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Obra publicada com o apoio da DGLAB - Portugal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

A474m Alves, Maria Theresa Abelha; Santos, Rita Aparecida Coêlho; Natário, Maria Celeste. (Orgs.)
Mário Cláudio: palavra entre palavras - 50 anos de vida literária / Organizadoras: Maria Theresa
Abelha Alves e Rita Aparecida Coêlho Santos; Maria Celeste Natário.
1. ed.– Campinas, SP : Pontes Editores, 2020.
346 p.; il.; fotografias.

ISBN: 978-65-5637-129-0

1. Estudos de Literatura. 2. Literatura. 3. Mário Cláudio. I. Título. II. Assunto.


III. Alves, Maria Theresa Abelha IV. Santos, Rita Aparecida Coêlho. V. Natário, Maria Celeste. .

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura Portuguesa. 869


2. Literatura Portuguesa: Coletâneas - vida e obra. 869.8
Copyright © 2020 - Das organizadoras representantes dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração: Eckel Wayne
Capa: Júlia Serafim de Vasconcelos
Ilustração de capa: Júlio Resende
Revisão: Das organizadoras e os autores

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos
para avaliação e revisados por pares.

Conselho Editorial:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UnB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UnB – Brasília)
Rogério Tilio
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2020 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................................................................... 9

DONA JOANA DE EÇA........................................................................................................................................... 13


Mário Cláudio

DONA ISABEL DE MOURA ................................................................................................................................... 15


Mário Cláudio

LÁZARO LEITÃO ARANHA..................................................................................................................................... 17


Mário Cláudio

JOÃO PEDRO QUINTELA ..................................................................................................................................... 19


Mário Cláudio

AS CIDADES VISÍVEIS DE MÁRIO CLÁUDIO: OS MAPAS DO PORTO EM UMA COROA DE NAVIOS... 23


Alana de O. Freitas El Fahl

OLHAR, MEMÓRIA, AURA E DESEJO EM RETRATO DE RAPAZ - UM DISCIPULO NO ATELIÊ


DE LEONARDO DA VINCI................................................................................................................................... 29
Ângela Beatriz de Carvalho Faria

PRESENÇA DO NÚMERO TRÊS COM FUNÇÃO DE TRILOGIA NA OBRA DE FICÇÃO MARIOCLAUDIANA


À LUZ DA HISTÓRIA CULTURAL E LITERÁRIA UNIVERSAL: BREVES APONTAMENTOS ................ 35
Brunello Natale De Cusatis
TIAGO VEIGA: HETERÔNIMO SUPRA-PESSOANO?...................................................................................... 41
Carla da Penha Bernardo

A VOCAÇÃO BIOGRÁFICA E OUTROS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DO ESTILO DE MÁRIO CLÁUDIO....... 49


Carla Sofia Gomes Xavier Luís

OLHARES DE POETA: A PROPÓSITO DA FOTOBIOGRAFIA DE ANTÓNIO NOBRE,


POR MÁRIO CLÁUDIO......................................................................................................................................... 59
Carlos Ascenso André

DA RETA CONSCIÊNCIA ÀS SINUOSIDADES DA EXPERIÊNCIA. O CASO DE PETER MACFALLEN EM


O ÚLTIMO FAROLEIRO DE MUCKLE FLUGGA, DE MÁRIO CLÁUDIO..................................................... 67
Carmen Abreu
A VIDA ASSIM-ASSIM: BIOGRAFIAS SEM FATOS EM BOA NOITE, SENHOR SOARES,
DE MÁRIO CLÁUDIO............................................................................................................................................ 73
Cláudia Amorim

REVISITANDO AMADEO: BREVES REFLEXOES SOBRE O DIÁLOGO INTERARTES............................... 79


Dalva Calvão

DE MARES, CARAVELAS, COMANDANTES E GRUMETES: MÁRIO CLÁUDIO E O ROMANCE


HISTÓRICO PÓS-COLONIAL............................................................................................................................... 85
Edvaldo A. Bergamo

PEREGRINAÇÃO DE BARNABÉ DAS ÍNDIAS: UMA PEREGRINAÇÃO AMOROSA ÀS ESTRELAS........... 91


Francisco Ferreira de Lima

JORGE DE SENA, “PAI LITERÁRIO” DE MÁRIO CLÁUDIO.......................................................................... 99


Gilda Santos

A POESIA DE MÁRIO CLAUDIO: “UM ROSTO ENTRE ROSTOS”................................................................ 103


Ida Alves

DISCURSO DE ELOGIO A MÁRIO CLÁUDIO, CANDIDATO A DOUTOR HONORIS CAUSA PELA


UNIVERSIDADE DO PORTO................................................................................................................................ 109
Isabel Pires de Lima

PROUST, NO CAMINHO DE AMADEO............................................................................................................... 115


Ivan Takashi Kano

NAU FRÁGIL NO TEMPORAL............................................................................................................................. 123


Jorge Fernandes da Silveira

MÁRIO CLÁUDIO OU (ELE TAMBÉM) UMA ALMA VAGUEANTE............................................................. 129


Jorge Vicente Valentim

A ARTE DA CRÓNICA EM MÁRIO CLÁUDIO.................................................................................................. 135


José Cândido de Oliveira Martins

MÁRIO CLÁUDIO VENCEU VIRGINIA WOOLF - NOTAS SELECIONADAS DAS PÁGINAS DIARÍSTICAS
DE AS PALAVRAS E OS DIAS................................................................................................................................ 143
José Rodrigues de Paiva

DO BELO, DA IMAGINAÇÃO E DA MEMÓRIA. UMA TRILOGIA DE MÁRIO CLÁUDIO


José Vieira................................................................................................................................................................. 149

VIAGENS COM MÁRIO CLÁUDIO..................................................................................................................... 155


Lélia Parreira Duarte

UM DIA ENCONTREI-ME ENTRE AS PALAVRAS E AS IMAGENS DE MÁRIO CLÁUDIO ..................... 161


Loiana Leal Pavlichenko

NERO E NINA – DOS “VENTOS DA HISTÓRIA” AO BAFEJO DA FICÇÃO................................................... 163


Luci Ruas

RETRATO DE RAPAZ OU SOBRE UM RETRATO POSSÍVEL PARA UM NOME: LEONARDO DA VINCI..... 171
Lúcia Mello e Souza
AURÉLIA DE SOUSA............................................................................................................................................... 181
Mário Cláudio

ESPERANDO O SUCESSO ..................................................................................................................................... 183


Mário Cláudio

A CHÁVENA DE CHÁ . ........................................................................................................................................... 185


Mário Cláudio

NATACHA . .............................................................................................................................................................. 187


Mário Cláudio

AMADEO, DE MÁRIO CLÁUDIO: A IMAGIN-AÇÃO........................................................................................ 191


Maria Luísa Malato

A FACETA HUMANISTA DE MÁRIO CLÁUDIO:RELATOS SENSÍVEIS DO ESCRIVÃO DE BORDO


EM OS NAUFRÁGIOS DE CAMÕES...................................................................................................................... 197
Márcia Manir Miguel Feitosa

UMA PEQUENA BIOGRAFIA DO SER DA LITERATURA............................................................................... 203


Márcio Roberto Soares Dias

ENTRE AMADEO E MÁRIO CLÁUDIO.............................................................................................................. 211


Maria Celeste Natário

NERO E NINA: ENTRE A FÁBULA E A IMAGEM; ENTRE O AMOR E A SINA............................................ 215


Maria das Dores Pereira Santos
Inaê Pereira Gouveia Coelho

VENADE, O ESPÍRITO DO LUGAR..................................................................................................................... 223


Maria de Fátima Silva Cabodeira
Maria Joana Pinto Rodrigues

EDITAR MÁRIO CLÁUDIO.................................................................................................................................. 227


Maria do Rosário Pedreira

A ERRÂNCIA LUMINOSA ................................................................................................................................... 231


Maria Graciete Besse
MÁRIO CLÁUDIO: O ESCRITOR E A CIDADE................................................................................................. 235
Maria João Reynaud

AGRADECIMENTO E HOMENAGEM................................................................................................................. 243


Maria Theresa Abelha Alves

TRABALHO DOCUMENTAL E VEROSIMILHANÇA EM MÁRIO CLÁUDIO............................................... 251


Martinho Soares

MÁRIO CLÁUDIO E AS RUÍNAS DA AUTORIA............................................................................................... 257


Monica Figueiredo

COMO EU CONTARIA ESSA HISTÓRIA SE EU FOSSE UMA PINTURA? MÁRIO CLÁUDIO


E O NARRADOR IMAGÉTICO................................................................................................................................ 265
Mônica Genelhu Fagundes
LEONARDO DA VINCI, AS FACES DE UM HOMEM: BREVE NOTA SOBRE RETRATO DE RAPAZ,
DE MÁRIO CLÁUDIO............................................................................................................................................ 273
Otávio Rios

O COMUM ESPREITA O INCOMUM - ALGUMAS NOTAS SOBRE ANTÓNIO FELÍCIO


E BERNARDO SOARES......................................................................................................................................... 279
Patrícia da Silva Cardoso

O FOTÓGRAFO E A RAPARIGA: UM EXERCÍCIO DE ESPECULARIDADE AMOROSA.............................. 285


Patrícia Simões Araujo

O SIMÃO DE MÁRIO CLÁUDIO.......................................................................................................................... 293


Paulo Motta Oliveira

LEONARDO DA VINCI EX-CÊNTRICO? SUGESTÕES HOMOERÓTICAS EM RETRATO DE RAPAZ,


DE MÁRIO CLÁUDIO............................................................................................................................................ 299
Renan Augusto Barili

AMADEO, O OUTRO MENINO DE SUA MÃE.................................................................................................... 305


Renata Soares Junqueira

A CARTOGRAFIA ONIRICA DE ORÍON............................................................................................................. 311


Rita Aparecida Coêlho Santos

HISTÓRIAS DO CORAÇÃO, DESENREDOS DO AMOR EM MÁRIO CLÁUDIO.......................................... 319


Silvana Maria Pessôa de Oliveira

NERO E NINA: MAESTRIA E SENSIBILIDADE................................................................................................. 323


Susana Ventura

LEONARDO: A INVENÇÃO DO VOO COMO ATO DE AMOR........................................................................ 329


Teresa Cristina Cerdeira

A MÃO QUE ACOLHE A LÍNGUA ..................................................................................................................... 337


Tiago Cabral

“O AMOR É UM VOTO DE RENASCIMENTO” OU SOBRE ANA PLÁCIDO E CAMILO CASTELO BRANCO... 339
Viviane Vasconcelos
JOSÉ TAGARRO ..................................................................................................................................................... 345
Mário Cláudio

MÁRIO ELOY .......................................................................................................................................................... 347


Mário Cláudio

MARIA ESTELA VELOSO........................................................................................................................................ 349


Mário Cláudio

MÁRIO SOARES . .................................................................................................................................................... 351


Mário Cláudio

AS ORGANIZADORAS . ....................................................................................................................................... 355


Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

MÁRIO CLÁUDIO OU (ELE TAMBÉM)


UMA ALMA VAGUEANTE

Jorge Vicente Valentim


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

O convívio com qualquer criador tece-se de sinuosos acasos, circunstância que


por vezes ganha corpo, quando do diálogo imediato com a obra se transita ao
contacto pessoal com quem a segrega.
MÁRIO CLÁUDIO. A Alma Vagueante.

E m 2017, Mário Claudio lança um dos seus textos mais tocantes, reunindo crônicas
sobre escritores e artistas portugueses com os quais conviveu, ora de forma mais
próxima, ora obedecendo um respeitoso distanciamento. No entanto, em todos os bre-
ves, mas incisivos, “perfis feitos de palavras certeiras e pinceladas impressivas” 1 como
bem sublinha José Carlos de Vasconcelos no seu belíssimo prefácio, o leitor depara-se
com fortes e, ao mesmo tempo, sensíveis testemunhos de quem vive as 24 horas do dia,
pensando, interrogando, pintando, moldando, desassossegando e vagueando na, pela e
a partir da arte das letras.
Ao celebrarmos os 50 anos de vida literária desse grande e produtivo autor por-
tuguês, quero eu também, em forma de homenagem e de votos de uma continuidade
produtiva, deixar registrada uma outra crônica, que ele não escreveu, porque é sobre
ele que ela se reporta. Vale alertar de início que, nem de longe, esse pequeno teste-
munho chega perto da delicadeza e do “singular equilíbrio de abundância e rigor”2
tão característicos do seu estilo e do seu projeto de criação. Trata-se, tão somente,
de um reconhecimento de um leitor curioso, movido pelas inquietações que os seus
textos causaram.

1 VASCONCELOS, José Carlos de. “Olhar “com gestos de prosa e gente dentro“ Prefácio. In: CLÁUDIO, Mário. A alma
Vagueante. 25 autores que conheci. Lisboa: Minotauro, 2017, p.12.
2 VASCONCELOS. José Carlos de. Ob. Cit., p 15.

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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

Conheci Mário Cláudio, pela primeira vez, em forma de texto, quando ainda era
aluno do Curso de Graduação em Letras, na UFRJ. Há exatos 30 anos, em 1989, a
Profa. Dra. Maria Theresa Abelha Alves oferecia uma disciplina optativa, intitula-
da “Literatura e Diálogos Artísticos: o Neo-Barroco em Mário Cláudio”. Naquela
ocasião, tivemos a oportunidade de ler alguns títulos do escritor, pela ótica segura
e sensível da mestra, uma das mais reconhecidas pesquisadoras da obra do autor.
Dentre os romances de Mário Cláudio, foi a Trilogia da Mão o ponto culminante
daquele semestre, e foi Guilhermina (1986) e toda a trajetória da reconhecida vio-
loncelista portuense que me deixaram completamente seduzido e encantado com a
forma com que o autor tecia, nas malhas da ficção, as pautas da vida e da música
pelas mãos da artista:

Para si só reservara a Suíte no. 1, logo no prelúdio o carácter imprimira da obra


total. Executara uma allemande cantada, muito melódica, pelo minuete corta,
agora, na mesmérica basílica de arco-íris, o primeiro maior, mais estático o
segundo, o terceiro, por fim, de bíblico aparato 3

Homem sensível às artes, observador atento aos sons e às melodias, com


um ouvido privilegiado para as nuances de determinadas formas musicais, leitor
obstinado de biografias (como a sua biblioteca particular bem comprova), Mário
Cláudio reconstrói não apenas a trajetória biográfica pelas malhas da ficção, mas
nelas também reinventa um universo de harmonias com um ritmo e uma semântica
romanescas muito particulares. Se, em Guilhermina, as tensões líricas e trágicas
se entretecem nas etapas reconstruídas do corpo da violoncelista que com o seu
violoncelo parece, cada vez mais, se coadunar até o desfecho marcado pela soli-
dão, como não celebrar o apreço do autor às artes musicais também pelo viés de
uma fina ironia, como faz, por exemplo, com a sua deliciosa Bianca Castafiore, de
Memórias Secretas, num momento de puro êxtase, onde o inusitado da situação se
mistura com uma jocosidade inevitável:

Que poderia eu cantar para os moços que se sacrificavam por nós, descontadas as
vulgaridades que mais lhe falassem ao coração, Ó Surdato Nnammurato, La Chitarra
Romana, ora vamos lá, e como extra, a Bella Ciao? Os oficiais porém tratavam-
me com suma deferência, beijando-me a mão, e chegavam por vezes ao extremo
de mandar abrir uma garrafa de Asti para mo oferecer numa caneca de alumínio.
Nunca me interessariam sobremaneira os tipos muito jovens, mas confesso que uma
tal concentração de masculinidade activa não deixava de mexer bastante comigo.

3 CLÁUDIO, Mário. Guilhermina. Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986, p.105.

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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

E em mais do que uma circunstância eu sentiria a pulsão para erguer as saias até
o meio das coxas, a imitar uma dessas vedetas americanas, a Betty Hutton, ou a
Jane Russell, que excitavam as tropas, alimentando-lhes depois a solitária fantasia,
estampadas numa foto colada na parede do bunker, ou na casamata4.

Mais do que um devorador de biografias e reconstrutor de vidas alheias, Mário


Cláudio é também um exímio leitor de música, com um repertório singular que vai da
música instrumental, seja ela de concerto, seja ela de grupos de câmera, até os principais
títulos do bel canto. Homem de cultura ampla e de refinado gosto, suas criaturas que
transitam pelos meios musicais parecem confirmar tal singularidade de artista.
Somente muitos anos depois daquele primeiro contato com Guilhermina, pude
conhecer pessoalmente o autor. Era 2013 e eu me encontrava na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, realizando minha investigação de Pós-Doutoramento, com
uma Bolsa Sênior da CAPES, sob a supervisão da Profa. Dra. Isabel Pires de Lima.
Mas, para espanto de muitos naquela época, eu não estava entretido a pensar os diá-
logos interartes na ficção marioclaudiana, mas me detinha nas representações homo-
eróticas na narrativa portuguesa produzida depois do 25 de Abril de 1974. E Mário
Cláudio lá estava entre os autores do meu corpus de pesquisa, com suas provocativas
leituras de António Nobre (Fotobiografia de António Nobre, 2001; e “António Nobre
e Alberto de Oliveira”, de Triunfo do amor português, 2005), além de sua belíssima
fábula Olga e Cláudio (1984).
Graças às intermediações de dois amigos em comum, o poeta Albano Martins (de
saudosa memória) e a professora Isabel Pires de Lima, dirigi-me à residência de Mário
Cláudio, ansioso e com os nervos à flor da pele, afinal, não é sempre que podemos estar
frente a frente e conversar com os nossos objetos de pesquisa. Pois bem. Toda aquela
expectativa acabou se transformando num momento de pura generosidade. Logo à en-
trada, com quadros e flores a receber os visitantes, as boas vindas foram dadas por um
cãozinho muito simpático e alegre, que me fez recordar o seu Nero e Nina (2012). Em
seguida, fui levado ao escritório onde, finalmente, encontrei Mário Cláudio, que me
recebeu com um sorriso e um caloroso abraço.
Começávamos, ali, acredito eu, uma amizade feita, sobretudo, pelo amor à literatura,
à arte e às inquietações por elas despertadas. Ao saber do meu interesse e das minhas
investigações, ofereceu-me todo um elenco de possibilidades de leituras pelo século
XIX português, passando por António Nobre, Abel Botelho e Manuel Teixeira-Gomes.
Aliás, foi graças à sua perspicácia em analisar certas entrelinhas que pude me deparar
4 CLÁUDIO, Mário. Memórias Secretas. Lisboa: Dom Quixote, 2018, p.152-153.

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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

com observações capciosas e sugestivas, como a seguinte, de Regressos (1935), de


Teixeira-Gomes: “Ao atravessar o Rossio, a caminho do hotel, encontrei o Abel Botelho,
que parecia ali colhido de surpresa (Que diabo estudava ele, solitário, no Rossio, às 4
da madrugada? O seguimento ao Barão de Lavos?)”5
Para além da curiosa passagem e do espanto do autor de Regressos, a forma
como lia as passagens de textos desses autores oitocentistas era de alguém que não
só conhecia todo aquele conjunto, mas também de alguém que se sentia seduzido
pelos discursos, pelas imagens, pelas personagens e pelos espaços por onde aqueles
textos nos levavam.
Ainda assim, em momento algum, deixou de abordar de forma direta, pontual e
certeira as questões relativas às representações homoeróticas em algumas de suas obras
ficcionais. Dos animais sensíveis (de Olga e Cláudio, 1984) às sugestões ora límpidas e
visíveis sobre António Nobre, ora sutis e subliminares, como em A Quinta das Virtudes
(1990) e Henriqueta Emília da Conceição (1997), a generosidade de Mário Cláudio
chegou ao ponto de me revelar que, na época, já se encontrava no prelo o seu romance
Retrato de rapaz (2014), com uma muito pouco ortodoxa forma de representar a traje-
tória de Leonardo da Vinci e a relação com Salai, seu discípulo:

A chuva torrencial que desta feita o acolheu, e que desde a fatídica manhã não
deixara de cair, formava poças no chão onde o pobre enfiava os pés de borze-
guins esburacados. E ao alcançar os aposentos que a Signoria colocara ao dispor
do artista, esgueirou-se para a câmara deste, e foi dar com ele, dobrado sobre
si mesmo, e nessa posição fetal que tão bem calha aos sedentos de amor, aos
órfãos, e aos melancólicos. Aconchegando-se ao Homem, e a tiritar de frio, o
eterno aprendiz murmuraria estas palavras foscas sem a certeza de ser ouvido,
“Não estejas triste, querido Mestre, amanhã não choverá” [...] Despojaram-se
os dois daquele sarilho de mantas, resultante do sono agitado que os tomara, e
saíram assim mesmo, nus e desgrenhados, para o pequeno roseiral que o mestre
cultivava diante dos aposentos cedidos por empréstimo, e com o qual buscava
uma alternativa à hortazinha de Milão, anexa à antiga oficina. Estendendo o braço
por sobre os ombros do discípulo, e aproximando-o de si, o artista aquietou-se
como que na expectativa de um milagre6

Se as linhas acima ainda despertam algum tipo de dúvida dos enamoramentos


homoeróticos possíveis e presentes nas efabulações do autor, na minha perspectiva,
algumas cenas são puras declarações de um amor que ousa dizer o seu nome. Aliás,
5 TEIXEIRA-GOMES, Manuel. Regressos. 3a. ed., Lisboa: Portugália, 1960, p. 185.
6 CLÁUDIO, Mário. Retrato de rapaz. Um discípulo no estúdio de Leonardo da Vinci. Lisboa: Dom Quixote, 2014, p.71-73.

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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

das entrevistas que tivemos sobre o assunto, nunca houve por parte dele qualquer me-
lindre ou tentativa de escapatória quando abordávamos tais relações homoafetivas nos
romances e em outros textos seus. Sempre muito direto e pontual, falava com paixão
das suas criaturas e dos meandros por onde caminhavam. Não à toa, a protagonista de
sua peça Henriqueta Emília da Conceição parece fazer ecoar os gestos do seu criador,
afinal, “não será o amor, que uns aos outros nos devemos, o mais importante, entre
todos os deveres?” 7
A partir daquele primeiro encontro, seguiram-se outras visitas ao Porto e a Pa-
redes de Coura, com seus “grandes monumentos pétreos, atravessando as eras com
toponímia flutuante”8 , onde pude ver o Centro Cultural Mário Cláudio ainda nas
obras iniciais, com as paredes a mostrar os seus esqueletos e a sua ossatura. Outras
trocas de correspondências eletrônicas e via correios seguiram-se, além dos diálogos
em torno não apenas das possíveis homoafetividades presentes em algumas de suas
obras, mas também do seu contínuo trabalho em pensar a literatura num diálogo in-
terartes constante.
De certo modo, tal como se refere ao seu contato direto com Jorge de Sena, posso
dizer que o meu caminho ao encontro do escritor Mário Cláudio foi muito parecido. Com
a diferença, é claro, que de minha parte há, muito mais, uma curiosidade feita sempre
em forma de interrogações, que o escritor, muito sabiamente, nunca as respondeu, mas
sempre acenou com outros caminhos e vias para outras indagações. Ainda bem, por
que o que seria da vida se só tivéssemos as respostas prontas? Onde estariam a graça
e o fulgor de se sentir sempre cheio de perguntas para motivar a procura e a pesquisa?
Como, portanto, não me sentir grato por esses gestos de generosidade, carinho e
respeito? Uma das formas de retribuir é, com certeza, investir em leituras de suas obras
e reconhecer aqueles que as leram antes de mim, afinal, nenhuma investigação se faz
do nada ou do aleatório. Por isso, deixo esse breve testemunho, como um gesto sincero
de gratidão, sobre um escritor que, por diversas vezes, se preocupou em pensar os seus
elos de comunicação com os seus pares, bem como em estabelecer laços dialogantes
com outras manifestações artísticas, sempre vagueando pelos mais variados territórios
textuais: o conto, a crônica, o romance, o teatro, o ensaio, a literatura infanto-juvenil e
a fotobiografia.
Alguns meses atrás, tive a ousadia de revisitar o seu romance Guilhermina (1986)
e sobre ele tecer algumas linhas atrevidas. Ainda acredito naquilo que escrevi e encerro
repetindo para que (quem sabe?) o seu eco, um dia, se concretize:
7 CLÁUDIO, Mário. Henriqueta Emília da Conceição. Lisboa: Dom Quixote, 1977, p. 31.
8 CLÁUDIO, Mário. Coura – Uma fotobiografia. Paredes do Coura: Câmara Municipal de Paredes do Coura, 2013, p. 20.

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Mário Cláudio: palavra entre palavras
50 anos de vida literária

[...] até quando os olhos do Prêmio Camões não se voltarão para o Norte e reco-
nhecerão o legado singular de um escritor como Mario Claudio? Se um dia isto
acontecer, aí sim, atrevo-me a afirmar que a sinfonia deixa de ser inacabada e
ganha um digno e justo grand finale. Ou, parafraseando Virginia Wolf, o Prémio
Camões ganhará um escritor todo seu9

Bem haja, caro amigo e escritor nosso.

9 VALENTIM, Jorge Vicente. “Um violoncelo todo seu: diálogo interartes em Guilhermina, de Mário Cláudio”. In: Revista
do CESP, v.38, no. 59, Belo Horizonte, 2018, p.89-103. Disponível em file://Users/C:/jvval/Downloadas/13593-
112593-1125614700-2-PB.pdf. p 102.

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