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A474m Alves, Maria Theresa Abelha; Santos, Rita Aparecida Coêlho; Natário, Maria Celeste. (Orgs.)
Mário Cláudio: palavra entre palavras - 50 anos de vida literária / Organizadoras: Maria Theresa
Abelha Alves e Rita Aparecida Coêlho Santos; Maria Celeste Natário.
1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2020.
346 p.; il.; fotografias.
ISBN: 978-65-5637-129-0
Conselho Editorial:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UnB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UnB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
UFMG – Belo Horizonte)
PONTES EDITORES
Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão
Campinas - SP - 13070-056
Fone 19 3252.6011
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APRESENTAÇÃO................................................................................................................................................... 9
MÁRIO CLÁUDIO VENCEU VIRGINIA WOOLF - NOTAS SELECIONADAS DAS PÁGINAS DIARÍSTICAS
DE AS PALAVRAS E OS DIAS................................................................................................................................ 143
José Rodrigues de Paiva
RETRATO DE RAPAZ OU SOBRE UM RETRATO POSSÍVEL PARA UM NOME: LEONARDO DA VINCI..... 171
Lúcia Mello e Souza
AURÉLIA DE SOUSA............................................................................................................................................... 181
Mário Cláudio
“O AMOR É UM VOTO DE RENASCIMENTO” OU SOBRE ANA PLÁCIDO E CAMILO CASTELO BRANCO... 339
Viviane Vasconcelos
JOSÉ TAGARRO ..................................................................................................................................................... 345
Mário Cláudio
E m 2017, Mário Claudio lança um dos seus textos mais tocantes, reunindo crônicas
sobre escritores e artistas portugueses com os quais conviveu, ora de forma mais
próxima, ora obedecendo um respeitoso distanciamento. No entanto, em todos os bre-
ves, mas incisivos, “perfis feitos de palavras certeiras e pinceladas impressivas” 1 como
bem sublinha José Carlos de Vasconcelos no seu belíssimo prefácio, o leitor depara-se
com fortes e, ao mesmo tempo, sensíveis testemunhos de quem vive as 24 horas do dia,
pensando, interrogando, pintando, moldando, desassossegando e vagueando na, pela e
a partir da arte das letras.
Ao celebrarmos os 50 anos de vida literária desse grande e produtivo autor por-
tuguês, quero eu também, em forma de homenagem e de votos de uma continuidade
produtiva, deixar registrada uma outra crônica, que ele não escreveu, porque é sobre
ele que ela se reporta. Vale alertar de início que, nem de longe, esse pequeno teste-
munho chega perto da delicadeza e do “singular equilíbrio de abundância e rigor”2
tão característicos do seu estilo e do seu projeto de criação. Trata-se, tão somente,
de um reconhecimento de um leitor curioso, movido pelas inquietações que os seus
textos causaram.
1 VASCONCELOS, José Carlos de. “Olhar “com gestos de prosa e gente dentro“ Prefácio. In: CLÁUDIO, Mário. A alma
Vagueante. 25 autores que conheci. Lisboa: Minotauro, 2017, p.12.
2 VASCONCELOS. José Carlos de. Ob. Cit., p 15.
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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária
Conheci Mário Cláudio, pela primeira vez, em forma de texto, quando ainda era
aluno do Curso de Graduação em Letras, na UFRJ. Há exatos 30 anos, em 1989, a
Profa. Dra. Maria Theresa Abelha Alves oferecia uma disciplina optativa, intitula-
da “Literatura e Diálogos Artísticos: o Neo-Barroco em Mário Cláudio”. Naquela
ocasião, tivemos a oportunidade de ler alguns títulos do escritor, pela ótica segura
e sensível da mestra, uma das mais reconhecidas pesquisadoras da obra do autor.
Dentre os romances de Mário Cláudio, foi a Trilogia da Mão o ponto culminante
daquele semestre, e foi Guilhermina (1986) e toda a trajetória da reconhecida vio-
loncelista portuense que me deixaram completamente seduzido e encantado com a
forma com que o autor tecia, nas malhas da ficção, as pautas da vida e da música
pelas mãos da artista:
Que poderia eu cantar para os moços que se sacrificavam por nós, descontadas as
vulgaridades que mais lhe falassem ao coração, Ó Surdato Nnammurato, La Chitarra
Romana, ora vamos lá, e como extra, a Bella Ciao? Os oficiais porém tratavam-
me com suma deferência, beijando-me a mão, e chegavam por vezes ao extremo
de mandar abrir uma garrafa de Asti para mo oferecer numa caneca de alumínio.
Nunca me interessariam sobremaneira os tipos muito jovens, mas confesso que uma
tal concentração de masculinidade activa não deixava de mexer bastante comigo.
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50 anos de vida literária
E em mais do que uma circunstância eu sentiria a pulsão para erguer as saias até
o meio das coxas, a imitar uma dessas vedetas americanas, a Betty Hutton, ou a
Jane Russell, que excitavam as tropas, alimentando-lhes depois a solitária fantasia,
estampadas numa foto colada na parede do bunker, ou na casamata4.
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50 anos de vida literária
A chuva torrencial que desta feita o acolheu, e que desde a fatídica manhã não
deixara de cair, formava poças no chão onde o pobre enfiava os pés de borze-
guins esburacados. E ao alcançar os aposentos que a Signoria colocara ao dispor
do artista, esgueirou-se para a câmara deste, e foi dar com ele, dobrado sobre
si mesmo, e nessa posição fetal que tão bem calha aos sedentos de amor, aos
órfãos, e aos melancólicos. Aconchegando-se ao Homem, e a tiritar de frio, o
eterno aprendiz murmuraria estas palavras foscas sem a certeza de ser ouvido,
“Não estejas triste, querido Mestre, amanhã não choverá” [...] Despojaram-se
os dois daquele sarilho de mantas, resultante do sono agitado que os tomara, e
saíram assim mesmo, nus e desgrenhados, para o pequeno roseiral que o mestre
cultivava diante dos aposentos cedidos por empréstimo, e com o qual buscava
uma alternativa à hortazinha de Milão, anexa à antiga oficina. Estendendo o braço
por sobre os ombros do discípulo, e aproximando-o de si, o artista aquietou-se
como que na expectativa de um milagre6
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50 anos de vida literária
das entrevistas que tivemos sobre o assunto, nunca houve por parte dele qualquer me-
lindre ou tentativa de escapatória quando abordávamos tais relações homoafetivas nos
romances e em outros textos seus. Sempre muito direto e pontual, falava com paixão
das suas criaturas e dos meandros por onde caminhavam. Não à toa, a protagonista de
sua peça Henriqueta Emília da Conceição parece fazer ecoar os gestos do seu criador,
afinal, “não será o amor, que uns aos outros nos devemos, o mais importante, entre
todos os deveres?” 7
A partir daquele primeiro encontro, seguiram-se outras visitas ao Porto e a Pa-
redes de Coura, com seus “grandes monumentos pétreos, atravessando as eras com
toponímia flutuante”8 , onde pude ver o Centro Cultural Mário Cláudio ainda nas
obras iniciais, com as paredes a mostrar os seus esqueletos e a sua ossatura. Outras
trocas de correspondências eletrônicas e via correios seguiram-se, além dos diálogos
em torno não apenas das possíveis homoafetividades presentes em algumas de suas
obras, mas também do seu contínuo trabalho em pensar a literatura num diálogo in-
terartes constante.
De certo modo, tal como se refere ao seu contato direto com Jorge de Sena, posso
dizer que o meu caminho ao encontro do escritor Mário Cláudio foi muito parecido. Com
a diferença, é claro, que de minha parte há, muito mais, uma curiosidade feita sempre
em forma de interrogações, que o escritor, muito sabiamente, nunca as respondeu, mas
sempre acenou com outros caminhos e vias para outras indagações. Ainda bem, por
que o que seria da vida se só tivéssemos as respostas prontas? Onde estariam a graça
e o fulgor de se sentir sempre cheio de perguntas para motivar a procura e a pesquisa?
Como, portanto, não me sentir grato por esses gestos de generosidade, carinho e
respeito? Uma das formas de retribuir é, com certeza, investir em leituras de suas obras
e reconhecer aqueles que as leram antes de mim, afinal, nenhuma investigação se faz
do nada ou do aleatório. Por isso, deixo esse breve testemunho, como um gesto sincero
de gratidão, sobre um escritor que, por diversas vezes, se preocupou em pensar os seus
elos de comunicação com os seus pares, bem como em estabelecer laços dialogantes
com outras manifestações artísticas, sempre vagueando pelos mais variados territórios
textuais: o conto, a crônica, o romance, o teatro, o ensaio, a literatura infanto-juvenil e
a fotobiografia.
Alguns meses atrás, tive a ousadia de revisitar o seu romance Guilhermina (1986)
e sobre ele tecer algumas linhas atrevidas. Ainda acredito naquilo que escrevi e encerro
repetindo para que (quem sabe?) o seu eco, um dia, se concretize:
7 CLÁUDIO, Mário. Henriqueta Emília da Conceição. Lisboa: Dom Quixote, 1977, p. 31.
8 CLÁUDIO, Mário. Coura – Uma fotobiografia. Paredes do Coura: Câmara Municipal de Paredes do Coura, 2013, p. 20.
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50 anos de vida literária
[...] até quando os olhos do Prêmio Camões não se voltarão para o Norte e reco-
nhecerão o legado singular de um escritor como Mario Claudio? Se um dia isto
acontecer, aí sim, atrevo-me a afirmar que a sinfonia deixa de ser inacabada e
ganha um digno e justo grand finale. Ou, parafraseando Virginia Wolf, o Prémio
Camões ganhará um escritor todo seu9
9 VALENTIM, Jorge Vicente. “Um violoncelo todo seu: diálogo interartes em Guilhermina, de Mário Cláudio”. In: Revista
do CESP, v.38, no. 59, Belo Horizonte, 2018, p.89-103. Disponível em file://Users/C:/jvval/Downloadas/13593-
112593-1125614700-2-PB.pdf. p 102.
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