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Partamos duma triste evidência: "o mal foi o parceiro mais constante da aventura humana no
século XX"1. O culminar do progresso científico e técnico, a realização mais profunda da
racionalidade cujo movimento se iniciara nos séculos XVII e XVIII não conseguiram erradicar
as manifestações mais terríveis do mal sob diversas formas nos séculos que se seguiram, com
infeliz e dramática evidência ao longo do século XX. E o século XXI, ao longo destas quase
duas décadas, não nos faz pensar que virá por aí um futuro substancialmente diferente, com
novas formas de manifestação da desumanidade e da indiferença perante a situação e o destino
dos outros, dos nossos irmãos. Será que o mal faz parte da essência do próprio homem, tem
poiso certo e obrigatório no seu coração, recordando-lhe o pecado original como marca
indelével do seu código genético e ao qual nunca conseguirá escapar?
Existiram autores que chegaram a questionar a realidade do mal. Alguns, numa hábil manobra
de ilusionismo retórico e não admitindo a coexistência original de um princípio benigno
representado por Deus e um princípio maligno com o Diabo como seu arauto, defenderam que o
mal não existe, mas apenas uma diminuição do Bem2. É que sempre havia que explicar como é
que num mundo criado por Deus, todo poderoso e bom, também aconteciam catástrofes,
guerras, epidemias devastadoras. O problema é que seria uma afronta à omnipotência e suma
bondade de Deus se Ele não conseguisse retirar o bem do mal. Como afirmava Santo Agostinho,
"Deus não deixaria subsistir nada de mal da Sua obra se Ele não fosse omnipotente e bom ao
ponto de retirar bem do mal". A menos que enveredássemos pela interpretação de Hans Jonas de
Deus assistiu omnipotente ao Holocausto!3
Em suma, o mal existe e nunca nos dias de hoje foi tão visível. Contudo, o drama do homem
contemporâneo perante o espetáculo do mal é que, eliminadas do seu habitual repasto de ideias,
as doutrinas filosóficas e religiosas com referência à transcendência e que poderiam explicar e
dar sentido ao mal e amortecer o choque das suas brutais manifestações, " a psique moderna é
invadida por uma forma insidiosa de depressão"4.
A cultura judaico-cristã foi, desde sempre, responsável por uma atitude de otimismo perante o
mal. As desgraças que se abatem sobre o homem revelam uma intenção divina; Deus,
omnipotente, consegue fazer um bom uso do mal. A cultura judaico-cristã primeiro, e o
1
Michel Lacroix, O Mal, Lisboa, Instituto Piaget, 2003, p. 15 [131 pp.].
2
A histórica vitória da afirmação de um Deus único teve que ultrapassar quer as conceções mais arcaicas onde
conviviam vários deuses. Por exemplo, o caso do dualismo, como o de Zoroastro (século VII a.V.) onde coabitavam
dois deuses antagónicos: Ormuzd, o Bem e Ahriman, o Mal; ou como o de Maniqueu (216-277), fundador do que
viria a ser conhecido como maniqueísmo, heresia cristã que ressurgiria na época dos Cárpatos.
3
Cf. Hans Jonas, O Conceito de Deus depois de Auschwitz, onde acaba por concluir que temos que retirar o atributo
da omnipotência da noção que temos de Deus. V. Michel Lacroix, op. cit., p.24.
4
Lacroix, op. cit., p. 18.
José Carlos S. de Almeida, «A utilidade do mal» Pág. 2 de 6
5
Nomeadamente com Kant, Fichte, Herder, Hegel e Marx.
6
Sobre o mito duma idade de ouro da humanidade e a sua função interpretativa das teodiceias religiosas da
Antiguidade oo políticas da modernidade, ver Jean-Jacques Wunenburger, Uma Utopia da Razão - ensaio sovre a
política moderna, Lisboa, Instituto Piaget, 2004, pp. 19 e ss.
7
Michel Lacroix, op. cit., p. 62.
8
Sobre novos contextos de surgimentos de novas formas de ignorância, cf. as ideias de Thomas De Koninck, A Nova
Ignorância e o Problema da Cultura, Lisboa, Ed. 70, 2003, 176 pp.
9
Ver a redução do mal ao seu contexto, as explicações e justificações do mal pelo disfuncionamento do contexto,
levado a cabo pelas modernas sociologias em Luc Ferry, O Homem-Deus, Porto, Edições Asa, 1997, pp. 76 e ss..
José Carlos S. de Almeida, «A utilidade do mal» Pág. 3 de 6
acabarmos por conviver com o mal como se ele fosse uma realidade inelutável, com a qual
acabamos por conviver, banalizando a sua presença.
Existem vários tipos de mal; mal físico, mal psíquico, mal moral
O problema do mal tona-se tão essencial que irá determinar a agenda do próprio Estado (e não
do governo, já que estamos num nível mais fundamental). O problema do mal irá justificar a
importância cada vez maior da segurança. A segurança é um princípio vital da comunidade ─ a
segurança da comunidade tem a ver com a "melhor maneira de evitar ou minimizar o mal", tema
ver com a nossa "capacidade de evitação ou minimização do mal" (Miguel Real, Nova Teoria
do Mal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012, 189 pp. - Cf. pp. 127-128)
José Carlos S. de Almeida, «A utilidade do mal» Pág. 4 de 6
A invisibilidade do outro significa, aos nossos olhos, a sua insignificância. Mas, igualmente e a
partir daí, associamos a invisibilidade do outro a vários sentimentos: vergonha, paranóia,
insucesso social ou a impressão disso, isolamento, clandestinidade12.
[incompleto]
10
Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis, Cegueira Moral - a perda da sensibilidade na modernidade líquida, Lisba, Relógio
D'Água Editores, 2016, 266 pp.
11
Op. cit., p. 19.
12
Cf. Júlia Catarina de Sá Pinto Tomás, «A invisibilidade social, uma perspectiva fenomenológica», in VI Congresso Português de
Sociologia - Mundos sociais: saberes e práticas, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 25 a 28
de junho de 2008. [número de série: 285]
José Carlos S. de Almeida, «A utilidade do mal» Pág. 5 de 6
Eichmann, um oficial nazi, foi responsável pela deportação de mais de um milhão de judeus em
toda a Europa, bem como pelo seu assassinato em massa.
No final da guerra, Eichmann foi capturado, tendo ficado sob a custódia das autoridades
americanas. Em 1946 conseguiu fugir para a Argentina, onde ficou a viver até ser capturado em
1960 pelos serviços de segurança de Israel. Foi julgado por um tribunal de Jerusalém no ªambito
dum processo que despoletou um grande interesse por parte da comunidade internacional. Foi
considerado culpado de crimes contra o povo judeu e condenado à morte por enforcamento, o
que aconteceu entre 31 de maio e 1 de junho de 1962.
O seu julgamento foi acompanhado por Hannah Arendt
Ver:
Milan Kundera, «The tragedy of Central Europe»
Cf. Thomas J. Scheff, «Academic Gangs», in Crime, Law and Social Change
José Carlos S. de Almeida, «A utilidade do mal» Pág. 6 de 6
Mal - Apontamentos
Ver:
História do Diabo
António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-Novos
Ver:
condicionamento dessensibilizante in Cegueira Moral, p. 59
"O horror de um grande terramoto ou inundação tem muito mais hipóteses de nos estimular à
ação do que o lento (poder-se-ia dizer impercetível) aumento da desigualdade em matéria de
renimntos e oportunidades de vida." (Cegueira Moral, p. 59)