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Afonso, um sapo sem sorte

Afonso, apesar de sapo, sempre desejou ir para além da sua limitada figura. Aliás,
limitada é dizer pouco, a figura dum sapo roça as bandas do horrível inimaginável. Mas,
continuemos. Afonso, chegando à idade de procurar companheira, idade anunciada com umas
irritantes campainhas situadas no baixo ventre, a região hipogástrica e pelviana, e que não
paravam de chinfrinar, o que, acontecendo a todos os seus amigos da sua idade, quando se
juntavam, bem pareciam um coro grego anunciando uma tragédia iminente, pois, dizia, Afonso
tratou de investir em idas frequentes até ao pântano mais próximo. Isto quer dizer que nem
sempre o pântano traduz a pior fase da nossa existência, antes se revela aqui por uma
inquietude constante e uma busca permanente. Estamos, pois, no pântano, mas próximo da
indagação filosófica. E Afonso levava a cabo essa busca duma forma solitária,
propositadamente solitária, um sapo que se queria solitário aquando desse aviso das
campainhas, mas também porque sempre se irritara com a pele cheia de acne das colegas da
sua idade, pelo que o pântano representava, também um corte epistemológico com o hábito e
o costume. E enquanto os seus colegas de turma do colégio arranjavam imediatamente uma
namorada logo nas primeiras semanas (até, talvez fossem dias!...), Afonso preferia passar as
tardes, os fins de tarde, contemplando um grupo de rãs que procediam, nas margens do
pântano, a um banho de lama. Tentou, nas primeiras vezes, chegar à fala com elas,
argumentando que era bom rapaz, trabalhador, que vinha com boas intenções, que apesar da
sua aparente audácia era tímido, e, fundamental, perseguia um ideal de igualdade. E chegou
mesmo a confessar, perante os risinhos das miúdas, que já lera o Marx e o Saramago e era
assinante do Magazine Littéraire. Mas as pequenas rãs não estavam para aí (ou para ali)
viradas. Que os ideais da Revolução Francesa prejudicava-lhes a dieta. Assim mesmo.
Contudo, o nosso Afonso era de ideias fixas. E apaixonou-se por uma pequena rã, de
nome Ofélia. Esta não resistiu ao ar maduro de Afonso e aos elogios que este constantemente
lhe dirigia. «Tens uma pele de estrela de cinema», dizia-lhe muitas vezes Afonso, esperando-a
na margem. Na margem onde permanecia, pois ele não era bicho para aventuras aquáticas e
desportos radicais. Radical, só na política, no mundo das ideias.
Mal as companheiras se aperceberam do idílio, trataram de contar aos pais de Ofélia,
que esta se andava a atirar, descaradamente a um sapo de nome Afonso. E puseram a circular
no pântano o boato de que a inocente Ofélia se deixara seduzir por um sapo muito mais velho
que ela, absolutamente peçonhento e esquerdista, perdoe-se a redundância. Os pais de Ofélia,
desfeito o choque inicial, ainda pensaram ir pedir explicações aos pais de Afonso, mas

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limitaram-se a proibir a filha de tomar banho no pântano. Ofélia obedeceu, matutando na
maneira que haveria de comunicar a Afonso aquela mudança de planos. Porém, os pais de
Ofélia acabaram por pensar melhor no castigo e, temendo uma desidratação da filha, lá a
deixaram voltar ao charco ao fim de uma semana. «Mas nem pensar em voltarem em
conversar um com o outro. Que uma rã é uma rã, um sapo é um sapo e uma coisa é uma coisa
e nunca, simultaneamente, o seu contrário», ditaram à filha. Ofélia disse-lhes que sim, que
concordava, mas o seu pensamento mais profundo não era esse. Era outro.
Ofélia regressou ao pântano, quase morta de saudades, e mais convicta do seu amor.
A ausência despertara nos dois uma paixão arrebatadora, a roçar a violência. Conta quem lá
esteve, no exato momento e lugar do reencontro, que aquilo foi uma cena de uma "tesão
exuberante, bíblica mesmo". Os apaixonados resolveram casar no dia seguinte. Assim mesmo.
Só que nestas coisas da paixão há sempre um perigo a espreitar. E rãs e sapos não
escapam a esse virulento delíquo. O casamento acabou por durar apenas uma noite. Uma
noite de infelizes descobertas.
Quando, no leito conjugal, os jovens recém-casados se beijaram, Ofélia, por artes
mágicas ou não tão mágicas quanto isso, transformou-se numa bela princesa! Numa bela
princesa, assim mesmo! O pequeno Afonso, momentaneamente pequeno, pois, ficou,
primeiro, apreensivo, mas depois, repensando a sua situação e o seu futuro, começou a
exultar com o que estava a acontecer. Ele, sem saber ler nem escrever, metaforicamente
falando, com uma princesa deste porte assim no seu quarto, devia levá-lo a ter assento
automático na corte!... Mas Ofélia, olhando para o sapo que já pulava de alegria junto dos seus
pés, interrogou-o de forma altiva. «Mas, afinal, quem és tu? O que fazes aí, aos pés da minha
cama?»
Afonso começou a desconfiar que havia ali qualquer coisa de errado. E respondeu-lhe:
«Ora, sou o Afonso, o teu marido!» Ofélia, perante aquela declaração ousada, recuou
ligeiramente. «Afonso?... Quem?... O Henriques, o Afonso Henriques?... O Afonso segundo?...
O quinto, o africano?... Mas... Mas... tu és um sapo, fosca-se!»
Perante aquela súbita amnésia, Afonso ficou gelado e ainda tentou, timidamente, que
se fizesse luz, alguma luz, na mente da agora princesa. «Mas acabámos de casar. Tu eras uma
rã... Eras a minha rã!» Ofélia não parecia recordar-se de nada. Afonso voltou a tentar. «Até
tínhamos combinado ir morar para a periferia, por causa das rendas elevadas.» Ofélia nem
queria acreditar no que ouvia, no que estava a ser proferido por um sapo atrapalhadíssimo,
engasgado e que a queria convencer que ela era uma rã. Uma rã, assim mesmo! Ela, senhora
de um belo corpo, sentia aquilo como um insulto temerário. No auge da indignação, recuou
dois passos. Perante este movimento de Ofélia, Afonso julgou, por momentos, que começava a

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dominar a situação e encheu o peito. Puro engano. Ofélia, que não se imaginava rodeada de
filhos barulhentos e a viver numa casa de renda condicionada, na parvalheira dos subúrbios, a
remendar as camisas e as meias do marido uma vida inteira, e que, além do mais, sempre
odiara aqueles animaizecos peçonhentos e de quem o povo dizia que, com uma cuspidela
certeira, podiam causar a cegueira a um mortal desprevenido, não estava para aí virada. A sua
vida seria cheia de glamour e não ao lado dum sapo. Dum sapo atrevido!...
Ora, Ofélia ao recuar, apenas estava a ganhar balanço para o golpe final. E eis que,
com a parte de dentro do pé, ou como diria o outro, com o pé que tinha mais à mão, desferiu
um violento pontapé no estupefacto sapo, que o lançou pelos ares, projetando-o a várias
dezenas de metros do local.
«Um sapo venenífero... Uff!... Que nojo!», exclamou Ofélia, irritada com a
impertinência do batráquio e regressando aos seus cuidados, já aliviada. Entretanto, a
duzentos metros dali, o sapo-projétil refletia sobre o que lhe tinha acabado de acontecer, o
volta-face da história, tentando descobrir algum erro que lhe tivesse escapado. E assim passou
a noite até amanhecer, remoído por muitos pensamentos díspares, projetos de vingança e
fortes dores na coluna, resultado mais imediato da sua odisseia aérea. Ainda pensou em
abandonar os ideais de juventude, visivelmente magoado com a princesa que lhe calhara na
rifa e com aquela partida do destino. Mas em vez de se tornar outra coisa que um radical
igualitário, Afonso passou os dias seguintes a tentar beijar as mulheres que ele ía encontrando,
an esperança de que alguma se transformasse na sua desejada Ofélia, rã de pele lisa e olhar
apaixonado. E vão. Assim mesmo, em vão.
Por essa altura, já Ofélia pousava nas capas das revistas do corazón, sempre convidada
para as festas mais badaladas. E ninguém imaginava que a sua estonteante figura escondia,
afinal, a de uma pobre rã que, no fulgor da sua inocente juventude, se apaixonara por um sapo
que lutava por uma sociedade sem classes. Ora, pergunto, perante esta tragédia e as voltas
inexplicáveis e insondáveis da história, vale a pena lutar? Foda-se, não! Assim mesmo, foda-se,
com dores na coluna a acompanhar.

José Carlos S. de Almeida


julho de 2019, em Lisboa

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