fácil evitar esta conclusão. O indeterminismo, que é a
negação do determinismo, significa "diferentes futuros possíveis, dado o mesmo
passado." […] Se a Molly é realmente livre de escolher diferentes opções, ela deve
ser capaz de escolher qualquer uma das possibilidades (a firma de Dallas e a firma de
Austin), dadas as mesmas circunstâncias passadas até ao momento em que escolhe.
Em síntese: os compatibilistas têm uma dupla resposta à objecção de que a sua visão
apreende a liberdade de acção, mas não o livre-arbítrio. Por outro lado, dizem, se "o
livre-arbítrio" significa o que habitualmente entendemos
por escolhas e decisões livres (do tipo que não são coagidas ou constrangidas), então
o livre-arbítrio pode ser apreendido por uma análise compatibilista e pode então ser
entendido como compatível com o determinismo. Por outro lado, se "o livre-arbítrio"
tem um significado mais profundo — refere-se a um certo tipo de liberdade "mais
profunda" da vontade que não é compatível com o determinismo — então a liberdade
"mais profunda" da vontade é incoerente e é algo que, de qualquer forma, não
podemos ter.
A natureza "não nos controla", diz o compatibilista Daniel Dennett, uma vez que a
natureza não é um agente da acção. O que é questionável no controlo de outros
agentes, afirma Dennett — sejam engenheiros comportamentais ou de outro tipo — é
que as outras pessoas nos estejam a usar como meios para os seus fins,
assenhorando-se de nós e acomodando-nos aos seus desejos. Rejeitamos este tipo de
interferência. Mas o facto de sermos determinados não implica que quaisquer outros
agentes estejam a interferir ou a usar-nos neste sentido. Então os compatibilistas
podem rejeitar os cenários de Admirável Mundo Novoe de Walden II, afirma Dennett,
sem desistir da sua crença que o determinismo é consistente com a liberdade e com
a responsabilidade.
"Um fatalista acredita […] não só que o que está para acontecer é o resultado
infalível das causas que o precederam [que é aquilo que os deterministas acreditam],
mas que não adianta lutar contra isso; o que tiver de acontecer, acontecerá por mais
que resistamos […] [Assim, os fatalistas acreditam que num homem] o carácter é
formado para ele, mas não por ele; pelo que se os seus desejos fossem diferentes,
tal seria irrelevante, pois não têm o poder de alterar o carácter. […]"
O determinismo, afirma Mill, não implica que não tenhamos influência sobre o modo
como se desenvolvem os acontecimentos, incluindo a formação do nosso carácter.
Temos obviamente essa influência, e o determinismo por si só não o determina. Ao
contrário, acreditar no fatalismo pode ter consequências fatais. Um homem doente
pode desculpar-se por não procurar um médico dizendo: "Se chegar a minha hora,
nada haverá a fazer". Ou um soldado pode usar uma frase familiar para justificar o
facto de não se ter precavido: "Há por aí uma bala com o meu nome. Quando chegar,
não serei capaz de o evitar, faça eu o que fizer." O que Mill está a dizer é que estas
afirmações fatalistas não se seguem do determinismo por si só. Pensar que sim é "um
grande erro".
Suponha-se que defendemos que o mundo é determinado. Ainda assim haveria uma
enorme diferença entre os seres humanos, por um lado, e as amibas e insectos, ou
máquinas e robôs, pelo outro. Ao contrário dos mecanismos (mesmo os mais
complexas como os computadores) ou robôs, nós possuímos emoções e vida interior
consciente, e reagimos ao mundo em função disso. Ao contrário das amibas, dos
insectos e outras criaturas deste tipo, não reagimos ao ambiente de forma
meramente instintiva e automática. Raciocinamos e deliberamos, questionamos os
nossos motivos, reflectimos sobre os nossos valores, fazemos planos para o futuro,
reformamos os nossos caracteres, e fazemos promessas uns aos outros que depois nos
sentimos obrigados a cumprir.
Kane, Robert (2005). A Contemporary Introduction to Free Will. New York: Oxford
University Press, pp. 12-22 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Walter T. Stace, "Compatibilismo"
«Discutirei em primeiro lugar o problema do livre-arbítrio, já que se efectivamente
não houver livre-arbítrio também não haverá moralidade. A moralidade diz respeito
ao que o homem deve ou não fazer. Mas se o homem não tiver liberdade de escolher
o que fazer e se age compulsivamente, então não fará sentido dizer-lhe que não
deveria fazer o que fez e que deveria fazer outra coisa diferente. Todas as regras
morais perderiam assim todo o seu sentido. Se, por outro lado, se age sempre
compulsivamente, como pode alguém ser moralmente responsável pelas suas acções?
Por exemplo, como pode alguém ser punido por aquilo que não podia evitar?
Como surge uma disputa verbal? Consideremos um caso que, apesar de ser absurdo
no sentido em que ninguém cometerá o erro que aqui está envolvido, ainda assim
serve para ilustrar o princípio que deveremos usar para resolver este problema.
Supõe que alguém acredita que a palavra “homem” significa um certo tipo de
“animal de cinco patas”; em suma, “animal de cinco patas” é a definição correcta de
homem. Essa pessoa, depois de procurar por todo o lado e de verificar correctamente
que não há animais de cinco patas, pode chegar à negação da própria existência do
homem. Ora, essa conclusão absurda seria alcançada em virtude dessa pessoa estar a
usar a definição correcta de “homem”. O que fazer para lhe mostrar o seu erro?
Fornecer-lhe a definição correcta, ou, pelo menos, mostrar-lhe que a sua definição
está errada. Tanto o problema como a sua solução seriam, como é óbvio,
inteiramente verbais. O problema do livre-arbítrio e a sua solução é, acredito, verbal
no mesmíssimo sentido. O problema foi criado devido ao facto de homens educados,
em particular os filósofos, terem negado a existência de livre-arbítrio depois de
terem assumido uma definição incorrecta de livre-arbítrio e depois de terem
concluído nada haver no mundo que estivesse em conformidade com essa definição.
Tanto quanto à lógica diz respeito, a sua conclusão é tão absurda como a do homem
que nega a sua própria existência. A única diferença é que neste caso o erro é óbvio
e grosseiro, enquanto que no caso do livre-arbítrio é mais subtil e difícil de detectar.
Durante o período moderno e até bastante recentemente, foi assumido, tanto por
filósofos que negavam o livre-arbítrio como por aqueles que o defendiam, que o
determinismo é inconsistente com o livre-arbítrio. Se as acções do homem fossem
inteiramente determinadas por uma corrente de causas que recuasse até um passado
bem remoto, de uma forma tal que uma mente que conhecesse todas as causas a
poderia prever, então assumia-se que o homem não poderia ser livre. O que
implicava que se assumia uma certa definição de acções realizadas por uma vontade
livre, nomeadamente que haveria acções não inteiramente determinadas ou
previsíveis. Abreviemos isto afirmando que livre-arbítrio era definido como
significando indeterminismo. Esta é uma definição incorrecta que conduziu também à
negação do livre-arbítrio. Ora, logo que percebamos qual é a definição correcta,
descobriremos que o mundo ser determinístico, como a ciência de Newton implica,
ou ser indeterminístico, como a física actual ensina, é totalmente irrelevante para o
problema.
Eis algumas amostras que mostram como a noção é usada vulgarmente. Como se
verá, incluirá casos em que se pretende saber se o homem agiu ou não livremente
para determinar se foi ou não moral e legalmente responsável pelos seus actos.
Supõe um outro caso. Supõe que roubei um pedaço de pão e que era tão honesto
como George Washington. Então, se fosse acusado desse crime em tribunal, o diálogo
poderia ser:
Juiz: Roubou o pão de livre vontade?
Stace: Sim, roubei-o porque tinha fome.
Ou em circunstâncias diferentes poderia ser:
Juiz: Roubou o pão de livre vontade?
Stace: Não. Roubei-o porque o meu patrão me ameaçou com pancada se não o
fizesse.
Num julgamento recente em Trenton, alguns dos acusados de homicídio assinaram
confissões, mas depois afirmaram tê-lo foi sob coacção da polícia. A conversa poderia
ter sido assim:
Juiz: Assinaram a confissão de livre vontade?
Prisioneiro: Não. Assinei porque a polícia me espancou.
Agora supõe que um filósofo era membro do Júri. Podemos imaginar a seguinte
conversa na sala do tribunal:
Porta-voz do Júri: O prisioneiro diz que assinou a confissão porque o espancaram e
não porque quis.
Filósofo: Isso é irrelevante. Não há livre-arbítrio.
Porta-voz do Júri: Está a dizer que é indiferente o prisioneiro ter assinado a confissão
porque a sua consciência lhe ordenou contar a verdade ou porque foi espancado?
Filósofo: Exactamente. Quer tenha sido causado pelo espancamento policial, quer
tenha sido causado pelo desejo próprio – o desejo de dizer a verdade, por exemplo –
assinar a confissão foi causalmente determinado, pelo que em qualquer dos casos o
prisioneiro não agiu de livre vontade. E uma vez que não existe livre-arbítrio, saber
se assinou ou não de livre vontade não deve ser discutido por nós.
Actos livres
Actos não-livres
É óbvio que para encontrar a definição correcta de acções livres devemos descobrir
que característica é comum a todos os actos da coluna da esquerda, mas que, ao
mesmo tempo, está ausente de todos os actos da coluna da direita. Esta
característica que todos os actos livres terão, mas que todos os actos não-livres não
terão, será a característica definidora do livre-arbítrio.
Será a característica de ser incausada ou não ser determinada por causas aquela que
procuramos? Não, porque ainda que seja verdade que todos os actos da coluna da
direita tenham causas, como a carga da polícia ou a falta de comida no deserto,
também é verdade que todos os actos da coluna da esquerda são causados. A greve
de forme do Sr. Gandhi foi causada pelo desejo de libertar a Índia; o acto de
abandonar o escritório foi causado pela fome; e assim sucessivamente. Para além de
que não há razão para duvidar que as causas dos actos livres sejam por sua vez
causadas por causas prévias, e assim segundo uma regressão contínua ao passado.
Qualquer fisiologista pode explicar as causas da fome. O que causou o desejo
poderoso do sr. Gandhi de libertar a Índia é sem dúvida mais difícil de descobrir. Mas
deve ter causas. Algumas delas podem radicar nas peculiaridades das glândulas do
seu cérebro, outras nas suas experiências passadas, outras na hereditariedade, outras
na educação. Os defensores do livre-arbítrio tendem a negar estes factos. Mas fazê-lo
é um tipo especial de alegação, que não é suportada por algum tipo de evidência. A
única perspectiva razoável é que todas as acções humanas, tanto as que são livres
como as que não são, ou são totalmente determinadas por causas ou pelo menos são
tão determinadas como todos os outros eventos da natureza. Pode ser verdade, como
nos diz a física, que a natureza não seja determinística no sentido que antes se
supunha. Mas seja qual for o grau de determinismo que prevaleça no mundo, as
acções humanas parecem ser tão determinadas como tudo o resto. E se é assim, o
que distingue as acções que resultam de escolhas livres das que não resultam de
escolhas livres não pode ser o facto destas últimas serem determinadas por causas
enquanto que aquelas não o são. Então, ser incausada ou ser indeterminada é uma
definição incorrecta de acção livre.
Qual será então a diferença entre actos livres e actos não-livres? Qual será a
característica que está presente em todos os actos da coluna da esquerda e que está
ausente de todos os actos da coluna da direita? Não é óbvio que, embora ambos os
conjuntos de acções tenham causas, as causas da coluna da esquerda sejam de um
tipo diferente de causas? Os actos livres são todos causados por desejos, ou motivos
ou algum tipo de estados psicológicos ou mentais internos do agente. Os actos não-
livres são todos causados por forças ou condições físicas externas ao agente. A força
policial significa força física exercida do exterior; a ausência de comida no deserto é
uma condição física do mundo exterior. Podemos assim apresentar as seguintes
definições operatórias. Actos livres são todos aqueles cujas causas imediatas são
estados psicológicos do agente. Actos não-livres são todos aqueles cujas causas
imediatas são estados ou condições externas ao agente.
É claro que se definirmos livre-arbítrio desta forma, seguramente que existirá livre-
arbítrio e a negação da sua existência pelos filósofos deve ser vista tal como é – sem
sentido. É óbvio que todas as acções dos homens que atribuímos habitualmente ao
exercício do livre-arbítrio, ou que dizemos resultarem de escolhas livres, são de facto
acções que foram causadas pelos seus próprios desejos, pensamentos, emoções,
impulsos ou outro tipo de estados psicológicos.
Vejamos agora aquilo que pode parecer um outro caso problemático. De acordo com
a minha perspectiva, uma acção pode ser livre ainda que possa ser prevista com
absoluta segurança. Mas supõe que contas uma mentira e que alguém o poderia ter
previsto com absoluta segurança. Poderia alguém perguntar “Podias ter dito a
verdade?” A resposta é que podias efectivamente ter dito a verdade se o tivesse
escolhido. De facto podias tê-lo feito, já que se as causas que produziram tal acção,
nomeadamente os seus desejos, tivessem sido diferentes, então teriam produzido
diferentes efeitos. É errado pensar que previsibilidade e livre-arbítrio são
incompatíveis. Isto está de acordo com o senso comum. Se, por conhecer o teu
carácter, posso prever que vais agir honestamente, ninguém poderá dizer quando
agires desta forma, isso prova que não agiste livremente.
Muito se escreveu para justificar o castigo. Mas, no que diz respeito ao livre-arbítrio,
os princípios essenciais envolvidos são bastante simples. Punir alguém por uma acção
incorrecta é justificável porque ou corrigirá o seu carácter ou impedirá os outros de
realizar acções similares. O instrumento da punição tem sido usado, no passado e no
presente, de forma pouco sábia, tendo na maioria das vezes produzido mais mal do
que bem. Mas isso não é relevante para o problema que agora nos ocupa. A punição,
se e quando é justificável, é-o apenas nos casos referidos. A questão é saber de que
modo a punição pode, se assumimos o determinismo, corrigir o carácter ou impedir
as pessoas de realizar acções más.
Supõe que uma criança desenvolve o hábito de contar mentiras e que, para a
corrigires, lhe dás uma palmada. Porquê? Porque acreditas que a sua personalidade é
tal que os motivos habituais para dizer a verdade não contam. Forneces então a
causa ou motivo inexistente sob a forma de dor e de medo da dor futura se ela
repetir o seu comportamento não recomendável. Esperas que alguns tratamentos
deste género a condicionem a dizer sempre a verdade, mas já sem recurso à dor.
Assumes que as suas acções são determinadas por causas, mas não pelas causas
habituais relevantes para dizer a verdade. Portanto, forneces um motivo
artificialmente induzido, a dor e o medo, que acreditas vir a ser no futuro a causa de
falar verdade.
A minha tese é a seguinte: a pessoa que está convencida que possui liberdade de
escolha ou livre-arbítrio tem um maior sentido de responsabilidade do que a pessoa
que pensa que o determinismo absoluto governa o universo e a vida humana. O
determinismo no sentido clássico significa que todo o fluir da história, incluindo
todas as escolhas humanas e as acções, estão completamente determinadas desde o
início dos tempos. Quem quer que acredite que “o que tem que ser, será” pode
tentar escapar à responsabilidade moral apesar de ter agido erradamente
defendendo que tal estava predestinado por leis rígidas de causa e efeito.
Mas se a livre escolha realmente existe na altura de escolher, os homens possuem
claramente responsabilidade moral por decidirem entre duas ou mais alternativas
genuínas, e o álibi determinístico não tem qualquer peso. Assim, o coração da nossa
discussão radica na questão de saber se é verdade que temos livre escolha ou se é
verdadeiro o determinismo universal. Tentarei resumir brevemente as razões
principais que apontam para a existência de livre-arbítrio.
Se, por hipótese, um grupo de especialistas tivesse sido capaz de identificar as duas
sequências causais e assegurar que tal catástrofe estava predeterminada desde o
momento em que o transatlântico deixou o porto de Southampton, ainda assim isso
não perturbaria a minha teoria. A relação espaço-tempo do iceberg e do Titanic,
desde que este iniciou a sua viagem, seria, em si mesma, uma relação de
contingência, já que não haveria qualquer causa relevante para a explicar.
Oito: são inúmeras as palavras que perdem o seu significado normal no novo dialecto
do determinismo. Refiro-me a palavras como abstenção, proibição, moderação e
remorso. Uma vez provada a verdade do determinismo, teríamos que rasurar grande
parte dos dicionários existentes e redefinir uma grande quantidade de coisas. Por
exemplo, que significado deveria ter proibição quando já está determinado que irás
recusar o segundo cocktail de Martini? Em boa verdade, só se pode proibir quando se
quer impedir alguém de fazer alguma coisa que esteja no seu alcance fazer. Mas
segundo o determinismo não poderias aceitar o segundo cocktail por já estar
predeterminado dizeres “Não”. Não estou a dizer que a natureza deva conformar-se
com os nossos usos linguísticos, mas os hábitos linguísticos dos seres humanos, que
evoluíram ao longo da imensidão dos tempos, não podem ser negligenciados na
análise do livre-arbítrio e do determinismo.
Finalmente, não penso que o termo responsabilidade moral possa manter o seu
significado tradicional, a não ser que exista liberdade de escolha. Segundo a
perspectiva da ética, da lei e do direito criminal, é difícil entender como um
determinista consistente possa possuir um sentido de responsabilidade pessoal
adequado relativamente ao desenvolvimento de padrões éticos decentes. Mas a
questões permanecerá independentemente de terem sido ou de alguma vez poderem
vir a ser deterministas consistentes, ou até do facto do livre-arbítrio ser um traço
inato profundo tão característico da natureza humana, como sugeriu Jean-Paul Sartre
ao afirmar “Não somos livres para deixar de ser livres”.»
Quem afirma que a alma é distinta do corpo, que é imaterial, que extrai as ideias de
si própria e que age de acordo com a sua própria energia e sem o auxílio de objectos
externos, afasta a alma, em virtude do seu próprio sistema, daquelas leis físicas
segundo as quais todos os seres conhecidos estão obrigados a actuar. Quem afirma tal
coisa acredita que a alma é senhora da sua própria conduta, que é capaz de regular
as suas operações peculiares, que tem a faculdade de determinar a sua vontade
segundo uma energia própria; por outras palavras, defende que o ser humano é
um agente livre.
Já foi suficientemente provado que a alma não é mais que o corpo considerado a
partir de algumas das suas funções, sendo que umas estão mais escondidas do que
outras; mostrou-se que a alma, mesmo quando a supomos imaterial, é continuamente
modificada com o corpo, está sujeita a todo o seu movimento, sem o qual seria
inerte e morta; que, em consequência, está sujeita à influência daquelas causas
materiais e físicas que dão impulso ao corpo; sendo que o modo de existência do
corpo, constante ou transitório, depende dos elementos materiais que o rodeiam,
que formam a sua textura, constituem o seu temperamento, entrando nele através
dos alimentos, penetrando-o de modo subtil. As faculdades, designadas de
intelectuais, e as qualidades, entendidas como morais, foram explicadas de forma
estritamente física e natural. Ficou demonstrado que todas as ideias, todos os
sistemas, todas as afecções, todas as opiniões verdadeiras ou falsas, que o homem
constrói de si próprio, devem ser atribuídas aos seus sentidos físicos e naturais. O ser
humano é estritamente físico e, independentemente da forma como é considerado,
está ligado à Natureza universal, está submetido às leis necessárias e imutáveis que
esta impõe a todos os seres que estão sob o seu domínio, em função das suas
essências particulares ou das suas respectivas propriedades, que ela atribuiu a cada
espécie particular, sem a consultar. A vida do homem é uma linha que a Natureza
ordena que ele cumpra na superfície da terra, sem que seja alguma vez capaz de se
desviar, nem que seja por um instante. Nasceu sem o seu consentimento; o modo
como se organiza é independente dele; os seus hábitos dependem daqueles que o
obrigaram a aceitá-los; é incessantemente modificado por causas, visíveis ou
invisíveis, que escapam ao seu controle, que regulam necessariamente o seu modo de
existência, que moldam o seu pensamento e determinam a sua forma de agir. É bom
ou mau, feliz ou miserável, sábio ou idiota, razoável ou irracional, sem que a sua
vontade importe para esses diferentes estados. Ainda assim, e apesar das grilhetas
que o prendem, há quem defenda que o ser humano é um agente livre, ou que,
independentemente das causas que o movem, determina a sua própria vontade e
regula a sua condição.
Ainda que o fundamento desta posição seja precário, uma vez que todos os sinais
indicam que está errada, é comum aceitá-la hoje como verdade incontestável por
muitas pessoas bastante esclarecidas; é a base da religião, que, supondo existir
relações entre o homem e um ser desconhecido superior a ele, tem sido incapaz de
imaginar como pode o homem merecer recompensa ou punição pelo que é, a não ser
que se suponha ser um agente livre. A sociedade tem mostrado interesse em
acreditar neste sistema, porque se tornou comum a ideia de que se todas as acções
do homem forem encaradas como necessárias, o direito de punir aqueles que
prejudicam os seus semelhantes deixará de existir. A imensa vaidade humana
conduziu à hipótese de que o homem é inquestionavelmente superior a todos os
outros seres físicos, pois tem o privilégio especial de escapar totalmente às outras
causas. Contudo, basta apenas um pouco de reflexão para demonstrar que isso é
impossível.
[…]
A vontade, como afirmámos noutro lado, é uma modificação do cérebro, através da
qual este se dispõe à acção ou se prepara para usar os órgãos. Esta vontade é
necessariamente determinada pelas qualidades, boas ou más, agradáveis ou
desagradáveis, do objecto ou motivo que afecta os seus sentidos, ou através da ideia
que permanece nele e que a sua memória evoca. Consequentemente, ele age de
forma necessária e a sua acção é o resultado do impulso que recebe do motivo ou do
objecto, ou da recordação que foi modificada no seu cérebro ou que influenciou a
sua vontade. Quando não age de acordo com este impulso é porque novas causas
surgiram, ou novos motivos, ou novas recordações, que modificam o seu cérebro de
forma diversa, dando-lhe um novo impulso para agir, determinando a sua vontade de
outra forma, e suspendendo o anterior impulso; nessa altura, ver o novo objecto
agradável ou a sua recordação, determina a sua vontade com vista a realizar uma
acção para a alcançar; mas se um novo objecto ou recordação o atrair de forma mais
poderosa, a sua vontade recebe uma nova direcção, aniquilando o efeito da anterior
e impedindo a sua procura. Este é o modo através do qual a reflexão, a experiência,
a razão, capta ou suspende necessariamente a acção da vontade do homem: sem
isto, ele seguiria necessariamente o impulso anterior que o empurrava para o
anterior objecto de desejo. Mas ele age sempre em função de leis necessárias,
relativamente às quais não tem o poder de emancipação.
Será que quando o homem é atormentado por uma sede violenta e representa para si
próprio a ideia de uma fonte ou vê realmente uma, cuja água límpida e fresca pode
acalmar o seu desejo intenso, tem suficiente domínio de si para desejar ou não
desejar o objecto adequado para satisfazer o seu tão vivo desejo? Não levanta
qualquer tipo de dúvida que é impossível que ele não esteja desejoso de satisfazer a
sua sede; mas dir-se-á que se nesta altura for informado que a água que tão
ardentemente deseja está envenenada, se absterá de a beber, apesar da sua
profunda sede; o que levará à conclusão errada de que é um agente livre. Contudo, o
motivo é, em ambos os casos, o mesmo: a sua própria preservação. A necessidade
que o levou a beber antes de saber que a água era prejudicial, é também a que o
determina a não beber depois dessa descoberta; o desejo de preservação aniquila ou
suspende o anterior impulso; o segundo motivo torna-se mais forte que o anterior,
quer dizer, o medo de morrer ou o desejo de preservação, sobrepõem-se
necessariamente à sensação dolorosa causada pela sua avidez de beber; mas poder-
se-á dizer que se a sede for insuportável, um homem imprudente arriscará beber a
água sem considerar o perigo. Nada se ganha com esta observação: neste caso, é o
primeiro impulso que ganha ascendente; ele convence-se que possivelmente a vida se
prolongará mais ou que usufruirá de um bem maior bebendo a água envenenada do
que prolongando o tormento, o qual, segundo a sua mente, o ameaça de dissolução
imediata: portanto, o primeiro impulso torna-se o mais forte, levando-o
necessariamente a agir. Ainda assim, em ambos os casos, quer beba ou não a água, a
acção será determinada; será o efeito do motivo que se apresenta como mais forte, e
que, em consequência, exerce maior coacção sobre a sua vontade.
Este exemplo serve para explicar todo o fenómeno da vontade humana. Esta, ou
melhor o cérebro, encontra-se na mesma situação de uma bola que apesar de ter
recebido o impulso para realizar um movimento em linha recta, vê o seu percurso
interrompido por uma força superior à do primeiro impulso e que a obriga a alterar a
direcção. O homem que bebe a água envenenada parece louco, mas as acções dos
loucos são tão determinadas como as dos indivíduos mais prudentes. Os motivos que
determinam os voluptuosos e os debochados a arriscar a sua saúde são tão poderosos
e as suas acções são tão necessárias, como as dos homens sábios. Mas, insistir-se-á,
os debochados podem ser levados a alterar a sua conduta: mas isso não significa que
sejam agentes livres; significa que os motivos podem ser suficientemente fortes para
aniquilar ou efeitos dos motivos que antes o influenciavam; então estes novos
motivos determinam a sua vontade levando-os a adoptar um modo de conduta tão
necessário como o anterior.
Quando alma é assaltada por dois motivos que a afectam alternadamente ou que a
modificam sucessivamente, delibera; o cérebro está num certo tipo de equilíbrio,
acompanhado por oscilações perpétuas, por vezes em direcção a um objecto, por
vezes em direcção a outro, até o mais forte o arrastar até ao ponto concreto de
resolução do impasse em que consiste a indecisão da sua vontade. Mas quando o
cérebro é simultaneamente assaltado por causas igualmente fortes que o puxam em
direcções opostas, em conformidade com a lei geral que se aplica a todos os corpos
quando sofrem a acção de forças contrárias, pára, fica em nisu; não é capaz de
escolher nem de agir; e espera até uma destas causas obter uma força tal que se
sobreponha à outra, para determinar a sua vontade, para a atrair de uma tal maneira
que possa sobrepor-se aos efeitos da outra causa.
Este mecanismo, tão simples, tão natural, é suficiente para demonstrar por que a
incerteza é dolorosa e por que o impasse é sempre um estado violento para o
homem. O cérebro, um órgão tão delicado e tão mutável, vive modificações tão
rápidas que são cansativas; e, quando é forçado a seguir em direcções diferentes por
causas igualmente poderosas, sofre uma espécie de compressão, prevenindo a
actividade adequada à preservação do todo e necessária para procurar o que é
vantajoso para a sua existência. Este mecanismo também explicará a irregularidade,
a indecisão, a inconstância do homem e tornará compreensível a conduta que
frequentemente aparece como um mistério inexplicável, e que é, de facto, o efeito
do sistema que recebe. Ao consultar a experiência, descobrir-se-á que a alma está
sujeita às mesmas leis físicas que o corpo. Se a vontade de cada indivíduo, durante
um dado período de tempo, é movida por uma única causa ou paixão, nada será mais
fácil do que prever as suas acções; mas o seu coração é frequentemente assaltado
por forças contrárias, por motivos adversos, que actuam sobre ele de forma
simultânea ou sucessiva; então o seu cérebro, atraído em direcções contrárias, ou
fica cansado ou fica atormentado por um estado de compressão, que o priva de
actividade. Umas vezes por causa de um estado de inacção incómoda; outras em
resultado dos choques alternados que sofre. Este é, sem dúvida, o estado em que se
encontra o homem que vive entre a paixão forte que o arrasta para cometer um
crime e o sentimento de medo por causa do perigo que o aguarda; tal é igualmente a
condição de quem sente remorsos pela acção constante da uma alma desleixada, que
o impede de extrair prazer dos objectos que obteve de forma criminosa.
[…]
A capacidade de escolher não prova de forma alguma que o homem é livre: ele
apenas delibera quando ainda não sabe o que escolher de entre os objectos que o
atraem e vive, por isso, uma situação de embaraço, que só termina quando a sua
vontade vier a escolher o objecto ou a acção que acredita ser mais vantajosa. Donde
se pode ver que a escolha é necessária porque ele não se decidiria por um objecto ou
acção se não acreditasse que lhe traz alguma vantagem directa. Para que o homem
pudesse agir livremente seria necessário que pudesse ter vontade ou escolher sem
motivo, ou que pudesse impedir que os motivos coagissem a sua vontade. Sendo a
acção sempre o efeito da sua vontade determinada e como ela não pode ser
determinada senão por motivos sobre os quais não tem poder, segue-se que nunca é
determinador da sua vontade particular e que, consequentemente, nunca se
comporta como agente livre. Tem-se acreditado que o homem é um agente livre
porque tem uma vontade com o poder de escolher; mas não tem sido dada atenção
ao facto de que a sua vontade é determinada por causas independentes dele próprio,
devido ao que é inerente à sua própria organização ou ao que pertence à natureza
dos seres que actuam sobre ele. […] Será que é senhor da vontade de não tirar a mão
do fogo quando tem medo de se queimar? Ou será que tem o poder de afastar do
fogo a propriedade que provoca o medo? Será que é senhor da decisão de não
escolher um prato de carne, que sabe ser agradável ou familiar ao seu paladar, ou ao
preferir aquilo que sabe ser desagradável e perigoso? É sempre em conformidade com
as suas sensações, com a sua experiência peculiar, ou com as suas suposições, que
julga as coisas, bem ou mal; mas seja qual for o seu julgamento, depende
necessariamente do seu modo de sentir, habitual ou acidental, e das qualidades que
ele encontra nas causas que o influenciam e que existem independentemente dele
próprio.»
Publicada por Vítor João Oliveira à(s) 00:14 Sem comentários:
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Etiquetas: Determinismo Radical, Filosofia da Mente, Liberdade, Livre-
arbítrio, Metafísica, Paul Henri D'Holbach, Problema do Livre arbítrio
Paul Henri D'Holbach, "Do Sistema de liberdade do
Homem"(Parte 2)
«Quando se diz que o homem não é um agente livre, não se está a compará-
lo a um corpo que se move unicamente por um simples impulso causal: o homem
contém nele próprio causas inerentes à sua existência; é movido por um órgão
interno, que obedece a leis particulares e que é necessariamente determinado pelas
representações que ele forma a partir das percepções que resultam das sensações
que recebe dos objectos externos. Dado que desconhece o mecanismo destas
sensações, destas percepções e do modo como as representações são gravadas no seu
cérebro, e porque é incapaz de decifrar estes movimentos, por não ver a cadeia de
operações na sua alma, ou o motivo principal que actua sobre ele, vê-se a si próprio
como agente livre, o que, em tradução literal, significa que se move a si mesmo por
si mesmo, que se determina sem causa, quando deveria dizer que ignora como e por
que motivo age como age. É verdade que a alma goza de uma actividade peculiar
para si mesma, mas é igualmente certo que esta actividade nunca seria visível se
algum motivo ou causa não estivesse na sua origem; pelo menos, não se pretenderá
que a alma possa amar ou odiar sem motivo, sem conhecimento dos objectos, sem
alguma ideia acerca das suas qualidades. A pólvora tem inquestionavelmente uma
actividade particular, mas esta nunca se exibirá por si mesma, a não ser que se
aplique fogo, o que imediatamente a colocará em movimento.
É então por querer regredir às causas que o movem, por causa de ser capaz de
analisar, por não ser competente para decompor os movimentos complexos da sua
máquina, que o homem acredita ser um agente livre. É apenas sobre a sua própria
ignorância que ele encontra a noção profunda, mas enganadora de que é um agente
livre; que constrói aquelas opiniões que apresenta como provas irrefutáveis da sua
pretensa liberdade de acção. Se, por um curto período de tempo, cada homem fosse
capaz de examinar as suas acções particulares, de procurar os verdadeiros motivos
para descobrir a sua conexão, ficaria convencido de que o sentimento que tem de ser
naturalmente um agente livre não é mais do que uma quimera que a experiência
deve rapidamente destruir.
Ainda assim, deve reconhecer-se que a multiplicidade e a diversidade de causas que
actuam continuamente sobre o homem, frequentemente sem o seu conhecimento,
tornam impossível ou pelo menos extraordinariamente difícil para ele remontar aos
verdadeiros princípios das suas acções peculiares, quanto mais às dos outros;
frequentemente dependem de causas tão fugazes, tão remotas relativamente aos
seus efeitos, que, quando são superficialmente examinadas, parecem tão pouco
aparentadas, com tão pouca relação entre si, que seria necessária uma sagacidade
bastante singular para as esclarecer. É isto que torna o estudo do homem moral uma
tarefa tão complexa; é esta a razão pela qual o seu coração é um abismo, no qual lhe
é frequentemente impossível sondar a profundidade. Está então obrigado a
contentar-se com o conhecimento das leis necessárias e gerais que regulam o coração
humano; para os indivíduos da sua própria espécie estas leis são quase as mesmas,
variando apenas em consequência da organização que é específica de cada indivíduo
e da modificação que sofre; isto, contudo, não pode ser rigorosamente idêntico em
quaisquer dois indivíduos. É suficiente saber que, em razão da sua essência, o homem
tende a preservar-se e a tornar a sua existência feliz; garantido isto, sejam quais
forem as suas acções, se recuar até ao primeiro princípio, até essa tendência geral e
necessária da sua vontade, nunca poderá iludir-se relativamente aos seus motivos.»