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ORIXÁS & SANTOS:

cruzamentos da fé
Robson Di Brito
ORIXÁS & SANTOS: cruzamentos da fé
1ª Edição. Belo Horizonte: Produção Independente,
2021.
(96p.): 21cm
Tiragem impressa: 10 exemplares

Versão Digital: E-book PDF


(96p.) 14x21cm

1. Literatura Brasileira

ISBN: 978-65-00-32436-5

Autor: Robson Di Brito


Capa: Marcial Ávila
Edição e Diagramação: Léo Ramaldes
Introdução: Mauro Luiz da Silva
Posfácio: Graciola Rodrigues
Divulgação: Gabriel Botelho

© Robson Di Brito, 2021.


Todos os direitos reservados.

Este livro é um desdobramento da pesquisa realizada


para auxiliar na exposição “Trunfos da Fé” do artista
plástico Marcial Ávila, e é distribuído gratuitamente em
forma de e-book.

Este projeto é apoiado pelo Conselho Municipal de


Cultura, Turismo e Patrimônio, através do Fundo
Municipal de Cultura, com recursos provenientes da
Lei Nº 4.144, de 05 de Julho de 2021, e aprovado pelo
Edital de Seleção Pública Nº 002º/2021.
SUMÁRIO

Notas do autor |05


Introdução |10
Os caminhos [Exu & Santo Antônio] |17
A guerra [São Jorge & Ogum] |20
A providência [Oxóssi & São Sebastião] |24
A cura [São Lázaro & Omolu] |27
O silêncio [Ossãim & São Benedito] |31
A pele [São Bartolomeu & Oxumarê] |34
A ancestralidade [Nanã & Sant’Ana] |38
A mãe [Nossa Senhora da Conceição & Oxum] |42
A espada [Obá & Joana D’Arc] |47
Encontros da fé|53
A virgem [Santa Luzia & Euá] |55
As vingadoras [Iansã & Santa Bárbara] |59
O andrógeno [Santo Expedito & Logun-Edé] |63
O mar [Iemanjá & Nossa Senhora dos Navegantes] |69
A justiça [São Jerônimo & Xangô] |73
A natureza [Iroco & São Francisco] |74
A pureza [Cosme e Damião & Ibejis] |80
A santidade [Oxalá & Jesus] |84
Posfácio |91
NOTAS DO AUTOR

Este livro foi confeccionado por meio políticas


públicas propostas pela Secretaria de Cultura da Cidade
de Diamantina na Seleção Pública para Fomento
das Atividades Artístico-Culturais e Patrimoniais de
Diamantina: Edital Nº 002/2021, promovido com recursos
oriundos da Lei Nº 4.144, de 05 de julho de 2021 e
Fundo Municipal de Políticas Culturais em decorrência
da decretação de medidas destinadas à contenção do
contágio por coronavírus (Covid-19), contexto que requer
a tomada de decisões emergenciais em diversas frentes de
gestão, em observância à hipossuficiência econômica de
determinados grupos integrantes dos setores cultural e
patrimonial na esfera municipal.
Diante desse cenário mundial de incerteza,
intolerância, polarização e escassez de compreensão do
outro, Marcial Ávila com sua exposição “TRUNFOS
DA FÉ: as cartas das forças opositoras lançadas na
mesa da vida” propõe uma reflexão de séculos acerca
do sincretismo religioso no Brasil. A exposição foi um
resultado da pesquisa e produção do artista contemplado
pela Lei Aldir Blanc no Estado de Minas Gerais. O artista
plástico confeccionou 18 quadros em pintura a óleo sobre
tela indicando a dualidade entre os santos do catolicismo e
os Orixás das religiões de matrizes africanas. Para auxiliar
o artista em sua produção iconográfica foi realizada uma
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pesquisa de mito e lenda que resultou neste livro.
Compreendo a importância da educação na
formação do cidadão, e a fé como integrante da cultura
de Diamantina; a proposta de publicação de um livro em
e-book sobre o sincretismo religioso age como aliado ao
fomento da cultura e educação na cidade. A produção
da obra literária elaborada como suporte da exposição
“Trunfos da Fé” do artista plástico diamantinense Marcial
Ávila, assim como a exposição, são produções gratuitas
que objetivam o acesso a um material instrutivo e que
respeite os vários sentidos da fé que compõe o Brasil e o
brasileiro de maneira democrática.
A coleção das imagens produzidas por Marcial
Ávila aliadas às narrativas sobre os Orixás e os Santos que
se encontram neste livro busca um respeito mútuo às fés
cristã e de matrizes africanas. Esse sentimento talvez seja
o âmago da produção deste livro; um jogo de perguntas
sem repostas diretas, mas com certezas de confluências e
signos, simbologias e ícones que ora afastam o leitor e ora
se aproximam no questionar: Quem influenciou quem?
Em que, as cartas das forças opositoras foram lançadas
na mesa da vida, e cabe a cada um conforme sua crendice
discernir de que lado está deste jogo.
Mas, é preciso conhecer as regras! Essa produção
visa revela as regras das dualidades e proximidades dessas
duas fés por meio de suas narrativas, a fim de desconstruir
o preconceito, possibilitar maior conhecimento sobre

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a temática e servir de ponto de partida para futuras
ampliações sobre o tema. Embora, os mitos e as lendas
que envolvem os Orixás e os Santos, no que se referem
à cosmogonia e teogênese, desses povos não fossem
os mesmos, entretanto, em muitos aspectos, guardam
similitudes, por isso, a forte atração entre esse sincretismo
e a difícil dissociação.
O sincretismo é um fenômeno constituinte da
religiosidade brasileira e das religiões de uma forma
geral. É notório que o sincretismo não se restringe apenas
a uma simples analogia do Orixá ao Santo, porque ele
está presente em outros momentos, como na História, nos
mitos, nas lendas e nos ritos. Neste sentido ter um trabalho
que fortaleça esse debate em igualdade é importante para
quem deseja conhecer mais sobre o assunto.
É entendido que o sincretismo originou religiões
tipicamente brasileiras, mesclando diversos elementos de
outras crenças e culturas, mas com base primordialmente
nos cultos africanos, nos rituais indígenas e no catolicismo.
Portanto, é preciso apontar que o conceito de sincretismo,
significava a preservação de crenças africanas e indígenas
sob o formato católico. Não há nisto uma defesa do
nefasto processo opressor físico e psicológico, mas uma
constatação histórica.
Se a narrativa, o contar histórias – sejam os mitos ou
as lendas – acompanha a humanidade e indica sua condição
de produtora de sinais e indícios desde os primórdios de

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sua história, supomos que essa iniciativa em produzir
um material para expor essas aproximações culturais e
religiosas grava na história brasileira a força da fé das
religiões de matrizes africanas que permanecem, mesmo
diante da tentativa de apagamento e invisibilidade, firmes
e fortes. A linguagem dessa produção, bem como os nomes
e títulos oriundos do continente africanos, foi registrada
de maneira aportuguesada seguindo a Enciclopédia
Brasileira da Diáspora Africana de Nei Lopes. Buscou-se
equilibrar em pé de igualdade tanto uma cultura religiosa
como a outra, para que o leitor possa compreender os
elementos que as aproximam e conversam.
Por fim, há ainda que se ressaltar que sincretismo
é palavra considerada maldita que provoca mal estar
em muitos ambientes e em alguns autores. Diversos
pesquisadores evitam mencioná-la, considerando seu
sentido negativo, como sinônimo de mistura confusa
de elementos diferentes, ou imposição do colonialismo.
Embora alguns não admitam, todas as religiões são
sincréticas, pois representam o resultado de grandes
sínteses integrando elementos de várias procedências que
formam um novo todo.
Costuma-se atribuir também o termo sincretismo,
quase que exclusivamente ao catolicismo popular e às
religiões afro-brasileiras. Mas o sincretismo está presente
em outras tradições religiosas. O sincretismo pode ser visto
como característica do fenômeno religioso. Isto não implica

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em desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que,
como os demais elementos de uma cultura, as religiões
bem como as narrativas, mitos e lendas constituíram uma
síntese integradora englobando conteúdos de diversas
origens.
A formação do cidadão está intimamente ligada à
subjetividade do indivíduo e suas crenças. Neste sentido
a aquisição da cultura e o respeito às diferenças religiosas
pressupõe o conhecimento e a educação. Por isso, essa
proposta visa justificar três itens principais: a visibilidade e o
respeito ao sincretismo religioso no Brasil, o trabalho do autor,
que se têm construído por anos de pesquisa e produções
acerca da temática, e o acesso a uma literatura de qualidade
que represente esses saberes históricos e religiosos.
Essa produção literária, inédita no país, até o
presente momento, por compor a exposição “Trunfos da
Fé”, e por ser distribuída gratuitamente, poderá servir
de suporte para ações em prol e divulgação da cultura
acerca da compreensão do sincretismo religioso presente
na cidade de Diamantina e no Brasil. Observa-se, ainda,
um retornar para sociedade por meio de um produto
confeccionado com recursos públicos, revertido a nutrir
uma consciência educacional, de qualidade e importante
no respeito às diferenças. Por isso, da distribuição gratuita
online da obra literária em forma de e-book.
Robson Di Brito

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INTRODUÇÃO

Sobre a exposição Trunfos da Fé

Quando recebi o convite para escrever algo sobre


as minhas impressões a respeito da exposição TRUNFOS
DA FÉ, confesso, fui tomado por diversos sentimentos
que variaram entre a alegria inicial, pela profunda
admiração que tenho pelo artista e amigo Marcial Ávila,
e a preocupação em torno dos inegáveis limites impostos
pelo lugar de onde contemplo as obras ali apresentadas.
A provocação trazida pelo curador Robson Di Brito –
com quem tive oportunidade de dialogar através de
uma Roda de Conversa, no dia do encerramento da
exposição, no Teatro Santa Izabel, dia 22 de setembro
de 2021, em Diamantina/MG – serviu como impulso
para aprofundar questões que me são caras, entre elas:
Diálogo Inter-religioso, combate ao racismo religioso e
institucionalizado, pensamento decolonial, patrimônio
artístico e cultural afro-brasileiro entre outros.
A proposta capturou a minha atenção e, ao mesmo
tempo, orientou minhas interpretações, serviu como
estímulo propulsor que tem origem em dois contextos
distintos e, ao mesmo tempo, relacionados. Por um lado,
o alarmante crescimento do racismo estrutural na esteira
das políticas populistas discriminatórias, que podemos

10
observar não apenas no Brasil, que expõem a matriz
colonial europeia como estrutura perversa de poder, além
da consequente nostalgia acéfala por modelos imperialistas
e monocráticos autoritários.
Por outro lado, minha análise deriva das conversas
com o artista diamantinense e com o curador da exposição,
quando tive oportunidade de tratar a respeito do que
venho desenvolvendo em minhas pesquisas: a negricidade
do povo brasileiro em relação à decolonialidade e aos
processos de recentramento das estruturas estéticas, além
das contribuições da arte para a construção de novas e
necessárias políticas públicas antirracistas.
A exposição TRUNFOS DA FÉ é fruto de um
trabalho primoroso, sensível e criativo de Marcial Ávila
que propõe reverter o processo colonizador, definido
por um jogo cruel de cartas marcadas, onde sabemos
muito bem quem sempre ganha e quem sempre perde.
O baralho do artista é marcado por uma reverência
irreverente, que nos deixa livres para virar esse jogo. O
baralho oferece oportunidades iguais para quem deseja
se libertar dos discursos e práticas dos colonizadores,
contribui sobremaneira com quem deseja apenas ouvir
para, então, construir outras narrativas. A série TRUNFOS
DA FÉ é uma experiência de imersão antropológica que
nos aproxima de uma nova experiência religiosa, do
surgimento de um novo modelo de sagrado, não mais
utilizado como instrumento de opressão, mas, sim, de

11
libertação das consciências.
Os 18 quadros da exposição trazem o diálogo
entre a iconografia da Igreja Católica e das religiosidades
de Matrizes Africanas. São imagens de Santas, Santos e
Orixás apresentados através da maestria do artista, que
não privilegia nenhuma das experiências religiosas ali
apresentadas. Pois então, é desse lugar que falo: homem
negro, nascido em Belo Horizonte, filho de pai negro
e mãe branca, belorizontinos também, avós vindos do
interior de Minas Gerais e, até onde sei, todos formados
na tradição religiosa cristã/católica. Quando contemplo as
pinturas e leio os textos que foram produzidos sobre elas,
busco interpretar o silenciamento das histórias negras na
minha própria história, tão bem representada naquela
exposição, de forma tão contundente.
Porque as histórias e a espiritualidade africanas não
foram contadas pra mim? Mesmo diante de toda opressão
dos colonizadores europeus, não deixamos de ouvir o
toque dos tambores, o chamado da Caixa de Moçambiques,
da nossa ancestralidade afrodiaspórica, das experiências
religiosas Matrizes Africanas que nunca foram sufocadas.
O barroco dos altares católicos, e toda opulência do ouro
e da prata dos objetos litúrgico dos homens brancos,
também não nos representam mais. Nossa fé resistiu aos
açoites do “sinhô” e da “sinhá”.
Pois então, daqui de onde vejo, reconheço a parte
silenciada e oprimida da religiosidade brasileira. Percebo

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também experiências da religiosidade do colonizador
branco, sadicamente piedoso e escravocrata, capaz de
acumular ouro derramando sangue negro, sem piedade e,
por mais absurdo que pareça – sob as bênçãos e a omissão
dos que se dizem cristãos – açoitando gente preta em nome
de Deus, eles nos desumanizam, torturam, humilham,
escravizam, vendem, exploram e matam. A mesma mão
branca que reza o Rosário, açoita o corpo negro da
mulher escravizada, que amamenta o filho branco da
sinhá escravista. Foi por nossa ancestralidade africana que
teimamos e resistimos. Foi para passar o cajado adiante,
para as mãos de quem virá depois de nós. É pelas pessoas
negras que tiverem oportunidade de contemplar este
belíssimo trabalho, quando se perguntarem sobre nossas
histórias negras e sobre nossos antepassados, quando
perguntarem o porquê de tanta crueldade por parte dos
que insistem em nos aniquilar. Foi por essas pessoas que
resistimos, foi a partir delas e por elas que sobrevivemos.
Meu entendimento é que a exposição TRUNFOS
DA FÉ e essa produção em livro das narrativas dos Orixás
e Santos, em si mesmos, é uma excelente oportunidade
para que tais questões sejam trazidas para o debate.
Voltando novamente o pensamento para a exposição, ao
entrar na sala, meu olhar é capturado pelo harmonioso
conjunto formado pela série de pinturas. Observo a
iluminação poética e meticulosamente planejada, observo
a disposição dos quadros, dispostos solenemente para

13
criar um espaço sagrado que me convida a rezar.
Não me sinto constrangido a ter que optar por
alguma espiritualidade específica – elas não estão em
competição – como se uma fosse melhor ou superior à
outra. São apenas leituras possíveis do sagrado, sem
opressão e sem a necessidade de convencer e nem
converter ninguém. Os textos nos ajudam a conhecer
mais, abrem novas portas e nos deixam livres para criar
outras conexões, além das que ali já nos são apresentadas.
Deixo a sala profundamente emocionado, quero fazer
durar mais um pouco as experiências ali vividas. Não
quero conversar agora e, por favor, me deixe quieto e
em paz! Proponho que você faça o seu próprio percurso,
que você se deixe tocar pelo que vê e pelo que lê para, só
então, tirar suas próprias conclusões.
Mauro Luiz da Silva1

1 Cursa doutorado e é Mestre em Ciências Sociais pelo Programa


de Pós-graduação em Ciências Sociais; é Bolsista CAPES na Modalidade II;
Pós-graduado em Psicopedagogia; Graduado em Teologia e Filosofia (PUC
Minas); Graduado em Storia e Tutela dei Beni Culturali (Università degli Studi
di Padova/Itália). Atualmente é sacerdote católico vinculado à Arquidiocese
de Belo Horizonte; Diretor e Curador do Museu dos Quilombos e Favelas
Urbanos (MUQUIFU).

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AMÉM
Advérbio hebraico que significa “assegurar, firmar”, e por
isso é empregado no sentido de confirmar o que outrem
disse. Pode ser interpretado também como um adjetivo,
com o significado de verdadeiro, e por isso não tinha um
uso propriamente religioso nem um caráter litúrgico. A
expressão portuguesa “assim seja” corresponde tanto ao
termo grego como ao latino. Nos textos bíblicos, a palavra
“amen” tinha um sentido de aprovação ao que alguém
dizia como em Matheus 6:13, mas também para confirmar
orações individuais e de ação de graças como em Romanos
1:25, 9:6, 11:36 ou Apocalipse 1:6,7. É, sobretudo a acepção
“assim seja” usada no Novo Testamento que passou para a
liturgia católica como fórmula final de orações.

15
BEREZIN, Rifka. Dicionário Hebraico-Português. Edusp: São Paulo, 2003.
BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. [Org.] Comentário bíblico. Vol. I.
Edições Loyola: São Paulo, 2001.
PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. Fondo de Cultura
Económica: México, 2001.

16
OS CAMINHOS

Exu & Santo Antônio2

A popularidade de Santo Antônio é enorme nas


comunidades pretas de várias regiões do Brasil. E, embora
em alguns locais do país Santo Antônio seja sincretizado
como Ogum, na maioria das localidades Exu e Santo
Antônio são assemelhados, como acontece em Minas
gerais.
Entretanto, há ainda no Brasil, por conta do racismo
estrutural, quem sincretize Exu ao Diabo. Isto porque, ora
a visão do Europeu em contato com as tribos africanas,
no nefasto processo de escravização ainda permanecem
no séc. XXI, e ora porque Exu é um Orixá difícil de ser
definido por suas características bastante controversas.
A atuação desta divindade se estende sobre tudo

2 BARCELLOS, Babalorixá Mário César. Os orixás e a personalidade


humana. Pallas: Rio de Janeiro, 1990.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. Biblioteca Pioneira: São
Paulo, 1989.
BOTAS, Paulo. Carne do Sagrado. Vozes: Petrópolis, 1996.
CAIEIRO, Francisco da Gama. Santo António de Lisboa. Civilização Editora:
Coimbra,1997.
GALLI, Maria Lúcia Peccioli. Santo Antônio por Vieira. Vozes: São Paulo,
1997.
RANCO, José Eduardo; PEREIRA, José Carlos Seabra. Portugal Católico. A
beleza na diversidade: Lisboa, 2017.
SLENES, R. W. Malungu ngoma vem!: África coberta e descoberta do Brasil.
In: Revista USP: São Paulo, n. 12, 1992.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás deuses iorubás na África e no Novo
Mundo. 6ª ed. Corrupio: Bahia, 2002.

17
aquilo que existe, resolvendo situações conflitantes com
sua astúcia e inteligência, promovendo o crescimento
e o desenvolvimento com seu poder dinamizador, o
poder da fecundidade, abrindo os caminhos e trazendo
prosperidade. Em sua cosmovisão iorubana, Exu faz a
intermediação entre o Orum e o Aiê (morada dos Orixás,
morada dos seres humanos), desempenhando a função de
mensageiro entre os homens e os Orixás, mas ele também
é a representação de guardião de templos e de casas, das
cidades e das pessoas.
Há ainda a concepção da ideia de Exu como o
deus-guia para as religiões de matrizes africanas, como
o intermediário entre dois mundos, o mensageiro das
orações dos homens, é a divindade de orientação, uma
vez que abre e fecha caminhos, mas é também o manhoso
que gosta de brincar, pregar peças, irritar os amigos.
Dando-lhe de comer em primeiro lugar, antes mesmo
de qualquer outro orixá, Exu se torna amigo e ajuda as
pessoas.
Já Santo Antônio foi trazido ao Brasil colonial pelo
jesuíta Marcos de Lisboa no período literário denominado
de literatura informativa em Flos Sanctorum de frei Diogo
do Rosário, em 1567. Sua história narra que nasceu em
Lisboa em data incerta, às portas da cidade, no local onde
posteriormente se ergueu a igreja em seu nome, e que
guarda a entrada da cidade.
Em 1232 o papa Gregório IX o canonizou e marcou

18
o dia 13 de junho, data da morte de Santo Antônio, como
seu dia para festividades. Data semelhante se festeja o dia
de Exu nas religiões de matrizes africanas. Os estudos e
relatos históricos do santo atestam que suas pregações
encontraram forte eco popular, pois lhe eram atribuídos
feitos prodigiosos, o que o descrevem como um sábio, um
homem de ação e de diversos caminhos. É um dos Santos
das populares Festas Juninas e de diversos costumes
folclóricos. Como exemplo: devotos retiram o menino
Jesus das estátuas e só o devolvem quando arranjam
casamento; uma prece especial, os “responsos”, são feitas
para que ele ajude a encontrar objetos perdidos; no dia
da sua festa, devotos distribuem pães abençoados, os
“pãezinhos de Santo Antônio” e devem ser guardados nas
latas de mantimentos para que não falte alimento.
Santo Antônio oferece aos pretos um exemplo da
capacidade dos povos oriundos da África em interpretar
símbolos e objetos rituais estrangeiros nos termos básicos
de sua cultura de origem. Em virtude de sua capacidade
de trazer fecundidade, de estar sempre pregando em
diversos caminhos, Santo Antônio era considerado um
bruxo poderoso, por isso associado a Exu. Neste sentido
o conceito de sincretismo, ou de mera aculturação,
transforma os pretos em poderosos agentes na construção
de uma religião própria inscrita tanto nas práticas das
irmandades católicas, nas religiões de matrizes africanas e
na crendice popular.

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A GUERRA

São Jorge & Ogum3

O sincretismo atribui ao Orixá guerreiro das


religiões de matrizes africanas ora Santo Antônio de
Pádua em algumas localidades do Brasil e ora como São
João, ou São Pedro em Cuba, mas será na iconografia de
São Jorge Guerreiro que Ogum terá mais aceitação.
Orixá Ogum, em Iorubá, significa luta, guerra.
É a divindade da metalurgia, do ferro e do aço, da caça
e dos caçadores, dos grandes caminhos. É o dono das
armas, senhor dos exércitos, das guerras, da pujança e
da força do sangue que nas veias e, por isso, forja o ferro
e o transforma em instrumento de luta: sua espada. É
também considerado o senhor da tecnologia agrícola e
3 ANJOS, José Carlos Gomes dos, ORO, Ari Pedro, Festa de Nossa
Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: Sincretismo entre Maria e
Iemanjá. Editora da Cidade: Porto Alegre, 2009.
AUGRAS, Monique. De Iyá mi a pomba-gira: transformações e símbolos da
libido. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes (org.) Candomblé: religião
do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Pallas:
Rio de Janeiro, 2000.
CAPONE, Stefania. A busca da África no Candomblé: tradição e poder no
Brasil. Pallas: Rio de Janeiro, 2004.
ESPIRITO SANTO, Diana, Desagregando o espiritual: a fabricação de
pessoas e de complexos espírito-matéria em práticas mediúnicas afro-
cubanas. Religião & Sociedade: Rio de Janeiro, 2015.
FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: Uma introdução
às religiões populares. Brasiliense: São Paulo, 1982.
IYAKEMI, Ronilda Ribeiro. Alma Africana no Brasil. Os iorubas. Editora
Oduduwa, São Paulo, 1996.
LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Estampa:
Lisboa, 1993.

20
artesão divino que domina os metais, por isso é o símbolo
do trabalho, do pioneirismo, da atividade criadora do ser
humano e seu poder de produção e expansão.
Um de seus mitos narra que na terra primordial,
chamada Ile-Ife, seres humanos e Orixás viviam lado
a lado. Mas houve um momento em que a população
aumentou e surgiu a necessidade de se criarem novas áreas
de plantio, Ogum empunhando um facão entrou na mata
e limpou o terreno para a lavoura e por esse motivo ficou
conhecido como o orixá que abre os caminhos. Os demais
orixás assistiram admirados, sobretudo pela eficácia do
material usado por Ogum: o ferro, e insistiram para que
Ogum revelasse o segredo daquele material, perfeito não
só para a agricultura, mas para a caça e a guerra. O Orixá
guerreiro só aceitou compartilhar seu segredo quando
lhe foi oferecido o reinado de Ife. Ogum, então, se tornou
rei. O Orixá é também a representação do conquistador
e trabalhador braçal, do operário que, com sua rudeza,
opera e transforma a matéria-prima em produto.
Já o Santo Guerreiro, por outro lado, de acordo
com lendas cristãs teria nascido na antiga Capadócia,
região da Anatólia que atualmente, faz parte da Turquia.
É o padroeiro em diversas partes do mundo. Quando
criança mudou-se com a mãe após a morte do pai para
Palestina, possuidora de muitos bens, educou o filho na
fé Cristã. Acredita-se que o santo tenha nascido no ano de
275 d.C.; No Oriente, é conhecido como “megalomártir”,

21
ou seja, “grande mártir”, e reconhecido entre os teólogos
cristãos como o modelo de virgem masculino, ao lado de
São João Evangelista e o próprio Jesus Cristo.
Por ordem do imperador foi preso, torturado e
forçado a voltar para a religião pagã romana, mas por não
obedecendo ao imperador, São Jorge foi morto em 23 de
abril de 303 d.C., por decapitação. Sua imagem apresenta
símbolos e significados profundos em sua iconografia. O
caso específico — São Jorge — configura-se entre os limites
terrenos e espirituais, pois, a sua existência real envolvida
por lendas, não se pode afirmar onde termina a verdade e
onde começa a fábula. Sempre foi um ponto de desconfiança
para a Igreja e tal fato fez com que o Papa Gelásio I proibisse
seu culto por considerar que sua história induzia ao erro da
verdadeira santidade.
A armadura de São Jorge simboliza a armadura do
cristão, o Santo é representado como um guerreiro, um oficial
do reino de Deus, vestido para a batalha espiritual contra o
mal. A espada e a lança com a qual ele fere mortalmente o
dragão, representam a Palavra de Deus. A capa vermelha de
São Jorge é simbolizada por seu martírio. O cavalo branco é
a pureza e a santidade, armas indispensáveis na luta contra
o mal. Já o dragão representa o demônio, o mal que quer
destruir a humanidade e toda perseguição do império
romano contra os cristãos. Assim, São Jorge atrai pelo seu
emblema distinto, forte e singular, ou seja, sua imagem é
carregada de símbolos que figuram a delicadeza de uma

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alma aflita, e a fortaleza de um mártir que fala sobre coragem.
A imagem de São Jorge é totalmente alegórica e
conta sua história, sendo atribuída aos seus devotos além
de padroeiro de vários países, também dos escoteiros, dos
exércitos e no Brasil é oficialmente padroeiro do Rio de
Janeiro ao lado de São Sebastião.
O sincretismo afro-católico é bem mais complexo do
que se imagina, pois ele é entendido como um fenômeno
multifatorial. Os estudiosos que abordam o tema não
convergem para o mesmo ponto, pois cada autor possui
uma perspectiva diferente. No caso de Ogum, assume,
visualmente, os arquétipos de São Jorge, presente
simbolicamente nas vestimentas e adereços de seus adeptos
nos cultos das religiões de matrizes africanas, fato que é
criticado por praticantes mais radicais destas religiões no
Brasil como sendo uma atitude de submissão cultural ao
catolicismo desde o período colonial. No entanto a mesma
diversidade de manifestação do Orixá ferreiro está presente
na mitologia tradicional e na afrodescendência de Ogum na
África e nas américas, um verdadeiro ancestral.

23
A PROVIDÊNCIA

Oxóssi & São Sebastião4

Sobre as religiões de matrizes africanas e o


sincretismo, quanto ao Orixá Oxóssi, sabe-se que há
divergências entre as regiões brasileiras, ou seja, em alguns
lugares São Sebastião é sincretizado com Oxóssi, em
outros como São Jorge, e há ainda citações que recordam
Santo Antônio em correlação ao Orixá das matas.
Contudo, Oxóssi é a divindade do conhecimento,
por isso, representa o arquétipo do grande provedor. É
o caçador que vive nas florestas, cujos principais símbolos
são o arco e flecha, denominados de Ofá. Sua cosmogonia
conta que foi um caçador de elefantes, animal associado
à realeza e aos antepassados, por isso recebe o titulo de
Rei da Nação Ketu. Portanto, é o valente, ágil e generoso,
que propicia a caça em prol do próximo. Seus mitos o
apresentam como o que ia à frente do grupo com um
4 V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe. Documento de Aparecida. Brasília: CNBB, 2007.
Edição Típica Vaticana: Catecismo da Igreja Católica. Editora Loyola: São
Paulo-SP, 2000.
FARROW, Stephen S. Faith, Fancies and Fetich, or Yoruba Paganism, Athelia
Henrietta: London: 1926.
GUIMARÃES, Reginaldo. Notas sobre o culto de Oxalá, Revista Acadêmica:
Rio de Janeiro, 1936.
SARACENI, Rubens. Orixás Ancestrais, São Paulo: Editora Madras, 2001.
SILVA, José Cândido da. A religiosidade popular brasileira. Disponível em:
www.igrejasaosebastiao.com.br. Acesso em: 17 jun. 2021.

24
facão para abrir caminho, tendo nisto uma relação com o
Orixá Ogum. E sendo Ogum também o Orixá do ferro,
dele ganha suas armas de caçador, fazendo-se, assim, um
cruzamento de “irmandade” entre Ogum e Oxóssi.
Posto que, tanto São Sebastião quanto São Jorge
foram soldados, que perseguiram os primeiros cristãos.
Assim, São Sebastião e São Jorge também lembram a
“irmandade” que há em Oxóssi e Ogum. Oxóssi também
é cultuado no ritual dos Caboclos, recordando os povos
originários do território brasileiro ante a dominação e
escravidão perpetrada pela chegada do europeu aos
nativos do Brasil.
São Sebastião, nascido na França de 256 d.C,
tornou-se ainda adolescente capitão da guarda do
Império Romano, em um momento da história em
que os cristãos eram violentamente perseguidos pelo
imperador Diocleciano, que governou Roma de 284 a 305
d.C.; Alguns teólogos afirmam que o Santo converteu-se
ao cristianismo ainda soldado, não há registros de sua
conversão, mas o fato é que se tornou um devoto fervoroso
e o que o fez confortar, alimentar e diminuir as penas dos
cristãos presos.
O imperador Diocleciano ao saber que ele tornara-
se cristão, ordenou que fosse morto. Nu e amarrado a
uma árvore, São Sebastião foi alvejado por flechas. Santa
Irene, viúva do mártir, Santo Cástulo, levou-o para sua
casa e curou seus ferimentos. Depois de restabelecido,

25
São Sebastião voltou ao imperador, para reafirmar a sua
fé, mas desta vez Deocleciano ordenou que o Santo fosse
espancado até a morte e jogado no esgoto (cloaca máxima)
da cidade.
No Brasil, além do sincretismo com o Orixá
Oxóssi, São Sebastião é padroeiro de inúmeras paróquias,
e conta-se a lenda popular que na expulsão dos franceses
do atual estado do Rio de Janeiro foi visto lutando com
os portugueses e os Tamoios (tribo de indígenas Tupis),
ocupando assim o título de protetor da cidade, cujo nome
canônico é São Sebastião do Rio de Janeiro, cidade de que
é igualmente padroeiro.
Todavia, a matriz religiosa brasileira tem no
sincretismo, de Oxóssi e São Sebastião, uma das suas
características mais marcantes: a proteção acastelar da
comunidade. Isto que é fruto de processos de interação
e conflito do substrato cultural indígena, africano e
europeu. Uma das mais ricas e complexas variações deste
processo é o sincretismo afro-católico, vivido por milhares
de brasileiros sejam provenientes dos grupos étnicos
indígenas, pretos ou brancos.

26
A CURA

São Lázaro & Omolu5

A religião sempre foi um local à busca da cura para


as doenças da alma e do corpo, essa talvez seja a maior
representação do sincretismo entre Omolu e São Lázaro,
mas há ainda a identificação de São Roque em localidades
do sudeste e do sul brasileiro ligando-o ao Orixás da cura
e da doenças.
Citado no texto bíblico de João capítulo 11: 01 ao 46
como o amigo pessoal de Jesus. Lázaro foi um personagem
especial na Bíblia, pois é a única pessoa por quem Jesus
chorou no Novo Testamento. Entretanto a história e a
5 BARCELLOS, Mario Cesar. Os orixás e a personalidade humana.
Pallas: Rio de Janeiro, 2008.
BARROS, Marcelo. O candomblé bem explicado (Nações Bantu, Iorubá e
Fon). Pallas: Rio de Janeiro, 2009.
BÉRIAC, Françoise, O medo da lepra, in As doenças têm história. Terramar:
Lisboa, 1997.
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás. Editora Vozes:
Petrópolis, 2007.
BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos. Companhia das Letras: São Paulo,
1993.
CRUZ, Alice. A lepra entre a opacidade do véu e a transparência do toque.
Interstícios de sentido na última leprosaria portuguesa. Dissertação de
mestrado em Sociologia. Programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global
pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2008.
DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo - templários, teutônicos,
hospitalários e outras ordens militares na Idade Média. Tradução André
Telles. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2002.
JUNIOR, Hilário Franco. As Cruzadas. Brasiliense: São Paulo, 1981.
ZIEGLER, Jean. Os Vivos e a Morte – Uma “sociologia da morte” no Ocidente
e na diáspora africana no Brasil, e seus mecanismos culturais. Zahar Editores:
Rio de Janeiro, 1977.

27
etimologia do patrono da cura parecem ter ajudado no
processo associativo da lepra com a sua figura bíblica.
Lázaro que em hebraico significa “Deus é minha ajuda”;
além do relato de sua ressureição por Jesus, encontramos
também no Evangelho de Lucas, o mendigo, na parábola
do rico e do mendigo, que por conta de “suas muitas
feridas no corpo” é descrito pela literatura cristã como
leproso (Lucas, 16: 19-31).
O primeiro Lázaro do Livro de João é irmão de
Maria e Marta de Betânia, que fora ressuscitado por Jesus,
e segundo a tradição dos teóricos teológicos foi nomeado
bispo da cidade de Cítio em Chipre pelo Apóstolo Paulo
e lá ficou até a sua morte. Na Idade Média tornou-se o
padroeiro dos leprosos pela associação errônea com a
história do seu homônimo no Evangelho de São Lucas.
As simbologias que acompanham sua iconografia
remontam ao Lázaro da parábola e não o ressuscitado: O
manto significa a humildade e a pobreza, pois vivia em
mendicância. As muletas é sua fraqueza física por não ter o
que comer e por causa das doenças que advém da miséria
e das privações. Suas feridas simbolizam suas dores e seus
sofrimentos. Os cães são a providência divina, que não o
abandonava, pois não tinha pessoas para defendê-lo, e os
cães eram fiéis companheiros e defensores. O fato de São
Lázaro ser representado à beira do caminho simboliza sua
marginalidade, tais simbolismos o associam ao patrono das
doenças e da cura.

28
Em contrapartida na cultura afro-brasileira a
divindade Omolu também é associada à doença e a cura.
Omolu significa “Filho do Senhor” e Obaluaiê “Rei,
Senhor da Terra”, em Ketu. Soponna, Obaluàiyé, Omolu,
são a mesma divindade e, segundo alguns historiadores,
o Orixá veio de Dassa Zoumé; já outros apontam como de
Aisé ou de Aja Popo sua procedência, que aldeias situadas
a oeste da região de Ketu no continente africano. Mas um
entendimento é certo, Omolu (popularmente denominado
no Brasil) é uma divindade sincrética por excelência já
na África, por ser, possivelmente, a mais antiga divindade
dos primeiros antepassados que ocuparam a terra.
Um de seus mitos relata que é filho de Nanã
que, por sua vez, está relacionada com a morte. Sendo
ligada à lama primordial da própria criação dos homens,
responsável pela devolução dos corpos dos seres humanos
à própria terra. Ela se situa no espaço chave entre a vida,
o nascimento dos indivíduos, e a passagem para a morte
e Omolu, como seu filho, tem a responsabilidade sobre os
ossos dos mortos. Sua cosmovisão também revela que ao
nascer é rejeitado por sua mãe, por conta de suas chagas.
A presença de feridas divinas, desde o seu nascimento,
confere-lhe uma dupla polaridade de figura doente, com
poderes de cura. O drama de ser rejeitado, em um primeiro
momento pela mãe, e de ser recolhido por Iemanjá que o
trata e o cura marcam sucessivamente a sua vida errante
pelo mundo, curando as doenças contagiosas.

29
Os elementos simbólicos que invoca remetem a seus
mitos e a cosmovisão dos cultos afro-brasileiros: Orixá das
epidemias, “das doenças que pegam”; pode-se identificar
essa relação entre as suas feridas e as flores de pipoca,
uma das suas comidas preferidas e utilizada nos banhos
de purificação. O Xaxará, que leva nas mãos é como uma
espécie de vassoura feita de folhas de palma e serve para
espalhar e limpar as doenças do mundo. A veste de palha
da costa que cobre o rosto e o corpo cria uma barreira ao
olhar, impedindo que seu corpo seja visto, abrindo, assim,
os caminhos do imaginário coletivo.
Omolu e São Lázaro, são aqui, sinônimos conferidos
ao termo sincretismo, síntese, identificação, justaposição
e simbiose a partir de um acúmulo de conhecimento
simbólico e cultural. No Brasil, com a chegada dos
povos pretos, originários de diversas regiões africanas,
o sincretismo religioso iria se fortalecer e ampliar sob o
signo da cura e da doença. Cada um desses povos, com
sua riqueza cultural trouxeram em suas mentes um
sincretismo de seus ancestrais, suas próprias energias
(seres míticos) que lá eram cultuadas, o Inkisse, Vodun e
Orixá, como é o caso de Omolu. Eles eram dotados de
muitas semelhanças em vários aspectos, no mito e no
ritual, por isso é facilmente compreendido os elementos
simbólicos que associam São Lázaro a Omolu.

30
O SILÊNCIO

Ossãim & São Benedito6

Em partes do sudeste e nordeste brasileiro o


sincretismo atribuiu Ossãim ao Santo dos animais São
Francisco de Assis, em raros locais São Jorge. Mas, será no
silencioso e discreto São Benedito que Ossãim terá maior
aceitação.
Ossãim é o Orixá das folhas e de seus segredos,
orixá da saúde, conhecedor das folhas curativas e das ervas
litúrgicas. Proveniente da Nigéria de onde veio o ditado:
Cosi ewê, cosi Orixá, isto e, “se não há folha, não há orixá”.
Ditado esse que também provém de um de seus mitos, o qual
narra que Xangô decidiu que todos os Orixás deveriam ter
o segredo das folhas. Pediu para Iansã sua esposa e senhora
dos ventos lanças um tufão sobre Ossãim e lhe retirar suas
folhas, mas o Orixá usa seu poder para atraí-las de volta.
Ao passar tempos sem a cura das doenças, sem o Axé e o
alimento que provém das folhas, Xangô reconhece seu erro

6 CABIBBO, S. Il Paradiso del Magnifico regno. Agiografi, santi e


culti nella Sicilia spagnola. Viella: Roma, 1996.
CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. Plantas medicinais e de
rituais afrobrasileiros I. ALMED: São Paulo, 1988.
JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou
Chrônica dos Frades Menores da Província do Brasil - vol. II. Originalmente
publicado em 1761. 2ª ed. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiniano
Gomes Ribeiro, 1859.
LÓPEZ, E. Martínez. Tablero de Ajedrez. Viella: Roma, 1982.
SANTOS, Joana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Vozes: Petrópolis, 1986.

31
para Ossãim. Por isso, o Orixá das folhas voltou-se para si,
guardando seus segredos e sendo cada vez mais misterioso.
Por isso, as folhas medicinais e litúrgicas são
indispensáveis em qualquer culto das religiões de matrizes
africanas. Independente do orixá que se vai reverenciar,
Ossãim sempre está presente devido à necessidade de
se utilizar plantas em todos os rituais. Este orixá possui
características específicas e muito peculiares, de caráter
equilibrado, capaz de controlar seus sentimentos e emoções.
Sendo dotado da qualidade de não permitir que suas simpatias
e antipatias intervirem nas suas decisões ou influenciarem as
suas opiniões. Há alguns cultos que o nominam como Orixá
feminino, e outros como Orixá masculino como no Axé Opô
Afonjá, e no terreiro do Gantois, ambos na Bahia.
Já o santo católico, São Benedito, o Santo preto,  nasceu
na ilha da Sicília, Itália, por volta de 1526. Seus pais foram
seres humanos em situação de escravidão, sequestrados
da Etiópia e levados à Sicília. Afirma a lenda cristã que o
“proprietário” dos pais de São Benedito lhes prometeu a
liberdade do menino que nasceu. Educado na fé cristã, era
cuidador de ovelhas, analfabeto e sofria constantes racismos
em seu vilarejo, o que compadeceu os eremitas franciscanos
que o incorporaram em sua ordem religiosa.
Outro caso de racismo, desta vez dentro da ordem
Franciscana levou São Benedito a ser incumbido dos afazeres
domésticos, e falecendo em 1589, em Palermo, no convento
de Santa Maria de Jesus ainda nesta função. Conhecido como

32
um homem caridoso, paciente e silencioso. São inúmeros os
relatos dos milagres de São Benedito, como a ressurreição
de dois meninos, a cura de cegos e surdos, a multiplicação
de peixes e pães, entre outros.
Alguns milagres de multiplicação de alimentos
aconteceram na própria cozinha onde o Santo trabalhava,
legando para ele o título de “Homem da Fartura”. Por isso,
também é o Santo protetor da cozinha, dos cozinheiros,
contra a fome e a falta de alimentos. São Benedito foi
canonizado em 24 de maio de 1807, pelo Papa Pio VII. É
representado com o menino Jesus nos braços por que fora
visto várias vezes com bebê nos braços quando estava em
oração.
Os africanos aceitaram, inicialmente, sincretizar
seu inkisse, vodun ou Orixá e toda sua complexa ritualística
porque tinham fé naquelas energias da natureza e o Deus
agora apresentado não lhes proporcionava uma vida digna,
humana e sim a opressão e desumanidade. Para os pretos
recém-chegados essa realidade era muito explícita, não
havendo condição alguma de confusão conceitual religiosa,
como alguns estudos e teóricos do sincretismo querem
acreditar.

33
A PELE

São Bartolomeu & Oxumaré7

O sincretismo pode ser explícito como no caso


das Santas e Orixás femininos, ou sútil como no Orixá
representado pela cobra do arco-íris Oxumarê e São
Bartolomeu: o esfolado vivo. São Bartolomeu conforme o
texto bíblico nasceu em Caná, na Galiléia, uma pequena
aldeia próxima de Nazaré. É citado na Bíblia como
Bartolomeu e Natanael, mas segundo os historiadores
trata-se da mesma pessoa.
São Bartolomeu se portou de maneira cética e
às vezes irônico com os assuntos de Deus e a pessoa de
Jesus. No Evangelho de João, a passagem bíblica limita-
se a citar seu nome entre os doze escolhidos por Jesus, e
foi seu apóstolo nos três últimos anos de vida de Cristo.
Ele presenciou os ensinamentos, as ações, os milagres, a
7 AUGRAS, Monique. De Iyá mi a pomba-gira: transformações
e símbolos da libido. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes (org.)
Candomblé: religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-
brasileiras. Pallas: Rio de Janeiros, 2000.
BENISTE, José. As águas de Oxalá: àwon omi Ósàlá. 5ª. ed. Bertrand Brasil:
Rio de Janeiro, 2009.
EVANGELISTA, Adriana Sampaio. Santos e Devoção: o culto às imagens.
in: Revista Imagem Brasileira.Cento de Estudos da Imaginaria Brasileira.
Março/1999 & V. 6, nº 21, Fevereiro/2000 & V. 7, nº 24, Março/2003 & V. 8,
nº 27, Março/2004.
LEHMANN, João Batista. Na luz perpétua: leitura religiosa da vida dos
Santos de Deus, para todos os dias do ano apresentadas ao povo cristão. Ler
Católico: Juiz de Fora, 1956.

34
morte e a ressurreição de Jesus. Participou do Pentecostes
e no nascimento da Igreja.
Uma antiga tradição armênia afirma que o apóstolo
foi para a Índia e lá pregou segundo o Evangelho de São
Mateus. Depois, que naquela região converteu muitos,
superando extremas dificuldades, passou para a Armênia
Maior, onde também converteu o Rei Polímio, sua esposa
e outros homens pagãos. Foi no ano 51 d.C. que começou
seu martírio. Na cidade de Albanópolis, hoje Derbent,
na Rússia, às margens do mar Cáucaso teria sido morto
por ordem do governador local, o qual não aceitava a
pregação e a conversão dos nativos ao cristianismo. Sua
morte por esfolamento e posteriormente decapitação são
considerados os ápices de sua fé.
O esfolamento foi um método de tortura relatado
desde 800 a.C. no norte da África. A vítima era preparada
para que o tecido epitelial se soltasse mais facilmente,
seja por meio de panos quentes, água ou óleo fervente.
No entanto São Bartolomeu é esfolado com uma faca
extremamente afiada, e por isso sua iconografia o
apresenta portando o instrumento de seu suplício. Essa
tradição é tão forte que São Bartolomeu foi pintado
na Capela Sistina por Michelangelo segurando a pele de seu
corpo e uma adaga.
A data de 24 de agosto é comemorada como seu
dia: padroeiro dos padeiros, dos alfaiates e dos sapateiros.
Além de homenagear São Bartolomeu, a data também é

35
lembrada como o dia de um dos maiores assassinatos de
protestantes por católicos de toda a história. Em agosto
de 1572, na França, milhares de protestantes foram
mortos por ordens do clero e da realeza, por isso, o dia é
conhecido como o Massacre da Noite de São Bartolomeu.
Orixá Oxumarê é a divindade cobra e arco-íris. Em
seu culto dança apontando para o céu e a terra, fazendo
menção a união que o arco-íris proporciona quando
visto. É comumente dito como uma divindade dual, ao
mesmo tempo macho e fêmea. Essa comunicação entre
o céu e a terra ocorre por levar a água dos mares, para
o céu, para que a chuva possa formar-se, mas também
assegura a comunicação entre o mundo sobrenatural, os
antepassados e os seres humanos e por isso é dito também
como o cordão umbilical do mundo.
É o Orixá do movimento, da ação, da eterna
transformação, pela simbologia da troca de pele da
cobra. É o contínuo oscilar entre um caminho e outro
que norteia a vida humana, como a alternância entre
chuva e o bom tempo, dia e noite, positivo e negativo.
Um de seus mitos aponta que Nanã, sua mãe e de Euá,
sua irmã, queria ela se case, e a disputa pela mão de Euá
acaba em lutas sangrentas, já que ela não queria nenhum
dos pretendentes. Euá acaba se transformando em névoa
para fugir da situação sendo escondida pelo brilho do
arco-íris de seu irmão. Em outra versão, a insistência de
Nanã em casar a filha faz com que ela peça a ajuda do

36
irmão Oxumarê que a esconde por trás do horizonte para
sempre.
A junção entre o masculino e o feminino em
Oxumarê é entendida também como a união que
possibilita a existência da vida, a água e a terra, a
mortalidade e a imortalidade e tudo o que é duplo, em
seu sentido de tese e antítese, ou seja, os opostos que se
complementam e renovam. No Brasil, o Orixá é conhecido
com representatividade masculina. Porém, sua conexão
com o universo feminino se dá através da sua irmã gêmea,
Euá. E em diversas representações ele, como uma cobra,
enrola-se ao redor do corpo dela para protegê-la.
Em se tratando de Brasil, o sincretismo religioso
aconteceu paulatinamente e com objetivo de evitar
choques culturais e religiosos, pois, os africanos aqui
estabelecidos vivam em situação de escravidão e nessa
condição, não eram senhores de suas vidas. Eles eram
arrancados de suas comunidades e inseridos em etnias
que não compatíveis à sua. Perderam a liberdade, mas
a crença nos Orixás, Voduns e Inkisses, permaneceu. É
preciso, antes de recriminar o sincretismo, entender que
os primeiros pretos camuflavam os orixás com os Santos
católicos, quando ambos tinham algo em comum e, dessa
forma, escapavam das punições aplicadas pelos brancos.

37
A ANCESTRALIDADE

Nanã & Sant’Ana8

É unânime o sincretismo entre Sant’Ana e Nanã;


os simbolismos que invocam como idade, ancestralidade
e ensinamento fortificam a ligação cultural que há entre
essas duas distintas culturas religiosas.
Santa Ana ou Sant’Ana foi a avó de Jesus Cristo. Sua
história é pouca e cheia de lendas. Sabe-se pelas sagradas
escrituras que foi esposa de São Joaquim. Os textos
apócrifos de Epifânio e Gregório de Níssa apontam que
já avançada de idade foi concebida Maria, que se tornaria
a mãe de Jesus, de forma biológica. Mas os livros bíblicos
de Matheus e Lucas atribuem que um anjo apareceu para
Joaquim quando fazia penitência e rezava no deserto,
afirmando que sua esposa ficaria grávida pela graça. A
isto os dominicanos maculistas da Idade Média afirmam
que Maria foi concebida pela graça apenas.
A devoção aos pais de Maria é muito antiga no
Oriente, onde foram cultuados desde os primeiros séculos
da era cristã, atingindo sua plenitude no século VI. Já no
8 BOSCHI, Caio C. Os leigos e o poder. Ática: São Paulo, 1984.
BOSCHI, Caio. C. Como os filhos de Israel no deserto? (Ou: a expulsão de
eclesiásticos nas Minas Gerais na Primeira metade do século XVIII). Belo
Horizonte: Varia História, 1999.
BRAGA, Júlio. Ancestralidade Afro-Brasileira: o culto de babá egum. CEAO/
Ianamá: Salvador, 1992.
VASCONCELLOS, Salomão de. Era Colonial – 1703-1797. In: Marianna e
seus templos. Gráfica Queiroz Breyner: Belo Horizonte, 1938.

38
ocidente, o culto de Sant’Ana remonta ao século VIII.
Será na Alemanha que seu culto recebera o epíteto de
magister, a professora. O pergaminho que carrega em sua
mão simboliza tudo o que ela ensinou à Virgem Maria.
No mundo judaico, a educação das meninas era de inteira
responsabilidade das mães. Sendo a Virgem Maria a
pessoa que é, pode-se concluir que, em grande parte, isso
é devida à educação que ela recebeu. Além, essa é sua
ação principal, que foi educar e ensinar. Toda a missão de
sant’Ana está simbolizada neste pergaminho.
Vê-se que a Santa reproduz o sentimento
ancestral da relação do poder gerador da terra com o
da mulher. Mas, ao mesmo tempo, encarna outro culto
da Antiguidade, que é a reverência aos antepassados, ao
conhecimento que se transfere de geração em geração.
Por isso, denominada “Mestra” ou “Guia”; Sant’Ana
é sempre representada como uma mulher madura,
serena, transmitindo seu conhecimento ou guiando a
Virgem Maria. Há historiadores que aponta que no Brasil
escravocrata, a Santa esteve figurada como a matrona
branca dos engenhos, que passou a ser considera guardiã
e transmissora da religião aos pretos em situação de
escravidão, assim Sant’Anna torna-se também o símbolo
da Casa-Grande ensinando o catecismo nas senzalas.
Já a Orixá Nanã, cujo termo “nanan” significa
raiz, aquela que se encontra no centro da terra, é a
orixá dos mangues, do pântano, senhora da morte e

39
responsável pelos portais de entrada (reencarnação)
e saída (desencarne) das almas. Protetora dos idosos,
desabrigados, crianças e doentes.
Considerada a ancestralidade do poder feminino,
a mais antiga do mundo. Segundo sua mitologia, quando
Orumilá chegou aqui para frutificar a terra, ela já estava;
desconhece o ferro por existir desde a pré-história,
anterior à idade do ferro. Ela também é uma das Iâmi-
Oxorongá (poder ancestral do mulherismo africano) e
da mais temida; em algumas tribos quando seu nome é
pronunciado, todos se jogavam ao chão em reverência,
por ser venerada como a divindade da vida e da morte.
Seu símbolo é o Íbíri – um feixe de ramos de folha de
palmeira com a ponta curvada e enfeitado com búzios.
Respeitada e temida, seus poderes estão relacionados
às águas paradas e a lama, ao barro e a argila, é a origem e
o poder. Dela saí o barro primordial que dá a vida e força
física aos seres humanos. Para seus estudiosos e devotos
de seu culto é entendida como o destino e a trajetória do
ser humano no Aiê (Terra), pois ela é a História, que se faz
através da origem (barro) e da água parada (vida e morte)
que a representam, ou seja, a própria ancestralidade.
O sincretismo invoca diversos elementos do humano
para produzir suas inter-relações, como a simbologia, a
relação cultural, social entre outros. Assim os santos estão
ligados às atividades da vida humana, do mesmo modo
que na África os Orixás estão relacionados a elementos

40
da natureza, como podemos perceber no sincretismo
entre Nanã e Sant’Ana. Desta forma os Santos católicos,
possuem o poder de curar e proteger, bem como os Orixás.
Portanto, as relações interpretativas que proporcionam,
como neste caso, a ancestralidade, a criação e a transmissão
do conhecimento através da ancestralidade é algo muito
mais complexo que uma simples correlação de símbolos.

41
A MÃE
Nossa Senhora da Conceição & Oxum9

O sincretismo uniu duas divindades da gestação,


Oxum e a mãe de Jesus. Além da Santa também são
sincretizadas em Oxum: Nossa Senhora das Candeias,
Nossa Senhora das Dores e La Caridad Del Cobre em
Cuba, mas a recordação de Conceição é mais proeminente
à divindade africana.
Oxum é a personificação do anima, ou seja, uma
revolucionária sempre disposta a enfrentar os conflitos.
Conhecida por ser a divindade dos rios de água doce, do
9 BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos
meios populares de informação de fatos e expressão de ideias. EdiPucRS:
Porto Alegre, 2014.
CABRERA, Lydia. Iemanjá e Oxum. Edusp: São Paulo, 2004.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaios Sobre o Simbolismo Mágico-
Religioso, Ed. Martins Fontes: São Paulo, 1991.
ETZEL, Eduardo. Arte Sacra Popular brasileira: Conceito – Exemplo –
Evolução. Melhoramentos: São Paulo, 1975.
ETZEL, Eduardo. Imagem sacra brasileira. São Paulo; Melhoramentos: São
Paulo, 1979.
FERGUSON, George. Signs & Symbols in Christian Art. Oxford University
Press Oxford, 1976.
MACINTYRE, Archibald Joseph. Santíssima Virgem Maria. Ed. Louva-a-
Deus: Rio de Janeiro, 1992.
MURPHY, Joseph, e SANFORD, Mei-Mei (editors). Òsun Across the Waters:
a Yoruba Goddess in Africa and the Americas. Indiana University Press:
Indiana, 2001.
PASTRO, Cláudio. Arte sacra. Edições Loyola: São Paulo, 2002.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo
Mundo. Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega. Corrupio: Salvador,
1997.

42
ouro e da fertilidade dos campos e das mulheres. Quando
manifestada é vestida de amarelo e dourado e porta uma
espada ou um leque e o abebé, seu espelho.
O mito que a liga com a Virgem Maria,
provavelmente seja o que narra sua ligação com seu
filho Logun-Edé; Logun é filho de Oxóssi com Oxum,
um príncipe do encanto e da magia. A vida do casal
era turbulenta e resolveram se separar. O filho ficaria
metade do ano nas matas com Oxóssi e a outra metade
com Oxum no rio. Logun então se tornou uma criança
de personalidade dupla: cresceu metade homem, metade
mulher. Um dia a mãe proibiu o filho de brincar nas
águas fundas, pois os rios eram traiçoeiros, mas Logun
era curioso e vaidoso como os pais, não obedeceu. O filho
então se afogou nas águas profundas do rio, Oxum pediu
a Orumilá que salvasse o filho, que a amparasse no seu
desespero de mãe. Orumilá retirou o príncipe das águas
traiçoeiras e o trouxe salvo a terra.
Além, Oxum representa as dimensões plurais
de poder, no sentido político, econômico, divinatório,
maternal, natural e terapêutico. Muito de sua mitologia
a mostra em papéis libertários à condição feminina. Mas
como no caso de outras divindades ligadas ao arquétipo
da mulher ao longo da história das religiões, também
as formas de compreender Oxum sofreram e sofrem a
influência das religiões – e epistemologias – patriarcais.
Mas, o culto a Oxum no Brasil, trata-se de uma divindade

43
originária de uma região específica da Nigéria, onde
reina sobre um rio do mesmo nome - e onde era e ainda
é objeto de culto da maior importância, não só religiosa
como sócio-política.
Do ponto de vista do sincretismo com Nossa
Senhora da Conceição sua representação converge para
um feminino sagrado, e esta sacralidade, no caso de
Oxum, a leva para aspectos que, na história do ocidente,
configuram o valor das concepções religiosas do feminino,
ou seja, a sexualidade e a maternidade.
A Imaculada Conceição ou Nossa Senhora da
Conceição segundo os dogmas católicos a consideram
como a Virgem Maria sem mancha do pecado original.
A Imaculada Conceição Virgem Maria foi solenemente
definida pelo Papa Pio IX em 1854 por considerar a visita
do Anjo Gabriel à virgem na anunciação da concepção de
Jesus Cristo, bem como as bulas do Bispo grego do séc.
I Irineu de Lyon e o Arcebispo do século IV Ambrósio
de Milão, pois afirmam que Jesus tornou-se encarnado
no ventre da Virgem Maria, por isso era necessário que
ela estivesse completamente livre de pecado para poder
gerar o filho de Deus.
A imagem e a devoção da Virgem Maria, a mãe de
Jesus, é de importante significado para os fiéis e praticantes
do catolicismo. Maria é para eles a figura feminina de
maior respeito e admiração, sendo chamada de face
materna de Deus, e está no mesmo grau de fidelidade, fé,

44
amor, esperança e respeito que os fiéis têm por Deus e seu
filho Jesus.
Há muitos mistérios em torno de Maria, que vão
desde as histórias de sua vida, assim como, os segredos
que envolvem os milagres, as graças e suas aparições
para fiéis em todo o mundo. Mas, o maior mistério em
torno da Mãe de Jesus diz respeito a sua imácula, que
ora é entendimento com um estratagema dos doutores da
Igreja e ora como uma vocação à virgindade que a mulher
deve ter para ser uma Santa. Toda essa santidade, pureza
e fortaleza na figura feminina de Maria, proporcionaram
e proliferaram em grande escala a devoção pela virgem
não somente em relação a fiéis praticantes do catolicismo,
mas por adeptos de outras religiões que veem na figura
de Maria um alicerce e uma fonte de fé e aproximação
com o divino.
No Brasil e iconografia de Nossa senhora da
Conceição também foi um contra-ataque da Igreja ao
regime republicano, uma estratégia de representação
da nação brasileira. Desta forma, é possível supor uma
busca de um símbolo dentro da própria Igreja capaz de
congregar em si toda a nação. A imagem de Maria, a mãe
do filho de Deus, vista como uma mulher mestiça, assim
como o povo era capaz de satisfazer essa necessidade em
um momento que até mesmo o governo republicano se
esforçava em produzir símbolos capazes de representar a
recém-fundada república e seus cidadãos. A Virgem Maria

45
mestiça foi capaz de reunir as diversas camadas sociais,
desde os mais abastados até os mais simples potencializando
o poder social e psicológico do sincretismo.
Assim, por meio de Oxum e Nossa Senhora da
Conceição, o sincretismo apresenta-se como um processo
que se propõe resolver uma situação de conflito cultural.
Neste, a principal característica é a luta pelo status, ou
seja, o esforço empreendido no sentido de conseguir uma
posição que se ajuste à ideia que o indivíduo ou o grupo
tem da função que desempenha dentro de sua cultura,
seja a sacralidade, maternidade das divindades ou sua
função sócio-política.

46
A ESPADA

Obá & Joana D’Arc10

Do universo feminino das divindades afro-brasileiras


e católica que sofreram a influência do sincretismo, Obá
e Joana D’Arc são as mais significativas em aproximações.
Mesmo em algumas localidades brasileiras e em Cuba
considerarem Santa Cataria de Siena sincretiza em Obá,
talvez, sejam a Santa de origem francesa e a divindade
de origem nigeriana as que mais se assemelham em força
simbólica da resistência feminina diante do universo
opressor do patriarcado.
O culto de Obá é originário de Elẹ́kò (atual cidade
de Lagos, Nigéria), onde o rio possui seu nome. É uma
divindade guerreira e caçadora, por isso está sempre
munida de sua Ofange (espada), Escudo e Ofá (arco e
flecha). Cultuada como a grande Orixá protetora do poder
feminino, por isso também é saudada como Iyá Agbá
(senhora respeitável, anciã, matriarca).
10 CLAUDEL, P. Joana D’Arc entre as chamas. Agir: Rio de Janeiro,
1963.
PARÉS, Luis Nicolau. Do Calundu ao Candomblé: O processo formativo da
religião afro-braileira. In: A formação do Candomblé: História e ritual da
nação Jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp: São Paulo, 2006.
THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales. Editions du
Seuil: Paris, 2001.
TlSSET, P., LANHERS, Y. Proces de condamnation de Jeanne d’Arc. 3 v.
Société de I’Histoire de France Klincksieck: Paris, 1960.
ZACHARIAS, José Jorge de Morais. Ori Axé – A Dimensão Arquetípica dos
Orixás. Editora Vetor: São Paulo, 1998.

47
Sua mitologia afirma que nasceu do ventre rasgado
de Iemanjá após o incesto com seu filho Orungã. Em outros
mitos apontam que apaixonada por Xangô, foi ludibriada
por Oxum e instigada a fazer um sacrifício, mutilando a
própria orelha como oferenda ao amado. Mesmo com
o sacrifício, seu amor não foi correspondido, Xangô
enfurecido persegue Oxum e Obá que se transformam
em rios, e a correnteza é uma feroz tormenta de águas em
pororoca que disputam o mesmo leito. Há outra versão, em
que Obá e Oxum não são opositoras e sim complementos
do mesmo culto, o culto de Gueledés, e a orelha mutilada
representaria o símbolo da união feminina.
O lado esquerdo (Osì), onde cortou a própria
orelha, sempre esteve relacionado à mulher e, por uma
razão muito elementar, é o lado do coração. Quando Obá é
saudada como guardiã da esquerda, isso quer dizer que é a
guardiã de todas as mulheres. Por desafiar as capacidades
masculinas, Obá constitui a percepção do temperamento
forte e resistente que existe dentro de toda mulher. É a
personificação da luta feminina pelos seus direitos, pelo
respeito. É a protetora do poder do sagrado feminino, e
mantém estreitas relações com as Iâmi-Oxorongá (poder
ancestral do mulherismo africano). Tudo relacionado à
Obá é envolto em um clima de mistérios.
A personagem feminina mais conhecida da História
francesa, que ainda criança ouvia vozes lhe revelando a
missão de libertar a França dos invasores Ingleses é das mais

48
conhecidas e difundidas no mundo ocidental. Liderou um
exército, coroou um rei e teve um fim trágico. Queimada,
aos 19 anos, como herege pelos mesmos homens que
protegeu em suas batalhas. A história de Joana D’Arc é
talvez a mais documentada dos Santos católicos.
Nasce em Domremy, um feudo situado na fronteira
entre a França e a Lorena. Os seus pais eram camponeses,
conhecidos por todos como cristãos excelentes. Deles
recebe uma boa educação religiosa, ela demonstrava
desde a infância caridade e compaixão pelos mais pobres,
pelos doentes e por todos os que sofreram, no contexto
dramático da Guerra dos Cem Anos. A sua vida religiosa
amadurece como experiência mística a partir da idade de
13 anos. Através da voz do arcanjo Miguel, Joana sente-
se chamada pelo Senhor a intensificar a sua vida cristã e
também a comprometer-se pessoalmente pela libertação
do seu povo das mãos dos ingleses.
Depois dos anos de vida escondida e de
amadurecimento interior e espiritual segue à vida pública:
um ano de ação e guerra liderando os soldados franceses. Em
1429, Joana dita uma carta desafiando ao Rei da Inglaterra
e aos seus homens que assediam a cidade de Orléans. E no
mesmo ano, vivendo entre os soldados participa da coroação
do Carlos VII em Reims, o mesmo rei que protegeu se
voltará contra ela quando sela sua “paz” com os ingleses.
Em 1430, é presa e conduzida à cidade de Rouen,
dá-se ali o longo e dramático Processo de Condenação, 

49
presidido por dois juízes eclesiásticos, o bispo Pierre
Cauchon e o inquisidor Jean Le Maistre, orientados por um
numeroso grupo de teólogos da célebre Universidade de
Paris. São eclesiásticos franceses que, tendo feito uma escolha
política e vendo a missão divina de Joana seu impeditivo,
a sentenciam a fogueira por heresia. 25 anos mais tarde,
no Processo de Nulidade, aberto sob a autoridade do Papa
Calisto III, conclui-se nula sua condenação. No século XVI
ela foi usada como símbolo pela Liga Católica contra os
protestantes na chamada contrarreforma e, em 1803, Joana
D’Arc foi oficialmente declarada como um símbolo nacional
da França por decisão do imperador Napoleão Bonaparte,
sendo beatificada em 1909 e canonizada 1920 pelo Vaticano.
No Brasil Joana d’Arc já não era uma desconhecida.
Em 1920, ano da canonização, os salesianos de Niterói
editaram uma resumida “Vida de Santa Joana D’Arc” e
distribuíram pelo país, mas já havia registros anteriores
que citavam Joana D’Arc e o sincretismo com Obá pelas
religiões de matrizes africanas na Bahia e Rio de Janeiro.
É notório que o sincretismo não se restringe apenas a
uma simples analogia do orixá ao santo, porque ele está
presente em outros momentos, como na História, nos
mitos, nas lendas, nos ritos, assim o ato de se assemelhar
e confiar sistemas simbólicos de aproximação como ocorre
entre Obá e Joana D’Arc configura uma prática sincrética de
compreensão social também.

50
AXÉ
Termo de origem Iorubá que, em sua acepção filosófica,
significa a força que permite a realização da vida,
que assegura a existência dinâmica, que possibilita
os acontecimentos e as transformações. O termo Axé
também é uma saudação religiosa, que significa energia
positiva; espaço sagrado de tambores e ritmos. O sentido
de Axé, para a antropóloga cubana Natália Aróstegui e o
teórico brasileiro Nei Lopes, é interpretado como a força
que permite a realização da vida. É ele que assegura a
existência dinâmica, que possibilita os acontecimentos e
as transformações, ou seja, a ação da criação dos Orixás.
Por tanto, o Axé (poder) é o transformador dos orixás, a
própria ação divina.

51
ARÓSTEGUI, N. B. Los Orishas em Cuba. Ediciones Unión: Havana, 1990.
BRAGA, Júlio. Fuxico de candomblé: estudos afro-brasileiros. Universidade
Estadual de Feira de Santana: Feira de Santana, 1998.
LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 3. ed. Selo Negro
Edições: São Paulo, 2004.
ORO, Ari Pedro. “As religiões afro-brasileiras: religiões de exportação”. Em
ORO, Ari Pedro (org.). As religiões afro-brasileiras no Cone Sul. Cadernos de
Antropologia nº 10. UFRGS: Porto Alegre, 1993.

52
ENCONTROS DA FÉ

A exposição TRUNFOS DA FÉ é uma criação do


artista diamantinense, Marcial Ávila, apoiada pela Lei
Aldir Blanc do Estado de Minas Gerais cuja proposta é
construir o diálogo entre as religiões de matrizes africanas
e o catolicismo por meio da iconografia de seus Orixás
e Santos, que permeiam tanto as discussões sobre arte
quanto a perspectiva histórica. O artista contou com a
colaboração do escritor e pesquisador Robson Di Brito,
que produziu uma pesquisa exclusiva sobre o tema para
auxiliar na criação do autor e compreensão dos Santos e
Orixás, essa pesquisa resultou neste livro que é distribuído
online gratuitamente.
O tema central da exposição e deste livro parece
ser o sincretismo, que é um fenômeno constituinte da
religiosidade brasileira e das religiões de uma forma
geral, mas o artista e escritor ultrapassam esses simples
entendimentos de uma analogia entre Orixá ao Santo, e
por isso idealizam uma apresentação dos encontros de fé
que Santos e Orixás impõem.
Com o intuito de trazer a tona às discussões sobre
a liberdade de culto e fé, no encerramento da exposição
aconteceu um debate entre o Padre Mauro Luiz, diretor e
curador do MUQUIFU - Museu dos Quilombos e Favelas
Urbanos na grande Belo Horizonte e o pesquisador e
autor deste livro Robson Di Brito. A mediação deste debate

53
foi conduzida pela pesquisadora Leidiany Peric. O debate
que ocorreu no Teatro Santa Izabel em Diamantina/MG
auxiliaram na estruturação desta obra.

54
A VIRGEM

Santa Luzia & Euá11

A virgindade foi considerada pelo patriarcado


como uma caraterística de santidade, isso iguala Santa
Marta, Santa Ágata, Santa Luzia e a Virgem Maria. Nesse
sentido, o sincretismo unirá a virgindade e o poder da
visão nas semelhanças existentes entre Euá e Santa Luzia.
Euá também conhecida como Ìyá Wa, divindade
feminina das águas é reverenciada como a dona do mundo
e dos horizontes. Orixá que protege as virgens e tudo que
é inexplorável, e está onde o homem não alcança. Seu
11 AMBRÓSIO, Santo. A Virgindade. Vozes: Petrópolis, 1980.
AUGRAS, Monique. De Iyá mi a pomba-gira: transformações e símbolos da
libido. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes (org.) Candomblé: religião
do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Pallas:
Rio de Janeiro, 2000.
CHRISTEN, Eliana Magnani Soares. Arras, dote e herança: a mulher
aristocrata e o patrimônio familiar na Provença (final do século X - início do
século XII). Cadernos Pagu: Campinas, 1998.
FORTES, Carolina Coelho. A Legenda Aurea: datação, edições, destinatários
e modelo de santidade. In: TEIXEIRA, Igor Salomão (org.). História e
Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. OIKOS: São Leopoldo, 2014.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de
Viviane Ribeiro. EDUSC: São Paulo, 2005.
RECCEUR, PAUL. A Memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain
François [et. al.]. Editora da Unicamp: São Paulo, 2007.
SILVA, Angela Fileno da. Que eu vou na terra dos negros: circularidades
atlânticas e a comunidade brasileira na África. Dissertação de Mestrado em
História Social. Pallas: São Paulo, 2010.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: caminhos de devoção
brasileira. Editora Ática S. A.: São Paulo, 1994.
VAUCHEZ, A. As ordens mendicantes. In: CORBIN, Alain (Dir.) História do
Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. Martins Fontes: São
Paulo, 2009.

55
símbolo é o arpão, mas pode também carregar um ofá
(arco e flechas) dourado, uma espada ou uma serpente
de metal.
É personificada no rio e a lagoa Iyewá, na Nigéria;
a tradução de seu nome pode ser “Mãe eterna” ou “A mãe
que sempre existirá”. Ainda em África foi sincretizada na
serpente Bessém, da nação Jeje. Portanto aproximando-se
de Bessém, o vodun que no Brasil, por sua vez o sincretizou
no Orixá Oxumarê. Por isso, atribui-se Oxumarê cobra-
macho e Euá a cobra-fêmea, regendo, juntos, as fontes de
águas. Sua ligação com as Iâmi-Oxorongá (poder ancestral
do mulherismo africano) é forte e poderosa.
A cosmogonia de Euá apresenta que um de seus
mitos narra que ajudou Orumilá a escapar de Iku, a
Morte, por gerar uma grande neblina, por isso está ligada
à evaporação da água, a névoa, sendo essa manifestação
atmosférica a presença de Euá no Aiê (Terra). Também
é responsável pela elevação da água até o céu, onde se
condensa em nuvens que geram as chuvas. Ligada aos
oráculos, é Orixá que nunca dorme, preside sobre a visão,
o que a torna a própria vidência; enxergando o passado, o
presente e o futuro, o que lhe assegura o dom da profecia.
A profusão de assuntos ligados a Euá demonstra
que na antiguidade, o Feminino era entendido como o
Poder Primordial que tudo gerava e geria. A castidade
impõe que Euá é Orixá antigo, ligado ao período
matriarcal, onde as mulheres não dependiam dos homens

56
ou prescindiam do contato com o masculino; sua força é
inteiramente feminina. Há ainda mitos que contradizem a
castidade de Euá: narram seus casamentos, outros de seus
filhos. Mas outros apontam que ela cansou-se de tudo e
retirou-se ou que foi morar nos cemitérios e nunca mais
se relacionou com homem algum.
Já a Santa Luzia (ou Lúcia) nasceu no ano de 283
d.C. na cidade litorânea de Siracusa, Itália. A mãe sofria
de uma forte hemorragia. Luzia levou-a até o túmulo
de Santa Ágata, a Santa apareceu para Luzia e curou sua
mãe. Tocada pela vocação divina decidiu se consagrar a
causa cristã, e como forma de abnegação entregou seu
dote de casamento e seus bens aos pobres. O pretenso
noivo da jovem não aceitou ser rejeitado e a denunciou ao
Governador Pascásio, acusando-a de ser cristã.
O imperador Diocleciano havia emitido um
decreto autorizando punição exemplar para os cristãos.
Este fato será decisivo para o martírio de Santa Luzia.
Os carrascos jogaram sobre ela resina e azeite fervendo,
mas nada aconteceu, mesmo assim continuaram com
a tortura. Algumas versões apontam que os olhos lhe
foram arrancados por seus torturados, outra versão diz
que a própria os arrancou e entregou ao pretendente a
casamento, pois afirmava que era o que mais apreciava
nela. O fato é, que ao ter os olhos arrancados serviu de
inspiração à devoção de protetora dos olhos, e em 303
d.C. foi decapitada a mando do Imperador.

57
Da simbologia da Santa têm-se: A bandeja com os
olhos representando sua fidelidade a Jesus Cristo e defesa
de sua virgindade. Por isso, é apresentada segurando uma
bandeja com dois olhos. A palma é o símbolo da vitória e
usada pela Igreja para representar todos os santos que
morreram martirizados. Além disso, o papa Gregório
Magno, passado um século após a morte da Santa, a
incluiu para ser citada entre os cânones da santidade da
Igreja.
Os milagres atribuídos à sua intercessão a
transformaram numa das santas auxiliadoras da
população, que a invocam, principalmente, nas orações
para obter cura nas doenças dos olhos ou da cegueira, e
até mesmo para se obter a adequada e madura visão da
vida, da família, e até nos negócios.
Por um processo de interpenetração e fusão,
que o sincretismo impõe, é possível perceber que entre
Euá e Santa Luzia há trocas de tradições, sentimentos e
atitudes entre os grupos sociais pretos/brancos, religiosos
de matrizes africanas/católicos ao partilharem de sua
experiência e de sua história, ficam como que incorporados
numa mesma vida cultural. Além do mais, a assimilação
não se opera repentinamente. É sempre gradual. E não
só gradual, mas ainda moderada conforme o grau de
conhecimento das histórias, lendas e mitos dos Santos e
Orixás sincretizados.

58
AS VINGADORAS

Iansã & Santa Bárbara12

No Brasil é unanime o sincretismo entre Iansã e


Santa Bárbara; tal que na Bahia há os festejos de Santa
Bárbara nos quais também se comemoram o dia de Iansã
em 04 de Dezembro. São compartilhadas por vários
simbolismos: raios, trovões, espada e a luta feminina sobre
a dominação masculina.
O martírio da virgem Santa Bárbara confunde-se
com o feminicídio e a opressão que assolam as mulheres
por séculos. Contudo, é muito difícil confirmar sua
história da vida. As versões da sua biografia é o resultado
de relatos populares que foram sendo difundidos entre
seus devotos, sendo popular na hagiografia cristã desde
a chamada Igreja primitiva (séc. II d.C. até o ano 325 d.
12 ARÓSTEGUI, N. B. Los orishas en Cuba. Ediciones Unión:
Havana, 1990.
BADAJOZ, Diego Sanchez de, Recopilación en metro. Universidad de
Filosofia y Letras: Buenos Aires, 1968.
BASTIDE, R. O candomblé da Bahia. Trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz.
Companhia das Letras: São Paulo, 2001.
BUENO, E. Náufragos, traficantes e degredados. Objetiva: Rio de Janeiro,
1998.
NASCIMENTO, Jussara Rocha. A Bárbara da Antiguidade. In: Bahia.
Governo do
Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Festa de Santa Bárbara (Cadernos do
IPAC, Nº 5). Fundação Pedro Calmon: Salvador, 2010.
TOMMASI, Tarcila. Santa Bárbara. Paulinas: São Paulo, 2014.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. Companhia das
Letras: São Paulo, 2003.

59
C.). Nesse período, o cristianismo já havia alcançado o
Império Romano. Em função da perseguição aos novos
cristãos, costumavam se reunir em locais secretos, e a
jovem Bárbara foi uma das pessoas da Nicomédia que se
converteram ao cristianismo, e tudo leva a crer que foi
através de um dos seus professores que descobriu a fé
cristã.
Nascida, supostamente, em Nicomédia, na Ásia
Menor, onde hoje se localiza a cidade de Izmit, na
Turquia. Foi uma bela jovem, filha única de Dióscoro, um
rico e nobre morador da cidade. O pai para preservar a
castidade da filha decidiu mantê-la em uma torre, sendo
educada por tutores da confiança.
Conta sua lenda, que ao se indispor ao fanatismo
pagão do pai foi torturada e degolada por um golpe de
espada, seu corpo nu foi arrastado pelas ruas, e neste
momento um raio fulminou o assassino, seu pai, Dióscoro.
Ela é representada com os símbolos de seu martírio: a
torre e a espada. O fato do pai ter sido morto por um
raio faz crer que Bárbara tem o poder de controlar as
tempestades e proteger seus fiéis dos raios e trovões.
Além disso, a santa é invocada para proteção contra o
fogo, e por isso, é também padroeira dos bombeiros. Em
10 de Maio de 1969 o Papa Paulo VI proibiu a liturgia à
Santa Bárbara por considerar não comprovada sua vida
e martírio.
Há notícias que a devoção a Santa Bárbara em

60
território brasileiro tenha começado já no século XVI
trazida por comerciantes portugueses, e de acordo com as
literaturas informativas sobre a santa. Por estar ligada às
trovoadas, sua primeira relação com o universo dos orixás
deu-se a uma associação com Xangô, por ser este o senhor
dos trovões. E, para os devotos na Santeria cubana, Santa
Bárbara é Xangô.
Já Iansã, conforme sua cosmovisão, conhecida
como senhora dos nove filhos, dos nove espaços, recebeu
o título de “Iyá omo mesan”, que traduzindo-se seria “mãe
dos nove filhos”, e que acabou originando o seu título de
Iansã, como ela é mais conhecida no Brasil. É o Orixá
personificada no rio Níger e também do fogo; controla os
ventos, os raios e as tempestades.
De Xangô roubou o poder de controlar o fogo, por
sentir-se humilhada por ele inúmeras vezes. Dona dos
Egums (espíritos dos mortos), guia dos espíritos, e como
orientadora dos mortos, carrega consigo o Eruexim, feito
da crina de boi ou cavalo, para impor respeito perante
aos Egums. Iansã corporifica a transgressão feminina,
assegura proteção para toda e qualquer liderança do
mulherismo, e por isso está sempre munida de uma
espada. É uma divindade voltada à solidão e porta-se com
características e hábitos comuns ao universo masculino,
a isto sua força é simbolizada em um touro, mas é de
sexualidade desinibida, longe de repressões e de tabus
que impeçam o seu prazer.

61
O processo de sincretismo que as religiões africanas
sofreram no Brasil, foi complexo e teve início nos navios
negreiros, devido a mistura de pretos advindos de várias
partes da África, por isso, raramente se encontrará um
panteão de origem africana totalmente baseado apenas
em um grupo étnico. Com o tempo, o sincretismo
originou religiões tipicamente brasileiras, mesclando
diversos elementos de outras crenças e culturas, como
acontece com Iansã e Santa Bárbara, mas com base
primordialmente nos cultos africanos, nos rituais
indígenas e no catolicismo. Portanto, não há como negar
que o conceito de sincretismo, significava, em primeira
instância, a preservação de crenças africanas sob o formato
católico, ou seja, os pretos mantinham suas divindades
sob as imagens de Santos católicos.

62
O ANDRÓGENO

Santo Expedito & Logun-Edé13

O legado do sincretismo está em unir duas


culturas religiosas e suas construções sociais, mas também
fortalecer, criar e produzir preconceitos e estereótipos em
uma relação de poder e dominação como no sincretismo
entre o Orixá Logun-Edé e Santo Expedito.
Logun-Edé é o orixá da riqueza e da fartura, sem
dúvida, um dos Orixás mais bonito e de bom gosto, já que
a beleza é uma das principais características dos seus pais:
Oxum e Oxóssi. Frequentemente simbolizado no caçador
e pescador habilidoso e príncipe soberbo. Na Nigéria, sua
cidade chama-se Ilexá e é uma das mais ricas e prósperas.
A grafia de seu nome sofreu alterações na diáspora:
Logunedé ou Logun-Edé, do Iorubá Lógunède. Sendo
cultuado na nação Ijexá por sua ligação com sua mãe, e
também nas nações Ketu e Efan, por seu pai.
13 ARAÚJO, Carlos. ABC dos orixás. Círculo do livro: São Paulo,
1993.
ARINOS, Afonso. Lendas e tradições brasileiras. Briguiet e Cia: Rio de
Janeiro, 1937.
MENEZES, R. de C. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade
num convento do Rio de Janeiro. Relume-Dumará: Rio de Janeiro, 2004.
MENEZES, R. de C. Santo Antônio no Rio de Janeiro: dimensões da
santidade e da devoção In: TEIXEIRA, F.; MENEZES, R. de C. Catolicismo
plural: dinâmicas contemporâneas. Vozes: Petrópolis, 2009.
GRUZINSKI, S. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade
Runner (1492-2019). Companhia das Letras: São Paulo, 2004.
VELHO, O. O cativeiro da besta-fera. Religião & Sociedade, ano 14, n. 1,
1987.

63
Em outros mitos, um pouco mais raros, aparece
como filho de Ogum e Iansã. E isso atribuiu outras
características a este Orixá, como um valente guerreiro
que nunca perde, por sua proximidade com Ogum, e
ligado ao mundo dos mortos por Iansã. Mas será mais
forte sua presença nos cultos de Oxum e Oxóssi, que
se fundem e se mesclam como mistério da criação. Se
Oxum o confere a sexualidade, a maternidade, a pesca
e a prosperidade, Oxóssi lhe passa a fartura, da caça, da
habilidade, do conhecimento.
A característica de unir o feminino de Oxum
ao masculino de Oxóssi, muitas vezes, o leva a ser
representado como uma criança, um menino pequeno
ou adolescente, formando o símbolo da pureza. Sua
cosmogonia histórica remonta em Ilexá, onde é citado
como um poderoso rei com coragem relacionada à de
um leopardo e foi casado com três esposas. Em alguns
cultos é visto como um ser andrógeno. Fato que, há mitos
sobre ele que o apresentam como aquele que reside por
um período com o pai nas matas (o caçador) e em outro
com a mãe nos rios (a sereia), ou seja, é Oboró (homem) e
Iyabá (mulher) em um único ser divino.
Além, Ossãim, Logun-Edé e Oxumarê são três
Orixás em proximidades com a androgenia dentro do
panteão Iorubá (sobretudo na diáspora), que remete
antes de tudo à importância mítica do duplo nas relações
de poder. O ser andrógino busca legitimar e contribuir

64
com a ordem final das coisas e do universo, sua função
cosmológica ajuda a explicar o universo e sua formação.
Na lógica dos Fon do Daomé e de grande parte das
sociedades subsaarianas, este ser andrógino, aparece
como o regulador da ordem, pois como o princípio do
masculino (ordem) não conhece a essência do feminino
(desordem) e não pode assim estabelecer a harmonia nem
no contexto cosmológico, nem no sociológico (sociedade).
Esta harmonia só pode ser estabelecida por um ser que
tenha em si os dois elementos, pois ordem e desordem
fazem parte do papel civilizatório nos Mitos.
O mais paradoxal é que é justamente nas sociedades
cristãs em que se opera o sincretismo que se criam
estereótipos nos quais as tradições africanas e seus reflexos
na diáspora são atribuídos ao sentido andrógeno como
atrasado, e por isso devem ser combatidos, extirpados.
São justamente as igrejas cristãs ao lado do Islã e seus
proselitismos que fazem com que hoje na África e no
Brasil, se afirme que os homossexuais são transgressores
morais. Em Logun-Edé o papel da androgenia está ligado
a sua função sociológica de equilibrar o corpo social das
mulheres com a destreza e ordenamento de caça e guerra
dos homens.
Já o santo católico, não há uma data de quando
Santo Expedito nasceu nem sua localidade, mas sabe-se
que era Romano, foi Senador de Roma, Príncipe-Consul
do Império Romano na Armênia, militar, comandante da

65
XII Legião Romana e, converteu-se ao cristianismo. Por
volta de 296 a 303 d.C. defendia as fronteiras orientais do
Império contra os bárbaros asiáticos.
Um líder competente e respeitado que mantinha
com rigidez e disciplina seus soldados. Semelhante aos
homens de seu período tinha uma vida devassa, luxuriosa,
rodeada de luxo, prazeres e fama. Por ser muito bonito era
sempre desejado em festas e rituais semelhantes ao ritual
de Baco (deus do vinho e das festas para os romanos).
O que possibilitou comentários e hipóteses de historiados
acerca da dupla sexualidade de Santo Expedito.
Contudo, as lendas cristãs afirmam que Expedito
teve um sonho que mudou sua vida. Nele um corvo
representando o espírito do mal, grasnava incessantemente
a palavra cras, que do latim significa amanhã; para os
teóricos da Igreja significa “deixar a conversão para amanhã”.
Porém, Expedito pisoteou o corvo dizendo: hodie, também
do latim e que significa hoje. Deste sonho criou-se sua
simbologia. As tiras douradas na roupa de Santo Expedito
mostram que ele era um Comandante de Legião Romana.
Esse traje nos dá a ideia do grau de importância que o
comandante ocupava no império romano, denominada de
XII Legião, a Fulminata. O manto vermelho representa
o martírio, o sangue dos mártires. O ramo de palmeira
também simboliza os doze artigos de fé do Credo Católico,
os quais professou solenemente antes de ser batizado e
pelos quais deu sua vida. O capacete no chão significa que

66
Santo expedito se desarmou e, ao mesmo tempo, abriu
sua mente para receber o Cristianismo.
O corvo é pisado com o pé direito, e de seu bico
sai uma flâmula com a palavra cras. O corvo representa
o espírito do mal e também a maior tentação que Santo
Expedito sofreu: a procrastinação, ou seja, deixar para
amanhã aquilo que deve ser feito hoje. E na mão direita
levanta a cruz com a palavra hodie, e por isso é considerado
o Santo das causas urgentes.
Convertido, ele continuou por um tempo ainda
chefe da sua legião, conseguindo converter parte de
seus soldados ao cristianismo. Ao saber da conversão de
Expedito, o imperador Diocleciano capturou o Santo e
seus soldados; recebeu 39 chicotadas com o flagrus, chicote
que dilacera a pele e causa hemorragia, o mesmo castigo
que Expedito havia aplicado nos cristãos ao comando
do Imperador. Por fim, ao não renunciar sua fé, Santo
Expedito foi decapitado com sua espada no dia 19 de abril
de 303 d.C., em Melitene na Armênia.
A base sociológica do sincretismo é chamada
“sincretismo externo”, e a dificuldade à compreensão
dessa modalidade de sincretismo encontra-se em querer
buscar uma explicação em nível racional. Assim o
pensamento do preto no processo sincrético se move no
plano das participações, analogias e das correspondências.
Por isso, os grupos que compartilham do sincretismo
externo, como é possível perceber em Santo Expedito e

67
Logun-Edé, procuram analogias entre as divindades; não
se trata de identificá-las, nem de misturá-las, o que seria,
de fato, um sincretismo. Busca-se encontrar equivalências
místicas, que ora levam a uma harmonia e ora a construção
de estereótipos.

68
O MAR

Iemanjá & Nossa Senhora dos Navegantes14

Virgem Maria, Nossa Senhora das Candeias,


Nossa Senhora da Piedade são algumas das Santas que o
sincretismo ligou a Iemanjá, mas será em Nossa Senhora
dos Navegantes que as similaridades serão de maior
significação.
Nossa Senhora dos Navegantes é outro epíteto dado
à Mãe de Jesus, e passa a receber pedidos de intercessão
na Idade Média, na época das Cruzadas, momento em que
portugueses e espanhóis cruzavam o mar Mediterrâneo
rumo à Palestina. A devoção dos marinheiros convergia
na busca do melhor caminho e um porto seguro para a
chegada. Antes das travessias os navegantes participavam
da Santa Missa pedindo proteção a Nossa Senhora dos
Navegantes, para que pudessem ter mais coragem de
14 ALVES, Nilda. Decifrando o pergaminho: os cotidianos das escolas
nas lógicas das redes cotidianas. In: ALVES, Nilda; OLIVEIRA, Inês B. de
(Orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas. Vozes: Rio de Janeiro,
2008.
CANCLINI, N. As culturas populares no capitalismo. Brasiliense: São
Paulo, 1983.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva
pós-estruturalista. Vozes: Rio de Janeiro, 1997.
LUZ, Marco A. Cultura Negra e Ideologia do Recalque. 2. Ed. - Edições
SECNEB: Salvador, 1994.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad: Rio de Janeiro, 1998.
VALLADO, Armando. Iemanjá – a grande mãe africana do Brasil. Rio de
Janeiro: Pallas, 2008.

69
enfrentar o mar e suas tempestades. É a padroeira dos
navegantes e dos viajantes. Será nesse momento, no
sombrio navio negreiro, com seres humanos sequestrados
da África, que os pretos terão o primeiro contato com Nossa
Senhora dos Navegantes e supostamente sincretizam com
Iemanjá.
Os significados de sua iconografia, de Nossa Senhora
dos Navegantes, ditam as superstições presentes em seus
devotos: A coroa de estrelas é uma referência a outro
título de Maria: a Estrela do Mar. O manto azul simboliza
o céu, onde ela está e também a proteção que ela dá aos
navegantes. A túnica branca é sua pureza de coração. Ela
é Mãe puríssima, sem mancha, sem pecado, sem segundas
intenções. O Menino Jesus nos braços é a fonte de toda
a força que ela tem para proteger seus filhos. A âncora
na mão esquerda do menino Jesus é o símbolo que mais
distingue a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes
e resume toda a segurança, paz e confiança. As nuvens
e os anjos aos pés apontam que está acima do céu físico
e protege também através dos anjos. Ela é a Rainha dos
Anjos e eles atendem aos pedidos dela.
Iemanjá foi trazida para o Brasil pelos pretos
provenientes do sudoeste da Nigéria e de várias partes da
atual República do Benim. É a água salgada que corre nos
oceanos e chega a todos continentes, ligada à maternidade,
é a grande mãe que protege seus filhos. A senhora dos Oris
(cabeça) responsável pelas cabeças humanas. No Brasil

70
tornou-se a Rainha do Mar e dona de tudo em relação
aos mares; e somado a isso “embranqueceu”, ganhou
traços europeus, reduziu suas formas, trocou a bacia na
cabeça por uma coroa, o corpo nu foi vestido, dessa forma
Iemanjá abrasileirou-se nos moldes do sincretismo.
Mas Iemanjá, além de figurar como senhora das
grandes águas, mãe e protetora dos homens e peixes,
também é a feminilidade que a caracterizam enquanto
Orixá da beleza e doçura. A imagem de mãe soberana
e hierarquicamente superior aos demais Orixás fazem
de Iemanjá ser cultuada e reverenciada popularmente.
Além, é a sereia sedutora, que representa a força mítica
do feminino e suas diversas facetas. No dia 2 de fevereiro
é dia de Festa no mar, o ato de homenagear, reverenciar
e presentear a Rainha das Águas. Congrega-se nela
elementos simbólicos que traduzem independente do
preto, a fé e confiança depositadas a essa entidade africana.
Não se pode negar que é corajoso quem constata
que o sincretismo se processa em duas etapas: A primeira
em que o preto, vindo da África, se depara com as
forças opressivas que o impede de ser livre, inclusive
de não praticar sua religião. E nesse momento ocorre a
acomodação, a comparação de atributos entre as duas
entidades: Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes.
Mas, o preto, nessa etapa, estava cônscio de que aquela
realidade era de dissimulação para evitar conflitos
maiores; o mesmo, aparentemente, não acontece com o

71
afrodescendente, que não conheceu a África, pois já nasceu
no Brasil, e a realidade é outra. Ele não tem a percepção
de que o orixá constitui uma realidade mítica africana,
que está contextualizado em um universo transcendental
e o santo católico em outro. Para ele, Nossa Senhora dos
Navegantes e Iemanjá correspondem a uma só entidade, é
o que se chama, nesse segundo momento, de assimilação.

72
A JUSTIÇA

São Jerônimo & Xangô15

Os arquétipos da justiça e da reflexão em busca de


sabedoria são representações de São Jerônimo e Xangô. O
sincretismo atribui a Xangô a similaridade nas principais
capitais do sudeste brasileiro para São Jerônimo, mas São
João Batista e São Pedro também são identificados em
outros locais do país.
A história de São Jerônimo se mistura com o
surgimento do cristianismo no império romano e sua
expansão para o Oriente; teria supostamente nascido no
século III d.C. em Estridão atual Eslovénia. São Jerônimo
é inicialmente cético quanto ao cristianismo, mas ao viver
como eremita numa ilha no Adriático em estudo para
tradução na bíblia do grego antigo e hebraico para o
latim acaba por se converter. Por viver um longo período
no deserto de Cálcida na região da Antioquia, local onde
15 ANDRADE, Fernando Antônio Gomes de. Lgba: a guerra contra o
xangô em 1912. Senado federal, Conselho Editorial: Brasília, 2014.
ELKINS, J. On the Strange Place of Religion in Contemporary Art. Taylor
& Francis New York, 2004.
FLUSSER, Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade.
Escrituras Editora: São Paulo, 2002.
PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: sociologia das religiões afro-
brasileiras. Hucitec: São Paulo, 1996.
ROBINSON, Douglas. Becoming a Translator: An Introduction to the
Theory and Practice of Translation. Routledge: London, 2003.
RUIZ HERNANDO, J. A. Los monasterios jerónimos españoles. Caja
Segovia: Segovia, 1997.

73
dominou um leão ao cuidar de suas feridas, e que se
tornaria símbolo de sua ferocidade em defesa às escrituras
sagradas.
Faleceu em um casebre que construiu na rocha,
próximo à gruta da Natividade, por isso recebe o
simbolismo das rochas como a firmeza e justiça com que
cria os dogmas da igreja católica antiga. São Jerônimo
está entre as grandes figuras da Igreja antiga, no período
definido como o século áureo da Patrística, considerado
o período de ligação do cristianismo no Ocidente e do
cristianismo do Oriente. Será em 382 d.C., que São
Jerônimo em Roma, sob a proteção do Papa Dâmaso e o
apoio de mulheres da aristocracia romana (Marcela, Paula
e sua filha Eustóquia) que criará uma escola de leitura e
estudo rigoroso dos escritos bíblicos, o que lhe confiará
o título de Doctor maximus explanandis Scripturis (doutor
eminente na interpretação das escrituras).
Por sua vez, Xangô é considerado o patrono da
justiça, e junto a Iansã, sua esposa, possuem arquétipos
que representam o fogo e os trovões. Assim como São
Jerônimo, santo também invocado para se pedir proteção
contra os temporais, ambos representam o poder sobre
as intempéries. A cosmogonia de Xangô aponta que teria
sido rei de Oió, por isso, em suas iconografias religiosas
aparece portando a coroa, que é o símbolo máximo
da realeza. Contudo, na região entendida como dos
Iorubás, ser portador de uma coroa é também o mais alto

74
magistrado, daí a lâmina dupla do Oxê (machado) que
evoca a justiça, da qual Xangô é patrono, mas o Oxê é
também, obviamente, uma arma onde se faz uso à justiça
e a vingança. Por isso, o Orixá é conhecido por praticar
uma justiça dura, justa e cega, como uma rocha – que é
outro elemento que o representa.
O sincretismo é a fusão de diferentes doutrinas
para a formação de uma nova, seja de caráter filosófico,
cultural ou religioso. O sincretismo nutre, nas iconografias
de Xangô e São Jerônimo, características típicas de suas
doutrinas-base, sejam rituais, superstições, processos,
ideologias entre outros aspectos. Nos dois símbolos
religiosos é perceptível a forte ligação às relações de
comunicação atrelada à justiça que se estabelecem entre
eles, o que resulta em um confronto e aproximação de
suas diferenças culturas, costumes e tradições ocidentais
e orientais.

75
A NATUREZA

Iroco & São Francisco16

O sincretismo ligou duas divindades com as


mesmas vocações à proteção da natureza e dos animas.
É unânime no Brasil a proximidade entre o Orixá
Iroco e o Santo São Francisco de Assis, mas em certas
localidades também há o sincretismo dessa divindade
afro-brasileira com São Lourenço.
A tradição católica afirma que São Francisco
nasceu em Assis, Itália, em 1182. Filho de família
abastada, na juventude esbanjava dinheiro com
ostentações. Quando se preparava para a guerra entre
as cidades italianas Perugia e Assis contraiu forte
doença, e durante delírios de febre recebeu uma visita
sobrenatural que lhe mandava vender seus bens e
dedicar sua vida ao Evangelho. Passou então a fazer
16 BERKENBROCK, V. J. A Experiência dos Orixás: Um Estudo
sobre a Experiência Religiosa no Candomblé. Vozes: Rio de Janeiro, 2012.
CELANO, Tomás de. Primeira Vida de São Francisco. In: SILVEIRA,
Ildefonso; REIS, Orlando dos (Org.). São Francisco de Assis: escritos e
biografias de São Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do
primeiro século franciscanos. Vozes: Petrópolis, 1997.
CUNNINGHAM, Lawrence S. Uma breve história dos santos. José Olympio:
Rio de Janeiro, 2011.
LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. 7ª ed. Record: Rio de Janeiro,
2005.
LODY, Raul. O Povo do Santo. Pallas: Rio de Janeiro, 1995.
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro: Ethnografia Religiosa e Psychanalyse.
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1934.

76
visitas e a servir aos doentes, e com a venda de seus
bens reformou a Igreja de São Damião, e a viver nessa
igreja. Os familiares tentaram persuadi-lo sem sucesso,
fazendo com que Francisco se voltasse mais para as
causas cristãs, auxiliando nas reformas das igrejas de
São Pedro, Porciúncula e da abadia de Monte Subasio,
cuidada pelos beneditinos.
Foi canonizado com menos de dois anos
após falecer, em 1228, e por seu apreço à natureza
é mundialmente conhecido como o santo patrono
dos animais e do meio ambiente; aquele da alegria
abnegada, da pobreza e do amor ao mundo.
Seus elementos iconográficos são: O hábito
da Ordem que ele mesmo fundou: a Ordem dos
Franciscanos, o que simboliza a pobreza e humildade,
pois se evita o uso de trajes mundanos. O cordão
com três nós são os votos de pobreza, castidade e
obediência. O Terço representa sua devoção a Nossa
Senhora, que conta com sua poderosa intercessão. Os
pássaros presentes nas imagens do santo representam
todos os animais e sua ligação com a natureza.
Já o orixá nas nação Ketu, Tempo é conhecido
como Iroco. Entre o povo Jeje, como Loko. Nos
terreiros de Angola e Congo, povo Banto, é chamado
de Kitembo ou simplesmente Tempo, o orixá que
governa os movimentos, a criação sobre a criação.
Um de seus mitos firma que, em um tempo que as

77
mulheres não conseguiam engravidar, foram recorrer
a Iroco com o pedido para gerar filhos, e em troca
prometeram-lhe oferendas daquilo que seus maridos
cultivavam da terra. Nove meses depois, a aldeia se
alegrou com os recém-nascidos e as mães cumpriram
suas promessas. Somente uma das mulheres, Olurombi,
não cumpriu sua promessa porque seu marido era
um entalhador. Então, ela no momento do pedido,
havia prometido seu próprio filho à árvore. Como
não entregou a criança conforme a promessa, Iroco a
transformou em um pássaro e a aprisionou na copa de
sua árvore onde ela cantava sua história. Seu marido
ouviu o canto daquele pássaro e entendeu, então
esculpiu um menino igual ao filho e fez a oferenda para
Iroco. Assim, a mulher foi libertada e voltou para casa.
Iroco em si, não se apresenta como árvore
sagrada, ou seja, é um fitomorfo dos mitos africanos.
Considerado o Orixá do carvalho africano e por
extensão o Orixá das árvores em geral. Ele é a energia
da árvore que incorpora, também uma ancestralidade,
que prescreve toda a natureza antes a existência do
humano. Tem uma relação com o vento, o ar, com tudo
que acontece na vida, o Senhor das passagens. Iroco
não tem rosto.
No momento em que se faz o sincretismo,
observam-se características de um e outro lado,
verificando o que há em comum para se iniciar o

78
processo de assimilação das duas entidades, portanto
Iroco em algumas situações é São Francisco, um dos
santos da igreja e representado por sua ligação com o
sagrado que é a natureza. E Iroco é a própria natureza
simbolizada no Orixá que assente sua existência junto
aos humanos.

79
A PUREZA

Cosme e Damião & Ibejis17

O sincretismo além de aproximar culturas, ritos


e religiões, por vezes, mistura-as de tal forma que se
confundem e fundem no imaginário popular. Assim é com
os Ibejis ou Erês ou Meninos de Angola – as divindades
crianças – das religiões de matrizes africanas e São Cosme
e Damião; parte do nordeste e sudeste brasileiro, já em
outras regiões do país é São Crispim e São Crispiniano.
Os irmãos gêmeos São Cosme e Damião (Acta e
Passio, seus nomes verdadeiros), nascidos na Egeia na Ásia
Menor, no período de Imperador romano Diocleciano,
eram médicos. Executavam sua profissão por caridade
17 BASACCHI, Mario. São Cosme e São Damião: biografia e novena.
Paulinas São Paulo, 2003.
CARVALHO, Augusto da Silva. O culto de S. Cosme e S. Damião – em
Portugal e no Brasil: história das sociedades médicas portuguesas. Imprensa
da Universidade: Coimbra, 1928.
GOMES, Edlaine de Campos. Doce de Cosme e Damião: dar, receber, ou não?
In: GOMES, Edlaine de Campos. Dinâmicas Contemporâneas do Fenômeno
Religioso na Sociedade Brasileira. Idéias e Letras: São Paulo, 2009.
MAIOR, Mário Souto. Território da Danação - o diabo na cultura popular
do nordeste. Livraria São José: Rio de Janeiro, 1975.
NETTO, Adriano Bitarães. A Era dos Erês: uma era ao culto da natureza e
dos orixás. Mazza Edições: Minas Gerais, 2010.
OLIVEIRA, Rafael Domingos. A criança negra escravizada no Brasil:
aproximações teóricas, tramas historiográficas. In: Revista Outras Fronteiras,
Cuiabá, v. 1, n. 2, jul.- dez., 2014.
PRANDI, Reginaldo. Mitologias dos Orixás. Editora Companhia das Letras:
São Paulo, 2005.
THEODORO, Helena. BASACCHI, Mario. São Cosme e São Damião:
biografia e novena. São Paulo: Paulinas, 2003.

80
e juntos pregavam a fé cristã, sendo frequentemente
denominados na literatura litúrgica como anargiras, ou
seja, avessos ao dinheiro. Contam as lendas cristãs que
além de curarem os doentes, em geral crianças, eram
frequentes em atos de orações na busca da cura de seus
consulentes.
Seus atos caridosos que eram motivos de conversões
ao cristianismo não passaram despercebidos aos inimigos
da fé cristã. Por volta de 303 d.C. foram capturados pelo
exército de Diocleciano e torturados de diversas maneiras,
mas sem lhes causar ferimentos. Acredita-se que em 27
de Setembro de 303 d.C. foram mortos por decapitação
a mando do imperador Diocleciano. Já o imperador
Justiniano em 555 d.C. após contrair séria enfermidade
rogou aos santos Cosme e Damião por sua cura, o que foi
alcançado. Em agradecimento o imperador reconstruiu
e decorou a igreja dos mártires em Constantinopla, que
veio a se tornar um lugar de peregrinação.
Já na religiosidade afro-brasileira, O termo Ibeji
em Iorubá significam “ibi”, nascimento, e “eji”, dois. Um
dos mitos iorubanos narra que os Ibejis eram dois filhos
de Iansã com Xangô, e foram abandonados por sua mãe
na beira do rio, e partiu para a guerra. Oxum os encontra
e adota, passando a ser considerada a partir de então sua
mãe adotiva. Outra narrativa lendária sobre os gêmeos
africanos afirma que, o primeiro irmão a nascer recebe
o nome de Taiwo, já o segundo é denominado como

81
Kehinde. Os gêmeos são os responsáveis pela verdade,
pois são possuidores do senso de julgamento imparcial
das crianças.
Ressalta-se que os Ibejis não são os mesmos que Erê,
pois Erê é um crianças que viveram e foram consagradas
mantendo sua identidade infantil. E os Ibejis além de seres
divinos, são entendidos como divindades humanizadas
de um tempo imemorial, daí o equívoco entre ambas as
entidades. São os Ibejis para os Iorubás, e Vunjis para
os Bantos que representam os orixás gêmeos africanos.
Devido às características desses orixás crianças, os Ibejis
são tidos como forças poderosas e difíceis de obedecer.
No continente africano, especialmente na Nigéria
ocidental e no Dahomey, existe um culto caracterizado
aos gêmeos (chamados Ibeji e Hoho) que são tidos como
seres das florestas e grande conhecedores da magia. São
representados por estatuetas semelhantes, porém de
sexos distintos.
No Brasil o dia de São Cosme e Damião, 27
de setembro, é celebrado também pelas religiões de
matrizes africanas, em que são sincretizados nos Ibejis,
Erês e Meninos de Angola. Associação que fornece o
entendimento, por parte de seus adeptos por acreditarem
que possuem conhecimento de desfazer feitiços e auxiliam
na cura de enfermidades. No Brasil, em Portugal e na
Inglaterra existe a prática de distribuir balas e doces como
pagamento de promessas aos Santos Cosme e Damião, e

82
por serem também padroeiros das crianças. Entende-se
que os irmãos seriam mais uma manifestação do arquétipo
dos gêmeos, presente na maioria de tradições primitivas o
que haveria permitido seu sincretismo com os Ibeji.
Logo, se pode deduzir que, embora os mitos dos
Ibejis e as lendas de São Cosme e Damião, no que se
referem à cosmogonia e teogênese, desses povos não sejam
os mesmos em muitos aspectos, guardam similitudes,
por isso, a forte atração entre esse sincretismo e a difícil
dissociação, pois já fazem parte do imaginário popular e
incorporado aos elementos de culturais compartilhados.

83
A SANTIDADE

Jesus & Oxalá18

O sincretismo limitou a aproximação entre


Jesus Cristo e Oxalá na caracterização de criadores e
representantes divinos na terra, cristalizando-os de tal
forma que tornou-se popular a aceitação de que um é
outro.
Oxalá, também conhecido pelos nomes de Orixalá,
Obatalá, Oxalufã e Oxaguiã, é considerado o mais
importante dos orixás, a mais elevada das divindades no
território Iorubá, por sua direta participação na criação
do ser humano. É o primeiro filho criado por Olorum, o
Deus supremo, encarregado por este de criar o mundo.
Os dados históricos e os mitos apresentam-no como um
dos reis de Igbô, população instalada perto do local que
mais tarde se tornou a cidade de Ifé na Nigéria.
Divindade responsável pela criação dos seres que
povoam a terra disputa com Oduduá o título de Orixá
da criação. É uma divindade que se manifesta de duas
18 COSTA, Ivan H. Ifá – O Orixá do Destino. 1ª ed. Ícone: São Paulo,
1995.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Perspectiva: São Paulo, 1976.
RODRIGUÉ, Maria das Graças de Santana. Orí Àpéré Ó: o ritual das águas
de Oxalá. Summus: São Paulo, 2001.
SCHIAVO, Luigi. A busca pelas palavras e atos de Jesus: o Jesus Seminar.
Caminhos, v. 7, n. 1, p. 29-53, 2009.
SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus histórico. Novo Século: São Paulo,
2003.

84
formas: Oxalufã, comparado com o pôr do sol; Oxaguiã,
comparado ao nascer do sol, e seus símbolos são: bastão
(paxaró), pomba (iofá), olho-de-vidro (Orumilá).
Chamado de Orixalá, devido a influência exercida
pelos muçulmanos: Orixá-Alá. Segundo a tradição
Iorubá, o principal Orixá do poder gerador masculino é
Obatalá, o senhor da veste branca, que, depois de muitas
adaptações e modificações ficou conhecido como Oxalá.
O pai da clareza, o senhor das decisões e das
conquistas também são qualidades descritas como de
Oxalá. Seus domínios se estendem ao Orum (morada
dos Orixás), aos rios e às montanhas no Aiê (morada
dos seres humanos). O sincretismo atribuiu à trindade
de Oxalá o sentido de: Obatalá como Deus-Pai, Oxalá
com Jesus Cristo e Ifá com o Espírito Santo, mas não
há uma relação de comunhão entre eles, como há na
trindade da doutrina católica. Isto porque há uma
terceira compreensão sobre as faces de Oxalá: Oxaguiã; é
compreendido no conflito que antecede a paz, a própria
revolução que dá início às mudanças, às transformações
visando o futuro de maneira abrangente e não superficial,
o que é necessária ao dinamismo da vida e da sociedade
na busca pelo conhecimento. Esse espectro guerreiro de
Oxalá é considerado o “Oxalá Novo”, aquele que carrega
a espada e o escudo.
Pela cultura popular e o sentido paternalista que
há na sociedade brasileira é amplamente chamado de

85
Pai de todos os Orixás, o que é contestado por teóricos
das religiões de matrizes africanas e mitólogos. O fato é
que reside em Oxalá o sentido de ser o responsável pelo
“sopro da vida” do ser humano, dado pela divindade no
ato da criação como relara um de seus mitos, e, por isto,
é ligado ao elemento ar. Oxalá é em si e por fim o poder
procriador masculino – elemento divino que reside no
espirito de todos os seres humanos e não exclusivamente
no ser humano de gênero masculino.
Já Jesus Cristo, sua história, talvez seja uma das
mais importantes do Ocidente em vários aspectos: político,
literário, psicológico, econômico – além do religioso. Ela é
uma história ao mesmo tempo histórica e mítica. A figura
de Jesus não é de um revolucionário político que convoca
à revolta, ao contrário dos outros messias que lutavam
com armas contra as tropas romanas. Sua atuação o faz
ser entendido como um revolucionário social enquanto
organizava as comunidades e mantinha as pessoas unidas;
também é um revolucionário espiritual, que não se pode
separar do social.
A tradição cristã atribui que seu nome é de
origem hebraica que significa Salvador. As primeiras
fontes de informações sobre sua vida conhecidas
mundialmente são os quatro Evangelhos Canônicos, do
Novo Testamento, que relatam desde o seu nascimento
até sua morte. Segundo a bíblia, Jesus é a imagem central
do Cristianismo, o redentor da humanidade, e conforme

86
Santo Agostinho compõe a trindade: Pai, Filho e Espirito
Santo.
Os evangelhos são os documentos mais conhecidos,
por constituírem relatos sobre vida e morte de Jesus.
O próprio vocábulo “evangelho” pode ser traduzido
como “boa notícia”, pois se refere à vinda de Jesus
como salvador da humanidade. Já a imagem de Jesus
Crucificado é o símbolo máximo do cristianismo. Ela
relembra o sofrimento, martírio e a morte de Jesus
Cristo pela salvação da humanidade. O símbolo de maior
vergonha no tempo de Cristo tornou-se símbolo de vida e
salvação para os cristãos. E os cravos que prendem Jesus
à cruz são lembrados como suas chagas benditas.
A crucificação, esta forma de tortura e morte
usada pelos romanos era das mais cruéis. A morte na cruz
era uma morte extremamente dolorosa e angustiante,
e tornou-se o símbolo máximo de abnegação para o
cristianismo. 
O sincretismo é um fenômeno constituinte da
religiosidade brasileira e das religiões de uma forma
geral. Os estudos acerca das influências religiosas
ocorridas no Brasil ou tentam ignorar a questão ou
tomam o mesmo como uma degenerescência ou, ainda,
como uma característica peculiar da cultura brasileira, da
qual as religiões não escapariam.
Assim o sincretismo ou é visto como a vivência em
conjunto da religiosidade africana, indígena e católica

87
ou como uma forma de adaptação do preto à sociedade
colonial católica dominante. Por isso, no sincretismo
o termo cultura é visto a partir do campo das tensões,
no caso do sincretismo entre Oxalá e Jesus Cristo, dá
condições de entender essas tensões e como é percebido
como um dos componentes do processo de adequação,
modulação e padrões de dominação da cultura brasileira.

88
ORIXÁ SANTO

Exu Santo Antônio


São Jorge - MG/RJ/SP/ES/RS
Ogum Santo Antônio de Pádua - BA
São João ou São Pedro - Cuba/Guiana/Chile
São Jorge - BA
Oxóssi São Sebastião - RJ/MG/SP/ES
Santo Antônio - PA/PB/MA
São Lázaro - BA/CE/MG/SP
Omolu
São Roque - RS/ES/SC/Argentina
São Francisco de Assis - GO/BA/AC
Ossãim
São Benedito - MG/DF/RS/SC/MT/TO
Oxumarê São Bartolomeu
Nanã Sant’Ana
Nossa senhora das candeias - BA
Oxum Nossa senhora da conceição - MG/SP/RJ/PA/PI
Nossa senhora das dores - SC/RS/ES/PR
Joana D’arc - SP/RJ/MG
Obá
Santa Catarina ou Santa Siena - Cuba/Peru/Aruba

89
ORIXÁ SANTO

Santa Marta - RS/PE/SP/BA


Euá Santa Ágata - RJ/PR/RO/RR/AC/Cuba
Santa Luzia - ES/GO/SE/AL/MG/PB/Argentina/Peru
Iansã Santa Bárbara - MG/RJ/SP/SC/ES/BA
Anjo Gabriel - BA/ES/Cuba/Costa Rica
Logun-Edé
Santo Expedito - RJ/SP/MG/SC
Nossa senhora das candeias - SP/BH
Nossa senhora dos navegantes - RJ/ES/BA
Iemanjá
Nossa senhora da piedade - SC/MG/Cuba
Virgem Maria – RS
São Jerônimo - MG/SP/RJ
Xangô São João Batista - BA/RS
São Pedro - ES
São Francisco de Assis - SP/MG/BA/ES
Iroco
São Lourenço - RG/SC
Cosme e Damião - MG/SP/ES/BA/SC
Ibeji
São Crispim e São Cipriano - AL/CE/MA
Oxalá Jesus

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POSFÁCIO

Ao nos atermos as obras de arte, em contexto,


nossos olhos percorrerão as representações pictóricas que
evocam os sentimentos emanados pela fé. A religiosidade,
intrínseca ao ser humano, potencializa a diversidade de
leituras e releituras de um mesmo tema.
A abertura da exposição “TRUNFOS DA FÉ”, do
artista plástico Marcial Ávila, na Galeria Martha Moura,
do Teatro Municipal Santa Izabel, trouxe uma nova
perspectiva artística e significativa, no campo das artes
visuais, ao reconhecer o pluralismo, respeitar diferenças e
as escolhas dissemelhantes.
É preciso admitir que a nossa visão é limitada, não
podemos generalizar e nem restringir leituras, o conjunto
das obras nos permite desconectar de nós mesmo em
busca de algo que transcende a nossa consciência, a
espiritualidade e sua complexa essência diante do que
compreendemos como divino.
Está escrito: “O Senhor olha do céu para os filhos
dos homens, para ver alguém que tenha entendimento,
alguém que busque a D-us”. Salmos14:2.
O livro do escritor Robson Di Brito, mestre em
Humanidades, nos reconta esta trajetória entre o artista
e o teórico em sua rica pesquisa para incrementar a
compreensão da história das religiões Africanas e Afro-
brasileiras, na qualidade da criatividade e imersão no
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universo da pesquisa para buscar as “Raízes do sincretismo
das religiões africanas e indígenas no Brasil”. O autor
tem uma visão apurada sobre o assunto, um intelectual
inquieto para tecer didáticas sobre o sincretismo e traçar
as narrativas nesta obra literária.
Graciola Rodrigues19

19 Artista Plástica; Diretora do Teatro Municipal Santa Izabel.

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Este livro foi impresso no formato 21x14 centímentros,
miolo em papel offset75g fonte Baskerville BT,
e capa em papel couché brilho 250g
fonte Baskerville BT, na OD Gráfica e Editora.
Belo Horizonte, outubro de 2021.

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED ON BRASIL

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