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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

DAS CASAS DE DAR FORTUNA AO OMOLOKÔ:

Experiências religiosas de matrizes africanas no Rio de Janeiro (1870-1940)

Nilma Teixeira Accioli

1
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 3
CAPÍTULO I: FEITIÇOS E PODERES ........................................................................ 15
CAPÍTULO II: UM RIO DE DIVERSIDADE ÉTNICA E RELIGIOSA ..................... 42
UMA CIDADE E MUITOS OLHARES: ANTIGOS E NOVOS MORADORES ... 42
MARIAS DA CONCEIÇÃO: OUTRAS E TANTOS OUTROS .............................. 58
OS ADEPTOS DE JUCA ROSA ............................................................................... 85
UM MACRÓBIO FEITICEIRO ................................................................................ 92
CAPÍTULO III: UMA CIDADE CIVILIZADA, MAS CHEIA DE MISTÉRIOS:
PEQUENAS ÁFRICAS CARIOCAS .......................................................................... 105
NOVOS HABITANTES CONQUISTAM ESPAÇO .............................................. 109
A PEQUENA ÁFRICA DE SUA MAGESTADE ABEDÉ..................................... 119
A MAGIA DOS ALUFÁS NO RIO DE JANEIRO ................................................ 139
OUTRAS PEQUENAS ÁFRICAS CARIOCAS: OS HERDEIROS DE TIA
CHIMBA .................................................................................................................. 154
CAPITULO IV – A VELHA CIDADE NOVA: DOS QUILOMBOS, CORTIÇOS E
MUITOS MORADORES. ........................................................................................... 178
DOS QUILOMBOS AOS CORTIÇOS ................................................................... 184
CENÁRIOS E VIVÊNCIAS: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO ................. 198
DE TODAS AS REGIÕES PARA O DISTRITO FEDERAL ................................. 208
CAPÍTULO V- O REI DO CONGO CHEGOU ......................................................... 228
IDENTIDADES: CONSTRUÍDAS - RECONSTRUÍDAS ..................................... 230
O OMOLOCÔ E AS TRADIÇÕES REIVENTADAS ............................................ 238
A CABULA NAS ORIGENS DO OMOLOCÔ ..................................................... 252
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 264
FONTES DOCUMENTAIS ......................................................................................... 269
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 273

2
INTRODUÇÃO

Na cidade do Rio de Janeiro, convivia, nas últimas décadas oitocentistas e no


início do século XX, uma grande variedade de religiões de diferentes matrizes, cristãs e
não cristãs. Entretanto, o objetivo deste estudo são as tradições identificadas como de
origem africana e, por conseguinte, a complexidade religiosa das comunidades negras
cariocas, entre 1870 e 1940. Desse modo, algumas indagações norteiam este estudo:
Quais foram as crenças dos africanos e seus descendentes que conviveram nessa cidade?
Como essas tradições foram reinventadas, originando novos cultos praticados por
antigos e novos moradores da cidade do Rio de Janeiro? Como ocorreram as
perseguições, a partir de uma ótica preconceituosa e repressiva, contra essas
religiosidades?
Como interpreta Certeau,1 a cultura é criada no cotidiano, renovando-se em suas
práticas diárias, como um meio de resistência à dominação. As diferentes comunidades
humanas externam suas visões do mundo através de suas expressões culturais e,
portanto, ao criticá-las e coibi-las, concretiza-se a própria crítica àqueles que as
produziram. Assim, as vivências transportadas pelos africanos ou reinventadas por seus
descendentes – em um gradativo processo de adaptação/ressignificação/associação –
externavam elementos dissociados dos valores sociais que se impunham à nação
modernizada, e, ainda assim, firmaram-se no Rio de Janeiro. Nesse contexto, o “olhar”
sobre as religiosidades de matrizes “africano-cariocas” se define aqui a partir de dois
pressupostos, expostos a seguir.
Um primeiro diz respeito à ideia de que a feitiçaria era um instrumento de poder,
dando aos que a dominassem um caráter especial. De acordo com Evans Pritchard, em
seu estudo sobre os azande, feitiçaria é a execução consciente de rituais com o uso de
objetos, como plantas e ossos, para alcançar determinado objetivo. O autor define o
feiticeiro como aquele que “possui drogas maléficas e as emprega em ritos de
feitiçaria”.2 Para Yvonne Maggie,3 no período do Brasil Republicano até 1940,
predominou o conceito de feitiçaria como poder da magia maléfica. Aquele que era
identificado como feiticeiro era temido por pessoas de diferentes condições sociais.

1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 18ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998. pp.97-102
2
EVANS-PRITCHARD, Edward E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar,
2005. p.231
3
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992.

3
Porém, seu conhecimento sobre o acesso ao sobrenatural era um forte atrativo para
aqueles que buscavam seus auxílios e a chave para o seu poder.
O segundo pressuposto consiste em perceber que os iniciados nos cultos afro-
brasileiros disputavam forças, evocando uma maior “pureza africana” como forma de
legitimá-los. Sendo assim, procurei identificar as comunidades4 formadas por escravos
e negros livres – líderes ou adeptos – e suas experiências5 religiosas. Através das
reconstruções de trajetórias dos praticantes, foi possível observar que o exercício da
religiosidade dos africanos e seus descendentes não ficou restrito à “Pequena África”6,
mas estava presente em vários pontos da cidade, inclusive opondo-se aos “ricos
feiticeiros”, como denunciou Pedro Gonzaga, em seu depoimento, que consta no
terceiro capítulo deste estudo. Desse modo, foi possível compreender como se
estabeleceu essa região na área central da capital do Império e da nascente República,
consolidada através da divulgação de uma suposta “superioridade” dos “minas-
baianos”, em detrimento de cultos praticados por africanos centrais e seus descendentes.
Contudo, no decorrer da pesquisa, todas as fontes consultadas comprovavam o
argumento de que tradições religiosas da África Central, presentes há muito no Rio de
Janeiro, sobreviveram – reiventadas/recriadas – absorvendo outras religiosidades e
engendrando novos cultos.7

4
É relevante esclarecer que o conceito de comunidade está sendo utilizado conforme apresentado por
Bauman que, embora aplicada em um contexto mais recente, permite uma reflexão sobre o tema que
apresento: “Não é só a “dura realidade”, a realidade declaradamente “não comunitária” ou até mesmo
hostil à comunidade, que difere daquela comunidade imaginária que produz uma “sensação de
aconchego”. Essa diferença apenas estimula a nossa imaginação a andar mais rápido e torna a
comunidade imaginada ainda mais atraente. A comunidade imaginada (postulada, sonhada) se alimenta
dessa diferença e nela viceja. O que cria um problema para essa clara imagem é outra diferença: a
diferença que existe entre a comunidade de nossos sonhos e a “comunidade realmente existente”: uma
coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, o sonho realizado, e (em nome de todo o bem que
se supõe que essa comunidade oferece) exige lealdade incondicional e trata tudo o que ficar aquém de tal
lealdade como um ato de imperdoável traição. BAUMAN, Zygm. Comunidade: a busca por segurança no
mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.9
5
BAUMAN diferencia a “experiência” – “o que acontece comigo ao interagir com o mundo” – da
“vivência” – “o que eu vivencio no curso desse encontro”. Para o autor, nos relatos das experiências
“ouvimos falar de eventos interpessoalmente verificáveis chamados ‘fatos’; os conteúdos do segundo tipo
de relatos não são interpessoalmente verificáveis – as crenças relatadas pelo ator são, por assim dizer, as
definitivas (e únicas) ‘verdades’”. BAUMAN, Zygmunt. Para que serve a sociologia? Rio de Janeiro,
Zahar, 2015, p.18.
6
Segundo Nei Lopes, a “Pequena África” era um “espaço sociocultural que se estendia da Pedra do Sal,
no morro da Conceição, nas cercanias da atual Praça Mauá, até a Cidade Nova, na vizinhança do
Sambódromo, hoje”. LOPES, Nei. A presença africana na música popular brasileira. In: Da Costa
Africana à Costa Brasileira. Educação em Linha, Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro,
Ano IV, nº 12, abril-junho de 2010,p 32-35, p 33
7
Na realização deste estudo, através das fontes, busquei as casas de cultos e suas lideranças para mostrar
o redimensionamento do panorama da religiosidade de matriz africana, no Rio de Janeiro, entre 1870 e
1940. Porém, é importante observar que, embora se tenha procurado seguir uma ordem cronológica na
análise, isso nem sempre foi possível, uma vez que, representando tradições e territórios diferentes,

4
Ainda no período monárquico, quando a religião oficial era a Católica
Apostólica Romana, eram constitucionalmente permitidas outras crenças, desde que
realizadas em recintos fechados.8 Apesar disso as,invasões aos seus espaços de culto
continuavam acontecendo e eram parte do controle dos escravizados. No século XIX, a
escravaria estava inserida nas principais discussões no Brasil imperial, nas quais
aparecia uma posição preconceituosa em relação ao negro e suas práticas. Desse modo,
pude observar que, em períodos específicos, aumentava a intolerância aos cultos desse
tipo na cidade, quando havia perseguições mais acentuadas e se intensificava a
campanha repressiva. No fim do tráfico transatlântico, os negros, especialmente os
africanos recém-chegados, eram acusados pela introdução de doenças, como o surto de
cólera na segunda metade do século XIX. Mais tarde, no período pré-abolição, surgiu
um discurso sobre as ameaças que representavam para a “sociedade brasileira” esse
contingente negro. Durante as discussões sobre as leis que objetivavam o fim do regime
escravista, como a Lei do Ventre Livre, Sexagenários, lei do fim do açoite9 e a Lei da
Abolição, houve um recrudescimento da visão preconceituosa contra o negro. Havia um
clima extremamente tenso, que permeava a sociedade, em relação ao elevado índice de
negros no território nacional e, por conseguinte, de sua cultura e religiosidade. Esse
quadro não foi alterado com o advento da República, pelo contrário.
A mudança para o regime republicano, um estado laico e liberal, estabeleceu
constitucionalmente a liberdade religiosa. Portanto, como se poderia justificar a
intolerância e perseguição aos cultos de matrizes africanas? Era necessário criminalizá-
las. O combate ao charlatanismo – como abuso à credulidade pública – e o
curandeirismo – prática de “medicina ilegal” – foram os subterfúgios estabelecidos pelo
Código Penal de 1890. Assim, seria “dever” do Estado coibir essas práticas “maléficas”
ao povo brasileiro. Sevcenko, analisando as primeiras décadas do período republicano,
enfatiza que “não se hesitava em invadir o espaço sagrado dos terreiros de cerimoniais
de tradição africana, prender e espancar oficiantes e fiéis, sequestrar e destruir

muitos dos líderes foram contemporâneos, e alguns tiveram um período de atuação bastante prolongado
como, por exemplo, Cypriano Abedé, com quase quarenta anos de exercício religioso no cenário carioca

8
A Constituição Imperial estabelecia, em seu Art. 5, que “Todas as outras Religiões serão permitidas
com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do
Templo”.

9
Pela Lei nº 3310 de 15 de outubro de 1886 proibia-se o açoite mas, na prática, esse continuou a ser
usado. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-1899/lei-3310-15-outubro-1886-
543161-publicacaooriginal-53172-pl.html . Acesso em 13.07.2015

5
instrumentos e objetos religiosos”.10 Nas primeiras décadas republicanas, as medidas
“saneadoras” envolviam o controle da população negra e pobre, assim como,
anteriormente, durante o cativeiro, esse controle fora exercido pelo senhor.
Outro ponto a se considerar, no período estudado, são as inúmeras
transformações, especialmente do espaço urbano, que exerceram uma forte atração para
aqueles que buscavam trabalho nos canteiros de obras, nas atividades ferroviárias,
comerciais e industriais, na capital da nascente República. As reformas por que passava
o Distrito Federal impulsionavam a corrente migratória – formada, especialmente, por
ex-cativos de diferentes localidades do território brasileiro, inclusive do interior
fluminense. Essa migração marcou, de forma especial, o cenário religioso carioca, no
qual antigas e novas lideranças disputavam espaço para a consolidação de suas
expressões religiosas.
As mudanças urbanísticas, projetadas para o Rio de Janeiro, atingiram locais
que, na área central, era ocupado pelos negros – especialmente os cortiços e os morros –
considerados redutos de “feiticeiros”, embora os subúrbios não tenham sido territórios
imunes à repressão. Essa atitute liderada pelos setores dominantes não significava
apenas uma modernização do espaço urbano, mas a dificuldade em lidar com uma
população que não estava plenamente inserida no projeto de nação que se elaborava
para o Brasil. As práticas culturais, especialmente as religiosas, foram objeto de ação
policial, principalmente nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX,
quando cresceram as perseguições às casas de cultos. A repressão era oficial e divulgada
por orgãos da imprensa, que denunciavam e cobravam mais rigor da polícia,
legitimando o uso dos periódicos como fundamentais fontes de pesquisa. A atuação dos
jornais carioca se mostrou reveladora. Comparando diferentes artigos, podemos
identificar como foi gerenciado, no pré e pós-abolição, um projeto que disseminava o
medo em relação à população negra, fosse através do combate aos quilombos,
destacando notícias sobre acontecimentos no interior da província – como assassinatos
de senhores e feitores—, ou as perseguições aos zungus e, principalmente, o que era
considerado como “prática de feitiçaria”.11

10
SEVCENKO, Nicolau. Introdução In. O prelúdio republicano, astúcias de ordem e ilusões de
progresso. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 7-48. (Coleção História da Vida Privada no Brasil.
Vol.3: República: da Belle Époque à era do rádio), p.30.
11
Segundo Giumbelli, foi estabelecida uma contraposição entre “baixo espiritismo”— práticas de
feitiçaria e curandeirismo— e “alto espiritismo”— o Kardecismo: “O Código Penal, juntamente com
regulamentações sanitárias e policiais, fundamentou ações que atingiram sobretudo cultos que, por suas
referências africanas, eram identificados como claramente “mágicos”, em um sentido que se traduzia em

6
Na minha busca aos “feiticeiros”, essas fontes foram indispensáveis para o
mapeamento e conhecimento do cotidiano religioso da cidade, desde sede da Corte
imperial à capital da República. Joaquim Nabuco, falando sobre o contexto da
escravidão, afirmou:
quem chega ao Brasil e abre nossos jornais encontra logo uma fotografia da
escravidão atual, mais verdadeira que qualquer pintura. Se o Brasil fosse
destruído por um cataclismo, um só número, ao acaso, de qualquer dos
grandes órgãos da imprensa, bastaria para conservar para sempre as feições e
os caracteres da escravidão, tal qual existe em nosso tempo. Não seriam
precisos outros documentos para o historiador restaurá-la e segui-la em todas
as suas influências. 12

Nabuco concluiu que os jornais eram fontes relevantes sobre a escravidão.


Dependendo da linha editorial do jornal, podemos encontrar desde anúncios publicados
pelos senhores sobre a fuga dos cativos até matérias veementes contra o escravismo. Na
época, a imprensa ligada à campanha abolicionista foi de grande importância, inclusive
para alertar os escravos sobre as leis que os beneficiavam. Em 1885, durante a
promulgação da Lei dos Sexagenários, muitos que atingiam a idade estabelecida pela lei
permaneciam, na prática, escravizados. Os periódicos publicavam relações daqueles
beneficiados pela lei ou denunciavam e conclamavam “à Imprensa abolicionista e a
todos os homens de coração o favor de fazer constar aos escravisados que, desde 28 de
setembro de 1885, tem direito a salário como qualquer operário perfeitamente livre”.13
Entretanto, os periódicos também destacavam a preocupação com a grande
concentração de escravos na cidade. Nas primeiras décadas da República, muitos jornais
apresentavam matérias preconceituosas em relação à população negra e sua cultura.
Considero importante ressaltar que este estudo está centrado no entendimento da
história como um aprendizado das práticas culturais de um determinado grupo e suas
relações com o contexto histórico no qual ele se insere. Assim, para analisarmos as
“religiosidades negras”, há que se considerar o fato de elas terem sido empurradas para
a clandestinidade, como destaca João José Reis, pela “própria natureza secreta de muitos

“selvageria” e “feitiçaria” Mas, ao menos na capital da República, foram os espíritas, cujas práticas
mediúnicas estavam orientadas pela obras de Allan Kardec, os que se destacaram na reação ao que viam
como uma contradição entre o Código Penal de 1890 e a Constituição de 1891.” Ainda segundo o autor,
A resposta dos porta-vozes espíritas aos ataques – em defesas judiciais, em manifestações na imprensa –
enfatizou o enquadramento de suas práticas à noção de “religião”. Para tanto, a categoria “caridade” foi
crucial.” GIUMBELLI, Emerson. "A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil".
In: Religião e Sociedade, v.28, n.2. Rio de Janeiro: ISER, 2008.pp. 80- 101p84
12
NABUCO, Joaquim. O abolicionista. Brasília: Senado Federal, 2003. p. 115 Disponível em:
<http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/1078>. Acesso em 19 de novembro de 2014.
13
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1885, p.3

7
dos seus rituais [que] reduziram sua visibilidade”.14 Segundo esse autor, durante a
escravidão e após sua extinção, “as expressões religiosas negras foram descritas por
escrivãos de polícia”.15 Para ele, as narrativas de autoridades eclesiásticas e civis sobre
as invasões de terreiros, preocupadas em combater a “feitiçaria” e a subversão dos
costumes, e de viajantes estrangeiros, ávidos pelo exótico, poderiam conter “distorções
e preconceitos marcantes”.16 Entretanto, o autor considera que não usar fontes desse tipo
tornaria quase impossível estudar inúmeros aspectos das camadas populares,
especialmente, daqueles setores quase absolutamente à margem das culturas escritas e
completa: “Obviamente, era esse o caso dos escravos e libertos africanos no Brasil
escravista, com poucas exceções”.17 Provavelmente, na segunda metade do século XIX,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro, essa exclusão da população negra às letras
começava a se modificar, e o acesso às informações poderia ser facilitado pelas redes de
socialização, como irmandades religiosas e associações.
No Brasil, as mudanças ocorridas, na segunda metade do século XIX e início do
século XX, refletiram-se na imprensa, inclusive possibilitando uma maior circulação de
informações: “Consagrava-se a ideia de que o jornal cumpre a nobre função de informar
ao leitor o que passou, respeitando rigorosamente a ‘verdade dos fatos’”.18 Por outro
lado, cabe ao pesquisador observar que trabalha com o que se tornou notícia, “o que por
si só abarca um espectro de questões, pois será preciso dar conta das motivações que
levaram à decisão de dar publicidade a alguma coisa”.19
Os relatos da Gazeta do Rio de Janeiro, Diário do Povo, Diário do Rio de
Janeiro, Cidade do Rio, O Globo, entre outros, registraram a ação policial contra os
cultos afro-brasileiros, e, através dessas leituras, pode-se compreender como a
sociedade era informada sobre as perseguições. Também através das matérias dos
jornais, foi possível mapear a ocupação religiosa afro-brasileira da cidade, entre os
séculos XIX e XX. Para isso, foram igualmente importantes os textos de João do Rio,
mesmo impregnados de uma visão preconceituosa em relação aos negros e suas

14
REIS, João José. Magia jeje na Bahia: a invasão do Calundu do Pasto de Cachoeira, 1795. Revista
Brasileira de História, n. 16, p. 57-81, 1988.
15
Idem, ibidem, p.57
16
Idem, ibidem, p.58
17
Idem , ibidem, p.58.
18
LUCA, Tânia Regina, História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi.
Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 111-153. p.138
19
Idem, ibidem, p. 140

8
práticas, e as matérias de Francisco Guimarães, o Vagalume, extremamente
interessantes no que diz respeito a aspectos da cidade relacionados à população negra.20
Para Cardoso e Vainfas, a análise de um texto implica no pressuposto essencial
de que um documento é sempre portador de um discurso que, assim considerado, não
pode ser visto como algo transparente.21 Portanto, ao usar periódicos como fonte, faz-se
necessário identificar aspectos como: a que tipo de público se destinava e o que
determinava desde sua configuração gráfica até o tipo de linguagem das matérias, sem
deixar de observar o discurso expresso. A ênfase em certos temas, a linguagem e a
natureza do conteúdo tampouco se dissociam do público que esse tipo de texto pretende
atingir. Ao investigar os jornais publicados no Rio de Janeiro, no período estudado, foi
fundamental a consciência, como enfatizou Liliam Schwarcz,22de que o final do século
XIX foi o período de formação da grande imprensa nacional, inserida no debate do
projeto de nação que se implantava. Em uma sociedade que se organizava sob o lema de
“Ordem e Progresso”, parte da imprensa, grande divulgadora da ideologia dessa
sociedade que se pretendia civilizada, mostrava os cultos afro-brasileiros como uma
“barbárie” a ser extirpada e propagandeava a ação dos órgãos repressores como uma
“cruzada” pela “limpeza” da nação.23 Sendo assim, ao optar por utilizar as matérias
jornalísticas como fonte, não pude deixar de levar em consideração que elas, via-de-
regra, reproduziam o discurso das camadas dominantes, de quem eram porta-vozes, e
que seus conceitos sobre o universo religioso que não fosse o “oficial” eram encarados
como, no mínimo, superstição. Segundo Silvana Louzada, no início do século XX, “o
Distrito Federal é polo irradiador de cultura, dita moda para toda a nação e sintetiza o

20
VER: GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Tipografia São Benedicto, 1933.
Guimarães escreveu, na década de 1930, artigos no jornal A Critica.
21
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. História e análise de textos. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de
Janeiro: Campus, 1997. p. 375-399. p.377
22
SCHWARCZ, Lilian. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
23
É importante considerarmos que a Constituição Brasileira de 1891, no artigo 72, estabelecia que todos
os indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer pública e livremente seus cultos. Porém, o Código
Penal de 1890, com algumas modificações, vigorou até 1940, estabelecendo como crime contra a saúde
pública “ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob
qualquer forma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o
oficio do denominado curandeiro”. Desse modo, a legislação brasileira atingia frontalmente as práticas
das religiosidades afro-brasileiras. Na implementação dessas medidas, foi determinante a atuação das
associações médicas — especialmente a Academia Nacional de Medicina e a Sociedade de Medicina e
Cirurgia do Rio de Janeiro —, que relacionavam determinadas práticas, como o uso de ervas, a
charlatanismo e engano da credulidade pública.

9
Brasil, não apenas para o “estrangeiro”, mas para o próprio país”.24 Desse modo,
podemos concluir que, nesse processo de modernização, alguns periódicos poderiam
estar alinhados com a política de extirpar tudo que fosse inadequado à “civilização”.
Assim é que, no decorrer das pesquisas nos periódicos, foi possível identificar,
nas notícias geralmente associadas à repressão, elementos que explicitavam as
religiosidades dos africanos e seus descendentes. Por outro lado, é perceptível a
existência de um padrão repetido nos textos jornalísticos. O uso constante de
determinados termos como, por exemplo, referir-se aos espaços religiosos como “antros
de feitiçaria”, dando-lhes, desse modo, uma conotação de lugares sujos, não só
fisicamente, mas também moralmente. Ao usar a nomenclatura “antro”, já se explicitava
o local como casa ou lugar de perdição e vícios, abismo: os antros do crime.
Por outro lado, na pesquisa nos jornais, procurei avaliar possíveis artigos
enviados pelos praticantes, como o caso de uma carta publicada pelo “feiticeiro” Juca
Rosa ou a de um amigo de Cypriano Abedé, que expressavam sua revolta contra artigos
que insultavam os dois líderes religiosos. Do mesmo modo, anúncios publicados por
praticantes e pelas irmandades religiosas foram consultados e cruzados com outras
fontes como: livros da Casa de Correção, processos criminais, relatórios de presidentes
de províncias, Diário Oficial da União e registros de óbitos. Foi possível, através desse
método, por exemplo, rastreando os anúncios feitos por Cipriano Abedé, determinar sua
trajetória e localizar, no Diário Oficial da União, de 1913, o Estatuto do Culto Africano,
documento inédito para a historiografia.25
Embora os jornais tenham se revelado adequados para identificar quais eram os
homens e mulheres que atuavam nos diferentes espaços religiosos negros cariocas,
fornecendo nomes e áreas de atuação, outras fontes foram fundamentais para a
compreensão do quadro em que essas religiosidades se desenvolveram. A vasta
documentação do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro aprofundou o
conhecimento sobre as condições das habitações coletivas, os cortiços, que não raro
eram usados como espaços religiosos. Em outras instituições, como o Arquivo Nacional
e o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, foram pesquisados documentos que
permitiram um aprofundamento de situações cotidianas das religiosidades negras. No
Arquivo Nacional, localizei processos relevantes, envolvendo alguns “feiticeiros”.

24
LOUZADA, Silvana. Fotografia e modernidade - a imprensa carioca na primeira metade do século
XX. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. n. 4, p. 67-79, 2010, p.68.
25
No Capítulo III, p. 158, apresento o texto integral publicado por Abedé no Diário Oficial da União.

10
Igualmente importante foi o acervo do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação
de Cantagalo (CMPD-CAN).
Nas primeiras décadas do século XX, os estudos sobre a diáspora africana e os
afrodescendentes adotavam uma perspectiva acentuadamente etnográfica. Por
conseguinte, essas investigações foram consideradas como fontes instigantes. Nina
Rodrigues26 concentrou sua análise na questão racial que, embora ainda marcada por
interpretações preconceituosas, apresentou um importante levantamento de dados que
mostraram caminhos para posteriores observações. As conclusões de Rodrigues
enfatizavam a percepção de uma “superioridade nagô”. Artur Ramos,27com vasto
trabalho sobre o tema, também defendeu a superioridade da cultura proveniente da
África Ocidental. A consulta a seu acervo, conservado na Biblioteca Nacional, foi
indispensável para a elucidação de vários pontos. Igualmente importantes foram as
pesquisas de Edson Carneiro.28 A esses intelectuais, é creditada a divulgação de uma
“superioridade nagô- yorubá” sobre os demais cultos afro-brasileiros.
Ainda para a compreensão da introdução das práticas religiosas de africanos e
seus descendentes no Rio de Janeiro, constituíram fontes essenciais os livros publicados
por Agenor Miranda da Rocha e Tancredo da Silva Pinto. Nos textos desse último autor,
identifiquei a tentativa de enfatizar o aspecto da “pureza africana” do omolocô, que
refletiria uma resposta à pretensa superioridade do candomblé baiano, apontado como
de matriz “essencialmente africana”. De acordo com Tancredo da Silva Pinto,29 o
omolocô se desenvolveu no Rio de Janeiro, mas era originário do sul de Angola, onde
era praticado pelos lunda-quiôco, grupo que vivia, segundo ele, próximo às margens do
rio Zambeze. A origem do culto se relacionava à realização de rituais, por sacerdotes
africanos, em noites de lua cheia, em matas e rios.
Por outro lado, é relevante observar que, nos estudos sobre os cultos afro-
brasileiros, um tema que possibilitou amplos debates foi a sua identificação como
“feitiçaria”. Yvonne Maggie, em Medo do feitiço: relações entre magia e poder no
Brasil30, avalia a crença em feitiços como um aspecto determinante no imaginário
religioso brasileiro; por outro lado, a autora sinaliza que o regime republicano
26
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Editora Nacional; Editora da Universidade de
Brasília, [1932]1982.
27
RAMOS, Artur. O negro brasileiro:etnografia religiosa e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1934.
28
CARNEIRO, Edson. Negros bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.
29
PINTO, Tancredo da Silva. As origens da Umbanda. Rio de Janeiro, Ed.Espiritualista, 1970,p.10
30
MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992.

11
consolidou uma série de medidas legais objetivando o controle da “feitiçaria” e que
diferentes religiosidades brasileiras apresentavam como característica o “medo do
feitiço”.
Os trabalhos Yvonne Maggie e Gabriela Sampaio apontam componentes
consideráveis para a compreensão dos cultos de matrizes africanas e as perseguições às
suas práticas.31 Gabriela Sampaio fez uma análise minuciosa sobre o Sebastião José
Rosa, “o Feiticeiro Juca Rosa”, acusado no Rio de Janeiro de “estelionato” na segunda
metade do século XIX. Os estudos dessa autora abordam, além da questão da
“feitiçaria”, elementos relacionados às origens do culto praticado pelo acusado: “a partir
da história de Juca Rosa, chegaremos às influências de elementos culturais da África
centro-ocidental em práticas religiosas do Brasil, que sobrevivem até hoje com muita
força na cultura brasileira”.32 Essa afirmação de Sampaio está em conformidade com a
tese que defendo: apesar da projeção dos “cultos yorubás”, trazidos pelos “baianos”
para o Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do século XIX, permanecia
entranhada na cidade, a tradição “congo-angola”. Essa tradição, mesmo mesclada com
outras influências, como a cabula33 praticada no Espírito Santo, foi a base para o
desenvolvimento, no século XX, de outras religiosidades cariocas, como a macumba e o

31
A bibliografia sobre os cultos de matrizes africanas é muito extensa, inserindo trabalhos como os de
Pierre Verger, Roger Bastide, Vivaldo Lima, que discutiram elementos fundamentais para a compreensão
da introdução e prática desses cultos. Contudo, uma recente bibliografia vem analisando a inserção dos
diferentes grupos étnicos no sistema escravista. Ver KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de
Janeiro (1808-1850) .São Paulo, Companhia das Letras, 2000; SLENES, Robert W. Na senzala uma flor:
esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999; GOMES, Flávio. A hidra dos pântanos: mocambos e quilombos no Brasil
escravista. São Paulo: Editora da UNESP; Polis, 2005; SOARES, Mariza. Devotos da cor: identidade
étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Record, 2000;
MATORY, J. Lorand Black Atlantic Religion: Tradition, transnationalism, and matriarchy in the
AfroBrazilian Candomble. Princeton, NJ/Oxford: Princeton University Press, 2005; CHALHOUB,
Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo:
Companhia das Letras 2000; REIS, J. J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; SOARES, Luiz Carlos. O 'povo de Cam' na capital
do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj; 7Letras, 2007;
MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996;
ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,1830-1900.
Rio de Janeiro; São Paulo: Nova Fronteira; FAPESP, 1999; PARES, L. N.. A formação do candomblé:
história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. v. 1; LIBANO, Carlos
Eugenio. Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro,
1998.
32
SAMPAIO, G. R. A história do feiticeiro Juca Rosa: matrizes culturais da África subsaariana em rituais
religiosos brasileiros do século XIX. Porto, 2002. Seminário Internacional Multiculturalismo, Poderes e
Etnicidades na África Subsaariana, 4. Atas... Porto: Centro de Estudos Africanos; Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Porto, 2002. v. IV. p.105-119. p.105
33
A Cabula é uma manifestação religiosa afro-brasileira descrita, pela primeira vez, por D. João Batista
Corrêa Nery, quando, no final do século XIX, era bispo da diocese do Espírito Santo. O bispo discorre
sobre uma seita, praticada por ex-escravos, semelhante ao espiritismo, em que os adeptos acreditavam que
encarnavam espíritos. Retornarei a esse assunto no capítulo IV.

12
omolocô. As culturas de africanos e seus descendentes brasileiros — biológicos ou
adeptos — e suas crenças não ficaram “impermeáveis” entre si. As proximidades
impostas aos praticantes pelo cativeiro e pelo pós-abolição foram importantes para que
essas influências ocorressem.
Os homens e mulheres africanos e seus descendentes que habitaram o Rio de
Janeiro, no final do século XIX e início do século XX, traziam em seus “corações e
mentes” valores culturais herdados de suas experiências étnicas, reelaboradas e
reinventadas, mas verdadeiramente suas e nas quais a África era um elemento
primordial. Nessas reinvenções, a ligação do sacerdote com o sobrenatural lhe conferia
poder sobre seus iniciados; esse aspecto, existente entre as diferentes etnias na África,
esteve também presente no Brasil durante o período escravista e no pós-abolição.
Assim, no primeiro capítulo, será analisada a magia como um elemento de
superioridade, destacando de que forma esse “poder simbólico”, a partir do conceito
desenvolvido por Bourdieu34, pode ser aplicado em relação aos cultos praticados no Rio
de Janeiro. A sociedade brasileira, dos senhores de escravos até os políticos
republicanos, mantinha certo fascínio pela “magia africana”, exercida pelos
“feiticeiros”, “curandeiros” e “pais de santo”; para isso, contribuíram as maneiras como
os praticantes usaram a ideia de pureza das suas crenças, ao afirmarem uma maior
proximidade com a “África Mítica”.
O Rio de Janeiro, no século XIX, era uma “cidade negra”, com um imenso
contingente populacional, formado por escravos, africanos ou crioulos, negros livres e
pardos, que conviviam, mantendo suas práticas religiosas e influenciando a cultura
local. Portanto, no segundo capítulo, será discutida a variedade religiosa da população
negra carioca e suas áreas de atuação no mapa urbano. Também será analisado como
persistiu a “procura/rejeição” aos ritos “negros”, mesmo com as constantes consultas
aos “feiticeiros”.
O terceiro capítulo apresenta a formação de uma pretensa superioridade
religiosa, por parte dos “baianos”, no espaço que ocupavam no centro do Rio de Janeiro,
como sendo resultado da transmigração da África para a capital brasileira. Em meio à
repressão policial às seitas africanas, o grupo de “minas-baianos” foi capaz de uma forte
articulação, que fez com que o “candomblé nagô” ocupasse o status de maior
representante das religiosidades de matriz africana no país. Através de grandes líderes

34
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ªed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999.

13
religiosos, especialmente Cypriano Abedé, e de uma articulação com diferentes
segmentos culturais, essa ideia se solidificou. No entanto, outras “Pequenas Áfricas
Cariocas” existiam em vários pontos da cidade.
Nas primeiras décadas da República, uma grande parte da população negra
visualizou o Distrito Federal como a possibilidade de alcançar uma vida melhor. Esses
grupos buscaram maneiras de se incorporar à vida da cidade e, na maioria dos casos, as
religiosidades foram fundamentais no relacionamento com outras vivências religiosas
aqui encontradas. A inserção desses migrantes e suas relações com antigos moradores é
o tema do quarto capítulo.
O capítulo V analisa a trajetória do Tata Tancredo da Silva Pinto e a forte
influência familiar, de origem “bantu”, vivenciada em Cantagalo, no noroeste
fluminense, e determinante para a formação cultural do futuro líder religioso. Nas
primeiras décadas do século XX, Tancredo, com sua família, chegou ao Distrito
Federal, passando a conviver com outras religiosidades “africanas”. Na cidade do Rio
de Janeiro, as antigas tradições dos africanos centrais, entranhadas na memória local,
mescladas com outras crenças, especialmente as introduzidas na Capital Federal por
outros migrantes, foram reinventadas e agregadas na construção/legitimação de cultos
surgidos no século XX, especialmente o omolocô.

14
CAPÍTULO I: FEITIÇOS E PODERES

Consideramos que a invenção das tradições é essencialmente um


processo de formalização e ritualização, caracterizado por
referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da
repetição.
Eric Hobsbawm

Em agosto de 1929, Manoel Alves Cherubim enfrentou a invasão de sua casa, na


rua Curupaity 147, no Engenho de Dentro.35 Os relatos jornalísticos afirmavam que,
além de praticar bruxaria e “candomblés”, o “Pae Echú” era também um refinado “Dom
Juan”. Cherubim não saiu ileso da acusação de “feitiçaria” e, na 4ª Vara Criminal, foi
processado por prática de falso espiritismo e exercício ilegal de medicina.36 Manoel
Alves Cherubim é um exemplo clássico de como foram reinventadas as tradições
africanas no Rio de Janeiro: apesar de incorporar um espírito denominado Djalma –
associando tradições dos africanos centrais e kardecismo – o sacerdote era conhecido
como “Pae echu”, que, como destacado pelos peritos da comissão nomeada pela polícia
para dar um parecer sobre o caso, era um deus de religião africana, denominada
“nagô”.37 O próprio Cherubim, em depoimentos que fez aos jornais, afirmava: “Meu
santo é nagô!”.
Cherubim, assim como outros “feiticeiros”, construiu seu poder identificando-se
como um legítimo representante de uma suposta religiosidade africana. Desse modo,
considero imprescindível demonstrar como líderes, adeptos e praticantes tentaram
construir símbolos em torno de uma África Mítica. Não importava o quanto essa
suposta “pureza” fosse real, mas, sim, como os diferentes grupos ressemantizavam tal
continuidade africana ou aquilo que assim consideravam. Uma certa referência à África
pode ter servido como suportes a determinados sacerdotes de diferentes cultos afro-
brasileiros, como um elemento-chave na afirmação da força religiosa.
Hobsbawm38 argumentou sobre “tradição inventada”, no sentido de criação de
um passado com o qual se busca estabelecer uma continuidade. Considerando essa
definição, é possível também compreender como diferentes grupos religiosos, ao longo
do tempo e em diversas situações, podem ter construído e operado com variadas ideias

35
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1929, p.6
36
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1930, p.4
37
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1929, p.6
38
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

15
de pureza em relação a suas origens africanas. Segundo Bourdieu, o poder simbólico
representaria algo quase mágico e que possibilitaria conseguir o que se pretende, sem
coação ou qualquer outro tipo de força. Por outro lado, para ser exercido, era preciso
que seu detentor tivesse o reconhecimento dos adeptos para detê-lo.39
No Rio de Janeiro, para os chamados “feiticeiros”, um dado poder era
legitimado pela sua ligação com o sobrenatural e com a magia africana. Exemplos dessa
necessidade aparecem em anúncios publicados na Gazeta de Notícias e no Correio da
Manhã. Em 1914, o baiano Cypriano Abedé, que se tornou como um dos mais
importantes líderes religiosos cariocas, nas primeiras décadas do século XX, era assim
apresentado:
Sciencias Occultas
Pratica do fetichismo segundo o rito dos habitantes da Africa, consultas pelo
ministro africano Cypriano Abedé, à rua Marques Leão n. 53 Engenho Novo,
em frente a estação, as terças, quintas e sabbados, das 2 às 7 da tarde,
executando todo e qualquer trabalho à luz da verdade como sejam: paz no lar,
reconciliações, prediz o presente, passado e futuro, com a presença da pessoa,
ou por carta com os necessários esclarecimentos, inclusive residencia, nome
do consulente. Possue diversos talismans vindo há pouco da África, além de
outros produtos.
N.B. É o unico africano “Olossan” diplomado que existe nesta capital.
Rio de Janeiro, 29 de julho de 1914.
Cypriano Abedé. 40

Ao se identificar como africano e possuidor de talismãs vindos da África, Abedé


procurava legitimar e valorizar o seu poder de sacerdote. A ligação com o sobrenatural
conferia prestígio, e os sacerdotes eram a chave para o mundo oculto e, portanto,
possuidores de um dom; era através deles que as demais pessoas teriam acesso ao
sobrenatural, e os espíritos eram invocados nas cabeças de seus “filhos de santo”.
Podiam também enfeitiçar: eram temidos e sedutores. Estar ligado a determinados
feiticeiros poderia significar proteção, poder e privilégios. Abedé é um modelo de como
essa associação entre poder/magia africana estavam ligados no imaginário religioso
carioca. Agenor Miranda Rocha relata que ele transmutava objetos e, como todo
babalossãe41 autêntico, podia transformar uma folha em outra. Ainda segundo Agenor, o
mais impressionante era o assentamento do Ossãe de Abedé, que, por vezes, falava

39
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ªed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999
40
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1 de agosto, de 1914, p. 9.
41
O babalossãe é o sacerdote de Ossãe, orixá das folhas e grande conhecedor das ervas e seus usos.Os
orixás são divindades da religião iorubana. Segundo Câmara Cascudo, eles simbolizam as forças naturais:
“residem na Costa da África e, atraídos pelo cântico e ritmo dos tambores em sua honra, encarnan-se,
apossam-se dos seus instrumentos vivos, médiuns, cavalos, intérpretes” CASCUDO, Câmara. Dicionário
do Folclore Brasileiro, 10ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p.645

16
como se fosse uma pessoa viva. “Em algumas ocasiões, bastava que a pessoa chegasse
perto do assentamento, e Ossãe se punha a falar, revelando fatos da vida da pessoa”.42
A crença de que um “feiticeiro” tinha acesso ao sobrenatural, a algo que as
demais pessoas não possuíam, era a chave de seu poder. Como destacou Bourdieu, o
estabelecimento de um poder simbólico necessita da aceitação dos que com ele
interagem e que “resulta da monopolização da gestão dos bens de salvação por um
corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores
exclusivos de competência específica”.43
Na edição de 25 de abril de 1928, o jornal Gazeta de Notícias, publicou, sob o
título “Um candomblé municipal”, uma matéria denunciando, em tom jocoso, que a
macumba vinha “dominando entre os que trabalham na oficina geral da Prefeitura e
outras dependências também subordinadas ao Almoxarifado Municipal.”44 Segundo o
autor da matéria, a repartição municipal estava sob controle de “Pai Teophilo”:
“Homem que manda e desmanda naquella gente toda, contando para tanto com a mão
forte de engenheiros seus chefes”.45 A troca de influências e benefícios entre agentes
municipais e a “linha” de macumba, da qual Teophilo e seu auxiliar Bonfim faziam
parte, determinou inclusive a transferência de um engenheiro que desagradou a
Tehophilo. Essa “linha”, que dominava a repartição, estava ligada ao feiticeiro Henrique
Assumano, com grande poder dentro do governo municipal. Ao tentar agendar uma
conversa com o líder religioso, o repórter recebeu a informação de que ali só entravam
pessoas conhecidas. Porém, ao se identificar, foi confundido com um engenheiro pelo
“compadre e auxiliar” do “feiticeiro” que retrucou: “O ‘seu’ Assumano quer mesmo
falar sobre aquele negócio com o prefeito”.46 Quando chegou à moradia de Assumano,
na rua Visconde de Itaúna, 191, o repórter encontrou, estacionado, um carro da
prefeitura.
Henrique Assumano Mina do Brasil foi um líder religioso importante. Juliana
Farias relata que, em 1927, com 47 anos de idade, foi “preso em flagrante”, quando
“dava consulta” a Nair dos Santos, sendo levado para a Repartição Central da Polícia do
Rio de Janeiro. Segundo a autora, os investigadores policiais apreenderam alguns
objetos na casa do líder religioso, entre os quais, um par de chifres de carneiro, três

42
SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô –
ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996, p.54.
43
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2ªed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999, p. 39.
44
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1928, p.4.
45
Ibidem.
46
Ibidem.

17
caramujos grandes, um pedaço de pele de cabra e fios de cabelo, e também foram
encontradas receitas em “caracteres arábicos”. Assumano foi processado como incurso
no artigo 157 do Código Penal de 1890, sob acusação de falso espiritismo e
cartomancia. Entretanto, os peritos concluíram que os objetos apreendidos não seguiam
“as modalidades mais usuais na prática das ‘macumbas’ ou da ‘Magia Negra’”; sua
especialidade era apenas “a prática de preces quasi sempre em linguagem africana,
preocupando-se mais com a prática da caridade”.47 O processo contra Assumano foi
arquivado em 28 de janeiro de 1928.
Ainda segundo Juliana Farias, Assumano não havia sofrido nenhuma denúncia
formal, mas os investigadores policiais que o prenderam já sabiam que, em tal sobrado
da Praça Onze, havia um “indivíduo que praticava o exercício ilegal da medicina.”48
Certamente, o delegado Antonio Augusto Mattos Mendes, que presidiu os autos e tinha
jurisdição para reprimir falso espiritismo e cartomancia, também já teria ouvido falar de
Assumano. Farias destaca que o líder religioso tinha ligações com o compositor Sinhô,
com o jornalista José do Patrocínio Filho e com o senador Irineu Machado. Entretanto,
em 1932, o jornal A Batalha, na seção Varas Criminais, publicou que o juiz Afranio
Costa, da 3ª Vara Criminal, condenou “Assumano Henrique Brasil, que no dia 21 de
maio de 1931, foi autuado em flagrante exercicio ilegal da Medicina”.49 Na própria
sentença de condenação foi concedido ao réu o beneficio do “sursis”.
O poder exercido pelos “feiticeiros”, em relação às autoridades e praticantes, não
era exclusivo de Assumano e nem era algo recente na trajetória dos líderes dos cultos de
matriz africana no Rio de Janeiro. Alguns estudos apontam a íntima relação que Tia
Ciata tinha com pessoas influentes.50 No jornal Diário Carioca, afirmava-se que
Cypriano Abedé foi babalaô de Irineu Machado, e que o filho do presidente Washington
Luiz havia estado na casa de Abedé.51 O político Otávio Mangabeira enviava, do Rio de
Janeiro, quantia em dinheiro para a sua mãe de santo na Bahia, sua terra natal. O próprio

47
FARIAS. Juliana. Cultura, identidade e religião afro-brasileiras na cidade do Rio de Janeiro-1870-
1930; cenários e personagens. In: Encontro Regional de História-ANPUH, X, Rio de Janeiro, 2002.
Anais... História e biografias, 2002, Rio de Janeiro. p.1. Disponível em
<http://www.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=312#creditos>. Acesso em setembro de
2013.
48
Idem , Ibidem
49
A Batalha, Rio de Janeiro, 06 de março de 1932, p.4. De acordo com a lei, o réu sem antecedentes
criminais poderia responder em liberdade.
50
Roberto Moura destacou este aspecto em seu estudo sobre Tia Ciata: MOURA, Roberto. Tia Ciata e a
Pequena África no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Departamento
Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
51
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 de março de 1930, p. 4.

18
Tancredo da Silva Pinto era muito ligado a Chagas Freitas, governador do Estado do
Rio de Janeiro e proprietário do jornal O Dia, no qual mantinha uma coluna. Tais
evidências sugerem as conexões de alguns “feiticeiros” com setores da elite carioca. A
influência e ligações deles podiam estar associadas à convicção, por parte dos
seguidores, no acesso desses líderes ao sobrenatural, à magia, ao diálogo com os
espíritos. No final do século XIX e primeiras décadas do século XX , no Rio de Janeiro,
era comum a ideia de que o “feitiço forte” vinha dos africanos.
Bastide, comparando as estruturas míticas africanas e aquelas cristãs, afirma que
“esta ultima se volta para a fusão da alma com Deus, por uma lenta ascensão através da
noite dos sentidos e da noite do espírito, a outra gira em torno de deuses que possuem a
alma, em torno, em consequência, de uma descida do sobrenatural ao natural”.52 Ainda
de acordo com as análises de Bastide, as civilizações africanas são civilizações
simbólicas, nas quais os mortos e os vivos constituem uma mesma comunidade e a
morte não é considerada senão uma passagem para um estágio superior. O sacerdote
seria, portanto, o elo que ligava vivos e mortos, donde advém o seu poder. Ainda
segundo Batisde, as civilizações ocidentais e africanas apresentam uma diferença
fundamental em relação à morte: as ocidentais são civilizações de ruptura, em que a
morte é o contrário da vida, na qual não se aceita mais o diálogo e a simbiose. Apontava
esse elemento como chave do poder: “O macumbeiro é temido, é um ser assustador que
conhece segredos portadores da morte. Portanto, como impedir que ele nos faça mal?”53
A possível ligação dos feiticeiros com o mundo dos mortos, o domínio do
contato com os espíritos era, por outro lado, também um forte motivo para temores.
Esse medo era comum entre os grupos étnicos que habitavam a região africana da
“Cafraria”54 e que tinham essa relação de medo-fascínio pelos adivinhos, bruxos e
curandeiros. Segundo José Maria de Souza Monteiro, autor do Dicionário Geográfico
das Provincias e Possessões Portuguesas no Ultramar, havia grande medo da feitiçaria
que, muito embora fosse praticada, poderia ser punida: “O maior crime no Monomotapá
é o da feitiçaria pela crença comum aos outros cafres de que não há morte que não seja

52
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 251.
53
Idem, ibidem, p. 236.
54
A definição da Cafraria sofreu transformações ao longo do tempo. Originalmente, foi empregada pelos
povos africanos islamizados para definir os não muçulmanos do sul e leste do continente africano e,
posteriormente, foi sendo empregada com um aspecto pejorativo. Ao empregar o termo, neste trabalho,
estou tomando por base a definição original

19
obra de feiticeiros”.55 Para o autor, a religião da Cafraria, era muito simples:
acreditavam que havia um Deus, a que chamavam Mulungo, criador de tudo e que a
tudo governava. Afirmavam a existência do mau espírito, que poderia ser apaziguado
pelos inhamasuros, que exerciam também as funções de legisladores e médicos porque,
como interpreta Monteiro, “entre eles fazer leis e curar é adivinhar e por isso atributo
dos feiticeiros”.56
A ideia de que a ascendência sobre o sobrenatural era uma característica
intrínseca dos africanos foi, inclusive, reforçada por líderes religiosos, fossem eles
africanos ou afro-brasileiros. A crença na força da “feitiçaria africana” foi uma
constante e, portanto, para os praticantes, enfatizar as origens africanas de seus cultos
era um instrumento de poder. Alguns viajantes que percorreram o continente africano
no século XIX e seus relatos contribuíram para divulgar uma imagem dos diferentes
povos africanos como propensos às práticas de “feitiçarias”.
Antonio Gamito, após percorrer da região de Moçambique, passando inclusive
pelas terras dos lundas e chegando a Angola, explica que a palavra feitiço “é a tradução
em portuguez da palavra Mancuála, com que os ‘cafres’ designam as suas operações
supersticiosas, a que atribuem virtudes sobrenaturais, ou encantamento”.57 No seu relato
destacou o poder dos feiticeiros:
na margem do rio ou Lago Mofo, há um serrado bosque de bananeiras, que
terá uns quinhentos passos de extensão, e no centro d’elle estão pequenas
palhotas, que se veem de fora. Este logar é o mais medonho e triste que se
póde imaginar; os seus barbaros e canibaes habitadores inspiram terror pela
sua fereza e ar selvagem. É neste pavoroso bosque que habitam os chamados
feiticeiros, ou Gangas, do Muata, e onde é vedada a entrada a todos os
mortaes sem excepção, que não forem gangas. 58

Segundo Gamito, ele e um comandante entraram distraidamente no bosque, e os


“barbaros canibais” mandaram que eles se retirassem. Os gangas, que vieram impedir a
entrada dos estranhos no bosque, perguntavam: “Mozungos onde vão —não passem
adiante — aqui não entra ninguém”.59 Ainda, os “canibais” insistiam para que saíssem
dali e os acompanharam para fora do bosque. Os dois portugueses, Gamito e seu

55
MONTEIRO, José Maria de Souza. Diccionario Geographico das provincias e possessões portuguezas
no Ultramar: em que se descrevem as ilhas, e pontos continentares que actualmente possue a corôa
portugueza, e se dão muitas noticias dos habitantes, sua historia, costumes, religião e commercio. Lisboa:
Typographia Lisbonense, 1850. 1 vol. p.204
56
Idem, ibidem. p. 196.
57
GAMITO, António. O Muata Cazembe e os povos maraves, chevas, muizas, muembas, lundas e outros
da Africa austral: diário da expedição portuguesa comandada pelo major Monteiro e dirigida aquele
imperador nos anos de 1831 e 1832. Lisboa: Imprensa Nacional, 1854, p. XXII.
58
Idem,ibidem, p.300.
59
Idem, ibidem, p.301.

20
comandante, buscaram informações sobre o lugar e souberam que ali só tinham acesso
os gangas e que “é lá que os gangas consultam e falam com os muzimos, os quais vivem
familiarmente com aqueles feiticeiros”.60 Sabemos que os textos de Gamito estão
impregnados de ideias preconceituosas sobre aqueles povos: é o olhar de um europeu
católico a respeito de um mundo que julga inferior. Porém, seu relato reforçava a crença
de que, entre os “cafres”, havia uma íntima relação dos feiticeiros com os espíritos e,
outro detalhe, na existência de um local específico, na mata, para o ritual e cujo acesso
era de exclusividade dos feiticeiros.
Na sua narrativa sobre sua viagem à África, o major Monteiro comenta a
crença, de que o mundo continuava a ser povoado por espíritos de mortos (muzimos), e
essas sombras não cessavam de se interessar pelos vivos, de se misturar a sua
existência, às vezes mesmo de se encarnar provisoriamente no corpo de um dentre eles:
quem tem a capacidade de estabelecer um diálogo entre vivos e mortos é o feiticeiro,
por isso, era temido e respeitado! Ou seja: o sacerdote dominava o sobrenatural,
conseguia atingir o outro com sua magia e o conhecimento das energias da natureza
através das ervas. Desse modo, é interessante pensar na circulação de ideias a partir do
conceito de “feitiçaria” em partes da África nesses relatos de viajantes oitocentistas,
com impacto sobre visões e observações em várias partes das Américas e na Europa. No
início do século XX, o padre Etienne Brazil, que escreveu sobre o fetichitismo,
deixando entrever uma visão acentuadamente preconceituosa, afirmou:
Trouxeram os colonizadores para o Brazil levas sem conta de pretos,
oriundos da Costa da Guiné, Loanda, Moçambique e outras. Elementos
heterogeneos, os negros pouco se harmonizavam entre si: “aqui se vê o negro
de Moçambique desprezar o de Congo” escreve Ferdinand Denis “acolá o
habitante de Mina zombar do Koromantim”. Fora do curioso parentesco dos
malungos, não os unia sinão um vinculo, a religião dos seus paes.
Guardavam-lhes o fetichismo, as cabalas e as supertições, a polygamia e a
incontinencia luxuriosa de costumes.61

É importante destacar que, ao estabelecer comparações entre os cultos praticados


no Rio de Janeiro e as descrições na África, não estou advogando um transplante e
permanências “puras” das religiosidades africanas, mesmo porque não podemos
esquecer que eram múltiplas tais religiosidades, tanto no continente africano como no
Brasil. Do mesmo modo, o processo histórico dos dois lados do Atlântico foi um

60
GAMITO, António. O Muata Cazembe e os povos maraves, chevas, muizas, muembas, lundas e outros
da Africa austral: diário da expedição portuguesa comandada pelo major Monteiro e dirigida aquele
imperador nos anos de 1831 e 1832. Lisboa: Imprensa Nacional, 1854, p. XXII.
61
BRAZIL, Padre Etienne. O fetichismo dos negros no Brazil. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo
LXXIV, p.195-262, 1911, p.200.

21
elemento importante nos contornos que essas religiosidades assumiram. Gomes chama a
atenção para o cuidado que se deve ter em relação à tentativa de se identificar
africanismos. Para o autor, deve-se, pelo contrário, perceber a África e suas
reconfigurações no Brasil. Partindo dessa questão, podemos destacar um aspecto
levantado por João Reis de que é problemático “inferir-se a religiosidade negra no
Brasil escravista a partir das informações etnográficas da África de tempos mais
recentes”.62 Segundo Reis, assim como as religiões afro-brasileiras, as africanas também
se transformaram ao longo dos séculos de escravismo e colonialismo. Para o autor, o
permanente e o contínuo na religiosidade africana e na diáspora talvez sejam apenas
certas concepções básicas a respeito da relação de e entre forças humanas e espirituais:
“enfim, o que se pode sugerir e inferir seriam estruturas simbólicas e rituais comuns,
não detalhes”.63
Podemos identificar elementos de uma estrutura mental-religiosa que serviu de
leitmotiv das experiências religiosas afro-brasileiras, como a íntima relação com
elementos da natureza, a eficácia do feitiço em atingir uma pessoa, a crença de que os
sacerdotes tinham o poder de se comunicar com o mundo dos espíritos e o transe,
quando a pessoa incorporada transformava-se em outra. Segundo Bastide: o fundo da
religião africana é constituído, geralmente, pelo manismo ou culto dos mortos e pelo
animismo ou crença nos espíritos e que o mundo era, para essa religião, povoado por
espiritos dos mortos, e que essas sombras não cessam de se interessar pelos vivos de se
misturar à sua existência, às vezes mesmo de encarnar provisoriamente no corpo de um
dentre eles.64
O transe, ou incorporação, sempre foi uma questão fundamental nos cultos afro-
brasileiros. Segundo Bastide, “as civilizações africanas conhecem e cultivam o transe,
como participação do homem com o sagrado, com o mundo dos mortos”.65 Entretanto, o
transe foi tratado, em determinadas ocasiões, como possessão demoníaca, portanto,
como algo que tinha que ser eliminado, ou como transtorno mental. Evans Pichardt
afirma que “os azande acreditam que certas pessoas são bruxas e podem lhes fazer mal,
em virtude de uma qualidade intrínseca”.66 Assim, o bruxo não pratica ritos, não profere

62
REIS, João José . Revisitando "Magia Jeje na Bahia". In: Valéria Costa: Flávio Gomes. (Orgs.).
Religiões negras no Brasil. Rio de Janeiro: Selo Negro, 2016. v. 1. p. 13-40. p. 14.
63
REIS, João José. Magia jeje na Bahia. A invasão do calundu do Pasto da Cachoeira,1785. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v.8, n.16, p.57-81, março/agosto de 1988, p.59.
64
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p.102.
65
BASTIDE, Roger. Religiões africanas e estruturas de civilização. Afro-Ásia, n. 6-7, p. 5-16, 1968, p.12.
66
PICHARDT, Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 33.

22
encantações e não possui drogas mágicas e, portanto, a bruxaria é um ato psíquico.
Ainda segundo Pichardt, os azande reconhecem que “os feiticeiros podem fazê-los
adoecer por meio da execução de ritos mágicos que envolvem drogas maléficas”.67
A distinção entre bruxos e feiticeiros entre os azande, identificada por Pichardt,
pode ser comparada com algumas crenças dos cultos afro-brasileiros, embora nem
sempre exclusivamente deles, como acreditar no “mau-olhado”, quando o enfeitiçador,
pode somente com o seu olhar transmitir o mal ao enfeitiçado, ou seja, através de uma
qualidade intrínseca do agente. Um ditado popular brasileiro chama isso de “olho de
seca pimenteira”. O caso de um feiticeiro é diferente: ele exerce, nessas crenças, outra
energia, o poder de, através de “trabalhos” e de seus objetos de “magias”, prejudicar ou
resolver questões variadas. Ele tem acesso e domínio sobre o que está além das pessoas
comuns. Essa convicção, por parte dos adeptos, pode ser exemplificada pelo relato que
Agenor Miranda, intelectual e iniciado do candomblé, faz da morte de Mãe Aninha,
que, segundo ele, previu a hora da própria morte. Segundo Agenor, Aninha pediu para
ser levada ao local em que estava o assentamento de seu orixá: “lá quebrou o segredo da
fonte de Iyá que havia na casa e, imediatamente, caiu morta”.68 Essa é a chave do poder
dos “feiticeiros”: a extraordinária capacidade de fazer crer em seu domínio sobre o
sobrenatural. No caso descrito por Miranda sobre Aninha, ela teve não só a capacidade
de conhecer a proximidade de sua morte, como a de levar com ela a sua magia, ao
extinguir, para nunca mais ser encontrado, o assentamento de seu orixá.
Nas matérias publicadas em jornais e nos processos contra os praticantes dos
cultos afro-brasileiros, o que se colocava como prova de “feitiçaria” era a presença, nas
casas do acusados, de determinados objetos: desde manipansos,69ervas, ossos até
imagens de santos católicos. Segundo Maggie, “A crença materializada é a de que os
objetos que servem para fazer feitiçaria acabam carregados do feitiço, e ninguém deve
mesmo tocá-los, para não ficar enfeitiçado”.70
Em 1913, o dr. José Ricardo Pires de Almeida, nascido no Rio de Janeiro em
1843, higienista, arquivista da Câmara Municipal e médico da Inspetoria Geral de

67
PICHARDT, Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 33.
68
SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô –
ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p.28.
69
Manipanso: imagem feita, originalmente, de madeira ou barro, que, após de um ritual específico,
passaria a conter um espírito.
70
MAGGIE, Ivone. Medo de feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992, p. 265.

23
Higiene, escreveu um artigo sobre Trancinhas e Trançadores, antigo feitiço, existente
desde os primórdios da história humana e ainda executado no Rio de Janeiro:
De todos os sortilégios, é, certamente, este, ainda hoje o mais conhecido e o
mais geralmente praticado em todas as classes sociais, talvez pela facilidade
de sua confecção e ligeireza de sua manobra: um pedacinho de fita, de
barbante, de cordel, um fio de retroz, uma palavra cabalista, e a ideia fixa no
paciente, eis todo o arsenal de suppostos malefícios.
O mais efficaz é munirse o candomblista de uma tira de couro, fio de seda, de
lã, ou mesmo de algodão, que se trançará, repetindo baixinho ao dar a
primeira laçada, e a cada pedido de malefício fazendo o signal da cruz, a
palavra Ribaldo, ao segundo nó, e às mesmas persignações, Nobal, e, por
último, Vanarbi.
Tudo isto far-se-á a 3ª badalada das matinas, estando o papae-feiticeiro em
jejum, pronunciando por trez vezes os nomes d’aquelles contra quem se
assesta a bruxaria.71

Pires de Almeida descreveu um “feitiço” no qual, para seus adeptos, a forma de


executar o ritual, associada à força mental de quem o realizava, garantia seu êxito. Esse
feitiço, com algumas modificações, foi descrito por viajantes, que percorreram o
território, chamaram de “Cafraria” e viram bonecos de barro, cravados de espinhos,
serem usados em “trabalhos” de malefícios.
O artigo do dr. Pires de Almeida é ilustrado com fotografias de alguns
“feiticeiros”, todos homens e mulheres negros, como Juca Rosa, alguns trançadores e de
Tio Catú, identificado como professor de hebraico de Gaspar Silveira Martins, político
gaucho liberal que se demitiu, pouco depois de ocupar a chefia do Ministério da
Fazenda, por não aceitar o projeto do governo que tornava inelegíveis os cidadãos não
católicos. Constam ainda as fotos de João Vicente, identificado como chefe dos
velários, e Tio Manuel Congo, o cantor dos velários, uma prática bastante associada às
igrejas católicas, com grande presença de devotos negros, embora não exclusivamente.
“Estes velários são interpretados como lugares sagrados, plenos de mistérios,
carregados de forças sobrenaturais positivas e negativas. O clima é pesado, solene,
respeitoso, introspectivo, cercado de tabus e perigos”. 72 Maria Ângela Vilhena descreve
os velários como espaços ambíguos, uma vez que, nele, estão presentes almas de todos
os tipos: as aflitas, penadas, persecutórias, benditas. Assim, os pedidos aos anjos e
santos são feitos diante de seus altares, e nunca nos velários. “Eis também porque
muitas pessoas, como medida de proteção e descontaminação, entram nas igrejas antes e

71
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Trancinhas e trançadores. A ilustração brasileira, Rio de Janeiro, 1
de setembro de 1913, p. 294.
72
VILHENA, Maria Ângela. Os mortos e os vivos: traços da religiosidade brasileira. Revista de Estudos
da Religião, nº 3, p.103-131, 2004, p. 110.

24
depois de estarem nos velários”.73 Vilhena destaca que o receio de contaminação leva
alguns devotos a sair dos velários sem lhes virar as costas. No Rio de Janeiro, um dos
mais importantes locais de acender velas ficava na Igreja de Nossa Senhora da
Lampadosa, popularmente conhecida como Igreja das Almas. Ele permanece
preservado em suas características originais e mantém um ossário dos escravos.
Desse modo, o Rio de Janeiro, com sua imensa população negra, era um mercado
religioso para africanos e crioulos. Em 1864, o periódico Correio Mercantil noticiou
que 63 indivíduos haviam sido presos em uma “casa de dar fortuna”, na área mais
central da cidade: a freguesia de S. José.74 As notícias sobre as invasões se sucediam e
mostram a proliferação desses espaços, nos quais a população escrava e livre
estabeleciam redes de socialização e que, em alguns casos, serviam para acobertar
escravos fugidos. Em algumas situações, havia relações conflituosas, devido à procura
por espaços, com a chegada de novos migrantes. Entre os anos de 1870 e 1940, a cidade
foi o cenário de uma intensa, embora nem sempre explícita, medição de forças: de um
lado, entre a sociedade dominante e a população negra; e de outro, entre as várias
comunidades negras que habitavam a cidade.
Paralelo às mudanças políticas e econômicas, ocorridas no final do século XIX e
primeiras décadas do XX, a cidade sofria grandes transformações urbanísticas, o que se
refletia na busca por espaço, físico e social. Nesse quadro, a população negra – escravos
e livres – com suas diferentes origens étnicas, tinha nas religiosidades, formas de
autoafirmação. A ênfase em sua “pureza africana” podia funcionar como legitimação
para a força de sua magia.
No início do século XX, africanos ainda estavam chegando ao Brasil, trazendo
suas vivências religiosas, assim como vários praticantes brasileiros viajavam a diversas
regiões da África. Em 1918, o diretor do Serviço de Povoamento apresentou ao ministro
da Agricultura um trabalho estatístico, organizado pela Intendência de Imigração no
Porto do Rio de Janeiro,75relativo ao movimento de passageiros durante o decênio de
1908-1917, período de grande insegurança devido à Primeira Guerra Mundial, e
informa que desembarcaram 4.125 pessoas procedentes de portos africanos. Esses
desembarcados iriam somar-se aos negros que migravam para a capital, provenientes de

73
VILHENA, Maria Ângela. Os mortos e os vivos: traços da religiosidade brasileira. Revista de Estudos
da Religião, nº 3, p.103-131, 2004, p. 110.
74
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 20 de julho de 1864, p. 2.
75
Jornal do Comércio: Retrospecto Comercial, 1918, Rio de Janeiro, p. 274

25
outras regiões brasileiras. A Gazeta de Noticias fez uma avaliação preconceituosa desse
fluxo migratório:
Ultimamente, com a chegada constante de negros da África e negros da
Bahia, os feiticeiros tem augmentado e as scenas de roubo, os candomblés
pavorosos realisam-se com maior frequencia, todos os domingos nas casas de
mães de santo e dos babalaôs exploradores.76

Também é importante observar que, no início do século XX, havia, na cidade do


Rio de Janeiro, africanos que tinham vivido aqui a experiência do cativeiro, construíram
famílias e faziam parte do cenário urbano, interagiando, certamente, com os recém-
chegados. Em 1904, a Gazeta de Notícias noticiou que o africano Sanin, ligado a
Emanuel Ojô, estaria trazendo novos feitiços da África. A matéria esclarecia que,
devido às repercussões das crônicas de João do Rio, era preciso mostrar quem eram os
principais feiticeiros da cidade. O artigo vinha acompanhado de duas ilustrações, que
seriam caricaturas de dois “feiticeiros” vindos para o Brasil recentemente: Emanuel Ojô,
filho de um relojoeiro em Lagos, na Nigéria, teria vindo para o Brasil, onde aprendeu o
“aliari dos alufás”. Segundo a reportagem, ele era respeitado por todos e havia interesse
de seus adeptos em se dizerem seus parentes. Destacou também a rivalidade entre Ojô e
o celebre João Mussê:
Ojô é o consultor técnico dos pretos, na sua casa é que se dão as reuniões dos
feiticeiros, que se resolvem as contendas, que se escrevem cartas, que se
resolve quem há de morrer. Conta-se desse negro e da sua tenda e feitiço
cousas pouco moraes. Ojô tem agora em casa o africano Sanim que chegou
da África, fingindo ter feitiços novos, entre os quaes o feitiço do
marimbondo, o marimbondo que leva a morte e o ipê praga, pausinhos com
pimenta da costa, que custam apenas 150$000.
Ababaca Caolho: Nasceu em Lagos. É filho de um grande feiticeiro. Veio
para o Brasil como carregador. Com auxilio de Ojô estabeleceu-se com
feitiçaria numa casa que Alikali. O [ilegível] alufá resolveu fazer sua. Vive
exclusivamente de feitiçaria, é o homem do xuxuguraxá, o espinho molhado
em um ovo, que causa desgraça. Morava na Rua do Rezende. 77

O censo de 1906 divulgou uma lista de centenários que habitavam a capital e, no


distrito da Gamboa, constava Domingos Africano, de 123 anos, viúvo, anafalbeto,
pintor. De acordo com o recenseamento, ele residia havia mais de dez anos no Brasil, o
que pode ser um indício de que ele, embora bastante idoso, fosse um imigrante e não
muito antigo. Possivelmente, tanto a sua idade como o tempo no Brasil podiam estar
exagerados, para mais e para menos. De qualquer modo, Domingos foi recenseado na
rua Barão de S. Felix, 22, mesmo local da residência, entre outras pessoas, de Horacio

76
Gazeta de Notícias, Suplemento Illustrado, Rio de Janeiro, 24 de julho de 1904, p. 2.
77
Ibidem.

26
de Sá Pacheco, de 117 anos, e que viera para o Brasil em 1790. Ao que parece, trata-se
de uma comunidade religiosa. Em 1907, no mesmo local, o “afamado feiticeiro”
Horácio José Pacheco foi preso.78 Ou seja, realimentada com a presença de novos ou
velhos africanos, a ideia de África como símbolo de magia forte, estava sendo
confirmada pelos diversos praticantes dos cultos de origem africana na cidade. A
ligação com a África, ou com o que dela queriam buscar ou afirmar, foi fundamental
para os cultos e o “poder dos feiticeiros”. Gabriela Sampaio admite que, até para jovens
africanos, o contato, no Brasil, com velhos africanos foi um importante meio de
aprendizagem dos princípios religiosos, e que muitos tiveram contato com religiões
africanas depois de saírem da África. Sampaio, considerando o pensamento de Robert
Slenes de que muitos redescobriram a África no Brasil, ressalta que, uma vez que, desde
a viagem para a América nos navios, os africanos começavam a perceber semelhanças
culturais e linguísticas entre si, mesmo que provenientes de diferentes regiões da África
Central e Ocidental.79
Bastide destacou, que a religião afro-brasileira tendia, em algumas cidades
como Rio de Janeiro e São Paulo — devido à falta de controle urbano — a tomar, cada
vez mais, um aspecto de magia, seja para o bem, seja para o mal.80Lembramos que na
reportagem da Gazeta de Notícias, sobre Assumano Henrique Mina do Brasil, destaca-
se o uso da magia dentro de uma repartição municipal. Segundo a matéria, os
envolvidos usavam de ‘macumba’ para afastarem os desafetos. Pai Teophilo, ligado a
Henrique Assumano, teria sido o responsável pelo afastamento do engenheiro
Nascimento, chefe do serviço, que foi transferido porque desagradou a todo o pessoal da
“linha de macumba”, que envolvia vários funcionários da Garagem Ypiranga:
Um dia elle chegou aqui e pisou - que azar! - com o pé direito em cima do
“ponto”, que já estava preparado, esperando por elle. Dahi, então desandou
tudo...
O Dr. Nascimento zangou-se por qualquer coisa e lá se foi transferido para
outro districto.
O “pai” Teophilo não gostava delle.81

78
Retornarei ao caso de Horácio José Pacheco no capítulo 3.
79
SAMPAIO, Gabriela. A história do feiticeiro Juca Rosa: matrizes culturais da África Subsaariana em
rituais brasileiros do século XIX. In. GONÇALVES António Custódio (Org.). Multiculturalismo, poderes
e etnicidades na África subsaariana. In. SEMINÁRIO INTERNACIONAL MULTICULTURALISMO,
PODERES E ETNICIDADES NA ÁFRICA SUBSAARIANA, 4., Porto, 2002. Atas... Porto: Centro de
Estudos Africanos, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. v. IV. p.105-119, p.108.
80
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 191.
81
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1928, p. 4.

27
O informante, ao ser indagado sobre o que era o “ponto”, respondeu:
“Simplesmente alguns pingos de vela, em cima de dois riscos cruzados. Os riscos não
são nada. O perigo todo está na invocação de ‘echu’”.82 E acrescenta que a linha de
umbanda era poderosa e reduzia o “freguez a um cordeirinho”. Esse aspecto do medo
que a magia provocava pode ser comparado aos relatos oitocentistas de Antonio Gil:
“Vi muitas vezes em Loanda gente aterrada por causa de uns riscos toscos feitos diante
da sua porta, ou por um embrulho de trapos ou coisa semelhante”.83
No início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, um artigo publicado pela
A Epoca, definiu feitiço:
Chama-se “feitiço” o mal que ataca este ou aquelle individuo, a força
sugestiva que domina alguem, obrigando-o a praticar actos e tomar atitudes
independentes de sua vontade. “Feitiço” é a ação, hypnotica, violenta, que
obriga uma determinada pessoa a fazer tudo quanto o feiticeiro tem em
mente.
É isto que se conclue das explicações que nos são dadas por alguns dos mais
afamados feiticeiros do Rio.
Elles fazem actuar a sua força por meio de “bruzundangas”, postas no
caminho por onde aquelle que deve ser enfeitiçado tem que passar, em
alimentos que devem ser pelo mesmo ingeridos, nas roupas e, finalmente, por
simples rezas intecionaes e características.84

A certeza de que o poder do feiticeiro poderia prejudicar alguém torna possível,


fatos como o noticiado no jornal A Manhã. A matéria chama a atenção sobre a
importância de “uma campanha necessária” de “combate aos pais de santo”
A policia precisa deixar o receio das consequências de parte e dar combate sem
tréguas aos “paes de santo”. Elles fervilham, sendo mais numerosos que os
“buracos” da cidade. De Copacabana à Santa Cruz se os encontra às centenas.
Referimo-nos ao receio da policia e vamos justificar esta asserção.
É raro o policial que tem coragem de perseguir os “candomblés” ou “centros”.
Os “paes de santo” tem sempre ameaças que infundem pavor, principalmente
porque muitas dessas ameaças, segundo dizem, tem se tornado realidade.
Contam, por exemplo, que certa vez um comissário hoje afastado da policia, o
Dr. Francisco Telles de Moraes, “deu” em uma “macumba”, prendendo gente a
valer. Em caminho da delegacia, uma mulher, que era a chefe do bando, ao
saber o nome do comissário disse:
- Dr. Moraes, o senhor amanhã, vai quebrar sua perninha.
O comissário não deu importância à “praga” e trancafiou a “macumbeira” e
todos os que a acompanhavam no xadrez.
A autoridade residia, a esse tempo, no Realengo e possuía um cavalo bastante
manso em que costumava passear, nas horas de folga.
No dia imediato ao da ameaça preparou o animal e quando se dispunha a
montar, caiu estupidamente, quebrando, de fato a perna.

82
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1928, p. 4.
83
GIL, Antonio. Considerações sobre alguns pontos mais importantes da moral religiosa e systema de
jurisprudência dos pretos do continente da África Ocidental Portugueza além do Equador, tendentes a
dar alguma ideia do caráter peculiar das instituições primitivas. Discurso proferido na Academia Real de
Sciencias de Lisboa. Lisboa, 5 de julho de 1854. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, 1945, p. 38.
84
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915, p.1.

28
É por causa de fatos como esse que a policia receia perseguir os
“macumbeiros”.85

Tais matérias expressavam em detalhes variados sistemas de crenças que se


reconfiguravam na cidade. Para além das narrativas preconceituosas, diversos setores da
sociedade carioca pareciam conhecer e compartilhar desses códigos, símbolos e signos.
Acreditar que era feitiçaria um malefício que o outro poderia exercer, e não uma
coincidência, estava implícito. Maggie sinaliza que, na sociedade brasileira, está
presente uma cosmologia alicerçada na crença de que algumas pessoas, através de seus
poderes especiais, produzem malefícios. Para a autora, isso está associado a uma forma
de conhecimento que supõe que os infortúnios são causados pela ação dos inimigos.86
Considerando pareceres dos laudos sobre os objetos apreendidos nas casas dos
“feiticeiros”, como os que aparecem nas reportagens sobre as invasões feitas pela
polícia, ressalta-se a ideia de que a feitiçaria era inerente aos africanos e seus
descendentes: “A feitiçaria é uma herança que nos deixou o preto africano aqui
introduzido pelos navios negreiros de escravatura. Foi esta gente que também nos deu a
agudeza de superstição que possuímos”.87 Entretanto, a crença do poder do feitiço, para
o mal ou para o bem, atingia pessoas de diferentes classes sociais: desde “gente do
povo” até políticos e intelectuais brasileiro. Uma matéria que ironizava o boato que
circulava, no Distrito Federal, sobre um “trabalho feito” contra o então prefeito Antônio
da Silva Prado Júnior, afirmava:
Assim é que nem os altos administradores escapam às “mesas de fogo” das
macumbas. É um mal sem remédio. Debalde vive a policia a metter o nariz
ahi por todo o canto, na açafama de descobrir “candomblés”. É inútil. A coisa
agora é mais séria. Elles funcionam bem no centro da cidade, na zona
“fecunda” do mangue.
A prestigia-los há até homens de responsabilidade.88

No entanto, ligação com a “feitiçaria” nem sempre resultava em vantagens para


seus praticantes, uma vez que, no quadro das disputas existentes, poderia o “feitiço virar
contra o feiticeiro”. Muitos foram perseguidos por representarem uma ameaça à
conquista de espaços ou para corroborar a força de um concorrente. Assim, essa
característica pode ser observada, especialmente no decorrer da segunda metade do

85
A Manhã, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1926,p.7
86
MAGGIE, Yvone. Medo do feitiço 15 anos depois: a “ilusão da catequese” revisitada. In: GOMES,
Flavio dos Santos; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007, p. 371
87
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915, p. 1.
88
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1928, p. 4.

29
século XIX, nos relatos dos periódicos cariocas, que divulgavam notícias sobre fatos
ocorridos em outras localidades, e nos processos criminais. Não podemos deixar de
considerar que esses casos, provavelmente, reforçavam a construção de um imaginário
sobre as práticas religiosas de africanos e crioulos.
A acusação de um feiticeiro que outra pessoa havia feito feitiço contra alguém
poderia provocar tragédias, como a noticiada pelo O Propagador, do Maranhão, e
divulgada em jornais do Rio de Janeiro:
O capitão Justo Rufino Guimarães e sua mulher Regina de tal moravam no
logar Santa Rosa, distante doze legoas de Jeromenha, e a meia legoa da
residência daquelles morava Eufrásia de tal. Sobrevem a D. Regina uma
hemorraghiae, a sua ignorância, bem cousa de seu marido, leva-os a
acreditarem que a doente estava enfeitiçada, porque assim o asseverava o
preto africano José Duro, e também que a feiticeira era a pobre Eufrásia.
Nada mais escutam estes conjugues, e mandam-surrar- a pobre Eufrásia, até
que ela ficasse quase morta. Esta infeliz assim maltratada retirou-se de rastro
para o logar Caritá, distante do em que morava 4 a 6 legoas.
Infelizmente recrudesce e se torna mais grave o mal de D. Regina, e ella
lança um ou dois fectos imperfeitos a que vulgarmente chamam –molas- e
então convenceu-se de que na verdade estava enfeitiçada e seu marido
mandou prender a pobre Eufrásia.89

A denúncia de feitiçaria, do africano contra Eufrásia, foi o único motivo da


reação do casal. Eufrásia, segundo a matéria, era afilhada de d. Regina, e não existe
nenhuma referência a alguma acusação anterior de feitiçaria. Eufrásia foi interrogada,
sofrendo torturas até morrer:
recolhida a um quarto e pendurada no tecto. Ahi conservada, tendo, além de
trancada a porta, por sentinella Fellipe de tal, o mesmo que ajudou a prende-
la, até ao dia 16 do mesmo mez á noite que, falecendo D. Regina, despareceu
igualmente Eufrásia. Espalharam, os que prenderam e as pessoas da casa do
Capitão Guimarães, que a mulher havia escapado pelo telhado, que era
invisível etc... etc... Embuste! Corre porém de plano em Jeromenha que a
infeliz Eufrásia foi queimada viva!90

As acusações poderiam significar apenas “uma prova” do acusador, para as


pessoas que recorriam aos seus serviços, do seu poder de identificar a origem do mal,
escolhendo alguém aleatoriamente, mas também poderia representar livrar-se de um
rival. Na disputa por espaço e poder, eram criadas rivalidades, desde casos extremos,
como pode ter sido o acima citado, como desafios para mostrar quem tinha mais poder
em relação ao sobrenatural.
É possível pensar no papel da imprensa na difusão de um imaginário polifônico
sobre religiosidades. Podemos comparar o caso ocorrido em Santa Rosa, no início da

89
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1858, p.1; O Correio da Tarde, Rio de Janeiro,
5 de junho de 1858, p. 3; Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1858, p.1.
90
Ibidem.

30
segunda metade do século XIX, com outro acontecimento em Araruama, no final do
século XIX, denunciado pelo dr. José Pires Domingues Junior, sobre uma “societas
sceleris”,91 composta de Manoel José Rodrigues (Manoel Caboclo) e os menores
Sabino Caetano Pequeno e Elias. Para o promotor: “importados em sua quase
generalidade da África”, os escravos “traziam consigo heranças absurdas daquelas
regiões” “a feitiçaria – a crença de curar com rezas etc.”92
Estando moribundo um indivíduo preto, Manoel Caboclo, conhecido como
bom curador com rezas, foi chamado para vê-lo, e, examinando o doente,
declarou que a sua moléstia era um sapo que no estômago lhe tinha sido
criado por Amélio, um preto sexagenário, que era feiticeiro. A sua patologia
lhe tinha indicado a enfermidade e como meio terapêutico prescreveu uma
sova de varas de pinhão no sexagenário para quebrar o feitiço e fazer sair o
sapo do doente. O sui generis médico, juntamente com os denúnciados
Sabino e Elias, deram tantas varadas em Amélio que veio este a falecer dias
depois.93

As duas narrativas — a do jornal e a do promotor — quando comparadas,


corroboram um aspecto que está sendo discutido neste trabalho: a credulidade das
pessoas, envolvidas pelos acusadores, de que as vítimas tinham o poder da feitiçaria;
por outro lado, informam que outro feiticeiro era capaz de identificar a ação de um
feitiço. O que tornou possível os crimes foi o fato que as pessoas acreditaram no mal
que as vítimas seriam capazes de produzir, como apontaram seus acusadores. A
crendice no mal com que os “feiticeiros” poderiam atingir as pessoas, comum entre os
diferentes segmentos sociais em todo o Brasil, poderia significar uma situação muito
frágil para os “feiticeiros”. Por outro lado, poderia significar maior fama e prestígio e,
mesmo no século XX, esse aspecto continuará presente.
Na disputa pelo poder, dominar elementos do universo religioso de povos
africanos era mais uma “garantia” de capacidade. Um item que muito contribuía para o
prestígio dos “feiticeiros” era o jogo adivinhatório. Antonio Gamito destaca, em relação
aos povos africanos, que de todas as superstições que os gangas praticavam:
e de que se vangloriam, é a Ombezação uma das principaes: elle é usual em todos os
paizes da Cafraria por onde temos tranzitado. Já em outro logar fallamos n’esta sorte de
adivinhação: agora indicaremos a maneira e as ceremonias com que a executam. Fazem
uso ordinariamente de cinco pedaços, ou marcas, de conchas de cágado ou de búzio, de
forma circular, pouco maior do que um duro hespanhol, os quaes ajuntam entre ambas

91
Expressão jurídica definindo pessoas que se associam para a prática de crime. Segundo Oliveira Lima,
significa quadrilha e bando de criminosos. LIMA, A. Oliveira. Manual de Redação Oficial. 2ªed. Rio de
Janeiro: Elsevior, 2005. p 244.
92
Apud FARIA, Lair Amaro dos Santos. Percalços e Sucessos na vida de promotores públicos nas
comarcas do estado no final do século XIX. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, v. 1, p.99-104,
2009, p.102
93
Idem, Ibidem, p. 4.

31
as palmas das mãos, e depois lançam-nos em terra, estando elle sentados no chão, de
pernas cruzadas. Segue-se a isto entrarem a fallar mysteriosamente como em
conversação, com as mesmas marcas, cada uma das quaes tem um nome e designação
própria. Tendo concluído o supposto dialogo, interpretam e explicam a adivinhação que
fizeram, attribuindo tudo a virtude e encantamento das marcas 94.

O ritual da adivinhação era comum à maioria dos povos africanos, inclusive


entre os nagôs, com os seus sacerdotes de Ifá, orixá da adivinhação, e fonte de grande
prestígio. O jogo de búzios foi um elemento importante utilizado pelos cultos afro-
brasileiros, trata-se de um daqueles procedimentos rituais que continuam até os nossos
dias. Essa prática adivinhatória seria um meio revelador de doenças, problemas
cotidianos ou da vontade dos “orixás”. Segundo um mito africano ocidental, quando
Oxalá ficou preso no Reino de Ketu, em uma árvore, várias calamidades atingiram esse
reino, e Xango, rei de Ketu, chamou os sacerdotes de Ifá, que, através do jogo de
búzios, obtiveram a resposta para o problema. Na sucessão dinástica do comando do
candomblé da Casa Branca, do Engenho Velho, na Bahia, a escolha da nova ialorixá
que comandaria a casa foi feita através do jogo de pai Agenor95, iniciado por Aninha e
que conviveu com Cypriano Abedé. Entre as disputas pela escolha, Pai Agenor jogou:
“A casa estava repleta de ogãs, ekédis, filhos-de-santo, representantes de outras casas,
visitantes do Brasil e do estrangeiro”.96 Segundo Zora Seljan,97 os orixás responderam,
através do jogo de búzios de pai Agenor, que a escolhida era uma filha de Oxum, que
não estava entre as presentes. Foram buscar, no trabalho, Altamira dos Santos, que, ao
chegar ao recinto em que ocorria a cerimônia, ouviu de pai Agenor: “Os búzios afirmam
que você foi a escolhida para dirigir o Axé da Casa Branca”.98A decisão do jogo foi
acatada por todos da casa.
A aceitação da capacidade do sacerdote, por parte dos adeptos, de se comunicar
com os espíritos, especialmente através do jogo de búzios, era uma primazia dele em

94
GAMITO, A. C. P. O Muata Cazembe e os povos maraves, chevas, muizas, muembas, lundas e outros
da Africa austral: diário da expedição portuguesa comandada pelo major Monteiro e dirigida aquele
imperador nos anos de 1831 e 1832. Lisboa: Imprensa Nacional, 1854, p.183.
95
Prof. Agenor Miranda Rocha, conhecido babalorixá (adivinho, na tradição nagô), nasceu em Luanda,
(1907), quando seu pai pertencia ao corpo diplomático português em Angola. Agenor foi iniciado aos
cinco anos de idade, devido a problemas de saúde, pelas mãos Eugênia Ana Santos, a Mãe Aninha,
quando seu pai foi transferido para o Brasil. Sua iniciação religiosa foi completada, alguns anos mais
tarde, com Cypriano Abedé. Agenor foi professor catedrático do Colégio Pedro II, nas cadeiras de
matemática e latim, escreveu sobre as religiões de matriz africana e faleceu no Rio de Janeiro, em 2004.
Ver SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-
ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.
96
SELJAN, Zora. Apud SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um
adivinho da tradição nagô-ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996, p. 17.
97
Idem, ibidem, p.17
98
Idem, ibidem, p.17

32
relação às demais pessoas e, tanto na África quanto no Brasil, foi amplamente usado;
por outro lado, foi mais um item no rol das práticas que serviu de perseguição aos
“feiticeiros”. Paradoxalmente, o “jogo de búzios” era bastante procurado, não apenas
pelos iniciados, e um forte atrativo para pessoas das mais diferentes classes sociais que
consultavam os “feiticeiros”. No entanto, muitas vezes, foi motivo também de
desventuras e arrolado com uma das “provas da feitiçaria”.
A visão que embasou as relações entre a sociedade brasileira, nos séculos XIX
e XX, e as práticas religiosas cultuadas por africanos e descendentes possuía
antecedentes importantes. Inúmeras foram as acusações de escravos e livres praticarem
feitiçaria. O olhar sobre o que é diferente geralmente é permeado pelo preconceito e
estranheza. Foi sob essa perspectiva que os africanos e seus descendentes, adeptos de
uma religiosidade que não era reconhecida pelas camadas dominantes, embora muitas
vezes a ela recoressem, tiveram que procurar espaço. Podemos comparar narrativas
sobre casos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, desde a primeira metade do século
XIX, como um exercício metodologico para abordar sentidos sobre essas religiosidades,
como as perseguições que sofreram. Essa percepção preconceituosa contra a
religiosidade de escravos ou negros livres foi denunciada pelo jornal Aurora
Fluminense, na primeira metade do século XIX, quando o juiz da freguesia da Sé, no
Rio de Janeiro, pronunciou o casal Paulo da Silva Santos e Dionizia Maria da
Conceição por feitiçaria.
Segundo se lê, no Espelho da Justiça n. 19, ainda em novembro de 1829, na
Corte do Rio de janeiro forão querellados como feiticeiros dous pretos
cazados, por nome Paulo da Silva Santos e Dionizia Maria da Conceição. Em
virtude do Liv. 5º tit 3º da vellha ordenação, o Sr. Juiz do bairro da Freguezia
da Sé recebeu querella sobre tal assumpto, e querendo ao depois reparar o
mal que fizera, o querelante agravou para a illustre caza de Supplicação, que
o prove no aggravo. O nosso novo Código Penal veio por termo a absurdos,
que envergonhão a civilização e o século em que vivemos. Parece contudo
que SS. SS, alguma razão tem para accreditarem ainda em feitiços: só por
feitiçaria se pode fazer o que alguns delles fazem: ganhar 4, gastar 40, e
levantar caza!99

Nesse caso, a denúncia contra o casal, com aspectos inquisitoriais, partiu de José
Fernandes de Lima, inimigo dos denunciados, que enviou ao Juizo do Crime o seguinte
requerimento:
Diz José Fernandes de Lima, que sendo prohibido pela Ordenação L.5º, tit 3º,
que qualquer pessoa em circulo, ou forra delle, ou em encrusilhada invocar
espiritos diabólicos, ou der a alguma pessoa a comer ou beber para querer bem
ou mal a outtrem, Paulo da Silva Santos e Dionizia Maria da Conceição, pretos
forros, moradores na Rua do Sabão, tem de uzo e costume fazerem todos estes

99
Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1832, p. 2.

33
maleficios e feitiçarias, e ainda muitas coisas, que não estão declarados na
Ordenação, para extorquirem dinheiro à maior parte de gente rustica, e como
estes maleficios sejão prohibidos, e como taes casos de querella, e o
supplicante a quer dar dos supplicados, para que provado quanto baste sejão
pronunciados e prezos.100

Paulo da Silva Santos e sua mulher Dionizia, não só foram presos, como
“sepultados em huma prezão, aonde jaserão por longo tempo; e ainda presentemente se
não achão livres”.101
A acusação contra Paulo da Silva Santos e sua mulher Dionizia permite
refletirmos sobre como foram forjados esteriótipos contra as religiosidades de matrizes
africanas. Embora ressaltado que o casal invocava espíritos diabólicos, fortalecendo a
ideia de heresia, ela traz um componente fundamental das acusações feitas no final do
século XIX: a extorsão da “gente rústica”. Ou seja, o charlatalismo. Entre o final do
século XIX e início do XX, as novas condições surgidas nas áreas urbanas,
“transformaram o sacerdote negro em curandeiro, em feiticeiro”.102 Práticas como: ébos,
transes mediúnicos, rituais de iniciação e jogos adivinhatórios eram olhados como
práticas “primitivas” e “criminosas”. Quarenta anos separam Paulo e Dionizia do caso
mais famoso de acusação contra um sacerdote negro carioca: Juca Rosa.
Em 1871, José Sebastião Rosa, o lendário Juca Rosa, publicou no Diário do Rio
de Janeiro uma carta em que expressava sua indignação sobre uma matéria a seu
respeito, divulgada pelo Diário de Notícias:
Ao público
Processo Juca Rosa
Fui acre e virulentamente insultado no Diário de Noticias de hoje, em um
artigo sem assignatura sob a epigraphe Collaboração.
Preso, processado e pronunciado injustamente, devo considerar-me sob a
proteção da lei, e assim aguardo as decisões dos tribunaes do meu país.
Não respeitam a minha desgraça e traiçoeiramente me offendem. Vou chamar
a responsabilidade o referido artigo, em que fui atrozmente insultado.
José Sebastião da Rosa.
Rio, 15 de junho de 1871.103

Rosa cumpriu a ameaça e entrou na justiça contra a agressiva matéria intitulada


Collaboração reproduzida abaixo:
O monstro Juca Rosa
Juízo Plenário-Defeza – Adiamento do Julgamento
O estudo ou analyse sobre os crimes deste feroz e cruel salteador da honra,
do pudor, da fortuna e da honestidade; deste algoz da innocencia incuidosa,

100
Espelho da Justiça, Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 1831, p.1.
101
Ibidem. Mantida a grafia original.
102
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 191.
103
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1871, p. 3.

34
do viver sem malícia; tal estudo, que deve qualificar a índole do réo, do mais
audacioso criminoso, deve interessar a sociedade brazileira.
José Rosa, desde que começou o summario estava julgado pela religião, pela
philosophia christã, pelo direito natural e civil, porque vilipendiou o gênero
humano, escarneceu das leis divinas, ludibriou a família, o decoro, o pudor, e
aberrando a natureza, impoz uma treda e abjecta correção à humanidade:-
creou mais um sentido.
Se a justiça tivesse mandado executar o maior criminoso dos nossos dias e
dentre os grandes nomes dos mais celebres assassinos avivasse o daquelle,
que mais assombro causou a esta geração, pouco teria feito, porque Juca Rosa
não deve ser enforcado.
Há datas de execráveis recordações na história, há memórias de cruciantes
lembranças.104

Juca Rosa foi, durante muito tempo, sinônimo de feiticeiro e se tornou vítima
do seu próprio prestigio. Segundo Maggie, “a crença no feitiço está na base desses
processos de perseguição”.105 O episódio em torno de Juca Rosa é o maior exemplo de
como era frágil a situação dos líderes religiosos e as praticas dos cultos de matriz
africana no Brasil, entre os séculos XIX e início do XX, uma vez que a crença em seus
poderes poderia significar prestígio, mas também poderia levá-los a serem acusados de,
através de suas atividades, causarem o mal. Nenhum “feiticeiro” foi tão execrado,
ironizado e humilhado como Juca Rosa.
Em 11 de setembro de 1871, foi noticiada a morte de Rodrigo Militão da Silva,
devido aos remédios ministrados por Juca Rosa “sirvam esses successos de lição
tremenda aos que acreditam na feitiçaria dos Quibombos e dos Cambombos”.106 O
rumoroso caso de Rosa movimentou a opinião pública. Os jornais davam a notícia,
peças de teatro foram criadas e o Periódico dos Pobres fez uma série de matérias,
simulando um júri feminino, julgando o feiticeiro. Na simulação, Juca Rosa foi definido
como
Creoulo, creado e vivendo nesta cidade, onde é escassa a civilisação entre o
povo, filho de uma africana, que lhe legou o mysterioso arcano de dar
fortuna, conseguio este heroe por longo tempo crear uma plêiade de
mulheres, ainda moças e bonitas, que partilhando alternadamente o seu leito e
para ali conduzindo suas próprias filhas, ainda virgens, para a consummação
de um sacrifício que encaravam como uma honra, contribuíam com o
imposto de grandes quantias para a manutenção do sultão. 107

Como na maioria das matérias jornalísticas da época, a narrativa do Periódico


dos Pobres enfatizava a sedução que o feiticeiro exercia sobre as mulheres, inclusive

104
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 15 de junho de 1871, p. 1.
105
MAGGIE, Yvone. Medo do feitiço 15 anos depois: a “ilusão da catequese” revisitada. In: GOMES,
Flavio Dos Santos; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2007. p. 352.
106
Jornal da Noite, Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1871, p. 2.
107
Ibidem, p.2.

35
sendo acusado de deflorar Francisca Feliciana de Souza, de 12 anos de idade, suposta
filha do próprio Juca Rosa. A história do feiticeiro Rosa ocorreu num período em que
eram discutidas e aprovadas leis sobre o “elemento servil”. Segundo Gabriela Sampaio,
no início dos anos de 1870, havia uma ideia de que os negros possuíam uma
deformação moral causada pela escravidão, e, na década, era em função da raça que se
tentava justificar uma alegada inferioridade do negro. Ainda segundo Sampaio,
“discutia-se muito o perigo moral que os negros representariam junto a famílias brancas,
como também os danos que a herança africana causaria na formação da nação”.108 Nas
décadas de 1880 e 1890 o racismo ganharia mais força.
Em 1894, Tito Augusto Diniz dos Santos, um africano mina, foi preso incurso
no art. 157 do código penal. A prisão foi realizada pelo delegado da 1ª delegacia urbana,
que chegou à casa de Tito no dia 8 de novembro, às oito horas da noite.109 Na ocasião,
encontrava-se na casa Francisca Joaquina d’Oliveira, que queria saber sobre a fidelidade
de seu amante, e João Damasceno Soares, que se opôs à prisão do líder e tentou ferir,
com uma faca, o sargento de polícia José Custodio de Oliveira Junior. Assim, contra
Soares, também foi lavrado auto de flagrante.110
O que os jornais não noticiaram é que, na casa de Tito, aguardando para ser
consultado, estava o importante comendador Lino Rodrigues Nóbrega, português, de
cinquenta e quatro anos, casado, próspero negociante e morador a rua Conde de Bonfim
nº 14, que foi uma das testemunhas ouvidas na delegacia e citado no processo de habeas
corpus, impetrado em favor de Tito, por seu advogado:
O Cidadão João Maria Correa de Sá e Benevides vem requerer a este Egrerio
Conselho uma ordem de habeas corpus preventivo a favor do preto
octogenário Tito Augusto Diniz dos Santos, que se acha illegalmente
ameaçado de prisão e pelos motivos que passo a expor.
O referido individuo é morador à Rua do Senador Pompeu, nº 264, nesta
Cidade quando às 8 horas a 9 horas de 9 de novembro p.p. foi sua casa
invadida pelo escrivão da 8ª circunscripção policial e alguns agentes de
Policia para diziam eles, dar busca para ver se encontravão feitiçarias porque
era casa de dar fortuna, e depois o condusirão preso para a Estação Policial
respectiva, levando também um homem branco que lá se achava, João
Damasceno Soares, só porque tinha feito algumas observações sob a injustiça
de tal procedimento.111

108
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Axé Carioca. Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 1, n. 6,
p. 32-35, dezembro/2005. p 33.
109
O Paiz, Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1894, p. 2
110
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1894, p. 2.
111
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL/Paciente requer habeas corpus por acusações de charlatanismo e
curandeirismo (1894-1895). Arquivo Nacional. BVO. HCO. 0174

36
No dia seguinte, os dois presos foram postos em liberdade, lavrando-se, contra
Tito, auto de flagrante por exercer feitiçarias, que era para justificar a fiança provisória
de 200 reis. Em dezembro, Tito foi recolhido à Casa de Detenção por ter sido
pronunciado pelo juiz da Câmara Criminal.112 O advogado do réu alegou que pela Lei
de 3 de dezembro e art. 299 do Regimento de Janeiro de 1842: “não podia o juiz da
Camara Criminal, talvez porque não converteu a fiança provisória em definitiva,
manda-lo prender como o fez”.113 O advogado solicitou, a bem de direito de seu cliente,
que fosse informado: qual o delito que lhe era imputado; se lavraram auto de flagrante e
quais os depoimentos das testemunhas; se prestara fiança provisória; em que data foram
os autos para seu cartório? O escrivão do Tribunal Civil e Criminal, Procopio Gomes
Cabral Velho, respondeu:

Certifico
Que revendo o sumário de culpa contra Tito A. D. dos Santos
1 º Que o delicto imputado ao réu é o artigo cento e concoenta e sete do
código penal
Observação: Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de
talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar
cura de moléstias curáveis e ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a
credulidade pública.114

O artigo 157, do código penal de 1890, foi o grande inimigo dos praticantes de
cultos de matrizes africanas e, por causa dele, muitos líderes religiosos foram presos. O
depoimento de Francisca Joaquina d’Oliveira, brasileira, de 21 anos, solteira, costureira,
analfabeta, moradora na rua do Espírito Santo, que consultava Tito Augusto no
momento da chegada do delegado, serviu para o enquadramento do “feiticeiro”:
Tendo noticia por uma amiga que o acusado por meio de sortes adivinhava o
futuro e informava sobre fatos acontecido se dirigiu, hoje, cerca de oito horas
da noite à casa do mesmo a fim de saber sobre se seu amante lhe guardava
fidelidade. Mas no acto da consulta chegou a policia apreendendo todos os
objetos destinados especialmente a advinha. Segundo a testemunha a policia
prendeu o acusado antes que lhe satisfisesse a consulta e recebesse qualquer
quantia pelo trabalho e que ignorava quanto era a consulta mas que ela estava
disposta a pagar o que lhe fosse exigido. E mais não disse. 115

No depoimento da costureira Francisca, fica sugerido que a polícia não


encontrou Tito realizando nenhuma prática: “a policia prendeu o acusado antes que lhe

112
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1894, p. 2.
113
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL/Paciente requer habeas corpus por acusações de charlatanismo e
curandeirismo (1894-1895). Arquivo Nacional. BVO. HCO. 0174, p.2.
114
Idem, Ibidem, p. 5.
115
Idem, ibidem, p.5 (verso)

37
satisfisesse a consulta”.116 A outra testemunha, o comendador Lino Rodrigues Nóbrega,
disse que conhecia o acusado, Tito Augusto Diniz dos Santos, há cerca de seis anos e
que, às vezes, tinha ido a sua residência conversar não só com ele, mas também com um
seu inquilino João Damasceno Soares. Disse que Tito estava dando consultas a algumas
pessoas quando a polícia chegou, apreendendo objetos destinados a adivinhação e ao
culto da religião praticada pelo acusado, e que as pessoas lhe davam quantias, mas que
ele não impunha o valor.117
Segundo o advogado, o pedido de habeas corpus se fundamentava no abuso com
que se lavrou o auto de flagrante, uma vez que todos os depoimentos das testemunhas
afirmavam: “que a policia não encontrou o paciente na pratica de delicto algum e menos
do art. 157. Se ele estava pacificamente em sua casa, se as testemunhas do auto não
viram a pratica de crime algum, para o que se inventou tal flagrante?”118 O habeas
corpus foi negado, não dando provimento ao recurso interposto pelo paciente, e o
pedido de soltura não foi aceito. Entretanto, Tito não estava preso na Casa de Detenção:
ele cumpria prisão domiciliar.
De citação com o prazo de 20 dias
O Dr. Francisco José Viveiros de Castro, juiz da Camara Criminal.
Faço saber aos que o presente edital de citação com o prazo de 20 dias virem,
que, não tendo encontrado Tito Augusto Diniz dos Santos, que está sendo
processado por esta Camara pelo art. 157 do Codigo Penal, pelo que vindo-
me os autos conclusos neles dei o despacho do teor seguinte: Designo o dia 6
de fevereiro para a continuação do summario, citado o réo para se ver
processar por edital do 20 dias, passando-se novo mandado para a citação das
testemunhas, sciente o Dr. promotor publico. Rio, 14 de janeiro de 1895. —
Viveiros de Castro. 'Pelo 'que mandei passar o presente e outro de igual teor
que sera publicado pela imprensa e affixado na forma lei pelo porteiro dos
auditorios: pelo que é chamado o réo Tito Angusto Diniz dos Santos para
comparecer no dia 6 do fevereiro ao meio-dia na casa da rua da Constituição
n. 48 onde funcciona a Camara Criminal, afim de se ver processar e assistir
ao depoimento das testemunhas, sob pena de revelia até final julgamento.
Dado e passado aos 12 de janeiro de 1895. E, eu, Procopio G. Francisco Jose
Cabral Velho, o subscrevi.119

Em 9 de setembro de 1895 o Diário Oficial da União publicou que, na Sessão da


Câmara, o réu Tito Augusto havia sido absolvido.120 A forma como o processo contra
Tito Augusto foi conduzido revela as estratégias de sobrevivência utilizadas por muitos
“feiticeiros”: o estabelecimento de ligação com pessoas importantes que, em troca de

116
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL/Paciente requer habeas corpus por acusações de charlatanismo e
curandeirismo (1894-1895). Arquivo Nacional BVO. HCO.0174, p.5.
117
Idem, ibidem, p.7.
118
Idem, ibidem, p. 12.
119
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, Seção 1, 14/01/1895 página 15.
120
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1895, p.2.

38
seus serviços religiosos, representavam proteção. Tito Augusto teve, em sua defesa,
João Maria Correa de Sá e Benevides, advogado bastante conhecido e que chegou, em
1892, a ocupar cargo de juiz, o que pode indicar que, ou advogado foi pago por algum
amigo, talvez o comendador, ou que as consultas de Tito possibilitavam um bom
rendimento. Entretanto, dois anos depois da absolvição, teve novos problemas com a
polícia:
Há muitos annos, as auctoridades da 8ª circunscripção tem sciencia de que o
negro africano Tito Augusto Dinis dos Santos, de 80 annos, presumíveis,
morador à rua Senador Pompeu n.264, exerce a profissão de curandeiro, e, o
que é peior, utilisa-se da feitiçaria para illudir a credulidade de sua clientela.
Processado em 1895, foi condenado pelo Tribunal Civil e Criminal no
máximo da pena. Appellou, porém, para a Corte de Appelação e foi em 6 de
setembro do mesmo anno absolvido, contra os votos dos desembargadores T.
Coimbra e Miranda Ribeiro.
Dessa data em diante as auctoridades da Circumscripção tornaram-se
impotentes contra as façanhas do Tito, que, com maior audácia e
121
enthusiasmo, continua a sua vida criminosa.

Em 27 de setembro de 1897, às 13 horas, José Antonio Rodrigues, um dos


clientes de Tito Augusto, foi comunicar ao delegado que o português João Damasceno
Soares, o secretário do feiticeiro que, em 1894, havia reagido contra a prisão de Tito,
havia falecido repentinamente naquela “casa de dar fortuna”. O delegado, acompanhado
de inspetores e praças, encontrou o cadáver de Soares deitado em um leito, na sala de
visitas, “guardado pela sociedade ignara que diariamente vae alli buscar saúde, fortuna e
felicidade”.122
Como era de praxe na ação da polícia nessas invasões, a casa de Tito foi
revistada e, em uma cômoda “armada em altar”, estava um manipanso, cercado de
vários objetos identificados como usados no culto da feitiçaria: cornos de boi, veado e
cobra, rosário de búzios, penas de galinha e papagaio, raízes, dentes de animais, facas,
pós, figas e mil entre outros acessórios singulares. O delegado fez a apreensão de tudo,
recolhendo-os à delegacia, onde foram depositados num grande cesto. O cadáver de
João Damasceno Soares foi encaminhado ao necrotério para ser submetido à autópsia
pelos médicos legistas de polícia. Tito Augusto Diniz dos Santos foi levado ao xadrez,
mas, dessa vez, estava acompanhado de vários seguidores: Antonio de Araujo, Manoel
André Correia, Antonio de Moura, Leopoldo Ribeiro da Silva, Geraldino da Costa
Rocha, Roque Francisco, Alberto da Costa Oliveira, Herculano Ferreira de Andrade,
Maria Prudencia, Leopoldina da Silva e Adalgisa da Silva. Não localizei, em arquivos

121
A Noticia, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1897, p. 2.
122
Ibidem.

39
ou periódicos, nenhuma informação sobre o que aconteceu com o velho Tito Augusto
nesse novo processo.
Todavia, Tito Augusto já deveria estar acostumado com a rotina de prisões, uma
vez que, em março de 1877, também já havia sido preso pela prática de feitiçaria,
quando o subdelegado do 2º Distrito de Santana deu busca em sua casa. Naquela época,
Tito morava na rua Princeza dos Cajueiros, n.63, e consentiu, sem maiores problemas,
que os policiais entrassem na residência, aonde encontraram “o templo perfeitamente
adornado e de toda a parte surgia o mais perfumado aroma dos supersticiosos
mysterios”.123 Foram achados na casa de: bonecos de diversas cores e feitios, espadas,
pedras, chocalhos, esqueletos de animais, tambores e mais uma infinidade de
bugigangas, além de seis pretas minas que serviam de “acolytas do celebrante”. Desta
vez, Tito não estava dando consultas, havia em sua casa um grupo de iniciadas, e o
espaço possuía elementos que caracterizam a prática de rituais diferentes do
atendimento de consulentes, como tambores e chocalhos. Ainda existia, nas ocorrências
de 1877, 1894 e 1897, a presença de grande quantidade de búzios, o que era
característico da prática adivinhatória comum aos sacerdotes de Ifá. Portanto, as
informações publicadas nas várias matérias sobre ele e os objetos apreendidos em seu
poder revelam dados esclarecedores sobre Tito Augusto.
Na tradição da África Ocidental, por exemplo, os babalaôs são os que
transmitem, através do jogo adivinhatório, os desígnios de Ifá: “uma das principais
divindades do povo iorubá, tido como um dos grandes ministros de Olodumare
(princípio supremo e todo-poderoso) enviados à Terra para realizar funções
determinadas”.124 O processo de iniciação desses sacerdotes era longo, começava na
infância e consistia em várias etapas até o domínio sobre o jogo adivinhatório, feito com
dezesseis nozes de palmeira, os ikins sagrados, com búzios ou o opelê, uma espécie de
colar de nozes ou búzios. O que foi encontrado no “templo” de Tito, em 1897, não era
um “rosário de búzios”, mas um opelê, com o qual aquele sacerdote de Ifá realizava o
jogo para seus consulentes e que representou uma das práticas religiosas mais
importantes nas religiões de matrizes africanas ainda tão comuns. Entretanto, como
destaquei anteriormente, era para a polícia uma prova contundente da “feitiçaria”.

123
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 27 de março de 1877, p. 2.
124
SODRÉ, Muniz. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-ketu brasileira.
Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 1996. p. 36

40
Assim, na cidade do Rio de Janeiro, na década de 1870, atuavam, entre tantos
outros, dois sacerdotes que se reconheciam com representantes do legado africano: Juca
Rosa – herdeiro dos costumes dos africanos centrais mais antigos no cenário carioca – e
Tito Augusto Diniz dos Santos – sacerdote de uma religiosidade que se consolidava na
cidade: a dos “minas”. As tradições religiosas da África Central e África Ocidental
foram sendo apropriadas e reinventadas, ao longo dos séculos XIX e XX, pelos
praticantes. Acabaram por influenciar outras crenças religiosas, como a macumba e o
olomocô. Por outro lado, seus praticantes tiveram que buscar soluções para, em meio às
perseguições, levarem adiante seus cultos. Foi na estreita passagem que separa o
“poder” da “desgraça”, como o feiticeiro Juca Rosa definiu sua situação devido ao
processo que sofreu, que as diferentes comunidades religiosas de africanos e seus
descendentes no Rio de Janeiro, especialmente no período em que se insere este estudo,
trilharam no exercício de suas religiosidades.

41
CAPÍTULO II: UM RIO DE DIVERSIDADE ÉTNICA E RELIGIOSA

O Rio de Janeiro satanico, occulto, mysterioso, esse Rio de Janeiro das


espeluncas, do Sacco do Alferes, da Saude, da Cabeça de Porco, dos negros
minas, dos ciganos, dos feiticeiros, e dos espiritos.
Araripe Junior (1894)

UMA CIDADE E MUITOS OLHARES: ANTIGOS E NOVOS MORADORES

Araripe Junior, comentando o livro A Capital Federal, de Coelho Neto, criticou


a obra, que apresentava apenas aspectos da “cidade modernizada”.125 Para o crítico,
havia elementos importantes não retratados: o “mundo” de uma população que ficou à
margem do espaço europeizado que se projetava na capital brasileira.
Entre as últimas décadas do século XIX e primeiras do XX, coexistiam na
cidade do Rio de Janeiro setores sociais variados: pessoas ilustres responsáveis pelos
destinos da nação – como o Imperador, nobres, presidentes da nascente República,
políticos, burgueses ricos, que frequentavam a seleta rua do Ouvidor – ao mesmo tempo
brancos pobres, imigrantes, pretos livres, ex-escravos e libertos. Para esse último grupo,
a cidade tinha outro olhar. Essas pessoas tinham uma coisa em comum: não estavam
plenamente inseridas socialmente. Suas vidas transitavam entre ocupações subtalternas
e pouco menos de uma total marginalização: eram quase cidadãos.
Em muitos casos, a liberdade não significou o avesso da escravidão. Em outros, a
sujeição, a subordinação e a desumanização, que davam inteligibilidade à experiência
do cativeiro, foram requalificadas num contexto posterior ao término formal da
escravidão, no qual relações de trabalho, de hierarquia e de poder abrigaram identidades
sociais se não idênticas, similares àquelas que determinada historiografia qualificou
como exclusivas ou características das relações senhor-escravo.126

Um dos direitos fundamentais do cidadão é participar na vida da nação. O


"quase cidadão" é aquele que teve seus plenos direitos civis cerceados. Identificar a
maioria da população negra como "quase cidadão", após as leis emancipacionistas,
abolição e implementação da república, justifica-se pelo caráter excludente da sociedade
e pensamento social emergente. As diferentes constituições do Brasil continham

125
Coelho Netto, sob pseudônimo de Anselmo Ribas, publicou o romance A capital federal (impressões
de um sertanejo), no início da década de 1890.
126
GOMES, Flávio dos Santos; CUNHA, Olívia Maria Gomes. Introdução: que cidadão? Retóricas da
igualdade, cotidiano da diferença. In: GOMES, F. dos S.; CUNHA, O. M. G. (org.). Quase cidadão:
histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007. p.11

42
elementos que confirmavam tal exclusão: a constituição de 1824, que vigorou durante o
Império, institucionalizava o direito ao voto somente aos homens livres e proprietários,
de acordo com seu nível de renda. A instauração do regime republicano não trouxe
significativas mudanças, uma vez que, embora estabelecendo o sufrágio universal
masculino para todos os brasileiros maiores de 21 anos de idade, excluía analfabetos,
mulheres e militares de baixa patente, parte substantiva da população. Por outro lado, no
pós-abolição, a não inserção no mercado de trabalho e a inexistência de políticas
públicas voltadas para a população de ex-escravos e seus descendentes acentuavam
ainda mais as desigualdades e diferenças étnico-raciais. O Brasil assumiu,
especialmente entre a segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século
XX, uma cultura de “embranquecimento”, considerado elemento essencial para o
desenvolvimento. Representava desdobramentos de teorias raciais que procuravam
justificar as mazelas da nação diante da concentração de negros e mulatos.
A cidade do Rio de Janeiro, sede do governo imperial e depois do republicano,
concentrou um contigente populacional de origem negra que aumentou
consideravelmente ao longo do século XIX. A história da “cidade negra” carioca teve
vários capítulos, da demografia a história social. A área urbana era, no final do século
XVIII, restrita a quatro freguesias até, no final do século XIX, alcançar a “Cidade
Nova”. Nessa evolução, foi incontestável a presença dos africanos e seus descendentes.
Tabela 1: Freguesias da Cidade do Rio de Janeiro- 1799
Freguesia Brancos Pardos Libertos Pretos Libertos Escravos
Sé Catedral 5759 1015 1041 3372
Candelária 4082 440 330 4636
São José 2305 1384 1523 3584
Santa Rita 6750 965 1691 2991
Conventos 683 123 - 403
TOTAL 19.579 3.927 4.585 14.986
População total da cidade: 43. 077 habitantes127
Portanto, a população cativa no Rio de Janeiro, no final do século XVIII, atingia
aproximadamente 35%. Somando a essa população escravizada os pretos e pardos
libertos, temos 23.798, o que totaliza 54,86% de negros e seus descendentes. O Mappa
dos fogos, pessoas livres e escravos compprendidos nas freguezias da cidade e
província do Rio de Janeiro128 mostra que, também em 1821, a maioria da população da
cidade era formada por escravos. As freguesias de Santa Rita, Santana, Sacramento,

127
Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo XXI, 1858, p216-217
128
MAPPA da População da Corte e Província do Rio de Janeiro em 1821. Revista do IHGB, Rio de
Janeiro, Tomo XXXIII, p. 135-142, 1870. Foi mantida a grafia original.

43
Candelária e S. José tinham, juntas, um total de 79.321 moradores, sendo que, desse
total, 36.182 eram escravos, qual seja, 45% de cativos, sem contar a população de
libertos e filhos de libertos. A concentração de população negra chamou a atenção de
diversos viajantes. O príncipe Maximiliano, em seu livro de viagem ao Brasil, ressaltou:
“os estrangeiros recém-chegados se surpreendem com o grande número de negros e
mulatos que encontram nas ruas, no meio da multidão que as enche; pois a população
do Rio de Janeiro conta maior número de negros e homem de cor que de brancos”.129
Não era apenas o núcleo urbano carioca que concentrava escravos. Em toda a
província fluminense os números eram acentuados. De uma população total de 333.056
habitantes, em 1820, a província do Rio de Janeiro possuía 173.775 escravos,
aproximadamente 52% da população, cabendo destacar que não podemos excluir a forte
presença de pardos e pretos livres e libertos na população livre.
No último quartel do século XIX, a Corte imperial, que concentrava parte
considerável da população negra, tinha como paróquias centrais: Candelária,
Sacramento, Santa Rita, Santana, São José, Santo Antonio e Espírito Santo, conhecidas
como freguesias de “dentro”. No Recenseamento de 1872, temos a seguinte distribuição
populacional:
Tabela 2: Freguesias Habitantes
Santana 33.746
Santa Rita 30.057
Sacramento 22.927
S. José 17.378
Santo Antonio 16.756
Espírito Santo 12.097
Candelária 8.162
TOTAL 141.123
Fonte 1: Recenseamento Geral de 1872

Do total de 226.033 moradores na cidade do Rio de Janeiro, pelos dados do


censo, 141.123 moravam na exígua área central da cidade, sendo que 61,5% estavam
nas três freguesias de Sant’Anna, Santa Rita e Sacramento. Enquanto isso, a extensa
área que abrangia São Cristóvão, Jacarepaguá, Inhaúma, entre outras localidades, até
chegar a Santa Cruz, possuía 45.549 habitantes. Nas freguesias da Glória, Engenho
Velho e Lagoa somavam-se 40.966 habitantes.

129
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. [Frankfurt, 1820]Belo
Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1989, p. 24.

44
A imensa população de negros — escravos ou livres — atuava em diferentes
setores da economia da cidade, como escravos de ganho, de aluguel, domésticos ou
outras atividades, e participavam amplamente vida na cidade. Entretanto, é importante
observar que, especialmente com o aumento do tráfico interprovincial, essa população
apresentava original diversidade étnica. Francis Castelnau, naturalista inglês relatou
sobre o Rio de Janeiro: “Encontrareis representadas aqui umas cinquenta tribos da
Africa, reconheciveis pelas diferenças apresentadas pelos sulcos que lhes tatuam o
corpo, e também pela maneira com que foram limados os dentes”.130 Essa diversidade
étnica pode ser observada nas listas de africanos, chamados “africanos livres”, que
receberam carta de emancipação pelo Ministério da Justiça:
Tabela 3: Relação dos africanos, por aviso de 4 de julho de 1864, se mandou passar carta de
emancipação
Nome Nação Nome Nação
Thomé Monjollo Marcello Moçambique
Jacome Monjollo Norberto Mateca
Arnaldo Congo Olegário Loango
Amancio Chuatama Pantaleão Quilimane
Antonio Angola Ventura Quilimane
Cornélio Batista
Affonso Congo Himeno Quilimane
Julio Cabinda Lourenço Tapa
Fernando Cabinda Romão Congo
Bernardino Congo Diocleciano Congo
Catharina Maxicongo Christovão Angola
Eduardo Macua Angelica Beguella
Elisen Cabinda Libanio Cassange
Eulalia Benguella Ivo Benguella
Epifanio Chuatama João Angola
Frederico Bombu Delfina Maxicongo
Florencio Cabinda Thomazia Cacinde
Francisco Cabinda Rita Camambe
Henrique Rebollo Cesario Congo
Leonardo Chuatama Marianna Cabinda
Luiz Quilimane Eleutério Congo
Marcelino Cabinda Amancio Congo
Gervasio Congo Januario Congo

130
CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. [Paris, 1850]; São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1949. Vol.1. p.77.

45
Jeronymo Congo Silvestre Moange
Malvino Congo Cassandra Moxicongo
Diocleciana Canhango Romão Benguella
Romão Congo Joaquim Benguella
Henrique Congo Umbelino Moange
Isabel Conga Verissimo Moteca
Bartholomeo Benguella Gandelio Mina
Carmello Cabinda Gertrudes Benguella
Bernardo Massongo Dionysia Rebollo
Pompeo Cabinda Maria Cabinda
Felicia Moçambique Eduwiges Moxicongo
Basilia Quilimane
Fonte 2: Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 7 de julho de 1864, p. 1.

Nas últimas décadas do século XIX, não apenas o Rio de Janeiro possuía uma
grande concentração de africanos, como, o que era muito importante, havia uma
diversidade étnica, com povos originados da África Ocidental, Oriental e Central e que
iriam interagir nesse espaço urbano e deixar legados na cultura da cidade. Embora a
maioria da população negra estivesse na área de Santa Rita, Sacramento e Santana, isso
significava que estavam limitados a essas áreas, principalmente, no final do século XIX.
Proliferavam na cidade os zungus, botequins, casas de dar fortuna e vendas, locais de
socialização da população negra, que era observada com atenção pelas autoridades.
No Rio de Janeiro, na capital e seus arrabaldes, a presença negra era
historicamente substantiva. Isso justificava os temores com relação a possíveis levantes.
Comparando a primeira e a segunda décadas do século XIX, observamos o crescente
número de negros e pardos na capital. Karasch estimava que, na primeira metade do
XIX, os negros chegaram a ser 50% da população da Corte. Na segunda metade do
século, os números não seriam muito menores. Tal concentração em período de
repercussão de revoltas — rebeliões na Bahia, entre 1807 e 1835 — aumentava ainda
mais o medo na população branca e no governo. Nas primeiras décadas do século XIX,
a escravidão se fazia sentir em todas as esferas urbanas:
Os escravos mais forçudos trabalham nas ruas como carregadores. Andam
nus com uma simples tanga amarrada à cintura, que mal cobre as coxas.
Levam todas as cargas à cabeça. Às vezes, bastam seis e mesmo quatro para
carregar de pressa uma caixa de açúcar do peso de 2.200 libras. Esses
mariolas entregam aos seus amos uma diária certa e eles próprios satisfazem
as suas necessidades de vida. O mesmo se dá com as jovens pretas, que
vendem frutas e outras miudezas, obrigadas a entregar de 16 a 20 vinténs ou
meio tá ler por dia. O que ganham a mais lhes pertence. Como estas últimas

46
praticam também outro ramo de negócio, muitas possuem elevados capitais.
Trajam-se elegantemente...
O turbante vermelho esconde-lhes a carapinha, única coisa que numa preta
acho excessivamente feio. Um ombro fica meio descoberto. Do outro cai um
pano de cores variegadas. Conduzem as mercadorias à cabeça e as apregoam
em voz alta, fazendo das suas até altas horas da noite, pelas ruas e praças da
cidade...
Uma lei antiga proíbe aos escravos e escravas o uso de sapatos ou qualquer
outro calçado pelo qual se distinguem deles os negros livres. Excetuam-se
lacaios e cocheiros dos nobres e altos funcionários do Estado, que, de meias
de seda, roupa branca e chapéu de três bicos, ficam de pé na traseira das
carruagens de seus amos ou, com botas enormes, conduzem, montados, as
mulas que se atrelam geralmente a esses veículos. 131

O cotidiano do trabalho escravo — africano e crioulo — era tema das descrições


dos viajantes. Relações sociais, mundo do trabalho, comportamento, alimentação e
indumentária apareciam em detalhes nas narrativas de estrangeiros que passaram na
cidade. Jornais, com anuncios e noticiarios, também produziam imagens detalhadas
desta “cidade negra”. Na Corte, havia medidas que tinham por objetivo um controle
mais efetivo da população, como o Edital de Posturas, estabelecendo serem proibidas
as conhecidas, vulgarmente, pelos nomes de casas de zungú e batuques. Segundo o
edital, os donos ou chefes de tais casas seriam punidos com a pena de oito dias de prisão
e 30$ de multa e, nas reincidências, com 30 dias de prisão e 60$ de multa.132
Um aspecto fundamental, que não pode ser minimizado, é que a escravidão se
baseava no “direito de propriedade”. O senhor, nas cidades, podia mandar prender e
açoitar, enquanto nas áreas rurais, o poder era realmente absoluto. É evidente que essa
relação era, muitas vezes, conflituosa. Assim, os periódicos que circulavam na Corte
divulgavam fatos ocorridos em outras regiões, o que contribuía para um clima tenso. O
jornal Folha Nova publicou, em 1882, uma matéria em que destaca a situação
conflituosa entre proprietários de terras, em Campinas, e seus escravos:
Convém que a lavoura actual se convença, que é mais perigosa esta
resistência ostensiva, para a manutenção do elemento servil do que a
propaganda mais ou menos suave, mais ou menos violenta.O impulso inicial
está dado e augmenta d’intensidade na razão directa do quadro das distancias.
Esta força segue a lei commum a todas as forças, que são perigosas, quando
abandonadas a si próprias, e uteis quando convenientemente dirigidas.
Enfrental-as para conhecer, dirigir e mesmo utilisarem bem de todos,
interessados ou não, é um dever e mesmo uma grande conveniência da
própria lavoura; mas enfrental-a opondo-lhe barricadas, coaçções, violências,
parece-nos provocal-as, animal-as e habital-as diectamente a um choque
medonho.

131
SCHICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é: 1824-1828. [Hannover, 1829]; Rio de Janeiro:
Editora Getúlio Vargas, 1943, p. 132.
132
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20 de maio de 1834, p. 2. A Câmara Municipal da Corte
aprovou, em 23 de dezembro de 1833, o Código de Posturas da cidade.

47
Preparem evolução mas evitem intelligentemente a revolução.133

O relato publicado pelo Folha Nova mostra como as questões ligadas ao


“elemento servil” se refletiam na sociedade, e não podemos deixar de pensar sobre os
possíveis impactos causados nas práticas cotidianas — sejam de trabalho ou culturais—
dos escravizados, libertos e negros livres. Para controlar a população negra, escrava ou
livre, havia dispositivos legais: de açoite até a Casa de Correção. Mas, nesse contexto,
os suicídios, fugas, assassinatos e punições eram frequentes. O fim do tráfico, em 1850,
e o consequente aumento do tráfico interprovincianal, haviam provocado mudanças nas
relações sociais entre os escravos, ocasionando o aumento de fugas, suicídios,
assassinatos de senhores e feitores, motins e uma forte repressão dos fazendeiros e
autoridades sobre a escravaria. Wilson Roberto Mattos, analisando dados apresentados
por Sidney Chalhoub, afirma que uma das principais razões dos crimes cometidos por
escravos contra senhores ou agenciadores de compra e venda de cativos na Corte do Rio
de Janeiro, durante as últimas décadas da escravidão, foi, exatamente, a intenção desses
senhores e agenciadores de transferi-los para o interior. Mattos ressalta a evidência,
entre os escravos, de que a venda para o interior representava o abandono de antigos
hábitos e práticas comuns à escravidão urbana, especialmente em relação à certa
autonomia de circulação pela cidade e de organização da rotina de trabalho.134 De
acordo com o autor, a separação da família ou de grupos de referência mais amplos, a
necessidade de “construção de novos laços de convivência, nem sempre fáceis, dada as
diferenças étnicas e outras, o indesejado trabalho no eito com toda a rudeza de suas
imposições, castigos”.135 Mattos concluiu que esses fatores motivaram alguns escravos
a praticarem crimes ou apelarem legalmente às autoridades.
Couceiro também observa que, com o final do tráfico atlântico, ocorreu a
intensificação do tráfico interno, e que os africanos ladinos e crioulos foram “vendidos
das propriedades onde trabalhavam – e onde esperavam ver recompensadas suas
estratégias de aproximação com os senhores – e enviados às fazendas do sudeste, nas
quais passaram a ser tratados como verdadeiros estrangeiros”.136 Isso reforça a

133
A Folha Nova, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1882, p.2.
134
MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: Astúcias, resistências e liberdades possíveis
(Salvador, 1850-1888). Salvador: EDUNEB; EDUFBA, 2008, p. 156.
135
Idem, ibidem, p.156.
136
COUCEIRO, Luiz Alberto; ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira. Dimensões Cativas e construção da
emancipação: relações morais nas lógicas de sociabilidade de escravos e livres. Sudeste, 1860-1888.
Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, Ano 25, n. 2, pp. 281-306, 2003, p.284.

48
explicação do grande número de suicídios, assassinatos e fugas que constam dos
relatórios dos presidentes de província.
Em 25 de julho de 1872, na freguesia de S. Gonçalo, suicidou-se, tomando
massa phosphorica, uma preta escrava; soube-se por declaração daquela
infeliz, pouco antes de morrer, que fora levada a praticar semelhante ato de
desespero pela desconfiança de que ia ser vendida. 137
Na tarde de 28 de junho, apareceu junto à ponte das barcas Fluminenses, no
2º Distrito desta capital, o cadáver de um individuo de cor preta,
representando ter sessenta anos de idade, e supõe-se ser o escravo que no dia
23 do mesmo mês, em viagem da Corte pra Niterói, se atirara ao mar para
não ser vendido. O subdelegado fez o corpo de delicto, e reconhece-o-se a
morte produzida por asfixia por submersão. 138

Flávio dos Santos Gomes, analisando o contexto das fugas, destaca a


complexidade das motivações, que incluíam castigos e outros rigores do cativeiro.
Ainda segundo ele, outros contextos surgiriam. Por exemplo, o escravo Joaquim
Maurício, que foi preso como fugido em Pitangui, Minas Gerais, onde estava
trabalhando para Antônio Cardoso. Joaquim era natural da Bahia, tinha sido trazido para
o Rio de Janeiro e fora comprado por um fazendeiro de Cantagalo, onde trabalhou por
mais de um ano. Gomes conclui: “Alegou que fugiu apenas por ter ouvido de um
agregado da casa de seu senhor que ele estava forro, pois não havia sido
matriculado”.139
O tráfico interprovincial e as leis emancipacionistas foram componentes
importantes no fluxo migratório que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, mas não únicos.
A Guerra do Paraguai contribuiu para o deslocamento de muitos alforriados para a
Corte Imperial. Também contribuíram as alforrias dadas por senhores, especialmente do
nordeste, e a própria compra das suas liberdades, em vários casos através das
irmandades. Não podemos esquecer o considerável número de africanos livres, os que
haviam chegado no período do tráfico ilegal (1831-1850), que passaram a reivindicar a
emancipação na década de 60:
Rio de Janeiro, Secretaria de Policia da Corte.
18 de dezembro de 1862.1ª seção nº605
Ilmo e Exmo Sr.
Devolvemos a V. Exª o incluzo requerimento que acompanhou o ofício da
Secretaria de Estado de 16 do mez corrente no qual o Dr. Mariano Antonio
Dias pede que seja removida da Villa de Maricá para esta Corte, a africana

137
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro, 29 de setembro de
1872, conselheiro Josino Silva, Rio de Janeiro: Typ. Perseverança, 1872, p.10
138
Ibidem, p. 9.
139
GOMES, Flávio dos Santos. Experiências negras e Brasil escravista: questões e debates.
CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE ESTUDOS
AFRICANOS E ASIÁTICOS ALADAA, X, 2000, Rio de Janeiro. Brasil Cultura, Poder e Tecnologia:
África e Ásia face à Globalização: Disponível:<http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/aladaa/>. 7 de
abril de 2013

49
livre emancipada de nome Ernesta, cujos serviços havião sido confiados à
mulher do Suppe., cumpre-se informar a V. Exª que de conformidade com a
deliberação tomada com aquiescencia de V.Exª de não conservar os africanos
livres emancipados n’esta Cidade, onde já existe grande quantidade d’elles,
podendo ser mais uteis nas povoações do interior, designou-se para
residência d’esta africana a Vila de Maricá; mas attendendo ao que representa
o Suppe sou de parecer que seja deferida sua pretenção, permitindo-se que
resida a dita africana n’esta cidade em companhia de sua filha.
Deus guarde a V.Exª
Ilmº e Exmº Conselheiro João Luis Vieira de Sinimbu. Ministro e Secretario
de Estado Interino dos Negócios da Justiça.
Agostino Luis (ilegível) Chefe de Polícia.140

Ernesta teve sua situação resolvida e pôde reencontrar sua filha que vivia na
Corte. Entretanto, alguns casos eram mais complicados, como o de Antonia, de nação
Benguella, que, só anos depois de “ser escrava” de d. Anna Casimira dos Reis, tomou
conhecimento de que era livre e entrou com pedido de emancipação. Em 20 de setembro
de 1858, após vários requerimentos, o chefe de polícia da Corte, Izidro Borges
Monteiro, informou que já havia na Secretaria de Polícia da Corte uma carta de
emancipação da requerente e que não havia sido entregue “por falta de aviso especial
para este fim”.141Foram centenas de casos como os de Antonia, ou como do pequeno
Andre, de nação congo, idade presumível de nove anos, que, marcado no peito direito
com um F, estava livre e emancipado. Aqueles a quem era negada a emancipação
ficavam sob a “responsabilidade” de algum senhor, ou do próprio Estado, como foi o
caso de Brás, que se declarava como mina-nagô, apreendido em 1835, em desembarque
ocorrido na província da Bahia e que, havia vinte e dois anos, prestava serviços no
Arsenal de Guerra:
Diz Brás africano livre, de nação mina, que se acha prestando serviço Arsenal
de Guerra, que tendo requerido a V. M. I a sua carta de emancipação Dignou-
se V.M.I, mandar passar por aviso de (ilegível) novembro de 1859, mas não
tendo no referido aviso dirigido ao Juiz de Órfãos se declarado aonde aquele
se acha prestando serviços, por isso vem o Suppe, ardentemente de novo
implorar a V.M.I a graça declarar que o Suppe se acha no Arsenal de Guerra.
Graças esta que submissamente implora.
Rio, 2 de março de 186(ilegível) E.R. M.
A rogo do africano livre
José Fernandes Monteiro.142

Como a concessão da carta de emancipação estava vinculada a ter condições de


se manter e pagar a viagem de volta para algum ponto da África, muitos não
conseguiam a emancipação. Outros contavam com a ajuda das irmandades para

140
Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ6-525, nº 584, p. 2.
141
Ibidem, p.3.
142
Ibidem, p 7. José Fernandes Monteiro foi o responsável pelo encaminhamento da solicitação.

50
solucionar essas questões. Os que não conseguiam iam trabalhando nos mercados e em
demais tarefas na Corte.
No trabalho diário, entre os escravos de aluguel e de ganho, havia diferença de
mobilidade: o escravo de ganho ia para as ruas, oferecia seu serviço, combinava preços
e, no final do dia ou da semana, entregava ao senhor o valor estipulado de jornal,143 que
recebiam como vendedores ambulantes, carregadores ou quitandeiro, ou outra das
variadas atividades que poderiam exercer. Esses escravos tinham maior contato entre si
e com a população em geral, negra ou branca, e eram motivo de preocupação: essa
massa negra, escrava ou livre, que circulava pela Corte poderia promover levantes. O
controle sobre a população cativa gerava, muitas vezes, aspectos mostruosos de
violência senhorial. Ocorriam denúncias, inclusive para as autoridades, sobre castigos
excessivos, proibidos por lei, contra os escravos. Na prática, no entanto, a vida do cativo
estava subordinada a seu senhor, o que levava a situações como a relatada a seguir:

Monstruosidade
Ante hontem, foi encontrada em casa de Joaquim Ferreira de Araujo
Magalhães, no lugar denominado Pendura-Saia, em Larangeiras, uma pobre
preta, escrava daquele individuo, em estado tão lamentavel, que custa crer.
Com o corpo coberto de chagas, provenientes de barbaros castigos, de pés e
mãos ligados, a infeliz achava-se tão abatida e extenuada de forças que nem
fallar podia.
O dr. Chefe de policia, que tendo denúncias do facto, foi com alguma força
tomar conhecimento d’elle, mandou conduzir a mizera para a Sancta Casa da
Misericordia e lavrar o aucto de corpo de delicto.
A policia procede as averiguações e persegue o barbaro senhor, que, ao saber
que a policia se dirigia à sua casa, evadiu-se.144

A matéria choca pela narrativa da crueldade contra uma pessoa, que, pela
condição de cativa, não tinha como se defender. Por outro lado, é importante
observarmos que as denúncias eram feitas em jornais que apoiavam as causas em favor
da abolição da escravatura. A data da matéria citada é de um momento importante: a
década de 1870, num contexto em que se inicia o debate sobre emancipação. Com a
emergência da campanha abolicionista, a população escrava foi reduzida de um milhão
e meio, em 1872, para meio milhão, em 1883. Segundo Skidmore, antes da abolição
existia no Brasil um milhão e meio de escravos e quase o triplo de “homens de cor”
livres.145 A polícia exercia uma ação repressora e, muitas vezes, contava com denúncias

143
Os escravos de ganho tinham um valor estipulado, geralmente diário, que deveriam entregar ao senhor
pelas vendas realizadas.
144
A República, Rio de Janeiro, 26 de abril de 1873, p. 4.
145
SKIDMORE, Thomas. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Revista Argumento, n. 1, p. 25-45,
outubro de 1973, p. 27.

51
feitas pela população em relação aos locais de maior concentração da população negra,
especialmente seus espaços religiosos.
A divulgação de notíciario sobre possíveis levantes em diferentes regiões da
província do Rio de Janeiro fazia crescer as hostilidades contra os negros e a
insegurança entre a população da Corte. No entanto, nada é mais impresionante, sobre
esse clima, do que as informações dos chefes de polícia, inseridos nos Relatórios dos
Presidentes de Província. Um fato descrito no relatório de 1884 oferece uma exata
dimensão:
Tendo sido prevenido por telegramas, que foram dirigidos pelo Delegado de
policia de Rezende, de grande agitação que reinava naquella cidade, para alli
segui no dia 1º de maio, encontrando a população aterrorisada, desde a
vespera, por terem sido mortos por um grupo de individuos os escravos
Agostinho, Amancio e Estevão, que se achavam recolhidos á cadea, por
haverem assassinado seu senhor José Maria da Costa. Pondo em pratica todas
as medidas policiaes conducentes a restabelecer o socego publico, já
promovendo a nomeação de um Delegado de policia, já percorrendo a
freguezia, na qual os escravos haviam assassinado o senhor, já finalmente
colligindo a necessaria prova para o inquerito policial iniciado perante a
delegacia de policia, reconheci logo que um novo caso de lei de Lynch havia
sido praticado com a maior publicidade e audacia.
Como novos reforços de força policial foi o panico da população diminuindo
de intensidade, e em breves dias restabeleceu-se a ordem publica, seguindo o
inquerito seus devidos termos om minha cooperação e assistencia até
definitiva e legal remessa ao juiz formador da culpa. Nesse inquerito ficou
averiguado, que um grupo de trezentas pessoas, mais ou menos, atravessando
a ponte que liga a estação da estrada de ferro D. Pedro II á cidade de
Rezende, dirigio-se à cadea na qual se achavam os sobreditos escravos, sob a
vigilancia de sete praças, e ás 5 horas da madrugada de 30 do mez de Abril
tomou de assalto a mesma cadea, aterrando os praças e respectivo carcereiro,
que facilmente se deixaram subjugar. Apoderando-se, em seguida, do
armamento da guarda e chaves das enxovias, correram os assaltantes em
busca dos escravos referidos, que foram trucidados, cada um por sua vez, à
pauladas, bayonetas e tiros, sendo afinal arrastados para a frente da cadea,
onde elles ainda praticaram actos de verdadeira selvageria.146

O ocorrido no interior da provincia fluminense, iniciado por aspectos


particulares, reflete, no entanto, o clima existente, nas regiões rurais da província do Rio
de Janeiro e com repercussões na Corte, nas últimas décadas da escravidão. No relatório
de 1884, o chefe de polícia destaca que saiu de Rezende e foi a Campos
afim de ir alli manter a ordem publica ameaçada de pertubação, não me foi
difficil descobrir logo as causas, que motivaram a geral inquietação,
chegando sem grande esforço a conclusão de que nesse municipio, em que a
industria agrícola ainda dispõe de 30.000 escravos, aproximadamente, e
muito d’elles collocados em fazendas mui proximas à cidade, era bem fácil
fomentar-lhes a insubordinação, que é prenuncio da sublevaçã, sobretudo
quando é certo, que individuos de baixa esphera, dando expansão aos seus

146
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na abertura da
primeira sessão da vigesima quarta legislatura em 8 de agosto de 1884 pelo presidente, José Leandro de
Godoy e Vasconcellos. Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1884, A1, p.10.

52
maos instinctos, procuram, à sombra das idéas e propaganda abolicionista,
sobresaltar nas cidades populosas os cidadãs pacificos, que são os unicos a
perder com a anarchia.147

O interessante nesses relatos de fatos ocorridos no interior é avaliar como os


temores aumentavam e repercutiam na capital. A imprensa e o seu noticiario teria
importante papel de difusão. Nenhum caso teve tanta repercusão como o de Eduarda, de
15 anos, e Joana, de 17 anos, brasileiras, escravas que, durante três anos, foram
barbaramente torturadas por Francisca Silva de Castro, moradora de Botafogo. Após
conseguir fugir e orientada por transeuntes que ficaram apavorados com o seu estado,
Eduarda procurou o Gazeta da Tarde. A chegada da menina provocou alvoroço na
redação:
Tinha o rosto aberto em chagas, retalhado em sangrentos vincos, à ponta de
vergalho; os olhos fechados, as pálpebras avolumodas como tumores, por
medonha inflamação, deixando gotejar lagrimas horripilantes, atravéz das
dobras da inchação; as mãos inchadas como o rosto; os pulsos, o pescoço
cobertos de horríveis vestigiosos de cordas; o corpo todo contundido e
lacerado por graves sevicias.148

Eduarda contou que, na casa de Francisca, estava Joana em situação ainda pior
do que a dela. Com o apoio da Gazeta da Tarde e de representantes de outros jornais, a
menina foi levada ao juiz da 2ª Vara Cível que determinou, imediatamente, a retirada de
Joana da casa de Francisca e sua internação na Santa Casa da Misericórdia. Porém,
depois de três dias internada e sem recobrar a consciência, devido aos graves
ferimentos, a menina faleceu.
Francisca da Silva Castro era brasileira, tinha 35 anos e “cohabitava” com José
Joaquim de Magalhães. Os empregados da casa, inclusive o mordomo e o copeiro,
negaram que soubessem das torturas. Eduarda já havia conseguido fugir uma vez, em
1883, mas, embora muito machucada, foi devolvida aos seus senhores pelo alferes José
de Freitas Vallim. Devido ao clamor popular, da Confederação Abolicionista e da maior
parte da imprensa carioca, Francisca de Castro foi a julgamento, comparecendo ao
tribunal luxuosamente vestida e coberta de joias. Embora a ré tenha confessado as
torturas, o advogado, em defesa de sua cliente, afirmou que as próprias escravas haviam
se torturado, e a acusada foi considerada, por unanimidade, inocente.
Diante da decisão do júri de inocentar a ré, negando o quesito formulado se ela
era autora das sevícias — embora Francisca e o marido tivessem confessado — o
147
RELATÓRIO apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na abertura da
primeira sessão da vigesima quarta legislatura em 8 de agosto de 1884 pelo presidente, José Leandro de
Godoy e Vasconcellos. Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1884, A1, p. A11
148
Gazeta da Tarde, 11 de fevereiro de 1886, p.1.

53
próprio juiz recorreu. Enquanto esteve na Casa de Detenção, aguardando novo
julgamento, a acusada obteve autorização do administrador para ficar acompanhada de
uma escrava e revelou ao médico, responsável pelo exame de sanidade mental, que
tinha “desejos de castigar a preta”.149Ao ser questionada sobre o motivo, respondeu:
“Unicamente porque não gosto desta gente. Além disso, esta preta é também atrevida,
senta-se nas cadeiras, bebe água nos copos como se fosse branca”.150
O segundo julgamento foi marcado, e, novamente, tudo foi feito para inocentar
Francisca de Castro: desde a internação na Casa de Saúde Dr. Eiras, alegando
insanidade mental, até dois senadores assumirem a posição de defensores da acusada.
José do Patrocínio, que leu o libelo de abertura do novo julgamento, afirmou que: “ a
sua presença, se não fosse como acusador seria como cidadão que representa uma
causa”.151 O abolicionista, questionou a irregularidade de dois senadores serem os
defensores “quando a ré podia ter recorrido a advogados”.152
O “Caso Francisca de Castro”, como ficou conhecido, ocorreu em um momento
importante, quando se discutia o fim da aplicação do açoite e a campanha abolicionista
estava no auge. O senador Ignácio Martins, que atuou como defensor da ré, assumiu
publicamente o compromisso de apresentar um projeto de lei abolindo aquele castigo
para, logo em seguida, desobrigar-se, afirmando que havia muitos interesses em jogo.
Conforme destaca Conrad, o açoite era um instrumento significativo no regime
escravista, e sua proibição era “prelúdio” do fim. Patrocínio tinha razão, ao afirmar que
representava uma causa: o processo contra as torturas em Eduarda e pela morte de Joana
simbolizava um momento decisivo para a história da escravidão e acaloraram os debates
para aprovação, em 15 de outubro de 1886, da lei que proibiu o uso do açoite. No
entanto, como afirmou o senador Ignácio Martins, muitas coisas ainda estavam em jogo
no que diz respeito ao trabalho escravo. Assim, nessas relações nem sempre tranquilas,
nas quais repercutiam os temores de rebeliões escravas e a perda de domínio sobre os
escravizados, os espaços religiosos poderiam significar uma ameaça. É importante
considerarmos que a repressão e intolerância às religiosidades praticadas pela população
negra eram uma forma de controle.

149
Arquivo Nacional, Fundo ZM, Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara Exame de Sanidade Mental.
Numero 2078, maço 107, ano 1886. Requerente: José Joaquim de Magalhães. Examinada Francisca da
Silva Castro, f.47.
150
Ibidem.
151
Cidade do Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1887, p.2.
152
Ibidem.

54
A abolição e, mais tarde a República, aumentariam o número de pessoas que
vinham para a capital em busca de trabalho. Entretanto, vir para uma capital não era
uma solução: significava competir com os que aqui estavam e, muitas vezes, sem
nenhuma qualificação, o recém-chegado não tinha muitas perspectivas. O que deveria
ser uma solução para a frágil situação dessa população foi sinalizada, ainda em 1870,
por Tavares Bastos: “Que haveis de oferecer a esses degradados, que vão surgir da
senzala para a liberdade? O batismo da instrução.”153A abolição da escravidão
contribuiu decisivamente para uma nova corrente migratória no final do século XIX e
primeiras décadas do XX, em direção à cidade do Rio de Janeiro. O contexto
abolicionista possibilitava circunstâncias como o que ocorreu no noroeste fluminense:
Na Fazenda da Conceição, em Cantagalo, província do Rio de Janeiro, seu
proprietário libertou todos os escravos dias antes do 13 de maio. Nas festas
que então se realizaram, houve até coroação do antigo senhor pelos libertos e
enterro da palmatória e do vergalho. No dia seguinte, entretanto, os libertos
comunicaram ao senhor que para permanecerem na fazenda exigiam a
expulsão do administrador. Pouco disposto a concordar com a condição
imposta, o proprietário viu em poucos dias sua fazenda abandonada pelos ex-
escravos.154

Entretanto, a nova conjuntura não representou mudanças significativas na


maneira como a sociedade enxergava os ex-escravos e seus descendentes, os quase
cidadãos.
As narrativas jornalísticas revelam um aspecto que foi observado atentamente,
pelo governo imperial, assim como pelo republicano: a presença de uma “turba” que
não se inseria no projeto de modernização da sociedade. Essa população, formada por
escravos, africanos livres, libertos e brancos pobres, em fins do século XIX e alvorecer
do XX, convivendo em casas de jogo, zonas de prostituição, casas de dar fortuna,
botequins e zungús era um problema permanente que as autoridades tentavam
solucionar. Soares, em seu estudo sobre os zungús mostra como eles, na segunda
metade do século XIX, tinham importância para a população negra. O autor destaca que
os zungús da Corte, por volta da metade do século, atraíam indivíduos de toda a
província do Rio de Janeiro. “E os limites da cidade, longe do burburinho e da

153
BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. A província - estudo sobre a descentralização no Brasil. São
Paulo: Brasiliana, 1937. p.240.
154
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA, Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador;
Brasília: Centro de Estudos Afro-Orientais; Fundação Cultural Palmares, 2006.p.196.

55
vigilância policial mais intensa — e próximo das rotas para o interior — eram, neste
momento, os locais prediletos para as casa de batuque e de dar fortuna”.155
Atende a polícia
Comunicam-nos;
Queiram chamar a atenção das autoridades policiais, especialmente a do Sr.
Subdelegado da freguesia de S. José para as ofensas à moral publica que
diariamente se fazem em quatro ou cinco casas, chamadas vulgarmente de
Zunguns da rua do Cotovello, entre as ruas D. Manoel e da Misericórdia. Alli
reunen-se, quer de dia, quer de noite, vagabundos e escravos para a pratica de
cenas que envergonham uma capital como a nossa.
As famílias que tem a infelicidade de morar na vizinhança daquelas
espeluncas, ou de por ali passar, vêem-se obrigadas a não chegar ás janellas,
ou a privar-se até de sair de casa.
Podemos informar que até escravas fugidas ali se acoutam.
Esperamos que a polícia ponha cobro a taes desmandos.156

Dos grupos de negros e pardos que se deslocaram em direção à capital, o de


maior destaque foram os chamados “baianos”, que compreendia também maranhenses e
pernambucanos já chegados na segunda metade do século XIX. A Gazeta da Tarde, de
1881, oferece interessante narrativa a respeito do cenário que se delineava no Rio de
Janeiro:
Hoje de madrugada, a policia entrou furtivamente e inesperadamente em
diversos zungus da rua do Núncio.
A colheita foi preciossima macilentos vagabundos e lívidas nanãs em
números avultadissimos, foram surpreendidos nas suas praticas libertinas e
nas suas inclinações viciosas.157

É importante observar que, nesse relato sobre os zungus da rua do Núncio, mais
uma vez estão presentes determinados estereótipos. Slenes ressalta, sobre as danças
escravas de origem africana, que “a maioria dos observadores brancos não podiam
percebê-las senão como extremamente sensuais ou até lascivas”.158 Obviamente, essa
visão atingia também as práticas religiosas. Assim, aquelas mulheres reunidas nos
zunguns, no exercício de suas religiosidades, eram rotuladas como libertinas.
Entretanto, ao se referir à invasão dos zungus, moradias coletivas em que predominava
escravos, libertos e a população negra, faz-se alusão às presas como nanãs,159 mostrando
que tradições do candomblé nagô, trazidas pelos baianos, estavam incorporadas ao
cotidiano religioso urbano carioca.

155
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro, 1998. p.56.
156
O Globo, Rio de Janeiro, 5 de maio de 1875, p. 3.
157
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1881, p. 2.
158
SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. p.147
159
Nana: orixá da mitologia nagô.

56
Havia uma “solidariedade” no interior desse grupo de “baianos”, expressa na
entrevista de Hilário Jovino Ferreira sobre a origem dos ranchos, no Rio de Janeiro:
“Em 6 de janeiro de 1893, estava eu no Botequim do ‘Paraíso’, na Rua Larga de São
Joaquim (atual Marechal Floriano Peixoto), entre as ruas da Imperatriz e Regente, em
companhia de vários bahianos que costumeramente alli se reuniam”.160 Hilário Jovino
Ferreira, nascido em Pernambuco, provavelmente em torno de 1850, projetou-se na
cidade e era filho de ex-escravos: “foi levado ainda criança para Salvador. Chegou ao
Rio de Janeiro já adulto, em 1872. Tornou-se tenente da Guarda nacional, cargo apenas
honorífico. Ficou conhecido como Lalau de Ouro”.161
No Rio de Janeiro, Jovino morou primeiramente no morro da Conceição, aonde
conheceu o Rancho Dois de Ouro, do qual se tornou sócio. Posteriormente, devido a um
desentendimento com seus integrantes, abandonou o mesmo e fundou o rancho Reis de
Ouro, que passou a desfilar também no carnaval, ao contrário de outros ranchos que
desfilavam somente em janeiro, no dia de Reis.162Frequentador da casa de Tia Ciata e
marido de Tia Fé, mãe de santo, ele envolveu-se na polêmica sobre a autoria do samba
Pelo telefone, do qual dizia ser um dos compositores. Faria parte de um grupo de
pessoas que iria se projetar nas primeiras décadas do século XX, através de diferentes
atividades culturais e especialmente através da religiosidade, no caso o candomblé.
O advento da república e os projetos de modernização da cidade — trazendo
novas possibilidades de emprego nos canteiros de obras — fizeram também aumentar a
presença de pessoas oriundas do interior fluminense e do Espírito Santo. Para muitos, a
inserção na capital seria ainda mais difícil. Ocupariam diferentes áreas da cidade, desde
a região central até longínquos subúrbios. Nessa sociedade, em que ocupavam lugares
muito pouco definidos, mas bastante observados pelas autoridades, mulheres e homens
tiveram que buscar e garantir suas formas de sobrevivência, o que incluía a conquista de
um elemento fundamental: o território.
Assim, os relatos sobre a destruição, em 1893, do Cabeça de Porco, cortiço
situado na rua Barão de São Felix – “espaço apropriado e constituído de relações
sociais”163 – revelam um episódio emblemático, não apenas para os moradores, como

160
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1930, p. 5.
161
ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Cravo Albin da MPB. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em:
<http://www.dicionariompb.com.br/ricardo-cravo-albin>. Acesso em: 13 de junho de 2013
162
Ver Martha Abreu. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-
1900, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 215.
163
O conceito de território foi bastante discutido por vários autores. Não é meu objetivo aprofundar esse
tema, mas, pelo contexto da inserção dos diferentes fluxos migratórios pelo qual passou a cidade do Rio

57
pela repercussão provocada na imprensa, que aprovou a demolição. O fato representou,
de forma concreta, como a nascente República encarava os “territórios” dos “quase
cidadãos”. Esta situação seria ainda mais concreta nas casas de dar fortuna, zunguns e
candomblés, reconhecidos como territórios negros, que foram alvo certo para serem
combatidos. Desse modo, reconhecendo o território como o espaço de ações, busco,
neste estudo, abordar diferentes espaços, no qual agentes, antigos e novos moradores,
aqueles que para cá migraram, inventaram e ressignificaram suas vivências e
religiosidades de matriz africana, entre as décadas de 1870 e 1940, na cidade do Rio de
Janeiro.

MARIAS DA CONCEIÇÃO: OUTRAS E TANTOS OUTROS

Vários viajantes europeus que estiveram no Rio de Janeiro, principalmente na


primeira metade do século XIX, ajudaram a difundir uma visão preconceituosa em
relação à população negra. Burmeister dizia estar convencido da inferioridade mental do
preto em relação ao branco e acrescentava, “nunca pude, porém, durante todo o tempo
que lidei e tratei com os pretos, evitar certa repulsa”.164 Em 1871, outro viajante
europeu, afirmou que os negros são incapazes de ideias e que têm apenas o “dom da
imitação dos macacos”.165
Todavia não eram apenas os estrangeiros que tinham essa visão. João do Rio,
que retratou em suas crônicas o cotidiano do Rio de Janeiro, no início do século XX,
referia-se a mulheres mulatas como possuidoras de “olhos libidinosos de macacos”.166
As imagens sobre as mulheres negras, africanas, escravas e libertas eram, quase sempre,
negativas. Porém, desde antigos relatos, podemos entrever as agruras de suas vidas.

de Janeiro, é importante estabelecer como é considerado aqui esse conceito. Raquel Rolnik, ao procurar
dar visibilidade à trajetória dos africanos e seus descendentes, na cidade de São Paulo, do final do século
XIX até a atualidade, conceitua território como “uma ideia de espaço vivido; não só um espaço
geográfico delimitado, mas um espaço apropriado e constituído de relações sociais, por relações
culturais.” ROLNIK, Raquel. Lei e Política: A construção dos territórios urbanos. Espaço e Cultura –
Projeto História – 18 – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e Departamento de
História da PUC-SP, v.18 , p.135-154./1999, p. 137. Ver, entre outros autores: DEMATTEIS, G.
Geografia democrática, território e desenvolvimento local. Formação, v.2, n.12, p.11-26, 2005;
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
164
BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil – através das províncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais [1853]. Belo Horizonte; São Paulo: Editora Itatiaia; EDUSP, 1980, p. 72.
165
CONSTATT, Oscar. Brasil- terra e gente. [1871] Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1975, p.73.
166
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. [1908] São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 227.

58
A quem apprender ou der notícias certas na rua dos Latoeiros n. 45, da preta
Prudencia, que fugio no mez de julho, cujos signaes são o seguinte: nação
mina gegi, mostra ter 40 annos de idade, não tem signaes na cara de sua
nação, reforçada de corpo, cor fulla, faltão-lhe dous dentes na frente do lado
baixo, tem cabellos brancos, costuma mandar raspar a cabeça, é beiçuda e
cheia de cara, tem os pés grossos e os calcanhares rachados, é quitandeira de
tripas, costuma andar vestida de saia, panno da costa, lenço na cabeça, uso da
Bahia, tem sido vista na Cova da Onça por diversas pessoas, junto com um
preto mandigueiro, foi escrava muito tempo de uma senhora em S.Christovão
ao pé do rio da Joana, por nome D. Aninha, que a ocupava na quitanda de
tripas.
Protesta-se com todo o rigor da lei contra quem a tiver acoutada.167

A vida da africana Prudencia realmente não deve ter sido fácil. Muitas vezes, era
importante estabelecer laços de solidariedade, como o que formou com um “preto
mandigueiro”. Também não podemos desconsiderar que Prudencia fazia parte de um
grupo de africanos que eram olhados com precaução: os “minas”. Em 13 de setembro de
1879, a Gazeta de Noticias publicou uma carta, destacando a importância que os
africanos minas tinham. A religião deles era como uma mistura de fetichismo e
maometismo, formando uma confraria, onde uma falta poderia significar a morte. Na
carta, entretanto, é enfatizado o envolvimento com a prostituição:
Ao Exmo Sr, Chefe de Policia
Ainda não ficara completa no Rio De Janeiro a obra do sr. Titto de Mattos
senão quando V. Exª lançar seus olhos sobre uma classe menos favorecida e
que pois sua miserável condição passa desapercebida, porque ninguém digna-
se volver um olhar para ella, ainda mesmo de compaixão.
Referimo-nos às escravas dos negros minas.
Entre estes pretos ha especuladores que fazem constantes viagens para a
Bahia, onde vão procurar as que lhes parecem mais cheias de encantos e que
lhes assegurem, aqui no Rio de Janeiro, pingues lucros na venda ou na vida
torpe a que vão condenadas.
Quando querem comprar uma escrava illudem-às, dissendo-lhes que ellas
serão suas filhas e como taes serão tratadas, mas logo que as pilham em Cada
dia tem de sahir com o taboleiro e dar o jornal marcado, que é igual à venda
de todos os fructos, ainda mesmo que não achem comprador, como acontece
a maior parte das vezes. Depois da venda dos fructos tem de ir lavar ou
engomar a roupa dos seus selvagens donos ou fazer outro qualquer serviço;
alem disso tem de pagar 1$280 de jornale ainda por cima hão de vestir-se e
alimentar-se a sua custa. Como podem essas pobres creaturas, tomando-se lhe
o dia inteiro, darem 14280 de jornal, senão recorrendo à prostituição a mais
desenfreada? Para o que vejam esses imundos zunguns e essas praças
regorgitarem dessas pobres creaturas cobertas algumas de molestias
hediondas suas casa começa o seu martyrio.
O sr. Miguel Tavares fez muito, mas S. Ex. Ainda fará mais se conseguir
exterminar esse (ilegível) que solapa insensivelmente.
O que são os negros minas muita gente ainda ignora, elles formam um estado
no estado. A sua religião é uma mistura de fetichismo e mahometismo. São
todos polygamicos. As suas leis africanas elles as guardam com todo o
respeito, e se não poem em pratica de Talião é porque seria perigoso, mas os

167
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de julho de 1855, p. 3.

59
crimes são punidos entre elles de modo a não deixarem vestigios e por meio
de venenos que escapam à nalyse da chimica. 168

A denúncia do tráfico de mulheres para a prostituição na Corte, envolvendo os


africanos minas, sinaliza para uma das fontes de enriquecimento, que vários deles
conseguiram no Rio de Janeiro. Segundo Luiz Carlos Soares, com o fim do tráfico
negreiro, “as províncias do norte e nordeste do Império, além de abastecerem com seus
escravos as províncias cafeeiras do sudeste, forneciam também muitas cativas àqueles
senhores do Rio de Janeiro que especulavam com a prostituição”.169 Soares destaca que,
o dr. José de Góes, um renomado médico, falou da notoriedade adquirida pela cidade,
nos anos 1870, com o crescimento dos negócios com “raparigas escravas”, destinadas
ao meretrício, articulados ao tráfico interprovincial. O médico, dizendo-se
envergonhado, chamava a cidade do Rio de Janeiro de “nosso Chipre”, utilizando-se da
imagem clássica para um notório “antro de imoralidade”.170 Portanto, podemos concluir
que, no transcorrer do século XIX, a concepção preconceituosa sobre negros chegava a
ser ultrajante em relação às mulheres negras. Nos primeiros anos da República, esses
estereótipos persistiriam. Por outro lado, é importante considerar, em relação aos
homens e mulheres “minas”, que eles atraíam a atenção – de brancos e outros negros –
pelos espaços que estavam conquistando na cidade. Por exemplo, as mulheres africanas
minas –como estudado por Farias171 – controlavam, no Rio de Janeiro, no século XIX, o
espaço mercantil das quitandas e se destacavam pela altivez. Não poucas fizeram
fortuna como quitandeiras.
Entretanto, além do enriquecimento dos “minas”, as rivalidades religiosas
também provocavam denúncias. Em março de 1904, na Gazeta de Notícias, um
parágrafo chama a atenção: “Hontem chegou da Africa o negro Samim, um mina
horrendo, feiticeiro convicto que traz mulheres e novos feitiços. Samim está hospedado
em casa de Ojô, o Emanuel Ojô, o homem que descobriu o feitiço do marimbondo”.172
Samim Adiô era “chefe muçulmano pertencendo à irmandade de N.S. do Rosário e S.

168
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1879, p. 3.
169
SOARES, Luis Carlos. O “povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro
do século XIX. Rio de Janeiro: Faperj;7 Letras. 2007, p.179.
170
Idem, ibidem, p.179.
171
FARIAS, J. B.. Mercados minas: Africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-
1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015. v. 1. 295p.
p. 217.
172
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 de março de 1904, p.1.

60
Benedito”173 e tinha uma filha. Entretanto, o texto publicado pela Gazeta cita
“mulheres”, o que pode significar uma insinuação ao tráfico de mulheres para a
prostituição.
Juliana Farias aponta como provavel fonte de riqueza dos africanos minas, o
carregamento e roubo do café. Acompanhando a trajetória de Antonio Mina, de
carregador a furador de sacos de café, ela cita que, “como ‘chefe supremo do mercado
de café’, ele teria participado do esquema de apropriação do excedente de grãos nos
trapiches e armazéns”.174 Controlar o descarregamento de café seria uma chance de
enriquecimento para os africanos minas. Brasil Gerson, em estudo sobre o período
joanino, reconstruiu o cotidiano dos carregadores de café:
Dos saveiros para os armazéns, das carroças para os trapiches dos vagões e
dos bondes cargueiros para os armazéns e os trapiches - era no cangote do
negro de peito nu que a sacaria transitava. Chamavam-nos os trabalhadores
de café, e eram agilíssimos, correndo e suando, porque trabalhando assim,
mais facilmente poderia comprar a sua liberdade, ou, se já fossem livres,
ajudar ainda escravos a se libertarem. 175

Gerson concluiu: “E posto o ouro negro no trapiche ou a bordo, vinha então um


enxame de pretas velhas para recolher o que sobrava no meio da rua ou dentro dos
armazéns, que esse para elas e suas famílias era um meio de vida dos melhores”.176
Ao se estabelecer uma comparação sobre os africanos minas no mercado de café,
podemos compreender que a “apropriação do excedente”— usando a expressão aplicada
No Labirinto das Nações177 — era uma hábito antigo na cidade e que, percebido pelos
africanos minas, foi significativo na virada por um enriquecimento. Outras formas de
obter riqueza podem ter sido buscadas e atingidas com sucesso por alguns. Sobre a
denúncia de que os africanos minas traficavam mulheres para a prostituição, não
significando que fossem mulheres africanas, pode também ter sido uma forma de
retaliação de algum insatisfeito.
Agassiz oferece uma descrição, bastante pormenorizada, de uma mulher negra
rica — que, embora não identificasse o grupo etnico, pelas características da

173
O Dia, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1958, p. 91.
174
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. No
labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005. p. 133.
175
GERSON, Brasil. O ouro, o café e o Rio. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1970, p.131.
176
Idem, Ibidem, p.131.
177
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Op. cit.
p.133.

61
indumentária, era provavelmente uma africana mina— e a compara com outra mulher
negra pobre:
Não faz muito, cruzamos na rua com uma preta toda vestida de branco, o colo
e os braços nus, com as mangas arregaçadas e presas numa espécie de
bracelete; estava com a cabeça coberta por enorme turbante de musselina
branca e trazia a tiracolo sobre os ombros um xale comprido de vivas cores,
caindo até quase os pés. Fazia com certeza parte da aristocracia dos negros,
porque, do outro lado da rua, uma outra preta quase sem roupa, sentada nas
pedras da calçada, com seu filho nu adormecido nos joelhos, deixava luzir ao
sol a sua pele escura e lustrosa.178

Descrevendo aspectos do Rio de Janeiro, destacaria em detalhes a presença dos


africanos minas e exaltou as características dos homens e mulheres dessa etnia:
Sabemos agora que esses negros atléticos, de traços corretos e tipo mais
nobre que o dos negros dos Estados Unidos, são os minas, originários da
província de Mina na África ocidental. É uma raça possante, e as mulheres
em particular têm as formas muito belas e um porte quase nobre. Sinto
sempre o mesmo prazer em contemplá-las quer na rua quer no mercado, onde
se veem em grande número, pois as empregam mais como vendedoras de
frutas e legumes do que como criadas. Dizem que há, no caráter dessa tribo,
um elemento de independência indomável que não permite empregá-la nas
funções domésticas. As mulheres têm sempre a cabeça coberta com um alto
turbante de musselina e trazem um longo xale de cores berrantes, ora cruzado
sobre os seios, ora negligentemente atirado ao ombro, ou então, se faz frio,
estreitamente enrolado em volta do busto, com os braços metidos em suas
dobras A diversidade de expressões que elas sabem, por assim dizer, tirar das
diferentes maneiras de usar esse xale é de fato surpreendente.
Há pouco, observei na rua uma negra alta e bela, admiravelmente bem
talhada, que se mostrava presa de extrema agitação. Com gestos violentos ela
afastava o seu xale e atirava os dois braços para trás; depois, puxando-o
violentamente para si, enrolava-o em volta do corpo e de novo o desenrolava
em todo o seu comprimento; num movimento rápido, apertou-o ainda uma
vez na cintura e, de repente, sem desprendê-lo, deu um tapa na cara do seu
interlocutor; por fim, atirando o comprido xale para o ombro, foi-se
orgulhosamente embora, com ares de uma rainha trágica. Quando é preciso,
esse xale serve também de berço; enrolado frouxo em volta da cintura, recebe
nas suas dobras o filhinho que, montado nas costas de sua mãe, adormece
docemente embalado pelo balanço pronunciado dos quadris. A negra mina é
quase sempre notável pela beleza dos braços e elegância das mãos. Parece
bem que ela tem a consciência disso, porque traz geralmente aos pulsos
braceletes apertados, de miçangas, cujas ricas cores dão realce à finura das
mãos e se casam admiravelmente com o bronzeado e o luzidio de sua pele. 179

Agassiz, ao comentar a “nobreza” dos africanos minas — a beleza física, a


altivez de não aceitarem trabalhos domésticos, as preferências para atividades que
possibilitassem mobilidade social e a indumentária como realce do caráter “nobre”,
inclusive expresso na docilidade do tratamento dado ao filho — construiu um “retrato”

178
AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865-1866. [Paris: Librairie de
Hachette, 1869]; Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. p. 68
179
Idem, ibidem, p. 102.

62
idealizado de um grupo étnico em contraposição a outros. Descrevendo uma “dança de
pretos” e definindo esses africanos como “pretos como azeviche”, destaca que a
excitação aumentou e a dança se tornou como que uma exaltação selvagem
acompanhada de exclamações e gritos estridentes. (...) E os negros
continuavam a dançar ao clarão duma grande fogueira. De tempos em tempos,
quando a sua excitação atingia o mais alto grau, eles atiçavam as chamas que
projetavam estranhos e vivos clarões sobre o grupo selvagem. Não se podem
contemplar esses corpos robustos, nus pela metade, essas fisionomias
desinteligentes, sem se formular uma pergunta, a mesma que inevitavelmente
se faz toda vez que a gente se encontra em presença da raça negra: Que farão
essas criaturas do dom precioso da liberdade?”180

Embora Agassiz não identifique a origem das pessoas que descreveu de maneira
tão preconceituosa, se eram africanos ou crioulos, existe no texto do viajante
indiscutível oposição entre os africanos minas e os demais pretos. Conforme Keila
Grinberg destaca, Agassiz “abraçava a teoria da degeneração, matriz do racismo
científico, que via na miscigenação o principal fator da degeneração das raças
humanas”.181 A autora afirma que o viajante, no Brasil, ao observar os escravos e seus
descendentes, como havia realizado no sul dos Estados Unidos, quando fotografou
Renty,182queria comprovar “que negros e brancos, pertencentes a raças diferentes, não
podiam habitar o mesmo espaço. Incapazes de se civilizar, os negros deveriam se
manter apartados da civilização”.183Assim, é interessante observar a distinção, feita por
Agassiz, conferia aos “africanos minas” uma superioridade que negava aos demais
africanos.
É fato considerar como muitas mulheres negras, africanas, minas ou não,
crioulas, escravas ou livres, podem ter utilizado a prostituição como forma de
sobrevivência. Em um anúncio, uma “Grande Adivinha Africana”, Zarah, divulgava sua
presença no Rio de Janeiro: “tem a honra de comunicar ao respeitável público
fluminense, que, de passagem por esta cidade, deseja levar uma agradável lembrança de
sua estimável população”.184 Zarah, “a bella africana”, exalta seus conhecimentos
adquiridos através de viagens por diversos países, o domínio de vários idiomas e o fato

180
AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865-1866. [Paris: Librairie de
Hachette, 1869]; Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. p. 64.
181
GRINBERG, Keila. O racismo de Louis Agassiz. Disponível em
<http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/o-racismo-de-louis-agassiz >. Acesso em 21 de janeiro
de 2015.
182
“Renty, escravo de uma fazenda da Carolina do Sul (EUA), fotografado a mando de Agassiz na década
de 1850. Essa foi a primeira série de fotografias de temática racial assinadas por Agassiz, que pretendia
registrar o que o cientista supunha ser a inferioridade racial dos negros.” GRINBERG, Keila, op.cit.
183
Idem, ibidem.
184
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1875, p. 4.

63
de ser a única “musulmana que visitou as quatro partes do mundo”.185 A adivinha
recebia seus clientes, trajando o seu rico costume africano, das 9 horas da manhã até às
5 horas da tarde, exceto aos domingos e dias santos, na rua do General Câmara, n. 210,
1º andar. No anúncio, em que não poderia ser mais óbvia, ela não assume nenhuma
identidade étnica, afirmando, de maneira genérica, ser africana. A exaltação dos
encantos das mulheres africanas parece ter tido um forte apelo atrativo no Rio de
Janeiro.
A prostituição e a vadiagem foram muito perseguidas durante o Império e no
período republicano. Em 23 de julho de 1908, na capital federal do Brasil, foi presa em
flagrante Juvencia da Costa d’Africa, brasileira, natural do Estado do Rio, 26 anos de
idade, solteira, cozinheira, analfabeta e residente à rua General Pedra, 23. Seu crime foi
infrigir o artigo 145— acusação de vadiagem— da lei de julho de 1893.186Juvencia
estava na Praça da República, às 22 horas e, segundo a declaração do Gabinete de
Identificação e Estatísticas, anexada ao processo, Juvencia já havia sido presa várias
vezes: em 19 de fevereiro de 1907, na 12ª pretoria, como Lucia Maria da Conceição,
incursa no artigo 399. Em 22 de fevereiro de 1908, como Joaquina Maria da Conceição,
ficou presa até 11 de março de 1908 e foi absolvida. Em novembro de 1908, Juvencia
foi condenada a cumprir pena na Colônia Correcional de Dois Rios. Ali, ela teria,
provavelmente, encontrado com alguém que também estava sempre pela Praça da
República: Adelaide Costa D’Africa, presa por estar “vagando sem destino.”187 Ela era
brasileira, tinha cinquenta anos, residente à Senador Euzébio, 59, analfabeta e nascida
em Friburgo. Ainda em 1907, uma outra mulher, Fortunata Maria da Conceição, 22
anos de idade, enfrentava a sua 14ª detenção, entre agosto de 1903 e julho de 1905, por
vadiagem. Fortunata, de 1,40m de altura, era solteira, sem instrução, cozinheira e
natural do Rio de Janeiro.188
Contudo, havia ainda outras possibilidades para as mulheres negras transporem a
barreira do preconceito, na luta diária pela sobrevivência: o espaço religioso. Embora
tenha observado, no transcorrer da minha investigação – especialmente nas narrativas
dos jornais –, uma maior presença masculina nos “cargos” de feiticeiro ou curandeiros,
não havia exclusividade de gênero. A questão da presença feminina no controle dos

185
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1875, p. 4.
186
Arquivo Nacional, Pretoria de Santana, 1908, OR 6212. A maioria dos casos de prisão de mulheres
aparece como vadiagem.
187
Arquivo Nacional, Pretoria de Santana, 1908, OR 6932.
188
Arquivo Nacional, Pretoria de São Cristovão, 1905, 7C. O.PCR 955; 10ª Pretoria, 1907, 7 CO. PCR,
1171.

64
espaços religiosos foi um tema bastante discutido por historiadores, antropólogos e
etnólogos. Não é objetivo deste estudo discutir esse tema, mas não posso deixar de
observar que Roger Bastide, comentando a pesquisa de Ruth Landes,189 sobre o
predomínio femimino nas casas de culto da Bahia, afirmou sobre o possível controle
feminino: “Nessas condições (número menor de escravas do que de escravos, ignorância
da paternidade devido à falta de uniões estáveis, mesmo depois da obrigatoriedade do
casamento), a ligação orixá-linhagem masculina foi rompida”.190
Várias mulheres se dedicavam a práticas religiosas, desde “benzedeiras” às
chamadas “feiticeiras”. Em outubro de 1876, o Diário do Rio de Janeiro noticiou a
morte de Joana Maria da Conceição, “vulgo Rainha do Congo”,191 segundo a matéria, a
casa em que ela morava pegou fogo. A sua fama vinha dos folguedos e candomblé aos
quais ela se dedicava. Muito embora, na maioria dos casos noticiados pelos jornais, os
homens ocupassem a chefia e as mulheres aparecessem como seguidoras e em outros
cargos hierárquicos, encontramos mulheres, especialmente africanas minas, no
comando:
Os feiticeiros e as casas de dar fortuna fazem progressos n’esta cidade. Já
fizemos sentir às autoricdades o cynismo de taes tartufos andarem
depositando pelas ruas e praças certas bugingangas.
Na freguezia de S. Lourenço, existe uma casa que também vende quitanda, a
qual é proprietária uma preta mina, cuja casa serve para reuniões. Ahi tem
sido vistos gatos pretos, tartarugas etc...192

A descrição acima é interessante, uma vez que, além de indicar uma mulher
africana mina no controle do espaço religioso, registra a realização dos “despachos” em
areas públicas. Uma hipótese é o fato de S. Lourenço, em Niterói,193 tratar-se de um
local fora do controle da polícia da Corte, que tentava exercer maior repressão às casas
de culto nas partes centrais da cidade do Rio de Janeiro, embora ali tenha sido preso o
curandeiro Breves:
Constando ao Delegado de policia de Itaborahy, que José Francisco Pinto
Breves estava na freguesia de Porto das Caixas exercendo a industria de tirar
espíritos, e ministrando medicamentos, que sendo usados por diversas
pessoas, lhes haviam causado graves soffrimentos, procedeu a rigoroso
inquerito, e delle resultaram provas que confirmavam as acusações feitas

189
LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
190
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Livraria Pioneira Editora; EDUSP,
1971, p. 89.
191
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1876, p. 2.
192
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1879, p. 1.
193
O fato das cidades do Rio de Janeiro e Niterói, desde 1835, estarem ligadas por uma linha regular de
barcas a vapor era um atrativo para que a população carioca recorresse a espaços religiosos nas “Bandas
d’Além Mar”. Por outro lado, alguns líderes religiosos, devido a maior perseguição na Corte,
estabeleceram-se naquela localidade.

65
áquelle curandeiro, sendo o mesmo inquerito remettido ao Dr. Juiz Municipal
do Termo.194

Mesmo denunciado no relatório do presidente de província, José Francisco Pinto


Breves195 continuou a prática do curandeirismo, que, pelo Código de 1890, foi
criminalizada como charlatanismo. Breves foi um caso de feiticeiro/curandeiro que,
migrando por várias áreas limítrofes à cidade do Rio de Janeiro, conseguiu uma
ascensão social que muitos não conseguiram.
Em 1892, o dr. Alfredo Madureira, chefe de polícia do Rio de Janeiro,
determinou que a casa de Pinto Breves, localizada na Ponte da Pedra, na freguesia de S.
Lourenço, Niterói, fosse cercada. O dr. Hermenegildo Militão, 1º delegado de polícia, e
uma força policial deram voz de prisão ao curandeiro Juca Breves,196 que foi conduzido
à polícia com mais 74 indivíduos, mulheres e crianças, que se consultavam com ele.
Entretanto, nesse caso, há um dado inusitado: foram acompanhados do dr. Francisco
Baptista da Rocha, médico, que, ao ser interrogado, declarou que recebia de Breves,
todas as segundas-feiras e quintas, 10$000, para “usar Breves do seu nome por causa da
policia, e que elle não examinava pessoa alguma, nem receitava, não tomando nenhuma
responsabilidade pelos remedios que Breves dava aos seus clientes”.197 Possivelmente,
Breves inspirava mais confiança do que o dr. Baptista da Rocha, talvez por suas
qualidades “éticas”, como fica evidente na matéria, mas também pode significar que,
para aquele grande número de “clientes”, a crença no poder de Juca Breves fosse maior.
A conclusão da diligência policial foi que todos os consulentes e o médico — que
recebia dinheiro em troca de que Breves pudesse usar seu nome — foram liberados pela
polícia. Enquanto o curandeiro — em cuja casa foi encontrada grande quantidade de
vidros de diversos remédios e ervas — foi preso e processado.

194
RELATORIO apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Rio de Janeiro na abertura da
primeira sessão da vigesima quarta legislatura em 8 de agosto de 1884 pelo presidente, José Leandro de
Godoy e Vasconcellos. Rio de Janeiro: Typ. Montenegro, 1884, pA16
195
De acordo com Soares et al, “alguns libertos africanos exibem características que sugerem terem feito
a travessia das senzalas rurais para os cortiços urbanos”. Soares apresenta como exemplo o caso de um
outro Breves, o cabinda Bento Breves, que dizia chamar-se Vicente Breves. O autor chama a atenção para
o sobrenome usado por Bento, que pode ter relação com a família Breves, durante décadas, uma das mais
poderosas no Vale do Paraíba. Para Soares, é possível que o cabinda Breves, após a conquista da
liberdade, tenha se mudado para a Corte, “mas, sem trabalho e oportunidade, acabou preso por
embriaguez, motivo de nove entre dez africanos presos pela polícia. Essa imagem do liberto seria um dos
estigmas que pesariam nos ex-escravos do pós-abolição.” Essa também poderia ser a trajetória de
Francisco Breves.
196
Ao chamar o curandeiro de Juca Breves, a matéria o associava ao famoso feiticeiro Juca Rosa.
197
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1892, p. 2.

66
Francisco Breves chegou a ocupar o cargo de subdelegado em Niterói, até ser
exonerado, após a invasão de sua casa pela polícia: “O chefe de polícia solicitou do
governo hontem a demissão de José Francisco Pinto Breves do cargo de 3º Supplente do
subdelegado do 4º Districto, por queixa recebida por cliente da mesma autoridade, que
também allia as funções de subdelegado as de curandeiro”.198
A maior facilidade do acesso a Niterói, através da linha de “ferry boats”,
permitiu que alguns líderes ganhassem projeção e disputassem prestígio com
“feiticeiros cariocas”. O poderoso João Alabá, ao ser consultado em sua casa, na rua
Barão de S. Felix, pelo senador Pinheiro Machado, lhe previu dificuldades políticas. O
feiticeiro aconselhou-o a ter cuidado com a bancada nortista e recebeu do político duas
cédulas de 500$000 para fazer um “trabalho” de proteção. O senador, no entanto, foi
assassinado por Manso Paiva. A matéria da Critica conclui que, apesar do “poder” de
Alabá, a oposição também agia e contava com o trabalho de dois feiticeiros fortes: um
de Minas Gerais e o outro era de Niterói: o Breves.199
Entretanto, outros “feiticeiros” atuaram nos dois lados da baía de Guanabara. Por
exemplo, Joaquim, um preto mina liberto. Segundo denúncias, Joaquim tinha “casa de
dar fortuna” na rua Príncipe dos Cajueiros, área central da cidade do Rio de Janeiro. Ele
também possuía duas casas em S. Cristovão: uma na rua Aurora e outra na Sto.
Antonio. Porém, Joaquim teria, supostamente, outra na rua Mem de Sá, em Icaraí. O
relato feito pelo jornal sugere que a casa de Icaraí poderia ser uma “filial” dos outros
estabelecimentos.200 Todas essas “casas de dar fortuna” poderiam não ser de Joaquim,
embora não possamos excluir essa possibilidade, uma vez que não era inusitado os
babalorixás praticarem rituais e consultas nas casas de seus “filhos de santo”. A polícia,
ao invadir a casa da rua Mem de Sá, em que Joaquim atendia todas as 4ª feiras,
apreendeu os objetos de culto. Joaquim e sua “assistente” Maria Thereza da Conceição
foram para a Casa de Detenção.201
Comparando a questão sobre a liderança feminina em casas de culto,
observamos que, ainda que o controle das mulheres sobre espaços religiosos não tenha
sido tão divulgado pelos jornais cariocas, na maioria das notícias, os homens lideravam
e as mulheres apareciam como praticantes ou “freguesas”. Isso não significa dizer que
mulheres não tiveram acesso a cargos mais importantes na hierarquia religiosa. A

198
O Século, Rio de Janeiro, 1 de maio de 1907, p. 3.
199
Critica, Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1929, p. 5.
200
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 10 de março de 1875, p.2.
201
A Pátria, Rio de Janeiro, 6 de março de 1875, p.1.

67
maioria dos acontecimentos relatados nos jornais, nos quais as personagens femininas
aparecem na liderança, mantém-se o tom preconceituoso adotado em relação aos
homens. Assim, na notícia sobre a casa da referida africana mina, em São Lourenço, foi
ressaltada a presença de um gato preto. Já na casa de Maria Bernardina, havia uma
coruja, ambos os animais muito associados à imagem de feitiçarias.
No dia 11 de abril de 1883, o dr. Callado, 2º delegado, no 1º Districto do
Engenho Novo, invadiu mais uma “casa de dar fortuna”. Segundo a matéria da Gazeta
da Tarde, a invasão aconteceu às cinco horas da tarde. A casa pertencia à Maria
Bernardina do Rosário:
A auctoridade penetrou no interior do predio. Na sala principal, funebremente
iluminada, Maria Bernardina celebrava sessão de feitiçaria diante de diversos
individuos de aspecto sobrio.
Pelas paredes viam-se corpos de animaes mortos que produziam uns sons
seccos quando, agitados pelo vento, batiam de encontro a ellas.
Uma coruja rasgava os ares soltando estridentes gargalhadas.
Pelo chão espalhados diversos ossos, chifres, buzios, pelles de cabritos,
negras como uma noite escura, panellas de ferro e bacias, contendo sangue e
nas mesas vasos com ovos.
Em um quarto foram encontradas duas neophytas completamente nuas, tendo
os corpos untados com um liquido que parecia sangue.
Nesse mesmo quarto existiam também diversos objectos pertencentes à arte
de Juca Rosa.
A sessão suspendeu-se á chegada da auctoridade e este, sem ouvir mais
explicações prendeu Maria, as duas neophytas e mais tres pretas minas.
As outras pessoas fugiram.
Os objectos apprehendidos foram enviados à policia.202

A descrição seguiria o padrão das notícias de invasão e repressão religiosa:


supostos espaços e locais com aspecto sombrio e muitos objetos espalhados pelo chão.
Nessa matéria, ainda há uma coruja soltando gargalhadas; três mulheres minas faziam
parte deste grupo. O ritual de iniciação, interrompido pelo delegado, era realizado no
Engenho Novo, que tinha uma forte tradição de cultos afro-brasileiros. Essa localidade
concentrava “feiticeiros” de diferentes etnias africanas: ali foi preso o etíope “Camillo
Vicente Porto, vulgo Juca Rosa, por ter casa de dar fortuna”.203 Alguns anos depois,
também abrigou o mais famoso líder do candomblé ketu, no Rio de Janeiro, Cypriano
Abedé.
Embora os homens predominassem nas matérias jornalísticas, em acusações de
feitiçaria, a prática religiosa ou a ligação com o “mundo da feitiçaria” também foi uma
estratégia e uma cultura das mulheres. Muitas se notabilizaram como Tia Perciliana, Tia
Fé, Tia Ciata e outras. Entre as mulheres que se destacaram na liderança de uma

202
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 de abril de 1883, p. 3.
203
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 25 janeiro de 1887, p.2.

68
religiosidade de matriz africana, temos Guaiaku Rozenda. Segundo Mariza Soares, das
casas destinadas ao culto dos orixás na cidade do Rio de Janeiro, a de Gaiaku merece
atenção especial. Rozenda era uma mulher livre, que teria chegado ao Rio de Janeiro
por volta de 1850. O seu título Guaiaku pode indicar que era de origem gbe. Essa casa
teria sido a última da tradição gbe a ser fundada no Rio de Janeiro. Após a morte de
Gaiaku Rozenda, ficou sobre a liderança de Adelaide Mejitó.204 Em suas memórias
Agenor Miranda, que foi amigo de Adelaide Mejitó, diz que ela era jeje mahin205 e
havia sido feita por Tia Rozenda. As etapas de “feitura no santo” estabeleciam uma
ligação entre os iniciados e os sacerdotes responsáveis pela sua iniciação. Essa ligação
pode ser observada em um relato, do final do século XIX, quando mais uma “casa de
dar fortuna” foi invadida pela polícia. Em 1883, o subdelegado da freguesia de Santana
recebeu a denúncia de que, em um quarto da estalagem da rua Senador Euzébio, nº 168,
havia, durante a noite, frequentes reuniões de pretos.

Logo ao transpor a autoridade a porta d’aquelle quarto, reconheceu achar-se


alli erguido um templo a Deusa da fortuna, dirigido pela preta Maria da Glória
de Jesus do Nascimento, que por não ter ainda os necessários requisitos para o
elevado cargo de Rainha, denominava-se Princeza, e era coadjuvada por uma
outra companheira de nome Guilhermina do Bomfim, que era a mandingueira.
Ambas tinham amarrados nas costas dois manipansos de madeira preta, dos
quaes só se deviam desligar, quando tivessem que apparecer no mundo
profano.
N’este templo que, segundo parece, era filial de algum outro superior, e onde
naturalmente exerce suas funções a Rainha, encontrou-se grande quantidade de
bugigangas, hervas, pannelas, busios, caranguejos, argolas de metal, etc.., etc..
Na occasião em que a autoridade fazia arrecadar os manipansos e bugigangas,
a Princeza em tom prophetico e de modo a fazer vacilar alguns urbanos que se
achavam presentes, exclamou: / “não toquem n’isso, porque hão de gritar sem
cessar três annos até morrerem, indo a alma dos profanos para o inferno”.
Apezar de tão funestas previsões, não só foram recolhidos todos os obcjetos ao
deposito publico, como a Princeza e mandingueira, foram para a estação
policial.206

No registro da entrada de Maria da Gloria de Jesus na Casa de Detenção, feito


em 27 de setembro de 1883, consta que ela era africana, natural da nação mina, filha de
Francisco de Paula e de Maria da Candelária, e que havia sido presa por ser “vagabunda
e illudir os incautos sob pretexto de lhes dar fortuna por meio de feitiços”.207 Ainda

204
SOARES, Mariza de Carvalho. From gbe to yorubá: ethnic change and the Mina nation in Rio de
Janeiro. In: The Yoruba Diaspora in the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2004. p.
231-247. p. 240
205
Ao afirmar que Adelaide era jeje mahin, está fazendo, muito provavelmente, referência à nação da
casa que ela dirigia. Entrevista com o prof. Agenor Miranda. Revista do IPHAN, nº 28, pp. 211-215,
1997.
206
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1883, p.2.
207
APERJ. Livro de Entrada da Casa de Detenção da Corte, LL. 26, 27 de setembro de 1883, folha 121.

69
segundo o registro, Maria da Glória tinha 50 anos, era solteira, 1.60m de altura, cor
preta, olhos escuros, cabelo carapinha e trajava vestido de chita e xale de cor. Embora
presa na estalagem da rua Senador Euzébio, ela residia na rua S. Pedro.
Guilhermina do Bomfim, a outra detida, também era africana, natural da nação
mina, filha de “pais incógnitos” e, como Maria da Glória, “vagabunda e illudia os
incautos sob pretexto de lhes dar fortuna por meio de feitiços”.208 Guilhermina era
solteira, morava na rua S. Pedro, tinha 1.58m de altura, cor preta, cabelo carapinha, era
lavadeira e usava um vestido branco e xale de cor. Apesar de as duas mulheres terem
declarado serem lavadeiras, foram registradas como “vagabundas”. Assim, foi conferido
a elas o estereótipo em relação às mulheres negras, escravas ou livres.
Entretanto, o que podemos concluir, comparando as notícias e o registro da Casa
de Detenção, é que, entre Maria da Glória e Guilhermina, havia uma relação de filiação
espiritual e que, certamente, uma era a “ialorixá”, ou seja, a sacerdotisa responsável pela
iniciação religiosa da outra. Por outro lado, as notícias, ao chamarem a atenção para a
origem africana das duas mulheres ressaltavam a ideia, consagrada na sociedade
brasileira, de que a feitiçaria era um atributo dos povos africanos.
Na labuta diária, homens e mulheres buscavam melhorias e suas ligações com a
África eram exaltadas: “Africano sempre vendeu feitiço aos brancos, porque os brancos
sempre acreditam em feitiços... Hoje os africanos daquelle tempo estão ricos”.209 João
do Rio apontou para mais uma fonte de enriquecimento: “a herança de velhos africanos
sem herdeiros”.210 Segundo o cronista, antes mesmo da morte daqueles, as casas eram
vasculhadas: “quando morre um negro rico todos correm”.211 Uma outra reportagem
traz mais detalhes sobre a maneira de “herdar” o patrimônio dos velhos africanos:
O Mundo dos feitiços é naturalmente um mundo de surpresas, de imprevistos
que só vive nos esconderijos, longe da luz e da policia.
Ultimamente, com a chegada constante de negros da Africa e negros da
Bahia, os feiticeiros tem augmentado e as scenas de roubos, os candomblés
pavorosos realizam-se com maior frequencia, todos os domingos nas casas
das mães de santo e dos babalaôs exploradores.
Ainda ha semanas, a scena da morte de Aginé, uma pobre preta rica agitou
todo o mundo dos feitiços. Aginé, muito velha arranjara uma casa no
Engenho de Dentro. Quando adoeceu, os discipulos do Alikali, isto é os
cavadores de heranças entraram em exercicio. Antonio Mina, dos mais
espertos, mandou buscar Aginé para a sua residencia com o desejo de trata-
la. Deu-lhe médico, botica, leito. Era um gastar sumptuoso. A velha,
desconfiada, peiorava e não dizia nada.212

208
Ibidem.
209
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 13 de maio de 1905, p. 3.
210
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 227.
211
Idem, ibidem.
212
Gazeta de Noticias, Suplemento Illustrado, Rio de Janeiro, 24 de julho de 1904, p. 2.

70
Segundo a reportagem, Antonio Mina solicitou que Aginé fizesse testamento em
seu favor. Diante da recusa da anciã, ela foi enviada para a Santa Casa da Misericórdia.
Após a morte de Aginé, a sua casa, no Engenho de Dentro, foi saqueada, por feiticeiros.
Na disputa para ver quem ficava com a casa, concorriam Antonio Mina e Buraima:
“molequinho pernostico, que na decadencia da terrivel religião, passa nesta terra por
feiticeiro de valor e é official de bombeiro nas horas vagas”.213 As fontes de
enriquecimento de Antonio Mina foram múltiplas, desde a apropriação e venda do café,
heranças de velhos africanos e feitiçaria. Antonio Mina já teria sido identificado como:
“é conhecido como feiticeiro, sendo muitas vezes preso nesta delegacia”.214
A cidade era também cenário de brancos pobres, particularmente imigrantes, que
conviviam diariamente com a população de origem africana e frequentavam seus
espaços religiosos. Essa relação não era recente, e, ainda no início da segunda metade
do século XIX, encontramos “Na freguezia do Sacramento 1º districto, Victorino Soares
da Rocha, oito pretos e cinco pretas, foram encontrados em casa de dar fortuna”.215
Podemos tentar— tomando o caso de Victorino Soares da Rocha— identificar algumas
características desses brancos, pobres, frequentadores das casas de dar fortuna. Em 1858
Victorino da Rocha aparecia como jovem imigrante português, natural da Ilha da
Madeira. Em 1872, o Diário do Rio de Janeiro, de 9 de fevereiro, na seção obituário,
216
noticiou sua morte “31 anos, solteiro e falecido por febre perniciosa”. Assim, ele
teria 17 anos de idade quando foi preso na casa de dar fortuna, na freguesia do
Sacramento. Sua presença em um espaço de culto africano — acompanhado de pelo
menos 13 “pretos” e “pretas” — pode esclarecer o fato de, em 1860, na freguesia de
Santo Antonio, ele ter sido detido por desacato ao culto do Divino.217 A matéria não
esclarece que tipo de desacato teria então praticado, mas quem sabe poderia ser uma
prática ligada aos cultos africanos? Em 1861, Victorino entrou na justiça para cobrar
uma diferença em valores de um saco de carvão, comprado de Manoel Soares de Moura,
que revendia como ambulante. Como não teve dinheiro para pagar um advogado, ao
contrário do acusado, Victorino apresentou-se ao júri e escreveu:

213
Gazeta de Noticias, Suplemento Illustrado, Rio de Janeiro, 24 de julho de 1904, p. 2.
214
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugenio Libano. No
labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005, p. 136.
215
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 7 de abril de 1858, p.2.
216
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 1872, p. 1.
217
Correio da Tarde, Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1860, p.3.

71
Dignos juízes- Baldo de meios pecuniários não pude ser acompanhado de um
advogado que viesse sustentar os meus direitos, todavia, cônscio da justiça com
que trago o acussado a este tribunal, ofereço o merecimento dos autos à vossa
ilustrada consideração e de vós espero a devida justiça.218

O advogado de Manoel Soares conseguiu a absolvição do seu cliente, enquanto


Victorino acabaria condenado a pagar as custas do processo. A trajetória do português
Victorino pode ter sido semelhante àquela de centenas de imigrantes pobres que, nos
zungus, casas de dar fortuna e botequins, conviviam muito próximos à população
escrava negra e seus descendentes, embora muitos brancos ricos não se furtassem a
frequentar os “feiticeiros”, como vimos, anteriormente, no caso de Tito Augusto. O fato
é que a cidade abrigava múltiplas vivências e crenças em meio ao contexto repressor.
As formas como eram feitas as invasões dos espaços religiosos e noticiadas nos
jornais cariocas faziam crescer, em relação às religiosidades “africanas”, uma mistura
de procura/rejeição. Por outro lado, as notícias sobre as invasões revelam aspectos
étnicos relevantes. Ainda em 1884, a Gazeta da Tarde noticiou a invasão de mais uma
“casa de dar fortuna”, na área central carioca. O subdelegado do 3º distrito da freguesia
de S. José, às 9 horas da manhã, entrou na casa de n. 10, da travessa D. Manoel, “onde
se passavam constantes scenas de repugnante feitiçaria”.219
Francisco Firmo, de cor preta, que tratava de raparigas credulas, curando-as
de feitiços e exercia por tal modo aquella profissão que a sua casa era um
antro de perdição e malvadeza.
A auctoridade, revistando esse antro encontrou grande quantidade de hervas,
drogas, variedade de bugigangas, que serviam de remedio, um Santo
Antonio, que curava por milagre. Firmo foi preso, e recolhido à detenção,
bem como as seguintes mulheres, encontradas, algumas em tratamento,
n’aquelle cubiculo: Miquelina Luzia, Fortunata Maria de Moraes, Nicacia
Maria da Gloria, Justina de Jesus Moraes, Ignacia Maria Euphrasia, Cezarina
Maria da Conceição e Maria Lourenço de Moraes.
Esta ultima estava em tão mau estado de saúde que foi necessário recolhe-la
ao hospital da Misericordia.220

Os objetos apreendidos na casa de Firmo eram os mesmos relacionados nos


outros casos de prisões por feitiçaria, especialmente as ervas. Contudo, havia nessa casa
de dar fortuna interessante especificidade: além de Francisco Firmo, 70 anos, “nação”
benguela, que não declarou qual era sua ocupação específica, moravam naquela casa:
Miquelina Luiza e Nicacia Maria da Gloria, as duas do serviço doméstico e da “nação
benguela”, como Firmo. Soares pondera que isso leva a pensar que podia haver, naquele
local, um agrupamento étnico: “a palavra aqui tem sentido amplo, não se referindo a

218
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1861, p. 1.
219
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1884, p.2.
220
Ibidem.

72
identidades nativas de autoadscrição – por trás da casa de ‘dar fortuna’”.221 Desse modo,
podemos compreender espaços religiosos como também espaços de afirmações étnicas.
Certamente, a variedade de etnias africanas não era novidade na cidade do Rio de
Janeiro. Todavia, as transformações ocorridas na segunda metade do século XIX, como
comentei anteriormente, acentuaram essa diversificação e interferiram no contexto
religioso.
A considerável presença dos africanos centrais era antiga no Rio de Janeiro e,
mesmo com a presença de africanos ocidentais, os “mina”, as religiosidades “angola” e
“congo” certamente já tinham firmado suas raízes cariocas. Lucilene Reginaldo destaca
que as conclusões de Karasch permitem “o reconhecimento da origem africana da
maioria dos escravos da cidade do Rio de Janeiro — o centro-oeste africano — é
fundamental para a compreensão da “formação e evolução da vida e da cultura escrava
na cidade”.222 Ao sugerir essa perspectiva, a autora de A Vida dos Escravos no Rio de
Janeiro 1808-1850, contribuiu decisivamente para uma nova historiografia da
escravidão, agora mais atenta as dimensões africanas dos escravos. No tocante às nações
africanas da cidade do Rio de Janeiro, Karasch observou a imprecisão dos termos que
geralmente se referem a portos de exportação, vastas regiões geográficas ou etnias mais
ou menos precisas. A preocupação principal era demonstrar que, apesar da imprecisão, a
maioria destas identificações remetia à África Central. Dessa forma os nomes de nação
seriam pontos de partida que indicariam procedências regionais, grupos linguísticos,
complexos culturais ou mesmo grupos étnicos mais específicos”.223
Analisando os jogos de poder, Appadurai destaca como são cruéis os
subterfúgios criados para manter um regime excludente.224 Embora analise outro
contexto, tal argumentação é sugestiva para uma reflexão sobre os “mundos da
escravidão” urbana no Rio de Janeiro. As imposições do poder público sobre a
população negra atingiam o seu cotidiano. É evidente que a maneira mais eficaz de
sobreviver era buscar solidariedade, fundamentada também — não exclusivamente —

221
SOARES, Carlos Eugenio Libano; GOMES, Flávio dos Santos; FARIAS, J. B. No labirinto das
nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo nacional, 2005, p.
168.
222
REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades negras, experiências escravas e
identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005. Tese (Doutorado em História) -
Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas. Campinas, 2005.p.3
223
Idem, ibidem.
224
APPADURAI, Arjun. O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva. São Paulo:
Iluminuras; Itaú Cultural, 2009.

73
em identidades étnicas: fazendo parte ou buscando a proteção daqueles que estavam
mais inseridos na sociedade e, nesse aspecto, as irmandades religiosas representaram
um papel fundamental. Segundo João José Reis, as “questões relativas à identidade e à
diversidade étnicas e a alianças interétnicas foram constantes na vida dos irmãos negros,
como o foram os enfrentamentos e as negociações com os brancos”.225
Luiz Vianna,226 analisando as irmandades na Bahia no século XVIII, comenta
que os "Reinados" se desenvolviam à sombra protetora de S. Benedito e de Nossa
Senhora do Rosário e congregavam africanos centrais nas irmandades. Para Vianna,
muito provavelmente, não era estranha a presença de alguns africanos ocidentais.227
Esses rearranjos étnicos— refletidos no interior destas instituições baianas— podem ser
pensados para as irmandades e religiosidades diversas no Rio de Janeiro oitocentista.
Portanto, uma questão fundamental em relação às irmandades e aos aspectos
étnicos, no Rio de Janeiro, era que africanos centrais tiveram que se confrontar com a
presença de novos grupos africanos. Essa atmosfera de afirmação da identidade étnica já
tinha sido percebida por um viajante na primeira metade do século XIX:
Quase todos os negros nascidos na África trazem para o Brasil um grande
orgulho de sua terra natal, que os não deixa mesmo após longos anos de
escravidão. Suas palavras prediletas são: minha terra e minha nação.
Orgulham-se de suas origens e, quando brigam, quase sempre a causa é um
antigo ciúme nacional. O negro exclama: – Eu sou Congo! Com a mesma
soberba com que o inglês gaba a liberdade britânica, batendo com a mão
aberta no largo peito.228

Tentativas diversas de superar diferenças certamente foram tentadas. Muitas


vezes, no entanto, as “identidades étnicas” podiam ser ressignificadas a partir de
necessidades e objetivos. Sandra Graham observa, em relação ao Rio de Janeiro, no
século XVIII, que os africanos minas estabeleceram uma irmandade dedicada aos santos
negros Elesbão e Efigênia. Segundo a autora, embora fossem admitidas mulheres, e elas
fossem consideradas aptas a servir no conselho da administração, as ‘pretas de Angola’,
assim como crioulas e mulheres mestiças —“presumivelmente descendentes de
angolanos que ainda eram vistas como angolanas”229— eram impedidas de exercer
qualquer função. Graham acentua que os minas tinham unido resistência secular à

225
REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão.
Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, n°. 3, 1996, p. 7-33. p. 3
226
VIANNA FILHO, Luiz. O negro na Bahia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946, p.58.
227
A nomenclatura utilizada por Vianna ainda era “bantus” e “sudaneses”.
228
SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é: 1824-1828. Rio de Janeiro: Editora Getúlio
Vargas, 1943, p. 140.
229
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Ser mina no Rio de Janeiro do Século XIX. Afro-Asia, n. 45, p. 25-65,
2012, p.51.

74
devoção, reduzindo, assim, o poder das numerosas angolas, ainda que acolhessem
mulheres de Moçambique, São Tomé e Cabo Verde. Dessa maneira, “a devoção tornou-
se territorial e refletiu-se em conflitos duradouros (lembrando que o conflito em si é
uma ‘forma de associação humana’) entre africanos que apresentavam diferenças
culturais e linguísticas, trazidas de um lugar distante”.230
O controle dos cargos da irmandade nos remete a um outro aspecto relacionado
às disputas étnicas. Os Estatutos da Congreção dos pretos mina do reino maki,
publicado no Rio de Janeiro em 1786, e localizado por Mariza Carvalho Soares,
estabelecia:
Capítulo segundo
As pessoas a quem elegeram para regentes sejam naturais e oriundos da
Costa da Mina e do Reino de Maki, e não poderá eleger outra nação.
Capitulo terceiro
Toda a pessoa que quiser entrar no adjunto ou congregação (exceto pretos de
Angola), sejam examinados pelo secretário adjunto, e [aggau] que, o mesmo,
que o Procurador Geral, vejam que não sejam, pretos ou pretas, que usem de
abusos e gentilismos ou superstições que achando, ou tendo noticias que
231
usam os não podem receber.

O estatuto foi produzido, segundo as informações na introdução sobre o


documento, “por um grupo de mais de duzentos africanos vindos do reino de Maki,
situado ao norte do Daomé. A Congregação estava instalada na Igreja de Santo Elesbão
e Santa Efigênia, onde criou uma devoção às almas no ano de 1786.”232 Esses africanos
estavam convertidos ao catolicismo e, no estatuto, destacavam que não aceitavam
pessoas que usassem “gentilismo ou superstições”. Desse modo, além da exclusão dos
pretos de Angola— o que poderia significar uma variedade de grupos etnicos de
africanos centrais— ressaltavam a negação dos cultos e costumes “africanos”.
Entretanto, no século XIX, em alguns casos, essas diferenças foram “superadas”. Por
exemplo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no
Rio de Janeiro, era um centro catalizador da população negra. Nas primeiras décadas do
século XX, Cypriano Abedé, famoso babalorixá da tradição “ketu”, teve intensa atuação
nessa irmandade.
Entretanto, nessa “babel” de religiosidades e comunidades negras do Rio de
Janeiro, no final do século XIX e início do século XX, as irmandades católicas
representavam mais uma forma de contato com o sagrado, sendo também um espaço
230
Idem, ibidem.
231
ESTATUTOS da Congreção dos pretos mina do reino maki Apud. SOARES, Mariza Carvalho.
Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2000.
232
SOARES, Mariza Carvalho. Op.cit., p.16.

75
para o estabelecimento de uma rede de solidariedade, embora nem sempre seus
membros estivessem livres de denúncias e acusações, como veremos a seguir.
No Rio de Janeiro, desde o final da primeira metade do século XIX,233existia
uma irmandade do Senhor do Bonfim. O Correio Mercantil, no ano de 1858, foi
publicou um agradecimento, feito pelo provedor da Irmandade do Senhor do Bomfim ao
dr. Cunha e Braga Mello, por franquear o consistório da Igreja da Lampadosa para a
reunião da mesa conjunta:
que teve de decidir sobre a proposta de um terreno para nelle se
edificar uma capella de propriedade do mesmo Senhor do Bonfim,
vista que está de favor na Igreja de Santo Ignácio do Castello, e se
anheia que seja trasladada para uma capella de sua propriedade.234

Alguns anos depois, em 1895, foi encaminhada ao arcebispo uma denúncia sobre
a Devoção do Senhor do Bonfim que havia sido instituída, em 17 de janeiro 1892, na
Igreja de São Joaquim, passando, posteriormente, para Lampadosa.235Um dos seus
fundadores, na Igreja de S. Joaquim, foi Eloy Pedro de Santa Barbara, natural da Bahia,
antigo operário do Arsenal de Guerra e morador na rua da Alfandega, nº 322. Eloy
participava de inúmeras associações, tendo dedicado seus últimos dias à devoção do
Bonfim. Quando a acusação foi encaminhada, ele já havia falecido, em 1893. A
denúncia feita ao bispo em 1895 atingia a 1ª mesa diretora:
Ao Arcebispo
Ernesto Pereira Pinto, brasileiro, natural da provincia da Bahia, residente
nesta capital ha 23 annos e empregado na Santa Casa da Misericordia, vem
com a maior submissão pedir a V. Ex. Revma. Que se digne de providencia
conta os erros e abuso a que ha muito estão comettendo os membros da mesa
administrativa da Devoção do Senhor do Bonfim, installada na Igreja de São
Joaquim.
O provedor da Devoção e seus companheiros se dizem christãos; o suppe.
porém acredita que tal gente não é batizada e esta asserção é baseada nas
seguintes considerações sahidas em geral da escravidão, e tendo quase todos
projenitores africanos fetichista não é provável que senhores deshumanos e
pais idolatras tivessem qualquer interesse pela salvação das almas de tais
criaturas; seja porem como for, a verdade é que esta gente não observa os
sagrados preceitos da religião católica, não assiste a missa nos dias
santificados, não frequenta o tribunal dos penitentes, nem a meza da sagrada
comunhão; e, em vez da egreja, prefere a “caza de santo”. Sim, não há nesta

233
“A Irmandade do Senhor Jesus do Bomfim e Nossa Senhora do Paraiso foi installada solemente na
Igreja de Santo Ignácio de Loyolla, sita no Morro do Castello, em 30 de novembro de 1856,sendo o seu
primeiro Instituidor o Benemerito Irmão Luiz Baptista Corrêa, natural da religiosa e patriotica provincia
da Bahia.” Compromisso da Irmandade do Senhor do Bomfim e Nossa Senhora do Paraiso. Typ. e Pap.
Alcantara, Rio de Janeiro, 1907, p.5. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Serie Associação
Religiosa, Notação 95.
234
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1858, p. 3.
235
Eram bastante comuns algumas devoções, por não terem igrejas próprias, ficarem sediadas em outras
igrejas. A provável saída da devoção ao Senhor do Bonfim da igreja de São Joaquim, foi a demolição
dessa igreja, em 1904, nas obras de remodelação da cidade iniciadas por Pereira Passos.

76
cidade quem ignora a existencia de tais antros. São prostibulos, onde os
infelizes vão perder o corpo e a alma; alli, naqueles pagodes de bruto
nturalismo sacrificao-se bodes pretos e gallos em honra a “Ochum” de quem
o “pai de santo” espera conseguir tudo em favor dos papalvos.
Penetra-se na caza de qualquer dos membros da administração do Senhor do
Bonfim alli ver-se-á, não há duvidas, um oratorio com algumas imagens, um
ovo choco, uma grande figa de materia cornea, e de envolta com tudo isto a
imagem de serpente, do gato, e tudo alumiado por lampada alimentada de
óleo de oliveira.
Não é tudo, ainda não está completa a profanação: no dia em que morre
algum parente ha mesa de corpo presente, sabe V. Exª em que consiste tal
missa? O suppe vai dizer: o dono do defunto convida os parentes, amigos,
conhecidos e todos reunidos em torno do “Pae de Santo” comece a missa que
consiste em danças, batuques, candomblé, tudo acompanhado de um infernal
instrumento a que chamão tabaque.
Acabado este pandemonium o “pae de santo” dirige sua arenga ao deus
Banzé a quem encomenda a alma do fallecido e termina aspergindo com água
benta o defunto. No 7º dia há missa na igreja e de volta repete-se em caza o
mesmo acto supra que termina por comezainas e libações em memória do
morto.236

No documento, Ernesto Pereira Pinto, que parecia conhecer perfeitamente os


rituais que denunciava e que talvez praticasse, afirmava não ser movido por vingança ou
despeito, mas, por ser baiano e de família católica, não aceitar que no Rio de Janeiro a
devoção estivesse nas mãos de pessoas envolvidas com corrupção financeira, moral e
religiosa. Entretanto, a frequência a igrejas simultaneamente a outros ritos não católicos
não parece significar uma “dissimulação” de crenças reais, nem tampouco buscar
“sincretismos” entre santos e entidades. Ou seja, a sinergia entre diferentes “ritos”
poderia significar mais um elemento de conexão com o mundo espiritual. Entretanto, o
documento denunciando integrantes da Devoção do Senhor do Bonfim fornece indícios
interessantes em relação aos rituais “feitichistas” praticados pelos devotos, como o
sirrum,237 cerimônia realizada após a morte de um elemento da comunidade.

236
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Irmandade do Senhor Jesus do Bonfim e de Nossa
Senhora do Paraízo. Serie: Associação Religiosa, notação 043.
237
Destaco que não é objetivo deste estudo descrever os rituais das diferentes religiosidades afro-
brasileiras. Entretanto, em relação aos ritos funerários, é importante fazermos uma distinção. De acordo
com Câmara Cascudo, o axexê é uma cerimônia fúnebre do culto iorubano e consiste em ritos pelo
descanso da alma do morto. Nessa cerimônia, participam integrantes da casa e pessoas ligadas
religiosamente ao falecido – pais de santo, ogãs e filhos de santo. Ainda segundo Cascudo, no sétimo dia
ocorre o “cerrum” com cânticos fúnebres da seita a que pertencia o falecido. De acordo com aspectos
étnicos, existe axexê da nação ketu, o sirrum dos jeje-mahim e o intambi dos congos e angolas. Protásio
Frikel, a partir do material que coletou na Bahia, entre os anos de 1933 a 1937, escreveu um artigo,
publicado originalmente em alemão: Die Seelenlehre der Gêge und Nagôu. O próprio autor fez uma
versão, para o português, com a finalidade de comentar algumas interpretações de seu texto original –
especialmente feitas por Bastide – e afirma que sirrum é a palavra com que os gêges designavam os ritos
fúnebres no candomblé, e a expressão equivalente no nagô é axexê. Bastide comenta que, para Edison
Carneiro, o axexê seria a denominação do rito funerário em nagô, e o sirrum, a denominação dos angolas.
De acordo com Bastide, o axexê é o período de três ou sete dias de duração do ritual e, no sétimo dia,
acontecia o sirrum. Naturalmente, como parte das experiências religiosas vivenciadas pelos praticantes
dos cultos afro-brasileiros, pode ter ocorrido, ao longo do tempo, a associação entre os rituais. De acordo

77
Pereira Pinto, na sua acusação contra praticantes da Devoção do Senhor do
Bonfim, garantia que havia, entre os denunciados, a aceitação de duas práticas
religiosas: os candomblés e o catolicismo, representados nas irmandades, espaços de
socialização e influências, importantes para a solução de problemas práticos, como, por
exemplo, a compra da liberdade de escravos. Por exemplo:
O Juiz e Mezários da Irmandade de N. S. Do Rozário e S. Benedicto fazem
publico, que na conformidade do § 4 do compromisso se verificou a
liberdade, que em sorte sahio ao Irmão José de nação caçange, escravo de D.
Gertrudes Benedita de Almeida, pela quantia de 500$ rs, pelo Cofre da
Caridade, achando-se o referido Irmão na posse de plena liberdade.238

Entretanto, frequentar a missa e o candomblé significava mais uma forma de


exercer a religiosidade. Uma não excluindo a outra. Por outro lado, ocupar cargos nas
mesas administrativas das irmandades significava prestígio. Como observei
anteriormente, o “feiticeiro” Abedé e também seu filho Procópio, ocuparam cargos na
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e na Irmandade de Santa
Ifegenia e Santo Elesbão. Nessas convivências, nem sempre harmoniosas, as
irmandades religiosas representavam importantes pontos de aglutinação. Raul Pompeia
identificou as igrejas como “núcleos à maior solidariedade”, reunindo “desde os
apontados capitalistas, irmãos de São Francisco, com o orgulhoso Charitas, radiante no
hábito, até aos humildes de São Benedito do Largo da Sé”. 239
Contudo, era nas práticas religiosas fora das irmandades, que africanos e seus
descendentes chamavam a atenção das autoridades e dos mecanismos de repressão.
Anteriormente, comentei como o final do tráfico atlântico e a intensificação do tráfico
interprovincial, com a chegada de novos grupos étnicos e crioulos, foram determinantes
para uma disputa por espaço, físico e social, entre uma população antiga e os recém-
chegados, na Corte. As diferentes formas como esses grupos — com predominância ou
não de africanos — se articularam nas disputas por espaços sociais podiam ser
embasadas na defesa de maior pureza em relação à matriz africana de cada culto
religioso. Podemos esboçar aqui as conexões entre irmandades religiosas – o sagrado –,

com Frikel, o culto dos orixás e dos eguns (culto aos antepassados) eram separados: o dos de orixás não
podia ser exercido juntamente com o dos eguns. No sirrum ou axexê, o único orixá que poderia ser
invocado – através de cânticos ou até “baixando” – era Iansã, considerada a soberana dos espíritos
mortos. Para Frikel, um babalorixá nunca pode ser baba-salê – sacerdote ou invocador de egun. O autor
concluiu que os baba-salê eram malê e mussurumím. Sobre a influência do muçulmano no Brasil, Bastide
observa que, apesar das muitas distorções, alguma coisa dele resta no culto das almas dos mortos.
238
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 7 de outubro de 1837, p.1.
239
POMPEIA, Raul. Crônicas do Rio. Organizado por Virgilio Moretzsohn Moreira. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1996.
(Coleção Biblioteca Carioca), p.41.

78
agremiações carnavalescas – o profano – e, como elo de ligação, líderes das
religiosidades afro-brasileiras.
Segundo uma matéria de O Dia, a primeira irmandade católica composta por
“pessoas de cor” foi organizada na Igreja dos Capuchinhos, no então Morro do Castelo
e ali também foram criados os primeiros cordões, como o “Filhos do Castelo e outros de
costumes africanos”.240 No início do século XX, vários grupos liderados por negros
movimentavam o carnaval da cidade e eram associados a alguns líderes religiosos.
Sediado à travessa S. Sebastião, nº 35, na casa 4, o Filhos do Castelo de Ouro tinha
como presidente João Rodrigues Peres, quando, em 1912, renovou seu pedido de
licença para sair nos três dias de carnaval. Mas não era a única agremiação no Morro do
Castelo. Havia o Prazer do Castelo, com sede à rua do Castelo, nº 32. Seu presidente era
Antonio Calheiros que, em 2 de fevereiro de 1912, solicitou “licença para sahir a rua
nos 3 dias do próximo carnaval sahir também na véspera para buscar o seu estandarte
em uma das redações. Junta a licença anterior de funcionamento”.241 Ainda da Travessa
S. Sebastião, nº 35, saía o grupo infantil Teimozos do Castello, e todos os seus diretores
moravam na Travessa. Provavelmente havia uma ligação entre Filhos do Castelo e os
Teimozos do Castello, pelo menos o procurador do Teimozos, Agostinho Peres, fazia
parte dos Filhos do Castello.
Em vários pontos da cidade, a população negra e pobre encontrava no carnaval
mais um espaço de socialização e identidade. Da rua Barão de S. Félix, nº 174, saía o
Club Liga Africana, presidido por Antonio Martins,242 o famoso João Alabá. Eric
Nepomuceno identificou — através do anúncio da missa do falecimento de Alabá —
como sendo ele o presidente da Liga Africana.
João Martins (Alabá)
O Club Liga Africana, fundamente desolado com o infausto passamento de
seu inolvidável fundador, presidente e benemérito João Martins (Alabá) fará
celebrar depois de amanhã, 5ª feira, 16 do corrente, 30º dia de seu
passamento, no altar-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e S.
Benedito, às 9 e ½ horas, uma missa pelo eterno repouso de sua alma,
convidando, por este meio a família, pessoas de amizade e conhecidos a
assistirem a este ato religioso e caridade, confessando-se antecipadamente
gratos.243

240
O Dia, Guanabara, 21 de janeiro de 1963, p.3 O texto, escrito por Tancredo da Silva Pinto e Ernesto
Lourenço da Silva, não informa o período em que foi criada a irmandade negra no Morro do Castelo.
241
Solicitações de Licenças para sair no Carnaval de 1912. AN. GIFI –Policia 6 C 367.
242
Ibidem.
243
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1926 p. 23. Apud NEPOMUCENO, Eric Brasil.
Cidadania "na ponta": participação negra nos carnavais cariocas da Primeira República (1889-1917). In:
Simpósio Nacional de História, Anpuh, XXVII. Natal, 22 a 26 de julho de 2013.

79
Hilária Batista de Almeida, a famosa Tia Ciata, “filha de santo” de João Alabá,
tornou-se conhecida por sua ligação com o samba. Segundo a tradição popular, Ciata,
durante o carnaval, colocava uma barraca que era considerada um “ponto de encontro”
para sambistas. Mais adiante, neste estudo, veremos que o lendário babalaô Bamboxê
comandava o cordão carnavalesco Rosa Branca. Várias lideranças, como José
Espinguela, na Mangueira, Napoleão José do Nascimento, em Madureira, e Tancredo da
Silva Pinto, no Estácio, fizeram essa ligação entre o sagrado e o profano.
Na cidade do Rio de Janeiro, na transição do século XIX para o XX,
considerando as “idiossincrasias étnicas”, havia um grupo de africanos com vivência
bastante singular: os islamizados.
Os viajantes que percorreram o território africano usaram, para definir os povos
da parte meridional, o termo “cafre”: “do árabe Ka–fir com o significado de “infiel”, os
nativos que não praticavam a religião do Profeta. O seu sentido restringiu-se, em
português, e passou a significar os pagãos nativos da África Oriental”.244 Muitas vezes,
o uso do termo, no século XIX pelos portugueses, fazia referência aos povos de parte de
Angola, Congo e demais territórios meridionais. Era empregado como uma
contraposição das crenças islamizadas contra o que consideravam práticas feitichistas
desses povos.245
No Diccionário Geographico abreviado de Portugal e suas possessões
ultramarinas, a região da Cafraria é definida da seguinte forma:
Nome que alguns dão a toda parte d’Africa, que tem por limites: a O. o paiz
dos hottentotes, Angola e Congo; ao N. A Negrícia e Abissinia; a E. E S. O
mar. Os seus habitantes chamam-ce Cafres, nome que lhes pozeram os arabes
mahometanos, estabelecidos na Costa Or d’Africa muito antes que os
Portug., e quer dizer incredulos ou não crentes. Na Cafraria, que
aproxidamente tem 600 l. de comp. e 570 de larg. estão as nossas possessões,
que formou a Pro. de Moçambique. A maior parte dos cafres são gentios, que
admittem dois principios, um bom e outro não; e tem seus inhamasuros ou
feiticeiros, que são seus legisladores e médicos, algumas tribus circumcidam-
se, a maior parte por costume, e poucas por motivo religioso. Depois da sua

244
TOMÁS, Maria Isabel. A viagem das palavras. In. LAGES, Mário Ferreira; MATOS, Artur Teodoro
de. Portugal: percursos de interculturalidade. Lisboa: Alto Comissariado para a Imigração e Minorias
Étnicas (ACIME), 2008. Volume III - Matrizes e Configurações. p. 431-485. p.438.
245
É importante observar que, ao usar “Angola” ou “Congo”, estou repetindo como eram utilizados nos
terreiros e em matérias de jornais da época. A historiografia já discutiu exaustivamente o tema, mostrando
que essas denominações eram genéricas, serviam para identificar os portos de embarque dos escravos.
Não tenho como objetivo, neste estudo, discutir essas diferenças étnicas que, em alguns momentos, serão
apenas referenciadas. No caso de “angola” e “congo”, podemos repetir João José Reis e a ideia de
“guarda-chuva” de nações, empregada pelo autor para designar “a incorporação de membros de etnias
menores às redes de grupos majoritários”. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês, 1835. São Paulo: Brasiliense, 1986.

80
mistura com os mouros, algumas tribus ou nações são mahometanas; e outras
teem uma religião composta de idolatria e mahometismo. 246

Portanto, o uso da palavra “cafraria” fazia uma distinção entre os grupos


islamizados do norte da África ocidental e as demais regiões africanas. Antonio Dias
Farinha, estudando relatos feitos por viajantes portugueses, dos primeiros séculos da
expansão no território africano, destaca que, sobre os povos primitivos da Zona da
Guiné, os autores anotavam se eram “fanados” ou não. Segundo Farinha, a cicatriz de
circuncisão denunciava introdução do credo islâmico.247
O padre Etienne Brazil,248 no início do século XX, estabeleceu a diferença entre as
práticas “feitichistas” e os grupos “islamizados” que viviam no Brasil. Segundo ele, o
islamismo praticado pelos “minas”, obviamente, havia sido modificado pelas condições
sociotemporais, mas essas discrepâncias estavam no cerne dessas religiosidades. Mais
de um século depois, as diferenças entre os “islamizados” e os “outros” continuava a ser
destacada. Em 1905, João do Rio relatou que Julio Ganam,
grave e sábio alufá, teve a bondade de me convidar, ha dias, para
commemorar discretamente, como convem a um musulmin, a data da
libertação dos escravos.
Nada das extravagancias dessa gente de santo, fez elle, com certa colera
desprezadora. Dizemos alguns salas e depois almoçaremos um carneiro de
forno, recheado.249

A distinção entre os que seguiam princípios “mahometanos” e os “feitichistas”


estava presente, embora, na prática, pudesse não ser tão nítida assim. Alguns, tidos
como alufás, na verdade, eram o que se reconhecia como “feiticeiros”, como, por
exemplo, o alufá Horácio de Sá Pacheco, a quem retonaremos no terceiro capítulo. O
fato é que na capital brasileira, entre os períodos imperial e republicano, as vivências
religiosas dos africanos islamizados também estavam representadas.
Conforme já destaquei, a parte mais antiga da cidade do Rio de Janeiro
concentrava africanos de diferentes grupos étnicos. Essa população, atuante nos
mercados, nas praças e no porto, habitando, especialmente, a região compreendida entre
a Gamboa e São Diogo, estava inserida na ocupação mais antiga da cidade. Mariza
Soares argumentou que a organização dos africanos pôde resultar de “rearranjos

246
MARANHÃO, Francisco dos Prazeres. Diccionario Geographico abreviado de Portugal e suas
possessões ultramarinas. Lisboa: Casa de Viuva Moré, 1862. p.74
FARINHA, Antonio Dias. Os árabes nos antigos relatos portugueses no Índico. Finisterra, v.XL, n.79, p.
151-160, 2005, p.154.
248
BRAZIL, Padre Etienne. O fetichismo dos negros no Brazil. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo
LXXIV, pp.195-262, 1911.
249
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 13 de maio de 1905, p. 3.

81
étnicos” estabelecidos no próprio cativeiro. Para ela, a maioria dessas identidades estava
baseada em categorias mais abrangentes (como os “angola” e “mina” do Rio de
Janeiro), que reuniam, no seu interior, uma grande diversidade de grupos étnicos.250
Ainda na primeira parte do século XIX, viajantes observaram aspectos do cotidiano
desses habitantes:
Nos dias de festa também lhes é permitido de se entregarem livremente a
seus folguedos. Costumam então reunir-se em lugares a isso destinados, perto
das cidades, para esquecerem com a música e a dança as penas e tristezas da
semana. Os instrumentos musicais de que aí se servem são em regra
extremamente simples, o que não impede que toquem alguns deles com
grande perícia. O mais importante deles consiste numa meia cabeça ou
porongo, com hastezinhas de ferro, o qual de todos é o que soa mais
agradavelmente. Também usam uma corda de tripa esticada sobre um arco,
bem como tocam com as mãos uma espécie de tambor. Não se pode esperar
grande harmonia de semelhante instrumental, mas os negros com ele sentem-
se bem felizes, pois durante essas horas têm a ilusão de serem independentes
e livres.251

Na segunda metade do século XIX, negros recém-chegados dividiram espaços −


na Santa Rita, Gamboa, Saúde − com uma população negra que já ocupava a região.252
Também construiriam redutos religiosos:
Na freguezia de Santa Rita, deu-se queixa e busca em casa do preto Mathias
José dos Santos, por haver denúncias, de que era casa de dar fortuna, e ahi
forma apprehendidos diversos objectos como tambores, emblemas etc..., foi
preso o preto Domingos dono do quarto.253

Os objetos apreendidos na casa de Matias sugerem elementos associados à


feitiçaria: atabaques e emblemas. Seria a prova de outra expressão religiosa na cidade?
Ao mostrar a inserção dos africanos ocidentais, “minas”, na Praça do Mercado, Juliana
Farias254 apresenta um Matias José dos Santos, que em 1842 comprou sua alforria,
como candidato a uma barraca, que realmente ocupou entre 1847 e1858, vendendo
peixe. Em 1856, o africano mina Matias deu 400 mil réis como 1ª parcela pela
libertação de Maria Mina. Dois anos depois, ele teria pago mais 600 mil réis ao
advogado Agostinho Marques Perdigão Malheiros para completar o valor. Seriam os
mesmos Mathias? Ou tão somente um africano homônimo? É possível que Matias (o

250
SOARES, Mariza de Carvalho. Minas, Angola e Guiné: nomes d'África no Rio de Janeiro setecentista.
Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, Niterói, v. 6, p. 73-93, 1998.
251
SEIDLER, Carl. 10 anos no Brasil (1825-1834), Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1980, p.237.
252
Na região entre o Morro da Conceição e da Gamboa, segundo descrição do inicio do século XX, havia
uma ladeira íngreme, lamacenta e negra a nos recordar o passado Porto Arthur. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 5 de maio de 1905, p.1.
253
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1857, p.4. A notícia também foi
divulgada pelo Correio da Tarde de 11 de fevereiro de 1857, p.3.
254
FARIAS, Juliana Barreto. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de
Janeiro (1830-1890). São Paulo, 2012. Tese de Doutorado em História Social - Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2012.

82
mesmo ou um deles) fizesse parte das primeiras levas de africanos deslocados pelo
tráfico interprovincial e que sua ascensão econômica não viesse apenas da sua barraca
de peixe, mas também de sua casa de dar fortuna, de tradição africana mina. De
qualquer maneira, podemos concluir que a proeminência que os “minas” estavam
conquistando na cidade era motivo de inquietação. Ainda no início da segunda metade
do século XIX, foi feita a seguinte denúncia:
Descobriu-se na rua da Imperatriz mais uma casa de dar fortuna e já se vai
tornando tão ordinaria esta especulação que eu não posso deixar de admirar-
me que a policia da minha terra não tenha ainda tomado uma medida efficaz
que entretanto a mim parece facillima. Não entra em duvida que essas casas
de negocio pertencem a negros minas libertos e escravos.
Quanto a estes, a policia dando uma busca rigorossa na cidade conhecerá que
há uma immensidade d’elles morando em casas suas ou de seus parceiros
libertos com a mesma franqueza como si fossem alguns cidadãos, e diz-se
mesmo que ha senhores que dão licença para isso: faça os, portanto, a policia
recolher para o seu captiveiro, porque a liberdade lhes é imcompativel, e o
direito do senhor não vai até o ponto de conceder aos seus escravos aquillo
que só pertence aos cidadãos.
E quanto aos libertos, não sendo elles cidadãos de nação alguma, faça-os
evacuar o quanto antes, não só os que já teem culpas conhecidas no cartório,
como todos os outros, porque si ainda não fizeram o mesmo que aquelles não
é porque não tenham querido, mas porque não poderam.
Com esta medida não só diminuiria espantosamente a desmoralisação que
essa raça tem desenvolvido no paiz, como seria proporcionada uma multidão
de casas; conseguintemente baixa de alugueis para tanta gente que a esse
respeito sofre grandes privações, porque os “senhores negros ‘minas’”
ocupam muitas e boas casas, visto que teem diversas fontes de riqueza, por
exemplo, dar “fortuna”, e outras, e outras que são de ver, mas não de
contar.255

A “independência” e ascensão dos africanos “minas”, escravos e libertos,


obviamente incomodava ao denunciante. Ao afirmar “faça os, portanto, a polícia
recolher para seu captiveiro, porque a liberdade lhes é incompatível” e negando a eles
direitos que só “pertencem aos cidadãos”, expressava a preocupação com o que poderia
advir da ascendência desses africanos. Contudo, o fato de senhores permitirem aos
escravos “morar sobre si”, como expressou o denunciante, possibilitando-lhes certa
autonomia, era visto como algo perigoso, uma vez que o escravizado ficava fora do
controle do senhor.
Em relação aos libertos, afirma que eles também não teriam direitos, uma vez
que, eram “cidadãos de nação alguma”, ao contrário do denunciante, que,
enfaticamente, falava em “minha terra”. Por outro lado, fica difícil saber o que ele
entende por “a desmoralização que essa raça tem desenvolvido no país”. Como as casas
de dar fortuna não eram uma novidade e nem exclusividade dos “africanos minas”,

255
Correio da Tarde, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1858, p. 2.

83
poderia a alusão estar relacionada aos levantes ocorridos na Bahia? Por outro lado,
poderia ser uma retaliação pela projeção que, mesmo com a repressão, os “cultos
africanos” conseguiam. Os espaços religiosos e o controle imobiliário eram o pano de
fundo, no discurso, mas o que atormentava o denunciante era o poderio que os
“africanos minas” estariam arregimentando.
Era uma situação que estava se consolidando na cidade do Rio de Janeiro: a
presença “africana mina”, disputando espaço com os “congos” e “angolas”! Aqueles
“minas-baianos”, chegados na segunda metade do século XIX, reorganizaram os
espaços e a religiosidade na cidade do Rio de Janeiro. O fluxo desse grupo pode ter
representando uma ameaça para as antigas gerações de africanos. Especialmente em
seus espaços de trabalho urbano, dando origens a conflitos como o ocorrido em 1856,
na freguesia de Santa Rita, área central da cidade, quando africanos “congos” e
africanos “minas”, disputaram o descarregamento e carregamento do café. Na briga de
paus e facas, iniciada na rua de S. Bento e terminada no Beco do Consulado,256 os
envolvidos “esbordoarão-se e esfaquerárao-se”. Tal episódio provocou uma matéria
jornalística que enfatizava a preocupação com a população africana: “muito mal nos
acharemos se elles se chegarem a convencer que podem repetir scenas dessas sem serem
incomodados”.257 Mas não era apenas no cobiçado carregamento de café que africanos,
com destaque para os “minas”, preocupavam:
A rua da Candelária é uma das de maior transito, e também uma das menos
commodas da cidade. Além dos jacazes de toucinho e queijos com que se
tomava parte da calçada, acresce agora um novo trabalho estabelecido pelos
pretos minas.
Fazem da rua loja de barbeiro. Quem busca o lagedo para não ser pisado
pelas carroças que andam pelo meio da rua, esbarra com as pernas de algum
machacaz africano, gravemente sentado em uma tripeça enquanto o parceiro
o tosquia, ensaboa e barbeia. Que dirá a isto o fiscal?
Talvez responda que quem consente o nojento charco de mijo que existe no
adro da freguezia, não se deve importar com os barbeiros da calçada. 258

Diferentes etnias e religiosidades teriam que conviver na mesma cidade e


procurarem meios de enfrentar os obstáculos para suas práticas. Entretanto, na conquista
de espaços, as diversidades étnicas ficavam visíveis em vários aspectos culturais: da
religião a expressões como capoeira e danças. Na sociedade escravista e no “pré-

256
O Beco do Consulado estava na área de grandes trapiches, onde ocorriam os carregamentos do café,
que representavam importante atividade para escravos de ganho e para livres. Várias solicitações foram
publicadas nos jornais sobre a quantidade de despejos deixados no local pelos carregadores de café. O
beco desapareceu devido às obras de ampliação do Cais do Porto.
257
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 8 de abril de 1856, p.1.
258
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1860, p.1.

84
abolição”, persistiu a visão da inferioridade do negro e, por conseguinte, de suas
práticas culturais. Todavia, no Rio de Janeiro, especialmente no final do século XIX, as
religiosidades de origem “congo” e “mina” estavam no centro das questões. Mesmo que
não explícitamente, podia haver um confronto de importantes tradições religiosas: a dos
chegados no início da segunda metade do século XIX, os “minas-baianos”; e outra mais
antiga, arraigada nas tradições urbanas anteriores, da mesma “linhagem” da qual saiu
Juca Rosa.

OS ADEPTOS DE JUCA ROSA

Em março de 1872, o A República noticiava, sob o título Os adeptos de Juca


Rosa, a invasão de mais uma casa de dar fortuna, dessa vez, na freguesia da Lagoa; nela,
haviam sido presos Maria Antonia, Felicidade Maria da Conceição, Delfina Constantina
e João de tal, “sorprehendidos na práctica de seus mystérios. Apprehenderam-se os
objectos e distinctivos da seita. As ideias não morrem”.259 Esses presos simbolizam a
tradição religiosa, de matriz africana, mais enraizada na terra carioca: a dos povos da
África Central. Aquela região africana, que englobava o “Congo” e “Angola”, usados
aqui de maneira genérica para expressar inúmeros subgrupos, foi de fato marcante no
Rio de Janeiro, como destacou Karasch.260
Na década da abolição, o Rio de Janeiro ainda era a província com o maior
número de escravos. Muitos deles transitavam pela Corte, e ainda havia os alforriados e
livres, que procuravam a cidade para moradia. Os espaços de convivência proliferavam:
zungus, cortiços, botequins e alcouces261, o que não significa que as relações fossem
sempre amistosas. Por exemplo, em 1880, um grupo de capoeiras e vagabundos entrou
em um botequim no Largo do Rocio, nº 77, e promoveram grande desordem.262 A
situação ainda foi pior no botequim da rua do Cotovelo, nº5, quando Antonio Carneiro –
conhecido como Antonio Moleque – morreu devido a um ataque a facadas naquele
estabelecimento.263 Por outro lado, nos sobrados e casas de cômodos da “Cidade Velha”
e da “Cidade Nova”, as várias comunidades mantinham seus espaços de culto, desde as

259
A República, Rio de Janeiro, 9 de março de 1872, p. 2.
260
Ver Mary Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
261
O termo Alcouce poderia ser empregado como taverna ou casa de prostituição.
262
Gazeta da Noite, Rio de Janeiro, 19 de março de 1887, p.1.
263
Gazeta Nacional, Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1887, p.2.

85
antigas casas de dar fortuna, curandeiros e feiticeiros, até os candomblés, introduzidos
pelos “baianos”. Esse contexto acabava por promover rivalidades. Entretanto, a tradição
religiosa dos cultos da África Central, tão entranhada na cidade, era praticada sob a
liderança de africanos e seus descendentes.
Ao longo do século XIX e início do XX, vimos como homens aparecem
descritos no comando das “casas de dar fortuna” e dos “candomblés”264 cariocas.
Entretanto, podemos identificar diferentes tradições desses líderes religiosos através de
alguns detalhes em suas práticas. Por exemplo, Juca Rosa, o feiticeiro da rua do Núncio,
tinha o dom mediúnico, ou seja, possuía o dom da incorporação e seus rituais, descritos
no processo que sofreu, incluíam matanças de animais.
Como foi comentado na introdução deste estudo, Gabriela Sampaio foi pioneira
em identificar nos rituais do feiticeiro Juca Rosa origens na África Central, destacando
que “tinham relações profundas com movimentos religiosos originários da região da
265
África Central, em especial do antigo reino do Congo”. Sampaio ressalta a forte
ligação entre elementos dos rituais realizados por Rosa e “práticas de cura comuns entre
os Bakongos, como as descritas pelo antropólogo Wyatt Mac Gaffey”.266 A historiadora
chama a atenção de que Mac Gaffey apresenta o Nkisi como uma força proveniente da
terra invisível dos mortos e que pode ser submetido ao controle dos homens através de
procedimentos rituais realizados pelos sacerdotes (nganga). Para ela, essas cerimônias
“contam com um grande aparato material, onde se incluem instrumentos musicais,
roupas especiais, dança e música em espaços determinados, e o próprio nkisi, que
também é um objeto, onde se guarda a força do Nkisi”.267
Os elementos identificados nos rituais de Juca Rosa eram comuns a outros
“feiticeiros” da cidade, homens ou mulheres, como a preta velha Emiliana que, na rua
de S. José, entre a da Quitanda e do Carmo, “muitos incautos tem ahi deixado avultadas
quantias para alcançar o desconhecido”.268 Os ritos praticados pelos antigos moradores,

264
Na segunda metade do século XIX, o termo candomblé foi empregado, genericamente, pela imprensa,
para definir espaços religiosos.
265
SAMPAIO, G. R. A história do feiticeiro Juca Rosa: matrizes culturais da África Subsaariana em
rituais religiosos brasileiros do século XIX. In. SEMINÁRIO INTERNACIONAL
MULTICULTURALISMO, PODERES E ETNICIDADES NA ÁFRICA SUBSARIANA, 4., Porto,
2002. Atas... Porto: Centro de Estudos Africanos; Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. v.
IV. p. 105-119.
266
Idem, ibidem.
267
Idem, ibidem. p.109
268
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1876, p. 1.

86
“africanos centrais” e crioulos, do Rio de Janeiro, a partir segunda metade do século
XIX, tiveram que conviver.
Em 1874, o comendador Antonio Augusto Teixeira teve sua casa comercial
arrombada, desparecendo a quantia de 2.500$0000. O chefe de polícia, do 1º Districto
de Santa Rita, descobriu que o dinheiro tinha sido entregue pelo escravo Francisco à
preta Catharina, moradora à Rua da Conceição nº 69. Essa declarou que havia entregue
o dinheiro ao preto Frederico, dono de uma casa de dar fortuna, no largo de S.
Domingos, nº5.
Consta-mos que o Sr. Dr. 3º Delegado de policia apreendeu nessa casa
algumas provas materiais, de que realmente se celebravam nella alguns
mistérios de dar fortuna, confiamos, pois, que não dispensar toda a atividade
e energia, afim de extinguir mais um desses antros, onde tantas reputações se
comprometem, e de onde tantos males se propagam.269

Frederico Theodoro Ferreira, morador do Largo de S. Domingos, era pai de


uma numerosa família, um representante da “nação conga”, e seus filhos participavam
da Sociedade Familiar Flor do Rosário, instituição bastante atuante na Corte. Frederico
e sua mulher Theodora Vivência Ferreira eram ligados à Venerável Ordem de São
Domingos Gusmão. Em 1877, ele foi identificado, em uma lista de eleitores, como
bordador, tinha 51 anos e sua filiação era ignorada.270
Durante a invasão policial na sua casa, o delegado recuperou a quantia de
1000$, e o “feiticeiro” declarou que só havia recebido de Catharina aquele valor. A
fiscalização das autoridades, em áreas tão centrais, era constante. Para sobreviver, era
importante estabelecer vínculos que representassem maior proteção. De acordo com
Erika Arantes, “Ligar-se aos ‘da alta roda’ era uma estratégia possível de sobrevivência,
uma maneira de garantir proteção para dar continuidade aos seus ritos”.271
Todavia, buscar regiões menos centrais não era uma garantia de tranquilidade. É
o caso do feiticeiro Laurentino Innocencio dos Santos que, como outros, começou suas
atividades na parte mais próxima ao centro da cidade, na freguesia do Espírito Santo,
onde também teve problemas. O Correio do Brazil, de 14 de março de 1872, na Seção
judiciária, noticiou o habeas-corpus de Laurentino Innocencio dos Santos e Maria
Francisca, com decisão de liberdade.

269
O Globo, Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1874, p. 3.
270
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1877, p. 5.
271
ARANTES, Erika Bastos. O porto negro: cultura e trabalho no Rio de Janeiro dos primeiros anos do
século XX. Campinas, 2005. Dissertação (Mestrado História Social) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2005. p.125.

87
Supplicante o advogado Josino do Nascimento Silva Filho, pacientes
Laurentino Innocencio dos Santos e Maria Francisca- Juizes os Srs. Campos,
Queiroz, Travassos, Siqueira, Rozendo, Mariani, Gouvea, Araripe, Norberto,
Assis, Mascarenhas e Magalhães Castro.
Os pacientes foram presos à ordem do subdelegado da Freguezia do Espírito
Santo a 12 de fevereiro do corrente anno sob pretexto de terem casa de dar
fortuna, para serem processados por crime de estelionato, sem que precedesse
nenhuma formalidade legal, e mesmo contra expressa disposição da lei. Que
só permite aos subdelegados dar ordem de prisão em flagrante delicto;
acrescendo terem ficado os pacientes até agora (30 dias) encarcerados sem
nem começo de formação de culpa. Foi concedida a ordem de soltura
unanimanente.
O Sr. desembargador Magalhães Castro propoz que o tribunal mandasse
desde já responsabilizar o subdelegado para que a nova lei da reforma, lei
garantidora das liberdades individuais, seja uma realidade; e o cidadão
brazileiro não continue a estar sujeito a arbitrariedades, e este tribunal a ser
incommodado com petição de habeas-corpus como este - Não passou,
votando com seu autor o srs. Mariani, Gouvea e Araripe. 272

Em 1877, Laurentino se identificava como filho de José Innocencio dos Santos,


artista e morador na rua dos Guararapes.273 Ou seja, mudou para uma área menos
central, talvez motivado pela elevação dos aluguéis, que ocorreu nessa fase, ou talvez,
para ter mais tranquilidade para suas atividades religiosas. Infelizmente, encontraria
novos problemas.
Laurentino Innocencio dos Santos, ao longo de seu exercício religioso, enfrentou
a constante repressão policial. Em março de 1878, sua casa foi invadida pelo
subdelegado Francisco Correa Dutra, acompanhado de inspetores do quarteirão e do
alferes João de Souza Pinto. Vários objetos foram encontrados e, “em um quarto interior
da referida casa, notou a autoridade a existencia de dous altares vistosamente alfaiados,
com grande numero de imagens e diversos ornamentos de igreja”.274
O subdelegado da Glória, ao que parece, não perdia Laurentino de vista e, em
janeiro de 1879, a casa, na Ladeira dos Guararapes, foi palco da ação policial que
prendeu Laurentino: “negro liberto, brasileiro, natural do Rio de Janeiro, de 52 anos de
idade, vivendo como ‘negociante’, na Cidade do Rio de Janeiro. Junto com elle, havia
cerca de vinte pessoas, entre escravos e livres”.275 De acordo com Rafael Pereira de
Souza, na casa de Laurentino, a polícia apreendeu vasilhames de barro com raízes, pós e
águas, onde havia favas, grande quantidade de búzios, ervas, caramujos e também

272
Correio do Brazil, Rio de Janeiro, 14 de março de 1872, p.3.
273
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1877, p. 7.
274
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 26 de março de 1878, p.1.
275
SOUZA, Rafael Pereira de. Batuque na cozinha, Sinhá num quer! Repressão e resistência cultural dos
cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890). Niterói, 2010. Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2010, p. 69.

88
grande quantidade de imagens, desde santos católicos a “totens” africanos.276 Nessa
invasão, foram presas vinte pessoas e, entre os participantes presos, encontrava-se uma
criança: Julia, de sete anos de idade, liberta e filha de escravos.277 Partindo das
informações de Souza, baseadas nos livros da Casa de Detenção, e dos relatos dos
jornais sobre as diversas invasões, é bastante provável que Laurentino fosse de “nação
angola” ou “congo”, uma vez que, nessas religiosidades, era comum a presença de
imagens católicas.
Mais de uma década depois, em 1890, ainda como o “curandeiro do Pendura
Saia”, Laurentino foi novamente denunciado, porque “entregava-se á rendosa industria
de dar fortuna e era a sua caverna um zungu no logar denominado Pendura-Saia, no
Cosme Velho”.278 Porém, apesar das constantes perseguições policiais, o “feiticeiro”
mantinha um cotidiano comum. Por exemplo: solicitou e conseguiu da administração
municipal uma contribuição mensal para conservação das ladeiras do Guararapes, do
Imperador e do Cerro-Corá.279 Laurentino também requereu, na Intendência Municipal,
licença para que seu botequim, na rua da Misericórdia, n.40, pudesse permanecer aberto
após as 22 horas.280
Laurentino, até o final de sua vida, mesmo com as acusações, manteve sua “casa
de dar fortuna” no terreno da Ladeira dos Guararapes, com seis casinhas edificadas, que,
em 1900, quando ele já havia falecido, foram colocadas à arremate em leilão.281 Um
processo foi aberto contra o leilão.282 Nesse litígio, Julia Luisa dos Santos, identificada
como filha e inventariante de Laurentino, questionou a legalidade da ação. É muito
provável se tratar da menor Julia, filha de escravos, presente na casa da Ladeira dos
Guararapes, quando da invasão policial. Naquele momento, 1879, foi declarado que ela,
assim, como Laurentino, era liberta.283
Os aspectos envolvendo homens como Frederico Theodoro Ferreira, morador do
Largo de S. Domingos, Laurentino Innocencio dos Santos e o legendário Juca Rosa

276
Idem, ibidem
277
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de janeiro de 1879, p.1.
278
O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 4 de março de 1890, p.1.
279
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1884, p.1.
280
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1890, p.3.
281
“8ª Pretoria- No dia 26 do corrente, ao meio-dia, do terreno a Ladeira dos Guararapes n.3 tendo
edificado seis casinhas avaliadas em 2.500$, penhoradas por João Coelho da Costa ao espolio do finado
Laurentino Innocencio dos Santos”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1900, p. 3.
282
Arquivo Nacional, Pretoria do Rio de Janeiro, 6, Freguesia da Glória –D5 .Leilão Publico, ano 1897,
nº 4816 , maço 874.
283
É relevante destacar que, em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre. Como Julia, em 1879,
estava com sete anos pode ser essa a origem de sua liberdade.

89
exemplificam um legado mais antigo no cenário carioca: as religiosidades dos africanos
centrais vivenciadas por seus descendentes brasileiros.
A partir da segunda metade do século XIX, das casas de dar fortuna aos
candomblés, as comunidades religiosas proliferavam. É importante observar que, à
medida que os “baianos” se estabeleciam no Rio de Janeiro, o “candomblé” foi, aos
poucos, colocando a nomenclatura “casa de dar fortuna” em desuso. Nos jornais, muitas
vezes, o termo “candomblé” era usado para práticas comuns às “casas de dar fortuna”.
Tomando por base notícias de jornais publicados na cidade do Rio de Janeiro,
foi possível comparar a ocorrência dos termos “casa de dar fortuna” e “candomblé”.
Assim, na segunda metade do século XIX e início do século XX, localizei 323 citações
sobre “casas de dar fortuna” ou “casa de dar fortuna” nos periódicos da cidade do Rio
de Janeiro. Na década de 1890, as citações sobre candomblé ou candomblés aparecem
51 vezes. Nas primeiras décadas do século XX, aconteceu a ascensão do termo nos
jornais cariocas e, na década de 1920, registraram 534 citações.284
A nomenclatura “candomblé” passou a ser maior referência na primeira década
do século XX, e “casa de dar fortuna” foi desaparecendo, talvez devido à presença dos
“baianos” no centro da cidade do Rio de Janeiro.285 Entretanto, é importante observar
que os jornais usavam “candomblé” de maneira genérica, englobando uma variedade de
rituais. Em alguns relatos, fica difícil identificar a origem do ritual praticado, uma vez
que se usavam estereótipos. É o caso de 1887, em que o subdelegado do 1º distrito de
Santana, às 10 horas da noite, cercou uma casa na rua General Pedra, nº 173,
encontrando 21 pessoas em meio a grande batuque. Objetos como búzios, peles, contas,
galinhas esquartejadas, garrafas com líquidos, pós, cestos e outras bugigangas foram
apreendidos. Todos os participantes foram presos e “d’entre essas pessoas achavam-se
dois homens e duas mulheres que elles denominavam Príncipe e Princeza, a mãe de dar

284
Para a identificação dessas citações, entre 1850-1949, foram consultados os seguintes periódicos:
A Manhã; A Nação; A Noite; A Noticia; A Reforma; A República; Brasil Comercial; Brazil Americano;
Cidade do Rio; Correio do Brazil; Correio Mercantil, Instructivo e Político; Correio da Manhã; Correio
da Tarde; Critica; Diário do Rio de Janeiro; Diário Carioca; Diário da Noite; Diário de Noticias; Folha
Nova; Gazeta de Noticias; Gazeta da Tarde; Jornal da Tarde; Jornal do Brasil; O Carbonário; O
Cruzeiro; O Globo; O Malho; O Paiz; O Tempo; Periódico dos Pobres; Revista da Semana; Voz do
Povo.
285
Na consulta, pude observar o emprego de outros termos, além dos citados na tabela, como cangere,
feitiçaria e curandeirismo, empregados como referência a práticas religiosas. Por outro lado, é importante
considerar que, nos jornais, o aumento das citações em momentos em que se intensificavam as
perseguições às religiosidades afro-brasileiras, como em 1870, com o rumoroso caso de Juca Rosa. A
repressão também aumentou com Sampaio Ferraz, chefe da polícia do Distrito Federal, em 1889 e 1898.
Sampaio ficou conhecido como “Cavanhaque de Aço”, pela implacável perseguição aos capoeiras e aos
cultos afro-brasileiros. Na década de 1920, os governos também adotaram medidas repressoras.

90
fortuna e sua ajudante. Foram todos recolhidos à detenção.”286 O “príncipe” era
Francisco Antonio, a “princesa” era Vicência Maria do Rosário e a “mãe da fortuna” era
Cândida Rodrigues. Os relatos jornalísticos sobre a prisão apresentam pequenas
diferenças. Entretanto, sempre coincidem em que Francisco Antonio, Vicência e
Cândida estavam “fantasiados” o que, provavelmente, é uma referência aos trajes rituais
usados pelos iniciados. A matéria no Jornal do Comércio, como era mais usual no
período, usou como título “Casa de dar fortuna”. A manutenção da nomenclatura “casas
de dar fortuna” pode significar apenas o hábito do termo ou mesmo a percepção sobre
diferentes práticas religiosas das comunidades negras urbanas cariocas.
A nomenclatura candomblé emerge, nos jornais cariocas, na segunda metade do
século XIX. Em 1862, o Diário do Rio de Janeiro publicou, com base no Diário da
Bahia, que a polícia havia invadido um candomblé, no lugar denominado Pojavá, na
freguezia de Santo Antonio. Acabariam detidos cerca de 60 pessoas, de ambos os sexos,
entre os quais havia quatro africanos libertos. A polícia apreendeu também diversos
objetos do culto: “ahi quasi sempre se originam graves desordens. Cumpre à policia
corrigir convenientemente os adeptos de tão mysteriosa associação”.287 Na década de
1870, o Brazil Americano, periódico carioca, esclarecia que candomblé era o “nome que
dão as africanas a uma dansa original e bastante curiosa”.288
Comparado às narrativas publicadas nos jornais cariocas sobre as invasões dos
espaços religiosos – “casa de dar fortuna” “e candomblé” –, é possível perceber que, até
a década de 1890, o termo candomblé ainda era novidade. Assim, seria igualmente
possível considerar que, pelo menos nas narrativas jornalísticas, a introdução do
candomblé, com o culto dos orixás, foi consolidada pelos africanos “minas- baianos”
inseridos na cidade do Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX.

286
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 24 de maio de 1887, p.1; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24
de maio de 1887, p.2.
287
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de abril de 1862. p.1.
288
Brazil Americano, Rio de Janeiro, 27 de agosto de 1875, p.4.

91
UM MACRÓBIO FEITICEIRO

As religiosidades negras que se configuraram e coexistiram no Rio de Janeiro,


entre o final do século XIX e início do XX, tiveram, provavelmente, que desenvolver
um jogo de inter-relações identitárias e políticas que, a partir de meados do século XX,
resultou em novas formatações religiosas. Nicolau Parés e Renato da Silveira
analisaram como ocorreu a “nagôização” do candomblé baiano no século XIX.289 Seria
possível pensar como uma expansão do “nagô” atingiu o Rio de Janeiro, onde, até
então, predominavam africanos “angola” e “congos” e suas práticas religiosas.
Flávio Gomes, em estudo sobre a demografia africana urbana no Rio de Janeiro
oitocentista (1801-1830), indica a preponderância de africanos centrais e uma
expressiva quantidade de africanos do sul de Angola (benguelas), 27,2%. De acordo
com o autor:
Também se evidencia o impacto dos africanos do norte do Congo, com
cabindas e congos com 34,7%. No conjunto geral, e mesmo considerando as
indeterminações, sub-registros e terminologias generalizantes (‘de nação’
somente), temos a preponderância de africanos centrais com as classificações
benguela (14,5%), congo (13,9%), angola (6,3%), cabinda (4,6%),
moçambique (3,2%), rebolo (3,1%) e mina (2,1%).290

Karasch avaliando as “nações” africanas, conclui que a África Ocidental foi a


fonte de escravos menos importante para o Rio de Janeiro291 e aponta para o centro-
oeste africano e a África Oriental como a “terra natal provável da maioria dos africanos
no Rio”.292A “onda mina” que atingiu o Rio de Janeiro, a partir da segunda metade do
século XIX, foi surpreendente em termos culturais, mas as tradições da África Central
estavam enraizadas na cultura local: “a africanidade central da população escrava é,
portanto, fundamental para a compreensão de todo o processo de mudança cultural na
cidade”.293
A cultura não é estagnada. Ao contrário, modifica-se permanentemente, através
de práticas e interações que se vão estabelecendo. Nas mitologias das diferentes culturas
étnicas africanas – “angolas” ou “minas” –, era muito importante o culto aos elementos

289
PARÉS, Luis Nicolau. Mundo atlântico e a constituição da hegemonia nagô no candomblé baiano.
Revista ESBOÇOS, v. 17, n. 23, p. 165-185, 2010; SILVEIRA, Renato. Sobre a fundação do Terreiro do
Alaketo. Afro-Ásia, n. 29/30, p. 345-379, 2003.
290
GOMES, Flavio. A demografia atlântica dos africanos no Rio de Janeiro, séculos XVII, XVIII e XIX:
algumas configurações a partir dos registros eclesiásticos. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v.19,
supl, p 81-106, dez 2012, p.97.
291
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 63.
292
Idem,ibidem. p. 45.
293
Idem, ibidem, p. 36.

92
da natureza: as forças primordiais de criação da terra. Tais elementos podiam ser
percebidos e cultuados de diversas formas. Entretanto, podia haver sentidos e
significados convergentes, como por exemplo, o uso das ervas. Cultuavam-se também
os ancestrais, ritual introduzido no Brasil pelos africanos “congos’ e ‘angolas”. A
presença dos africanos nagô-minas – por via de sua comunidade baiana –, com o culto
aos orixás e respectivas interações certamente provocou mudanças, mas não
extinguiram a influência dos cultos religiosos reconfigurados pelos africanos de origem
“congo” e “angola”. Continuariam a fazer parte da vida de uma população negra mais
antiga, inserida na cidade, como o feiticeiro João Miguel.
Em 1896, João Miguel Pereira da Costa entrou com uma ação contra Jeronymo
José Ferreira Braga, fiador de Geraldo das Mercês, inquilino de João Miguel. O
locatário havia abandonado a parte da casa que subalugava, deixando os aluguéis
atrasados:
Ilmo Exmo. Sr. Juiz da 5ª Pretoria.
João Miguel Pereira da Costa, que sendo-lhe devedor Jeronymo José Ferreira
Braga, residente a rua do Lavradio nº 78, da quantia 135$000, de 2 meses e
meio de aluguéis do predio sito a Praia Formosa nº 213, na qualidade de
fiador e principal pagador de Geraldo das Merces, que habitou no dito prédio,
como prova a carta junta, e não querendo o Suppdo pagar a dita importancia
dos aluguéis mencionados pelo qual se responsabilizou pelo seu afiançado
que o Suppl. Fazer citar ao suppdo para na 1ª audiencia deste juizo vir fallar
aos termos de uma ação sumaria, sob pena de confesso, e ouvir depor
testemunhas, sob as de revelia. Assim requer a V. Excia que, em vistas das
provas, seja o Suppdo. condenado no principal, juros e custas.
Nestes termos pede deferimento.
Rio de janeiro, 26 de fevereiro de 1896
Advogado Dr. José Manoel Duarte Lima
Testemunhas: Antonio Bento Correia da Silva
Arthur de Almeida.294

A defesa de Jeronymo Ferreira alegou que João Miguel não era proprietário do
imóvel, mas sim subalugava alguns cômodos do prédio, de propriedade de Manoel Paim
Pamplona, um rico e conhecido empreiteiro da cidade, que fornecia pedras, retiradas de
sua pedreira na rua dos Cajueiros, para obras municipais. Em 1866, Pamplona recebeu
99$100, pelo fornecimento de pedras para tapar buracos das ruas do Príncipe e Gamboa.
Da Intendência Municipal da Corte, recebeu a autorização, em 1873, para assentamento
de trilhos de ferro na rua Formosa. Apesar de tantas atividades ligadas às obras
públicas, teve sua solicitação para registro como negociante negado pela Junta
Comercial. Entretanto, as atividades do português Pamplona não eram recentes na
cidade. Em 1853, a Câmara Municipal publicou uma relação de nomes constando o de
294
Arquivo Nacional, OI, 5ª Pretoria do Rio de Janeiro- 1896, maço 1315, nº 4784, galeria A.

93
Manoel Paim Pamplona, como aqueles que deveriam comparecer na Tesouraria da
Câmara: “até o dia 30 do corrente, para receber os jornaes seus e de seus escravos e
carroças empregadas nas diversas obras municipaes em diversas quinzenas”.295
É provável que ele tivesse escravos no trabalho da sua pedreira. Uma denúncia
sobre o incômodo provocado pelas cantorias na pedreira da rua dos Cajueiros dá uma
ideia do cotidiano daqueles trabalhadores.
Em resposta ao pedido feito, através do jornal, ao subdelegado do 2º Disctrito
de Santana- “victimas” pedem para parar o canto dos trabalhadores das
pedreiras da rua dos Cajueiros.
Respondemos – às victimas- que esse canto é indispensável aos trabalhadores
de tão rude serviço, porque lhes disfarça o tempo, a fadiga, e
simultaneamente lhes serve de compasso para que todos que trabalham com
um só ferro dêem a pancada certa; e demais é um costume que o próprio
Conde da Ponte, quando governador da Bahia, determinou que os pretos em
serviço cantassem e elle sabia bem o fim que isto conseguia. Canta o
marinheiro, canta o trabalhador de roça, canta o viajante na estrada, todos
cantam embora as vezes não entoem e por consequência também cantam os
cavoqueiros que fazem as minas nas pedreiras; mas não cantam desde as ave-
marias até o tiro d’alvorada para não incomodar as victimas.296

Trabalhar quebrando pedra, cantando, no Rio de Janeiro no verão, e ainda


acordar com um tiro d’alvorada deveria ser realmente um privilégio! 297 No entanto, os
escravos resistiam, pelo menos um grande número deles, como alguns que Pamplona
libertou. Na relação de senhores que libertaram escravos, em 1886, ele aparece
libertando cinco, com mais de 63 anos e oito, com mais de 65 anos. Quem sabe o João
Miguel Pereira da Costa fizesse parte desse grupo? No processo sobre o aluguel, da
Praia Formosa, Pamplona compareceu como testemunha de João Miguel.298Em seu
depoimento, em 15 de abril de 1896, João Miguel Pereira da Costa declarou ser natural
295
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de julho de 1853, p. 3.
296
A Reforma, Rio de Janeiro, 3 de março de 1870, p. 4.
297
“Von Spix e Von Martius (1824) observam que, naquele período, as casas da cidade ainda eram feitas
com blocos de granito, assim como o calçamento da maioria das ruas, ocorrendo frequentes explosões de
rochas pelo uso de pólvora em vários pontos da cidade. Kidder & Fletcher (1857) expressam sua
admiração pelo calçamento da Rua Direita, no centro do Rio de Janeiro (atual Primeiro de Março), a qual
compara às ruas mais bem pavimentadas de Londres e Viena. Ao observar a reposição do calçamento
removido por uma forte ressaca, em1853, Kidder lamenta a lentidão do trabalho, levado a cabo por
escravos pelo método “three-men-beetle”, descrito por Shakespeare no século XVI. Ao ritmo de uma
canção, três escravos erguiam um pesado martelo de ferro e, no compasso da música, socavam a rocha no
solo, descansando alguns momentos após o extremo esforço.” ALMEIDA, S; PORTO, Rubem. JR., R.
Cantarias e pedreiras históricas do Rio de Janeiro: instrumentos potenciais de divulgação das Ciências
Geológicas. TERRÆ DIDATICA, v. 8, n. 1, p. 3-23, 2012, p.7.
Disponível em: <http://ppegeo.igc.usp.br/pdf/ted/v8n1/v8n1a02.pdf >>. 25 de março de 2013
298
Para acompanhar a trajetória de Manoel Paim Pamplona, foram pesquisados os jornais: Correio
Mercantil, Rio de Janeiro, 6 de outubro de 1849, p. 2; Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de
fevereiro de 1848, p.1; 21 de março de 1856, p. 2; 29 de agosto de 1856, p. 2; 15 de fevereiro de 1856, p.
3; 2 de janeiro de 1857, p.2. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1876, p.1; 13 de
junho de 1877, p. 1; 13 de junho de 1878, p. 1; 21 de abril de 1879, p. 2; 10 de outubro de 1879, p. 4, 6 de
abril de 1881, p. 2; Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1889, p. 3; 27 de março de 1894,
p.1.

94
da Costa da África, proprietário e morador à Praia Formosa, nº 213. Depois voltaria a
atrás, dizendo não ser proprietário — porém subalugava cômodos — e que não sabia
escrever. Geraldo José Alexandre das Mercês, ao depor, declarou ser natural do Estado
do Rio, 34 anos de idade, casado, empregado no Foro e morador da rua Fagundes
Varella, nº 19, em Piedade. Disse ainda que:
que morando na Rua Amazonas, na Piedade, adoeceu sua família de varíola e
tendo urgente necessidade de mudar-se e passando pela praia Formoza vio
escripto no prédio da praia, numero duzentos e treze, para onde se dirigiu
encontrando-se com o autor e este mostrando diversos cômodos, pediu
cinquenta e cinco mil réis mensais por uma sala e quarto e um pequeno
gabinete.299

Segundo o réu, João Miguel exigiu carta de fiança e fizeram acordo de que
Geraldo realizaria algumas escritas para o autor do processo. Detalhe: morava no prédio
um inspetor seccional, que tinha amizade com João Miguel, e tratou com a mulher de
Geraldo para lavar a roupa dele e da esposa. Mas as escritas e as roupas lavadas não
foram pagas pelos dois; pela falta de cumprimento da palavra e uma vez que “o mesmo
decobrio que nesta caza tratava-se de medicina ilegal ou feitiçaria tratou de mudar-se
para não perverter e pertubar sua família.” 300 Diante de tal acusação de feitiçaria, o réu
foi reinquirido sobre, se quando foi morar na casa de João Miguel, tinha conhecimento
que ali se praticava “medicina ilegal e feitiçaria”. Geraldo negou: “se soubesse de tal
fato nunca teria ido ali residir e muito menos levado para ali sua família, a quem venera
e, e que não atiraria ella, ao vandalismo de quem quer que seja”.301Questionado se não
foi conivente com a “medicina feiticeira”, mais uma vez negou, destacando serem
notórios os problemas de moradia na cidade, obrigando-o a subalugar tal casa. João
Miguel, ao ser inquirido sobre a acusação de feitiçaria, limitou-se a dizer: “não é
verdade”. Entretanto, ele já havia sido preso anteriormente em outro endereço:
Occurencias das ruas
A casa da rua de S. Leopoldo n.40 era casa de mandiga e feitiçaria.
A policia deu busca ante-hontem n’esse templo e apprendeu os seguinte
objectos de dar fortuna:
Quinze manipanços, um amarrado de colares diversos, seis pelles de cobra,
uma trouxa de roupa de phantasia, três boiões e cinco moringues, com
liquidos diversos, uma lata de folha de com diversas bugingangas, um
taboleiro com dezenove tijelas, nas quais havia pedras, caroços e sementes
diversas, uma caixa de sabão de dendê, um alguidar com uma figura
alegórica, e outros objetos, tudo com um cheirinho de fazer correr à léguas.
Os sacerdotes especuladores da tolice humana eram João Miguel Pereira da
Costa e o preto Luiz Meira, que foram presos.302

299
Arquivo Nacional, OI, 5ª Pretoria do Rio de Janeiro- 1896, maço 1315, nº 4784, galeria, p.14.
300
Ibidem, p.17.
301
Ibidem, p.14.
302
Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 4 de janeiro de 1886, p.1.

95
O processo sobre a cobrança dos aluguéis atrasados terminou com um acordo.
Entretanto, nova acusação de feitiçaria traria maiores problemas para João Miguel. Em
1898, o zungú da Praia Formosa, em que João Miguel morava e subalugava a outros
moradores, foi invadido pela polícia.
Feitiçaria
Decididamente os feiticeiros existentes na 10ª circunscrição tem de levantar
acampamento, pois o capitão Carvalhaes Pinheiro não os deixa socegar.
Hontem às 8 horas da noite, acompanhado do pessoal da delegacia foi aquella
auctoridade à casa de feitiçaria existente na Praia Formosa, nº 273, de
propriedade de um africano de nome João.
A casa é de rotula e duas janellas. A entrada escura e imunda. O delegado
penetrou na sala da frente. Que horror! Havia nesta sala enorme quantidade
de tigellas, mussangas, santos etc... etc.. O ambiente era insuportável. Um
cheiro nauseabundo de gordura espalhava-se por toda a sala.
Ao entrar o delegado encontrou uma negra africana sentada n’uma poltrona,
tendo a seus pés uma crioula deitada, rodeada de santos, mussangas, e uma
vela acessa. Assustados pela inesperada visita, levantaram-se rapidamente e
confusos. Não quizeram explicar o que n’essa posição faziam.
N’esse ínterim o dono da casa, o feiticeiro-mor, desaparecia pelos fundos.
Rigorosa busca foi dada na casa, e tal foi a quantidade de objetos de feitiçaria
encontrada, que o delegado viu-se na contigencia de os conduzir para a
delegacia com uma carroça.
Entre os objectos encontrados, como fossem pedras dentro de tigelas cheias
d’agua, cabeças de galinha preta, notava-se um alguidar de barro contendo
uma espécie de massa cravejada de seixos e no tope d’essa porcaria duas
pennas de galinha. Dentro do alguidar vinténs, pedaços de cera etc...
Para que serviria tal obra e qual seria a desgraçada victima a quem era
aplicada?
A roupa do feiticeiro-mor também foi trazida. É um fato encarnado cheio de
guizos. O spectro era uma vara com uma figa na ponta. No capacete havia um
santo de pão, de longas barbas, brutalmente feito.
O delegado encontrou n’esta casa grande quantidade de pretos, quase na
maioria africanos, que assistiram a retirada de seus thesouros de feitiçaria.
Havia uma negrinha que declarou que “Santo Onofre castigaria o Delegado”
se ele levasse as relíquias encontradas, mas elle tudo foi arrecadando.
Essa casa ou, antes, esse antro de feitiçaria dava sessões às segundas e
sextas-feiras e, segundo se dizia pela vizinhança, era frequentada por gente
muito boa.
Entre os objetos ainda a preparar encontrou-se uma camisa de senhora que
muito pouco recomenda a dona pelo seu estado de limpeza em que foi
encontrado.
O delegado, apezar da enorme confusão, conseguiu prender em flagrante o
feiticeiro-mor, que é um preto velho africano, cabellos brancos, baixo, tipo
mal encarado, ria-se cinicamente de tudo.
A mesma autoridade lavrou o auto contra esse grande especulador, que se
chama João Miguel Pereira da Costa e disse ter 80 anos.303

A imprensa carioca, no final do período oitocentista, em relatos sobre as


invasões das casas dos “feiticeiros”, reproduzia padrões narrativos sobre as práticas
religiosas dos africanos e seus descendentes. Tais padrões são ressaltados na repetição

303
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1898, p.2.

96
de palavras como: antro, nauseabundo, imundície, escuro. No caso de João Miguel,
podemos destacar os mesmos estereótipos das invasões a outras casas de culto: a
associação dos espaços a lugares sujos. A desqualificação da casa — “entrada escura e
imunda”, “cheiro nauseabundo”— concretizava-se na afirmação: “Essa casa ou, antes,
esse antro de feitiçaria”. Assim, essa vinculação trazia implícita a ideia de que a
população negra também tinha tais características.
Guinzburg afirma que não há textos neutros: os códigos precisam ser
decifrados.304Nesse sentido, a repetição de termos depreciativos reproduzia a “realidade
conflitante” entre os diferentes atores sociais: de um lado, a elite letrada que reiterava os
valores pertinentes aos setores hegemônicos; de outro, o “pernicioso” João Miguel —
que “ria-se cinicamente de tudo”— e a “grande quantidade de pretos, quase na maioria
africanos”, símbolos do que era necessário extirpar da sociedade “civilizada” e
europeizada ambicionada pela elite brasileira.
Os objetos encontrados na casa de João Miguel foram analisados pelo autor da
matéria, na Gazeta de Notícias, como destinados a fazer mal a uma “desgraçada
vitima”. Contudo, os indícios são de que ali ocorria um ritual de “recolhimento
iniciático”, em que a mulher deitada — rodeada de santos, missangas e uma vela acesa
— era assistida por uma africana. Nos diferentes cultos afro-brasileiros, o processo de
iniciação religiosa é longo e inclui várias etapas com restrições alimentares, proibição
de relações sexuais, raspagem do corpo e oferendas: o material contido no alguidar pode
simbolizar o sacrifício a uma entidade. A realização da “feitura” envolve os membros da
“comunidade do santo” que procuram manter o sigilo sobre o que ocorre na cerimônia.
Assim, pode se justificar a postura dos presentes na casa de João Miguel, que não
quiseram explicar o que faziam. O reconhecimento, por parte dos adeptos, do caráter
sagrado daqueles objetos é expresso na ameaça feita pela jovem: que Santo Onofre
castigaria o delegado “se ele levasse as relíquias encontradas”. Reitero que o fato de as
autoridades encontrarem naquela casa, imagens e santos católicos fortalece a conclusão
de que ali predominavam rituais dos africanos centrais.
Comparando o primeiro relato sobre João Miguel, em 1886, com o da segunda
invasão de sua casa, podemos observar que, passados doze anos entre as duas
ocorrências, o velho africano mantinha um “padrão ritualístico”, que incluía o traje
sacerdotal.

304
GUINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, v.1, n.21, p. 09-
20, set.90/fev.91.

97
No dia seguinte à prisão do líder religioso, a Gazeta da Tarde noticiou que o
delegado, dr. Carvalhaes Pinheiro, proibiu a entrada na delegacia de “conhecido
advogado pela maneira irregular porque requereu a favor do preso João Miguel da Costa
oficiando em seguida ao Dr. Chefe de policia”.305Além disso, a situação do velho
africano ainda apresentaria algo inusitado: o chefe de polícia determinou que o delegado
mandasse proceder ao corpo de delito nos objetos encontrados na casa do “feiticeiro”.
Assim, ervas e todas as demais bugigangas foram entregues aos peritos. Como o fato
não era comum, a Gazeta da Tarde publicou:
É a primeira vez que se procede a corpo delicto em objectos de feitiçaria e,
como é isso caso virgem, publicamos na integra o parecer dos peritos
nomeados para responder aos quesitos apresentados pelo delegado.
Foram peritos os srs. Pharmaceuticos Albino Pinto Guedes306 e Augusto
Queiroz
Eis o parecer:
Apezar de reconhecermos que não nos cabe estender em consideração sobre o
presente corpo de delicto e que a nossa competência é simplesmente
responder aos quesitos formulados pelo delegado, somos obrigados a fazer
algumas considerações sobre a matéria.
Os quesitos apresentados á nossa resposta são relativos ao art. 157 do código
penal.
É fácil provar-se nestes objectos que nos são apresentados a existência do
delicto, pois os precedentes d’elles nos autoriza a responder que são de facto
objectos próprios de feitiçaria.
A palavra feitiçaria, quer dizer arte de fazer feitiço, bruxaria e mágica. Ora,
em geral, quase todos os indivíduos da raça africana, como o é o acussado,
dedicam-se por meio de hervas e tisanas a cura, bem como a outras espécies
dos sortilégios, a dar fortuna, amor e ódio.
Estudando um por um destes objectos se verifica que serviam para a magia e
seus sortilégios, que os seixos, as unhas de kagado, o peixe secco que se acha
entre esses objectos constituíam talismans para despertar sentimentos de ódio
e amor; que as hervas serviam para a cura de moléstias e que finalmente
fascinava e subjugava a credulidade pública, vindo em nosso auxilio a idade
avançada do accusado, pois, sendo avançada, contribuía para que mais
rapidamente fosse lubricada essa credulidade.
Assim respondem ao primeiro quesito sim – este objectos serviam para a
magia e seus sortilégios. Ao segundo sim - eram talismans – para despertar
ódio e amor. Ao terceiro, sim- as hervas serviam para falsas curas de
moléstias curáveis e incuráveis. Ao quarto, sim – serviam elles para fascinar
e subjugar a credulidade publica.307

Neste relatório, alguns elementos destacam-se: a presença constante de ervas


como provas de feitiçaria e até o fato de a idade avançada de João Miguel ter
significado, para as autoridades, mais um indício de sua feitiçaria. Conforme observado
por Maggie, as acusações de feitiçaria, feitas pelas autoridades no período republicano,

305
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1898, p. 2.
306
Segundo o Diário Oficial da União, de 9 de maio de 1894, secção 1, p.2, o farmacêutico Albino Pinto
Guedes foi nomeado, em 1894, para o cargo de inspetor da 6ª secção da 10ª circunscrição.
307
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 3 de setembro de 1898, p. 2.

98
estavam embasadas no fato de a prática ser uma contravenção penal. Ou seja, foram
viabilizadas medidas legais para normatizar as acusações:
os juristas e médicos envolvidos no debate, que lutavam pela regulamentação
do espaço profissional, viram-se a discutir questões religiosas, emaranhados no
processo de discernir quem era religioso e quem usava magia, quem era
curandeiro e quem era médico... Era um terreno minado por crenças populares
muito generalizadas e se começava a utilizar instituições judiciais como
mecanismos reguladores.308

A denúncia era o primeiro passo para a instauração do processo: “eram formas


institucionais criadas para disciplinar as acusações, julgar se o indivíduo era um
feiticeiro ou charlatão e conferir a devida pena ao culpado ou a merecida liberdade ao
inocente.”309 Alguns objetos, como peles de animais, pedras e ervas, eram
peremptoriamente tidos como destinados à feitiçaria. Portanto, os peritos atrelaram o
que encontraram na casa de João Miguel a cada quesito estabelecido pelo código penal
sobre feitiçaria e concluíram, com base nas “provas” encontradas, que o réu estava
incurso em todos os critérios de culpabilidade.
Em 27 de setembro de 1898, o delegado Pinheiro encaminhou ao presidente da
Câmara Criminal do Tribunal Civil e Criminal os autos contra João Miguel,
acompanhado do seguinte relatório:
O crime pelo qual responde o accusado é definido no art.157 do código
penal. Crime desta espécie coloca a autoridade em posição difícil para bem
apurar a responsabilidade criminal do delinquente pois a dificuldade se traduz
em provar que os objectos encontrados como servindo para a magia e seus
sortilégios realmente constituem verdadeiros talismans para despertar
sentimentos de ódio e amor,; pois para isso é necessário um corpo de delicto
assaz minucioso e procedido por pessoas competentes, isto é, conhecedores
da matéria por sciencia própria.
Julgava que para isso tinha de recorrer a dous feiticeiros como é o accusado
e assim procedido proclamava a nullidade do disposto do art.157 do código
penal, pois fazia prova com criminosos, pois assim, seriam como o accusado
considerados.
Na dura emergência de não poder obter corpo de delicto que me parecesse
que poderia ter base jurídica, comuniquei ao Dr. Chefe de Policia que ia
queimar os objectos encontrados na casa do accusado, que consistiam em
obuzes, seixos, unhas, hervas, missangas, etc. etc... S. Ex. em resposta
mandou proceder o corpo de delicto n’estes objectos como se vê de fls 11 e
12.
Nomeei dous peritos, sendo um d’elles pharmaceutico, sendo o auto de corpo
delicto feito às folhas 14 e 15.
Por elle verifica-se realmente que os objectos eram próprios para a magia e
seus sortilégios servindo para despertar o amor e o ódio e subjugarem a
credulidade publica.

308
MAGGIE, Ivonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1992, p. 42.
309
MAGGIE, Ivone. O arsenal da macumba, Revista de História 19/9/2007. Disponível em
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-arsenal-da-macumba>. Acesso em 21 de fevereiro de
2014.

99
Assim, portanto, bem definida por estes peritos a responsabilidade do
acussado pois este corpo de delicto foi feito com o máximo cuidado pois
sendo um dos peritos nomeado pharmaceutico estudou uma por uma das
hervas existentes, chegando a um resultado definido que ellas serviam para a
cura de moléstias curáveis e incuráveis, ao passo que o outro perito pelo
conhecimento que tem de observações feitas em viagens constantes e pelo
seu talento e dedicação ao estudo dos costumes africanos, a cuja raça
pertence o acusado, chegou a conclusão em virtude destes africanos
dedicarem-se as curas por essas hervas e mesmo por observações feitas em
um trabalho de um africano que residia no sertão do Estado da Bahia, de
onde o perito é natural, que esses objectos servissem para depertar o ódio e o
amor, concorrendo para mais acceitação neste trabalhos a idade do acussado,
pois sempre os africanos velhos são os escolhidos pelos crédulos desta
maneira de adquirir fortuna.
Portanto:
Considerando o corpo de delicto das fls. 11 e 15 como basse d’este processo,
pois elle define a responsabilidade do acussado, considerando mais que o
acussado foi preso em flagrante em sua residência à Praia Formosa, n.273, na
pratica do delicto, no dia 29 de mez de agosto do corrente anno; considerando
ainda que as testemunhas que depuzeram no referido auto de fls 2 a 5 são
contestes em affirmar o delicto; considerando finalmente, a confissão do
acussado, sou de parecer que se acha incurso no art.157 do código penal.
O escrivão remetta estes autos ao Sr. Presidente da Câmara do Tribunal Civil
e Criminal, para os fins de direito.
Rio, 26 de setembro de 1898.310

As descrições neste relatório são deveras interessantes. As afirmações são de


que, para provar que os talismãs eram para feitiçaria, teria que se recorrer a feiticeiros.
Por outro lado, sempre se destacava a feitiçaria como algo inerente aos africanos. É
importante observar como o delegado, no relatório enviado para instância superior,
procurou demonstrar minuciosamente a maneira com que foi comprovada a culpa do
acusado. Embora reconhecendo a dificuldade da avaliação dos objetos apreendidos,
afirma que, para a conclusão, o perito se utilizou dos conhecimentos observados no
trabalho de outro africano. A leitura desse documento, produzido pelo delegado
Pinheiro, é fundamental para o levantamento, apontado na introdução deste estudo, de
uma contradição do novo regime instaurado no país: como um Estado liberal, em que a
constituição estabelecia a liberdade religiosa, poderia perseguir determinadas
religiosidades? Fazendo um breve histórico das relações do governo brasileiro, na
monarquia e nas primeiras décadas da república, com as religiosidades dos escravizados
e seus descendentes, podemos chegar a algumas conclusões. Durante o regime
monárquico, a religião oficial era a Católica Apostólica Romana,311 e ficava

310
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1898, p.2.
311
“Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as
outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas,
sem forma alguma exterior do Templo”. Constituição Brasileira de 1824. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em 28/02/2015. É
interessante observar que, na maioria dos casos, as invasões aconteciam em recintos particulares.

100
estabelecido como crimes policiais aqueles que a ofendiam, além de “Celebrar em casa,
ou edifício, que tenha alguma forma exterior de Templo, ou publicamente em qualquer
lugar, o culto de outra religião, que não seja a do Estado”.312 Assim, a proibição
instrumentalizava a repressão aos cultos não católicos.
Desde os primeiros séculos da escravização, havia a obrigatoriedade de batizar
os escravos na religião católica.313 Assim, havia institucionalmente a intenção da
conversão dos cativos ao catolicismo. Entretanto, a Constituição Republicana de 1891,
estabelecendo a separação entre a Igreja e o Estado, permitia a liberdade de culto e, no
artigo 3º, determinava a liberdade aos indivíduos, às igrejas, associações e institutos em
que se achassem agremiados: “cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e
viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do
poder publico”.314 Portanto, para punir os indivíduos ligados às religiões afro-
brasileiras, era necessário estabelecer um vínculo com práticas criminalizadas. Nesse
sentido, o delegado vai esmiuçar, com base no laudo dos peritos, todos os aspectos que
se ajustassem aos parâmetros legais do que era considerado feitiçaria, sortilégio e
magia, para mostrar que o que João Miguel professava era crime.
Infelizmente, não consegui localizar o processo contra João Miguel, que
provavelmente, foi arquivado, uma vez que, três anos depois, o Cidade do Rio noticiou
o “enterramento de João Miguel Pereira da Costa: macróbio de 131 anos”.315 Seu
atestado de óbito indicava que o falecimento se dera em 1º de outubro de 1901, às 12h,
constando ainda que tinha 131 anos, era solteiro, africano, com filiação ignorada. Teria
deixado oito filhos, três menores, sendo sepultado no cemitério São Francisco Xavier.316
Entretanto, na última década do século XIX, a convivência entre os antigos
rituais dos africanos centrais – cultuados por João Miguel e tantos outros – e dos
africanos ocidentais, transmitidos especialmente pela minas-baianos – como Cypriano
Abedé, Horácio Pacheco, tia Ciata e Clemente Medeiros –, já estava consolidada na
cidade.

312
Código Criminal do Império do Brazil, Lei de 16 de dezembro de 1830 Art. 276. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/civil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 28/02/2015.
313
“Mandamos que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição que seja que escravos de Guiné tiver,
os faça batizar e fazer cristãos, do dia que a seu poder vierem até seis meses, sob pena de os perder para
quem os demandar”. LARA, Silvia Hunold (Org.). Ordenações Filipinas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999. Livro V. Coleção Retratos do Brasil, 16. p. 308.
314
Decreto Nº 119-A, DE 7 de janeiro de 1890. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm>. Acesso em 28 de fevereiro de
2015.
315
Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1901, p.2.
316
Atestado de óbito fornecido pelo Arquivo da Santa Casa da Misericórdia.

101
No dia 25 de fevereiro de 1892, Clemente Medeiros e sua mulher Rita Ribeiro
entraram na 5ª delegacia de polícia. Medeiros estava finamente trajado: vestia calça e
colete brancos e engomados, paletó de palha de seda amarela, camisa branca e sapatos
de couro vermelho. Cobria-o um largo chapéu de palha. Rita também chamava a
atenção pelos seus trajes: “de turbante azul, manta azul, saia azul, tudo azul, menos a
pelle que é negra”.317O motivo da ida de Medeiros à delegacia era a morte de Pedro
Dias Vianna.
Tendo chegado ao conhecimento do Dr. Fausto Cardoso, 5º delegado, de que
na casa n. 9 do Beco dos Quartéis tendo falecido Pedro Dias Vianna, tratado
pelo curandeiro Clemente Medeiros e sua mulher Rita Ribeiro, ambos
africanos, moradores à rua da Imperatriz, n. 24.
Vianna morreu devido a uma substancia preparada por Clemente Medeiros.
A policia encontrou hervas, beberagens e outras drogas.318

Interrogado pelo delegado, Clemente declarou ter tratado de Pedro Dias Vianna,
mas que não lhe ministrara beberagem alguma tóxica, pois tem conhecimento
das propriedades das substancias que emprega na sua clínica. Considerando o
seu delicto como dos de que podem livrar-se os seus autores, foi posto em
liberdade, continuando o inquérito e aguarda-se o resultado de analyse de que
foi incumbido o Dr. Antonio Maria Teixeira, para julgar-se da culpabilidade
de Medeiros.319

As perseguições aos feiticeiros, ocorridas nas últimas décadas do século XIX,


inseriam ainda o aspecto que eles eram vistos também como uma afronta à medicina
científica. Em 1850, foi criada a Junta Central de Higiene Pública, e, à medida que
ocorria uma maior regulamentação das escolas de medicina, a campanha contra as
práticas de feitiçaria aumentava consideravelmente.320 Médicos se posicionavam contra
curandeiros: “Deverá a classe médica no Brazil deixar que a medicina fique a mercê do
charlatanismo, da cegueira do vulgo, e que esmorecidos os médicos diante da nuvem de

317
O Paiz, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1892, p. 2.
318
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1892, p. 2.
319
O Paiz, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1892, p. 2.
320
Sobre a Junta Central de Higiene Publica ver: BENCHIMOL, Jaime. Dos micróbios aos mosquitos:
febre amarela e a revolução pausteriana no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; UFRJ, 1999; EL-KAREH,
Almir Chaiban. Estado e assistência pública: as epidemias dos anos de 1850 na cidade do Rio de Janeiro.
In: Reunião Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), 18, Rio de Janeiro. SBPC. Anais... Rio
de Janeiro, 1998; MARQUES, Eduardo Cesar. Da higiene à construção da cidade: o Estado e o
saneamento no Rio de Janeiro. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v.II, n.2, p.51-67, jul-out 1995;
Sobre a relação Junta Central de Higiene Publica e os curandeiros, ver: SAMPAIO, Gabriela dos Reis.
Nas trincheiras da cura. As diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2001. WEBER, Beatriz. A arte de curar: medicina, religião, magia e positivismo na
República Rio Grandense -1889-1928. Campinas, 1997. Tese Doutorado em História - Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas. Campinas, 1997.

102
curandeiros?”321 Pelo código de 1890, as práticas de “curas” passaram a ser
criminalizadas.
Clemente de Medeiros era um africano mina, tinha cerca de 50 anos de idade e
possuía um “consultório” à rua Senador Pompeu, nº 24, onde “explorando a ignorância
popular, exercia o mister de curandeiro”.322Segundo o Diário do Comércio “este
individuo intitula-se médico e diz ser formado pela academia de medicina da Costa
d’Africa”.323 No caso de Medeiros, há um dado novo: ele não foi identificado como “pai
de santo”, sua prática era o curandeirismo, embora sejam ressaltados aspectos de
religiosidade envolvidos:
Clemente de Medeiros, que como todos os curandeiros precedia as suas
prescripções de gestos cabalísticos, rezas e outras práticas de feitiçaria,
aumentava de dia para dia o seu nome proclamado como o de um verdadeiro
auctor de prodígios, que conversava como o diabo à meia noite para delle
obter os mysteriosos medicamentos.324

Durante o interrogatório, a africana mina Rita Ribeiro, negou totalmente as


acusações. Clemente declarou ter dado a Vianna alguns remédios caseiros, mas negou
ser curandeiro. As vísceras de Pedro Vianna foram enviadas pelo médico da polícia, dr.
Nemesio Quadros, para o médico consultor da polícia, dr. Teixeira, responsável pela
análise.325 Parece que o caso não teve maiores consequências para Medeiros, uma vez
que, em alguns poucos meses, ele foi preso, desta vez na rua Barão de S. Felix, trazendo
em seu poder dois vidros contendo remédios.326
Clemente Medeiros é curandeiro teimoso. Ainda há pouco tempo foi
responsabilizado pelo mal causado à saúde de um semelhante e agora volta à
policia acussado de igual delicto.
O diabo do preto tem fé nas mezinhas... ou no cobre dos papalvos. 327

A rua Barão de S. Felix e adjacências constituíam a região que concentrava uma


grande comunidade africana mina no Rio de Janeiro. Em 1884, a Gazeta de Notícias
publicou:
O subdelegado do 2º districto de Sant’ Anna deu busca, hontem a 1 hora da
tarde, na casa de dar fortuna, da rua do Barão de S. Felix, n.133, pertencente
ao preto Quirino Gonçalves Martins, o qual quis vedar a entrada da
auctoridade, tornando-se insolente e sendo por isso preso.
A mesma auctoridade fez recolher ao deposito publico muitos objectos
próprios de feitiçaria, que foram encontrados dentro de uma sala forrada de

321
MEDEIROS, Joaquim dos Remédios. Annaes de Medicina, Tomo XIX, agosto de 1867. p. 122.
322
O Tempo, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1892, p. 2.
323
Diário do Comércio, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1892, p.1.
324
O Tempo, Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1892, p.2
325
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1892, p. 2.
326
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1892, p. 2.
327
O Paiz, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1892, p.2.

103
pannos onde existia sobre uma mesa um cachorro esquartejado e em
adiantado estado de putrefação.
Em poder de Quirino foi encontrado um bonito gorro de velludo escarlate
bordado com fios de metal amarello.
Nessa mesma casa foram também presas as pretas Maria da Conceição e
Elisa Luiza Corrêa, as quais eram denominadas rainhas.328

Querino havia sido preso, em 1881, em uma casa na rua do Príncipe que era
conhecida como casa de pretos minas libertos. Ele era ligado a Antonio Mina e em
1884 foi preso acompanhado de:
Elisa Luisa Corrêa – como ampla maioria das minas, uma quitandeira –,
residente na rua Senhor dos Passos, coração da Cidade Velha, 60 anos, foi
presa na freguesia de Santana por “turbulenta”. Nada de novo se não
estivesse acompanhada de Querino Gonçalves Martins, também mina e
quitandeiro, mas detido por ser “feiticeiro e turbulento”. Com seus 95 anos,
ele sem dúvida alguma representava um referencial de memória e identidade
mística não só para a gente africana, mas também, possivelmente, para toda a
população negra urbana do Rio de Janeiro. Em suas roupas brancas, Querino
simbolizava o papel preponderante que os minas exerciam na manutenção do
imaginário mitico dos amplos setores marginalizados da sociedade carioca.
Ele morava na rua da Princesa, na mesma freguesia de Santana onde foi
registrada a ocorrência. Será que foi na sua “casa de dar fortuna”? Mesmo
assim, ambos foram soltos em pouco tempo. Elisa ficou dois dias detida e
Querino apenas um.329

Comparando as circunstâncias que envolveram os três casos, percebe-se a


maneira mais “benevolente” com que Clemente Medeiros e Querino Gonçalves Martins
foram tratados em relação a João Miguel. Eram duas tradições religiosas que,
provavelmente, estavam contrapondo-se. João Miguel talvez representasse antigas
tradições ligadas aos africanos angolas, cabindas e congos. Já Clemente Medeiros e
Querino Gonçalves Martins faziam parte de africanos ocidentais que, através de uma
rede de solidariedade, obteve projeção, cargos nas irmandades e que, nas primeiras
décadas do século XX, constituíram destaque na sociedade carioca.
João Miguel, o feiticeiro da Praia Formosa, faleceu em 1901, em sua residência.
No ano seguinte morreria o curandeiro Clemente Medeiros: “O delegado da 7ª
circunscrição mandou remover para o necrotério o cadáver de Clemente Medeiros, de
cor preta, 90 annos, morador à rua do Areal, fallecido hontem, a 1 hora da madrugada,
sem assistência médica”.330 A morte destes dois africanos encerrava uma etapa
importante da vida religiosa da comunidade negra no Rio de Janeiro. A partir do século

328
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 22 de abril de 1884, p. 2
329
GOMES, Flávio dos Santos et al. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro,
século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. V. 1. p.165.
330
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1902, p. 2.

104
XX, uma nova comunidade religiosa alcançou prestígio e destaque na região central da
cidade.

CAPÍTULO III: UMA CIDADE CIVILIZADA, MAS CHEIA DE MISTÉRIOS:


PEQUENAS ÁFRICAS CARIOCAS
Gunocôu foi-se embora... Voltou para a Costa...
Falava no vento, mas ninguém o entendia mais...
Voltou para a África.331
Frikel

No final do século XIX, a Corte foi o destino de muitos negros vindos do


interior da província fluminense e também de outras localidades. Tenho enfatizado que
esse fluxo migratório para a capital, resultante das transformações ocorridas no Império,
aumentou sensivelmente nos anos que antecederam as leis emancipacionistas e a
abolição. Grupos de baianos foram deslocados para o sudeste, entre o final do tráfico e
as últimas décadas do século XIX. Nina Rodrigues, que realizou pesquisas orais com as
últimas gerações de africanos em Salvador, destacaria:
Estou informado de que existem hoje negros nagôs no Rio de Janeiro. Não
prova isso, todavia, uma importação direta da África, pois em certo período da
escravidão, a lavoura de café no sul do país promoveu para ali uma grande
importação de escravos do norte.332

A região central da cidade do Rio de Janeiro – ainda sem as mudanças urbanísticas


do final do século XIX e início do século XX – acomodou essa gente. O recenseamento
realizado em 1890 identificou dezenas de nonagenários da cidade, então Distrito
Federal.333 Nesse momento, considerando as paróquias mais centrais da cidade, havia
mais de 50% de africanos acima de noventa anos entre os recenseados. Totalizando a
população negra bem idosa – africanos e crioulos –, nascida em diferentes pontos do
país, o percentual sobe para 61,92%. As freguesias de Santana e Sacramento
concentravam 58,84% de africanos, o que pode ser explicado pelo fato de serem mais
próximas de tradicionais locais de trabalho: estabelecimentos comerciais, comércio

331
Na religiosidade afro-brasileira, o egun Gunocô (espírito ancestral) era bastante popular. Porém, ao
longo do tempo, seu culto foi esquecido.
332
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed. da Universidade
de Brasília, 1982, p. 108. Publicado originalmente em 1932.
333
Em 1890, o Rio de Janeiro estava dividido administrativamente em: S. José, Santa Rita, Sacramento,
Glória, Santana, Santo Antonio, Espírito Santo, Engenho Velho, Lagoa, S. Cristovão, Gávea, Engenho
Novo, Irajá, Jacarepaguá, Inhaúma, Guaratiba, Campo Grande, Santa Cruz, Ilha do Governador e
Paquetá. Fonte: Recenseamento Geral da Republica dos Estados Unidos do Brazil em 31 de dezembro de
1890. Rio de Janeiro: Typ. Luezinger, 1895.

105
ambulante e casas de famílias das áreas mais nobres. Outro fator importante era a
presença dos cortiços: as freguesias de Santana, Sacramento, Santo Antonio e Santa
Rita abarcavam 55% dos cortiços dos 1.249 inspecionados, em 1884. Já Santana atingia
31,38%.
Mas afinal, quem eram estes nonagenários — negros, africanos e crioulos —
apontados no recenseamento? Por exemplo, na paróquia de Santana, o casal de africanos
Maria Ignácia do Bonfim, 90 anos e Cornélio Bonfim, 92 anos, era parente do
proprietário da casa na rua Barão de São Felix, 159. Ainda em Santana, temos o
exemplo de Eufrásia Maria de Jesus, de 90 anos, nascida no Distrito Federal, preta,
solteira, parente do chefe da casa, um militar, de quem era avó. Todos moravam na
Estalagem Cabeça de Porco, n.2. No Sacramento: as africanas Rosa Mina, de 90 anos, e
Joaquina Benguella, de 98 anos, eram agregadas. A situação de Luiza Maria da
Conceição era diferente, com 109 anos, moradora à rua do Catete, n.70, era avó do
chefe da casa, que tinha como profissão a atividade manufatureira. Na rua da Gamboa,
n.179, também em Santana: Manoel Correa, 100 anos, nascido na África, preto, solteiro,
trabalhava com manufatura. Nesse endereço, moravam ainda: Luiz Pereira Ribeiro, 90
anos, africano e solteiro; Maria Francisca da Conceição, 90 anos, africana, solteira;
Pedro Ângelo, 92 anos, africano, solteiro, atividade comercial e João Penedo de
Andrade, 92 anos, africano, solteiro e jornaleiro.
Alguns desses idosos moravam sozinhos, por exemplo: Firmino Congo, de 90
anos, africano, preto, sem profissão, que, embora casado, era o único morador na rua
Dr. Nabuco de Freitas, n.90. Para seu sustento, Firmino, que era cego, esmolava. Outra
que morava sozinha era Mariana Ghege, 91 anos, nascida na África e moradora à rua da
América, n.110. Comparando a situação de Mariana a de Firmino, a condição da velha
africana gegê era bem melhor: era pensionista do Estado. Nas freguesias mais distantes,
como Engenho Novo, temos a crioula Anna Maria da Conceição, 98 anos, nascida no
Rio de Janeiro, morando na rua da Alegria (Andaray Grande), onde ainda trabalhava na
lavoura e morava provavelmente sozinha, uma vez que não existe registro de parentes
ou outra pessoa em seu endereço.
Em relação aos idosos listados no Recenseamento de 1890, elegendo para
consulta os identificados como pretos, africanos ou crioulos, pude observar que a
maioria vivia como agregados, em casas de ex-senhores, patrões ou parentes. Essa
população idosa não só assistiu ao fim do Império e ao início do regime republicano

106
como, igualmente, ao fim do século XIX e ao início do século XX, todas as mudanças
que a cidade iria conhecer.334
A população negra que viveu o final do Império conheceu a modernização
republicana das primeiras décadas do século XX. O projeto urbanístico procurava
soluções para absorver essa população. No Rio de Janeiro, capital da recém-
implementada república, os africanos ainda eram uma presença significativa. O Censo
de 1906 identificou, de fato, muitos centenários negros que habitavam a cidade, a maior
parte atuando em várias atividades, desde vendedores até pedreiros. Vejamos
Henriqueta Costa:
Com cem anos de edade, viúva, africana, analphabeta, recenseada à rua
Visconde de Sapuchy, n.17. Esteve amasiada com seu primeiro patrão de
nacionalidade portugueza, do qual teve 3 filhos, todos fallecidos. Mais tarde
casou-se com seu patrício, fallecido há 3annos. Tem vivos 1 filha, 4 netos e 1
bisneto. Actualmente occupa-se em vender quitandas preparadas por ela
(rosários etc...) e costumava fazer ponto, ora em corredores da rua Marechal
Floriano e da rua Primeiro de Março, ora na entrada da Praça do mercado. É
bastante forte, ouve, vê e anda bem. 335

Essa velha africana, vendedora da Marechal Floriano, testemunhava agora as


transformações que, dentro em breve, dariam à cidade outros ares. Nos anos de 1920,
populares transitavam por áreas nobres na vida social da cidade, “ao redor do Hotel
Avenida, no Ponto Chic e na Galeria, enquanto os grupos de famílias esperam os
bondes, os grupos de rapazes conversam, comentando as mulheres”.336 Era por ali que
também passava Procópio, jovem negro, com seus vinte e poucos anos, um dos
mentores da Turma do Ponto Chic, que agitava o carnaval da cidade com blocos que
saíam da região onde seu pai dominava o cenário religioso.
No prefácio que faz do livro A era das demolições Eulália Maria Lahameyer
Lobo destaca que a corrente migratória, baiana e fluminense, que veio para o centro do
Rio no final do século XIX, localizava-se na freguesia de Santana, especialmente, e no
Largo do Rocio Pequeno.337 Os baianos ali se instalaram em casas de cômodos,
trabalhando como estivadores, marceneiros, lustradores, biscateiros. Formavam “uma

334
Comparei os dados do Censo de 1890 e o de 1906, em relação aos idosos, e não consegui localizar,
entre os centenários de 1906, nenhum dos nonagenários de 1890.
335
RECENSEAMENTO da Cidade do Rio de Janeiro (Districto Federal) realizado em 20 de Setembro de
1906. Rio de Janeiro: Officina da Estatística, 1907, p. 153. Disponível
em<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv49678.pdf>. Acesso em: 20 de janeiro de 2013.
Mantida a grafia original.
336
COUTO, Ribeiro. A cidade do vício e da graça: vagabundagem pelo Rio Noturno. Rio de Janeiro:
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. (Coleção Fluminense), p. 21.
337
O Largo do Rocio Pequeno, após a Guerra do Paraguai, recebeu o nome de Praça Onze.

107
comunidade quase fechada com grande solidariedade mútua”. 338 Bem antes, Gobineau,
num tom preconceituoso, assim se referia aqueles migrantes africanos.
Existe no entanto uma certa categoria de negros, fixada na Bahia e nas
redondezas, que constrata admiravelmente com a massa dos outros individuos
da mesma raça.São os Minas, vindos dos arredores de Gabão.....Formam entre
eles sociedades de amparo e possuem caixas comuns. Chegam a liberta-se com
suas economias, fato raro entre os outros escravos e, melhor ainda, compram
anualmente, com os recursos de que acabo de falar, um certo numero de seus
compatriotas. Frequentemente os enviam de volta para a Africa, mas diz-se
que, há alguns ano, à medida que o número dos Minas libertos aumentou no
Império, as partidas são menos frequentes: os alforriados ficam na Bahia ou
vem para o Rio, onde começam a exercer uma profissão qualquer com a qual
conseguem, geralmente, fazer uma pequena fortuna.339

Agenor Miranda Rocha, comentado sobre a migração negra baiana para a cidade
do Rio de Janeiro, destacou que tais negros baianos “constituíam um grupo à parte na
massa de ex-escravos e seus descendentes, que, na virada do século, estavam dispersos
na cidade, com ocupações variadas”.340
Na área − entre a parte antiga da cidade e a “cidade nova” − foi se formando um
considerável grupo que, buscando espaços, procurou concentrar as atenções para aquela
região. Essa dimensão “étnica” se organizaria em termos de território. De acordo com
Sodré, a territorialização se define “como força de apropriação exclusiva do espaço
(resultado de um ordenamento simbólico) capaz de engendrar regimes de
relacionamentos, relações de proximidade e distância”.341 Para o autor, “o território
aparece assim como um dado necessário à formação de identidade grupal/individual, ao
reconhecimento de si por outros”.342 No Rio de Janeiro, o reconhecimento de um
território próprio — que anos mais tarde Heitor dos Prazeres teria chamado de Pequena
África — proporcionava a população negra de “minas-baianos” uma noção de
pertencimento. A existência de uma comunidade, para Weber, consolida-se “na medida
em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo”.343 Essa ideia, também
pode ser comparada com a argumentação de Tonnies de que “aonde quer que os seres

338
LOBO, Eulália Maria Lahameyer. In ROCHA, Oswaldo Porto; CARVALHO, Lia Aquino. A era das
demolições: cidade do rio de janeiro. 1870-1920. 2ªed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura.
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995, p. 16.
339
In. RAEDERS, George. O conde de Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.122. O
Conde de Gobineau ocupou, em 1869, o cargo de ministro da França no Brasil.
340
ROCHA, Agenor Miranda. Candomblés antigos do Rio de Janeiro – as nações Kêtu: origens, ritos e
crenças, Rio de Janeiro: Mauad, 2000, p. 23.
341
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a formação social negro-brasileira. Rio de Janeiro; Petrópolis:
Secretaria da Cultura e Turismo, 1988, p.13.
342
Idem, ibidem, p.13.
343
WEBER, M. Comunidade e sociedade como estruturas de socialização. In. FERNANDES, F. (Org.).
Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo:
Editora Nacional e Editora da USP, 1973. p. 140-143.p. 140.

108
humanos estejam ligados de forma orgânica pela vontade e se afirmem reciprocamente,
encontra-se alguma espécie de comunidade”.344 Aqueles que habitavam aquela área
central do Rio de Janeiro consolidaram, como forma de valorização, suas
especificidades. Ainda segundo Tonnies, “quanto maior e mais estreito for o vínculo do
grupo, mais compelido a lutar e atuar homogeneamente, particularmente em relação às
ameaças externas”.345 Naturalmente, existiam disputas individuais, mas que não
impediam a sua identificação como agentes daquele grupo. Conforme destaca Claval,
uma abordagem cultural teria por objetivo entender “a experiência dos homens no meio
ambiente e social, procurando compreender a significação que estes impõem ao meio
ambiente e o sentido dado às suas vidas”.346 Assim, o novo grupo migratório formado
pelos “minas-baianos”, que ocuparam a área central do Rio de Janeiro, especialmente a
partir das décadas finais do século XIX, construiu − reinventado − um espaço repleto de
significações para suas identidades culturais.

NOVOS HABITANTES CONQUISTAM ESPAÇO

É necessário, nesta perspectiva comparativa sobre diferentes tradições religiosas


na cidade do Rio de Janeiro — fossem de vários grupos étnicos de africanos centrais ou
daqueles de africanos ocidentais, chamados “minas”— enfatizar como diversos
praticantes e adeptos procuravam acentuar suas supostas autenticidades africanas.
Embora não seja nossa intenção argumentar que essas tradições tenham sido
literalmente transportadas para o Brasil, parte delas procurava ser reconstruída através
das suas “ligações” com uma mítica África. O tráfico, o cativeiro e, obviamente, o
contexto social em que os africanos foram introduzidos, além das interações que
ocorreram, foram elementos que contribuíram para os processos de reinvenções dessas
religiosidades. Não podemos deixar de levar em consideração que várias práticas
religiosas — como o culto dos orixás e dos muçurumin — eram relativamente recentes
na cidade do Rio de Janeiro. O que permitiu, por exemplo, a projeção que alcançaram os
“africanos minas”, nas últimas décadas do século XIX, persistindo até as primeiras

344
TONNIES, Ferdinand. Comunidade e Sociedade: textos selecionados. In: MIRANDA, Orlando. (org.).
Para ler Ferdinand Tonnies. São Paulo: Editora da USP, 1995. p. 231-342. p. 239
345
Idem, ibidem, p. 236
346
CLAVAL, Paul. A volta do cultural na geografia. Mercator - Revista de Geografia da UFC, ano 1,
n.1, p. 19-28, 2002, p. 20.

109
décadas do período republicano? Podemos considerar as observações de Reis sobre
Salvador:
Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século
XIX vieram principalmente de povos do grupo linguístico gbe, localizados
sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou
eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs
na Bahia.”347

Reis observa que, como maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que
antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase
80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. De acordo com o autor,
“tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista,
mas no final do século os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia”.348 Semelhante
processo de construção de hegemonia — mesmo com base demográfica limitada —
poderia ter se verificado no Rio de Janeiro com as levas migratórias da segunda metade
do século XIX.
Em 1886, o The Rio News, publicado na Corte, de propriedade de Andrew
Jackson Lamoureux, tido como engajado na campanha abolicionista, noticiava entre os
passageiros do paquete Gironde, vindo de Montevidéu, John A. Payne e sua esposa,
naturais de Lagos, na África Ocidental.349 O jornal sugeria — aos que duvidavam
quanto à capacidade dos nativos africanos por civilização — uma conversa com o sr.
Payne, especialmente sobre o progresso que seus compatriotas alcançaram nas colônias
britânicas da África ocidental. A viagem de John Augustus Otomba Payne talvez fizesse
parte de um projeto politico maior, que objetivava a consolidação da ideia de uma
“superioridade yorubá”, envolvendo o mundo atlântico, constituindo um elemento de
fortalecimento dos “africanos minas” na diáspora.
A respeito da hegemonia do candomblé nagô — especialmente na Bahia no
final do século XIX— vários autores apresentaram diversas hipóteses; desde a
construção, pelos afro-brasileiros, de uma identidade yorubá que foi absorvida pela
intelectualidade brasileira, até a identificação de uma intelectualidade de Lagos que, no
final do século XIX, projetou aquilo que se convencionou chamar “superioridade

347
REIS, João José. Bahia de todas as Áfricas. A trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século
XIX revela que a história das religiões afro-brasileiras é, sobretudo, a de crescente mistura étnica e social.
Revista de História, n.6, dezembro de 2005. Disponível em
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/bahia-de-todas-as-africas>. Acesso em 22 de outubro de
2014.
348
Idem, ibidem.
349
The Rio News, Rio de Janeiro,15 de abril de 1886, p.4.

110
yorubá”.350 Não é objetivo deste nosso estudo discutir a formação deste “nacionalismo
lagosiano”. O assunto já foi bastante esmiuçado por autores Matory, Verger, Reis e
outros. Nozomi Sawada argumentou sobre o papel da imprensa (entre 1880 a 1920) e
das elites educadas em Lagos na constituição de um “nacionalismo yorubá”.351 Outro
estudo importante é o de Nara Muniz Improta,352 ao estabelecer as conexões, as redes e
os debates que marcaram, na Nigéria, a vida intelectual do século XIX e início do
século XX. A intensa produção literária, com livros e panfletos, sugere uma coesão na
rede intelectual em Lagos que incluía desde autores a leitores, sendo possível
compreender a cultura impressa destes lagosianos como parte de um complexo maior,
no qual essas publicações se inseriam numa rede mais ampla de um Atlântico Negro.
Seria impossível negar que as ideologias da formação de uma “hegemonia nagô”
podia incluir um grupo de brasileiros, que, no século XIX, atuaram na consolidação
dessas ideias no Brasil. E a discussão sobre a hegemonia do candomblé nagô pode estar
inserida na questão do “nacionalismo yorubá”, no qual John Augustus Otomba Payne
teve um papel importante. Alguns pontos apresentados por Improta com relação a Payne
foram levados em consideração para a minha hipótese sobre o papel que esse
nacionalismo africano pode ter representado nas religiosidades afro-brasileiras, no final
do século XIX e início do XX. Em 1886, Payne não só esteve no Rio de Janeiro, como
sua visita produziu impactos.
John Augustus Otomba Payne e sua mulher Martha Bonifácia Lydia iniciaram
viagem com destino à Inglaterra, em uma rota que passou, entre outras escalas, por
Montevidéu, Rio de Janeiro e Salvador. Em Montevidéu, aonde chegaram em 27 de
março de 1886, foram recebidos pelo Rev. J. Henry Davis e participaram de várias
atividades naquela cidade. Em 1º de abril, eles embarcaram para o Rio de Janeiro
chegando à cidade, no Gironde, em 04 de abril de 1886. Payne teria ficado na casa de

350
“Afirmo, tendo como base o argumento de Law (1977), que, antes de o tráfico de escravos no século
XIX dispersar os Ijèbú, os Egbá, os Egbádò, os Ondó, os Ekiti, os Oyó e outros, estes grupos nunca se
autodenominaram “Yorùbá”, muito menos compartilharam uma língua “padrão” ou uma identidade
política única. Argumento que foi a dispersão e as atividades de milhares de retornados durante a fase de
colonialismo britânico que produziu a identidade novamente unitária chamada “Yorùbá”. Ademais,
formas de escrever e de literatura inspiradas pelos ingleses e a reação autoafirmativa dos retornados ao
racismo britânico fizeram dos “Yorubá” a “nação” africana mais prestigiosa no perímetro Atlântico.”
Matory, J. Lorand. Jeje: repensando nações e transnacionalismo. Mana, Abr 1999, vol.5, no.1, p.57-80.
p.60
351
SAWAD, Nozomi. The educated elite and associational life in early Lagos newspapers: in search of
unity for the progress, 2011. Thesis for Doctor of Philosophy - Centre of West African Studies, School of
History and Cultures, College of Arts and Law, University of Birmingham. Inglaterra, July 2011
352
FRANÇA, Nara Muniz Improta. Producing intellectuals: Lagosian books and pamphlets between
1874 and 1922. Thesis for Doctor of Philosophy in English Literature, University of Sussex, Inglaterra,
September 2013.

111
um parente na rua do Hospício.353 Não foi especificado pelos jornais quem era o parente
de Payne, mas morava, na rua do Hospício n. 328, o africano Apotijá, natural de Lagos.
A morte de Apotijá, em 1904, foi assim noticiada:
O Feiticeiro Apotijá
Sepultuou-se ante-hontem o tremendo feiticeiro Apotijá, de que tanto se
ocupa João do Rio no seu livro As religiões no Rio. Apotijá rebentou de uma
congestão cerebral, depois de uma copiosa refeição. Era um negro alccolico e
horrível. Natural de Lagos, onde foi escravo de um outro negro chamado
Salvador, veiu para o Brasil, ha uns sete annos, desejando trabalhar como
carregador. Mas a época dos minas carregadores passara. Os pretos eram
todos feiticeiros.
Apotijá, com auxilio de Ojô Schmidt e do Abedé, arranjou também essa
profissão, com a qual passou regularmente a vida, engasopando os patetas.
Deixa uns 20 contos na mão de um vendeiro e do seu lemano.
Apotijá era alufá. Sepultou-se, pois, de bruços, envolto numa peça de morim
branco. No sétimo dia, os negros feiticeiros Hilário Bursima, Sanin, a Dudu
de Oxum, Maria Luiza, Henriqueta etc... farão o ocê. Isto é, uma vigília em
que dançara e se comera muito.354

Não é possível afirmar que Apotijá fosse o parente referido de Payne, mas não
podemos excluir essa possibilidade. O fato de, na notícia de sua morte, constar que ele
estava no Brasil havia uns sete anos não constitui uma prova contra o parentesco. Payne
veio em 1886, dezoito anos antes da morte de Apotijá. As notícias sobre Payne falam de
um parente que morava havia alguns anos no Rio de Janeiro. Portanto, as referências
não são muito específicas. Ainda especulando quem poderia ser o parente de Mr. Payne,
há uma forte possibilidade quanto a Emanuel Ojô Schmidt. A casa de Ojô ficava no
início da rua dos Andradas e, portanto, próximo à antiga rua do Hospício. Segundo João
do Rio, ele era filho de um relojoeiro de Lagos, elegante, falava inglês, tinha as marcas
faciais características dos iorubás e era muito respeitado pelos outros pretos: “na sua
casa é que se dão as reuniões dos feiticeiros, que se resolvem as contendas”.355 Embora
os dados sobre ele sejam bastante escassos, localizei o comunicado de nascimento, na 3ª
Pretoria (Sacramento), de “Evan, filho de Emanuel Ojô Smith”.356 Desse modo, ele já
estava no Rio de Janeiro, como Abedé, no final do século XIX. Teria ele vindo antes de
Payne? Contudo, não restam dúvidas que Apotijá e Emanuel Ojô faziam parte do grupo
de africanos e descendentes que – com a ajuda da visita de Payne – contribuíram para
identificar os “minas” como representantes de uma “cultura superior”.

353
A antiga rua do Hospício, que pertencia a Freguesia da Candelária, atualmente é a rua Buenos Aires,
começa na rua Primeiro de Março e termina na Praça da República (Campo de Sant’Anna -antigo Campo
da Aclamação).
354
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1904, p.2.
355
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 20 de março de 1904, p. 5.
356
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,4 de outubro de 1896, Suplemento, p.2

112
A presença do geógrafo africano foi bastante comentada nos jornais cariocas, e
ele esteve em várias redações. O Paiz noticiou ter recebido, no dia 22 de abril, a visita
de Payne, destacando: “Os pequenos serviços que temos prestado à ideia de abolição,
tornaram-lhe symphatico O Paiz, a quem não deixou o nosso hospede a liberdade de
calar tão lisongeira circunstancia”.357 Outro periódico que recebeu o geógrafo e
jornalista africano foi a Gazeta da Tarde. Segundo a matéria, o viajante exaltou a
colonização inglesa em seu país: “deste paiz que a civilisação ingleza colonisou sem
escravisar, que adaptou às suas leis, sem contundo destruir no espírito nacional as forças
ethicas de que carecem as nações para o seu desenvolvimento”.358 É importante
observar, na matéria, a exaltação da colonização inglesa e de um “nacionalismo” local,
com a preservação dos aspectos étnicos. Comentou-se ainda que Payne lamentava a
continuidade da escravidão no Brasil, que esse assunto havia sido conversado entre o
africano e D. Pedro II. E ele voltaria a se encontrar com o imperador.
O sr. John A.Payne, de Lagos, na Costa da África, foi no ultimo sabbado no
Paço da cidade comprimentar Sua magestade O Imperador, que dignou-se de
o receber com bondade, conversando sobre o progresso daquella parte da
África e sobre as impressões que tem colhido o Sr. Payne de sua visita no Rio
e Janeiro.359

Em outra edição, foi comentado que Payne, quando visitou o jornal, conheceu
alguns instrumentos que eram usados para tortura dos escravos e teria exclamado “E
fallam dos animaes ferozes da África!”360
Payne foi homenageado com vários banquetes, além de recebido na filial da
Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil e na Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro. Segundo o Rio News, ele proferiu discursos a seus conterrâneos da “nação
mina”, que viviam no Rio de Janeiro, informando sobre a situação e as perspectivas de
seus compatriotas na África, sempre destacando o progresso que, segundo ele, haviam
alcançado com a colonização inglesa.
Na cerimônia da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil, realizada em 30
de abril de 1886, com a sala repleta de sócios e convidados, Payne foi recebido, à
entrada, pelo primeiro secretário da instituição, o sr. Brito e Cunha, sendo apresentado
ao presidente da seção, o comendador Duprat. O barão de Macaúbas e o sr. George
Sanville foram indicados para acompanharem Payne ao local de honra que lhe estava

357
O Paiz, Rio de Janeiro, 23 de abril de 1886, p.1.
358
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1886, p.1.
359
O Paiz, Rio de Janeiro, 28 de abril de 1886, p.1.
360
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1886, p.2.

113
reservado. Nessa seção, Alberto Hargreaves fez o discurso, em inglês, de apresentação
do visitante, ressaltando dados biográficos e fazendo um histórico do desenvolvimento
das colônias inglesas na África Ocidental. Hargreaves foi bastante aplaudido e passando
a palavra a Payne, que agradeceu toda a distinção e acolhimento, especialmente de D.
Pedro II, e:
Entrando em matéria, tratou da origem dos povos da África Occidental, seus
hábitos, historia, religião, o contacto que tinha tido com nações civilisadas,
especialmente com o Império brazileiro. Põe em relevo as muitas ideas
errôneas que temos sobre os seus patrícios, os yurubás, a quem por equivoco
chamamos aqui de minas. Termina o seu discurso saudando o Brazil, a
grande terra da luz e do progresso; declara, pezaroso, deixal-o ainda
maculado com a negra mancha da escravidão, que espera em breve ver
erradicada. Ao terminar o seu discurso foi entusiastiacamente saudado pela
mesa da secção e por todas as pessoas presentes.
Concedida a palavra ao Sr. Dr. Getulio das Neves, rompeu aquelle distincto
engenheiro com um eloquentissimo improviso, sendo repetidas vezes
interrompido pelos aplausos.
Saudou em nome dos sócios ao Sr. Payne e a todos aquelles que, como elle,
trabalhavam para o progresso da civilização africana; lembrando-lhe que, se
ainda o solo brazileiro era pisado pelo escravo, não o seria por muito tempo,
pois que a obra de redempção desenrolava-se rapidamente.361

Como Payne não compreendeu alguns pontos do discurso de Getulio Neves,


Alberto Hargreaves fez, em inglês, alguns esclarecimentos. Hargreaves era um jovem
engenheiro nascido em Portugal, filho de um inglês, cuja família imigrou para o Brasil.
Ele, com seus irmãos Carlos Fleming Hargreaves e Henrique Eduardo Hargreaves, eram
proprietários da Hargreaves Irmãos, companhia que desenvolvia projetos de
beneficiamentos, para a cafeicultura e obras públicas. Alberto e Henrique Eduardo eram
muito ligados a André Rebouças. Henrique Eduardo “iniciou sua vida prática de
engenheiro de caminhos de ferro ao lado de Antonio Rebouças em 1871 a 1872”362 e foi
o engenheiro chefe da Estrada de Ferro D. Pedro II.363
Enfim, os irmãos Hargreaves eram engajados na campanha abolicionista,
especialmente Alberto, e acreditavam que o desenvolvimento do Brasil só ocorreria com
o fim do “obsoleto” trabalho escravo. Alberto, genro do barão de Capanema e membro
de várias sociedades culturais fluminenses, fez o discurso de inauguração do Club
Abolicionista Barão de Capanema, quando “Expoz os fins humanitários do Club que é
abolir prompta e radicalmente o trabalho servil e acabar com toda sorte de captiveiro

361
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 7 de maio de 1886, p.1
362
Revista do Instituto Polytechino Brasileiro, Rio de Janeiro, novembro de 1878, p. 27.
363
Jornal Novidades, Rio de Janeiro, 9 de março de 1888, p.1.

114
physico e moral”.364 Entretanto, é interessante observar que os irmãos Hargreaves
estavam também empenhados na modernização da lavoura cafeicultora:
A construção de máquinas destinadas ao preparo completo do café, que
reunissem diversos aparelhos, desde o descascador até o separador, desperta
o interesse da indústria mecânica da época. Em 1881 foram premiadas duas
delas, apresentadas pelos Irmãos Hargreaves. Os comentários dos jurados
sugeriam um futuro promissor para a construção e difusão desse tipo de
instrumento. Era assinalado que, embora teoricamente fosse vantajosa a
reunião das diversas operações, “só a prática poderá dizer se há realmente
vantagem (...), e se ela não sacrifica algumas das fases do preparo”. A
máquina Hargreaves era utilizada por cafeicultores de São Paulo e Minas
Gerais.365

Mr. Otomba Payne, em seu discurso na Sociedade de Geografia do Brasil,


exaltou a história de seu povo e procurou mostrar o desenvolvimento dos “iorubas”. A
Vanguarda, O Mequetrefe, A Semana e até o L’Itália, periódico destinado à colônia
italiana no Rio de Janeiro, também publicaram notícias sobre a visita de Payne,
especialmente sobre o maior evento que ele protagonizou na cidade: a conferência na
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro que teve ampla divulgação:
Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro
Presidência do Exmo. Sr. Conselheiro de Estado Visconde de Paranaguá.
Sessão extraordinária, honrada com a Augusta presença de sua Magestade o
Imperador, sabbado, 8 do corrente mez, às 7 ½ horas da noite, no Salão
Escolar, na Imprensa Nacional.
Conferencia do Illustre Geographo africano Mr. John Augustus Payne.
Roga-se o comparecimento dos srs, sócios. 366

Na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, discursaram os sócios dr.


Joaquim Abílio Borges e o dr. Alberto Hargreaves. Seus discursos estão publicados no
Boletim da Sociedade de Geografia, mas, infelizmente, o discurso de Payne não ficou
registrado.367
11ª Sessão Extraordinária em 8 de Maio de 1886, honrada com a presença de
S.M. O Imperador, e sob a presidência do Exmo Sr. Conselheiro Visconde de
Paranaguá - Acham-se presentes grande numero de sócios e o Sr. John
Augustus Payne. Sr. presidente, depois de agradecer a S.M. O Imperador a
honrosa visita que se dignou a fazer a esta sociedade pela 6ª vez, animando
assim o progresso dos seus trabalhos, declarou que esta sessão tinha por fim
ouvir-se a preleção que se offerecia a fazer o geographo africano Sr. John
Augustus Payne, para o que solicitava a devida vênia. 368

364
Gazeta de Noticia, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1884, p. 3.
365
FREITAS FILHO, Almir Pita. Imagens de persuasão da modernidade na Exposição de 1881. In:
Simpósio Nacional de História ANPUH, XVII, São Paulo, julho de 1993. Anais... São Paulo: ANPUH,
1996. p. 172-183. p.182.
366
Ibidem, p. 3.
367
A maior parte do Arquivo da Sociedade de Geografia, em relação ao século XIX, foi destruído em um
incêndio. Não foi localizado, na Sociedade de Geografia e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
nenhum registro sobre a visita de Payne.
368
Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, T.3, Boletim n.1-4, 1887, p.149

115
Mais uma vez, as narrativas focaram o desenvolvimento que as colônias
africanas estavam conseguindo sob a administração dos ingleses, os esclarecimentos
sobre John Otomba Payne e os “minas”:
descendente dos príncipes de Jehn, a tribu fidalga da raça Iurubá, a qual
damos erroneamente o nome de mina. Nasceu em Serra Leoa a 9 de agosto
de 1839 e foi baptisado na matriz daquella Colônia pelo celebre missionário
africano o Arcebispo Kissling a quem veneram Inglezes e Africanos.
O Sr. Payne é filho do Príncipe Adesaga e primo irmão do actual rei de Jenh,
o príncipe Aboke....
É da mais alta importância para nós que contamos em nosso paiz,
notavelmente na província da Bahia com muitos milhares de pretos oriundos
do mesmo districto do Sr. Payne, o estudo da África Occidental. 369

O discurso de Joaquim Abílio Borges ressaltou mais a história de Lagos e do


preconceito contra os negros. Abílio era filho do barão de Macaúbas, estudou na Europa
e na Academia de Direito de São Paulo. Foi membro do Conselho Diretor de Instrução
Publica e diretor do Colégio Abílio, fundado por seu pai, em Botafogo. Alberto
Hargreaves e Abílio faziam parte de uma intelectualidade carioca que buscava a
modernização do país e, em parte, seus ideais estavam alinhados com o grupo que Maria
Aparecida Mota define como “a geração de 70”:
Assim é que, a partir dos anos 70 do século XIX, um conjunto
diversificado de escritores - a geração de 70 - deu forma a um movimento
renovador que pode ser entendido como expressão da sensibilidade das elites
letradas em relação às transformações que o país vivenciava e às novas
necessidades ou aspirações sociopolíticas daí advindas. Ao mesmo tempo em
que absorviam e reelaboravam teorias vindas do estrangeiro, esses intelectuais,
vivendo na província ou na Corte, procuravam entender o Brasil estudando
suas origens e identificando seus problemas.370

Payne também foi recebido, em sessão solene, na rua Senhor dos Passos 161,
por estudantes descendentes da raça africana. A comissão que organizou a homenagem
era formada por: Gil Moreira, aluno da Escola Politécnica, os alunos da Faculdade de
Medicina, Felippe Barbosa da Costa e Pedro Matheus Junior,371 Estevão Silva,
Frederico de Barros e Antonio Moutinho. Durante a solenidade, Payne recebeu um
quadro com diversos retratos e a seguinte mensagem:
Salve o primeiro homem preto, que soube, ao tocar em nosso paiz, gravar em
nosso espirito admiração e respeito pela sua pessoa. A mocidade de cor desta
capital, que sempre acompanhou o progresso evolutivo das nações mais
adiantadas, com o fim de solennisar a passagem desse homem illustre, natural
das regiões africanas, resolveu offerecer-lhe este quadro como prova de
grande admiração e apreço pelo seu talento.

369
Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, T.3, Boletim n.1-4, 1887, p.230
370
MOTA, Maria Aparecida Rezende. Silvio Romero: dilemas e combates no Brasil na virada do século
XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p.25.
371
Localizei o nome Pedro Matheus Junior no Almanaque Administrativo como farmacêutico químico de
2ª classe do Laboratório Nacional de Análise.

116
6 de Maio de 1886.372

É possível supor que a “mocidade de cor”, ao referir-se a Payne como o


“primeiro homem preto” a chegar à cidade digno de admiração e respeito, estava
exaltando a elevada posição alcançada pelo africano. Até então, mais comum era a
imagem de africanos como escravos, o que provavelmente deve ter acontecido com seus
ancestrais, que igualmente eram dignos de admiração e respeito.
No dia 7 de maio, a Gazeta de Noticias, na seção de avisos marítimos, noticiou
que o paquete a vapor Trent sairia, no dia 9, às 3 horas da tarde, para Southampton,
Inglaterra, com escalas por Salvador, Maceió, Recife, Lisboa e Vigo. Payne e sua
esposa embarcaram nesse paquete depois de quase um mês no Rio de Janeiro.Os
periódicos, especialmente o The Rio News, noticiaram que a visita de mr. Payne
contribuiu incalculavelmente para a causa da abolição, não apenas pelas informações
que ele deu sobre a costa ocidental da África, mas sobretudo pelas suas qualidades
pessoais.
Em 1887, o mesmo The Rio News divulgou que, segundo alguns jornais
recebidos de Lagos, Payne e sua esposa haviam retornado para casa, após uma ausência
de 10 meses. Ainda segundo a matéria, Payne foi muito bem recebido na Inglaterra e
havia causado surpresa no Brasil, onde acreditavam que os nativos da África não
podiam ser educados e ocuparem cargos usualmente ocupados por brancos.373
Os estudos de Nara Improta e Nozomi Sawada mostram que, depois de sua
viagem pelo Brasil e pela Europa, Payne teve reforçada a sua posição junto ao governo
colonial de Lagos. Fossem nas reuniões de várias associações ou em suas cartas a
jornais de Lagos, Otomba Payne fazia sempre referências à viagem ao Brasil. Em 1893,
ele publicou o Table of Principal Events in Yorubá History, trabalho considerado como
um marco. A produção literária de Payne está inserida na formação de uma identidade,
ainda que genérica, como “descendentes da raça africana”, para depois configurar-se
mais especificamente “a nação mina”. Porém, acredito que a sua presença tenha
contribuído para outros desdobramentos mais concretos. Nos jornais, existem
referências do encontro dele com representantes da raça africana. Durante a estadia de
Payne no Brasil — como destaca Improta — vários interesses foram articulados. Uma
extensa agenda antiescravidão foi colocada em prática em paralelo a encontros

372
Pacotilha, Rio de Janeiro, 24 de maio de 1886, p.3.
373
The Rio News, Rio de Janeiro, 15 de abril de 1887, p. 4.

117
familiares. Martha Bonifácia Lydia, mulher de Payne, era descendente de ex-escravos
retornados. Inclusive ela tinha um tio que vivia no Rio de Janeiro.
É possível que outros encontros tenham sido agendados.Vários autores, ao
abordarem a trajetória de Eugenia Ana dos Santos, Mãe Aninha, destacam a viagem que
ela realizou ao Rio de Janeiro, em 1886, mas pouco se sabe sobre o motivo dessa
viagem, além da criação de um candomblé na cidade. Mãe Aninha, ainda muito jovem,
veio acompanhada de Rodolfo Martins Andrade, o Bamboxê, Obasianá e Joaquim
Vieira da Silva. Na biografia de Martiniano Eliseu Bonfim, consta que ele chegou à
Bahia, vindo de Lagos, em 30 de janeiro de 1886, no navio Antoninha. O pai de
Martiniano, o africano Eliseu Bonfim, era comerciante em Salvador, tinha um irmão
que vivia em Abeokutá e outros familiares em Lagos, para onde viajou várias vezes e
levou seu o filho para estudar naquela cidade. Martiniano ficou na África por longos
anos, até 1886, “aprendendo a ler e escrever inglês e iorubá numa escola de
missionários presbiterianos ingleses. Nesse período, também frequentava comunidades
religiosas tradicionais, iniciando-se no sistema de adivinhação de Ifá”.374 Na entrevista,
concedida a Lorenzo Turner, em 1940, Martiniano contou que tinha vários parentes na
África:
Há um irmão mais novo de meu pai chamado Bádéshógùn vivendo em
Abeokutá, também há uma irmã mais velha do meu pai, chamada Àbòábá, que
tem muitas crianças que vivem em Ìká, em Abeokutá.
Meu tio Bádéshógùn costumava trazer produtos da fazenda para vender em
Lagos, produtos como amêndoa da palmeira, azeite, inhame. Eu morava em
frente à praça Tòkunbò, e de lá eu costumava frequentar a escola Faji. 375

Como Payne também estava ligado à Escola Faji, é muito provável que eles
tivessem se conhecido em Lagos. Por coincidência ou não, Martiniano voltou para o
Brasil três meses antes da chegada de Payne. Ainda na referida entrevista, o babalaô
relata que veio ao Rio de Janeiro, mas não informou a data. Assim, em 1886, durante a
visita de Payne, não é improvável que Martiniano estivesse no Rio de Janeiro
acompanhando aqueles que, como ele, tornaram-se as principais lideranças do
candomblé na Bahia: Rodolfo Martins de Andrade (Bangboshê Obitikô)376 e Mãe
Aninha.

374
PARES, Luis Nicolau; CASTILHO, Lisa Earl. Marcelina da Silva e seu mundo: novos dados para uma
historiografia do candomblé Ketu. Afro-Ásia, n. 36, p. 111-151, 2007.p. 138
375
Trechos da entrevista feita com Martiniano Eliseu Bomfim, em 1940, pelo linguista Lorenzo Dow
Turner. O Babalaô fala: a autobiografia de Martiniano Eliseu de Bomfim, Afro-Asia, n. 46, p. 229-
261.2012. p.241
376
Rodolfo Martins de Andrade (Bangboshê Obitikô) participou diretamente na feitura iniciática de
Aninha e de Hilária Batista de Almeida (Tia Ciata) e era avô de Felisberto Américo Souza (Sowzer), o

118
A presença de Payne, Rodolfo Bamboxê, Aninha e, talvez, de Martiniano no Rio
de Janeiro, em 1886, é um forte indício de conexões visando a um projeto de construção
de uma “superioridade yorubá”. Para Matory, ela foi articulada em Lagos, e aqueles
brasileiros, que fizeram e refizeram alianças atlânticas, apropriaram-se desse projeto, o
que resultou em um processo de reinvenção cultural, especialmente, na Bahia. Mais
uma vez reitero que não é objetivo deste estudo abordar a questão sobre a origem da
suposta “superioridade yorubá”. Entretanto, sendo um conjunto de ideias com
dimensões transnacionais, existe a possibilidade de analisar como esse assunto se tornou
tema de discussão no Rio de Janeiro, entre as lideranças religiosas e Payne. Dessas
discussões, não descarto a hipótese de Cypriano Abedé ter participado, uma vez que não
está certa a data de sua chegada ao Rio de Janeiro.
Podemos mesmo considerar a dimensão teórica de uma “tradição inventada”
sobre as origens das experiências religiosas cariocas. Segundo Hobsbawn e Ranger,377
este seria um conceito para explicar um conjunto de práticas normalmente reguladas por
regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, numa continuidade em relação ao passado. Conforme
observa Duarte, embasado em Peter Eicher, a noção de tradição traz implícita a
continuidade e a ideia de aceitação: “o indivíduo tradicional é aquele que enxerga
validade nos princípios que norteiam o grupo do qual faz parte e procura preservá-los e
transmiti-los”.378 Assim seria possível pensar como o processo de criação de uma
“superioridade ioruba”, no Rio de Janeiro, fortaleceu a “Pequena África” dos “minas-
baianos”.

A PEQUENA ÁFRICA DE SUA MAGESTADE ABEDÉ

Foi o compositor Heitor dos Prazeres quem definiu aquele espaço, na área
central da cidade do Rio de Janeiro, como “Pequena África”. Ali, o pai do jovem
Procópio, líder da Turma do Ponto Chic, atuava como um dos mais conhecidos babalaôs
da cidade do Rio de Janeiro: era Sua Majestade Abedé. Foi o jornalista Francisco

Benzinho Bamboxê, nascido em Lagos, em 1877. A descendência de Bamboxê ainda lidera uma casa de
culto na Bahia.
377
HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
378
DUARTE, Janluis. Reinventando tradições: representações e identidades da bruxaria neopagã no
Brasil. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília, Programa de Pós-graduação em História, Brasília,
2013,p.143

119
Guimarães, vulgo “Vagalume”, que deu o título nobre ao famoso babalorixá, quando
publicou uma matéria, descrevendo o conhecido Abedé, baiano que, desde o final do
século XIX, atuava na cidade:
Cypriano Abedé, por exemplo, é na actualidade, talvez o “primus inter
pares” dos “Paes de Santo”.
Abedé é de estatura regular, também regular de corpo.
Deve contar uns 85 annos de edade. Descendente de africanos, nasceu na
Bahia. Como “Pae de Santo” é contemporâneo do velho Balthazar, de João
Alabá, já fallecidos e de Sanyn, ainda em açção.
Sua clientela é grande.379

A matéria do Vagalume, publicada pelo jornal Critica, pode ser comparada com
uma notícia, publicada 33 anos antes, no Cidade do Rio, denunciando, sob o título
Feitiçaria, a prisão de mais um feiticeiro:
Tendo o delegado da 10ª circunscripção denúncias que na casa da rua de D.
Joaquina n.6, na praia Formosa, pertencente a Cypriano Manoel Esteves,
frequentemente realizavam-se reuniões e sessão de feitiçaria, que eram
frequentadas por grande numero de pessoas, as quais iam consultar e assistir
aquelas praticas, para aquelle local se dirigiu ante-hontem às 7 horas da noite,
afim de dar busca na referida casa.
Effectivamente encontrou Cypriano, homem de cor preta, bahiano no
exercício de suas funções de feiticeiro, isto é, illudindo a credulidade publica
Além de muitas pessoas de cor, foram encontrados muitos brancos, e entre
estes José Venâncio da Graça Sobrinho 380, com duas senhoras, e João José
Tavares Junior, os quais aguardavam a conclusão da sessão, afim de
consultar o feiticeiro.
Cypriano foi levado preso em flagrante, sendo lavrado contra ele o respectivo
auto. Em seguida a autoridade fez apprenhensão de todas as bugingangas e
objectos que ornavam o quarto destinado as sessões. Estes objectos foram
remetidos parte para á delegacia, e parte para o Depósito publico.
Segundo a denúncia recebida pela autoridade por ocassião da sessão de ante
hontem devia ser sacrificada uma mulher, que depois de lhe rasparem a
cabeça seria encerrada em um quarto durante três mezes. Facto que não foi
realizado pela presença do delegado.
A casa está collocada em lugar bastante solitário e é de aspecto bastante
asqueroso e ante hygienico, representando o verdadeiro antro de feitiçaria. 381

A matéria repete características comuns das denúncias feitas anteriormente; no


entanto, há um elemento novo e importante: a realização de um ritual de iniciação
comandado por aquele que foi chamado de Sua Majestade Abedé: o mais bem-sucedido
dos “minas-baianos” e principal liderança do que foi denominada de Pequena África.
Cypriano Abedé já havia sofrido, anteriormente, uma denúncia. De acordo com Farias,

379
Critica, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1929, p.6. Em relação à idade de Abedé, assim como a do
feiticeiro Clemente Medeiros, existem divergências. No caso de Abedé, o registro de seu óbito, feito pelo
filho Procópio Abedé, informa a idade de 51 anos (cópia em anexo). Fazendo um retrospecto, desde a
denúncia de 1892 até sua morte em 1933, pode-se concluir que a idade proposta por Vagalume (85 anos)
seja próxima da correta.
380
José Venâncio da Graça Sobrinho foi mesário na eleição de 1894. (DOU, Rio de Janeiro, 21 de
dezembro de 1894, p. 19).
381
Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 29 de abril de 1896, p. 1.

120
em 1892, uma carta anônima enviada ao chefe de polícia do Distrito Federal fazia um
apelo às autoridades para que acabassem com os “abusos” das feitiçarias e cartomancia
que “infestavam a cidade”.382Na denúncia foram enumerados alguns feiticeiros “entre
os quais um ‘tal da Travessa das Mosqueiras’, que se chamava “Cipriano conhecido por
Bedé”, e ainda um outro conhecido por Diogo Mina, ambos considerados “terríveis e
matadores”, que davam “palpites de bicho mediante porcetagem”.383 A autora observa
que a denúncia teria origem, possivelmente, em algum vizinho ou um consulente
insatisfeito contra Cypriano Abedé que, nessa época, morava na rua do Propósito, “onde
iniciara suas primeiras filhas de santo”.384
A notícia da prisão de Abedé, em 1896, foi repetida pela Gazeta da Tarde385
que, num tom irônico, afirmava que o “feiticeiro” recomendou a uma velha assistente
sujeitar-se ao seguinte tratamento: uma surra aplicada com certas ervas, raspagem da
cabeça; depois ficaria encerrada num pequeno quarto, por três meses, durante os quais
até os alimentos só seriam levados pelo feiticeiro. Embora no relato não constem mais
detalhes, fica claro que era um ritual de “feitura” de uma yaô, quando, após a raspagem,
a iniciada no culto dos orixás passava por um processo de recolhimento. Ainda segundo
a matéria, a sala de sessões era simplesmente lúgubre, sem asseio e havia na casa ossos,
ervas, cipós e bugigangas, concluindo: “os assistentes da animada sessão, à frente de seu
incansável presidente, foram visitar a delegacia, onde não houve sessão de feitiçaria, é
verdade, mas foi lavrado o competente auto de flagrante contra o Cypriano”.386 O
delegado da 10º circunscrição policial remeteu ao dr. Presidente da Camara Civil do
Tribunal Civil e Criminal,387 “os autos de prisão em flagrante de Cypriano Manuel
Esteves — incurso nas penas do art. 157 do código Penal”.388 O artigo 157, do Código
Penal de 1890, estabelecia que a prática do espiritismo, magia e seus sortilégios, assim
como usar talismãs e cartomancia, com o objetivo de despertar sentimentos de ódio ou
amor, inculcar, cura de moléstias curáveis ou incuráveis, para fascinar e subjugar a

382
FARIAS, Juliana B; Flávio dos Santos SOARES, Carlos E. Libano. No labirinto das nações: africanos
e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005,p.277.
383
Idem, ibidem.
384
Idem, ibidem.
385
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 29 de abril de 1896, p. 1.
386
Ibidem.
387
O Tribunal Civil e Criminal foi criado pelo Decreto nº 1.030, de 14/11/1890, estava dividido em
Câmara Criminal, Civil e Comercial, tinha objetivo de julgar os processos pendentes dos extintos juízos
de direito da capital federal e foi extinto em 1905.
388
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 de maio de 1896, p. 3.

121
credulidade pública, constituía crime e muitos “feiticeiros”, entre eles, João Miguel
Pereira da Costa e Cypriano Abedé, foram processados como incursos nesse artigo.
Apesar, no final do século XIX, ter sido denunciado e preso, Abedé construiu
uma carreira de líder espiritual muito bem-sucedida. Depois das matérias sobre
feitiçaria, o nome de Cypriano Manoel Esteves foi dando lugar a Cypriano Manoel
Abedé ou, mais comumente, Cypriano Abedé. Na relação dos componentes eleitos para
a mesa administrativa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e S. Bendedito,
consta que:
Por occasião da festa realizada domingo ultimo, na Igreja desta irmandade,
foi lida a nominata dos irmãos eleitos para fazerem parte da mesa
administrativa, que irá dirigir os destinos da Irmandade durante o anno de
1915 a 1916, a qual é assim constituida: 389

Dos diversos cargos, figurava o de juízes de devoção, composto por vinte


nomes: entre eles, dr. Evaristo de Moraes, padre Leopoldo e Cypriano Esteves M.
Abedé. Em algumas noticias de jornais, localizei o nome de Abedé como Cypriano
Manoel, inclusive em registros publicados pela Irmandade do Rosário. Abedé, aos
poucos, tornou-se um “nome oficial”, inclusive adotado por seus familiares, como o
filho Procópio Manuel Abedé. Segundo Mariza Soares,390o nome Abedé, incorporado
ao nome de Cypriano, vinha de Ogun Abedé, que era o orixá de cabeça do baiano que a
Gazeta de Noticias chamou de “preto mina”.391Cypriano Abedé teve vários filhos e,
pela análise da trajetória de pai e filho, acredito que Procópio era o mais velho. Dois
outros filhos morreram pequenos: Zeferino, com três anos, morreu no Hospital São
Sebastião, sendo sepultado em São Francisco Xavier. A mãe, Secundina Lopes de
Oliveira, foi quem fez o registro do óbito, não sendo identificado o nome do pai, mas,
na seção Obituário, do Diário da Noite,392 consta Cypriano Abedé. Ele também era pai
de Elias, que faleceu aos quatro anos de idade. No obituário, o nome que aparece ainda
é de Cypriano Manoel Esteves: “Queimaduras — Elias, filho de Cypriano Manoel
Esteves, Capital Federal, 4 anos, preto. Rua da Imperatriz, n.81, att: dr. Bandeira de
Gouvêa, sep. Quadra 2 n. 11632, cem. S.F.X.”393 Na convocação de alistamento militar

389
O Paiz, Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1915, p. 6.
390
SOARES, M. From Gbe to Yoruba: ethnic change and the Mina Nation in Rio de Janeiro. In:
FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt D. (Orgs.). The Yoruba diaspora in the Atlantic world.
Bloomington/Indiana: Indiana University Press, 2004. p. 231-247.
391
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1904, p. 1. Comentando sobre a maçonaria: “na
Loja João Caetano, um preto mina, o feiticeiro Cypriano Abedé é grau 33”.
392
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1930, Obituário da Cidade, p.10.
393
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1901, p. 3.

122
de Ignácio, outro filho de Abedé, consta o nome do pai e da mãe Avelina Teresa de
Sousa.394
As mortes dos filhos de Abedé, ainda pequenos, faziam parte do triste quadro de
estatísticas, na qual crianças negras pobres apareciam no elevado índice de mortalidade
na cidade. Por exemplo, Zeferino morreu no Hospital São Sebastião — especializado
em doenças infectocontagiosas — numa época em que seu pai ainda não havia se
transformado no grande babalaô do Rio de Janeiro.
O estudo do dr. José Maria Teixeira — apresentado à Academia Imperial de
Medicina, em 1887— sobre o índice de mortalidade infantil, especialmente entre
crianças negras, foi analisado por José Leopoldo Ferreira Antunes:
o alto índice de mortalidade de crianças no Rio de Janeiro teria um fator
preponderante “sem contestação possível”, uma “causa de ordem social”: a
ilegitimidade dos filhos, ou seja, o nascimento de crianças cujos pais não
consagraram sua união pelo casamento civil. O médico premiado não
hesitava em postular o axioma, que seria bastante conhecido pelos
“demografistas”, segundo o qual “a mortalidade dos filhos naturais” seria
“dupla da dos filhos legítimos”.
Para dimensionar o problema de ilegitimidade no Rio de Janeiro, onde ele
supunha que o grande número de escravos, ex-escravos e seus descendentes
contribuíssem para o excesso de filhos ilegítimos, o médico procurou
contabilizar o número de batismos durante um trimestre de 1885, cotejando-o
com dados do registro civil e concluindo que cerca de 35,7% das crianças
seriam ilegítimas...395

Para José Maria Teixeira, a população negra tinha notável predisposição para o
tétano e a tuberculose: “É facto de observação que a raça negra é mais predisposta ao
tétano do que as outras”.396Segundo Teixeira, “no Rio de Janeiro abunda a raça negra,
que é considerada como a mais apta para contrahir a tuberculose”.397 Naturalmente, a
mortalidade tinha a ver com as péssimas condições de vida da população pobre, em sua
maioria, negros: moradias insalubres, epidemias na cidade, falta de acesso a
atendimento médico e alimentação inadequada. Entretanto, o fato de mulheres pobres
assumirem seus filhos, gerados em uniões não estáveis, deve ter sido mais um elemento
complicador.
Não foi possível identificar a data exata da chegada de Abedé ao Rio de Janeiro;
talvez, ele tenha vindo antes da abolição, provavelmente, no período da viagem de

394
DOU, Rio de Janeiro, 17 de março de 1938, seção 1, p. 90. “1. Recrutados, pela Primeira Região
Militar, na Junta de Alistamento Militar do Décimo Distrito – Sexta Zona, Rua do Resende n. 84.”
395
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento médico e comportamento no
Brasil (1870-1930). São Paulo: UNESP, 1999. p.74.
396
TEIXEIRA, José Maria. Mortalidade das crianças no Rio de Janeiro. In: Annaes da Academia de
Medicina, Rio de Janeiro: VI Serie (Coleção 53), Tomo III (1887-1888), p. 249-523, p. 481.
397
Idem, Ibidem, p. 438.

123
Eugenia Ana dos Santos, mãe Aninha, Bamboxé e Obasani, em 1886, quando teriam
criado um candomblé no bairro da Saúde. Agenor Miranda, extremamente ligado a
Aninha e Abedé, afirmava que o famoso babalalorixá teria vindo para o Rio de Janeiro
por ordem do orixá Oxóssi, da Tia Júlia do Engenho Velho:398 “O orixá determinara que
Abedé abrisse uma casa no Rio de Janeiro, para que aí se desenvolvesse um candomblé
mais forte”.399
Uma grande amizade unia Cypriano Abedé e mãe Aninha, criadora do Axé Apo
Afonjá, na Bahia, e de uma filial no Rio de Janeiro, fundada em uma terceira estadia da
mãe de santo baiana, na década de 1930, na cidade. Aninha, quando retornou a Bahia,
em 1935, deixou esta casa sob a direção de sua filha Agripina, assessorada por Paulina
de Oxum, também conhecida como Paulina Abedé. A relação de Abedé e Paulina, que
inclusive gerou filhos, mostra vínculos entre importantes lideranças religiosas do Rio de
Janeiro e da Bahia.
Paulina de Oxum era mulher de Abedé e havia sido iniciada por Pai Ogundeí
e, depois da morte deste, adotada por Aninha, de quem recebeu o grau de
senioriedade. Mãe Aninha encarregou Paulina do jogo de búzios, mas ela,
descontente com a indicação de Agripina para o cargo de mãe de santo,
afastou-se da casa, preferindo ficar ao cuidado da casa de santo de Abedé,
que dirigiu até falecer, em 1949.400

O orixá de cabeça de Abedé era Ogum, mas isso não significa que ele tinha
incorporação, o que também não estou excluindo, porém, originalmente, o babalaô era
responsável pelo ritual e não era “rodante”.401 Conforme destacou Agenor Miranda, os
seguidores do candomblé, até os anos 30, mantinham “com especial rigor as orientações
em que funcionavam as casas o que dava ao grupo maior coesão interna, evitando
distorções nos rituais”.402 Ainda segundo ele, os dois líderes religiosos, Abedé e
Aninha, tinham algo em comum além da grande amizade: o poder em relação aos seus
“feitiços”:

398
A Casa Branca do Engenho Velho— o candomblé Ilê Iyá Nassô Oká— é considerada a mais antiga
casa de candomblé da Bahia, e sua segunda dirigente foi Marcelina da Silva. Com a morte de Marcelina,
ocorreu a disputa pelo comando da casa entre Maria Julia da Conceição e Maria Julia de Figueiredo, que
saiu vitoriosa. Então, Maria Julia da Conceiçao fundou o Gantois. No Engenho Velho, Eugenia Ana dos
Santos, a mãe Aninha, foi iniciada no “santo” pela própria Marcelina. A essa casa também estavam
ligados Joaquim Vieira e Rodolfo Andrade Martins, Bamboxê. Contudo, não descarto a possibilidade de
que Julia, que mandou Cypriano vir para o Rio de Janeiro, seja Maria Julia, filha de Rodolfo Bamboxê,
que, como Abedé, viveu muitos anos na África, onde nasceu seu filho Felisberto Bamboxê.
399
SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-
ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p.53.
400
SANTOS, João Batista dos, Tobiobá 21 Cartas e um telegrama de Mãe Aninha a suas filhas Agripina e
Filhinha, 1935-1937. Afro-Ásia, n. 36, p. 265-310, 2007. p. 309
401
Aquele que entra em transe.
402
ROCHA, Agenor Miranda. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro – as nações Kêtu: origens, ritos
e crenças. Rio de Janeiro: Mauad, 2000, p.24.

124
Abedé, assim como minha mãe Aninha, possuía o poder de transformar
objetos. Ele, como todo babalossãe autêntico, aliás, era capaz de transformar
uma folha em outra. Mais impressionante ainda era o assentamento do Ossãe
de Abedé, que por vezes falava como se fosse viva. Em algumas ocasiões,
bastava que a pessoa chegasse perto do assentamento, e Ossãe se punha a falar,
revelando fatos da vida da pessoa, descrevendo seu temperamento, prevendo
acontecimentos bons ou ruins, aconselhando, advertindo.”403

O poder dos feiticeiros advinha de fazer crer que eles eram, de fato, possuidores
de um dom “sobrenatural”, algo que os outros não possuíam e que só poderiam ter
acesso através de líderes e suas “feitiçarias africanas”. Cypriano Abedé, no Rio de
Janeiro do século XX, levou até as últimas consequências essas características: seu
assentamento, onde estava a força de seu orixá, falava! A história teve tal divulgação na
cidade: “Pois o fato chegou aos ouvidos do deputado Irineu Machado, que quis
conhecer o prodigio”.404 O deputado foi até a casa do “feiticeiro”, dizendo: “Abedé, vim
aqui para conferir essa história que andam contando, mas lhe digo, para mim é tudo
artimanha sua, para mim você não passa de um bom ventriloquo”.405 Segundo Agenor
Rocha, Abedé teria proposto então ao deputado, que lhe apertasse os lábios com as
pontas dos dedos — impedindo qualquer truque — e foram até o assentamento de
Ossãe. “Quando lá chegaram, o orixá desandou a falar: fez um punhado de revelações
indiscretas, falou mesmo de uma certa amante francesa”.406 A certa altura, o deputado,
assustadissimo, gritou: “Chega! Não quero ouvir mais nada! E saiu correndo”.407
Contudo, de acordo com Robert Farris Thompson, na Nigéria, aonde Abedé fez sua
iniciação religiosa, o ventriloquismo era uma das aprendizagens dos sacerdotes de
Ossanha, senhor das folhas: “A cura, a arte e o ventriloquismo eram, então, combinados
na devoção a Ossanha, para oferecer uma forma teatral impressionante de consulta”.408
Os “minas-baianos” constituíram uma comunidade étnica e religiosa no sentido
de ocupar certo espaço no centro do Rio de Janeiro. Conseguiram, de diferentes formas,
inserir-se em uma sociedade na qual a população negra era excluída. Abedé, apesar das
perseguições do período, não hesitou em publicar anúncios oferecendo seus serviços
espirituais, e, através deles, podemos acompanhar a sua circulação na cidade: “Cypriano
Abedé dá consultas sobre sciencias ocultas (feitichismo africano) à rua Marques Leão,

403
SODRÉ, Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-
ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p.54
404
Idem, Ibidem.
405
Idem, ibidem.
406
Idem, ibidem.
407
Idem, ibidem.
408
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit – arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo:
Museu Afro Brasil, 2011. p.56.

125
n.53, Engenho Novo, às terças. Quintas e sábados, das 3 horas da tarde ás 7, attendendo
a chamados”.409
O endereço de Abedé, na rua João Caetano, ficou muito conhecido a partir da
década de 1920. Pode ser que ele tenha passado a atuar, devido ao prestígio que
adquiriu, em área mais central. Porém, ele teve outros endereços na cidade: em 1896,
Cypriano Manoel Esteves, na rua D. Joaquina — na Praia Formosa —, foi preso e
incurso no art. 157. Em 1901, na rua da Imperatriz, n.81, morreu seu filho Elias. Numa
ação de despejo, em 1905, seu endereço indicado era na Ladeira do Faria, n. 32.410 Já
em 1914, anunciava seus serviços na rua Marques Leão, 53, no Engenho Novo. Em
1918, na divulgação do culto africano, consta o endereço da rua João Caetano. No
período em que Cypriano foi detido, na rua D. Joaquina, o imóvel da rua João Caetano
estava alugado a uma mulher chamada Henriqueta.411Enquanto ele estava no Engenho
Novo, rua Marques Leão, a casa da rua João Caetano era anunciada: “Aluga-se casa da
rua João Caetano, 69, tem tres quartos, duas salas, cozinha, quintal, banheiro e agua”.412
Pelo anúncio, pode-se concluir que era uma casa confortável. O Vagalume, que esteve
naquela residencia de Abedé, descreveu:
Na rua João Caetano n. 69 tem Cypriano Abedé há muitos annos a sua
vivenda.
É uma casa de boa aparência, com sala de visitas e de jantar decentemente
mobiliadas, havendo uma alcova que serve de gabinete do “Pae de Santo” e
uma outra que é o “oratório.”
Em tudo se nota muita modéstia em parallelo com muita ordem e asseio. 413

Ironicamente, a casa de Abedé estava localizada na mesma rua em que


funcionava, no nº 20, a 10ª circunscrição urbana, Santana, o 3º distrito de onde, em
1896, chefiada pelo delegado dr. José de Carvalhares Pinheiro, havia partido a ordem de
invasão da casa de Cypriano Manoel Esteves. Seria uma coincidência ou
deliberadamente o velho feiticeiro teria escolhido o endereço como prova de seu poder
em relação às antigas perseguições?

409
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1914, p. 9.
410
A ação de despejo foi feita por Maria José da Silva contra Cypriano Manoel Abedé, por aluguel em
atraso. O oficial de justiça foi várias vezes ao local, não encontrou Abedé e foi recebido por uma senhora,
cujo nome não foi citado, que afirmou ser a mulher de Abedé. O advogado do réu, o dr. Anacleto José dos
Santos, alegou que o processo não poderia ocorrer na 8ª Pretoria, uma vez que a casa ficava na região da
9ª Pretoria. O juiz não aceitou a exceção de incompetência e condenou Abedé. Na procuração ao seu
advogado, Cypriano Manoel Abedé assinou com uma letra, embora trêmula, bastante legível. Fonte: Ação
de Despejo, Arquivo Nacional, 1906, nº 883, maço, 1390, Galeria A.
411
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21de janeiro de 1898, p.1.
412
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1914, p. 2.
413
Critica, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1929, p.6

126
A partir de 1914, não localizei nenhum anúncio de aluguel da casa. E , em 1918,
na divulgação do “Culto Africano”, criado por Abedé, aparece o endereço da rua João
Caetano. É possivel concluir que ele alugou a casa em 1914. Esse endereço, que o
Vagalume descreveu, só voltou aos jornais, sem estar associado ao nome de Cypriano
Abedé, em 1940, quando a casa foi colocada à venda e, como não conseguiu comprador,
foi feito um leilão: “Vende-se o predio à rua João Caetano, 69, com grandes
acomodações e muito terreno, em leilão pelo Julio, no dia 7 de maio, ás 4 horas”.414 A
propriedade ficou em poder da família Abedé até 1940. No atestado de óbito de
Procópio Abedé, filho de Cypriano Abedé e Carolina Rosa Abedé, consta como
endereço a rua João Caetano, n. 69. Até a década de 1950, a casa em que viveu
Cypriano Abedé era alugada para atividades comerciais. Será que nenhuma família quis
residir no endereço que ficou famoso no Rio de Janeiro como residência de “Sua
magestade Abedé”?
Cypriano Abedé construiu uma trajetória de prestígio no Rio de Janeiro, sendo
as notícias sobre ele geralmente mais respeitosas. No entanto, na década de 1920, a
Santa Casa da Misericórdia moveu ação de despejo contra ele, em relação aos terrenos
dos fundos dos imóveis, situados na rua da Passagem, nº 116 e 118.
onde funciona o Asylo de Santa Maria, mantido pela Suppte., e não lhe
convindo mais, por motivo de ordem moral, ter o Suppdo. Como inquilino,
requerer fosse o mesmo notificado para, no prazo de trinta dias, desocupar a
alludida parte do referido terreno, sob penas da lei.415

O réu Cypriano Esteves não compareceu a audiência e nada alegou em sua


defesa. Apesar de o aluguel estar em dia, o juiz concedeu o despejo. A Santa Casa não
explicou, nem foi questionado, o “motivo de ordem moral” para o despejo do inquilino.
Existiria ali alguma prática religiosa?
Ao longo dos anos, Abedé conquistou espaços, impulsionado por seu sucesso
religioso. Era eleitor, votava na 3ª Secção de Santana,416 e pertencia à maçonaria. Fator
importante na consolidação da sua bem-sucedida trajetória foi a sua ligação com as
irmandades religiosas. O famoso “feiticeiro” ocupou inúmeros cargos em irmandades
religiosas. É importante observar que a prática de uma religiosidade católica não
significava dissimulação, uma vez que ele era, pública e notoriamente, conhecido como

414
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de abril de 1940, p. 15.
415
Arquivo Nacional Código de Fundo 6n 4ª pretoria cível, ano 1920, maço 66 nº 3159.
416
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1925 e 1926.

127
“pai de santo”. Na verdade, muitos praticantes faziam o mesmo, uma vez que uma
crença não excluía ou impossibiltava a outra. Assim, temos em relação a Abedé:
1922- 1º regente do Culto Divino da Irmandade de N.Senhora do Rosário.417

1922- Procurador da caridade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e


S. Benedicto dos Homens Pretos.418

1923- Mesário da Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa


Ephygenia.419

1930- Mesa administrativa da Devoção do Senhor do Bonfim erecta na igreja


de Santa Ephigenia, para o período de 1930 a 1931.420

Em 1931, Abedé novamente ocupou cargo na Irmandade de Nossa Senhora do


Rosário.421 Nesse período, ele era o grande líder do candomblé, no Rio de Janeiro.
Tinha prestígio entre seus seguidores, recebia importantes autoridades em sua casa,
adquiria imóveis422 e participava da vida social da cidade. A presença de Abedé era
noticiada pelos jornais, como ocorreu, em 1923, quando compareceu ao velório de Rui
Barbosa, na Biblioteca Nacional.423 A vida social do famoso babalaô era pública,
mesmo na época das perseguições aos cultos não católicos no Rio de Janeiro.
Felicitações
Ao bom amigo sr.
Cypriano Manoel Abedé
Comprimenta-o pelo dia de hoje.
Nair.424
A atuação na vida mundana, entretanto, ficava mais a cargo de seu filho
Procópio Manoel Abedé: aluno do Colégio Pedro II, jogador de futebol, lider de grupos
carnavalescos, como o Tenentes do Diabo, farmacêutico formado, militar e, como o pai,
com cargos em irmandades religiosas. Em 1929, criou o semanário O Divertimento, mas
era como responsável pela Turma do Ponto Chic, que se reunia nos bares do Largo de S.
Francisco, que Procópio tinha mais notoriedade:
A Turma do Ponto Chic - Commeração do seu nono aniversário
É hoje, finalmente, que a prestigiosa Turma do Ponto Chic, tendo à frente a
figura do tenente Procópio Abedé, commemora nos salões do Centro
Cosmopolita, com solenidade invulgar o nono aniversário.
Fundada por Oswaldo Pacheco, Cesário Moreira, Procópio Abedé, Miguel
Britto e outro recreativista.

417
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1922, p.14.
418
Ibidem.
419
O Paiz, Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1913, p. 9.
420
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1930, p.4.
421
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1931, p.3.
422
No Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14/09/1930, p. 9. Cypriano Abedé consta da lista de pessoas
que adquiriram imóveis: um prédio na rua Regina Reis, n.50, por 2.000$000.
423
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de março de 1923, p. 8.
424
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1914, p. 9.

128
Foi eleita a rainha da turma, senhorita Zaira Moreira, e a festa foi
abrilhantada com excelente jazz orientado pelo maestro Benedicto
Oliveira.425

Na Praça Onze, principal palco do carnaval carioca, Procópio organizava


eventos, quando a proteção dos grandes “pais de santo” era invocada:
No carnaval, o afoxé saía pelas ruas, cantando melopeias em um misto de
dialeto nagô e português, com acompanhamento de instrumentos de
percussão e visitando as casas dos chefes dos rituais nagô e alufá, todos
moradores da Cidade Nova, alguns na própria Praça Onze. Eram muitos: Pai
Assumano, João Alabá, Abedé, Bambochê, Abu, Adioe e outros, que tinham
grande ascendência sobre toda a população negra da cidade.426

Contudo, havia, nessa carreira de sucesso de Cypriano Abedé, rivalidades. O


Diário da Noite publicou que uma querela ocorreu entre ele e Alabá:
Certa vez, em desafio sobre dúvidas surgidas de que ele não teria “santo na
cabeça”, João Alabá, no terreiro do não menos famoso “Pai Abedé”, da lei de
“musuruni”, colocou sobre a cabeça uma panela de barro, com o fundo
incandescente, cheia de azeite fervente, saindo a dançar no “terreiro” do
competidor, nada sofrendo porque, segundo os adeptos da umbanda que
assistiram à prova, estava ele com “Xangô” na cabeça, a qual, por sinal era
desprovida de cabelo.427

A rivalidade foi confirmada por Agenor Miranda, que conviveu com Abedé e
Alabá. Relatou que ambos tinham prestígio, mas também eram de temperamentos
fortes.428 O de Alabá já havia provocado sua aparição nas notícias policiais.
O guarda-freio da Estrada de Ferro Central do Brasil, José dos Santos, foi
hontem à noite ferido com 7 navalhadas na Estação do Encantado, próximo à
rua D. Pedro, por um grupo de individuos que se evadiu.
Entre os agressores achava-se um tal João Alabá, que tinham contas velhas a
ajustar com o agredido apurou-se.
O delegado da 1ª circunscrição suburbana abriu inquerito e enviou José dos
Santos para o hospital da Misericórdia.429

Alabá foi descrito pela Gazeta de Notícias, como “negro rico e sabichão da rua
Barão de S.Félix, 76”.430 As perseguições policiais eram motivos para que Alabá
mantivesse uma atitude desconfiada como aquela relatada pelo jornalista. Ao procurá-lo
na Barão de São Felix e, chegando ao local, “perguntou a uma pretinha que passava
onde morava João Labá”.431 A moça perguntou se era “um preto africano” e indicou a
casa. No local, o jornalista soube que não era aquele o endereço certo, mas recebeu da
425
A Batalha, Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1932, p. 7.
426
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1968, p. 22.
427
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1952, p. 36.
428
“Abedé era um tanto esquentado, às vezes corria com todos os que estavam a sua volta”. SODRÉ,
Muniz; LIMA, Filipe. Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição nagô-ketu
brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p. 55.
429
O Paiz, Rio de Janeiro, 22 de abril de 1898, p.2.
430
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 29 de março de 1904, p.2.
431
A Noite, Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1914, p. 1.

129
moradora informações sobre o “poder de curar” de Alabá: “minha irmã tinha cousa
botada. João Labá levou tres dias. Fez uma sessão à meia-noite. Eu fui ver. Elle entrou
para o quarto e poz-se a dansar batendo num tambor e dizendo umas coisas na lingua
delle”.432 Segundo a mulher, sua irmã foi curada, e ela continuou relatando os
“milagres” de Alabá, que iam desde retirar um sapo da barriga de uma mulher, vítima
de feitiço, até uma cobra da barriga de um homem, igualmente vítima de feitiçaria.
Finalmente, indicou o número certo da casa de Alabá, a de nº 174. Ao bater à porta de
Alabá, o jornalista foi recepcionado por “uma negra immensa, grossa, de rosto reluzente
como se acabasse de ser engraxado”.433 Enfim, veio Alabá atendê-lo, “é um africano,
retinto, colossal e obeso”. O “feiticeiro” mostrou porque foi descrito, pela Gazeta de
Noticias, como “sabichão” e não acreditou na doença contada pelo jornalista;
argumentou que esse estaria usando “falsamento”, para fazer a consulta. Olhando com
desconfiança respondeu: “Eu não cura ninguém. Eu não é feiticeiro. Quem disse que eu
curava?” Como o jornalista respondeu que fora informado por uma pessoa, Alabá
retorquiu: “Pois é mentira. Eu é vendedô de herva da Africa. Essa gente diz que eu
curadô p’r’eu sê preso. O senhô não é da policia?”434
Mesmo com a insistência do jornalista para apenas uma consulta e de ter
afirmado não ser da polícia, não houve jeito de convencer Alabá. Ainda assim a matéria
foi publicada com o título de: As grosseiras mystificações com que se illudem os
ingenuos. O feiticeiro- João Labá.435 Entretanto, os “milagres” atribuídos pela vizinha a
Alabá faziam parte de um “repertório” de práticas, muito usadas pelos “feiticeiros”, de
“retirar” objetos e animais do corpo de um “enfeitiçado”. Yvonne Maggie analisou o
episódio de um assassinato, ocorrido no interior da Bahia, em que o réu afirmou ter
matado “porque, doutor, eu iria morrer como um sapo seco. O homem, um feiticeiro
danado, ia me matar assim”.436 Maggie conclui que o caso confirma sua hipótese de que
a crença no feitiço era central na vida cotidiana. É evidente que a fé poderia possibilitar
uma melhora no estado do paciente, fazendo crescer o prestígio do “feiticeiro”.
Vagalume, em seus artigos, afirmava que, no Rio de Janeiro, havia os alufás, os
“Paes de Santo” e os “paes de santo”. Entre os “Paes de Santo”, com letra maiúscula,
Cypriano Abedé era “Magestade”. A notoriedade de Abedé, além de rivalidades, lhe

432
A Noite, Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1914, p.1.
433
Ibidem.
434
Ibidem.
435
Ibidem.
436
MAGGIE, Yvonne. O feitiço da antropologia: uma homenagem a Vivaldo Costa Lima. Revista Pós
Ciências Sociais, v.4, n.7, p.2 jan/jun 2007.

130
trazia conpensações financeiras: de um cliente, chegou a receber um cheque de 20.000
$000 por um “trabalho” bem sucedido; também possibilitava apoio contra as
perseguições da polícia, o que permitiu oficializar o “Culto Africano” por ele criado.
Abedé tem uma sociedade perfeitamente organizada, com directoria
composta de pessoas idoneas licenciadas e com estatutos registrados e
archivados na Repartição Central de Policia.
Os seus “candomblés” são rigorosamente feitos dentro do ritual africano. 437

O fato de o soberano Abedé ter criado um “culto africano” e de “seus


‘candomblés’ serem rigorosamente feitos dentro do ritual africano” reforçam a tese,
desenvolvida neste estudo, de que os praticantes dos cultos legitimavam suas práticas
religiosas através de sua pretensa ligação com a África. No Diário Oficial da União,
Cypriano publicou seu estatuto, que, até este estudo, permaneceu inédito.
Sociedades civis
Culto Africano
Extracto dos estatutos para efeitos da lei n. 173 de 10 de setembro.
Art. 1º O Culto Africano, fundado por Cypriano Abedé, do Rio de Janeiro, a
23 de abril de 1893, na cidade de S. Sebastião, Capital Federal dos Estados
Unidos do Brazil, onde terá sua sede, é uma associação de religião
fetichismo, constituida de numero ilimitado de irmãos de ambos os sexos, e
terá os seguintes fins:
1º-Estudar e praticar o Fetichismo segundo o rito adoptado pela maior parte
dos habitantes da Africa, realizando sessões e funcções, fazendo preces,
serviços religiosos, entoando canticos sagrados acompanhados ou não de
instrumentos.
2º-Dar assistencia moral e espiritual aos necessitados na medida de suas
forças.
3º-Praticar a caridade por todos os meios moraes e materiais ao seu alcance.
4º-Procurar conhecer os problemas para minorar os males individuais e obter
na terra a felicidade, paz e prosperidade.
5º- Instituir um templo de religião Fetichista.
6º- Desenvolver o Feitichismo e unir os feitichista para o seu bem estar
moral, social e individual.
Art. 2º. O tempo de duração do Culto Africano será indeterminado.
Art. 3º- O Culto Africano será administrado e representado activa e
passivamente em juizo e em suas relações para com terceiros pelo ministro.
Art.4º- A administração do Culto Africano compor-se-há dos seguintes
membros: ministro, secretário, zelador e vedor, que serão, os três ultimos,
eleitos para servirem por dous annos, e o primeiro será sempre o fundador do
culto.
Art.5º- O fundo do Culto será constituido das constribuições dos irmãos,
benefícios, esmolas e quasquer donativos deverá ser aplicado nas despezas
provenientes dos fins do Culto.
Art.6- Os membros ou irmãos não respondem subsidiariamente pelas
obrigações que a directoria ou representante legal do Culto contrahir expressa
ou intencionalmente em nome deste.
Rio de Janeiro, 19 de junho de 1913.
Cipriano Manoel Abedé, fundador e ministro do Culto.438

437
Critica, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1929, p.6
438
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 21 de junho de 1913, seção 1, p. 82.

131
Embora tenha sido publicado em 1913, é interessante observar que a data da
fundação, que consta no Estatuto, é 1893. Provavelmente, o documento foi criado após
a denúncia de 1892; mesmo assim, sua casa foi invadida em 1896. Pode ser, no entanto,
que o líder religioso tenha colocado uma data bastante anterior de criação do culto. Pelo
Estatuto, Cypriano Abedé procurou garantir, para si, o controle sobre a instituição. O
cargo de ministro seria exercido “sempre” pelo fundador, e os demais tinham duração
de dois anos. Entretanto, um aspecto sobressai nos objetivos do culto: declarar a prática
do fetichismo o segundo rito adotado pela maior parte dos habitantes da África. Era o
reconhecimento de uma prática religiosa, perseguida pelas autoridades, publicada no
Diário Oficial da União e, principalmente, reforçava a estreita ligação com a
africanidade, o que foi ratificado, quando o secretário do Culto Africano, em resposta a
uma matéria do Época, afirmou que Abedé havia residido 42 anos na África. Cypriano
mandou publicar vários anúncios do Culto Africano. No Correio da Manhã, foram 13,
de junho de 1919 a 20 de agosto de 1919:
Culto Africano
De Sciencias occultas, constituido de accordo com as leis brasileiras.
Rua João Caetano n. 69.439

O jornal A Epoca destacou:


Culto Africano
Todos os males que afligem à humanidade são, em sua maioria, provocados
por influencias occultas.
O Culto Africano, que se dedica especialmente no estudo dessas influencias,
está habilitado a proporcionar a todos que soffrem, moral e materialmente,
allivio a seus males.
O Secretario
A. Martins.440

O culto criado e oficializado por Cypriano Abedé tinha reuniões e convocações


feitas também através de jornais:
Culto Africano
De ordem do irmão ministro convido a todos os irmãos a comparecerem no
dia 13 do corrente, ás 15 horas, para uma reunião particular, na nova sede da
irmandade, à rua João Caetano n. 69.
O secretario
A. Martins.441

Na convocação para reunião na rua João Caetano, na qual Cypriano é chamado


de irmão ministro, observa-se a ênfase em uma estrutura de culto que procura dissociar-
se das chamadas “feitiçarias”, tão perseguidas e das quais ele próprio era acusado.
439
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1919 p.11.
440
A Época, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1918, p.7.
441
A Época, Rio de Janeiro, 12 de março de 1918, p.7.

132
Entretanto, isso não passava despercebido e foi explicitado no mesmo jornal em que
saíram as convocações das reuniões:
O Culto Africano
Veio hontem á nossa redacção o sr. Antonio Martins, secretario da
“Irmandade do Culto Africano”, pedir-nos a rectificação de uma reportagem
a respeito por nós feita.
Disse-nos o sr. Martins que o sr. Cypriano Manoel Abedé, ministro do “Culto
Africano”, é um cidadão brazileiro, classificado, com 42 annos de residencia
na Africa, fetichista, sim, adepto das sciencias occultas, mas não feiticeiro,
como se quer fazer crer.
No “Culto Africano” não se explora a ninguem, como podem attestar quantos
lá tem ido, pois é uma sociedade constituida e licenciada pela Polícia e que
funciona a portas abertas. È uma associação que se rege por um estatuto
publicado no “Diario Oficial.”442

A matéria que tanto provocou a revolta dos integrantes do Culto Africano


denunciava a grande proliferação das crendices na cidade e chamava Abedé de
feiticeiro:
O RIO FOCO DE CURANDEIROS E FETICHISTAS
A credulidade popular e os males della decorrentes
Os processos de cura envenenan as victimas dos feiticeiros.
Os reformadores trabalham e trabalharão ainda por muitos lustros, sem que,
entretanto consigam fazer desaparecer certos habitos e costumes
remanescentes do Brazil Colonial.
A crendice fetichista é um deles. Levantam-se, ás centenas, escolas,
academias, templos christãos, e a religião selvagem ha de imperar por muito
tempo ainda no espirito inculto de várias classes de nossa sociedade.
Não raro os jornaes trazem vasto noticiario a respeito das exploarações
praticadas pelos fetichistas e feiticeiros outros, que vão alliciando, torturando,
propinando beberagens e fomentações de drogas desconhecidas às suas
victimas, com o fim de afugentar espiritos malignos e fazer curas milagrosas.
Em verdade, somos um povo suggestionavel, que acredita no sobrenatural, e
dahi o sentirmo-nos attrahidos às superstições, embora grosseiras, aceitando
como possiveis os “milagres” de quanto explorador se propõe a nos illudir.
Aqui mesmo, em plena Capital Federal, impera tranquilamente a feitiçaria,
em quasi todos os bairros.
E vem a proposito a reportagem abaixo.
Parece que os leitores já ouviram falar algum dia dos desastrados effeitos dos
olhos maos, que, uma vez fitos sobre qualquer coisa, objecto ou pessoa, tem a
propriedade de tudo mudar. Si por acaso se volvem para uma arvore sã e
cheia de vida, esta definha e morre; si se voltam para qualquer vivente feliz e
cheio de boa renda, os negocios atrazam-se e dentro de pouco tempo está o
mortal transformado na mais infeliz das creaturas.
Tudo isto são effeitos – dizem os credulos- dos maos olhados, tão temidos de
tanta gente.
Ha feiticeiros credulos por indole e outros que não creem nas proprias
feitiçaris, praticadas por exploração.
Meyer, Encantado, Engenho Novo, confins de Cascadura, Realengo etc... são
os logares mais habitados por essa praga de feiticeiros e curandeiros.
A uma dessas choupanas de feiticeiros fomos hontem e ali encontramos, em
tratamento de “olhado”, uma mulher do povo, inteiramente convicta das
vantagens do tratamento a que se submetia.
- Eis, meu senhor, um dos symptomas do “olhado”- disse-nos a velha
curandeira, mostrando a sua cliente que bocejava constantemente.

442
A Época, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1918, p.4.

133
E a feiticeira, sustentando tres folhas de arruda, planta predilecta para tal fim,
e, sem mais nos prestar attenção, começou a pronunciar as palavras
sacramentaes:
Com dois te botaram, com cinco eu te tiro, em louvor das cinco Chagas de
Nosso Senhor Jesus Christo. Se te botaram na cabeça Jesus Christo te tira;
nos olhos, a Virgem de Luz; na bocca, Santo Ignacio te defende; nas costas
Jesus Sacramentado. Com dois te botaram, com cinco te tiro. Amem”
Essas phrases são reproduzisas tres vezes, findas as quaes o cliente paga uma
certa quantia e sae, combinando novas visitas.
Dispunhamo-nos a abandonar o antro, quando entrou outra mulher, com
erupção na pelle.
- Misericordia! “cobreiro de lagartixa”! Onde apanhaste isto, creatura?
- na fonte, minha senhora.
-Anda, senta-te aqui e vem rezar isso.
De uma lata pequena, cheia de vinagre, a curandeira retirou tres ramos de
vassourinha, começando a açoitar a mão da infeliz credula, com as seguintes
e sacramentadas palavras:
-“Sae-te daqui, ‘cobreiro’ maldito, que a Cruz de Christo vae sobre ti. Ave
Maria”
E como a velha curandeira, ha por ahi fora dezenas e dezenas de exploradores
da mesma natureza; uns, então, verdadeiras sangue-sugas da bolsa do incauto
e, além disso, perigosissimos, porque propinan beberagens e quanta droga
inventam.
De lastimar, e muito, é que a credulidade se estende até as altas camadas
sociaes, pois não raro procuram receitas e remedios para os males do corpo e
do espirito.
Muito conhecido da policia e do meio superticioso do Rio é um tal Antonio
Lalacó Adioei, chefe supremo dos fetichistas e, que tem a sua cabana ora
aqui, ora ali.
Adioei é africano, traz as faces caracteristicamente talhadas a longos cortes
paralelos e tem o corpo exquisitamente cheio de tatuagens. Não fala o
portuguez, quasi.
João Samin e Cypriano Abedé são dois outros feiticeiros conhecidos e que
vivem exclusivamente de explorar os credulos inexperientes.
Francisco Abu’Aguidá443, depois de ter feito fortuna explorando a feitiçaria
na Bahia, installou-se aqui na Capital, onde a policia o perseguiu por algum
tempo. Abu’Aguidá embarcou então, para as Costas d’Africa.
Aqui fica a nossa reportagem como um aviso de precaução aos credulos.444

Esta densa e longa denúncia traz informações interessantes sobre determinados


cenários e experiências religiosas cariocas no início do século XX e uma raríssima
referência a Antonio Lalacó Adi-Oiê. Em matéria publicada pela Critica, o tal famoso
“feiticeiro” da rua General Pedra, que era consultado inclusive por seus pares, é descrito
como um homem de estatura regular, cabelo cortado rente, pouco bigode, tinha nas
faces marcas tribais, trajava-se bem, usava boas joias e em casa não abandonava o gorro
encarnado, mas, na rua, usava “chapéu chile”.
Africano legitimo, com 62 anos, apezar de estar ha muito tempo no Rio,
falava ainda muito atrapalhado e quem não estivesse acostumado, quasi não o

443
O nome de Francisco Aguidá consta no Correio da Manhã, Rio de Janeiro (9 de agosto de 1911, p. 5)
e do Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1911, p.5), em relações de pessoas que tiveram
requerimentos atendidos pelo dr. Paulo de Frontin, mas não informam o teor do requerimento.
444
A Época, Rio de Janeiro, 10 de março de 1918, p. 3.

134
entendia. Jogava os búzios com admirável perfeição e era este o seu maior
trabalho e para o que quasi toda a gente o consultava.
Era um tanto rispido, pouco affeito a delicadeza e de uma franqueza tal que
às vezes tocava as raias da estupidez, pois, também era dotado de um genio
irascível e na sua língua proferia os palavrões que lhe viessem à bocca. 445

Adi-Oiê gostava de bebida, apostava no “jogo do bicho” e ganhou por duas


vezes prêmio na loteria. Pelos seus feitiços cobrava caro, chegando a possuir depositado
em banco 70.000$000. Afirmava: “Fitiço não se faze de graça. Quem tem pôco dá pôco,
quem tem munto dá munto. Adi Oiê joga, faze fitiço, masi qué qui paga”.446O africano
partiu para a Costa d’África, acompanhado de sua mulher e, ao tentar retornar ao Brasil,
foi impedido pelas autoridades, que alegaram sua idade como motivo da proibição.
Como a diferença de data entre as duas matérias é de 10 anos e considerando as
referências de A Epoca, acredito que este africano tenha partido pós 1918.
A matéria de A Epoca levanta ainda uma questão bastante noticiada: a morte de
pessoas atribuídas às práticas de curandeiros. Ao enfatizar como os “curandeiros” e
“feiticeiros” estavam espalhados por toda a cidade, estabelece-se diferença entre os
dois. Ao mostrar a ação de uma “curandeira”, registra uma rezadeira, como eram
popularmente chamadas, e diferencia sua prática do ritual dos “feiticeiros”, em geral
africanos ou tidos como tal. Entretanto, estabelecer diferenças entre as duas práticas era,
na maioria das vezes, bastante difícil.
Nas primeiras décadas do regime republicano, as denúncias ainda destacavam as
ervas e suas indicações “medicinais” como uma prova de “feitiçaria”. Na ação da “velha
rezadeira”, descrita no artigo O Rio Foco de Curandeiros e Fetichista,447 há
semelhanças com as práticas dos “feiticeiros” com relação ao uso das ervas, presentes
desde os inhamasuros448 africanos até os “paes de santo”. Cypriano Abedé era um
especialista em ervas e nas suas inúmeras utilidades. Agenor Miranda, que teve parte de
sua iniciação feita pelo próprio Abedé, garantiu: “Ele foi um grande babalorixá e um
grande babalaô, além de ter sido um grande babalossaim e conhecedor profundo da
folhas”.449 O babalossaim ou Olosanyn, sacerdote de Osanyn, era encarregado das
ervas-folhas sagradas. Em 1896, conforme visto anteriormente, Abedé teve uma sessão

445
Critica, Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 1928, p. 6. Mantida a grafia original.
446
Ibidem.
447
A Época, Rio de Janeiro, 10 de março de 1918, p.3.
448
Na África Central, os curandeiros/feiticeiros eram denominados “inhamasuros”. MONTEIRO, José
Maria de Souza. Diccionário Geographico das Provincias Portuguezas no Ultramar. Lisboa: Typ.
Lisboense,1850, p.196.
449
Entrevista com Agenor Miranda. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro,
n. 25, 1997, p. 211-215, p. 211.

135
interrompida pela polícia e, ao receitar uma “surra de ervas”, aplicava os rituais de um
babalossaim :
Feitiçaria
Surra nos clientes
Curativo a paó
Os leitores já estão, de certo, fartos de ler quasi que diariamente, casos
exquisitos de feitiçaria, cartomancia e spiritismo, coisas que nesta cidade se
desemvolvem com a mesma facilidade que uma epidemia.
As autoridades policiaes dão buscas e mais buscas nas espeluncas onde se
excercem aquelles actos, e não é a primeira vez que encontram no interior das
mesmas, pessoas da nossa melhor sociedade, de instrucção apurada, que sem
as saber porque, alli vão consultar os seus oráculos, submetendo-se com
resignação e paciencia evangelica às suas mais extravagantes prescrições.
Não é a primeira vez também que tem sahido dessas casas pessoas que vão
dahi em caminho do hospício ou de uma casa de saúde.
Pois, nem mesmo com esses exemplos, feiticeiros, mágicos e respectivos
clientes se emendam, e parece até que quantos mais casos destes apparecem,
mais certas pessoas frequentam esses antros, sujeitando-se a todos os
vexames, inclusive o de serem encontrados como no caso presente, alli, pela
autoridade policial.
Temos hoje mais uma casa de sessões de feitiçaria, que foi cercada pela
polícia. O delegado da 10ª circunscripção teve denúncias de que no prédio da
rua d. Joaquina, n.6, na Praia Formosa, se praticavam actos de feitiçaria e que
alli costumava ir grande quantidade de clientes.
À vista d’isto aquella autoridade dirigio-se acompanhado de vários de seus
agentes ao local indicado ahi chegando, encontrou no interior da referida casa
grande quantidade de pessoas que assistiam a uma reunião, presidida por
Cypriano Manuel Esteves, o feiticeiro.450

Os velhos elementos que constituíam a prova da feitiçaria estavam presentes no


“antro” de Abedé e no ritual de cura que ele propunha à consulente: “a senhora fica boa,
não há dúvida, mas é preciso sujeitar-se ao tratamento: uma surra applicada com certas
hervas”.451 Nos diferentes cultos de matriz africana, realizava-se rituais de “descarrego”,
com ervas escolhidas em função dos objetivos e necessidades. O ministrante do ritual
“bate” com elas no corpo da pessoa, enquanto vai pronunciando determinadas palavras.
No final do século XIX, quando o bispo Nery descreveu o ritual da Cabula, no Espírito
Santo, destacou como o ele era feito nas matas. As forças da natureza, existentes nas
ervas, nas matas e nas cachoeiras, eram e ainda são fundamentais nessas religiosidades.
O título de babalossain usado por Abedé era dado ao sacerdote do candomblé com
responsabilidade na obtenção, preparo e manipulação das ervas para os rituais. A
relação do babalossain com as folhas é profunda e intrínseca. Serra observa que os
conhecimentos desses sacerdotes sobre as ervas — “tem de capacitar-se a falar com elas

450
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de abril de 1896, p. 2.
451
Ibidem.

136
e através delas”452— abrange desde a coleta, as fórmulas cuja recitação adequada pode
tornar-se indispensável à segurança do buscador, e à eficácia do rito. O autor esclarece
que “Às vezes, a folha não se deixa levar senão pelo cântico. E quem entra no mato para
este fim, se não souber rezas apropriadas, pode ver-se literalmente perdido, enganado
pelo mistério das plantas: negativamente encantado”.453
O conhecimento das folhas implicava também no conhecimento do melhor
horário para colheita, as misturas possíveis e o encantamento na hora de utilizá-las, que
seria a maneira de fazer Ossain falar através das folhas. Serra, baseado em Martinelli,
comenta: “É Ossain quem faz ‘abrir a fala’ e também ao poder de suas folhas se atribui
à capacidade que assume o orixá de um noviço de identificar-se, declarando seu próprio
nome. Como diz o povo do candomblé, é graças a Ossain que ‘a iaô dá o nome’”.454 A
maioria dos casos denunciados no Rio de Janeiro, especialmente no período estudado,
enfatizam a existência de rituais e a presença constante de ervas entre os objetos
apreendidos nas casas de dar fortuna, candomblés ou macumbas.
A relação com a natureza era e é fundamental no candomblé, na umbanda, no
omolocô e na cabula. Agenor Miranda fez uma descrição dos espaços religiosos,
destacando que, no geral, as roças são compostas por dois espaços bem definidos: a área
construída e o terreiro. A área construída é ocupada pelos ambientes públicos —sala,
barracão, banheiros — e privados — quartos de santo e camarinhas. O espaço não
edificado — terreiro —, de forma mais ou menos imaginária, representa a “mata”.
Rocha destaca que, “nessa mata, que rememora o passado africano, estão as folhas
usadas nos rituais”.455 O vínculo com as folhas, raízes, os rituais nas matas e cachoeiras
é essencial nas religiões afro-brasileiras. As ervas são a base do “amassi”, mistura de
água com as folhas determinadas pelo orixá de cabeça de cada iniciado, empregado nos
rituais de feitura. Verger, analisando o significado das plantas para os cultos dos orixás,
destaca sobre Osanyin: “Nehuma cerimônia pode ser realizada sem seu concurso. É
detentor do asé (força, poder, vitalidade) de que nem mesmo os deuses podem privar-se.
Esse asé encontra-se em algumas folhas e em algumas ervas”.456

452
SERRA, O. J. T (Org.). O mundo das folhas. Salvador: Universidade Estadual de Feira de Santana;
Editora da Universidade Federal da Bahia, 2002. v. 01. p.4.
453
Idem, ibidem.
454
Idem, ibidem, p. 14.
455
ROCHA, Agenor Miranda. Os candomblés antigos do Rio de Janeiro – as nações Kêtu: origens, ritos
e crenças, Rio de Janeiro: Mauad, 2000, p.31.
456
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e
na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: 2ªed. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
2000, p.227.

137
João Reis, abordando o calundu, no século XVIII, comentou a importância das
folhas no preparo de ebós, em ritos de iniciação e limpeza do corpo, na medicina afro e
no assentamento de altares de entidades. Reis cita que, um sacerdote vodu daomeano
comentou com Herskovits: “se você soubesse a história de todas as folhas da floresta,
saberia tudo que há para saber sobre os deuses do Daomé.”457
A proeminência do grupo de “baianos-minas” no Rio de Janeiro, então Distrito
Federal, nas primeiras décadas do século XX, era um estímulo para que outros líderes
religiosos buscassem a cidade. Em 1927, na Igreja do Senhor do Bonfim, em São
Cristóvão, foi realizada uma missa de ação de graças:
Procopio Xavier de Souza convida a todas as pessoas de sua amizade
a assistir a missa em acção de graças que faz celebrar amanhã, 18 do corrente,
às 9 ½ horas, na igreja do Senhor do Bonfim, à praia de São Christovão, pelo
bom exito que tiveram as festas religiosas em sua residencia, à rua Nabuco
Freitas, 94, ficando penhoradissimo a todos que comparecerem a esse acto. 458

Cabe destacar que Procópio Xavier de Souza era o famoso “babalaô” baiano
Procópio de Ogunjá. Sua presença no Rio de Janeiro — numa época em que grandes
nomes comandavam a “Pequena África” na área central da cidade — é bastante
significativa, indicando vínculos e conexões. O fato de Ogunjá ter mandado celebrar a
missa em agradecimento ao êxito das festas religiosas realizadas na sua residência, no
bairro do Santo Cristo, relembra a perseguição que havia sofrido, no início da década de
1920, com a invasão policial em seu candomblé, no bairro do Matutu Grande, na Bahia.
A iniciação de Ogunjá como rodante foi comandada pela africana Marcolina da
Cidade de Palha que, em 1905, tinha um candomblé no 2º Distrito de Santo Antonio.459
Marcolina não era bem vista pelas principais casas do candomblé na Bahia, devido ao
preceito, naquele período, da não iniciação de homens como elegun (rodantes).
Procópio, que também era grande conhecedor do uso das ervas, teria feito a iniciação
religiosa de Jorge Amado no seu Ilê Ogunjá, em Salvador. No Rio de Janeiro, o babalaô
baiano também deixou uma descendência religiosa: Iyá Davina que, iniciada por Ogunjá
em 1910, veio para o Rio de Janeiro , na década de 1920. Davina, cuja casa no bairro da

457
REIS, João José. Magia jeje na Bahia. A invasão do calundu do Pasto da Cachoeira, 1785. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 57-81, março/agosto de 1988, p. 74.
458
A Noite, Rio de Janeiro, de junho de 1927, p. 7.
459
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ªed., São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed.
Universidade de Brasília, 1982. p. 248.

138
Saúde era considerada ponto de encontro dos baianos, também esteve ligada a João
Alabá e, alguns anos mais tarde, transferiu-se para a Baixada Fluminense.460
Porém, a “Pequena África” de Abedé ainda comportava outras magias: o
misterioso mundo dos alufás. Agenor Miranda, ao ser perguntado sobre o que havia de
coincidente entre a iniciação dos mussurumis e o culto dos orixás, respondeu: “Eu não
acho que haja nenhuma coinscidência com o culto dos orixás. É um outro tipo de
iniciação. Eles eram muçulmanos”.461

A MAGIA DOS ALUFÁS NO RIO DE JANEIRO

Em 1869, o conde de Gobineau assumiu o posto de ministro da França no Brasil.


Sua estada na Corte de D. Pedro II foi marcada pela grande aversão que demonstrou em
relação ao Brasil e seus habitantes: “esta estada no Brasil foi de longe a mais dura de
todas”.462 Gobineau, que foi considerado um teórico do racismo ao escrever Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas,463 fez vários relatos sobre a presença africana
no Rio de Janeiro, como no caso dos muçulmanos:
A maior parte desses Minas, se não todos, são Cristãos na aparência, e
Muçulmanos de fato; mas como esta religião não seria tolerada no Brasil, eles
disfarçam, e a maioria é batizada com nomes extraídos dos calendários. Apesar
desta fachada, pude verificar que devem conservar fielmente as opiniões
trazidas da África, e as transmitem com zelo, já que estudam árabe de maneira
bastante completa para compreender, pelo menos por alto, o Alcorão. Este livro
é encontrado no Rio nos livreiros franceses Fauchon e Dupont, que mandam
buscar da Europa exemplares e os vendem ao preço de 15 a 25 mil réis, ou seja,
36 a 40 francos. Embora muitos pobres, os escravos mostram-se dispostos aos
maiores sacrifícios para possuírem o volume. Para isso, contraem dívidas,
levando às vezes, um ano para pagar ao vendedor. Cerca de uma centena de
exemplares do Alcorão é vendida anualmente, acompanhada de algumas
gramáticas árabes, redigidas em francês. É sem dúvida curioso ver uma
população africana recorrer a uma língua europeia para chegar a conhecer seu
livro sagrado.464

460
A casa fundada por Iyá Davina, na Baixada Fluminense, é atualmente dirigida por sua neta e, em 2009,
passou a ser Ponto de Cultura. Foi criado, no terreiro, o Memorial Iyá Davina.
461
ROCHA, Agenor Miranda. Entrevista com Agenor Miranda. Revista do IPHAN, n. 28, p.211-215,
1997, p. 212.
462
RAEDERS, George. O inimigo cordial do Brasil. O conde de Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988. p. 16.
463
Gobineau, homem que estava convicto da inferioridade e malefícios que a mestiçagem provocava nos
seres humanos, esteve no Brasil, de 1869 a 1870, e seus escritos foram extremamente preconceituosos.
No seu Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1853), afirmou que a raça branca não aparece
nunca nos estágios primitivos em que estariam as outras duas (raças negra e amarela) e que ela surge,
desde o primeiro dia, relativamente cultivada e dotada dos elementos mais importantes para desenvolver
um estado de superioridade e diferentes formas de civilização.
464
Relatório enviado por Gobineau ao Ministro das Relações Exteriores da França. RAEDERS, George.
O inimigo cordial do Brasil. O conde de Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.122.

139
Na Corte, os “pretos minas” eram alvo de desconfianças, sendo as acusações
contra eles eram constantes. A rebelião escrava ocorrida em Salvador, em 1835,
liderada por africanos islamizados, produziu medos, por todo o Império.465 Verger
destacou que ocorreram reações profundas e o temor de que o país fosse dominado por
uma população negra.466 De maneira geral, os “minas-baianos” passaram a ser
associados aos africanos rebeldes. A visão era de, além de “feiticeiros”, estariam
envolvidos com o “roubo” de escravos. Nos anúncios de fugas de cativos havia alusões
de que os fugitivos estavam “acoutado” em casa de pretos minas:
Sabe-se que , pela mor parte, os pretos minas são os agentes dos
ladrões de escravos, que tanto prejuízos tem cauzado ao paiz, diz-se
que há na policia da Corte uma relação de nomes d’aquelles que são
reconhecidos taes. O sr. Chefe de policia mandou requisitar dos juízes
de paz os nomes dos pretos minas residentes em seus districtos, para
que combinado com os notados na policia, podesse limpar a cidade
d’esses agentes”467

Com relação aos africanos islamizados havia uma preocupação acentuada. O


fato de, na revolta baiana, terem sido eles os líderes, presente na memória das
autoridades e da população, justificaria a vigilância sobre o grupo. João José Reis,
analisando a aquela revolta, afirma que participaram cerca de seiscentos combatentes,
“que deixaram a cidade em polvorosa por várias horas”. Como observa o autor, não
sabemos detalhes do que pretendiam se fossem vitoriosos, mas seria provavelmente
“uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos, talvez um
califado ortodoxo ou um Estado no qual o paganismo predominante entre os africanos
fosse tolerado”.468 Reis ressalta que, “de toda maneira, não foi um levante sem direção,
um espasmo social produto do desespero, mas um movimento dirigido à tomada do
poder”.469 Essa atmosfera não foi esquecida, décadas depois, pelas autoridades cariocas.
Repartição de Policia
Associação dos pretos minas
Illm. e Exm. Sr- Constando já ha algum tempo à policia, que alguns pretos
minas, residentes nesta cidade, se reunião em associações secretas, onde, sob
impenetravel mysterio, havião praticas e ritos que se tornavão suspeitos,

465
De acordo com Reis, os muçulmanos “eram principalmente de origem iorubá, chamados nagôs na
Bahia. A predominância nagô foi traduzida no nome dado ao movimento: Revolta dos Malês – o termo
malê deriva de imale, que significa muçulmano em iorubá.” Reis, João José. O sonho de uma Bahia
Muçulmana. Revista de História, 13 de março de 2012, p.1.
466
VERGER, Pierre. Relations commerciales et culturelles entre le Brésil et le Golfe du Bénin. Journal de
la Société dês Américaniste, Tomo 58, p. 31-56, 1969.
467
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1840, p.2.
468
REIS, João José. O sonho da Bahia muçulmana. Disponível em:
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/dossie-imigracao-italiana/o-sonho-da-bahia-muçulmana>.
Acesso em 10 de março de 2014.
469
Idem, ibidem.

140
correspondendo-se entre si por escripturas de cifras;e constando ao mesmo
tempo que os pretos da mesma nação, existentes na Bahia, se correspondião
com elles, assim como os de S. Paulo e Minas; ordenei ao 2º delegado de
policia, e ao subdelegado de S. José, que procedesse à busca nas casas
suspeitas, e apprehendessem, não só os imdividuos, mas tudo quanto de
suspeito encontrassem, e com effeito, ao amanhecer do dia 20 do passado, foi
ella verificada, apprehendendo-se uma infinidade de papéis escriptos com
differentes tintas e em caracteres desconhecidos, alguns livros também
manuscriptos, e sendo chamados peritos para traduzirem, interpretarem ou
decifrarem taes escripturas, declararão que n’ellas não se continham mais do
que orações, em grande parte tiradas do Koran, em arabe espurio e enxertado
de palavras da língua Mina-Malê; interroguei aos presos, e de suas respostas
vim no conhecimento de que com effeito as suas praticas e associações se
referião, a cousas religiosas. Em consequencia pois, sem que lhes restituisse
os papeis e livros que lhes forão achados; mandei-os pôr hoje em liberdade,
porque como autoridade criminal não achei materia para tê-los em prisão e
processa-los. Entretanto entendo que taes pretos devem continuar a serem
vigiados pela policia; elles são indubitavelmente suspeitos, porque embora o
fim ostensivo de suas praticas, associações, ritos, etc. seja o simples exercicio
de uma religião que lei nenhuma prohibe, sendo praticada particularmente;
todavia é muito natural que o espírito de associação religioso os leve mais
adiante, e que os proselitos que ella for fazendo, fanatisados por seus
principios, se aproveitem d’essa religião para fazer valer e medrar as ideas
contra a escravisação, pois que vejo que tudo quanto agora foi encontrado nas
buscas que se derão, foi justamente a que na Bahia também se encontrou
quando houve a insurreição dos escravos em 1835. Deus guarde a V. Ex.
Secretaria de Policia da Corte, em 2 de dezembro de 1849 –Illm. e Exm. Sr.
Conselheiro Euzébio de Queiróz Coutinho Mattoso da Câmara, Ministro e
Secretario de Estado dos Negócios da Justiça- Antonio Simões da Silva,
Chefe de Policia da Corte.470

O que mais chamava a atenção eram as práticas religiosas desses africanos


islamizados. As desconfianças em relação ao “mistério” que os envolvia tornava-os
objetos de constantes denúncias. Os alufás causavam estranhamento e a imprensa estava
atenta:
Chronica Diária
Ha tempos denúnciamos à policia que na rua da Carioca moravao alguns
pretos minas, que occupavão-se em feitiçarias e outras superstições, fazendo
disso um meio de vida.
O sr. subdelegado do Sacramento que desde esse tempo procura descobrir
esses mysterios, chegou hontem ao seu fim, na busca minuciosa que alli deu.
Encontrou muitos objectos curiosos, livros escriptos em caracteres arabes, e
cheios de pinturas arabescos de diversas cores.
Foi preso o chefe e mestre, que limita-se a dizer que os livros são de sua
terra, e nada significão de mao.
Moravão também na casa algumas pretas minas, companheiras do tal
pretinho.
Cumpre accrescentar que dentro dos livros achou-se um papel com o nome
de um individuo de maos costumes.
A autoridade trata de obter informações exactas e completas a respeito dessa
mysteriosa espelunca.471

470
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1849, p.2.
471
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1857, p. 1.

141
Na década de 1860, Agassiz analisou os detalhes que diferenciavam, na cidade
do Rio de Janeiro, “congos” e “minas”:
Os homens dessa raça são maometanos e conservam, segundo se diz, a sua
crença no Profeta, no meio das práticas da Igreja católica. Não me parecem tão
afáveis e comunicativos como os negros Congos; são pelo contrário bastante
altivos. Certa manhã, encontrei alguns deles almoçando depois do trabalho;
parei para falar com eles e ensaiei diferentes modos de entrar em conversação.
Lançaram-me um olhar frio e desconfiado, responderam secamente às minhas
perguntas e se sentiram visivelmente aliviados quando os deixei.”472

O padre Etienne Brazil,473 em seu longo texto sobre os malês, destaca que o
tráfico transatlântico importou da África Ocidental “levas de maometanos” que foram
distribuídas entre as três maiores cidades oitocentistas: Bahia, Rio de Janeiro e Recife.
Ainda segundo ele, tais africanos eram célebres por seus talismãs, suas práticas mágicas
e invocavam os aligenum474 apesar de o Alcorão proibir o exercício da magia e
fetichismo. Outro aspecto destacado é que nem todos os alcoranistas eram alufás —
doutores — todos, entretanto, se contentavam com o nome genérico de musulmis. De
acordo com Bastide, os sacerdotes muçulmanos eram chamados, no Rio de Janeiro, de
alufás e de musulmis, na Bahia.475 Contudo, entre as várias particularidades apontadas
em relação aos maometanos, uma é reconhecida como constante: o islamismo praticado
por eles estava mesclado com o fetichismo.
Achamo-nos em presença de um islamismo manchado de fetichismo e
esteiado no mysticismo. As misturas, em matéria de religião, são inevitaveis.
E nem o fanatismo alcoronista, siquer, é bastante para superar em força a
corrente irresístivel da influencia do meio. 476
Os Malês tem em grande apreço os patuas, pelo que seria um escandalo,
capaz de provocar as lamurias de Mafoma 477, sahir às ruas sem a poderosa tiá
(oração supersticiosa).478

Arthur Ramos, ao falar sobre os malês e a dificuldade de colher elementos sobre


eles, para uma etnografia religiosa, ressalta que o islamismo sofreu rápida
transformação entre as populações afro-brasileiras, o que teria contribuído não só para
dificultar a análise como para apressar seu desaparecimento. Outro detalhe destacado
por esse autor é a desconfiança e altivez dos musulmis, “conscios da sua superioridade

472
AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil (1865-1866). Brasília: Brasiliana, 2000. (Coleção O Brasil visto
por estrangeiros). p.103.
473
BRAZIL, Etienne Ignace. Os malês. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo LXXII, parte II, p.67-
126, 1909.
474
Segundo Etienne Brazil, Aligenum era uma espécie de demônio.
475
BASTIDE, Roger. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difusão
Europeia do livro; Edusp, 1974.
476
BRAZIL, Etienne Ignace. Os malês. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, Tomo LXXII, parte II, p.67-
126, 1909. p.77
477
Mafoma era como os cristãos chamavam o profeta Maomé.
478
BRAZIL, Etienne Ignace. Op. cit., p.76.

142
e, por isso mesmo, calados e reservados nas suas crenças”.479 Naturalmente, sabedores
dos riscos e estranhamento que os cercavam, tornaram-se mais arredios, o que,
provavelmente, contribuía ainda mais para a mística em torno deles. Também não
podemos deixar de levar em conta que determinados preceitos religiosos contribuíam
consideravelmente para o isolamento.
Segundo Paulo Daniel Farah, esteve no Rio de Janeiro, em 1866, Abdurrahman
al-Baghdádi, um líder religioso muçulmano. Dessa sua experiência em terras brasileiras,
existe um documento valiosíssimo – o único registro conhecido de um olhar árabe
muçulmano sobre o Brasil do século XIX. O autor enfatiza que a notícia da presença de
Al-Baghdádi no Brasil se espalhou, de boca em boca, pela comunidade muçulmana,
inclusive “por meio de informes escritos feitos por esses escravos letrados e logo
extrapolou os limites do Rio de Janeiro. Delegações vindas da Bahia e de Pernambuco
chegaram a viajar até a então capital”.480 Farah destaca que, no manuscrito, fica clara a
liderança de africanos muçulmanos nos movimentos antiescravistas e que, após as
rebeliões da primeira metade do século XIX, os escravos islamizados foram mais
reprimidos pelo Estado imperial em sua prática religiosa. “Era comum a intervenção da
polícia quando se reuniam, e por isso muitos decidiram esconder sua religião e evitar a
exposição pública durante as celebrações”.481
A aproximação dos alufás com outros cultos de matrizes africanas era comum.
Bastide ressalta que, tanto no Rio como na Bahia, os malês eram considerados mestres
da “magia negra”, e muitos deles viviam muito bem com os sortilégios que vendiam.
Segundo ele , tal magia era considerada extremamente eficaz e perigosa. Consistia na
crença de que maus espíritos desciam à terra para se vingarem, sendo eles invocados
pelo tracejamento de um círculo de pólvora, circundado com cigarros, bebidas,
pimentas, tabaco, galinhas etc. A pólvora era acesa e os espíritos desciam no momento
de sua explosão. Os dirigentes dessa linha de magia eram chamados de “Alufá”, “Pai
Alufá” ou “Tio Alufá”.482
Como já afirmei, as condições de tempo e espaço foram fundamentais para que
aspectos das religiosidades de “matrizes africanas” fossem “reinventados” por seus

479
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940. p. 82
480
FARAH, Paulo Daniel. Um imã nos trópicos. Revista de Historia da Biblioteca Nacional nº 33, de
junho de 2008. Disponível em <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/um-ima-nos-
tropicos>. Acesso: 24 de março de 2015
481
Idem, ibidem.
482
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das
interpenetrações de civilizações. Rio de Janeiro: Edusp, 1971. Vol. I.

143
praticantes. Retomando a noção de “tradição inventada” — de Hobsbawm e Ranger —
como práticas rituais ou simbólicas que inculcam valores e normas de comportamento
através da repetição, percebe-se que para os “alufás”, mesmo impregnados pelas
influências do fetichismo, havia uma essência islamizada que praticavam. Um elemento
fundamental, para os alufás e seus seguidores, era a importância que davam em possuir
o Alcorão.
Francisco Guimarães, o Vagalume, apresenta os alufás como seguidores de
princípios rígidos como: isolamento em determinados dias, horas específicas para
oração, prática de jejum, proibição do consumo de determinados alimentos. Sobre o
processo de trabalho dos afulás relata que:
Em geral trabalham com extracto e principalmente agua de colonia. Usam
sete signaes ou sete letras do alphabeto arabe que são dispostas sobre a
ardosia negra ou mesmo sobre um pedaço de papel.
O consulente escolhe uma letra e elles dizem algo sobre o motivo da
consulta. Na mesma ardosia espalham um punhado de areia. Desenham os
singnaes cabalisticos e a pessoa escolhe um, tantas vezes quantas lhe forem
ordenadas e isto com dedo medio.
Sobre cada letra escolhida elles procedem a um calalo pronunciando umas
palavras, em arabe de acordo com a religião musulmana - é um especie de
dialecto que nós não chegamos a entender.
Finda a primeira parte da consulta, o alufá começa a discorrer sobre o
passado, o presente e o futuro com uma precisão espantosa. 483

Segundo Guimarães, como uma continuação da primeira consulta, o consulente


voltaria em outro dia para buscar os preparativos que deveria seguir: “ aconselha um
banho da cabeça aos pés, lavagem somente da cabeça ou do corpo, com determinado
preparado, cuja base é sabão da Costa d’Africa”.484 Assim, na etapa seguinte o alufá
preparou um breve, “do qual o consulente nunca mais deverá se separar”.485
O Padre Etienne Brazil, definindo os “minas-muçulmanos”, como “inchados de
insulsa soberba”, destacou que eles preferiam morar em aglomerações pretas: “formam
desse modo umas como alfamas. Sirvam de exemplo, na Bahia, o Taboão e no Rio de
Janeiro, as das ruas de S. Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Nuncio, América etc”.486
Esse autor apontou transformações: “presentemente, a língua do Alcorão não é mais
483
Critica, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1929, p. 6.
484
O fato de líderes religiosos, africanos ou seus descendentes, associarem a venda de produtos a seus
“trabalhos” espirituais era relativamente comum. Martiniano Bonfim fazia viagens a Lagos “para vender
coral, lã grossa e fina e comprou pano-da-Costa para vender aqui”. “A ida à África de africanos libertos e
de seus filhos, pelos fins do século XIX, era, naquele tempo, um importante elemento legitimador de
prestígio e gerador de conhecimentos e poder econômico. Enquanto negociavam várias mercadorias
trazidas da Costa e levadas do Brasil, também, como hoje se diz, reciclavam o saber da tradição religiosa
aprendida com “os antigos”, nos terreiros da Bahia”. LIMA, Vivaldo da Costa. O candomblé da Bahia na
década de 1930. Estudos Avançados, v. 18, nº52, p. 201-221, 2004, p.207.
485
Critica, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1929, p. 6.
486
BRAZIL, Etienne Ignace. Os malês. Revista do IHGB, Tomo LXXII, parte II, p. 67-126, 1909, p.74.

144
entendida, nem pelos ‘imans’ ou marabutos siquer. Pelo que se torna necessário recorrer
as traduções em portuguez”.487 Padre Etienne acentua que a Livraria Laemmert, vendia,
por preço elevados, livros em árabe: “cumpre notar que os malês sabem usar as formas
ditas orientaes, bem como barbarescas ou mouriscas. Para transcreverem o Alcorão,
costumam empregar o K’lem, de canniço commumi (arundo donax) ou o canniço
chamado bambusia scriptoria”.488
A “sombra” da Revolta dos Malês, de 1835, ainda poderia estar presente — no Rio
de Janeiro — mesmo no final do século XIX quando o Rei Alufá, Manoel Balthazar, foi
preso. É importante lembrar que era um momento de discussão sobre as questões
escravistas e o papel hegemônico da Igreja Católica:
O Rei Alufá
É este o pseudonymo do africano Manoel Balthazar, rival de Cagliostro.
O sr. tenente commandante do 9º districto, tendo denúncias de que na casa n.
88 da rua da Imperatriz, onde mora il re, além de, em certos e determinados
dias, a visinhança ser incommodada pela algazarra que ahi se fazia, era esta
uma casa para a qual eram attrahidos os incautos na esperança de fortuna,
dirigiu-se a esse local, acompanhado pelo subdelegado, respectivo escrivão e
inspector Cancio.
Effectuada uma busca, hontem, ás 10 horas da noite, encontrou o que sempre
encontra em taes furnas-bugingangas, amuletos e tudo que convém à
exploração dos beocios.
Foram conduzidos para o xadrez, o dono da casa, os pretos minas Manoel
Jorge Domingos Bernardo, Vicente Ignácio Pereira de Carvalho, Pilatos José
Teixeira, nacionaes Custodio Hora da Silva, João Benedicto da Costa, João
Francisco Barbosa, o menor Frederico José Teixeira e o hespanhol Francisco
Pasquarello.
Encontrou-se em poder de Manoel Jorge Domingos Bernardo a quantia de
5$000, no de Pilatos José Teixeira a de 3$400 e no de Vicente Ignacio
Pereira de Carvalho um quinto de loteria n.5885.489

Segundo Brazil, “o summo sacerdote dos Malês” residia na Bahia e era ele que
determinava a data do assumy — o jejum anual — e das festas: “elle envia imans para
regerem os fieis do Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco”..490 Talvez esse fosse o caso
de Manoel Balthazar, o Rei Alufá do Rio de Janeiro. Entretanto, poderia significar uma
estadia temporária ou uma fuga das perseguições ocorridas na Bahia.491

487
BRAZIL, Etienne Ignace. Os malês. Revista do IHGB, Tomo LXXII, parte II, p. 67-126, 1909, p.74.
488
Idem, ibidem, p.75
489
Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1883, p. 2. Na matéria da Gazeta da Tarde,
provavelmente por erro de digitação, o nome Manoel foi anexado ao de Jorge Domingos Bernardo. O
jornal Correio Paulistano, que reproduziu a noticia, na edição de 18 de dezembro de 1883, p. 1, apresenta
os dois nomes, Manoel e Jorge Domingos Bernardo, separados por vírgula.
490
BRAZIL, Etienne. Op. cit., p. 83.
491
É importante considerar que a revolta dos malês ocorreu, na Bahia, em janeiro de 1835. Em junho de
1835 foi promulgada a lei nº 4. O art. 1º determinava pena de morte para os escravizados que matassem
seus senhores, parentes e feitores. Esta lei só foi revogada em 1886.

145
Na verdade, nessa comunidade “muçulmana” que habitava as ruas S. Diogo,
Barão de S. Felix e adjacências, onde “negros dessa fé tiveram uma mesquita”,492 uma
religiosidade não inviabilizava as outras. A frequência às igrejas católicas, inclusive
fazendo parte de irmandades, associadas a outras práticas religiosas não católicas,
poderia ser encarada como mais uma forma de aproximação do sagrado. Um dos mais
famosos mulçumanos, no Rio de Janeiro, foi Tio Sami Adio, que pertencia à irmandade
de N. S. do Rosário e S. Benedito, assim como sua filha Oscarina Sani Ribeiro.493
Africano, falando regularmente o português, teve um encontro com João do Rio:
Pouco tempo depois apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo
clássico do mina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar
desconfiado. O pobre-diabo vive assustado com a polícia, com os jornais,
com os agentes. Para o seu cérebro restrito de africano, desde que chegou, o
Rio passa por transformações fantásticas. É um malandro, orgulhoso do
feitiço e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase à força que
aparecera [...]
Os seus trabalhos de morte são os mais difíceis. Sanin ao meio-dia levanta
no terreiro uma vara e reza. Pouco tempo depois sai da vara um maribondo e
o maribondo parte, vai procurar a vítima, e não pára enquanto não lhe inocula
a morte.494

Para a tradição religiosa afro-carioca, Tio Sani e Oscarina Sani Adio teriam
vindo da Casa das Minas, no Maranhão. Stefanie Capone, em seu estudo sobre o
candomblé, apresenta a hipótese de que “Baba Sanin, também chamado Tio Sani Adio,
parece ser o obá Saniá que foi companheiro de Bamboxé durante a viagem de Salvador
para o Rio de Janeiro”.495 A autora informa que seu nome português era Joaquim Vieira
da Silva. Entretanto, Tio Sani Adio e Obá Sanyá, Joaquim Vieira da Silva, são dois
líderes religiosos distintos. Joaquim Vieira da Silva ou Tio Joaquim – Obá Sanyá – foi
o fundador do Ilê Axé Opô Afonjá juntamente com Mãe Aninha. A primeira feitura de
Aninha foi realizada por Marcelina da Silva, Obatossi, a então ialorixá do Ilê Iya Nassô.
Porém, em 1885, Aninha teria recebido uma segunda feitura. Dela teriam participado

492
CRULS, Gastão. A aparência do Rio de Janeiro (notícia histórica e descritiva da cidade). Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, vol. 2, 1965, p.588.
Segundo Nina Rodrigues: “Afirmam-me o Limano e alguns alufás que também no Rio de Janeiro existe
uma igreja musulmi regularmente organizada e sobre a qual não pesa, como sobre a da Bahia, a interdição
das festas solenes que lá são executadas com grandes pompas. Mas, tanto quanto pude inferir destas
informações, trata-se antes de uma igreja de muçulmanos árabes em que os negros malê são admitidos.”
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed. da Universidade de
Brasília, 1982. p.68.
493
O Dia, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1958, p. 9.
494
RIO, João do. As religiões no Rio, São Paulo, Companhia das Letras, 1904, p. 19 Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7617>. 8
de maio de 2013
495
CAPONE, Stefania. A Busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009, p125

146
Bamboxé (Rodolfo Martins Andrade) e Obasaniá (Joaquim Vieira da Silva), ambos
africanos, saudados como Essa Obitikó e Essa Oburô, respectivamente, no ritual do
padê. 496

Quando Aninha saiu do terreiro Casa Branca do Engenho Velho, “reuniu todo o
seu pessoal e foi para a roça do Rio Vermelho, chamado Camarão, onde funcionava o
terreiro de tio Joaquim Vieira (Obá Saiyá), filho de Xangô”.497 Ainda segundo Costa
Lima, tio Joaquim, faleceu, em Salvador, no dia 8 de setembro de 1910. Entretanto, tio
Sani Adio, segundo Agenor Miranda que conviveu com o africano, morou no Morro do
Pinto, era mussurumi e muito temido. Sani Adio publicou, entre as décadas de 1910 e
1920, vários anúncios, em jornais cariocas, pelo aniversário de sua filha, Oscarina Sani
Adio. Neles, ele se identificava como Mohamed Sani Adio.498 Portanto, quando os
anúncios foram publicados, Obá Sanyá – Joaquim Vieira da Silva – já havia falecido na
Bahia.

Devido às perseguições, movidas pelas autoridades cariocas, vários líderes


religiosos mudaram suas “casas de santo” para localidades da Baixada Fluminense,
como tio Sany. Segundo o jornal A Batalha, muitas pessoas, até políticos importantes,
consultavam na rua Saldanha Marinho, em Nova Iguaçu, o “preto velho conhecido por
Tio Sany, macumbeiro profissional e pae de santo poderoso”.499 As comunidades afro-
cariocas preservam a memória de que Oscarina, filha de Sani Adio, tinha terreiro em
Queimados.500 Tio Sany faleceu em “quarenta e poucos”.501

Comparando a descrição de João do Rio sobre Sanyn, anteriormente citada, e o


texto de Brazil,502percebe-se que os “alufás”, assim como outros líderes religiosos, ao
longo do tempo, foram incorporando práticas “não ortodoxas”. O padre Etienne Brazil
chegou a estabelecer categorias de diretrizes religiosas:

496
SANTOS TOBIOBÁ, João Batista dos. 21 cartas e um telegrama de mãe Aninha a suas filhas
Agripina e Filhinha, 1935-1937. Afro-Ásia, n. 36, p. 265-310, 2007, p. 266.
497
LIMA, Vivaldo da Costa . O candomblé da Bahia na década de 1930. Estudos Avançados, v.18, n.52,
p.201-221, Sept./Dez. 2004. p.212
498
O Paiz, 5 de novembro de 1918, p.4; Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1920, p.4;
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1924, p.9;O Imparcial, Rio de Janeiro, 5 de novembro
de 1926, p.5; A Rua, Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1927, p2
499
A Batalha, Rio de Janeiro, 28 de março de 1930, p.8
500
O município de Queimados, em 1990, se emancipou de Nova Iguaçu.
501
ARAUJO, Ari. Entrevista com Agenor Miranda. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
n. 25,1997, p. 211-215,p.212.
502
BRAZIL, Padre Etienne. O fetichismo dos negros no Brazil. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Tomo LXXIV, Parte II, p. 195-262, 1911.

147
Uns há que idolatram exclusivamente os manipanços, podres de superstição,
sem sympathia alguma pela religião de Christo. Apenas pela hypocrisia se
differenciam desses primeiros os negros que, envoltos no manto do
catholicismo, teem o coração fanatizado pela idolatria.
Outros há que, catholicos fervorosos, embora devotos da Virgem Maria e dos
demais Santos do Paraizo, não se privam por isso, como fetichistas
emperdenidos, das nojentas práticas dos candomblés.
Enfim, a quarta categoria abrange a classe dos brancos ignorantes, que se
deixaram contaminar de superstições negras. 503

Embora embasado de ideias preconceituosas, o referido padre traça um quadro


bem aproximado do que acontecia no cotidiano, não apenas na Bahia como no Rio de
Janeiro. Interessantemente, diferencia fetichismo de feitiçaria, dando àquela um caráter
mais próximo de uma religião, apesar de, para ele, estar ainda em uma fase primitiva. A
proposito, quando, em 1918, na defesa de Cypriano Abedé, o secretário do Culto
Africano afirmou sobre o ministro Abedé: fetichista sim, feiticeiro não!
Em 1907, Horácio José Pacheco, morador da rua Barão de S. Felix, foi preso por
feitiçaria, e a imprensa destacaria o “arsenal” de “bugigangas” apreendido.
O africano Horácio no xadrez - muitos visitantes- O processo - objectos em
exposição no Jornal do Brasil.
Ainda permanecia hontem, no xadrez do 8º Districto Policial o africano
Horácio José Pacheco, conhecido pelos seus adeptos pelo nome de “Alufá” e
também pelo grotesco vulgo de “Horácio Gallinha”, commo era apontado
pela garotada do bairro onde residia. O feiticeiro, desde o dia em que foi
preso em flagrante, quando dava uma sessão à sua clientela, foi sempre
visitado.
O africano recebeu visitas até de senhoras bem trajadas, tendo uma hontem
na Delegacia offerecendo os seus brilhantes que trazia nos dedos e nas
orelhas para com o seu produto ser prestada a fiança. Como o Delegado não
estava presente nada ficou resolvido sobre este assumpto. Continuaram
hontem em exposição, no escritório do Jornal do Brasil, os diversos objectos
por nós descriptos que fazem parte do grande arsenal de bruxaria.
Tem sido admiradas por muitas pessoas que ainda não tinham visto aquelas
exquesitas bugingangas. Estampamos hoje o retrato do feiticeiro Horácio,
bem como uma pequena parte dos seus apetrechos, detacando-se quadros e
taboas com caracteres arabicos e livros de biblioteca cabalística. 504

Segundo o Recenseamento de 1906, Horácio fazia parte de uma comunidade


estabelecida na Barão de São Felix, 22, na Gamboa, em que moravam vários africanos
centenários: Domingos Africano, com 123 anos de idade, viúvo, analfabeto, pintor e
que residia no Brasil há mais de 10 anos. Ali também morava o africano Braz da Silva
Pereira Porto, 109 anos, casado, analfabeto, pedreiro. Braz teria vindo muito pequeno
para o Brasil, com aproximadamente 10 anos de idade, aqui casou, teve três filhos, oito
netos e oito bisnetos. Em 1896, ele solicitou licença para trabalhar como mercador

503
BRAZIL, Padre Etienne. O fetichismo dos negros no Brazil. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Tomo LXXIV, Parte II, p. 195-262, 1911. p. 202.
504
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1907, p. 3.

148
ambulante.505 Em 1906, ainda forte, trabalhava como pedreiro, empregado nas obras da
Av. Mem de Sá, vivendo com a mulher Sophia na casa da Barão de São Felix.506 O
africano Horácio, com 117 anos, casado, que, diferentemente dos outros centenários do
grupo, sabia ler e escrever; veio para o Brasil em 1790, morou na Bahia, onde tinha dois
filhos e quatro netos, e vivia naquela casa havia seis anos
Outra matéria publicada pelo Jornal do Brasil, no dia seguinte à prisão do
“afamado feiticeiro”, traria detalhes relevantes. Horácio, ao ser preso, estava atendendo
alguns clientes, cinco pessoas que foram igualmente detidas e, depois do depoimento,
liberadas. Segundo a reportagem, o “feiticeiro” era consultado por pessoas da alta
sociedade e até por “pessoas de títulos scientíficos”.507
Um africano bastante edoso, regulando cerca de cem annos, pois, segundo
declarou, chegara ao Brasil em 1827, já tendo na ocassião perto de 20 annos.
Usa o nome de Horácio de Sá Pacheco, sendo conhecido entre os africanos,
que acreditam no seu poder sobrenatural, pelo nome de Alufá, que quer dizer:
homem que estuda e conhece os segredos do Além. 508

O acusado teria afirmado ser natural da África inglesa, “sendo a sua tribu de uma
região próxima do Egypto”.509 Ainda no Jornal do Brasil, consta que ele tinha o vulgo
de Horácio Gallinha, Brasil,510 o que pode ser um claro indício de sua origem étnica.
Nina Rodrigues registrou a presença dos africanos “galinhas”, na Bahia, para onde
foram exportados como escravos na primeira metade do século XIX:
Desde os meus primeiros estudos sobre os africanos da Bahia, prendeu-me a atenção a
existência de uma colônia preta, das mais numerosas hoje, e conhecida pela
denominação de negros Galinhas.511 Acreditei de começo que se tratasse dos negros que
na região da Serra Leoa são conhecidos dos Europeus por negros Gallinas, manifesta
corrupção da palavra portuguesa galinha. Estes negros, que se revelaram sempre
intrépidos guerreiros, ocupam as margens do rio Galinha e o vale de Man. Mas desta
suposição veio dissuadir-me a declaração explicita por parte de todos eles, de que a sua
terra muito central demora a grande distância do mar.
Devo confessar que, apesar do modo explicito por que davam o nome de sua terra
(pronúncia entre gurinci, grúnci e grúnxi), por muito tempo vacilei em determiná-la.
Dos Gruncis não se ocupa a Geografia Universalde Réclus, tão minudente, aliás, nem
obras especiais sobre os negros superequatoriais como a de Abel Hovelacque, nem

505
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 6 de abril de 1896, seção 1, p. 5.
506
Recenseamento do Rio de Janeiro (Distrito Federal), 20 de setembro de 1906, p.153
507
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1907, p.4
508
Ibidem.
509
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1907, p. 4
510
“Ainda permanecia hontem no xadrez do 8º districto policial o africano Horácio José Pacheco,
conhecido pelos seus adeptos pelo nome de 'Alufá' e também pelo grotesco vulgo de 'Horacio Gallinha',
como era apontado pela garotada do bairro onde residia". Jornal de Brasil, Rio de Janeiro, 17 de setembro
de 1907, p. 3
511
Existe no texto de Nina Rodrigues uma contradição em relação aos “Gallinhas”: primeiro ele afirmar
ser um colônia das mais numerosas (p. 110), para depois afirmar que “Constituem eles uma pequena
colônia de velhinhos, que conservam a sua língua e muitos dos seus costumes nacionais”.( p.112)
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª ed. São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed. Universidade
de Brasília, 1982.

149
enfim as demais obras que a respeito pude consultar. Todavia, eram muito precisas as
indicações fornecidas. O seu país fica, dizem eles, acima dos Ashantis, de cuja
reputação de crueldade ainda falam com terror, ao lado dos Haussás que vêm traficar e
abastecer-se nas suas feiras. Trata-se, pois, de uma zona africana, de fato, muito pouco
visitada ainda hoje, quase de todo desconhecida até não há muito tempo, para além do
país dos Kongs, nos domínios dos Mossis. 512

Consta que a esse grupo étnico estava ligada a família de Mãe Aninha, do
famoso Axé Apõ Afonjà:
ela mesma era e se sabia etnicamente descendente de africanos grunces, um
povo que ainda hoje habita as savanas do norte de Gana e do sul do Alto Volta
e que nenhuma relação mantinha com os iorubás até o tráfico negreiro. Desses
grunces já se ocupara Nina Rodrigues que conheceu ainda muitos deles, no fim
século XIX.513

Além dessa provável origem étnica, relatada por Nina Rodrigues, na Bahia, onde
Horácio dizia ter vivido e ainda tinha parentes, outro dado instigante é o fato de que ele
falava perfeitamente o árabe e possuía inúmeras correspondências nessa língua. A
matéria não identifica de quem ele recebia essas cartas e nem de onde vinham. Seria
possível que uma pessoa, que estava havia tantos anos no Brasil, poderia manter contato
com várias pessoas em regiões africanas? Comparando as informações do Censo de
1906, quando afirmou ter filhos na Bahia e a matéria do jornal, poder-se-ia concluir que
a correspondência vinha da Bahia, mas não podemos esquecer que, no mesmo endereço,
morava Domingos Africano que, segundo o Censo, só estaria no Brasil havia uns 10
anos. Ou seja, é possível que Horácio mantivesse contato com a África, mesmo depois
de longos anos no Brasil.
O velho alufá tinha admiração pelo marechal Floriano e disse ter feito sessões e
orações para que dominasse a Revolta.514 A matéria jornalística destaca que, quando a
polícia chegou à rua Barão de S. Felix, 22, às 11 horas da manhã, o africano se mostrou
bastante calmo e, com tranquilidade, aceitou acompanhar as autoridades, entregou todos
os objetos de valor que possuía e uma importância em dinheiro. Seu “arsenal de
feitiçaria” foi colocado em uma carroça e transportado para a delegacia.
Das paredes da casa foram retirados quadros com signaes cabalisticos e
representando ídolos da crença africana, bem como manipansos e pelles de
animais.
O africano tinha objectos próprios de um alchimista, como sejam um
almofariz, cadinhos, pedras diversas, marmores rectangulares e substancias
desconhecidas.

512
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ªed. São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed.
Universidade de Brasília, 1982. p. 110.
513
LIMA, Vivaldo da Costa. O candomblé da Bahia na década de 1930. Estudos Avançados,v.18, n.52,
p.201-221, set-dez 2004, p. 210
514
Provavelmente, Horácio fazia referência à Revolta da Armada.

150
Na delegacia vimos, de um lado, seis saccos com hervas diversas, 16 frascos
com raízes em maceração, 18 collares com contas pretas e brancas, frascos
com pó diversos, 20 breves de vários tamanhos, favas, etc. 515

Havia ainda, entre os objetos apreendidos, peles de animais e cerca de 150


tábuas retangulares (walá), nas quais havia receitas para diversas moléstias, escritas em
caracteres árabes. Livros também foram encontrados e apreendidos, entre eles, uma
edição em português do Alcorão e inúmeros outros em árabe e egípcio. O africano se
reconhecia como “um enviado de uma religião, que tem por chefe Allah, o seu Deus” e
que suas bugigangas tinham o poder de “fazer bem aos enfermos e perseguir os
maos”.516O ritual que Horácio realizava para seus clientes começava com uma consulta
ao
seu deus, fazendo variar passes e evocações, segundo a gravidade do
assumpto, até que, obtendo a receita desejada, escrevia em uma taboa limpa,
utilizando-se de uma tinta de arroz, queimado. Lavava em seguida a taboa
com qualquer infusão de hervas, cahindo o liquido em uma grande concha.
A esse ingrediente era ainda adiccionado certa porção de mel de abelhas,
ficando assim o remédio preparado para ser ingerido.517

O velho africano usava o walá, tabulário oratório, seguindo o antigo ritual dos
Alufás518 e, para rezar, cobria o assoalho com areia sobre o qual era estendida pele de
carneiro: “Quer alguem obter de Deus um favor? Bastará lavar o tabulário e beber as
rezas diluidas na àgua”.519 Alguns dos objetos apreendidos como favas e pó, eram
usados para vários fins, desde provocar aborto, curar dor de cabeça, até para dar energia
a homens e mulheres, como era o caso do obi e do orobô, favas tão conhecidas e
empregadas, ainda hoje, nas religiões afro-brasileira. Havia ainda um alicate preparado
para amarração, com um pedaço de veste de mulher e outro de homem que, segundo
Horácio, uniria o casal para sempre. Na realização de seus rituais, ele usaria uma
vestimenta especial, e tudo era executado em cima da pele de carneiro. Duas entidades,
Alicuran e Malumboa, eram invocadas na proteção da cerimônia de cura nas tábuas com
tinta de arroz. Outro elemento usado era sebo do intestino de criança pagã, que possuía
o poder de desmanchar casamentos.
Segundo a reportagem do Jornal do Brasil, o africano, seguindo preceito
muçulmano, não comia carne de porco e lavava os pés e o rosto várias vezes ao dia.

515
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1907, p. 4
516
Ibidem.
517
Ibidem.
518
É importante esclarecer que os rituais realizados pelos alufás, descritas neste trabalho, fazem parte de
um conjunto de tradições deste grupo no Rio de Janeiro, no final do século XIX e inicio do XX.
519
BRAZIL, Etienne. Os malês. Revista do IHGB, Tomo LXXII, parte II, p. 67-126, 1909, p. 86

151
Horácio de Sá Pacheco, no xadrez do 8º distrito policial, manteve uma atitude tranquila
e ficou isolado em um canto. Ao ser chamado pelo repórter para uma conversa,
aproximou-se com “passos, um tanto tropegos, devido a sua avançada edade”.520 Apesar
da idade extremamente avançada — segundo o censo de 1906 ele teria 117 anos —
Horácio foi descrito pelo repórter “um typo forte, robusto, erecto, de physionomia
bronzeada e sympathica, tendo ao queixo um pequeno cavaignac bem aparado”.521 O
censo também destacou que ele gozava perfeita saúde. A fotografia do alufá, publicada
pela revista A Semana, mostra um homem que, em nada, parecia ser mais que
centenário.522
Embora tivesse, como foi destacado pelo repórter, sempre uma atitude tranquila,
suas respostas eram diretas. Ao ser questionado se tinha feito muitas curas, respondeu:
“Curas? Eu não sou curandeiro”. “Eu sou embaixador, embaixador de Deus, que é um
só- Allah!”523 Um dos presos ironizou o velho alufá, que o olhou com desprezo e, sem
responder a ofensa, continuou a conversa com o repórter, dizendo: “Estou na terra, para
cumprir essa missão de minha crença e de minha raça”.524 Questionado se a crença que
professava tinha muitos santos, respondeu: “Qual santos! Deus é um só, acompanhado
por espíritos bons e maos”.525 Ainda falou que sempre trabalhou na sua crença, mas que
havia exercido o cargo de furador de café. Ao ser informado pelo repórter de que o
delegado pretendia destruir todos os seus apetrechos respondeu: “Que fazer? Não me
fazendo mal, também já estou para morrer...”526
O delegado do 8º distrito, dr. Mello Tamborim, iniciou o processo contra
Horácio, enquanto o Jornal do Brasil colocou em exposição alguns do objetos
apreendidos na casa da rua Barão de S. Felix, entre eles, um quadro com figuras e
caracteres hieroglíficos. Havia ainda uma tábua, o walá, com uma receita escrita em
árabe, acompanhada da respectiva caneta. Observado os elementos apresentados nas
reportagens sobre Horácio e sobre os “alufás”, podemos argumentar na mesma direção
de Beatriz Gois Dantas, ao abordar à “pureza nagô”: “a ideologia da pureza pressupõe a
existência de um estado original, uma especie de reduto cultural preservado de

520
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1907. p.4
521
Ibidem.
522
Ver fotografia de Horácio de Sá Pacheco In: FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos;
SOARES, Carlos Eugênio Libano. No Labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p 104.
523
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1907, p.4.
524
Ibidem.
525
Ibidem.
526
Ibidem.

152
influências deturpadoras de elementos estranhos”.527 No caso dos alufás, naturalmente
as questões espaço-temporais determinaram reinvenções da religião de Maomé, mas,
para aqueles adeptos “minas-baianos”, praticava-se uma religião “muçulmana
autêntica”.
O fato é que Horácio, sem dúvida, fazia parte do grupo, oriundo da Bahia, que se
projetou no Rio de Janeiro, no início do século XX. Levando-se em consideração as
datas fornecidas pelo Censo de 1906, ele, muito provavelmente, testemunhou a Revolta
dos Malês, de 1835. Sua prisão ocorreu quase 40 anos depois da prisão de Sebastião
José Rosa, o Juca Rosa. No caso dos dois “feiticeiros”, observamos a mesma situação
acompanhando o seu poder: a ligação com pessoas que estavam fora dos seus
segmentos sociais, ou seja, pessoas ricas, políticos, e a sedução que exerciam.
Entretanto, os dois vinham de tradições religiosas diferentes que atuaram no Rio de
Janeiro, nas primeiras décadas do século XX: uma associada a práticas ligadas aos
africanos “congos” e “angolas”; outra ligada aos africanos “minas”, vindos da Bahia,
assim como Abedé.
A influência dos “minas- baianos” no Rio de Janeiro foi considerável, embora
não exclusiva. Pierre Verger identificou a ligação de algumas casas, instaladas em terras
fluminenses, com candomblés da Bahia: o Axé Opô Afonjá, em Coelho da Rocha, foi
fundado por mãe Aninha. No bairro de Miguel Couto, foi criado o terreiro de Nossa
Senhora das Candeias, da “mãe” Nitinha de Oxum, que era filha de santo de tia Massi
da “Casa Branca” na Bahia. Segundo Agenor Miranda, Adelaide Mejitó, filha de Tia
Rozenda, era Jeje Mahin e “faleceu em cinquenta e poucos, em Coelho da Rocha.
Morou muitos anos em Cavalcante, depois mudou-se para Coelho da Rocha.”528
No dia 1 de abril de 1933, morreu aquele que foi o maior dos babalossain na
cidade do Rio de Janeiro, Cypriano Abedé: “Falleceu o capitão Cypriano Abedé, Juiz da
Irmandade de Santo Elesbão e Santa Ephigenia. O seu enterro terá logar às 17 horas,
saindo da rua João Caetano, 69, para o Cemitério São Francisco Xavier”.529 Esse foi
apenas um dos inúmeros anúncios publicados, noticiando o falecimento daquele que foi
o maior “feiticeiro” do Rio de Janeiro. Em 7 de abril de 1933, o filho Procópio
publicou:

527
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p.145.
528
ARAÚJO, Ari. Entrevista com Agenor Miranda. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
n.25, 1997, p. 211-215, p. 214.
529
A Noite, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1933, p.11.

153
Capitão Cypriano Abedé
7º Dia
Tenente Procópio Abedé e família na impossibilidade de agradecerem as
manifestações de pezar que lhes tributaram as pessoas amigas pelo
fallecimento de seu pae e chefe, o inesquecivel capitão Cypriano Abedé, o
fazem pelo presente, e convidam-nos para a missa de 7º dia que será rezada
amanhã, às 9 horas, na Igreja de Santa Ephigenia e Santo Elesbão, à rua da
Alfandega.530

Várias Irmandades, devoções e amigos mandaram rezar missas pela morte de


Abedé. Um ano após a sua morte, sua mulher Paulina publicou:
Cypriano Manoel Abedé
Paulina Abedé, os filhos, filhas e afilhados, do finado Cypriano Manoel
Abedé convidam para a missa de 1º aniversário no dia 8 de maio, às 9 h e 15
min, na Igreja de Santa Ephigenia.531

Mais uma vez, usando Juca Rosa como parâmetro comparativo com Cypriano
Abedé, ambos famosos por suas feitiçarias, podemos dizer que Abedé conseguiu
manter-se em situação privilegiada devido aos laços que estabeleceu com pessoas
influentes. Mesmo denunciado, não caiu em “desgraça”, como Juca Rosa e, para isso,
foi determinante a importante rede de solidariedades que conseguiu estabelecer,
inclusive, em plena fase de perseguições, permitindo-lhe oficializar seu “Culto
Africano”.
Em 1940, o comissário Orozimbo foi chamado à rua do Teatro n. 21, 1º andar, e
encontrou “o cadáver de um homem de meia idade, de tez escura.”532 Era Procópio
Manoel Abedé, fulminado por uma síncope cardíaca. Segundo a notícia, Procópio era
farmacêutico, militar aposentado e ultimamente empregado em um estabelecimento
farmacêutico em Copacabana. A morte da “conhecida figura do recreativismo carioca”
foi o ponto final da “era Abedé” no cenário religioso da cidade, mas a “feitiçaria”
carioca continuaria firme.

OUTRAS PEQUENAS ÁFRICAS CARIOCAS: OS HERDEIROS DE TIA CHIMBA

As freguesias centrais da cidade do Rio de Janeiro atraíam muitas atenções.


Concentrando as atividades administrativas, comerciais e religiosas, sobreviviam ali
velhas tradições, que incorporavam outros saberes e eram determinantes da pluralidade
530
A Noite, Rio de Janeiro, 7 de abril de 1933, p. 8.
531
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 de maio de 1934, p. 41.
532
A Noite, Rio de Janeiro, 2 de janeiro de 1940, p. 29.

154
cultural carioca. No final do século XIX, os minas-baianos se destacaram nessa região.
A questão econômica teve um peso significativo para eles: Como se inserir em um
mercado, como escravos de ganho ou trabalhadores livres, em que, até então,
predominavam “angolas” e “congos”? Anteriormente, comentei que os “minas”
controlavam o carregamento de café; no entanto, esse controle não ocorreu de forma
imediata. Na notícia sobre a briga ocorrida, em 1856, no Beco do Consulado, na
freguesia de Santa Rita, entre “congos” e “minas”, empregados no serviço de carregar
café, temos a seguinte observação: “Muito mal nos acharemos se elles se chegarem a
convencer que podem repetir scenas dessas sem serem incomodados”.533 Esse conflito
evidencia uma disputa “étnica” em relação à liderança de um tipo de atividade, mas
poderia atingir também as práticas culturais.
Retomando a ideia de Certeau, a cultura é criada no cotidiano, renovando-se em
suas práticas diárias, como um meio de resistência à dominação.534 A forte presença de
“congos” e “angolas”, no entanto, foi uma marca definitiva das religiosidades de
matrizes africanas da cidade. A expressão “Pequena África”, cunhada por Heitor dos
Prazeres, priorizava um trecho do Rio de Janeiro, ocupado por “minas-baianos” e foi
uma tentativa de chamar a atenção, especificamente, sobre uma pretensa hegemonia
desse grupo na cultura afro-carioca, em detrimento de outras comunidades locais,
descendentes de tradições religiosas mais antigas. Esse agrupamento continuava
reunindo-se em batuques, casas de dar fortuna e zungus. Por exemplo, no Engenho
Velho, foram presos vários homens e mulheres, alguns africanos livres e outros pretos
livres ou escravos: “todos foram presos por serem encontrados em batuques e fazendo
vozerios, em um cortiço à rua da Babilônia”.535
As várias comunidades religiosas cariocas, ofuscadas pelo prestígio dado ao
seleto grupo que ocupava aquela “Pequena África”, na área central, sobreviviam e
atuavam intensamente em várias outras “Pequenas Áfricas”: no Salgueiro, no Meier,
em Jacarepaguá, em Madureira, em Costa Barros, em Laranjeiras, na Gávea e tantos
outros pontos. Geralmente, eram pobres, como os que herdaram tradições como a de Tia
Chimba, no entorno do Morro do Preto Forros, nos atuais bairros do Engenho de
Dentro, Meier, Água Santa, Engenho Novo e Lins de Vasconcelos. A presença dos
africanos e crioulos na região pode ser observada no anúncio abaixo:

533
Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 8 de abril de 1856, p. 1.
534
CERTEAU, Michael. A invenção do cotidiano. 18ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
535
Diário do Povo, Rio de Janeiro, 1867, p. 3. O nome do escravo precede os dos seus respectivos
senhores.

155
Acha-se fugida a crioula de nome Marcellina, natural do Maranhão, quem a
apprehender queira leva-la a casa de seu senhor, Geraldo Caetano dos Santos,
no Engenho de Dentro, Serra dos Pretos Forros, ou na rua do Lavradio, n.6,
protesta-se contra quem a tiver acoutado.536

Essa área, que compreendia territórios limítrofes à Serra dos Pretos Forros, teve
sua ocupação ligada aos jesuítas, com suas terras que formarão o Engenho Velho e o
Engenho Novo. Com a expulsão da ordem, no século XVIII, a região foi, ao longo dos
tempos, sendo desmembrada e seu povoamento modificado:
Na segunda metade do século XIX, iniciam-se fortes movimentos a favor do
fim da escravidão no Brasil. Enquanto alguns escravos conseguiam comprar
sua liberdade, carta de alforria, outros fugiam para quilombos. Em 1880,
vários quilombos abolicionistas já haviam se estabelecido na periferia do Rio,
como a chácara do Sr. Le Bron, no atual Leblon, o Quilombo da Penha,
atualmente Vila Cruzeiro no "Complexo do Alemão" e o Quilombo da Serra
dos Pretos Forros, que divide Jacarepaguá do Grande Meier.537

Segundo matéria publicada em O Globo, durante as obras de construção da


Linha Amarela, no levantamento do impacto ambiental, foi encontrado um sítio
arqueológico nos terrenos da empresa Água Mineral Santa Cruz, sendo achados vidros,
louças e ossos: “Bem próximo daquele ponto está o Morro dos Pretos Forros, lugar
conhecido por, no século passado, abrigar escravos alforriados”. 538
A ocupação suburbana ocorreu, na segunda metade do século XIX, devido às
transformações impulsionadas pela implantação das linhas férreas. Em 29 de março de
1858, foi inaugurado o primeiro trecho da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II,
compreendendo as estações Corte, Engenho de Dentro, Cascadura, Maxambomba e
Queimados. No Engenho de Dentro, em 1871, foram instaladas as oficinas da Estrada
de Ferro: mais de mil operários nelas tiveram emprego. A montagem e reparação de
todo o material rodante da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) eram realizadas
nas oficinas, existentes ao lado de cada um dos depósitos de máquinas que a EFCB tem
ao longo de suas linhas. Porém, mesmo mais distante do centro da cidade, essa região
sofria a fiscalização contra as “casas de dar fortuna”:
Foi hontem visitada pelo subdelegado do 2º Districto do Engenho Novo uma
casa de dar fortuna, existente na rua Dr. Dias da Cruz. A digna autoridade
prendeu os viciosos Antonio de Souza, Felipe Dias, Delfina Maria da

536
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 30 de abril de 1881, p. 3.
537
MAGALHÃES, João Carlos Ramos. Histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro. Desafios do
Desenvolvimento, IPEA, Brasília, Ano 7, Edição 63, 19 de novembro de 2010, p. 172.
538
CERQUEIRA, Sofia. Rio sepulta 431 anos de história. A autora comenta noticia publicada em O
Globo, Rio de Janeiro, 3 de Março de 1996. Disponível em:
<http://www.bv.fapesp.br/namidia/noticia/20577/rio-sepulta-431-anos-historia/>. Acesso em 19 de julho
de 2013.

156
Conceição e Maria Ignácia, que ahi se achavam e destruiu diversos objectos
de feitiçaria de que elles se serviam.539

A repressão já havia atingido, em 1889, o curandeiro Nascimento, pelo


“tratamento” ministrado em uma mulher no Morro da Cruz, no final da rua Leopoldo,
no Andaraí:
Devido ao falecimento de seu filho, logo após o nascimento, foi acometida
por uma febre e o marido chamou o conhecido curandeiro Nascimento, que
afirmou que a mulher estava com obsessor e receitou que ela fosse amarrada
em uma taboa, até sair-lhe do corpo o demônio. O marido amarrou a mulher,
seguindo a orientação do curandeiro, com tanta força que provocou
ferimentos e ela gritava de tal maneira que chamou a atenção dos vizinhos,
que chamaram a policia.
Dr. Valladares, 8º delegado de policia, compareceu ao local. 540

Os “tratamentos” ministrados por feiticeiros eram causa de graves problemas,


para eles e seus clientes. A tentativa de “tirar o obsessor” muitas vezes tinha
consequências fatais, e não era o isolamento das suas áreas de atuação uma garantia de
fugir à ação da polícia.
Em 1889, a família de Manuel Duarte Pinto, homem preto, casado e tido como
de bom comportamento, quis comemorar o aniversário de seu filho e requereu a devida
licença ao subdelegado do 2º distrito do Engenho Novo, dr. Norberto Amaral, que
permitiu a realização de um baile, na casa do requerente, na rua D. Adelaide, n.12.
Entretanto, ele não contava com a reação de seu vizinho: o major Leopoldo de Franca
Amaral que, acompanhado de diversas pessoas, invadiu a casa de Manuel:
declarando que não permittia que negros se divertissem, perturbando a sua
tranquilidade.
Com uma selvageria digna de severa repressão, as pessoas que
acompanharam o major Franca quebraram moveis e destruíram tudo que
encontraram.
Exhibiu Pinto a licença que obtivera do subdelegado. Ao vel-a, não se
conteve o Major Franca e, arrebatando-a das mãos do pobre preto, rasgou-a,
dizendo que aquillo era um papel sem valor.
Não contente com isso, o major Franca prendeu todas as pessoas que alli
estavam, inclusive mulheres e crianças, levando todas para o destacamento de
Todos os Santos. E se mais não prendeu, foi por que não encontrou mais
ninguém para prender.
As 11 ½ horas da noite foi o subdelegado informado do facto e, dirigindo-se
ao destacamento, mandou soltar os detidos.
O sr. Desembargador chefe de policia, ao ter sciencia do ocorrido, encarregou
o Sr. Dr. Do 3º delegado de policia de abrir minucioso inquérito. 541

539
O Tempo, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1891, p. 2.
540
Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 5 de junho de 1889, p. 2.
541
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 23 de abril de 1889, p.1.

157
O ocorrido na rua D. Adelaide revela as margens de intolerância que
acompanharia as migrações e formas de ocupação da população negra em várias áreas
da cidade. O fato de, segundo a matéria, o major invadir a casa do vizinho e afirmar que
não permitia que negros se divertissem perturbando sua tranquilidade, demostra a
grande prepotência do major, mas é, principalmente, resultado do regime excludente em
que a “população de cor”, usando uma expressão da época, era vista como o que de
mais “primitivo” o país possuía: “novas e velhas imagens sobre negros delineiam-se,
revelando basicamente a sua incapacidade de conviver com os ‘avanços’ que o novo
momento político trazia consigo”.542
Posteriormente, o major Leopoldo Amaral apresentou sua versão dos fatos,
defendendo-se da acusação de ter invadido a casa, negando ter rasgado o documento e
afirmando que não prendeu ninguém. Mas acusava seu vizinho de ser um feiticeiro:
Para as ruas de D. Adelaide e Aquidaban mudaram-se alguns pretos,
occupando duas pequenas casas em ruínas, que vulgarmente de diz em casas
de dar fortuna, com o inseparável candomblé, a Paraty e o pandeiro. Tem
sido um verdadeiro martyrio !! Noites há que ninguem pode dormir n’aquelle
bairro, e a queixa é geral. Mesmo de dia reunnem-se às vezes, embrigam-se,
e dão batalhas a cacete. A noite affluem alli pretos de todos os lados, cada um
trazendo a sua garrafa de cachaça e o seu pandeiro.
Há dias, n’uma d’estas casas, feriu-se um conflicto enorme, a cacete, que foi
acalmado e dispersado por um inferior do exercito, meu parente, que acudiu
aos gritos, e sem a presença do qual ter-se hião dado mortes talvez. 543

Na acusação do major, podemos observar como antigas referências, “casas de


dar fortuna”, por exemplo, confundem-se com aquela trazida pelos “baianos”:
“candomblé”. Naturalmente, o major carregou nas acusações sobre o uso de bebidas e
brigas. Porém, esses espaços religiosos, também poderiam ser passíveis de conflitos.
Alguns anos mais tarde, na mesma região, isso pôde ser detectado:
A chamada Serra dos Pretos Forros fica do lado da Boca do Matto, com
entrada pela rua Aquibadan. Todos os annos, no dia de S. Sebastião, há por lá
muita alegria, além de uma festa que em homenagem ao padroeiro da cidade
costuma promover uma mulher conhecida por Maria Capoeirão. Affirmam os
que a conhecem tratar-se de uma macumbeira que sabe reunir em sua
modesta casinha numerosas pessoas, as quais, parece, estão sempre de
accordo com suas basofias. Por causa de Maria Capoeirão, muita gente tem
subido até o morro alludido.544

Muitos desses antigos moradores frequentavam os “terreiros” dos herdeiros de


Tia Chimba. Heitor dos Prazeres, que imortalizou a legenda da “Pequena África”,

542
SCHWARCZ, Lilia. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.236.
543
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 24 de abril de 1889, p.2.
544
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1928, p.3.

158
conhecia bastante esse subúrbio, que seguia os trilhos da Central do Brasil. Na década
de 1930, fez a embolada chamada Tia Chimba, que, em sua melodia, traz a batida do
caxambu e cuja letra, faz alusão à repressão policial que, nesse período, era intensa,
porém não deixando de ser subornável, como sugere a composição:
NO TERREIRO DE TIA CHIMBA
A tia Chimba
De lá do alto do morro,
Da serra dos pretos forros
Eu fui lá pra macumba.
Arremessei-me
Da subida da ladeira,
Me joguei na capoeira,
Me sentei pra descansar.
Macumbembê, macumbê, macumbambá
A macumba é bom mais eu não vou lá.

No bom da festa
Subiu um trapaida,
No cair da madrugada
A policia lá chegou.
Que barafunda!
Gritos por todos os cantos
Chamavam por todos os santos
Mas ninguém se escapou
Macumbembê, macumbê, macumbambá

As nêga veia
Choravam que nem criança,
Incomodando a vizinhança,
Pedindo pra se escondê.
Mas a policia
Tava numa atividade,
Fazendo pervesidade
Malvadeza como quê.
Macumbembê, macumbê, macumbambá

Eu disfarcei
E fui subindo pro quintal
Uma voz disse abaixo pau
Quem subir lá no portão...
Eu não sou bobo,
Fui metendo a mão no bolso
E puxei de um caroço
Dei na mão do prontidão.
Macumbembê, macumbê, macumbambá

Ele me disse
Então vá logo descendo
Que ninguém está te vendo
Não me deixe enrascado.
Eu fui subindo, alevantando e caindo,
No mesmo tempo me rindo,
Com o coração descansado.

159
Macumbembê, macumbê, macumbambá.545

O Paiz informa que, tia Chimba residia no Capão, sendo conhecida “como um
assombro na facilidade de conhecer a vida de todos, unir corações, fazer curas,
adivinhar o futuro e outras escaramuças de feitiçarias”.546A clientela de tia Chimba era
recebida, primeiramente, no alto da Serra do Capão; depois ela passou a residir —até
seu falecimento — na Serra de Ignácio Dias, no Engenho de Dentro. Segundo a matéria,
bastante jocosa, “são comuns essas histórias mysteriosas nos lugares como o morro do
Capão que, pela quantidade dos habitantes e de elementos maos, importados da Favela,
da Igrejinha, do Pindurassaia e do Salgueiro”.547
Desse modo, as transfigurações urbanísticas na área central carioca, com a
destruição dos cortiços e a valorização dos aluguéis, foram causa da mudança de muitas
famílias. Os bairros surgidos nas proximidades do Morro dos Pretos Forros,
especialmente Meier, Engenho Novo, Engenho de Dentro,548 se tornaram um forte
atrativo, pela implantação das linhas férreas e das oficinas da Central do Brasil, gerando
emprego para antigos e novos moradores da cidade.
O periódico A Época, entre 6 e 7 de dezembro de 1915, apresentou uma série de
reportagens intituladas Quatro dias nos Antros da Bruxaria, nas quais o repórter
procurou conhecer os “feiticeiros” dos subúrbios:549
Os “maravilhosos fakirs conceituados no mundo inteiro” as “adivinhas do
futuro”, as pythonisas, as resadeiras, as mesinheiras, vivem vida folgada,
gosando de liberdade e impunidade que a policia lhes faculta para exercerem
a torpe exploração contra a credulidade alheia ou contra a enfermidade
nervosa e mental da grande maioria dos credulos, arrastando muitos delles ás
casas fortes dos hospícios de alienados e outros aos cemitérios. 550

545
LÍRIO, Alba; PRAZERES FILHO, Heitor. Heitor dos Prazeres: sua arte e seu tempo. Rio de Janeiro:
ND Comunicação, 2003, p. 195.
546
O Paiz, Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1926, p. 11.
547
Ibidem, p.11.
548
O entorno do Morro dos Pretos Forros era uma área que, ainda com características bem rurais, passava
por conflitos de terra. Nas primeiras décadas do século XX, existia ali uma atividade agrícola, com
chácaras, que abastecia a cidade. Em 1906, os moradores das ruas Souto, Muruquipary e Morro dos
Pretos Forros, preocupados com suas roças, pediam providências à prefeitura, para “a extinção dos
formigueiros que causavam danos incalculaveis as plantações”. (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 18 de
janeiro de 1906, p. 3). A especulação imobiliária, nas primeiras décadas do século XX, determinou a
urbanização e modificou as características locais. Conflitos pela posse das terras foram constantes durante
a década de 1930 e provocaram crimes como o praticado pelos irmãos Viveiros, que mataram, a golpes de
enxada, o lavrador Manoel Claudionor de Carvalho, morador da Grota dos Pretos Forros, por ele ter
entrado nas terras dos dois irmãos. Com a valorização, grileiros passaram a pressionar os moradores que
denunciaram às autoridades e fizeram manifestações contra a ação dos aventureiros milionários que
queriam tomar as terras.
549
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915, p.1.
550
Ibidem.

160
Ainda segundo esta matéria, Tia Chimba551, a afamada “feiticeira” no Engenho
de Dentro, tinha grande número de consulentes, não sendo poucos os benefícios e
malefícios que ela havia praticados. A reportagem foi realizada logo após o falecimento
da velha feiticeira e o repórter lançou a pergunta: “Quem a sucedeu? Estava ahi o
primeiro problema. A clientela da velha bruxa era tão avultada que, depois de sua
morte, surgiram dezenas de sucessores”.552O jornalista, que a matéria não identifica,
parte para os subúrbios e consegue o contato para participar de uma sessão. Na estação
do Meier, levado por um informante, encontrou um dos substitutos de “Tia Chimba”: o
preto Pedro Gonzaga, “afamado feiticeiro, respeitado e poderoso”. Ao informar a
Gonzaga que precisava de “um trabalho”, obteve dele a resposta de que, naquele dia,
não podia ser : “É preciso conversar com o Manoel, porque é elle que está trabalhando.
Somente depois do Manoel é que eu trabalho. A nossa lei é muito séria e nós ‘temo que
obedecê’”.553 Diante da insistência do jornalista, reafirma que naquele dia não poderia
ser e completa: “se for trabalho “faze má” elles não fazem”. Na conversa, Pedro
Gonzaga afirma que as línguas faladas pelos negros são cinco: “Cambinda, Geisa,
Congo, Macanga e a daqui”. Para o feiticeiro era muito fraca:
não presta para fazer milagres longe. A “congo” é a da gente do Congo. A
“cambinda” é a dos pretos da Costa d’Africa e que usam brincos. A “macanga”
é a dos pretos que usam tanga e é uma língua muito atrapalhada, que ninguém
comprehende. “Geisa” é a das bahianas. 554

Gonzaga acrescenta que a dele é a cabinda, mas que fala também as outras
línguas, que já foi “grande” na religião, que foi conferente de alfândega, mas perdeu
tudo por um “mau serviço”, e que para se livrar do feitiço, precisaria ter cem mil réis
para executar um “trabalho”: “tenho que ‘comprá’ dois carneiros pretos, leva elles p’ra
o matto e prepará, em companhia dos camaradas, dos meus irmãos e meus pais”.555
Perguntado sobre por que “paes” respondeu: “Pae é aquelle que nos ‘fez’ na religião. O
Manoel é meu pae e eu fui pae de meu legitimo pae. Ah! O ‘sinho’ não sabe que o pae

551
O jornal A Batalha, em 6 de junho de 1932, p. 12, noticiou o lançamento do disco de Heitor dos
Prazeres em que consta a embolada “Tia Chimba” segundo a matéria é uma authentica embolada,
original, em que, através de personagens engraçadas, Heitor dos Prazeres conta o fracasso, ante a
intervenção da polícia, na macumba que fora assistir.
552
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915, p.1.
553
Ibidem.
554
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915. p. 1. É interessante a referência, feita por Pedro
Gonzaga, a língua “macanga” no Rio de Janeiro. A região de Macanga localiza-se a norte da província de
Tetê, em Moçambique e foi inserida ao tráfico ilegal para o Brasil na segunda metade do século XIX.
Encontrei na relação de escravos do espólio de José Vietas, fazendeiro em S. Gonçalo, um escravo
macanga. A região era considerada, no século XIX, de acesso muito difícil.
555
A Época, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1915, p.2.

161
pode ser filho do filho ?” O jornalista e Pedro marcaram para irem a um “candomblé”
na quarta-feira seguinte e, no dia marcado, o jornalista encontrou o “feiticeiro”, na
estação, acompanhado de “dois crioulos”, um deles era o Manoel da Ignácia, “Já a dois
passos deparavamos com o grupo dos mágicos sacerdotes de Cambinda”.556 Depois de
um longo trajeto, chegaram ao barracão. O repórter destacou o som dos atabaques, das
rezas, muitas orações católicas e a possessão de Ignácia, para receber o “povo”:
“ajoelhada aos pés de Manoel, tendo sobre a cabeça as mão deste, ella foi, de repente,
acommettida de trismas nervosos, até que, levantando-se, começou a dançar
compassadamente ao som do batuque”.557 Segundo o relato jornalístico, Manoel da
Ignácia “estava no seu elemento. Senhor daquella senzala, mando de toda aquella gente,
como “pae de todos” elle tinha attitude de rei”.558 Pedro Gonzaga era como um ajudante
de ordens do Manoel da Ignácia, que “tira uma reza”, repetida pelos participantes:
Carimbe Zuê Zuê
Mande sinhô sinhá
Zungum Zungá Zungue
Nagagá mancá lua559

A cerimônia realizada por Manoel da Ignácia se assemelha aquelas descritas


para Juca Rosa. Os dois teriam influências de rituais da África Central e de outras
convivências religiosas. Os adeptos de Manoel da Ignácia, em meio às danças, batuques
e transes mediúnicos, faziam orações para santos católicos. Esse caso, de um oficio
coletivo, associando uma religiosidade de matriz africana com o catolicismo, não era
raro entre os rituais “angola” e “congo”, embora também não se possa dizer que era
permanente. Ao aconselhar um trabalho para amolecer o coração de uma suposta moça,
pela qual o jornalista estaria interessado, Ignácia disse:
Nosso pae “qué” qui elle reze todo santo dia dez “Ave Maria” e cinco “Salve-
Rainha”; acenda, no matto, duas velas a “sinhó” do Pastorinho e “de” em S.
Cosme e Damião uma surra de “foia” de alecrim com mangericão.
Si “pude trazé” uns “fio” do cabello della nós “fazemo” outra reza e ella será
delle”.560

“Bater” em uma imagem usando ervas era tradição antiga. Nos rituais de magia,
vários santos foram objetos dessas práticas, sendo Santo Antonio, São Benedito e Santo
Onofre os mais comuns. Por outro lado, é interessante observar que se estabelece um
jogo de poder entre o “pai” e os santos para a solução dos possíveis problemas, com o

556
A Época, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1915, p. 1.
557
Ibidem, p.2.
558
Ibidem, p. 1.
559
Ibidem, p. 2.
560
Ibidem, p. 1.

162
poder de, através de rezas e “mandingas”, fazer com que a pretensa moça aceitasse o
jornalista. A cerimônia terminou com todos os presentes ajoelhando-se e rezando o
Credo. As velas, depois de apagadas, foram levadas para o quintal, para serem
enterradas em um buraco, com os ramos de manjericão e alecrim que serviram para as
benzeduras. Quando o jornalista foi pegar o bonde, acompanhado de Gonzaga e do
grupo dos “feiticeiros” Cabinda, perguntou se eles não moravam naquele local.
Gonzaga respondeu que só Ignácia, eles residiam na cidade e não realizavam as sessões
lá, porque: “a puliça não deixa. Os ‘jorná’ nos persegue e só não persegue os
‘curandeiro rico”.561
O “feiticeiro” Pedro Gonzaga, cabinda, estabelece uma linha dividindo um
aspecto fundamental nas experiências religiosas das comunidades negras no Rio de
Janeiro: feiticeiros pobres e feiticeiros ricos, esses localizados no centro da cidade e
gozando de uma certa liberdade, como Cypriano Abedé, Alabá e outros. Não podemos
esquecer que, no mesmo período da reportagem com Pedro Gonzaga, em 1915, o
poderoso Abedé publicava anúncios dos seus serviços: “Sciencias Occultas. Pratica do
fetichismo segundo o rito dos habitantes da Africa, consultas pelo ministro africano
Cypriano Abedé, á rua Marques de Leão, n.53, Engenho Novo”.562
O fato de Abedé apresentar como endereço o Engenho Novo chama a nossa
atenção: por que estaria ele nesta outra “Pequena África”? Certamente, não seria para se
esconder da ação policial, ou ele não colocaria anúncio no jornal. Seria para marcar
presença em um local em franco crescimento devido à expansão da linha ferroviária, ou
disputar o poderoso mercado do feitiço com outra comunidade religiosa? Muito
provavelmente, foi pela concorrência, uma vez que ele fazia questão de, em nota,
acrescentar que era “o unico africano olossaim diplomado que existe nesta capital”, ou
seja, ele se reconhece como possuidor de um poder que os outros não tinham.563É
interessante notar que outro africano “mina”, Querino Gonçalves Martins,564 muito
antes de Abedé, buscou o Engenho Novo para realizar suas práticas:

561
A Época, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1915, p.1.
562
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1914, p. 9.
563
Provavelmente, o diploma que Cypriano Abedé, em seus anúncios, afirmava possuir era o chamado
decá. Segundo Tancredo da Silva Pinto, na tradição do "santo" africano, o decá é entregue pelo babalorixá
ao iniciado, no sétimo aniversário da iniciação ou "feitura" de cabeça. A bandeja do ritual contém os
apetrechos que simbolizam o grau sacerdotal africano. Esses apetrechos recebem, em conjunto, o nome de
decá. PINTO, Tancredo da Silva; FREITAS, Byron Torres de. Umbanda Guia Espiritual para
Organização de Terreiros. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1972. p.68.
564
Segundo Carlos Eugenio L. Soares, em 1881, a polícia invadiu uma casa, próxima ao Campo de
Santana, na rua do Príncipe, que seria “casa de pretos minas”. Os presos eram Serafim Henrique, os
nossos já conhecidos Tito Augusto Dionísio dos Santos e Querino Gonçalves Martins, mina de 58 anos.

163
O Dr. Borttamio, subdelegado do 1º Districto do Engenho Novo e seu
escrivão, deram busca, antehonte, na casa nº 11 do Morro da Boa Vista, onde
mora o preto Quirino Gonçalves Martins e ali apprehenderam grande
quantidade de bugingangas entre ellas dous manipansos, mamadeiras e
vestimentas próprias para feitiço.
Quirino já é conhecido pela policia onde tem termo para deixar a tal
profissão, porém para elle não há regeneração possível. 565

A magia da região dos herdeiros de Tia Chimba tinha outros personagens, como
o celebre Gungunhana. Na relação de centenários publicados pelo Censo de 1906,
consta
Marcolino Jorge dos Santos, com 110 anos de edade, viuvo, africano,
analphabeto, profissão ignorada, recenseado à Rua Miguel Angelo, casa s/nº
(barracão). Veiu para o Brasil com 5 anos de edade. Vê e ouve bem. Tem
mania religiosa, é curandeiro e está sofrendo de amolecimento cerebral. Não
tem filhos.566

O que o censo não revelou, embora tenha registrado que ele era curandeiro, é
que o velho Marcolino era o Gungunhana. O apelido era uma referência ao líder
africano, chefe dos vatuas, que lutou bravamente contra a ocupação portuguesa em seus
territórios. Segundo matéria publicada no Diário de Notícias, 30.000 súditos desse
régulo invadiram, em 1886, o distrito de Inhambane, no combate à soberania
portuguesa.
Gungunhana era o mais forte pontentado de toda a costa oriental da Africa e
gozava de tal prestígio, que a própria Inglaterra não se dedignava render-lhe
por vezes sua homenagem, chegando a própria rainha Victória a oferecer-lhe
presentes, como fez uma vez em que, para captar a sympathia do famoso
regulo, numa questão de limitação de fronteiras, lhe ofereceram uma
gingantesca taça de prata lavrada, onde se lia esta inscrição:
To Gungunhama: Victoria Queen.567

O chefe político Gungunhana, depois de muitos combates, foi preso pelos


portugueses, levado para Angra do Neroismo, falecendo na prisão. O nosso
Gungunhana, feiticeiro do Meier, também sofreu perseguição. Em 1900, sua casa foi
invadida pela polícia.
Na busca effectuada pelo dr. Delegado da 17ª circunscrição, na espelunca do
celebre Marcolino Jorge dos Santos, alcunhado Gungunhana, onde celebra as
suas sessões de feitiçaria, foram encontrados os seguintes objectos: um
bengalão, um cacete torneado, gallinhas pretas, sapatinhos de creanças, um
sacco com diversas hervas e outras bugingangas.568

SOARES, Carlos Eugênio L. “Os últimos malungos: moradia, ocupação e criminalidade entre libertos
africanos, 1860-1900”. In: FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos e SOARES, Carlos
Eugênio L. Op. Cit., 2005.p. 162
565
Brazil, Rio de Janeiro, 30 de maio de 1884, p.3.
566
Recenseamento da Cidade do Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1906. Districto do Meyer. p. 161.
567
O século, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1907, p. 3.
568
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1900, p.1.

164
A matéria não traz nenhum indício sobre Marcolino ter sido preso, mas a ação da
polícia se fazia sentir nessa outra “Pequena África”, onde em 1913, também foi preso o
preto Faustino de Oliveira, o dr. Faustino, “perigoso feiticeiro”, que seria autor de
vários crimes de defloramento.
O bandido aproveita-se das suas feitiçarias para seduzir menores, tendo já
violentado várias delas.
O dr. Faustino responde a um inquerito no 16º districto e outro no 19ª.
Hontem foi elle preso pela policia deste disticto, por ser ausado de ter
violentado uma menor da rua Lins de Vasconcellos e outra na casa em que
elle mora e faz suas bandalheiras, à rua Miguel Angelo.
Dessa vez, ao que parece, ele não escapará da Justiça.569

Dr. Faustino e suas três esposas estamparam os noticiários dos jornais. O


inquérito da 19º distrito apurou os seus crimes, mistura de curandeiro e feiticeiro,
residente à rua Miguel Angelo, n.469, no Meier. As matérias enfatizam a notoriedade de
Faustino de Oliveira, pois a sua “tenda”, acorriam pessoas dos subúrbios e de outras
áreas da cidade.
De ha muito que a policia do 19º districto vinha recebendo consecutivas
queixas contra o espertalhão, sem contudo tel-as apurado convenientemente.
As queixas, porém, succediam-se, chegando ao ponto da vizinhança reunir-se
e ir à delegacia exigir do respectivo delegado providencias immediatas.
Incontinente, o delegado, acompanhado de vários comissarios, partiu para a
casa indicada e, factos que provavam as denúnciass, encontrado ali resolveu
deter os presentes. O “doutor Faustino”, este que na occasião dava uma
sessão aos “pobres”, fugiu precipitadamente, deixando sobre um movel a
quantia de 6.000, fructo de seus “trabalhos.”570

Com a fuga do feiticeiro, foram então levadas para a delegacia as pessoas que se
achavam na casa: Georgina de Oliveira Costa, Julieta da Conceição Silva e Orminda
Rosaria de Andrade, que auxiliavam o “doutor” nos seus trabalhos. As três mulheres, ao
serem interrogadas, declararam-se “esposas” de Faustino: Georgina era casada
civilmente com o “feiticeiro”, Julieta casada na religião que professavam e Esmerinda
“há pouco deflorada pelo satyro é sua amante, vivendo todas sob o mesmo tecto”.571
Foram encontradas também na casa, Martinha Francisca de Oliveira e Paulina Maria de
Conceição, de 16 anos, há pouco deflorada pelo seu namorado. Ambas procuravam
soluções para seus problemas sentimentais: a primeira que seu amante fizesse as pazes e
voltasse para a sua companhia, e a segunda implorava “a ‘protecção’ dos bons ‘officios’
do ‘pachá’, para que o seu namorado, que há muitos dias não lhe ia ver, voltasse e

569
A Época, Rio de Janeiro, 9 de março de 1913, p. 9.
570
O Imparcial, Rio de Janeiro, 31 de maio de 1914, p. 3.
571
Ibidem, p.3

165
disposto a casar-se”.572 Faustino, segundo os noticiários, também alugava cômodos de
sua casa para encontros de casais.
A forma como Faustino de Oliveira foi tratado pode ser comparada, mais uma
vez, com o caso de Juca Rosa, especialmente a constante alusão à sedução que exercia
sobre as mulheres. Nenhuma das reportagens dá maiores detalhes sobre os rituais
realizados por ele, mas afirmavam que as esposas eram as “auxiliares” do “feiticeiro”. A
foto das três mulheres constrangidas, uma delas com um filho pequeno no colo, da casa
e da “mesa de trabalho” ilustraram as reportagens. Ainda foi destacado o número de
bugigangas levadas para a delegacia, assim como ocorreu na casa de João de Almeida e
sua mulher Olegária Mariana.
As autoridades do 17º distrito, invadiram o “candomblé” da rua Itacuruçá, n.96,
no Engenho Velho e encontraram João de Almeida no momento “que pontificava sobre
sortilégios, prometendo desmanchar feitiços e preparar serviços, e a Olegária distribuía
as ervas, os breves, os manipansos em troca de pratas de um e de dois mil reis”.573 Os
fregueses, aproximadamente dez pessoas, foram conduzidos à delegacia, acompanhando
João de Almeida e Olegária. Também foram apreendidas várias ervas, santos, latas de
pólvora, manipansos, velas e outras bugigangas. Os clientes foram, em seguida, postos
em liberdade, mas o casal “feiticeiro” ficou detido.
Comparando os dois casos, de Faustino e de João de Almeida, pode-se perceber,
pelas descrições feitas nos jornais, que um, com suas esposas, realizava “sessões”
individuais, ao contrário do outro casal, com sessões coletivas. No entanto, ambos
davam “consultas”. No caso de João de Almeida, cuja casa foi invadida pela manhã, a
frequência era constante e numerosa. Isso pode significar que os dois “feiticeiros”
estivessem aplicando uma prática que iria tornar-se cada vez mais comum no século
XX: a separação entre a “consulta” dos clientes e os rituais realizados com os iniciados.
Entretanto, não podemos deixar de observar que muitos que recorriam ao poder
dos “feiticeiros”, babalorixás, ou pais de santo, ou qualquer outra terminologia que
queiramos usar, iam em busca de cura de doenças ou outros problemas do cotidiano. Os
curandeiros eram os “médicos” mais próximos a quem a população pobre recorria. Na
matéria publicada sobre um “candomblé”, no Rio de Janeiro nos anos 1920, o delegado
Augusto Mendes invadiu a casa de Manuel Ventura, prendendo o chefe da casa e seus
consulentes que foram identificados como:

572
O Imparcial, 31 de maio de 1914, p.3.
573
O Paiz, Rio de Janeiro, 24 de maio de 1918, p. 6.

166
Antonio Joaquim Ramos, acompanhado de sua esposa Maria Antonia da
Conceição, para tratamento de uma ferida numa perna; Luiz Cerqueira, para
tratamento de syncopes; Antonio Rodrigues, acompanhando sua filha
Margarida, para tratamento de uma ferida no pescoço; Ângelo Escalarte
acompanhando sua filha Rosa, muda e surda; Antonio Cosme,
acompanhando sua futura sogra, que soffre de reumathismo e Manoel Eloy,
com uma ferida no pé e innumeras outras pessoas. 574

Os identificados pelo delegado eram pessoas acompanhadas dos familiares,


buscando tratamento para suas doenças e foram liberadas por ele, que, no entanto,
prendeu Manuel Ventura, o “dono da macumba”. Naturalmente, a matéria não deixou
de ressaltar as “provas da feitiçaria”: “O delegado Augusto Mendes fez lavrar, também,
um auto de appreensão de 14 punhaes, um collar de phantasia, um baralho de cartas,
quatro velas, sete carimbos, e 19 charutos, tudo apprehendidos na mesa do pai de
santo”.575
Nas primeiras décadas do século XX, de várias regiões do país, uma grande
parte da população negra rural vislumbrou o Distrito Federal como possibilidade de
emprego e melhoria de vida. Esses grupos buscaram formas de se incorporar à vida
urbana e, em grande número de casos, as religiões foram fundamentais na ocupação.
Novos grupos recém-chegados povoaram principalmente os morros, que, no início do
século XX, ainda apresentavam aspectos de áreas rurais, e, à medida que as linhas
férreas se expandiam, ocupavam os subúrbios. Nessas localidades, ocorria uma maior
convivência entre antigos moradores e aqueles que chegaram no início do século XX,
possibilitando interessantes trocas culturais. Temos, como exemplo, Fé Benedita de
Oliveira, a popular Tia Fé, baiana nascida na segunda metade do século XIX e moradora
no morro da Mangueira em 1910. Ela era muito ligada a Hilário Jovino e criou o rancho
Pérolas do Egito, de considerável importância na origem da Escola de Samba
Mangueira,576 que, em 1916, constava da imensa lista das sociedades, grupos e cordões,
assim como o Ameno Resedá, Prazer do Castello e o Club Liga Africana, licenciados
pela polícia para saírem nos três dias de Carnaval.577 Tia Fé fez parte da efervescência
cultural que tomou a cidade na primeira metade do século XX, sendo também
conceituada “mãe de santo”.

574
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 23 de julho de 1927, p.4. É importante ressaltar que pelo código
penal de 1890, o curandeirismo era proibido por lei.
575
Ibidem.
576
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.
p.648.
577
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 de março de 1916, p. 3.

167
Os morros eram espaços que, devido ao crescimento populacional e as
dificuldades de habitação, eram a opção para a população, antiga ou recém-chegada.
Eles apresentavam variada expressão cultural, especialmente a música. Porém, os eram
objeto de ações policiais, uma vez que se considerava seus moradores e suas práticas
sempre “suspeitas”. No início do século XX, o morro do Trapicheiro, atual morro do
Salgueiro,578 chamava a atenção das autoridades da 10ª circunscrição, devido à
ocorrência, no local, de uma “dansa macabra”:
Há uma dansa, ou que melhor nome tenha, que, entre os pretos minas, é
conhecido pelo nome de macumba. Pois bem, essa dansa é muito usada entre
os moradores do Trapicheiro - homens mulheres, creanças, executam a
macumba, debaixo de uma algazarra infernal, acompanhada, como sempre,
de palavras imoraes, proferidas em altas vozes. Essa festa é feita aos
sabbados.
Os que tiverem a infelicidade de residir numa das casas do fim da rua dos
Araujos, fatalmente, tem de passar o sabbado em vigília forçada, podendo
dormir tão somente no domingo. No meo da tal dansa há uma cantiga,
acompanhada de vozes desafinadas e d’uma tal entonação que encommoda
pela monotonia. Disseram-nos que aquillo é o terço resado. Qual terço!
Aquelles gritos, que são ouvidos até no Andaray Grande, os cantos da
macumba podem ser lá terço resado!579

Embora relatando que as danças incluíam crianças e reza do terço, a notícia, de


maneira preconceituosa, indica que o Trapicheiro, era um local de “algazarra infernal” e
de “palavras imoraes”. A visão sobre o “outro”, via-de-regra, é marcada pelo
preconceito, e foi a partir dessa perspectiva que as experiências religiosas dos africanos
e seus descendentes foram, na maioria das vezes, observadas.
Em 1918, no Salgueirinho, um “candomblé” foi invadido e seu líder , Joaquim
da Silva, de cor preta, foi preso quando a polícia do 21º distrito arrombou seu
barracão.580 Provavelmente, Joaquim já devia ter ouvido falar no “feiticeiro” João da
Matta, que, em 1916, teve seu barraco, no Morro do Salgueiro, também “visitado” pela
polícia: “A ‘negrada’ estava toda reunida no Morro do Salgueiro, em completa nudez,
fazendo cômicos trejeitos diante do manipanso”.581 João da Matta estava em pleno
ritual, acompanhado de Emilio José e João Cosme Francisco, com cânticos e danças
africanas, assistidos por Maria de Mello e Maria da Conceição: “Depois de vestidos,

578
No site da Escola de Samba Salgueiro, consta o relato de Anescar Pereira Filho, Anescarzinho do
Salgueiro, sobre quando o local ainda era conhecido como Morro dos Trapicheiros, devido ao trapiche
existente na parte baixa do morro. O nome do morro mudou por causa de José Salgueiro, dono da maior
parte das terras. Segundo o depoimento de Anescarzinho, era na casa de seu pai que ocorriam os
encontros dos sambistas. Em <http://www.bercodosamba.com.br/bio_anescarzinho.asp>. Acesso em 13
de setembro de 2013.
579
Cidade do Rio, Rio de Janeiro, 16 de junho de 1902, p. 2.
580
O Paiz, Rio de Janeiro, 10 de junho de 1918, p.5.
581
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1916 p. 5.

168
sobraçando o alecrim, a arruda, os dentes de jacaré, as pelles de bode preto, os rosários
complicados de marfim, foram os cinco feiticeiros recolhidos ao xadrez do 16º distrito
policial”.582
As matérias publicadas pelos jornais, nas primeiras décadas do século XX,
apresentam um mapa de como as experiências religiosas de “matrizes africanas”,
distribuíam-se nos territórios cariocas. Embora com forte preconceito, tais narrativas
jornalísticas são fontes originais, posto reproduzirem a maneira como a sociedade, em
geral, era “informada” sobre uma parcela da população e suas práticas, objetos de
atenção da política repressora republicana. Além disso, mostra como a imprensa estava
engajada na “cruzada” repressiva do poder publico. Em 1917, em pleno estado de sítio,
“os candomblés e casas de feiticeiros”, assim como jogos, vadiagem e cartomantes eram
assuntos centrais do periódico A Época, que cobrava da polícia,
lançar também as suas vistas para os “candomblés” e casas de feiticeiros em
nossa cidade. Não há razão, não há nada que explique a existência destes
antros de prostituição e miséria e onde são explorados os incautos, sem que a
policia procure deitar-lhes a mão e remettel-os sem demora para a Colônia
Correcional.583

Dentro de seus objetivos “saneadores”, o periódico se oferecia para fornecer à


polícia uma lista das casas de “feitiçaria”. A mesma atitude aparece na Gazeta de
Noticias, que aponta os subúrbios como dominado por feiticeiros:
o Pinto, em Quintino Bocayuva; o Barnabé, na Piedade, o Domingos e
muitos outros cuja celebridade vai longe. A casa do feiticeiro dos subúrbios,
em dias de funcção ou não, infunde terror e causa nojo. Quase sempre é um
velho pardieiro afastado dos logares populosos e onde a immundície ressalta
aos olhos de toda a gente.584

O texto da Gazeta de Noticias insistia nos aspectos depreciativos e descrevendo


que os locais de culto possuíam uma mesa, forrada com uma toalha branca, com dentes
de bichos, búzios, altar com imagens, e uma salva, para depósito de moedas e “até
dinheiro grosso”. Ressaltando que a polícia estava dando caça aos “exploradores”,
descreve a ação do delegado do 20º distrito em duas casas: “A primeira foi a de Alamiro
José dos Santos, a rua Cardoso Quintão, n. 57, e a segunda a do preto Manoel
Domingos, à rua Paiva, n.17. Estavam em plena a funcção quando a policia chegou”.585
Os crentes e os “feiticeiros” foram presos, assim como apreendidas suas “bugingangas”.

582
Ibidem, p.5
583
A Época, Rio de Janeiro, 14 dezembro 1917, p. 6.
584
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 28 de abril de 1919, p.2.
585
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 28 de abril de 1919, p.2.

169
De uma lista enorme, destacam-se trinta rosários, uma machadinha, três alfanges de
madeira, dois dentes de javaly, maracás, um prato com niqueis e sangue de galinha, dois
punhais, uma cuia com diversos objetos, toalhas brancas e de cores, vidros com dendê,
fantasias, um estandarte, um baú com velas, copos, um baú com galinhas depenadas e
cebolas e outro com penas e várias miudezas. Essa ação da polícia, assim como as
outras relatadas, ratifica a afirmação feita por Pedro Gonzaga, o “feiticeiro de Cabinda
do Meier”, de que a polícia perseguia e invadia as casas dos “feiticeiros” pobres.
Sabemos que, naquela altura, alguns “minas-baianos”, na área central da cidade,
mantinham seus espaços sem grandes sobressaltos. E mais: a ação dos jornais em muito
colaborava para essa situação.
Não era apenas nos longínquos subúrbios e no “centro da cidade” que as casas
de culto proliferavam. Na faixa das terras cariocas que, na segunda metade do século
XX, atingiria o status de área nobre, a “zona sul”, a “feitiçaria” também encontrava
espaço. Em plena rua da Passagem, n. 63, em 1918, o “rei da mandinga”, Antonio
Souza, fazia suas sessões com músicas cantadas. Isso chamou a atenção da polícia do 7º
distrito, que invadiu o “candomblé”. “Pai Antonio”, ‘repimpado em uma cadeira
real”,586 Guiomar de Souza, Albertina do Nascimento, Justa Modesto e Zózimo Paiva
foram presos, assim como, em 1919, Octaviano da Silva. O candomblé do Octaviano da
Silva funcionava na rua Maria Eugenia, n. 17, na Gávea, e as autoridades do 21º distrito
já haviam tomado conhecimento daquele “antro de feitiçaria”:
Na madrugada de hontem, soube a autoridade que, para o interior desta casa,
haviam entrado varias mulheres, crentes nos bruxedos e convictas do poderio
mágico do feiticeiro, capaz de preparar excellentes despachos e valorosos
breves para todos os malefícios imaginados. Imediatamente foi dado cerco à
casa referida e surpreendido o feiticeiro, com suas sete crentes, em pleno
candomblé. Presos todos em flagrante, além de apprendidos todos os
petrechos de feitiçaria, foram todos conduzidos à delegacia do 21º
districto.587

O “feiticeiro” identificou-se na delegacia como Octaviano Eugenio da Silva e as


crentes eram Maria da Conceição, Julieta Ferreira, Joaquina Maria da Conceição,
Margarida Chagas e Marcellina Chagas. Mas, nesse caso, houve uma surpresa: “as
mulheres, todas pretas, eram empregadas como cozinheiras e mucamas, na redondeza,
sendo mais tarde, muitas dellas, reclamadas por seus patrões na delegacia”.588 Octaviano
Eugenio da Silva, “negro alto e espaúdo”, tinha 40 anos e era casado com Arminda da

586
O Paiz, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1918, p. 6.
587
O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1919, p.5.
588
Ibidem.

170
Silva,589 que o auxiliava no candomblé. Disse que era cozinheiro do cônsul holandês e,
segundo a vizinhança, sua casa, durante o dia, tinha um aspecto bastante sossegado:
“sempre de portas cerradas, e era frequentado por senhoras trajando custosas toilette e
por homens de colarinho lavado, como a gyria determina as pessoas de posição
elevada”.590
Quando foi surpreendido pela policia do 21º districto policial, o preto
Octaviano, que é bastante protegido por pessoas de destaque, estava coberto
de uma túnica azul, tendo na mão uma lata contendo areia e uns cavalos
marinhos. Variadissimos os petrechos de feitiçaria encontrados no antro: era
um verdadeiro arsenal de feitiçaria, vidros cheios de cobras e peixes, latas de
pólvora, punhaes e espadas, um espedagão enferrujado, um legitimo punhal
árabe, de lamina retorcida e bainha forrada de arabescos, garrafas de vidro,
papeis com signaes cabalísticos, peças de roupas amarradas e crivadas de
alfinetes, arcos, e bodoques, barralhos de cartas, hervas, gêneros alimentícios
e até moedas de vários valores e de diferentes paizes.
Tudo foi removido para a delegacia em um caminhão. No meio dessas
bugingangas foi encontrado um maço de volumosas correspondência, com
cartas firmadas com nomes conhecidos, dentro dos quaes se destacava uma
assignada por Matheus, convidando o feiticeiro Octaviano a ir a Jacarepaguá
exercer sua influencia contra os srs. Raul Pinheiro e Raphael Pinheiro. 591

As mulheres, após serem interrogadas, foram postas em liberdade, mas o


“feiticeiro” continuou detido. Possivelmente, graças as suas boas relações, não ficou
preso por muito tempo, mas teria novos problemas. Em 1920, a menor Helena da Costa,
de 15 anos, faleceu na casa de seu pai, Balbino Affonso, residente à rua do Humaitá,
n.154. Após o sepultamento de Helena, a polícia recebeu a denúncia de que ela havia
morrido devido a uma beberagem ingerida na casa de um feiticeiro: Octaviano Eugenio
da Silva. O delegado Lucena, encarregado da investigação, ficou de ouvir Octaviano.592
A acusação pode ter sido feita por algum desafeto interessado em prejudicar o
“feiticeiro”, mas suas boas relações com pessoas influentes talvez o tenham livrado
dessa nova ocorrência. Logo depois, foi apurado que Helena fora vítima de morte
natural, e o curandeiro foi posto em liberdade.593 Octaviano continuaria atuando e, em
1930, no juízo da 5ª vara criminal, foi denunciado sob acusação de praticar falso
espiritismo.594

589
Os proclamas de casamento de Octaviano Eugenio da Silva e Ormendina Maria da Conceição foram
publicados no O Paiz, Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1917, p.5.
590
O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1919, p.5.
591
Ibidem.
592
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de maio de 1920, p.4.
593
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1920, p.8.
594
A Noite, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1930, p. 4.

171
A “cruzada” movida pelas autoridades e encampada pelos órgãos de imprensa
atingiu também o candomblé do Ludgero. As características da roupa usada por
Ludgero sugerem tratar-se de um culto da tradição nagô.595
Já os jornaes tem movido uma enérgica campanha contra essa casta de
exploradores que vive à custa da crendice popular. Esses espertalhões, que
quando em vez ajustam contas com a nossa policia, continua a manter seus
antros, onde o incauto ali vai deixar o dinheiro ganho a custo, em troca de
meia dúzia de palavras balofas e de outros tantos passes que de mágicos só
tem nome.
E assim, os adivinhos de meia tijela, armam as suas tendas e ali esperam,
confiantes, o cliente que na maioria dos casos, e pela própria igonorancia são
convencidos de que tudo “aquillo” é verdade. A concorrência augmenta, os
“mágicos” sorriem de contentes, pelo resultado obtido, e é esse o “negocio”
de que muitos indivíduos desocupados vivem, prejudicando inúmeros outros.
Contra esses é que precisa agir, sem restrições, a nossa policia, e o fizeram
hontem, nesse sentido, as autoridades do 6º distrito é digno de menção. Sabia
a policia, por denúncias, que há pouco fora installado um consultório de
adivinhos, à rua Cardoso Junior, n.157.
Hontem, à noite, o commissario Vital, de serviço na delegacia, dirigiu-se a tal
casa, acompanhado do agente Januário, de guardas-civis e praças. Ao chegar
ao consultório, a autoridade ficou surpreza em ver tanta gente ali, em silencio
quase religioso. Eram cerca de 30 crentes, que ouviam, pasmados,
boquiabertos a palavra do mágico Ludgero Marques da Silva, bahiano, de cor
preta e que na sessão estava com uma veste de cor avermelhada. Ludgero,
pois, bem installado com seu candomblé tinha ao lado seu secretario- o
Perciliano da Silva. Por todos os cantos viam-se bugingangas; pássaros,
armas, pinturas de toda a sorte. -Parem com isso! Gritou a autoridade.596

Entretanto, nem sempre o grito da autoridade era acatado nos espaços


religiosos, e muitos reagiam contra as ações policiais, como aconteceu durante a
“Campanha Saneadora” realizada pelo delegado Barros Cobra que enfrentou os adeptos
do “Gonga”: “os filhos de urubamba”.597O periódico chama a atenção para a campanha
que tem movido contra os “feiticeiros”, colaborando para uma ação mais intensa da
polícia:
Com esse procedimento da policia, “A Época”, sente-se satisfeita, porque,
ainda não há muitos dias, em sucessivas reportagens, denunciávamos toda a
sorte de “trucs” empregados pelos charlatães, para explorar os incautos. Isso,
porém, não basta. Torna-se preciso que a policia, numa campanha séria,
vareje os outros covis, situados principalmente, na zona suburbana. Na
madrugada de hontem, o dr. Barros Cobra, tendo denúncias de que na casa de
Germano Bento da Silva, no Morro dos Cabritos, em Copacabana, reuniam-
se homens e mulheres para a pratica de “candomblé”, para lá se dirigiu,
cercando a casa. Penetrando nella, em seguida, o delegado do 30º districto
pode observar que os “irmãos” e “irmãs’, pouco decentemente vestidos,
achavam-se reunidos sob a presidência do soldado, musico da brigada

595
Em registro civil de um homem, identificado apenas como Jorge, consta Ludgero Marques da Silva
como sendo o pai. DOU, Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1930, p.39.
596
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1916. p.3.
597
A Época, Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1915, p. 4.

172
policial, n.1072, Epiphanio Gomes de Araujo 598 – o “Gonga”, nome que lhe
compete como chefe dos “Filhos de Urubamba”, cuja sede é alli. 599

Segundo a matéria, no local eram cantadas músicas “esquisitas”, dançavam e


havia uma “gritaria infernal”. Como a casa foi cercada pela polícia, com soldados e
guardas civis, não houve fugas. O “Gonga”, chefe da casa cercada, era o soldado
Epiphanio Gomes de Araujo, e, com ele, estavam Álvaro de Aguiar, Theodoro
Francisco Ramos, Euclydes Gouvêa, Palmyra de Lima, Maria da Gloria Aguiar e Rosa
Maria da Conceição. Dessa vez, um fato inesperado aconteceu: os soldados que
acompanhavam a ocorrência, ao saberem que o chefe do candomblé era um soldado da
Brigada Policial, recusaram-se a levá-lo preso. O delegado do 30º districto, porém,
fazendo valer a sua autoridade, prendeu os insubordinados, fazendo-os apresentar-se ao
comando da Brigada Policial. Da casa dos “filhos de Urubamba”, foram levados vários
objetos para a delegacia, como as costumeiras ervas, facas e, singularidade, um livro de
receitas.
Ainda em 1915, mais uma casa seria invadida pela polícia, dessa vez, no outro
extremo da cidade, num longínquo subúrbio: “nos subúrbios, essa indústria de
curandeiros tomou uma proporção verdadeiramente assustadora. Proliferam as casas de
bruxaria e multiplicaram-se os exploradores”.600
A casa invadida pertencia a Ignácio Rosas que, segundo a matéria, era um preto
que residia, há muitos anos, em Barros Filho, dava sessões todas as noites em sua casa
e “os papalvos que lá appareciam tinham que pagar bem pago as suas consultas”.601 A
invasão da casa de Ignácio Rosas foi comandada pelo cabo comandante do
destacamento da Pavuna, quando o curandeiro estava atendendo a seus “clientes”. O
policial aplicou uma surra em Rosas, ferindo-o no braço esquerdo, e todos que estavam
na casa foram levados para a delegacia: Maria Antonia, de 27 anos, Joana Rosas, de 27
anos, Christina da Silva, de 18 anos, Emilia do Carmo, de 25 anos, e Maria do Carmo,
19 anos. No local, foram apreendidas beberagens e duas latas de pólvora. As mulheres
teriam relatado que o preto Rosas curava moribundos, unia casais separados,
desmanchava questões e queimava espíritos. Porém, Rosas declarou: “curo com as
hervas que os espíritos me indicar... As vezes me apparecem espíritos mãos. Então eu os

598
Epiphanio Gomes de Araujo. Consta do Diario Oficial da União, Rio de Janeiro, 30 de novembro de
1913.
599
A Época, Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1915, p.4.
600
A Noite,Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1915, p.1
601
A Noite, Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1915, p.1.

173
queimo”602. Ao ser questionado sobre o uso da pólvora, teria afirmado: “Para queimar
os espíritos. Ponho um pouco na mão e ataco fogo.”
A reportagem concluiu que era um “truc” de Rosas, e que ele não se queimava
porque tinha “a face palmar grossíssima”. No entanto, Silvio Romero registrou o
vocábulo “Tuya” como significando “Fogo” entre os cabindas.603 Nas casas de culto, é
comum o uso do fogo – com o emprego de pólvora. A tuya ainda é empregada em
rituais de iniciação ou de “descarrego”. Parés, analisando a iniciação aos voduns,604
destaca: “no princípio do processo de iniciação, o indivíduo sofre uma morte ritual,
seguida de um renascimento em uma nova vida espiritual, sob os auspícios da
divindade.”605 Desse modo, o que Rosas fazia não era um “truc” para enganar os
clientes: ele estava utilizando um elemento do universo mágico dos rituais afro-
brasileiros.
É interessante observar que havia na casa de Rosas uma característica bastante
comum nas religiosidades afro-brasileiras: a presença de familiares dos líderes
participando das atividades. Nas notícias divulgadas por diferentes jornais, em épocas
diferentes, aparecem os nomes de Ignácio e Luiz Rosas. De acordo com o Correio da
Manhã, Luiz Rosas, o mandingueiro, era “ creoulo de 54 anos”.606 Luiz teria, em 1915,
54 anos, e Ignácio, em 1927, estava com 48 anos. Portanto, entre eles havia uma
diferença de 18 anos, o que pode ser um indicativo de serem pai e filho. Entretanto,
existe uma coincidência entre todos os relatos: a maneira preconceituosa como os dois
são identificados.
A invasão da casa dos Rosas, em 1915, teria sido organizada porque um cabo do
destacamento policial estabelecido na Pavuna resolveu acabar com a “feitiçaria” e,
abusando de sua autoridade, cercou a casa. Os presos foram conduzidos ao 23º distrito
policial, em Madureira.607 Para a Gazeta de Noticias, o cabo organizou aquela invasão
porque: “Elle fora ludibriado por um feiticeiro do logar e para vingar-se deu um cerco à
casa do mesmo permitindo que o delegado do 23º distrito realisasse uma optima

602
A Noite, Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1915, p.1.
603
ROMERO, Silvio. A poesia popular no Brazil. Revista Brazileira, Tomo I, p. 94-102, 1879, p.99.
604
Vodum é a denominação genérica dos deuses jejes. Segundo Câmara Cascudo, na África, os cultos
nagôs, dos orixás, e jejes, dos voduns, eram muito semelhantes. Cascudo observa que, no Brasil,
predominaram as práticas yorubá, mas os jejes deixaram “rastros vivos” nas religiões afro-brasileiras.
PARÉS, Luis N. Memórias da escravidão no ritual religioso: uma comparação entre o culto aos voduns
no Benim e no candomblé baiano In: REIS, João J. e AZEVEDO, Elciene. Escravidão e suas sombras.
Salvador: Edufba, 2012. p. 111-142. p. 916.
605
Idem, Ibidem, p. 121.
606
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1915, p.3.
607
Correio da Manhã. 10 de novembro de 1915,p3

174
diligencia”.608 Em uma nova invasão policial, feita pela as autoridades do 23º districto
policial, em 1919, Ignácio Rosas foi levado preso609, e, com ele, foram presos nove
clientes; nenhum deles constava da lista dos presos em 1915.610
Possivelmente, os Rosas conheciam um outro “feiticeiro” que atuava na vizinha
localidade de Costa Barros e que também teve sua casa invadida. Em 1916, o delegado
Abelardo Luz, do 23º distrito, recebeu a denúncia de que, nas proximidades da estação
de Costa Barros, havia um indivíduo, Joaquim Rodrigues, vulgo “Pai de Santo”, que
realizava “candomblés, para explorar uns tantos crédulos daquela localidade”611.
Joaquim, segundo a matéria, estava seminu, segurava um punhal e “tirava o diabo do
corpo” de um paciente. Da “sessão”, participavam Florência Maria da Conceição e
Severina Maria da Conceição, completamente nuas. Parte dos crentes fugiu, mas foram
presos: Manoel Marcelino, Antonio Joaquim de Oliveira, Severina e Firmina Maria da
Conceição, Maria Julia da Conceição, Florência Maria da Conceição e Ismael de
Oliveira. Objetos encontrados: ervas, peles de diversos animais, caramujos. A fotografia
que acompanha a matéria mostra pessoas constrangidas e um homem idoso, Joaquim,
vestido com um longo traje sacerdotal.
As matérias jornalísticas prosseguiram durante toda a primeira metade do século
XX, sempre desacreditando as diferentes casas de culto. Ocasionalmente, os jornais
comentavam a ação abusiva da polícia, como o ocorrido com “macumbeiro” Domingos
Bastos, da Travessa Portela, n.10, quando levado para a Delegacia de Madureira, junto
com aqueles que assistiam a seus trabalhos. Domingos teve objetos e a quantia de
17$610 roubados pelo agente Valladão e o guarda civil Miranda, identificado pela
matéria como “o celebre Miranda, que há tempos quando servia no Corpo de Segurança,
foi dispensado, devido a excesso de argucia... de rato.”612 Ainda em relação a essa
matéria, é importante observar que, nesse período, é um dos poucos casos em que
aparece o termo “macumbeiro”.
O embate entre os agentes da repressão e os “terreiros” continuaram. Dois
episódios são exemplares no período:
Por fazer de cavalleiro de S. Jorge
Os jornaes noticiaram que o juiz da 2ª Vara Criminal condenou a pena de 3
annos e 6 mezes de prisão celular o creoulo Emilio dos Santos, que foi preso
num candomblé, quando fazia de “Cavalleiro de S. Jorge”

608
Gazeta de Noticias, 10 de novembro de 1915, p.2
609
O Imparcial, 20/12/1919 p.4
610
O Paiz, 28 de dezembro de 1919, p.6
611
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1916, p. 3
612
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 2 de agosto de 1916, p.8.

175
Ficamos com a impressão de que deve ser uma cousa abominável o que fazia
esse creoulo para que tenha sido condennado, nesta terra de tão proverbial
indulgencia e impunidade, a três annos e meio de prisão celular. Há
assassinos que teem tido penas menores. Tomamos nota de que “fazer
cavalleiro de S. Jorge” é crime para 42 mezes de prisão. Pior do que fazer de
cavalleiro de industria. Terrível creoulo. Que mesmo quando faz de santo
merece tão duro castigo.613

A narrativa mostra a confusão que existia para “os de fora”, em relação às


experiências religiosas dos africanos e seus descendentes, porém, o que é mais
importante, destaca a prisão de um homem cujo crime seria sua crença religiosa. Outro
caso, mostra um inusitado aspecto das perseguições: Domingos José Ribeiro, com
“terreiro” em Bangu, foi excomungado devido a conflito com altas autoridades da Igreja
por causa da procissão de S. Sebastião, que pretendia realizar para obter o declínio de
uma epidemia que atingia a cidade do Rio de Janeiro. O cardeal Arcoverde o
excomungou:
considerando que no território de Bangu existe um centro onde, sob capa de
falsa devoção, se realizam práticas supersticiosas tendentes a exploração da
religiosidade, boa fé e ignorância popular: que essas práticas supersticiosas
são abominações diabólicas condenadas pela fé, pela sociedade e até pelo
código penal.614

O advogado de Domingos José Rodrigues entrou com um habeas-corpus por


liberdade de crença. No entanto, foram excomungados, além de Domingos José
Rodrigues, outros moradores de Bangu que frequentavam a casa dele e o deputado
Otacílio Camara, que havia entrado com o habeas-corpus em favor da saída da
procissão. O cardeal Arcoverde declarou:
Nós, depois de invocado o nome de Deus e da Santíssima Trindade. Havemos
por bem fulminar como pelo presente fulminamos contra o senhor Domingos
José Rodrigues a pena de excomunhão a nós reservada. Ao mesmo senhor e a
todos que lhe deram auxilio ou de qualquer modo cooperaram, aplicamos a
pena da excomunhão, especialmente reservada ao Papa, pela Constituição
Apostólica Sedis n.1.615

Foi enviado reforço policial a Bangu, a fim de impedir a procissão de Domingos


– “um moreno, pernóstico e inteligente”616 –, uma vez que, para o Cardeal, “essas
práticas supersticiosas são abominações diabólicas condenadas pela fé, pela sociedade e
até pelo Código Penal”.617

613
Revista da Semana, Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1917, p. 24.
614
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1916, p.1.
615
O Século, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1916, p.1
616
A Rua, Rio de Janeiro,8 de fevereiro de 1916, p.1
617
A Rua,Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1916, p.3

176
Embora a constituição brasileira em vigor estabelecesse a liberdade religiosa, as
autoridades, valendo-se do código penal, colocavam à margem as experiências
religiosas de matrizes africanas, através de subterfúgios, com acusações de
curandeirismo e denúncias de defloramentos, tornando seus praticantes passíveis de
prisão e processo. Ao longo do período analisado neste estudo — desde Juca Rosa, em
1870, até os anos 1940 — esse quadro se repete. As formas como cada “comunidade
religiosa negra” lidou na busca por espaços dependeram do seu poder de articulação. Os
líderes e seus seguidores basearam suas posições na cidade, na maioria das vezes, nas
prováveis origens “étnicas” de seus cultos : os “minas-baianos” eram apoiados pela
intelectualidade, que corroboravam a “superioridade cultural dos nagôs” em detrimento
de uma suposta inferioridade das “feitiçarias dos angolas e congos”, que não
representariam uma verdadeira religião. Entretanto, a cidade tinha perpetuada uma
tradição, ligada aos povos africanos centrais, que, apesar da invasão “baiana” e as
interações culturais, permanecia forte. Slenes, comentando sobre predominância dos
centro- africanos no sudeste, afirma: “Suspeito que o candomblé “congo-angola” de
hoje têm profundas raízes nessa herança centro-africana, ou melhor, no provável longo
diálogo baiano entre centro-africanos e gente da África Ocidental”.618
Assim, no confronto entre as diferentes tradições e experiências religiosas pela
disputa de espaços e enfrentando as perseguições policiais, antigos e novos moradores
da cidade, principalmente, recém-chegados do interior do Rio de Janeiro e do Espírito
Santo, de forte influência dos povos da África Central, buscaram em antigos rituais o
elemento justificador da pureza africana, a fonte de poder de suas feitiçarias. Nesse
contexto cultural, na região da “Cidade Nova”, do qual fazia parte o morro de São
Carlos, o tata nkinsi Tancredo da Silva Pinto, divulgaria o omolocô.

618
SLENES, Robert. Entrevista. Politeia: História e Sociedade, v.10, n. 1, p.17-36, 2010, p. 25.

177
CAPITULO IV – A VELHA CIDADE NOVA: DOS QUILOMBOS, CORTIÇOS E
MUITOS MORADORES.

Em 1940
lá no morro começaram o recenseamento
E o agente recenseador
esmiuçou a minha vida
que foi um horror
E quando viu a minha mão sem aliança
encarou para a criança
que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
E se era do batente ou era da folia
Obediente eu sou a tudo que é da lei
fiquei logo sossegada e falei então:
O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro,
e é quem sai com a bandeira do seu batalhão!

Assis Valente

Assis Valente fez, com sua música Recenseamento, um retrato da população


que habitava os morros da cidade do Rio de Janeiro. Era 1940, quando foi realizado um
novo Recenseamento Geral do Brasil, o compositor destacou as condições das
mulheres, habitantes das favelas, geralmente solteiras, com filhos e, fundamentalmente,
companheiras de homens que tinham que comprovar sua condição de “decente”, ou
seja, adequado aos valores sociais dominantes.
O Recenseamento de 1940 classificou a população em três grandes grupos
étnicos: pretos, brancos e amarelos e um grupo genérico, sob a designação de pardos,
para os que registraram declarações outras como “caboclo”, “mulato” e “moreno”. No
casos de omissão, foi atribuído “cor não declarada”. O fato de a maioria dos
recenseados se declarar solteira não significa que não houvesse uniões estáveis. O dado
mais interessante é que a maior parte da população, no Distrito Federal – 1.569.301 – e
no estado do Rio de Janeiro – 1.712.733 –, declarou-se católica romana. Também
chama a atenção que muitos poucos, no item sobre a nacionalidade dos pais,
reconheceram uma ancestralidade africana. Entretanto, levando em conta os dados de
1940, a população brasileira aumentou substantivamente. Comparando os índices do
estado do Rio de Janeiro, observa- se que o Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro)
possuía uma densidade populacional impressionante.
Tabela 4: Distribuição Populacional – 1940
Distrito Federal Estado do Rio de Janeiro
1.764.141 habitantes 1.847.857 habitantes

178
Homens: 878.299 Homens: 933.439
Mulheres: 885.842 Mulheres:914.418
Brancos: 1.254.353 Brancos: 1.105.877
Pretos e pardos: 504. 956 Pretos e pardos:737.911
Solteiros: 1073660 Solteiros: 1.267.412
Casados: 560.769 Casados: 487.516
Não sabiam ler nem escrever: 518.157 Não sabiam ler nem escrever: 1.173.693
Fonte: Recenseamento Geral do Brasil -1940

Já destaquei que o centro da cidade do Rio de Janeiro, primeiramente como sede


da Corte e depois Distrito Federal, foi o destino, desde a segunda metade do século
XIX, de várias correntes migratórias. Conforme apontado por Lysia Bernardes,
O último quartel do século XIX assistira à ruína total das velhas plantações de
açúcar da região do Rio de Janeiro, com exceção da zona de Campos, no Baixo
Paraíba, e por essa mesma época teve inicio a decadência das antigas áreas
cafeeiras, que a abolição da escravidão veio acelerar. Iniciou-se desde então um
movimento de refluxo de população daquelas áreas para a grande cidade, que
atraía, simultaneamente, fazendeiros e ex-escravos. E esse êxodo de
fluminenses, mineiros e mais tarde capixabas se ampliou mais, à medida que os
cafezais fossem dando lugar aos pastos, e que no Rio de Janeiro fossem se
desenvolvendo novas atividades.”619

A região aonde começou o povoamento do Rio de Janeiro foi também a


principal meta dos migrantes que refluíram à cidade, no final do século XIX, em busca
de novas oportunidades de trabalho. Houve um imenso aumento populacional, assim
como um inchaço na área central, como a freguesia do Espírito Santo que, em 1870,
chegava a quase onze mil moradores. Considero importante, agora, traçar um quadro
evolutivo das áreas de ocupação do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX,
em relação ao que era considerado área urbana:
Tabela 5: Áreas Urbanas

1849: Candelária, Engenho Velho, Glória, Lagoa, Sacramento, Santana, S. José e Santa Rita

1870: Candelária, Engenho Velho, Glória, Lagoa, Sacramento, Santana, S. José , Santa Rita, S. Antonio,
S. Cristovão e Espírito Santo

1890: Candelária, Engenho Velho, Glória, Lagoa, Sacramento, Santana, S. José, S. Rita, S. Antonio, S.
Cristóvão, Espírito Santo, Gávea e Engenho Novo
Fonte: Recenseamento de 1906

Com tais informações, seria possível relativizar as áreas centrais, urbanas,


suburbanas, periféricas e rurais do Rio de Janeiro, ao longo da segunda metade do
século XIX. Verifica-se que algumas delas foram incorporadas à área urbana, como a
Gávea que, com a necessidade de moradia decorrida do aumento populacional das

619
BERNARDES, Lysia M.C. Considerações sobre a região do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de
Geografia, ano 33, n.4, p.97-107, out-dez 1971, p. 102.

179
últimas décadas oitocentistas, passou a representar uma solução para o problema da
elevação dos preços no centro. Novos moradores tiveram que disputar espaços com uma
população mais antiga, especialmente escravos, libertos africanos, crioulos e livres
pobres, que haviam se deslocado para locais menos nobres.
É fato que, no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o
Distrito Federal, com suas obras de modernização, constituíram polos de atração para
migrantes. Todavia, os problemas de moradia atingiram também aqueles que foram
desalojados com o desmonte do morro do Castelo, desde a primeira intervenção em
1904, até o desmonte total, iniciado em 1920, na administração do prefeito Carlos
Sampaio. Para uns, os morros fora da área mais central representavam a solução de
moradia; para outros, os distantes subúrbios, seguindo a expansão das linhas férreas.
Sidney Chalhoub analisou como médicos sanitaristas, na segunda metade do
século XIX, atuaram na profilaxia das epidemias que grassavam no Rio de Janeiro. Ao
relatar a destruição em 1893 do Cabeça de Porco, imenso cortiço situado na Barão de
São Felix, Chalhoub destaca que foi um episódio emblemático, não apenas para os
moradores, como pela repercussão provocada na imprensa, que aprovou a demolição.
Segundo o autor, “ a destruição do Cabeça de Porco se transformou num dos marcos
iniciais, num dos mitos de origem mesmo, de toda uma forma de conceber a gestão das
diferenças sociais na cidade”.620 Ele aponta que a derrubada dos cortiços, com o
deslocamento das populações pobres do centro urbano, embasava-se em ideias
construídas por higienistas, que, ao identificarem aquelas moradias como focos de
doenças, associavam-se a ideologias políticas e raciais, nas quais os cortiços eram
encarados como espaços de periculosidade, justificando uma intervenção. Ainda
segundo o autor, a demolição daquele cortiço apresenta dois aspectos fundamentais na
forma de lidar com a diversidade urbana: o primeiro é a construção da noção de que
“classes pobres” e “classes perigosas” – para usar a terminologia do século XI – são
duas expressões que denotam, que descrevem basicamente a mesma “realidade”. O
segundo se refere ao surgimento da ideia de que uma cidade pode ser apenas
“administrada”, isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos ou
científicos: trata-se da crença de que haveria uma racionalidade extrínseca às

620
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia
da Letras, 1996. p.19

180
desigualdades sociais urbanas, que deveria nortear então a condução não política,
“competente”, “eficiente”, das políticas públicas.621
A abertura da avenida Central instituiu, conforme analisa Rosenbusch, uma
estrutura coerente de um espaço público identificado com a estética de uma classe
social.622 Para a autora, a cidade não apresentava, até então, espaços socialmente
segregados. Entretanto, a abertura dessa via, que privilegiava os aspectos elitistas da
sociedade republicana, determinou novas normas de comportamento social: “foram
proibidas as atividades comerciais dos vendedores ambulantes, e para circular na
Avenida, era definida a vestimenta obrigatória: os pedestres deviam usar paletó, sapatos,
e chapéu”.623 Por outro lado, a política de modernização adotada por Pereira Passos
consolidou o crescimento em direção à zona sul carioca. Possibilitava-se, assim, uma
“expansão urbana que favorecia à emergente burguesia republicana, fazendo uma opção
que deixava de lado as camadas mais pobres da população, que se estabeleciam,
principalmente, ao longo do eixo leste-oeste em direção ao interior”.624
Comparando dados dos recenseamentos de 1890 e 1906, observa-se que houve
uma acentuada queda habitacional na freguesia da Candelária: de 9.701 habitantes, em
1890, passou-se para 4.454 habitantes, em 1906. Devemos considerar que, no final do
século XIX, as “classes abastadas” já haviam migrado para bairros da zona sul carioca,
como Botafogo, Laranjeiras e Flamengo. Muitas das antigas residências na área central
da cidade foram transformadas em lojas comerciais. Assim, em 1906, o distrito
municipal da Candelária possuía 24 logradouros com um total de 1.180 prédios
ocupados e 1.128 desocupados: desses, 21 eram domiciliares, 549 industriais, 544 eram
mistos e 14 eram públicos. Ali havia cinco domicílios coletivos: quatro, na rua Julio
Cesar, e um, na 1º de Março.625 Ainda, segundo os dados do Anexo do Recenseamento
de 1906, no distrito da Candelária não havia estalagens, e o logradouro público de
maior população era a Praça Quinze de Novembro, com 489 habitantes, onde também
se concentrava o maior número de prédios (243). Com o menor número, figuram a rua

621
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia
da Letras, 1996. p. 20
622
ROSENBUSCH. M.L. R. Avenida Central no Rio de Janeiro e Avenida de Maio em Buenos Aires:
Coincidências e Divergências de Duas Histórias Paralelas. Anais do Seminário de História da Cidade e
Urbanismo.V.11,nº3(2010)Vitória.E,S p13
623
IDEM, ibidem, p. 13
624
VILAS BOAS, Naylor Barbosa.A Esplanada do Castelo: Fragmentos de uma História Urbana / Naylor
Barbosa Vilas Boas. Rio de Janeiro: UFRJ / PROURB, 2007, 167p.; il. (Tese) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, PROURB, 2007. p.88
625
Estatística Predial e Domiciliar (Anexo). Recenseamento do Rio de Janeiro em 1906. Rio de Janeiro,
Oficina de Estatística, 1908. p. VII.

181
Visconde Itaborahy e o beco dos Barbeiros, com três prédios cada uma. A rua do
Mercado possuía a população mais condensada – 25 prédios com 210 habitantes.
Entretanto, muitos prédios comerciais do distrito da Candelária continuariam
servindo de moradia – eventualmente ou não – para trabalhadores. Por exemplo: em
1915, ocorreu um incêndio que destruiu o depósito da Fábrica Itacolomy e da tipografia
do jornal A União, entre a rua do Mercado e a travessa Tinoco. No andar superior do
prédio em que funcionava a tipografia, estavam dormindo José Ferreira Lima,
encarregado da oficina, e o padre Felício Magal, proprietário da revista A Palestra , que
estava sendo impressa. Os dois acordaram quando o fogo já havia se alastrado por quase
todo o prédio, e a única possibilidade era pularem pela janela; com a queda, eles
ficaram bastante machucados.626 As presenças do encarregado da oficina e do padre
dormindo naquele prédio exemplifica que, alguns trabalhadores residentes em subúrbios
distantes poderiam, eventualmente, usar o local de trabalho para pernoite, não apenas
pela distância, mas devido ao custo com transporte.
No estudo feito por Miyasaka sobre a ocupação dos subúrbios, com destaque
para o distrito de Inhaúma – o mais próximo da área central – a autora destaca que, em
1890, aquele distrito possuía uma população de 17.448 habitantes. Inhaúma ,no decurso
de dezesseis anos, foi o distrito municipal que mais cresceu em termos proporcionais e
passou a ter, de acordo com o censo de 1906, 67.478 residentes. “Entretanto, nesse
mesmo período, o índice de aumento demográfico do Rio de Janeiro não atingiu 55%.
Aliás, distritos centrais, como Candelária e Sacramento, sofreram decréscimos de 54% e
20%, respectivamente”.627 Miyasaka cita ainda os dados do Recenseamento de 1906 e
afirma: “Temos aqui mais uma evidência de que, com as obras realizadas no centro e no
porto do Rio de Janeiro, houve expressivo deslocamento da população carioca, dos
distritos centrais para outras regiões da cidade”.628 Contudo, a autora pondera que,
embora em escala bem menor do que no início do século XX, a ocupação dos subúrbios
e sua urbanização já ocorriam no fim do século XIX.
De acordo com Paula de Paoli, a Uruguaiana foi “a rua mais importante, do
ponto de vista simbólico, dentre as alargadas pela Prefeitura durante a administração

626
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro,10 de novembro de 1915, p.2.
627
MIYASAKA, Cristiane Regina. Viver nos subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio
de Janeiro, 1890 – 1910) , Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura:.Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro, 2011. Prêmio de Monografia Professor Afonso Carlos Marques dos Santos – 2010. p.15
628
Idem, ibidem.p.45

182
Passos.”629 Pelos dados do Anexo do Recenseamento de 1906, a Uruguaiana, localizada
no distrito do Sacramento, tinha 104 domicílios particulares e um coletivo. Dos 126
prédios ocupados, trinta e nove deles com três pavimentos, 21 eram domiciliares, 49
industriais, um público e 55 mistos: “A rua da Uruguayana teve sua largura ampliada de
6m2 para 17m2, e o alargamento foi feito pelo lado ímpar. Para tanto, a maior parte dos
edifícios daquele lado foi desapropriada e demolida”.630 Assim, essas desapropriações e
demolições refletiram na vida da população, quanto mais não seja, em seus locais de
trabalho.
Apesar de todas as modificações urbanísticas, no sentido de modernizar a área
central da cidade, situações cotidianas mostravam aspectos não tão “civilizados” como
desejados pelas autoridades. Por exemplo, o português Francisco Loureiro, morador do
mesmo beco dos Barbeiros, espancou violentamente sua mulher Florência, “uma
creoula cujo luzio desafia o mais luzidio toucinho-heró e das feijoadas”.631 Ao ser
levado à presença do delegado, o casal fez as pazes e saiu abraçado, apesar das marcas
em Florência.
Porém, outra particularidade a ser ponderada é que algumas ruas, pela sua
extensão, abrangiam duas áreas distritais, como a rua General Câmara – que ia da
Candelária até a Sacramento – e era cenário de atuação de vários “feiticeiros”, como
Eleutério Ferreira Pinto, que ocupava a casa de cômodos, n.305. Portanto, o que separaria
os moradores da “nobre” General Câmara, no trecho do distrito da Candelária, dos outros
moradores da “popular”, na área da Sacramento, com seus cortiços, seria a abertura da
moderna e sofisticada avenida Central. Naturalmente, as diferenças sociais e econômicas
entre os “vizinhos” não eram recentes, mas, como observou Rosenbusch, a abertura da
avenida potencializou a segregação.
Enfim, os cortiços eram encarados como “vacalhouto de desordeiros” e isso
justificaria a atitude das autoridades de demolirem o denominado Cabeça de Porco, “de
forma abrupta e violenta”, sem providenciarem acomodações para os moradores
desalojados. Essas pessoas constituíam um segmento da população carioca que não
estava nos padrões idealizados: brancos pobres, nacionais ou imigrantes europeus, mas
principalmente negros — eram escravos, ex-escravos e livres africanos ou nacionais;

629
DE PAOLI, Paula Silveira. Uma outra cultura de edificar: a produção da nova arquitetura no Rio de
Janeiro das reformas urbanas de Pereira Passos (1902-1906). Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio
de Janeiro, n.7, 2013, p.15-44, p.16.
630
Idem, Ibidem.
631
O Século , Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1914, p.1.

183
uns eram antigos moradores e outros chegados a partir da segunda metade do século
XIX. Todos procuravam ascensão e melhoria de vida na cidade.

DOS QUILOMBOS AOS CORTIÇOS

A Cidade Nova compreendia uma região, formada por alagadiços, que delimitava a
passagem entre o centro da cidade e as zonas rurais da Tijuca e São Cristóvão.632 A
ocupação dessas terras que formariam, a partir de 1865, a freguesia do Espírito Santo,
era antiga e incluía partes do Catumbi, Estácio e Rio Comprido. No século XVIII,
partindo das “freguesias urbanas” em direção à região do Andaraí, era preciso seguir
através da rua Matacavalos633, passando depois pela Mata-Porcos634 até chegar ao
Caminho do Engenho Velho e outras rotas que davam acesso à Tijuca. Para facilitar a
ocupação da região — com inúmeras chácaras — um elemento fundamental foi o rio
Catumbi, que nascia em Santa Teresa. No século XVIII, havia sido construído, um
aqueduto para aproveitar as águas do rio no abastecimento urbano. Partia da localidade
conhecida como Cova da Onça, atravessava a rua Itapiru chegando à encosta do morro
de Paula Matos, onde terminava, tendo sido ali construído o chafariz do Lagarto.635A
dificuldade de acesso à região devia-se ao mangal da Cidade Nova. A Câmara de
Deputados, na primeira metade do século XIX, já discutia medidas para “ensecamento
do pântano da Cidade Nova”.636 A extensa área de manguezal, iniciada no Rocio
Pequeno (posteriormente Praça Onze), era considerada extremamente insalubre. Sendo
responsabilizada pela maior parte das doenças que atingiam a cidade. A construção do

632
Segundo Alexandre José de Mello Moraes, a Cidade Nova compreendia a região que ia do Campo da
Aclamação (atual Praça da República - Campo de Santana) até a rua de S. Cristovão; a Cidade Velha era
o trecho do Campo da Aclamação em direção ao mar. MORAES, Alexandre José de Mello. Corographia
historica, chronographica, genealógica, nobiliária e politica do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typ.
Brasileira, 1863. Tomo I, 2ª Parte. p. 290
633
Atual rua do Riachuelo.
634
“Chama-se hoje o Estácio, como outrora chamava-se Mata-Porcos, a toda zona circundante,
abrangendo os Morros de São Carlos e de Santos Rodrigues”. COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade
do Rio de Janeiro.Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia;Universidade de São Paulo,1988.p.340.
635
Uma gravura de 1851 mostra o chafariz do Lagarto com escravos apanhando água e, um detalhe, um
dos escravos está com uma máscara que era, geralmente, usada em escravos que tinham o hábito de beber
ou fugir. Carl Seidler, que visitou o Brasil no início do século XIX, registrou o seu horror em relação a
esse instrumento de tortura: “as tais máscaras, que são providas de comprido nariz, que vai até ao queixo,
e não permite ao mascarado levar nada à boca. O aspecto de semelhante ‘homem da máscara de ferro’
tem algo de horrível e repugnante, mas ainda mais asqueroso e revoltante é que, às vezes, se encontram
nas ruas da cidade negras assim mascaradas. Por esse meio, alcança-se, sem dúvida, o fim visado, mas a
meu ver é diabólica essa invenção, pois basta lembrar, dos diversos males decorrentes, o suplício do
infeliz com o ardente calor brasileiro a não poder respirar livre.” SEIDLER,Carl. Dez anos no Brasil,
(1835) Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1880, p.237.
636
Jornal da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1834, p. 1.

184
Canal do Mangue foi considerada primordial, pois possibilitaria o acesso entre a
“Cidade”, Cidade Nova e as áreas “rurais”, melhorando as condições de vida dos
moradores, desde a questão insalubridade quanto ao deslocamento aos locais de
trabalho. O periódico O Lagarto chamou a atenção da Comissão de Melhoramentos da
Cidade sobre a necessidade de acessibilidade para aqueles moradores que tinham :
“depois de seos trabalhos na Cidade Velha ir jantar e descansar nas suas cazas na
Cidade Nova”.637
Catumbi, Andaraí e Tijuca, assim como áreas limítrofes, apresentavam, ainda no
século XIX, características rurais. Assim podemos verificar em uma anuncio, publicado
em 1844, quando os herdeiros de João Ferreira Soares Pinto colocaram a venda terras na
serra da Tijuca, na localidade da Cova da Onça, que haviam sido arrendadas do
Visconde de Asseca. A descrição da propriedade fala em: de 30 a 40 mil pés de café,
grandes plantações de bananeiras e outras árvores frutíferas, casa coberta de telhas,
senzalas, monjolos, pastos e boas águas.638 A presença do escravo era uma realidade na
região: trabalhando nas lavouras ou formando quilombos. Delgado de Carvallho relata
que “Os morros da cidade serviam de refúgio aos malfeitores negros que aí formavam
quilombos, de onde desciam à noite para assaltar e roubar.”639 Conforme informa ainda
Delgado, em 1823, foi sitiado um quilombo no Morro de Santa Teresa, pelo famoso
brigadeiro Vidigal: “Eram mais de duzentos negros, com mulheres e crianças de tanga,
de penas, adornados de conchas, búzios e miçangas”.640
Um juiz de paz da freguesia de Santana, com jurisdição sobre a região em 1836,
dirigiu uma circular aos inspetores do 2º distrito, recomendando que tivessem cuidado
para a manutenção do sossego público, uma vez que, de acordo com o juiz, em diversos
lugares, como Matacavalos, Catumbi e rua das Flores, “os pretos cativos”, com
permissão dos seus senhores, realizavam batuques. O juiz Antonio Luiz Pereira da
Cunha determinava que fosse empregado todo os esforços para proibir os batuques e
que, inclusive, fossem notificados os senhores de escravos. Para Claval, “falar de
lugares e de territórios é falar da significação do espaço para cada indivíduo e da
maneira de construir objetos sociais, a partir de experiências pessoais”.641 Ainda de

637
O Lagarto, Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1833, p. 10
638
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1844, p. 2.
639
CARVALHO, Carlos Delgado de . História da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Dept. Geral de Doc. e Inf. Cultural, 1988. p. 72
640
Idem, Ibidem.
641
CLAVAL, Paul. “A volta do Cultural” na Geografia. Mercator - Revista de Geografia da UFC, ano 1,
p. 19-28, 2002, p. 23.

185
acordo com o autor, as identidades individuais e coletivas são fortemente ligadas ao
desenvolvimento da consciência territorial. Desse modo, quilombos —especialmente
aqueles nos arrabaldes da cidade — significavam territórios conquistados, dando aos
seus ocupantes o sentido de autonomia e liberdade. Ainda na primeira metade do século
XIX , proliferaram as fugas de escravos, com destaque para a Cova da Onça, e a
formação de pequenos quilombos na Tijuca:
Achão-se na caza do capitão de mato Pedro Lopes, morador ao pés da
Freguezia do Engenho Velho, junto a caza do alferes José Antonio
Rodrigues, três pretos novos, hum de nome Antonio, outro Manoel e outro
Raimundo, todos da nação Moçambique, ao quaes forão pegados em hum
quilombo na Tijuca, ao pé da Pedra Queimada. 642

Esses aquilombamentos na cidade do Rio de Janeiro não eram uma novidade,


mesmo na primeira metade do século XIX : na Carioca, existiu o quilombo da “Mãe
d’agoa”, para onde fugiu José, alcunha Fragata, nação congo, vendedor de cestos;643
também havia um quilombo no Largo do Capim.644 É importante destacar como alguns
desses quilombos, nas áreas centrais, funcionavam em cortiços ou até em
estabelecimentos comerciais: em 1850, na praia dos Caixeiros, existia um quilombo,
com a “alcunha de beco”, cuja entrada era pelos “ fundos da taberna do sr. Manuel de
tal”.645 Entretanto, nos arrabaldes a presença de quilombos eram mais frequentes e
existiram até o final do século XIX: em 1831, foram recolhidos ao Calabouço os
escravos africanos Joaquim Benguela, João Moçambique e Manuel Mina. Todos
capturados no quilombo do Andarahy.646 Muitos devem ter conhecido a africana
Francisca, de 40 anos, nação Angola, que escapou, em 29 de agosto de 1836, da casa de
seu senhor. Ela era alta, magra, olhos regulares, tendo um deles acanhado e “hum tanto
falta de vista”.647 Francisca levou, na sua fuga, uma saia de ganga azul e outra de chita
branca desbotada. Ela era lavadeira de rio, vendia amendoim e frequentava a Cova da
Onça. Entretanto, em direção de tais quilombos, convergiam africanos de diferentes
“nações”. Para um quilombo da Tijuca, por exemplo, fugiram José Cabinda, Maria

642
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de julho de 1821, p.5
643
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1826,p. 2
644
Segundo Vivaldo Coaracy, o Largo do Capim ficava nas proximidades da rua dos Andradas, entre a
General Câmara e São Pedro, e foi absorvido pela avenida Presidente Vargas. COARACY, Vivaldo.
Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Universidade de São
Paulo,1988.
645
Diário do Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1850, p. 4
646
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 7 de maio de 1831, p. 22
647
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1836, p. 4.

186
Conga e Feliz Cabinda.648Como eles igualmente escapou Felix, moçambique, ainda
boçal, de mais ou menos 16 a 18 anos, orelhas furadas, com sinais de nação no rosto,
marcado no braço esquerdo com a letra M.649 Os “congos” e “angolas” eram
predominantes em muitos destes aquilombamentos urbanos, mas haviam aqueles de
outras “nações” africanas, possibilitando uma trocas culturais. Mesmo a propalada
rivalidade entre africanos “congos” e “minas” pelo mercado de trabalho não foram um
empecilho à convivência nestes ajuntamentos e esconderijos. Gomes destaca que em:
“ajuntamentos, quilombos suburbanos, rodas de capoeiragem e batuques — eram
criados e recriados laços de solidariedades e experiências culturais”.650 Portanto, essas
soluções, bem como os espaços religiosos, significavam a liberdade, no sentido mais
amplo, do indivíduo gerir sua vida. Na primeira metade do século XIX, os quilombos,
nos arrabaldes das freguesias urbanas cariocas, foram significativos para os
escravizados. Na segunda metade oitocentista, somaram-se novas significações.
Enfim, o acesso à região do Catumbi, Andaraí, Tijuca e áreas próximas era
muito difícil e perigoso. Em 1873, já havia sido proposto, na Câmara Municipal da
Corte, que fosse providenciado um conserto no caminho, da estrada da Tijuca até a
Cova da Onça, possibilitando o trânsito de carruagens,651 pois a distância da área central
da cidade e as características rurais dificultavam o controle sobre a região, facilitavam a
formação desses “quilombos” urbanos e as conexões de escravos fugidos com outros
escravos.
A dificuldade de reprimir tais quilombos na cidade foi outro assunto que os
jornais destacaram, na segunda metade do século XIX, especialmente naquelas
localidades já bastante conhecidos pelas autoridades. À medida que ocorria a expansão
urbana para a Cidade Nova, os caminhos da serra da Tijuca possibilitavam, aos
fugitivos, o acesso a outras localidades como, por exemplo, Jacarepaguá, aonde, em
1880, o quilombo do Camboim foi invadido pela polícia.
Constando ao sr. Dr. Moniz Barreto, chefe de policia, que na freguezia de
Jacarepaguá, alguns escravos fugidos, aproveitando-se do abandono em que
se achava a fazenda denominada Camboim, alli haviam formado um
quilombo que ia progressivamente augmentando com desertores e
criminosos, deliberou tomar as necessárias providencias para impedir a
continuação de tão perigoso núcleo.652

648
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de junho de 1828, p. 2.
649
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 5 de julho de 1830, p.16.
650
GOMES, Flávio dos S. Jogando a rede, revendo as malhas. Tempo, n.1 , p.67-93, 1996.
651
BOLETIM da Ilustrissima Câmara Municipal da Corte, Rio de Janeiro, 3 maio de 1873, p.5.
652
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1880, p.2

187
Contudo, muitas vezes, acontecia de quilombolas contarem com apoio de
moradores, mantendo relações amistosas com a comunidade. Além disso, o aumento
dos preços dos imóveis na área central empurrava a população mais pobre, formada por
negros, pardos e imigrantes, especialmente portugueses, para as regiões mais baratas da
freguesia do Espírito Santo, a partir da Cidade Nova. Esses moradores eram, em número
acentuado, “biscateiros”, desempregados, pequenos comerciantes e operários das
indústrias que começavam a surgir na região.
Quem eram os homens livres que habitavam tais localidades? Quais suas
origens, cor e identidades? Na década de 1870, em meio às denúncias de fraudes no
processo eleitoral, foi publicada uma relação de votantes, na qual guardas do 6º
Batalhão foram qualificados indevidamente para participarem como votantes na
freguesia da Glória. A relação dos guardas traça um perfil de um total de 66 homens, 32
com cor identificada, sendo a maioria moradores na região da Cidade Nova. Entre os
13 pretos, eram cinco guardas e um músico. Dos 14 pardos, quatro eram cabos, três
guardas, um sargento e músico. Os cinco brancos eram um alferes, dois músicos e um
tipógrafo.653
A matéria jornalística questionava o direito de voto desses homens. Em alguns
casos, acompanhando observações: Agostinho da Cunha, preto, morador da Tijuca,
estava muito doente; já Carlos Manoel Mendes, pardo, morador na rua do Sacramento,
era conhecido jogador de vermelhinha. Marcelino José do Nascimento, pardo, 32 anos,
tipógrafo, morador à rua Estreita de S. Joaquim, declarou formalmente que não votaria.
Na relação, a grande maioria era de pretos e pardos, moradores dos cortiços nas
localidades mais pobres da cidade. Esses homens eram um retrato da população carente
da cidade. Comentários preconceituosos sobre tais possíveis votantes vieram
acompanhados de descrições de enfermidades, sugerindo a conexão de incapacidade
física e política de tais eleitores. Assim, Agostinho da Cunha, fluminense, casado e que,
na época das eleições, foi descrito como muito doente, faleceu em 1874, aos 43 anos de
idade de “tísica laryngea”.654
A “tísica”, uma das nomenclaturas para diferentes tipos de tuberculose, estava
associada às condições de vida do infectado: deficiência alimentar e precárias condições
de habitação. Como a transmissão era por contágio, os cortiços eram focos da doença,
cujos índices eram alarmantes: em meados do século XIX, um quinto dos doentes

653
A Reforma, Rio de Janeiro,18 de agosto de 1872, p.3
654
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1874, p.2.

188
internados em hospitais tinham tuberculose.655A situação do guarda Domiciano José do
Rosário, preto, morador da rua do Bom Jardim nº 67, era a que mais chamava a atenção:
ele estava à morte. A mesma doença que vitimou o guarda Agostinho da Cunha, já
havia vitimado dois filhos de Domiciano: Miguel, de dois anos de idade, morreu de
tísica pulmonar656 e, seis anos depois, José, também de dois anos, morreu de
tuberculose.657 Domiciano José do Rosário, morador da rua Bom Jardim, que fazia a
ligação da área do Mangue ao Catumbi, provavelmente pertencia a uma família antiga
na região. Seu irmão, Julio José do Rosário, em 1878, com trinta anos, era carpinteiro,
sabia ler e morava na rua da Floresta nº 10 , no Catumbi, foi qualificado para votar na
freguesia de S. José, pois possuía renda de 720$, já que era exigido para votantes
possuir rendimento acima de 200$.658 Outro irmão, João José do Rosário, com 50 anos
em 1876, era casado, analfabeto, artista, morava na rua Senador Euzébio,659possuía
renda de 906$, era votante, mas não elegível, uma vez que não atendia ao quesito da lei,
que exigia, para ser candidato, ser alfabetizado. No registro de João José do Rosário, ao
contrário dos irmãos, consta o nome de seu pai, Eupharazio.
Entretanto, havia um detalhe importante em relação a João José do Rosário: ele
tinha o mesmo nome do barão do Rosário, da família de Serafim José do Rosário, rico
comerciante de ouro, prata e pedras preciosas e proprietário, em sociedade com Manoel
José do Rosário, da firma Rosário & Irmão. Era comum os escravos darem a seus filhos
o nome de seus senhores. Pode ser essa a origem familiar de Domiciano José do
Rosário, e o fato de, mesmo em condições de vida precárias, terem tido certa ascensão.
Robert Slenes observa que, para os escravos, o casamento podia significar
esperança em melhorar sua vida de várias maneiras: “não seria irrealista de sua parte
almejar mais acesso a recursos materiais”.660 Seria impossível estender esse pensamento
no caso de pretos e pardos livres ou libertos? Assim, para a família de Domiciano José
do Rosário, as relações familiares poderiam representar o que Slenes concluiu em
relação aos escravizados: “mais esperança de tornar sua vida na escravidão uma vida de

655
HIJJAR, M.A.; PROCÓPIO, M.J. Tuberculose - epidemiologia e controle no Brasil. Revista Hospital
Universitário Pedro Ernesto, v.5, n. 2, p. 15-23, 2006, p.16.
656
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1864, p.2.
657
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20 de maio de 1870, p.2.
658
A Reforma, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1878, p. 3.
659
“Senador Eusébio - Margeando o Canal do Mangue, do lado direito, chamou-se Aterrado, Caminho
das Lanternas, São Pedro da Cidade Nova e em 1869 recebeu o nome de Senador Eusébio... Perdeu a
individualidade, incorporada que foi à Presidente Vargas”. COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do
Rio de Janeiro. 3ªed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p.364.
660
SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.p.193

189
‘gente’ dentro de seus próprios padrões culturais”661, ou seja, teriam inclusive mais
liberdade em relações as suas práticas religiosas “africanas”.662 Esse aspecto poderia
estar presente, no final do século XIX, no caso da família de Domiciano José do
Rosário.
Porém, a noção de pertencimento a um grupo “familiar” poderia concretizar-se
também entre membros de irmandades religiosas e das “famílias de santo” – com o
“pai” ou a “mãe de santo” e os irmãos de santo – que propiciavam, através de redes de
solidariedade, a possível ascensão social do indivíduo. Não é demais lembrar que
Assumano,663 nas primeiras décadas do século XX, “abriu os caminhos” para José do
Patrocínio Filho conseguir “nomeação para uma commissão na Europa”.664 O jornalista
Walter Prestes soube, através do delegado Augusto Mendes, de que Assumano possuía
uma carta em que José do Patrocínio Filho agradecia ao “africano” por ter conseguido,
com os seus trabalhos, sua nomeação. Na carta, Patrocínio, falecido alguns meses antes
na Europa, dirigia-se ao “meu bom e querido amigo”, pedia notícias do compositor
Sinhô e reconhecia a “diferença de situação em que eu estava quando, há dous anos, fui
pedir sua proteção! Se não fosse o senhor, meu querido amigo, que teria sido feito de
nós?”665 O escritor se despede “beijando-lhe a mão, pedimos-lhe que nos dê a sua
bençam e não esqueça de nós em suas orações”.666
Ao compararmos a vida do guarda Domiciano e sua família, no final do século
XIX, e Assumano, o líder religioso famoso do início do século XX, perscrutamos
caminhos pelos quais a população negra, especialmente nos anos finais do cativeiro e no
pós-abolição, trilharam para ascender socialmente. É interessante observar que o
guarda Domiciano – que, em 1870, morava na rua do Bom Jardim – tinha em comum
com Assumano – morador da Visconde de Itaúna – o fato de habitarem a região
fronteiriça entre a “cidade antiga” e a “cidade nova”.
A família de Domiciano morava em um local que, no final do século XIX,
possibilitava maior acessibilidade ao centro da cidade e que, por outro lado, embora

661
SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família
escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.p.193.
662
Naturalmente, não podemos deixar de considerar a importância das ligações afetivas. Em anúncios de
fugas de escravos, encontramos, em inúmeros casos, os que fugiam levando suas “crias”, e outros
recorriam à justiça para a manutenção de seus laços familiares.
663
Segundo Juliana Farias, Assumano nasceu na capital carioca em 1880, era filho dos africanos
Mohamed Salim e Fátima Faustina Mina Brasil e morava nos arredores da Praça Onze, desde pelo menos
a década de 1910.
664
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,28 de agosto de 1929,p.8
665
Ibidem.
666
Ibidem.

190
uma região mais pobre, abria chances de trabalho, inclusive nas obras de ampliação e
melhoramentos da “Cidade Nova”. Esses motivos atraíam novas levas de moradores.
Assim, com o fluxo populacional tendo crescido para as regiões do Catumbi, Estácio,
Andaraí, antigas fazendas e chácaras foram desmembradas e loteadas. A localidade, que
foi vista como uma solução, especialmente para os “quase-cidadãos”, passou a enfrentar
disputas pelas terras. Ainda em 1870, terrenos no morro do Santos Rodrigues foram
colocados à venda. Em 1873, os moradores da rua S. Nicolau enviaram uma
representação à Câmara Municipal, queixando-se de que os filhos e herdeiros de Santos
Rodrigues pretendiam com escavações inutilizar um caminho, considerado servidão
667
publica, que era usado pelos moradores para subir ao morro. A população mais
carente, escravos das antigas fazendas ou aqueles que para ali acorreram, teve
problemas para permanecer na região. As obras de melhoramentos valorizavam as
terras, e, com os loteamentos, pessoas de outra condição social acorriam para a região
tão próxima da “cidade”. A comissão de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro,
em 1875, sob a liderança de Francisco Pereira Passos, informava:
Foi nosso primeiro cuidado tratar de organizar uma planta geral,
comprehendendo toda a área central da cidade em que tínhamos de projectar
os referidos melhoramentos.
Para esse fim soccorremo-nos dos trabalhos já existentes na Inspecção Geral
das Obras Publicas, procurando completal-os nos pontos que tem soffrido
modificações desde que foram concluídos.
Já temos assim coordenado em varias folhas a planta de parte central da
cidade e dos bairros do Engenho Velho, Andarahy, S. Christovão, e bem
assim a dos bairros do Cattete e Botafogo, faltando-nos somente os bairros de
Laranjeiras e de S.Clemente.
Os projectos de melhoramentos estão estudados e concluídos, ao menos tanto
quanto nos foi permittido fazer neste curto espaço de tempo, em quase toda a
parte central da cidade, e nos bairros da cidade Nova, do Engenho Velho,
Andarahy e S. Christovão, comprenhendendo naquela o alargamento e
rectificação de diversas ruas e praças e abertura de outras, e nestes a abertura
de diversas avenidas e principalmente as obras que se referem ao canal do
mangue.668

Em 1877, foi encaminhado o relatório do ministro e secretário de Negócios do


Império, Antonio da Costa Pinto Silva, à Assembleia Legislativa. Nele, esclarecia-se a
necessidade da extinção dos pântanos e como evitar desmoronamentos de propriedades
situadas no morro do Santos Rodrigues e na rua do Estácio de Sá, que estavam
colocando em perigo os moradores daquelas localidades. Por outro lado, os números de

667
BOLLETIM da Ilustrissima Câmara Municipal da Corte. Rio de Janeiro: Typographia do Diario do Rio
de Janeiro, maio de 1873, p.12.
668
PRIMEIRO Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1875, p.1

191
cortiços aumentavam. E nas precárias condições de moradia, os riscos de doenças
aumentavam. Assim, as construções dos cortiços, nas freguesias centrais da Corte, eram
objeto de permanente fiscalização. Em 1866, Manuel Joaquim Puget foi denunciado
por estar construindo um cortiço na rua do Sabão. Puget era “proprietário de 30 braças
de terra”669, na rua de Santa Feliciana, na freguesia do Espírito Santo, e edificou 14
moradias sem licença da Câmara Municipal da Corte. Porém, Puget ainda estava
construindo outras casas nos fundos das já existentes. Outro denunciado, Joaquim
Antonio da Silva, em 1878, foi multado por construir, sem licença, um cortiço no morro
do Castelo. A denúncia inicial dizia que Joaquim estava construindo “casinhas
denominadas cortiços”670, o que seria contrário ao que a Junta Central de Hygiene
determinava.671
Em 1879, a Junta Central de Hygiene Publica enviou uma relação dos cortiços,
cujos proprietários deveriam ser intimados a fechá-los dentro de um prazo determinado,
que poderia ser de 15 a 30 dias, conforme o número de moradores que neles residissem.
Em 1882, a Comissão Sanitária, do 2º distrito da freguesia de Stº Antonio, solicitou à
Junta Central de Hygiene o imediato fechamento, na rua do Lavradio, dos cortiços de
números 34, 45, 79 e 127; a cocheira situada no nº 37 e o estábulo do nº 7. Na rua do
Riachuelo, foram indicados para fechamento o cortiço de nº 90 e o de nº 43. Todos eram
considerados focos de epidemias. Alguns anos depois, em 1883, a Câmara Municipal
determinou que os proprietários de locais onde existissem quartos de tábuas, no prazo
de oito dias, a contar daquela data, mandassem-nos demolir. Porém, apesar dos
esforços dos órgãos de fiscalização, continuavam as construções irregulares. Em 1887,
mesmo com os protestos da Inspetoria Geral de Higiene, foi reconstruído, na freguesia
do Espírito Santo, a estalagem, na rua do Catumbi, nº 70, pertencente a Manoel Lucas.
No início da década de 1890, um enorme cortiço, situado à rua do General Caldwell, nº
89, nos fundos do Quartel de Regimento Policial, era objeto de inúmeras reclamações,
devido as suas péssimas condições, sendo “propício à cultura de todos os germens de

669
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,Códice, 41.3.35
670
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,Cortiços: 1878 41.3.37
671
A Inspetoria Geral de Higiene, criada em 1886, substituiu a Junta Central de Hygiene Publica, da
década de 1850, e tinha, entre outras funções, a fiscalização das condições de salubridade e o
policiamento sanitário das cidades.

192
epidemias que tem assolado essa Capital.”672 O cortiço possuía 114 cômodos em duas
alas.
Um texto crítico foi escrito, em 1884, pelo dr. Costa Ferraz, membro titular da
Academia Imperial de Medicina, sobre as condições de higiene da cidade. A
insalubridade das habitações coletivas era vista como a principal causa do surto de febre
amarela, que, por vários anos, dizimava a população. Com veementes críticas às
autoridades - que estariam mais interessadas nos lucros que obtinham com a situação - o
médico traçou um painel dos cortiços e as possibilidades da epidemia de febre amarela.
Causa espanto, senão vergonha, examinar as relações dos cortiços existentes
nas diversas freguezias da Côrte, e horror quando se penetra em um desses
antros de vícios e de crimes.
Não é mais possível o tráfico de carne humana, o contrabando e a moeda
falsa são indústrias perigosas e arriscadas, o cortiço é o salvaterio para fazer
rapidamente fortuna; pouco importa que soffra a saúde, a vida de uma tão
depauperada população e a mais bella e salubre cidade da América do Sul
adquira o stygma de uma cidade pestifera.673

Ao contabilizar na cidade 1.294 cortiços, com um total de 16.378 quartos, o


sanitarista concluía que: “este facto é por demais eloquente, e só por si prova o
abandono dos poderes publicos pela saude dos habitantes da cidade”.674 O estudo do dr.
Costa Ferraz apresenta ainda um quadro dos cortiços que proliferavam pela cidade,
embora um decreto, datado de 5 de dezembro de 1873, proibisse esse tipo de edificação.
Comparando as condições dos cortiços mais centrais, temos:
Freguesia de São José 32 Cortiços, 23 casas de sobrado com um total de
420 quartos, 20 casas térreas e lojas de sobrados
(189 quartos). Somente na rua da Ajuda eram 17
cortiços e 12 na Evaristo da Veiga
Freguesia de Santa Rita 68 cortiços com um total de 1.498 quarto
Freguesia de Santo Antonio 125 cortiços com 2.748 quartos
Freguesia de Sacramento 111 cortiços com 1.992 quartos
Freguesia de Santana 392 cortiços com 4.241 quartos (sendo 501 de
tabuas)

Havia, na freguesia de Santana, quatro cortiços com cocheiras e 84 baias,


71cocheiras com 1.726 baias, sem contar que 17 eram de vacas. As ruas com maior
concentração deles eram a Barão de São Felix, com 41, e a General Pedra, com 48. Não
é de se estranhar a rapidez com que a febre amarela grassou na cidade, conforme

672
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,Códice 43-1-27: Estalagens e cortiços: requerimentos e
outros papéis dizendo respeito à existência, higiene, costumes e extinção dessas habitações coletivas:
1891-1900. Fl. 7
673
FERRAZ, Costa. A salubridade da capital do Império e os cortiços. Annaes Brazilenses de Medicina,
Tomo XXXV, p. 443-469, abril a junho de 1883-1884, p.445
674
Idem, ibidem, p. 444.

193
denunciava Costa Ferraz. Somente em 1883, aproximadamente 1.000 pessoas já haviam
morrido. O médico ressaltava que, apenas na rua em que morava, cuidava de cem
pacientes atacados pela doença e desabafava: “Renovão-se os estudos, fallão os oráculos
e os adivinhos, e, desde que refresca o tempo, ninguém mais se lembra da magra, como
o povo a chama”.675
Não era apenas a área central que chamava a atenção: a freguesia do Engenho
Velho tinha 85 cortiços, com 859 quartos. O aristocrático São Cristóvão, que abrigava a
residência da família imperial, tinha 79 (787 quartos). A freguesia da Gávea tinha
apenas seis, com 40 quartos em boas condições, mas tal situação privilegiada era
creditada à falta de condução barata e à distância do centro, onde se concentravam as
oportunidades de trabalho. Ainda havia a freguesia do Espírito Santo, que incluía em
seu território Catumbi, Estácio, Cidade Nova e Rio Comprido. Costa Ferraz destaca que
ela abrigava 149 habitações desse tipo, com um total de 1.570 quartos, dos quais 146
não possuíam as dimensões indispensáveis, 159 eram de tábuas e 360 estavam em
péssimo estado. Vejamos a distribuição dos cortiços, por ruas, na freguesia do Espírito
Santo:
Tabela 6: Cortiços da Freguesia do Espirito Santo
Rua Qntd Rua Qntd Rua Qntd

Sapucahy 16 Machado Coelho 6 Dona Julia 8

São Leopoldo 8 D. Minervina 1 Floresta 1

D. Feliciana 13 Haddock Lobo 3 Coqueiros 4

Alcântara 10 Santos Rodrigues 3 Conde d’Eu 14

Porto 1 São Roberto 1 Estácio de Sá 5

Visconde de Itaúna 6 São Carlos 1 Rio Comprido 4

Onze de Maio 4 São Diniz 1 Valença 1

Presidente Barrozo 1 Catumby 5 José Bernardino 1

São Cristovão 5 Paz 3 Chichorro 1

Miguel de Frias 1 Estrella 1 Morro 2

Nova de Alcântara 3 Prazeres 1 Itapirú 7

Nova de São Leopoldo 4 Senhor dos Mattosinhos 2 Travessa de Santos 1


Rodrigues
Fonte 3: Annaes Brazilenses de Medicina, Tomo XXXV, p. 443-469, 1883-1884

675
FERRAZ, Costa. A salubridade da capital do Império e os cortiços. Annaes Brazilenses de Medicina,
Tomo XXXV, p. 443-469, abril a junho de 1883-1884, p. 450.

194
Entretanto, havia outros aspectos a serem considerados em relação aos cortiços:
de acordo com regulamento policial, a licença só seria concedida após exame de peritos
médicos, em que constassem se, na distribuição interna do cortiço, foram guardadas
todas as condições de higiene, iluminação a gás nos corredores e água para serviço
comum dos moradores. Porém, um outro aspecto importante estava relacionado aos
habitantes: o proprietário dos cortiços, que recebiam locatários de residência fixa ou por
uma, ou algumas noites, era obrigado a impetrar licença da polícia e Câmara Municipal.
Havia a exigência da presença de um porteiro, aprovado pela polícia, que faria as
funções de pedestre, em caso de desordens.676 As autoridades, muitas vezes, destacavam
que os cortiços abrigavam desde malfeitores até escravos fugidos.
Em fins do século XIX , as gerações de fugitivos que haviam escapado para os
quilombos da Cova da Onça, Andaraí e Tijuca e que ali podem ter permanecido tiveram
que dividir espaços, especialmente com aqueles que vieram no fluxo migratório do pós-
abolição e buscavam os cortiços e morros próximos da Cidade Nova, que
representavam, junto com aqueles quilombos urbanos, espaços de reconfigurações
culturais e abrigavam desde a capoeira até “casas de dar fortuna”. Ainda em 1879, Luiz
do Nascimento e “mais trez de mesma laia”677 foram presos em uma casa dar fortuna,
chefiada por Luiz, que ficava em uma estalagem situada na rua S. Leopoldo, no quarto
129. As investigações policiais que atingiam os cortiços e seus moradores tinham como
objetivo procurarem “antros de feitiçarias”. O subdelegado do 2º distrito do
Sacramento, acompanhado de escrivão e vários inspetores, deu busca, em fevereiro de
1892, em diversas estalagens e casas de cômodos. Porém, a despeito das perseguições
policiais, as casas de cultos proliferavam. Em 1899, funcionava na rua Saldanha
Marinho, no morro do Pinto, uma “casa de feitiçaria”,678 com sessões às quintas-feiras e
sábados.
Em alguns casos, podemos acompanhar vivências de antigos moradores da
Cidade Nova e suas cercanias. O ano de 1888 teria tudo para ser de grandes alegrias
para Américo José Leite Pereira: em 15 de maio, ele e Manoel Germano Brandão,
tipógrafos do Diário Oficial, haviam recebido os originais da lei n. 3.353, que extinguiu
a escravidão no Brasil. No final do expediente, no livro de ponto da repartição, foi
lançada a nota: “Foi hoje lida n’esta redação a lei de extinção da escravidão no

676
AGCRJ. Estalagens e cortiços, requerimentos e outros papéis relativos à existência e fiscalização
sanitária e costumes dessas habitações coletivas (1834-1890), Códices 43-1-25 e 43-1-26.
677
Gazeta da Noite, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1879, p. 2.
678
Cidade do Rio , Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1899, p.1

195
Brazil”.679 Todos os objetos usados na impressão, desde lápis aos tipos, foram enviados
ao Museu Nacional para guardar a memória da data. Sem dúvida, uma vitória para
Américo, sócio do Centro Typográfico Treze de Maio,680com sede na rua General
Câmara , 327, e envolvido na campanha abolicionista.
Havia outro motivo para alegria de Américo. Naquele ano de 1888: aconteceu
seu casamento com Henriqueta da Silva Gonçalves que passou a assinar-se Henriqueta
Leite Pereira. Porém, um acidente fez 1888 não terminar bem para o casal. Em 16 de
dezembro, um incêndio, iniciado numa taverna atingiu e destruiu aproximadamente
trinta casas das ruas Magalhães, José Bernardino e Avenida Borlido. Quase todas as
residências foram completamente destruídas, inclusive a da rua Magalhães, n. 14,
exatamente onde morava Américo José Leite Pereira. Este incêndio era só mais um
obstáculo na sua vida familiar. Seu pai, Próspero José Leite Pereira, já havia percorrido
uma longa trajetória de superação na cidade do Rio de Janeiro. No Teatro S. Pedro de
Alcântara, foi apresentada , em 27 de julho de 1849, pela Companhia Lyrica Italiana,
uma sessão do cego Próspero José Leite Pereira: “o beneficiado espera merecer do
respeitável publico d’esta Corte toda a proteção e amparo do que se confessará
eternamente grato”.681
Vários espetáculos foram realizados em benefício de Próspero, serventuário que
provou a impossibilidade de trabalho por estar completamente cego e obteve, no
Juizado da Comarca de Magé, como serventia vitalícia, a terça parte dos rendimentos do
ofício no termo de Iguassú. Entretanto, até 1864, ele não tinha conseguido receber
qualquer rendimento.682 Passaria a trabalhar na Companhia dos Guardas da
Alfândega683 e como secretário, no Grupo Dramático Familiar do Pelicano.684 Porém,
continuaria morando em um cortiço no Catumbi. Próspero, morreu em 1890 dois anos
antes de a “casa de dar fortuna” de sua nora Henriqueta ser invadida pela polícia.
Em 1892, na Ladeira do Mendonça, casa 3, na Gamboa, outra “casa de dar
fortuna” foi invadida. Era chefiada pela “preta Henriqueta Leite Pereira”.685 Ali foram
encontrados, como sempre, manipansos, galinhas, espadas, facas, roupas de fantasia,

679
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1888, p. 2
680
Revista Typographica, Rio de Janeiro, 23 de junho de 1888, p. 4
681
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de julho de 1849, p. 4
682
Correio Mercantil , Rio de Janeiro, 21 de abril de 1855; Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 20 de
junho de 1864, p. 2
683
ALMANAK Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Almanak
Laemmert, 1870, p. 193
684
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 13 de maio de 1877, p. 3
685
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1892, p.1

196
penachos, louças esquisitas e caveiras. Esses objetos estavam em um quarto, do
sobradinho , cuja chave estava com Diogo Vieira Cortez Junior, funcionário da Central
do Brasil. A casa— onde estavam 14 pessoas — era bastante frequentada, inclusive, por
pessoas da “boa sociedade”. Henriqueta e sua família foram mais um exemplo das
dificuldades de inserção dos negros no Brasil pré e pós-abolição.
Era um ambiente urbano complexo e multifacetado, no qual trajetórias,
personagens e cenários desfilavam em permanente mutação. Lima Barreto produziu um
interessante quadro a respeito dos habitantes das casas de cômodos. Identificou-as como
verdadeiras “caixinhas”:
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente
que habita tais caixinhas. Além dos serventes de repartições, contínuos de
escritórios, podemos deparar com velhas fabricantes de renda de bilros,
compradores de garrafas vazias, castradores de gatos, cães e galos,
mandigueiros, catadores de ervas medicinais, enfim, uma variedade de
profissões miseráveis que as nossas pequena e grande burguesia não podem
adivinhar. Às vezes, num cubículo desses se amontoa uma família, e há
ocasiões em que os seus chefes vão a pé para a cidade por falta do níquel do
trem.686

Lima Barreto destacaria mais um detalhe importante: a escassez de níquel para o


trem. O alto preço dos transportes era uma das causas que forçavam os trabalhadores a
procurarem moradias em locais o mais próximos do centro. Ali se concentravam desde
escritórios, pequenas oficinas até as cadeiras dos engraxates. Cabe observar, que os
moradores dos cortiços não eram apenas “pretos” e “pardos”. Podiam ser encontrados
também estrangeiros pobres, portugueses, espanhóis, turcos, entre outros.
No incêndio na rua Magalhães, todos culparam os bombeiros pela demora no
atendimento. Porém, o proprietário da taverna, o português Manoel Affonso Ribeiro, de
87 anos, fez interessante observação: disse que havia chegado da “cidade” um pouco
tarde e, por isso, resolveu dormir no seu estabelecimento. Para a população carioca, a
“cidade” correspondia à Cidade Velha, uma visão que perdurou ao longo do tempo.
Vários moradores das áreas urbanas mais pobres haviam saído de seus locais de origem
e, enfrentando inúmeros problemas, lutavam para serem inseridos numa suposta
sociedade civilizada que a nascente República projetava. Um editorial do O Tempo
assim analisou o tema:
A policia deu, na semana passada, em uma casa de dar fortuna da Cidade
Nova, suprendeu as coisas mais edificantes para a nossa reputação de cidade
civilisada, neste fim do século das luzes, em que Bond movido pela

686
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Brasiliense,
1956. p.133

197
eletricidade, como o provou há dias a Companhia do Jardim Botânico, vem
fazer com que o Brazil deixe de ser o paiz dos burros.687

Soluções para tais “quase-cidadãos” nunca foram viabilizadas plenamente,


principalmente com relação às questões de moradias. Em 1902, o Correio da Manhã
denunciou a situação dos moradores do Morro do Pinto:
Anda há longos anos entregue inteiramente ao abandono o morro do Pinto,
onde habita uma população numerosa.
Faltam ali todas as comodidades. Ruas sem calçamento, higiene nenhuma,
um desleixo completo, aquilo mais parece um pedaço da África Selvagem, do
que parte de uma cidade civilizada.
Agora, para agravar ainda mais a situação dos pobres moradores, vem se
juntar a falta de água. Senhores das obras públicas, tenham piedade dos que
residem no morro do Pinto! Uma providência qualquer pelo amor de Deus,
pedem os desgraçados!688

Os problemas que marcaram as primeiras décadas republicanas estavam no


cerne da sociedade brasileira: as questões econômicas, a falta de ampliação do sistema
educacional, a extensão do voto e tantos outros que resultaram, especialmente, do
contexto do pós-abolição que os governos não enfrentavam. Vieira Fazenda, em 1905,
no texto Scenas Extintas, analisou a situação dos antigos ex-escravos que se
encontravam em total abandono, restando a muitos apenas as ruas para esmolarem. Em
1902, no consistório do Rosário, José do Patrocínio presidiu uma sessão comemorativa
do 13 de maio. Quem lá chegou encontrou, pedindo esmolas, “velhos negros de
carapinha branca e corpos curvados ao passar dos annos e dos trabalhos. Eram os
estropiados sobreviventes do naufrágio da escravidão”.689 Vieira chegou a comentar que
foi lembrado nesta data, a criação de um asilo, mas, que até então, nada tinha sido feito.
Sugere que, com Patrocínio já falecido, seria uma grande homenagem o pagamento de
uma dívida com aqueles “que fertilisaram com sangue e lagrimas o solo do Brasil”.690

CENÁRIOS E VIVÊNCIAS: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

A implantação do regime republicano tornou realidade uma série de medidas


político-administrativas que viabilizaram a condução do país sob o regime liberal. A
escravidão havia deixado marcas, a Constituição de 1891 não representou um avanço

687
O Tempo, Rio de Janeiro,14 de agosto de 1892, p. 1
688
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11de janeiro de 1902, p.3
689
FAZENDA, Vieira. Scenas Extintas. Kosmos Revista Artística, Scientifica e Litteraria, n. 5, maio de
1905.
690
Idem, ibidem.

198
em termos de direitos sociais. Muito pelo contrário, vários elementos — com seus
símbolos e significados — foram utilizados para exclusão. Trindade resume a transição
do regime monárquico para o republicano, em relações aos direitos sociais dos ex-
escravos, afirmando que “para os libertos nada muda, mesmo depois da Lei Áurea
(1888). No entanto, propostas de reforma agrária e de educação para os ex-escravos
existiram no decorrer da sucessão de leis abolicionistas, pelo menos desde a década de
1870”.691 O autor observa que, ignoradas pelo regime monárquico, essas propostas
também permanecem ignoradas pelos constituintes de 1891. Assim, “prevalece o
compartilhamento de valores que negam a igualdade entre os homens. Terrível herança
de uma sociedade escravocrata, que ainda hoje marca, de forma profunda, a sociedade
brasileira”.692
Segundo Luiz Felipe de Alencastro, a ascensão dos ex-escravos à cidadania foi
dolorosamente freada. “Na maior democracia das Américas, os Estados Unidos, as
últimas restrições impedindo a inscrição de negros nas listas eleitorais só foram
eliminadas nos anos 1960”.693 No Brasil, a liberdade não se completaria se não fosse
acompanhada da ampliação de direitos. Esse seria outro aspecto fundamental: estaria a
sociedade brasileira do início do século XX preparada para reconhecer direitos iguais ?
Para o periódico O Brazil, a resposta seria não:
A nascente republica tem desenvolvido nos poucos mezes de sua existencia o
velho systema dos governos envelhecidos na corrupção. O filhotismo, a
afilhadagem, o egoísmo, a compressão, o espírito sectário, a perseguição
política, a intolerância religiosa, o arbítrio, tem sido as armas manejadas pela
omnipotente ditadura.694

Mesmo levando-se em conta a linha política oposicionista de O Brazil,


episódios comprovariam o que o periódico sugeriu em 1890. Emilia Viotti da Costa,
indica que o descontentamento popular, logo nos primeiros dez anos da República, em
1900, foi motivo de uma greve de cocheiros, na cidade do Rio de Janeiro. Nos anos
seguintes, movimentos sociais ocorreram em todo o país, um exemplo foi Canudos
(Bahia), expressando as precárias condições de vida das populações rurais. No Distrito
Federal, a situação não foi diferente: revoltas, como as da “Vacina” e da “Chibata”,
foram um forte sinal da insatisfação de vários segmentos da população urbana,

691
TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. Constituição de 1891: as limitações da cidadania na República
Velha. Revista da FARN, v.3, n.1/2, p. 175 - 189, jul. 2003/jun. 2004, p.184
692
Idem, Ibidem.
693
ALENCASTRO, Luiz de Felipe. Foco na Escravidão. Revista Veja, 17 de fevereiro de 1988, p. 72-75.
p.75.
694
O Brazil, Rio de Janeiro, 28 de junho de 1890, p.1

199
especialmente os mais pobres. Em relação à Revolta da Vacina há um aspecto
interessante estabelecido com os cultos de matrizes africanas: uma estreita ligação entre
a negativa de receber a vacina e tradições africanas. Para alguns africanos centrais, as
doenças estavam ligadas ao complexo fortuna/infortúnio. Para africanos ocidentais,
especialmente os iorubas, associadas ao orixá Omolu:
as epidemias de varíola eram um castigo infligido por Omolu ou Obaluaiê,
seu orixá. Consideravam mesmo ser a doença uma espécie de purificação
pelos seus pecados. Vacinar-se, então, causaria mais epidemias e mortes. A
intervenção médica neste assunto seria um ato dispensável e mesmo
ilegítimo, pois apenas aos sacerdotes de Omolu caberia esta tarefa.695

As conturbações do período determinavam o acirramento das medidas adotadas


pelos agentes repressores que atingiam, inclusive, as atividades recreativas. O Prazer da
Rosa Branca, cordão carnavalesco liderado por Felisberto Américo Sowzer, o famoso
babalaô Benzinho Bamboxê,696com sede à rua Marques de Sapucaí, n.106,697 teve
problemas para se apresentar nos desfiles carnavalescos. Benzinho procurou João do
Rio, pedindo ajuda para conseguir uma licença para o desfile do Afoxé, que definiu ao
jornalista como sendo “o carnaval africano, é a critica de todos os santos e de todos os
pais de santo: ‘Venha V. S. dahi à Rosa Branca’”.698 Indagado sobre o que era o Rosa
Branca, Benzinho disse: “É na rua dos Cajueiros, um cordão de truz. Os rapazes tem
hoje o ensaio geral e depois sarao e o samba na sala dos fundos”.699 Quando chegaram à
sala de ensaio do Rosa Branca, havia uma grande animação: as mulheres de um lado, os
homens do outro, e, ao som dos pandeiros, dos atabaques, o mestre-sala bradava: “Meia
Lua! Ao centro”.700
Benzinho teria, então, explicado que o samba, como o batuque, tinha sua origem
na dança dos sertões da África Central — o Guidibó —“Nessa dança dous negros ficam
deante do outro e gritando ao mesmo tempo arremettando as cabeças: Guidibó!”701 João
do Rio concluiu, então, que o samba era mais uma aula de capoeiragem do que um
divertimento. E Bamboxê “historicizou”:

695
RIO DE JANEIRO (Cidade). Secretaria Especial de Comunicação Social. 1904 - Revolta da Vacina. A
maior batalha do Rio. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, A Secretaria, 2006.
(Cadernos da Comunicação. Série Memória). p. 20.
696
Felisberto Américo de Souza, nascido em Lagos e era neto do poderoso Rodolfo Bamboxê,
anglicanizou o seu sobrenome. Benzinho, em seu candomblé na Marques de Sapucaí, fez a iniciação
religiosa de inúmeros filhos de santo.
697
Na Gazeta de Noticias, de 8 de fevereiro de 1904, p. 2, aparece o endereço como Marques de Sapucaí,
n.23.
698
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 2 de março de 1905, p.1
699
Ibidem.
700
Ibidem.
701
Ibidem.

200
“O afoché d’aqui foi fundado na Pedra do Sal 16, pelo Romão, o João
Gancio e Satú. Afoché é o dia em que se debocha da religião. Vae na frente o
oba emin oiô, rei da terra de Oió.
O club que não apresenta o rei não tem importância. Os paes de santo saem
com o abada e o agadanchim, os alufás e os babalaôs com as suas vestes e
seus pertences, uns trazendo pelles de carneiro e lagartos secos, outros com o
opelê na mão. Em Lagos há préstitos enormes, na Bahia o Congresso
Africano, os Pândegos da África, a Embaixada Africana.702

E o Rosa Branca desfilou. Porém, em 1908, no vapor Brasil, o negociante baiano


Felisberto Américo de Souza, o Benzinho Bamboxê, regressaria para Bahia.703 O
respeitado babalaô deixou descendentes que, ainda hoje, continuam na liderança de um
importante terreiro em Salvador, o Ilê Odô Ogê.
Outra instituição que teve problemas para funcionamento foi a Sociedade
Dançante Anjos da Noite. Em janeiro de 1910, o chefe de polícia emitiu um parecer
contra a concessão de licença para seu funcionamento : “visto ser ponto de reunião de
meretrizes de baixa esphera, desordeiros e ladrões”.704 Os integrantes da sociedade
pediram para que fosse revista a decisão, alegando terem sido excluídos da instituição
antigos sócios e que “o seu actual presidente é o estivador Victorino Gonçalves, que
gosa de boa reputação pelo seu amor ao trabalho e pela boa conducta”.705
Assim como a Sociedade Dançante Anjos da Noite, outras sociedades
recreativas estiveram sob a mira dos agentes de fiscalização. Em relação aos “terreiros”,
o controle se tornou ainda mais rigoroso. As investigações policiais que atingiam os
cortiços e seus moradores tinham, entre outros objetivos, procurarem “antros de
feitiçarias” e, no final do século XIX e início do XX, a situação persistiu. O
subdelegado do 2º distrito do Sacramento, acompanhado de escrivão e vários inspetores,
deu busca, em fevereiro de 1892, em diversas estalagens e casas de cômodos. Na rua
General Câmara, nº 305, encontrou, no quarto alugado a Eleutério Ferreira Pinto, grande
quantidade de bugigangas e manipansos.706 Eleutério, que não estava na casa de
cômodos no momento da ação policial, passou a ser procurado pela polícia. Porém, uma
reportagem, publicada pela Gazeta de Noticias, traz um dado significativo: na casa de
Antonio Ventura, na rua Afonso Cavalcante, n.187, na Cidade Nova, 18 pessoas, entre
mulheres, homens e crianças, foram presos. A novidade nesse caso é a informação de
que a polícia encontrou “quatro punhaes, que estavam enterrados no assoalho, varias

702
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 2 de março de 1905, p.1.
703
O Paiz, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1908, p. 3.
704
Arquivo Nacional, GIFI 6C 367
705
Ibidem.
706
O Tempo, Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1892, p. 2

201
garrafas e embrulhos de ‘hervas medicinaes’”.707 Ou seja, com certeza, era o
assentamento, um dos espaços mais sagrados dos cultos afro-brasileiros.708 As casas de
culto procuraram estratégias de enfrentamento às perseguições policiais: os
assentamentos passaram a ser enterrados para evitar suas violações. Geertz analisa que,
“em todos os povos, as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma
aura profunda de seriedade moral”.709 Por conseguinte, podemos compreender como foi
difícil para líderes e adeptos verem seus objetos de devoção violados nas ações
policiais.
A década de 1920 foi de efervescência em vários setores da sociedade
brasileira. O Rio de Janeiro, capital da República, foi palco de inúmeras manifestações.
Durante as presidências de Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Washington Luís, as
contradições da sociedade brasileira ficaram evidentes. No governo de Artur Bernardes,
marcado pela instabilidade política e a revolta tenentista de 1922, acentuaram-se as
medidas repressoras, e as dificuldades em lidar com a inserção de setores da população
pobre poderia ser assim resumida: “a questão social era caso de polícia”, frase atribuída
a Washington Luís, quando ainda era prefeito de São Paulo, em meio às greves
operárias. Embora Washington Luís710 negasse ter proferido tal expressão, o fato é que
as repressões marcaram a República Velha, tendo sido a cidade do Rio Janeiro, sede do
governo, o grande palco de diversos acontecimentos desse tipo.
Em março de 1920, a Liga dos Operários da Estrada de Ferro Leopoldina iniciou
uma greve que agitou a cidade. O movimento grevista recebeu a adesão da Federação
dos Trabalhadores do Rio de Janeiro e de sapateiros, tecelões e empregados do Lloyd
Brasileiro. O Malho, reportando o movimento, considerou que a greve era interessante
para a Leopoldina Railway Company Ltd., posto que, poderia conseguir que fossem

707
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1916, p. 4.
708
“no assentamento reside o orixá, é dele que emana o poder dos objetos. O cuidado que se tem com os
assentamentos em um terreiro é literalmente o cuidado com o santo”. RABELO, Mirian C. M.
Construindo mediações nos circuitos religiosos afro-brasileiros. In: REUNIÃO ANUAL DA ABA, 26,
2008, Porto Seguro. Trabalho apresentado na Mesa Redonda Corpo, Paisagem e Percepção na
Experiência Religiosa, Porto Seguro, 2008, p. 8. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/mesas_redondas/trabalhos/MR%2010/
miriam%20rabelo.pdf>. Acesso em: 21 de novembro de 2013.
709
GEERTZ, Clifford. 'Ethos' visão de mundo e a análise de símbolos sagrados. In: _____. A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. p. 93
710
Washington Luis afirmava ter pronunciado: “A agitação operária é uma questão que interessa mais à
ordem pública do que à ordem social, representa o estado de espírito de alguns operários, mas não de toda
a sociedade!” Foi eleito presidente da República, em 1926, e deposto pela Revolução de 1930.

202
atendidas às suas pretensões junto ao governo e também o aumento das tarifas.711 O
Paiz compreendeu o movimento da seguinte maneira:
Qualificar como greve geral a suspensão do trabalho por parte de algumas
classes operarias desta cidade, que se declarava em parede, como
manifestação de solidariedade com os grevistas da Leopoldina, é, certamente,
um exagero. Contudo, não é possível encarar, sem ansiedade, a generalização
de um movimento, que, originado nas condições especiais das relações entre
aquela empreza ferroviária e os seus empregados, não parece justificar
repercussão tão grande, como a que se depreende dessa impressionante
manifestação de solidariedade de outras classes trabalhadoras. 712

Esse movimento grevista estava inserido num contexto de insatisfação dos


“quase-cidadãos”, que compreendiam que o “projeto político” que estava em curso no
Brasil não estava atrelado aos seus anseios. Como argumentou Stuart Schwartz — ainda
que em relação a outro contexto histórico —“ o Brasil sempre teve significados
diferentes em momentos diferentes para pessoas diferentes”.713 As reivindicações dos
grevistas contemplavam o aumento dos salários e regras de contratações definitivas.
Neste contexto de paralisações foi fundada a União dos Empregados da Leopoldina:
“que se tornou o centro da ação grevista, congregando sempre muitas pessoas nas
assembleias e reuniões, por ser vizinha da sede da diretoria da estrada. A UEL era o
ponto de referência para os ferroviários em greve no Distrito Federal”.714
A política repressiva adotada foi colocarem os trens circulando, conduzidos por
foguistas da Armada e protegidos por contingentes policiais, além da prisão dos
manifestantes. Inúmeros trabalhadores foram presos. Embora o governo não tenha
divulgado o nome dos detidos, o Voz do Povo, periódico que se declarava como “órgão
da Federação dos trabalhadores do Rio de Janeiro e do Proletariado em Geral” -
publicou uma listagem com estrangeiros que ainda estavam presos após o fim da greve:
7 portugueses – 2 padeiros, 2 sapateiros, 1 garçom, 1 vassoureiro e 1 carpinteiro – e dois
espanhóis –1 vassoureiro e 1 sapateiro. Tinham entre 43 anos e 20 anos de idade.715

711
A Companhia Estrada de Ferro Leopoldina teve seu primeiro trecho inaugurado em 1874 e, devido a
crises financeiras, o seu controle acionário passou para credores ingleses quando, em 1897, foi criada em
Londres a Leopoldina Railway Company Ltd.
712
O Paiz, Rio de Janeiro, 25 de março de 1920, p.3.
713
SCHWARTZ, Stuart. “Gente de terra brazillense da nação”: Pensando o Brasil: a construção de um
povo. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000).
Formação: histórias. São Paulo: Senac. 1999. p.103-125, p. 112
714
FRACCARO, Gláucia Cristina Candian. Morigerados e revoltados: trabalho e organização de
ferroviários da Central do Brasil e da Leopoldina (1889-1920). 2008. Dissertação (Mestrado em História)
- Unicamp. Campinas, 2008. p. 11
715
Voz do Povo, Rio de Janeiro, 6 de abril de 1920, p. 1.

203
Foi expressiva a participação de estrangeiros, ao lado dos operários nacionais, e
desses quem mais chamou a atenção foi o “creoulo Messias Moraes Filho, sapateiro”.716
Messias fora preso quando comentava os episódios da greve geral, narrando as prisões
que assistira de pessoas que nada tinham feito.717O sapateiro recebeu voz de prisão.
Porém reagiu, tendo sido, então, contido por outros agentes, que o espancaram e o
prenderam sob os protestos daqueles que assistiram a cena. O paradeiro de Messias não
era informado e os jornais — especialmente o Voz do Povo — passaram a cobrar
informações: “Onde está Messias Moraes Filho? Vivo ou morto o proletariado carioca
quer saber do paradeiro de Messias Moraes Filho”.718 Embora o chefe da polícia tenha
recebido ordens do próprio presidente da República para libertar os grevistas presos,
Messias continuaria detido, enquanto alguns dos estrangeiros acabaram deportados. Em
maio, Messias escreveu uma carta na qual informava que se encontrava na Casa de
Detenção. Ao mesmo tempo pedia ajuda para sua mãe, mulher e três filhos menores que
passavam por necessidades.719 Foi organizada uma subscrição que apurou a quantia de
70$000 reis, entregue à família de Messias. Ao sair da prisão, Messias continuaria
envolvendo-se em agitações políticas. Fazia discursos em estações ferroviárias, era
procurador do Comitê Suburbano de Inhaúma Pró Nilo-Seabra e, em 1927, aderiu ao
Partido Democrático do Distrito Federal.720
Entretanto, Messias voltou aos noticiários: sob a acusação de que ele e sua mãe
haviam protegido um assassino. A mãe de Messias era uma “macumbeira” conhecida,
em Bento Ribeiro, como a “velha Alexandrina” e que havia incitado sua atuação
religiosa nas proximidades da Cidade Nova.
A velha Alexandrina havia sido denunciada anteriormente por “feitiçaria”. Na
rua Major Pinto Sayão, no bairro da Saúde, nº 29,721 em 1908, moravam Ernesto
Barroso da Silva, preto de presumíveis 50 anos, sua companheira Alexandrina Maria
dos Prazeres, de 37 anos, e o filho dela, Messias de Moraes Filho. Ernesto foi à polícia
denunciar seu vizinho João Henrique de Oliveira de haver colocado uma caveira em sua
porta. O delegado do 11º distrito convocou João para prestar depoimento. Ele não só
negou como acusou Ernesto e Alexandrina de serem os feiticeiros. O delegado decidiu

716
Voz do Povo, Rio de Janeiro, 9 de abril de 1920, p. 1.
717
A Noite, Rio de Janeiro, 27 de março de 1920, p.1.
718
Voz do Povo, Rio de Janeiro, nove de abril de 1920, p. 1.
719
Voz do Povo, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1920, p.1.
720
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1921, p.4; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4
de setembro de 1927, p. 7.
721
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1908, p. 3.

204
fazer uma diligência no local e encontrou Alexandrina “trabalhando”, entre outros
apetrechos, com caramujos, búzios, penas de galinha da Angola, ervas e um fogareiro
de defumador. Segundo os vizinhos, Ernesto também era feiticeiro, sendo ele o
responsável de ter colocado ali caveira: “o preto Ernesto agia sob inspirações de
Changô, Jurema, Mai d’Agua e Rei Naná, disse elle, fazendo curas com remédios e
hervas por elle arranjadas, promettendo empregos, fortunas e felicidades amorosas”.722
A história da velha Alexandrina e seu filho — que, como muitos moradores da
“Cidade Nova”, com a expansão das linhas férreas e o aumento dos aluguéis, buscaram
os subúrbios mais distantes — faz emergir aspectos que temos destacado, em relação à
sociedade pós-abolição: a exclusão da maioria dos negros e pardos. Homens negros
eram considerados elementos perigosos e, por conta disso, Messias já havia ficado preso
vários meses. Por outro lado, com relação à Alexandrina, ressaltamos um aspecto
comum às casas de culto: muitas mulheres, inicialmente, atuavam em apoio aos seus
companheiros e, depois, com a morte ou separação deles, assumiam a liderança das
casas. Segundo a reportagem, a velha já havia sido companheira de outro líder religioso
antes de se unir a Ernesto. Além disso, ela simbolizava as práticas africanas vistas pelo
regime, que se instaurou sob o lema do positivismo, tão admirado por Messias, e agora
como algo que deveria ser extirpado da sociedade brasileira. Porém, mesmo com as
constantes perseguições, essas práticas religiosas, tão entranhadas em diferentes
segmentos da população carioca, resistiram.
O jornal A Noite publicou uma carta, enviada por um anônimo, que afirmava ter
cometido um assassinato e ficado escondido, após o crime, na “macumba” da velha
Alexandrina, tendo fugido da polícia com a ajuda dos donos da casa. O jornalista
procurou aprofundar as informações e, como os únicos nomes citados eram de
Alexandrina e de Messias, tentou localizá-los em Bento Ribeiro, na estrada de
Sapobemba: “ao contrário do que esperávamos encontrar, uma velha megera,
resmungando o seu despacho num collar de contas rubras, deparamos com uma boa
vellhinha, que trabalhava”.723 O jornalista mostrou a carta anônima, enviada ao jornal,
para Alexandrina que, como não sabia ler, chamou o filho que, em voz alta, leu as

722
O Paiz, Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1908, p.4. Entre as matérias do Correio da Manhã e O Paiz,
aconteceu uma confusão em relação à idade de Ernesto, que, no Correio da Manhã aparece com
aproximadamente 20 anos, e no O Paiz, com 50 anos. Como Messias é citado apenas no O Paiz, ele
deveria estar com 20 anos nesse período, daí a provável confusão.
723
A Noite, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1925, p.2.

205
acusações. Mãe e filho ficaram indignados. Messias afirmou que tudo era falso e
Alexandrina concluiu:
Na sua “macumba” limitava-se a tratar de “espinhela caída, “ventre virado” e
outras moléstias. E quantas curas havia já, com a graça de Deus , conseguido
fazer. Nos dias dos santos de sua devoção, fazia lá uma brincadeira à moda
da terra de seus paes, costumes tradicionaes dos velhos africanos.724

Entretanto, logo após a denúncia contra Alexandrina Antonia Maria da


Conceição e seu filho, um processo foi aberto contra ela e Joaquim Fernandes de
Carvalho, acusados por incursos nos artigos 157 e 158:
O Ministério Publico assim procede ,porque: A primeira denunciada há mais de
seis annos, segundo confissão sua (fls.17 do incluso inquérito), exerce o officio
de “curandeira” recebendo em sua residência consulentes aos quaes prescreve,
como meio curativo para os males de que estes se queixam, chás de hervas
medicinaes, banhos destas mesmas hervas e outras beberagens. A denunciada
tem sido ultimamente auxiliada nesse officio pelo segundo denunciado. 725

Alexandrina e Joaquim Fernandes de Carvalho, no dia 10 de março de 1929,


foram surpreendidos pela chegada da polícia na Travessa Martiniana, nº35, em Bento
Ribeiro, quando faziam o atendimento a seis consulentes: “os denunciados praticavam o
espiritismo para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcando curas de moléstias
curáveis e incuráveis, fascinando e subjugando a credulidade publica”.726
Joaquim Fernandes de Carvalho foi identificado como filho de Manoel
Fernandes de Carvalho e Rosaria de Carvalho, tinha 22 anos de idade, era natural da
cidade do Rio de Janeiro, solteiro, sem emprego e morador da rua José da Motta, nº 38,
em Ricardo de Albuquerque. Disse não saber ler e nem escrever, apenas assinava seu
nome. Já Alexandrina foi identificada como preta, filha de João Pilinga e de Rita da
Costa, tinha setenta e seis anos, era brasileira, viúva e doméstica. No decorrer do
processo, Alexandrina, que era analfabeta, mudou alguns de seus dados pessoais.
Assim, no auto de qualificação, disse ser natural do estado da Bahia para, no
depoimento seguinte, afirmar ter nascido em Pernambuco e que tinha oitenta e seis anos
de idade. As alterações podem ser uma maneira de escamotear acusações anteriores
como, por exemplo, em 1908, ela usava o nome de Alexandrina Maria dos Prazeres, e

724
A Noite, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1925, p.2.
725
ARQUIVO NACIONAL, 7ª Vara Criminal, Pretoria Criminal, 1929. Maço 30, nº 165, p.2
726
Ibidem, p.3

206
dizia ter 37 anos. Porém, vale lembrar que o jornalista. que foi procurá-la em 1925,
afirmou ser ela “uma boa vellhinha”.727
Na casa de Alexandrina, foram apreendidos vários objetos associados a
diferentes religiosidades: entre símbolos católicos – como medalhas e cruz – estavam
presentes objetos tradicionalmente ligados aos diferentes cultos afro-brasileiros –
tambores, caramujos, guiné e a pólvora. Como a grande maioria das “curandeiras”, ela
era também uma rezadeira e fazia atendimentos domiciliares, em que rezava “mao
olhado, cobreiro, ventre-virado, o que era feito por meio de um copo com água”.728
Durante o auto de qualificação na delegacia, Joaquim afirmou que Alexandrina
servia de intermediária entre o “espírito do caboclo baixado” e o consulente. Ainda
segundo seu depoimento, os espíritos protetores do terreiro eram os caboclos
conhecidos por “pae Antonio” e “pae Joaquim”, e que Alexandrina aplicava “passes”
acompanhados de “preces ou rezas”, porém, não cobrava, e os consulentes davam o que
pudessem. Assim, observamos que as experiências vivenciadas no “terreiro” da velha
Alexandrina configuravam reinvenções religiosas: “pai Antonio” e “pai Joaquim” ,
baixavam como “caboclos”, uma vez que, na “macumba”, há uma adoção de rituais
indígenas. Além disso, havia a presença de elementos kardecistas e Alexandrina dava
“passes”.
Para os investigadores que participaram da diligência, ao prestarem seus
depoimentos, o que se praticava na casa de Alexandria era “macumba”. Os peritos
Octacílio Leal e Claudio Mendonça, que analisaram os objetos apreendidos,
responderam aos dois quesitos apresentados; 1º) Qual a natureza dos objetos e a sua
aplicação? ; 2º) Pelos objetos examinados, conclui-se que os acusados praticavam falso
espiritismo? O laudo dos peritos concluiu que os objetos submetidos a exame:
pertencem ao material comumente empregado pelos indivíduos que exploram a
credulidade publica, pela pratica do falso espiritismo. Pessoas pouco
inteligentes, embora dotadas de uma dose apreciável de velhacaria, nada mais
fazem do que imitar os outros oficiais do mesmo ofício, empregando os
mesmos trucs grosseiros, servindo-se dos mesmos apetrechos, notando-se,
somente, certa modificação no rito.729

727
A Noite, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1925, p.2. Na segunda metade do século XIX, foram
aprovados decretos que regulamentavam o registro civil de nascimento, casamento e óbitos. O decreto
n.9886, de 7 de março de 1888, institui a obrigatoriedade desses registros. Porém, o fato de ser instituída a
cobrança dos registros era, na maioria dos casos, um impedimento para a realização por grande parte da
população. A lei procurou superar esse entrave, estabelecendo, no art.44, que não seria cobrado
emolumento algum para pessoas notoriamente pobres. Contudo, na prática, muitas pessoas ficavam sem o
registro. Portanto, não raro o fato de muitos não saberem ao certo sua data de nascimento e, no caso de
Alexandrina, pelo seu depoimento, ela talvez não soubesse nem qual era o local exato de seu nascimento.
728
ARQUIVO NACIONAL, 7ª Vara Criminal, Pretoria Criminal, 1929. Maço 30, nº 165, p.15
729
Ibidem, p.25.

207
No laudo, portanto, enfatizou-se a depreciação, como era comum na época,
daquelas práticas religiosas. Ao comparar as religiosidades afro-brasileiras com o
espiritismo kardecista, os peritos concluíram que elas eram experiências inferiores e
“nos antros dos macumbeiros ignorantes ou nas cavernas dos espertalhões com certa
agudeza de espírito e que vêm na pratica do espiritismo desvirtuado um filão
inexgotavel a se explorar”.730 Assim, era coisa de gente ignorante ou de vigarista, o que
justificava a perseguição e o combate, estabelecidos pelo Código Penal de 1890, contra
aquilo que caracterizavam como charlatanismo, tal qual acentuaram os peritos, de
“espertalhões” que ludibriavam a credulidade pública. Por sorte da velha Alexandrina, o
processo foi prescrito por decurso de prazo. Porém, a “velha macumbeira”, nascida na
Bahia ou em Pernambuco, fazia parte daqueles que, entre o final do século XIX e início
do século XX, migraram para a capital da República e, com suas crenças, influenciaram
o cenário religioso carioca.

DE TODAS AS REGIÕES PARA O DISTRITO FEDERAL

Em 1988, em meio ao centenário da Abolição, a Ciência Hoje organizou uma


coletânea com textos apresentados em simpósios universitários sobre a escravidão, a
abolição e a inserção do negro no pós-abolição. O texto de Suely Robles Reis Queiroz
destaca que o 13 de maio não significou o desaparecimento de hábitos ligados à
escravidão e, segundo a autora, quanto mais o negro e o mulato se identificassem com
os ideais do cidadão e encarnassem os direitos fundamentais da pessoa, tanto mais
seriam incompreendidos e depreciados: deles se esperava submissão e conformismo. 731
Portanto, segundo Queiroz, era considerado “bom negro” aquele que se associava a
expectativas bem definidas de submissão, lealdade e conformismo.732 A luta pela
sobrevivência implicava em superar barreiras.
No pós-abolição, a grande questão para os libertos e seus descendentes envolvia
conquistas sociais, especialmente, as ligadas ao mercado de trabalho. As obras iniciadas
no Distrito Federal atraíram um sem número de pessoas, que viam na cidade a chance

730
ARQUIVO NACIONAL, 7ª Vara Criminal, Pretoria Criminal, 1929. Maço 30, nº 165, p.25
731
QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Lembranças do passado cativo. Revista Ciência Hoje, v.8, n.48,
suplemento, p. 36-39, novembro de 1988, p. 39.
732
Idem, Ibidem.

208
de emprego. No entanto, para existir igualdade social, é necessário que todos os
elementos, mulheres e homens, sejam reconhecidos como iguais, o que não ocorreu nos
anos que se seguiram à pós-emancipação. A abolição não significou a conquista dos
direitos de cidadão: muitos continuaram trabalhando nas antigas fazendas , “pagando
dia para morar” e, na cidade, exerciam atividades que não exigiam maiores
qualificações, muitas vezes, nas casas de seus antigos senhores, como o caso de Agueda
da Conceição, preta, 16 anos de idade, nascida em Barra Mansa e vivendo no Catumbi,
na casa da família de Esperidião de França Velloso, que a criaram desde pequena.
Agueda, não satisfeita com o trabalho na casa em que foi criada, fugiu e foi empregar-se
na casa de Rosária de tal, na rua S. Luiz, aonde seu “patrão” foi buscá-la,
“reprehendendo-a , como era natural, sem contudo maltratal-a”.733 A menina ficou tão
revoltada, que tentou o suicídio, ingerindo “phenol”. A família chamou o médico, que a
colocou fora de perigo e, depois, foi transferida para o hospital da Santa Casa.
O caso de Agueda exemplifica a situação de ex-escravos e seus descendentes
que, no pós-abolição, permaneceram com seus antigos senhores. No entanto, como
destaca Hebe Mattos, “decidir ficar, obviamente, não significava concordar em manter
as mesmas condições de trabalho do regime anterior”.734 Agueda, assim como outros
muitos casos de ex-escravos, ou seus filhos nascidos livres, continuou a viver sem
grandes mudanças em termos de trabalho e melhorias sociais. Muitos não possuíam
escolaridade: a maioria passou a trabalhar em construções e outros tiveram suas chances
na cidade limitadas. Alguns vivenciaram tragédias pessoais, como o caso do compositor
baiano Assis Valente, citado anteriormente. Entretanto, um dos maiores exemplos de
persistência em se inserir em uma sociedade que, de antemão, já o excluía, foi Manuel
Vicente Alves Palmeira, o “Dr Jacarandá”.
Em 1904, com 21 anos, o alagoano Manuel Vicente Alves735 chegou ao Rio de
Janeiro e tornou-se o mais popular “advogado de porta de xadrez” da cidade. Nos quase
cinquenta anos que viveu no Distrito Federal, Dr. Jacarandá enfrentou o preconceito,
hostilidades e ironias na sua persistente luta pela sobrevivência, não apenas material,
mas, principalmente, na afirmação de seus direitos de homem e cidadão: exigia direito
de resposta aos textos jornalísticos que o ironizavam; como “advogado”, defendia

733
Gazeta da Trade, Rio de Janeiro, 16 de abril de 1901, p. 2.
734
MATTOS, Hebe. Os últimos cativos no processo da Abolição. Anais da Biblioteca Nacional, v.116,
n.7(1996), p.104-122 1999, p.119.
735
Em relação ao seu nome, Manuel Vicente Alves foi incorporando outros sobrenomes: Palmeira, uma
vez que afirmava ter nascido em Palmeira dos Índios, e o apelido que ganhou no Rio de Janeiro,
“Jacarandá”.

209
outros excluídos; e se candidatava a cargos públicos ocupados por brancos. Enfim, era
“um preto que não sabia o seu lugar”736 e sofria todas as consequências dessa atitude.
Contudo, o preconceito não atingia exclusivamente as camadas mais populares.
Nos primeiros anos da República, após a morte de Afonso Pena, em 1909, assumiu a
presidência do país Nilo Peçanha. Uma questão bastante discutida envolvia sua cor: o
presidente era “mulato”? Nas contestações ao governo de Peçanha, feitas pelo Correio
da Noite, acusava-se o presidente de estar “transformando a nobre terra fluminense em
cabinda da qual se faz o soba despótico e bestial”.737Ainda em relação a essa questão,
um texto de Gilberto Freyre é sempre citado:
O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por
um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e,
ao mesmo tempo, de brilho e de espontaneidade individual em que se
exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor
afirmação na arte política. 738

Estabelecendo uma comparação entre a afirmação de Freyre sobre Nilo Peçanha


e as atitudes do dr. Jacarandá, podemos concluir que Nilo Peçanha podia, com
“astúcia”, superar suas “origens africanas”, o que era inviável para Jacarandá. O
primeiro, apesar de também ser ironizado, tinha poder; o outro não tinha como se
inserir:
Alto, magro, muito preto, pernóstico e mettido em um velhíssimo fraque,
passa pelas ruas da cidade, o “dr.” Manoel Vicente Alves, o “Jacarandá”
como chama a garotada impiedosa.
Rábula de porta de xadrez, advogado do nosso foro, surgiu certa vez, o dr.
Jacarandá, como candidato a deputado federal...
É elle, porém, um symbolo da época política que atravessamos. Representa o
pobre preto, obcecado pela idea de ser parlamentar, a alma ingênua dessa
gente que acredita na verdade eleitoral. O único mal do candidato referido foi
não entrar em accordo, não prestigiar os luminares da política nacional, pois,
se o fizesse, possivelmente sentar-se-ia em uma cadeira da representação
nacional, no Congresso.739

Através das inúmeras entrevistas que Jacarandá concedeu, podemos reconstruir


sua trajetória: nascido em Palmeira dos Índios, em 25 de abril de 1869,740 ao chegar ao
Rio de Janeiro, trabalhou com advogados e, conforme afirmava, foi “onde aprendi”.741
Residiu em vários cortiços, como na rua do Lavradio, n.163, onde era bastante
hostilizado pelos vizinhos que o apelidaram de “Dr. Jacarandá”. Nesse período, quando

736
Expressão muito popular nas primeiras décadas do século XX.
737
Correio da Noite, 22 de março de 1915, p.1.
738
FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. In. Diário de Pernambuco, Recife, 17 de junho de 1938, p.4.
739
A Rua, Rio de Janeiro, 4 de junho de 1924, p.1.
740
O Malho, Rio de Janeiro, de 19 de julho de 1930, p. 61.
741
A Noite, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1916, p. 1.

210
foi reclamar de uma matéria injuriosa a seu respeito, foi qualificado como “descendente
brasileiro dos antigos soberanos do Alto Congo”.742 Em 1920, morou em uma casa de
cômodos na rua dos Inválidos, n.129. Em 1930, quando seu nome aparece na relação de
743
advogados da cidade, sua residência e escritório eram na Rua do Núncio, n. 33.
Embora sempre procurando, como símbolo de status, morar em ruas no Centro, os seus
clientes, igualmente pobres como ele, estavam entre os moradores dos “pardieiros” da
Cidade Nova.
A atuação política do Dr. Jacarandá começou durante as manifestações
ocorridas, em 1915. A Comissão Acadêmica Rio-Grandense organizou um comício, no
Largo de São Francisco, em protesto à presença de ministros ligados ao senador
Pinheiro Machado no governo e à nomeação do prefeito do Distrito Federal. No
transcorrer do ato político, um “creoulo”744 deu um “viva” ao senador Pinheiro
Machado, provocando a revolta dos participantes, originando um conflito . Um policial
conseguiu segurar o “creoulo” que deu o “viva” ao senador: era o dr. Jacarandá. O
acontecimento não resultou em maiores problemas e ele continuou se manifestando.
A postura do dr. Jacarandá, ao longo de sua vida, é um exemplo eloquente
daqueles que, apesar de não pertencerem aos padrões sociais estabelecidos pela
sociedade dominante, buscavam aproximar-se àqueles padrões para ser aceito. Bourdieu
analisa que, quando os dominados nas relações de forças simbólicas entram em luta em
estado isolado, no caso das interações da vida cotidiana, não têm outra escolha a não ser
a de aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição dominante
da sua identidade. De acordo com o autor, a busca da assimilação implica um trabalho
que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (como no estilo de
vida, no vestuário e até na pronuncia) “e que tenham em vista propor, por meio de
estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem de si o menos afastada possível da
identidade legitima”.745 Desde as tentativas eleitorais até tentar ser reconhecido como
advogado, eram as estratégias, usadas pelo dr. Jacarandá, de incorporar uma identidade
social que o retirasse da categoria de um “quase-cidadão”. Porém, a tentativa de
construção de uma imagem socialmente aceita esbarrava em características pessoais não
toleradas pela sociedade dominante: seu linguajar, suas roupas surradas e,
especialmente, sua origem racial.

742
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1916, p.3.
743
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1930, 1º volume, p. 895.
744
A Epoca, Rio de Janeiro, 11 de julho de 1915, p. 2.
745
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa; Rio de Janeiro: Difel; Bertrand Brasil, 1989, p. 124.

211
Nas disputas eleitorais, Manoel Vicente Alves Jacarandá era candidato certo: ia
para praças falar sobre seu programa de governo, buscava as redações de jornais para
divulgar sua candidatura, fazia discursos nos intervalos das apresentações teatrais e dava
palestras. Tudo isso sem abandonar suas atividades “advocatícias”, que sempre afirmava
ser “seu ganha pão”. Disputou, em 1921, uma vaga no Senado, concorrendo com
Sampaio Correa e Paulo de Frontin. No processo eleitoral de 1924, contestou a vitória
de Bithencourt da Silva Filho, ao cargo de intendente, para o qual ele também havia se
candidatado. Na contestação ao resultado, alegou a ilegalidade do candidato,
fundamentado no art.63 do decreto 14.631, de 19 de janeiro de 1921, que impedia
funcionários administrativos e federais de disputarem as eleições: Bithencourt era
diretor do Liceu de Artes e Ofício. Nas inúmeras vezes que se candidatou, Jacarandá
sempre denunciava uma prática comum da época: a corrupção eleitoral. Inclusive na
eleição de 1924, várias seções foram anuladas devido às fraudes na contagem dos votos.
Muito ironizado por seu jeito de falar, sua escrita, por exercer uma profissão sem
diploma, embora a lei o permitisse, e por suas roupas surradas, tinha, no entanto, sua cor
como o elemento mais ressaltado. Em 1926, o periódico A Manhã publicou: “o sr.
Epitácio Pessoa tem um concurrente muito sério, o qual está escurecendo, ennegrecendo
mesmo, o seu prestigio. É o ‘Dr’. Manoel Vicente Alves Jacarandá”.746 De maneira
sutil, o texto, utilizando os termos “escurecendo”, “enegrecendo”, faz clara alusão à cor
do eterno candidato, e o “concurrente”, uma alusão ao seu forte sotaque. Entretanto, ele
tinha apoio de alguns jornais, que, em suas matérias o tratavam com respeito, e de
populares, para quem dirigia seu lema— “Candidato do povo – está com o povo, porque
sem o povo nada se faz”747— Segundo relato jornalístico, “poucos candidatos, hoje, no
Brasil, e notadamente no Districto Federal, contam com o consenso da multidão como
este ancião encanecido nas lides do foro, sempre alerta na defesa dos humildes”.748
No entanto, dr. Jacarandá não se dava por vencido e, entre uma “causa” e outra,
frequentava os bares da cidade, “batia cabeça” nos terreiros de “macumba” da Cidade
Nova e participava dos carnavais. Sua presença nos desfiles na avenida Rio Branco era
sempre ovacionada pelos assistentes e declarava sua fidelidade à sociedade carnavalesca
Club dos Democráticos.749 Em 1929, decepcionado com os poucos votos que recebeu na
eleição do ano anterior, não quis desfilar. Em uma carta, publicada no A Esquerda, o dr.

746
A Manhã, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1926, p.3.
747
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 13 de 0utubro de 1928, p.9.
748
O Radical, Rio de Janeiro, 20 de abril de 1933, p.2.
749
Diario Carioca, 6 de janeiro de 1929, p. 5.

212
Jacarandá, que quase sempre se comportava de maneira educada e respeitosa, partiu
feroz para o ataque ao inspetor escolar do Distrito Federal, Diniz Junior, a quem fez
uma série de acusações, entremeadas de frases debochadas, pela subordinação política
do inspetor a Geraldo Rocha, rico industrial baiano que, em 1925, comprou o A Noite e
que havia apoiado José Joaquim Seabra, governador da Bahia por dois mandatos:
Deves saber de quanto o cangaceiro Geraldo Rocha é capaz, o maior e mais
perigoso aventureiro que tem o Brasil, na phrase feliz do deputado Cardoso
de Almeida. Sabes que elle depois de trair miseravelmente a política de
Seabra, fez-se bernardista e após se encher de dinheiro propoz aos brasileiros
a maior indignidade de que tem noticia a nossa história: a compra da cabeça
do glorioso general Luiz Carlos Prestes.750

Dr. Jacarandá concluiu a carta: “Deixa de ser jumento. Estas dando palpite...
Não te aconselho a jogares na vaca porque os santos de casa não fazem milagres”.751
A atuação de Jacarandá como “advogado” era uma prática relativamente comum
e pessoas sem formação exerciam a função de “rábula”, podendo entrar na primeira
instancia judicial com petições. Assim como os curandeiros foram alvo das sociedades
de classe médicas, nas últimas décadas do século XIX, a atuação dos rábulas seria
proibida. Para continuarem praticando a atividade, um expediente usado por eles era
conseguir a assinatura de um advogado. Essa foi a solução empregada pelo dr.
Jacarandá, quando teve que cobrar seus “honorários’ a um cliente. Contratado pelo
português Domingos Barbosa, proprietário de um botequim na Lapa, para a cobrança
dos aluguéis devidos por um inquilino, que inclusive depôs confirmando ter sido o
velho rábula quem intermediou o pagamento, não conseguiu receber pelo serviço. Ao
entrar com uma ação contra seu “cliente”, Jacarandá, que se apresentou como
“procurador particular e advogado criminal”,752 contou com o auxílio de um advogado.
Dr. Jacarandá , em 1930, ao contestar um habeas corpus, na 5ª Vara Criminal,
foi informado do decreto do Governo Provisório que criou a Ordem dos Advogados. A
decepção foi grande:
Gosto muito do Sr. Getulio Vargas — principiou— trabalhei para elle desde
1929 e foi com consciência que dei meu voto de eleitor a esse grande
estadista. Elle, entretanto, tentou dar um golpe de morte na minha profissão,
impedindo a actuação no foro dos elementos que não possuíssem diploma de
advogado.753

750
A Esquerda, Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1928, p. 4.
751
Ibidem.
752
Arquivo Nacional, Pretoria Civel do Rio de Janeiro 3, Freguesias de S. Antonio de Santana, n. 4746,
maço 1314, Gal. A, 1927, p. 2.
753
A Noite, Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1936, p. 3.

213
Entretanto, em 1940, o dr. Jacarandá receberia o golpe definitivo: o presidente
da Ordem dos Advogados do Brasil o acusou de estelionato. A queixa-relatório, firmada
pelo dr. Justo de Moraes, foi enviada a Felinto Müller. O delegado do 5º Distrito,
encarregado por Felinto Müller de concluir o inquérito, decidiu tratar-se de
contravenção o que Jacarandá fazia ao se identificar como advogado. Nessa época, seu
escritório funcionava na rua D. Manoel, e ele havia contratado uma datilógrafa. Alguns
jornais ficaram ao lado do velho rábula naquilo que consideraram uma crueldade:
Jacarandá é um typo popular que toda a cidade conhece. Inofensivo, só tem
feito o bem aos outros.
Que elle se intitule “advogado”, que prejuízo pode disso advir à classe, se
elle não pode exercer tal função publica?754

No O Radical, dr. Jacarandá argumentou:


Eu não compareço a Juízo nem assigno petições como bacharel, avocando
prerrogativas que não possuo, logo, não vejo porque o presidente da Ordem
dos Advogados tenha sahido dos seus cuidados para “topar essa parada
comigo”.
Antigamente — prossegue nosso entrevistado —no tempo em que a lei
permittia que, em questões de crime, qualquer cidadão podia exercer,
legalmente, a advocacia, em defesa de terceiros, eu tinha as minhas
questõesinhas que os outros chamavam de “advocacia de porta de xadrez”.
Mas desde que isso acabou, eu nunca mais advoguei. 755

As péssimas condições de vida do dr. Jacarandá e a idade avançada debilitaram


sua saúde e, depois de internado no Pronto Socorro, com forte hemoptise, foi transferido
por seu filho, José Januário Alves, um pequeno comerciante de Alagoas que veio ao Rio
de Janeiro para cuidar do pai, para o Hospital Carlos Chagas, falecendo em 19 de julho
de 1948. O sepultamento do dr. Jacarandá, no cemitério de Ricardo de Albuquerque, foi
acompanhado por poucas pessoas, alguns jornalistas e seu filho. A Noite publicou:
“Manoel Vicente Alves Jacarandá, o Dr. Jacarandá, foi uma tradição viva da cidade.
Com sua morte desapareceu uma das figuras mais populares e pitorescas destes últimos
tempos”.756
A trajetória do dr. Jacarandá pode ser comparada com as de Lima Barreto e Cruz
e Souza, que, igualmente, sofreram as dificuldades de uma sociedade que desvalorizava
o que de “africano” persistia na país. Ela está inserida no contexto social que se
desenvolveu a partir do pós-abolição e que a República não conseguiu solucionar: como
processar o acesso de negros e pardos a melhores condições sociais. Esses homens e

754
O Radical, Rio de Janeiro, 26 de julho de 1940, p.2.
755
Ibidem, p. 1.
756
Ibidem.

214
mulheres negros e pardos, que habitaram o Distrito Federal entre o final do século XIX
e primeiras décadas do XX, haviam vivenciado o cativeiro: muitos foram escravizados,
e outros conheceram nas suas histórias familiares a escravidão. Todos tinham, em
comum, a luta para sobreviverem às limitações impostas pelo regime.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por profundas mudanças no


cenário internacional (incluindo uma guerra de proporções mundiais), no Brasil e no
Distrito Federal, que enfrentou várias revoltas populares. Nessa fase de grandes
acontecimentos políticos, culturais e até projetos de modificações urbanísticas, a cidade
do Rio de Janeiro abrigava pessoas que se tornariam fundamentais para a cultura
brasileira, como Sinhô, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres e Hilário Jovino Ferreira. Nas
experiências religiosas de matrizes africanas, lideravam sua majestade Cypriano Abedé,
Assumano, Alabá e Tia Ciata, nas proximidades da Praça Onze, que dominavam a
“Pequena África” , mas outras “Pequena Áfricas Cariocas” mostravam sua importância:
no Estácio, Tia Benedita reunia em seu “terreiro” os bambas do samba e fazia a ligação
entre a “Cidade Nova” e os subúrbios, como Madureira, onde seu Napoleão e seu Vieira
faziam inovações no samba e nas experiências religiosas. Muitos “outros”, chegados nas
primeiras décadas do século XX, contornando as repressões policiais, expressavam suas
religiosidades pelos quatro cantos da cidade. Todo esse universo cultural estava sendo
observado por um jovem negro, chamado Tancredo da Silva Pinto, vindo com sua
família de Cantagalo, nas primeiras décadas do século XX.
O Rio de Janeiro, transformado em um “canteiro de obras”, devido à
remodelação da área central e à expansão das linhas férreas, representava uma grande
atração para os ex-escravos e seus descendentes, que, nos primeiros anos da República,
migraram para o Distrito Federal. Chegavam especialmente ex-trabalhadores das
lavouras de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, São Paulo e do interior do estado do
Rio de Janeiro. Muitos deles foram importantes para um novo modelo cultural que se
expandiu na sociedade brasileira.
Nas primeiras décadas do século XX vários lideres religiosos estiveram ligados
a diversas manifestações culturais. Alguns eram compositores e tinham seus nomes
associados a ranchos e escolas de samba. A maioria deles havia migrado para o Rio de
Janeiro atraídos pelas condições de trabalho.
Napoleão José do Nascimento saiu de Queluz, em São Paulo, e veio para o
Distrito Federal nos primeiros anos do século XX. Inicialmente, a família foi morar na

215
região do Lins de Vasconcelos e, posteriormente, no final da década de 1910, mudou-se
para a região de Oswaldo Cruz. Em 1915, Napoleão, trabalhava como conservador de
linhas férreas, na Central do Brasil, e tinha familiares e amigos moradores no Estácio.
Embora seu nome esteja muito associado ao surgimento da Escola de Samba Portela,
sua ligação com as experiências religiosas de matrizes africanas eram conhecidas. No
site da Escola de Samba Portela, foi publicada uma entrevista, entre os compositores
Paulinho da Viola e Candeias, sobre as origens do samba. Segundo Candeias:
seu Napoleão, que era jongueiro, era negócio de jongo, cruzado na linha das
almas, tinha que pedir licença na hora da entrada. Tinha uma irmã do falecido
Natal, que ia com o seu Napoleão, que morava ali pra baixo [Dona Benedita
morava na rua Maia Lacerda, no Estácio], que frequentava a casa das baianas
[Tia Ciata,, Bebiana e outras] ali na Praça Onze, e tal, aquele negócio todo.757

O mercado de trabalho no Distrito Federal poderia ser um forte elemento


atrativo para muitos e também poderia significar a solução para antigos problemas,
como foi o caso do famoso Tio Faustino. Em 1902, Faustino Pedro da Conceição,
engraxador de botinas na Bahia, teve uma briga calorosa, na Praça dos Veteranos, com
Germano Vieira de Mello, em quem desferiu três facadas. Preso em flagrante e lavrado
o auto, foi iniciado o inquérito758. Na década de 1920, Faustino tornou-se um
compositor e líder religioso famoso no Rio de Janeiro e Francisco Guimarães, o
Vagalume, afirmava que ele era um dos maiores vultos da religião africana na cidade.759
Tio Faustino chegou ao Distrito Federal em 1911, segundo ele, acompanhando o
dr. Julio Viveiros Brandão, engenheiro e intendente de Salvador entre 1912 e 1914.
Entretanto, sua trajetória na cidade não começou muito bem: em 1922, a polícia do 12º
distrito recebeu a denúncia de que, na rua do Lavradio, nº 106, havia um “candomblé”,
e que Faustino Pedro da Conceição era o chefe da “moamba”.760 A polícia, ao chegar,
encontrou Faustino dançando, no meio da sala repleta de pessoas, com uma imagem à
cabeça. O líder religioso foi detido, e, com ele, seguiram presos Eugenio dos Santos,
ajudante do “pai de santo”, Cosme José da Costa, Fellipe José do Patrocinio e
Evangelina de Oliveira. Na casa, a polícia apreendeu, entre vários objetos, a imagem
que Faustino tinha à cabeça: uma sereia, com o busto de mulher, que ele disse ser a
“Mãe d’ Água”. Em 1928, sua situação estava bem melhor e, residindo na rua das

757
Berço do Samba e Batismo da Portela (3ª Parte) Paulinho da Viola, Candeias, Carlos Elias, Ruy
Fabiano e João Bosco Rabello, do Correio Braziliense.
Disponível em <http://www.portelaweb.com/flexivel2.php?codigo=21>. Acesso em 25 de julho de 2014.
758
A Baía, Salvador, 9 de outubro de 1902. Disponível em:
<http://www.negronaimprensa.ceao.ufba.br/index.php/busca/buscar>. Acesso em 20 de maio de 2014.
759
GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de Janeiro: Typografia São Benedicto, 1933. p.166.
760
O Paiz, Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1922, p. 6.

216
Laranjeiras n. 59, casa XV, fez uma grande festa em homenagem a São Cosme e São
Damião. Os festejos começaram no dia 26, à noite, e terminaram na manhã de 1º de
outubro. No encerramento, esteve presente aos festejos o dr. Eduardo Gama Cerqueira,
candidato a intendente, que participou da feijoada oferecida por Faustino, chegando a
proferir um discurso homenageando o “pai de santo”; depois, as danças seguiram até o
alvorecer da segunda-feira.
Os santos católicos Cosme e Damião, que foram festejados na casa de Tio
Faustino, são muito populares nos cultos afro-brasileiros e associados com os Ibejis, do
culto iorubano. Outro elemento importante, presente na casa, remetia à cosmologia
iorubá: um altar ornamentado com cravos, com iluminação e sobressaindo-se a imagem
da Milagrosa Santa Sereia do Mar761, associada ao culto de Yemanjá. Arthur Ramos,
relatou um dos inúmeros mitos iorubá ligados a Yemanjá:
Obatalá, o céu, uniu-se a Odudua, a Terra, e desta união nasceram Aganju e
Yemanjá, respectivamente terra e água. Yemanjá, desposou o seu irmão
Aganju de quem teve um filho, Orungan. Apaixonou-se este por sua mãe e
começou a persegui-la até que um dia, aproveitando-se da ausencia do
paterna, violentou-a. Pôs-se Yemanjá a correr, perseguida por Orungan, que
lhe propunha viver com ela. Ia a alcança-la, quando Yemanjá cai ao chão, de
costas. Então o seu corpo começou a dilatar-se, a crescer desmesuradamente
até que dos seus seios começaram a jorrar duas correntes de agua, que se
reuniram até formar um grande lago. Rompe-se o ventre e dele saem os
seguintes deuses: Dada, deus dos vegetais; Xangô, deus do trovão; Ogun,
deus do ferro e da guerra; Olokun, deus do mar; Oloxá, deusa dos lagos; Oyá,
deusa do rio Niger; Oxun, deusa do rio Oxun; Obá, deusa do rio Obá; Orixá
Okô, deusa da agricultura; Oxóssi, deus dos caçadores; Oké, deus dos
montes; Ajé Xaluga, deus da riqueza; Xapanan (Shankpanna), deus da
variola; Orun, o sol; Oxú, a lua.762

Ramos analisou os aspectos edipianos presentes nesse mito, mas é interessante


observar que nele encontramos os elementos da natureza que os orixás representam e a
relação de seus atributos. Assim, por exemplo, o orixá Ogum, tão popular no Brasil, foi
quem ensinou aos homens a trabalharem com o ferro e protege seus “filhos” na guerra,
como exaltaram os baianos que participaram da Guerra do Paraguai. Na umbanda, os
“pontos” creditam a vitória nos campos do Humaitá a Ogum, como já destaquei
anteriormente.
Na casa de tio Faustino, tinha especial importância o culto da sereia. Segundo
Armando Vallado, a devoção a Iemanjá estava, primordialmente, ligado aos ebás, povo
africano da região situada entre as cidades de Ifé e Ibadan. O autor destaca que, com a

761
A Manhã, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1928, p.5.
762
RAMOS, Arthur. Estudos de folclore: ainda as teorias psicanalíticas. Revista Brasileira, ano V, n.15,
p. 122-134, dezembro de 1945, p. 122.

217
expansão dos ebás e disseminação de sua cultura em consequência de guerras entre as
várias etnias iorubás, o culto a Iemanjá foi levado para Abeokutá e demais povoações ao
longo do rio Ogum, sendo Iemanjá então a ele associada. Com o tempo, passou a ser
cultuada em quase todo o território iorubano. No Brasil, Iemanjá passou a ser
reverenciada como a rainha do mar.
Retornando à trajetória de Tio Faustino, vamos reencontrá-lo, poucos meses
depois da festa de Cosme e Damião, em entrevista ao jornal A Manhã, falando sobre o
ranchos do Rio de Janeiro e da Bahia. Faustino disse que, em Salvador, foi do “Rancho
do Roballo” e “Rancho da Sereia”, e que, em suas festas, compareciam até o presidente
do estado. Os ranchos eram uma das maiores tradições baianas em homenagem ao
Deus-Menino, cuja a igreja era visitada, por entre cânticos e louvores aos Santos Reis.
Ainda nesse estado, Faustino foi ligado ao “Embaixada dos Africanos” e “Netos da
Africa”.763 Tio Faustino se destacou ainda como compositor e integrou o grupo “Guarda
Velha”, formado por, entre outros, Pixinguinha, João da Bahiana e Donga. Contudo,
apesar do sucesso, ele convivia com problemas familiares e, em 1931, deu uma surra na
sua filha Felicia, de 18 anos, e disparou dois tiros no mecânico da Light, Francisco
Alves, namorado da moça, por não aceitar o namoro. Ficou preso e, em 22 de fevereiro,
lhe foi concedido o habeas corpus, sob a alegação da demora no encerramento do
inquérito por parte do 6º Distrito Policial.
Entretanto, a grande questão que envolveu Faustino foi em relação ao
instrumento musical “omelé”, que, ele afirmava ter feito o registro de propriedade. Em
matéria publicada sob o título Das festas de Oxum aos Salões Chics — “a estylização de
um instrumento barbaro da Africa por conhecido musicista e compositor popular”764,
Faustino relatou que era neto de africanos e que adaptou o instrumento, trazido da
África pelos avós, usado na terra de Efan por ocasião das festas de Oxum. O omelé se
compõe de dois pequenos tambores, sobre um tripé, com sons diferentes: um mais grave
e outro menos, permitindo um acompanhamento mais variado. O instrumento original
era tosco, feito de tronco de árvore escavado, de cordas e couro grosseiro. O baiano
estilizou o instrumento, colocando placas e cintas de metal polido. Para Nei Lopes, o
“omelé” que Faustino introduziu no samba, afinado com chaves e todo niquelado, era
diferente do Omelé iorubano.765

763
A Manhã, Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1929, p. 8.
764
O Radical, Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1933, p. 15.
765
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.

218
O Diário Carioca, em 1933, realizou uma série de entrevistas com os “Bacharéis
do samba”. Na entrevista, Tio Faustino contou que nasceu na Freguesia de Santana , na
Bahia, e que era o introdutor do “omelê”, “afouché” e “agongô” no samba carioca. O
grande conhecimento dele sobre danças como jongo, samba, coco foi destacado:
“Conhece todas as modalidades do samba brasileiro, o açoite, barra vento, o ralado e o
baculeado, com acompanhamento de 2 violas, 2 pandeiros, um prato e as cabrochas
batendo a mão”.766 Entretanto, ele, na entrevista, acusou Oswaldo Vasques, compositor
do sucesso Arrasta a sandália ai morena, de haver copiado o instrumento “omelés” ,
que ele havia estilizado, e que entraria na justiça, pois havia feito o registro de
propriedade no Diário Oficial. A acusação gerou grande polêmica e Oswaldo publicou
uma carta, no A Noite, defendendo-se:
O “omelê” nunca foi registrado: se o fosse, quem o fizesse, passaria pelo
dissabor de ver os inventores de tal instrumento imigrarem da Africa para
protestar junto às autoridades brasileiras, contra a infeliz usurpação. Ao sr.
Faustino da Conceição não cabe, pois, o direito de se arvorar em “Colombo
do Omelê”, porque muito antes delle vir ao mundo, lá na Africa, e mesmo na
propria Bahia, terra onde Tio Faustino nasceu, já se ouvia a marcação
inconfundivel do citado instrumento.767

Oswaldo Vasques acrescentou que, se o baiano assistisse ao filme Melodia


Cubana, poderia ver omelés, afuchés, cabaças pequenas com contas de guiné, imitando
o nosso celebre ganzá, “aos quaes ele quer ligar o seu nome”. Localizei, no Diário
Oficial, o pedido de patente do omelê feito por Faustino, mas foi indeferido “por faltar
ao pedido o requesito essencial de novidade”.768 Oswaldo Vasques faleceu em 1935, e a
questão sobre o omelé ficou esquecida. Tio Faustino continuou compondo músicas,
participando dos desfiles de ranchos e, em 1934, fez a coreografia do espetáculo
Marabá, encenado pela Companhia Procópio Ferreira, com grande sucesso. Tudo isso
sem deixar de lado suas funções religiosas. Em 1935, estava na reunião dos
“feiticeiros”, na Penha Circular, que ofereciam um “Amalá para Xangô”.769 Na parede
da sala, uma placa anunciava: “Aqui é bem-vindo todo filho de luz. Aqui reina Ogum,
Xango e Oxalá. Seja bem-vindo irmão”.770 A sessão, presidida por Flávio Costa,
contava com a presença de Tio Faustino e Zé Espinguela.
Faustino Pedro da Conceição e Zé Espinguela, faziam parte de uma “Geração
Crioula” que vivenciou a África através do relato de velhos africanos, dos quais

766
Diario Carioca, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1933, p.14.
767
A Noite, Rio de Janeiro, 21 de março de 1933, p.13.
768
Diario Oficial da União, Rio de Janeiro, 8 de maio de 1934, p. 8874.
769
Comida feita com quiabo e rabada, entre outros ingredientes, e oferecida ao orixá Xangô.
770
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 20 de março de 1935, p.10.

219
absorveram a “tradição africana”. Possivelmente, conheceram Cipriano Abedé, Alabá e
Benzinho Bamboxê, grandes lideranças religiosas que dominavam a região central do
Distrito Federal.
Na Exposição Internacional, em 1923, aconteceu uma série de atividades
culturais, organizadas pelo jornalista Nóbrega da Cunha, reunindo a “fina flor da
malandragem carioca”.771 O evento começou com o desfile do Bloco dos “Bam-bam-
bam”, pela avenida Rio Branco, e, no Pavilhão da Música, aconteceu a conferência de
Nóbrega da Cunha, bastante influenciada pela Semana de Arte Moderna de São Paulo,
em favor da introdução de temas nacionais na arte brasileira. Entre as inúmeras
apresentações artísticas, constava a orquestra de samba, com pandeiros, canzás, reco-
recos e guayás, e a presença das três maiores “sumidades” do pandeiro: Honorato de
Araujo, Nenen Macaco, de Vila Isabel, e Zé Espinguela, do Meier.
José Gomes da Costa, conhecido como Zé Espinguela, era jongueiro e “pai de
santo”. Muito ligado a vários moradores do morro da Mangueira, em 1925, ajudou a
fundar o Bloco dos Arengueiros, com Cartola, Marcelino José Claudino, conhecido
como Maçu, e Carlos Cachaça; esse bloco teria sido um embrião da Escola de Samba
Estação Primeira da Mangueira, fundada em 28 de abril de 1928, na localidade do
morro chamada de “Buraco Quente”.772 Zé Espinguela, também conhecido como “Pae
Alufá”, foi um dos pioneiros que, transitando entre as atividades carnavalescas e as
religiosas, tornou-se figura de destaque na “mídia”. Fazia parte daquela geração, na
maioria dos casos descendentes de avós africanos e nascidos no Rio de Janeiro, que
assimilaram das convivências com seus parentes e amigos, elementos fundamentais para
a cultura afro-brasileira. Desse seleto grupo, faziam parte, entre outros, Heitor dos
Prazeres, João da Baiana e Donga. Nascidos no final do século XIX, eles assistiram às
grandes transformações da cidade, desde as urbanísticas às culturais, faziam sambas
para o carnaval, frequentavam a Lapa e a região do Mangue, reuniam-se nos botequins
do Estácio, eram figuras de destaque nos blocos e ranchos, frequentavam macumbas e
candomblés, assistiam a missas e, em outubro, iam à Festa da Penha, importante espaço
de expressão religiosa e cultural, que, apesar de católica, contava com a participação de
adeptos das religiões de “matrizes africanas”.

771
A Noite, Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1923, p. 6.
772
CRAVO ALBIM, Ricardo. Dicionário da Musica Popular Brasileira. Disponível em
<http://www.dicionariompb.com.br/ze-espinguela/dados-artisticos>. Acesso 2 de janeiro de 2014.

220
Tancredo da Silva Pinto descreveu que, em outubro, os praticantes do omolocô
(Angola) assistiam, em romaria, à missa de Nossa Senhora da Penha, trajando suas
melhores roupas. Ele destaca a associação, para aqueles romeiros, de Nossa Senhora da
Penha com Oxum da Cobra Coral e que, no santuário da Penha, exclamavam em altas
vozes:
Ojaréu, Mamãe Cinda da Cobra Coral. Com essas palavras, faziam
seus pedidos e, logo após, se retiravam do templo. Nos terreiros,
realizam as cerimônias do culto Omolocô para Oxun da Cobra Coral e
todos coreavam (comiam). Atualmente, não é fácil perceber-se o
cerimonial da Cobra Coral.773

A descrição de Tancredo traz um elemento importante: a reinvenção do culto


jeje, em associação com a mitologia yorubá, no Rio de Janeiro. Cinda seria uma dos 15
Iyabas e Orixás saídos do ventre de Iemanjá e morava nas cachoeiras e águas doces.
Segundo a União Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros, Oxumarê, “no rito Ketu,
representa o Arco-íris. No rito Jeje, é Dangbe, a Serpente Sagrada”.774 No Daomé, até o
final do século XIX, matar uma cobra era crime: “a pena última para o crime de matar
uma cobra (boa ou jiboia) foi comutada na ordália pelo fogo”.775
Aydano Ferraz, informa que Dangbé, a serpente sagrada do Daomé, é um vodu,
nome das divindades jejes, e que esse culto chegou ao Brasil. O autor cita algumas casas
em que esse culto, reinventado, estava presente. No Ilê Axé Opó Afonjá, casa fundada
por Mãe Aninha, na Bahia em 1910, Ossí-dagan, sucessora de Aninha, informou a
Ferraz ter notícia do culto de Idangbé, a cobra sagrada, que era um vodunce. Ela teria
também falado vagamente sobre as relações do culto da serpente com o de Oxum-maré,
o arco-íris.776 Conforme destaca Parés, “Na Bahia do século XIX, o termo mais habitual
para designar as divindades africanas era “vudum” ou “santo vudum” e não orixá, o
termo equivalente ioruba”.777 De acordo com o autor, os cultos aos voduns, originários
da área linguistica gbe na África Ocidental, “tiveram um papel determinante na

773
PINTO, Tancredo da Silva; FREITAS, Byron Tôrres. As mirongas da umbanda. Rio de Janeiro:
Gráfica Editôra Aurora, 1953. p. 145.
774
União Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros. Disponível em
<http://www.uucab.com.br/acervo/uniao_deuses.php> . Acesso em 15 de outubro de 2014.
775
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ªed. São Paulo; Brasília: Ed. Nacional; Ed. da
Universidade de Brasília,1982. p. 30
776
FERRAZ, Aydano do Couto. Vestígios de um culto daomenano no Brasil. Revista do Arquivo
Municipal, ano VII, v. 76, p.274, maio 1941.
777
PARÉS, Luis Nicolau. Antes dos Orixás. Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 6, dezembro
de 2005.

221
formação do Candomblé baiano e do Tambor de Mina maranhense”.778 Desse modo,
considerando o relato de Tancredo da Silva Pinto, o culto a Dangbé, reinventado,
estava presente na Festa da Penha, no Rio de Janeiro, no século XX.
Em 1931, em meio à crise e repressão provocada pela Revolução de 1930, a
Festa da Penha, na qual sambas eram lançados, sofreu reflexos da situação política:
desde a proibição de que as barraquinhas, montadas no parque que circunda a parte
baixa da igreja, vendessem bebidas alcóolicas até a revistas, por parte da polícia, dos
romeiros: “A polícia manteve severa vigilância no parque amplo e maravilhoso que
circunda a montanha de pedra onde a Santa impera. Revistam os peregrinos ao entrar no
trem, ao sahir do trem, ao ingressar no parque. Nem thesoura de unhas escapava”.779
Ser identificado como trabalhador, como ressaltou Assis Valente no samba
Recenseamento, era a preocupação dos que , com todas as transformações que o país
passara, ainda continuavam longe de uma igualdade democrática. No período entre
1930 e 1940, as políticas sociais estiveram relacionadas, especialmente em relação a
populações urbanas, com as leis trabalhistas. Entretanto, a conquista de liberdade para
as religiões de matrizes africanas ainda estava muito longe, e, no Distrito Federal, o
Regulamento Geral da Prefeitura de Policia do Rio de Janeiro estabelecia em seu artigo
246: “Ficam expressamente proibidas em todo o Distrito Federal as praticas de magia,
qualquer que seja a sua denominação — “macumbas”, “candomblés”, “feitiçarias”,
cartomancia, nicromancia, quiromancia e congêneres”.780
As proibições não impediram que, em 1936, “Pae Alufá”, Zé Espinguela, fizesse
uma apresentação da Macumba na Rádio Tupi, com a presença de inúmeras
personalidades, entre eles, os embaixadores do México e do Uruguai e os ministros de
Cuba e do Paraguai. Novamente, o palestrante foi o professor Nóbrega da Cunha, que
fez uma explanação sobre alguns orixás, associando-os aos santos católicos, por
exemplo: “Oxum, orixá das águas doces, equivalente às nymphas gregas e às yaras
indígenas, N. Senhora da Conceição”.781 A definição feita por Cunha inseria-se nas
transformações advindas do que ficou conhecido como Macumba Carioca, da qual Zé
Espinguela era um representante, integrando a cabula “banto”, santos católicos, o culto
nagô dos orixás, catimbozeiros, caboclos e “pretos velhos”.

778
Idem, ibidem.
779
A Esquerda, Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1931, p.1.
780
Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1931, Página 38 • Seção 1
781
O Jornal, 15 de fevereiro de 1936, p.3

222
A apresentação na Rádio Tupi foi um sucesso. O embaixador do Uruguai, Juan
Carlos Blando, disse: “Achei interessantíssimo o que acabo de ver e ouvir. O som
estranho da musica, o rythmo curioso dos cantos e os movimentos da dansa constituem
um conjunto mysterioso e sem igual”.782 A repercussão da apresentação de “Pae Alufá”
foi imensa e levou o jornalista João D’Abreu a se deslocar para o distante subúrbio: “a
rápida visão da macumba e a musica estranha deram-me o desejo de uma aproximação
com essa gente que vive tão perto e tão longe de nós. E parti a procura de ‘Pae
Alufá”.783 Na sua expedição, em busca de Zé Espinguela, o jornalista fez um retrato do
subúrbio distante: “Poucos metros, apenas, nos separavam da rodovia e já se
transformara a paizagem, tomando accentuado aspecto de roça: rua sem calçamento,
invadida pelo capim e casas modestas no centro de pomares”.784
A análise da entrevista de “Pae Alufá” permite a identificação de um elemento
importante, enfatizado pelos líderes religiosos, ou seja, o fato de manterem uma tradição
passada por gerações anteriores: Faustino afirmava que seus instrumentos musicais
eram estilizações dos instrumentos, trazidos por seus avós da África, onde eram usados
nos cultos de Oxum; “Pae Alufá”, ao ser indagado como adquiriu seus conhecimentos
religiosos, afirmou: “nasci nisso e, a medida que ia crescendo, fui seguindo o exemplo
de meus velhos, os quaes, por sua vez, sabiam disso desde crianças. É coisa que se
transmite de pae a filho. Há livros, também, mas nunca são tão completos”.785
Conforme destacado por Geertz, o conceito de cultura “denota um padrão de
significados transmitido históricamente, incorporado em símbolos, um sistema de
concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida”.786 A força da tradição oral está presente entre povos africanos: “É na figura
aurática e na palavra decisória de um mais velho, que um mais novo vai encontrar a
indicação mais segura sobre o caminho a percorrer”.787 Na cultura afro-brasileira,
através da memória oral transmitida pelos mais velhos, fortalece-se a continuidade com
as “raízes” africanas.

782
O Jornal, 15 de fevereiro de 1936, p.3.
783
O Jornal, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1936, p.3.
784
Ibidem.
785
Ibidem.
786
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. p.66
787
PADILHA, Laura. Entre a voz e a letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX.
Niterói: Eduff, 1995. p. 42

223
As informações fornecidas por “Pae Alufá”— o Zé Espinguela— ao jornalista
sobre os “macumbeiros” mostram como tradições e experiências religiosas foram
absorvidas e reinventadas. Espinguela contou que a grande família de macumbeiros era
dividida em três grupos principais: “os ‘conga’, que não existem mais no Rio , os ‘nagô’
e os angola. O culto é igual, as cantigas é que são diferentes. Há também os ‘miná’, que
são pouco numerosos aqui, os ‘carubina’ e os ‘Rambollo’”.788 É importante observar
que a “nação” significava o ritual de cada “terreiro”, e “Pae Alufá” teria afirmado,
então, que sua descendência era “mina”, mas que seguia a lei “angolista” e adorava seus
“orixás”, os espíritos dos santos, e que seu padroeiro é São Sebastião (Oxossi). O
exemplo dessa associação está presente nos cânticos dos terreiros de umbanda:
Meu glorioso São Sebastião
Que representa Oxóssi na Terra
Nos livre da peste da fome, da fome e da morte,
Da morte e da guerra

É importante destacar que uma teorização do sincretismo religioso já foi


amplamente discutida. Ferretti sinaliza que identificar sincretismo em um ritual ou
tradição não significa nenhuma especificidade, pois todas as religiões têm origens
compostas e são continuamente reconstituídas. A convivência com várias tradições,
inclusive a católica, permitiu a construção de uma nova tradição religiosa: a umbanda.
No terreiro de “Pae Alufá” havia, como também em Tio Faustino e na maioria dos
terreiros de umbanda, um altar com imagens de santos católicos: “acreditamos na
religião cathólica, no Christo, na Virgem Maria e nos Santos. Vamos à Igreja e
mandamos rezar missas. Por exemplo, no dia de São Sebastião, que é padroeiro da
nossa lei, vamos ouvir a missa e, depois, brincamos aqui a nosso estylo”.789
Outro aspecto que chama a atenção é a questão do termo “alufá”, usado pelos
negros muçulmanos para designar seu líder religioso, como visto anteriormente neste
estudo, e que passou a designar o chefe de um terreiro de umbanda. Nina Rodrigues
destaca que o sacerdócio iorubano ou nagô incluía várias subdivisões, e os babalaôs
eram o primeiros sacerdotes na hierarquia iorubana e dedicados a Ifá790, mas, na Bahia,
no período em que escrevia, não existiam as especializações sacerdotais originais: cada
pai ou mãe do terreiro dirigia o culto de todos os orixás. Porém, nas grandes
788
O Jornal, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1936, p.3
789
Ibidem, p.7.
790
Segundo Nina Rodrigues, o culto a Ifá teve origem no fetiche do dendenzeiro e, mais tarde, passou a
incluir certas nozes que eram usadas para deitar a sorte: “só por último é que a própria adivinhação teve
em Ifá o seu patrono antropomorfo.” RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Editora
Nacional; Editora da Universidade de Brasília, 1982. p. 227.

224
solenidades, e sempre que possível, eles se associavam a outros chefes, e a cada qual
cabia a direção do culto do orixá a que era especialmente votado.791 Para Câmara
Cascudo, Martiniano Bonfim e Felisberto Bamboxê foram os últimos babalorixás.
Naturalmente, o autor estava baseando seu pensamento em um grau de “pureza
africana”, tão enfatizada pela intelectualidade da época que, partindo da “superioridade
nagô”, reconhecia aqueles líderes como seus últimos legítimos representantes.
Entretanto, ao se definir como alufá , Zé Espinguela estava consolidando uma clara
apropriação/reinvenção de um atributo dos sacerdotes africanos islamizados.
Ainda na entrevista de “Pae Alufá”, temos outro aspecto bastante discutido em
relação às religiões de matrizes africanas: a iniciação religiosa.
Nós precisamos de 16 dias para “preparar a cabeça de um filho”, isto
é, pol-o em condições de servir para nossas invocações dos orixás. E
devemos ainda procurar as hervas com que preparar as cento e umas
águas differentes que são necessárias. São coisas que não lhe posso
explicar, mas a nossa lei tem muito fundamento.792

Segundo Verger, a iniciação consiste em criar no noviço, em determinadas


circunstâncias, uma segunda personalidade, um desdobramento mítico inconsciente,
durante o qual ele manifestará o comportamento tradicional do orixá. A iniciação marca
a ruptura com o passado e mostra o nascimento de uma nova vida consagrada ao orixá.
Verger explica que no período da iniciação, quando o iniciado está recolhido, ele fica
“em um estado de embotamento e de atonia mental. De tudo esquece, não sabe mais
falar e só se exprime através de sons inarticulados”.793
Já comentamos sobre a importância das ervas nas cerimônias afro-brasileiras.
Em relação ao que foi dito por Pae Alufá, é importante destacar que, como confirma
Verger, os banhos com certas ervas tem a função de, junto com cantos e danças, fazer
ressurgir no iniciado o comportamento do seu orixá: “A importância das folhas e o uso
dos banhos onde elas foram postas em infusão é primordial para o culto dos orixás. O
nome dessas folhas e seu emprego constituem a parte mais secreta desses rituais”794.
Portanto, esse era o motivo de “Pae Alufá” não poder explicar ao jornalista o
significado daquele ritual.

791
Idem, ibidem, p.235.
792
O Jornal, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1936, p. 7.
793
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil e
na antiga costa dos Escravos na África. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
p.82
794
Idem, Ibidem.

225
As atividades mais “midiáticas” de Zé Espinguela continuaram e, com o apoio
de Heitor dos Prazeres, que era “embaixador do terreiro de ‘Pae Alufá’”,795 as
repercussões da macumba na Rádio Tupi atingiram vários países, que foi retransmitida
pela Rádio El Mundo, em Buenos Aires. Assis Chateaubriand, escreveu um artigo em
que comenta seu encontro com Lourival Fontes, que lhe perguntou se “Getulio Vargas,
que é technico e doutor em feitiçaria, ouvira a nossa macumba”,796 referindo-se à
apresentação de Pai Alufá. As apresentações na Rádio Tupi sucederam-se e sempre com
grande sucesso. O prestígio de Espinguela fez com que a artista Josephine Baker, que
veio ao Brasil em 1939, fosse conhecê-lo.
No Carnaval de 1940, o grande sucesso dos desfiles, na avenida Rio Branco, foi
o Sôdade do Cordão, idealizado pelo maestro Heitor Villa-Lobos e cujo líder era “Pae
Alufá”, que dirigia com disciplina de chefe o rancho que tinha como objetivo:
fazer ressurgir, em 1940, um verdadeiro cordão, na maior fidelidade possível,
tal como ele existira no início deste século. Queria-o como antes haviam sido
o Terror das Chamas, o Pavor dos Inocentes do Morro do Pinto, o Prazer da
Pedra Encantada e tantos outros. Precisava de uma assessoria adequada ao
empreendimento. Por isso foi buscar a cooperação de vários integrantes de
velhos cordões, dentre eles o famoso José Gomes da Costa, também
conhecido como Pai Alufá, Zé Spinelli ou Zé Espinguela, autor da marcha de
cordão Brasil, do Sôdade do Cordão. Aliás, foi ele quem iniciou os
preparativos para aquilo que veio a se chamar o Sôdade do Cordão.797

Ortiz chama a atenção que, para Bourdieu, o campo — “espaço onde as posições
dos agentes se encontram a priori fixadas”798 — é o lócus aonde se trava uma luta
concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos. Assim, o campo é um
espaço aonde se manifestam relações de poder, que se estrutura a partir da distribuição
desigual de um quantum social, denominado por Bourdieu de capital social, que
determina a posição de um agente específico: “A estrutura do campo pode ser
apreendida tomando-se como referência dois polos opostos: os dos dominantes e dos
dominados”.799 De acordo com o autor, os agentes que ocupam o primeiro polo são
justamente aqueles que possuem o máximo de capital social.800 É esse quantum que
permite o controle do poder. Nos casos aqui estudados, o poder se expressa pelo
controle através de diversas formas: os agentes repressores que, para os dominados, se
795
Diario da Noite, Rio de Janeiro, 4 de março de 1936, p.4.
796
O Jornal, Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1936, p. 4.
797
PAZ, Ermelinda. Sôdade do Cordão. Rio de Janeiro: ELF, 2000. p. 26.
798
ORTIZ, R (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. Tradução de Paula Montero e Alicia Auzmendi. São
Paulo, Ática, 1983. pp7-36, p.19
799
Idem, ibidem, p.21
800
Idem, ibidem, p.21

226
evidenciava na ação imediata de feitores, capitães de mato, inspetores de quarteirões,
inspetores de polícia e delegados; ou os meios de comunicação, especialmente os
jornais, que divulgavam de anúncios de escravos fugidos a narrativas que procuravam
“mostrar” a inferioridade dos negros e de suas práticas como “selvagens” “bárbaras”.
Para enfrentar o cativeiro, foi importante desenvolver estratégias de sobrevivência,
individuais e coletivas, como os quilombos e a associação com comunidades religiosas,
especialmente as irmandades católicas, para a construção de uma realidade social. Da
mesma forma, no pós-abolição, como, na prática, a mudança de cativo para livre não
significou substanciais alterações nos ganhos sociais e nas formas como o poder oficial
lidou com os ex-escravos e seus descendentes, era necessário aos “quase-cidadãos”
construírem campos de poder representados pelas atividades musicais ou religiosas.
Por outro lado, os líderes das diferentes experiências religiosas de matrizes
africanas também tinham seus campos de poder, usados em relação aos seus adeptos, e
se estabeleciam através da capacidade de convencimento sobre seu controle de
elementos específicos: o conhecimento das ervas, dos jogos advinhatórios e o “poder”
de comunicação com os espíritos. O líder religioso representava o “escape” para as
agruras do cotidiano. Estar associado a uma comunidade religiosa, com um líder
“poderoso”, significava uma garantia. Também é preciso observar que esses líderes,
cientes das “tramas” que envolviam o poder, buscavam se aproximar, através do que
tinham a oferecer, a sua “feitiçaria”, de elementos poderosos da sociedade,
especialmente políticos importantes, como fizeram o “macróbio feiticeiro” João Miguel
Pereira da Costa, Cypriano Abedé, Benzinho Bamboxê, Tio Faustino.
Nas primeiras décadas do século XX, mesmo com as perseguições, as casas de
culto de matrizes africanas atraíam, cada vez mais, novos adeptos vindos de outras
classes sociais. Por outro lado, as músicas feitas pelo “povo dos morros”, os “malandros
cariocas”, conquistaram o gosto do “povo da cidade” e se transformaram em sucesso.
No início do século XX, compositores e grupos musicais levaram para outros espaços o
que antes era feito nos cortiços e morros, e, nas décadas seguintes, essa tendência só fez
crescer. Estabeleceu-se uma ligação entre o profano – o samba – e o sagrado – os
candomblés e os terreiros de umbanda. Assim, a música, as escolas de samba, a relação
com líderes políticos e pessoas da sociedade foi um caminho trilhado por vários líderes
religiosos, como Tio Faustino, Tia Ciata, Pai Alufá e o Tatá de Inkinse do morro de São
Carlos, Tancredo da Silva Pinto.

227
CAPÍTULO V- O REI DO CONGO CHEGOU

O último carnaval da década de 1940 teve como grande sucesso musical a


marcha carnavalesca General da Banda. A letra chamou a atenção da censura, porém
conseguiu ser liberada e, apoiada em um refrão fácil, tornou-se extremamente popular.
Chegou General da Banda
Ê, ê, ê, ê
Chegou General da Banda
Ê, ê, ê, a

Mourão, Mourão
Vara madura que não cai
Mourão, Mourão
Catuca por baixo
Que ele vai 801

A marcha foi o verdadeiro “abafa” do Carnaval de 1949 e era cantada por


Blecaute, que teve seu nome artístico definitivamente associado ao sucesso musical
“General da Banda”. O cantor, em suas apresentações, usava um traje que estilizava
uma farda militar. Porém um detalhe não deixou de ser observado na matéria que
comentava a composição:
Devo dizer que não era estranha para mim, semelhante melodia, e mesmo
parte de sua letra. Conheço a bastante, através dos terreiros que frequento, lá
para os lados de São Matheus, Vila Miriti, e Nova Iguaçu.
É um autentico ponto de macumba com que os adeptos salvam “Ogum” 802

A vitória do Brasil na Guerra do Paraguai foi creditada, pelos soldados baianos,


a Ogum, como comentado anteriormente. A primeira parte da marcha carnavalesca
correspondia a um “ponto” de saudação ao orixá. Contudo, alguns anos antes do sucesso
de General da Banda, nos festejos consagrados a Ogum, em 1924, o A Noite803
estampou em primeira página, sob o titulo “o Terreiro de Macumba” , a fotografia de
um homem negro, caracterizado de “general”: era “Pae Quintino”, chefe da macumba
da Rua Araujo Leitão, no Engenho Novo.
Durante uma sessão no terreiro de “Pae Quintino” alguns médiuns entraram em
transe mediúnico: “uma negrita alta e magra, de tenra idade, com um chapeo masculino,
de palha, sob a gaforinha”804 e “ chamaram um rapaz escuro, de renome entre os últimos

801
General da Banda: composição de Tancredo Silva Pinto, Sátiro de Melo e José Alcides
802
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 3 de março de 1949, p. 6
803
A Noite, Rio de Janeiro, 23 de abril de 1924, p. 1.
804
Ibidem.

228
capoeiras cariocas, e pondo-lhe, amoroso, o braço ao pescoço, “Pae Quintino”, arrastou-
o ao centro do terreiro”,805onde todos bradavam:
Viva Ogum
Viva o general de umbanda
Viva a espada de nosso general
Viva o cavalo de nosso general

No ritual realizado na casa de “Pae Quintino”, descrito por Leal de Souza, o


líder religioso recebeu um sabre Combain e o entregou a um de seus auxiliares para
colocar mãos do capoeira que, em transe mediúnico, passou a dançar sob o som de
tambores e pandeiros: “De pronto, jogou o sabre ao chão e deitou-se de bruços, na terra.
Traçou-lhe, então, sobre as costas, ‘Pae Quintino’, uma cruz aerea, e, fazendo-o
levantar-se, repoz-lhe o sabre na mão”.806
O jornal A Noite já havia feito, em janeiro de 1924, uma primeira reportagem
com “Pae Quintino” e, mesmo com as perseguições policiais que ocorriam no período, o
“macumbeiro” estava muito à vontade em mostrar sua casa religiosa. Ele, assim como
outros sacerdotes, contava com a proteção de pessoas ilustres como, por exemplo, o
jornalista Nóbrega da Cunha, também ligado ao já citado “Pae Alufá”. Outro aspecto
interessante era que Quintino afirmava ter, no terreno de sua casa, uma árvore cujo
tronco estava ali e as raízes na Costa da África. Simbolicamente, isso não deixava de ser
verdade: no “terreiro” de Quintino, mesclados com o culto aos orixás dos africanos
ocidentais e o catolicismo, persistiam elementos-chave das antigas tradições dos
africanos-centrais: a água, presente na tigela no ritual em homenagem a Ogum, era um
dos elementos usados pelos povos do Kongo na ligação entre o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos,807 como o mar — a Kalunga Grande. A árvore plantada na casa de
Pai Quintino seria uma representação da Nsanda.808 Conforme analisa Slenes, a árvore
Nsanda “encerra em seus ramos um complexo de crenças e instituições fundamentais

805
A Noite, Rio de Janeiro, 23 de abril de 1924, p. 1.
806
Ibidem.
807
VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Marina de Mello e. Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino
do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII. Tempo, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, v.3, n.6, dez/1998 :95-118. P.115
808
Ana Paula Tavares, afirma a importância da nsanda, do Kongo, e destaca que a mesma árvore era
conhecida em Luanda como ensanderia. A autora cita Virgilio Coelho, em relação às regiões do antigo
reino do Ndongo “a permanência e a união dos grupos de parentesco e a sua ligação com os antepassados
múndòngò passaram a ser asseguradas pela mulèmbà, que passou a ser plantada no centro de cada nova
aglomeração”. COELHO, Virgílio. Em busca de Kábàsá: uma tentativa de explicação da estrutura político
– administrativa do “Reino de Ndòngò”. Estudos Afro-Asiáticos, n. 32, p.135-162, 1997. TAVARES, Ana
Paula Ribeiro. História, memória e identidade: estudo sobre as sociedades e Lunda e Cokwe de Angola.
Tese (Doutorado em Antropologia – Etnografia) - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2010. Disponível em <http://run.unl.pt/handle/10362/13887>.

229
para os kongo (bakongo) e mbundu: povos respectivamente do baixo rio Zaire e
hinterlândia de Luanda”.809 Portanto, no quintal de Pai Quintino, estaria plantada a
árvore sagrada dos africanos-centrais, fosse ela a espécie original ou qualquer outra –
árvore nsanda (Fícus dusenni), a gameleira branca( Fícus doliaria) ou a mulemba (Fícus
thonning) considerada a árvore real de Angola – ali, no Engenho Novo, na então capital
federal do Brasil , ela simbolizava a permanência da antiga tradição dos africanos
centrais.
Assim, Pai Quintino tinha seu poder legitimado, para seus adeptos, através da
sua “pureza africana”, falava, durante seus rituais, em “uma língua africana” e afirmava
“a minha língua é de Angola”.810 Esses mesmos aspectos foram enfatizados por
Tancredo da Silva Pinto, o autor de General da Banda, que, ao reinterpretar tradições
que marcaram sua infância em Cantagalo, associadas a outras tradições religiosas,
apreendidas na cidade do Rio de Janeiro, se transformou no principal tata de inkinse do
ritual do omolocô

IDENTIDADES: CONSTRUÍDAS - RECONSTRUÍDAS

“sob o duro regime do cativeiro reconstruíram, como puderam, as


práticas, os usos e as crenças da pátria longínqua”.811

Na igreja do Santíssimo Sacramento de Cantagalo, aonde, em 1876, durante sua


festiva visita, d. Pedro II assistiu à missa solene, casaram-se, em 1904, Belmiro da Silva
Pinto e Edwiges de Miranda: ele, filho natural de Angélica Maria da Conceição, e ela,
filha legítima de Manuel Luis de Miranda e Henriqueta Miranda. O casamento teve
como testemunhas Vicente Pinto da Silva, Justino Rodrigues da Silva e Darcília Ferraz
da Silva.812 Em dezembro de 1905, nasceu o primeiro filho do casal: Tancredo.

Aos vinte e quatro de novembro de mil novencentos e seis baptisei o inocente


Tancredo nascido em dez de Decembro de mil novecentos e cinco, filho

809
SLENES, Robert W. A Árvore Nsanda Transplantada: Cultos Kongo de Aflição e Identidade Escrava
no Sudeste Brasileiro (Século XIX). In LIBBY, D. C.; FURTADO, J. F. (org.). Trabalho livre, trabalho
escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006: 273-314. p 275.
810
A Noite, Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1924, p.1.
811
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª edição, São Paulo: Editora Nacional; Brasília: Ed. da
Universidade de Brasília, 1982, p.41.
812
LIVRO de Casamentos da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Cantagalo, livro 22, p.4 Centro de
Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo (CMPD-CAN)

230
legitimo de Belmiro da Silva Pinto e Edwiges de Miranda Pinto, forão
padrinhos João Lindalécio Ferreira e Maria Thereza Moreira.
Pad. Francisco Antonio Pinto Ferreira da Veiga.813

No registro de casamento dos pais de Tancredo, consta que Belmiro da Silva


Pinto era filho natural de Angélica Maria da Conceição. Observando-se que, nos
registros dos óbitos dos filhos de escravas, ocorridos em Cantagalo, a maioria das
crianças, filhas de escravas, eram identificadas como filhos naturais, esse pode ser um
indicativo da condição cativa da avó paterna de Tancredo. Não localizei o registro de
óbito de Angélica, mas, caso ela já houvesse falecido quando seu neto nasceu, o forte
elemento de identidade para o futuro líder do omolocô foi o lado familiar materno. Ele
comentava a importância de seu avô, Manuel Luis de Miranda, nos blocos de
Cantagalo. Segundo a pesquisadora Henny Kropft, existiam, nas primeiras décadas do
século XX, Folias de Reis, Caxambu, Mineiro Pau, Bumba Meu Boi, terreiros de
Candomblé e um rancho, o Flor da Mocidade, que concentrava um grande número de
pessoas negras.814 Tancredo, em entrevista, afirmou: “Eu venho na religião desde
garoto, pois eu nasci nela. Sou filho de Cantagalo, tendo nascido em 1905, com meus
pais e avós sendo todos da Lei”.815
Segundo Stuart Hall,816a identidade pode ser construída a partir da recusa aos
modelos dominantes de construção pessoal e cultural a que se é exposto. Ao longo da
história do cativeiro, inúmeros casos demonstram a luta dos escravizados para
manterem as suas referências culturais. Podemos citar, ainda no início do século XIX, o
“mina Anacleto”, “um moleque cor fulla”, de 13 a 14 anos de idade, que fugiu da casa
de seu senhor. No anúncio da fuga, havia a informação de que, “entre os seus”, o jovem
era chamado de Abubec’Kir.817 Esse detalhe, conhecido pelo senhor, mostra que a
identidade pela qual o menino, que trazia o nome de companheiro de Maomé, se
reconhecia, a escravização não conseguiu anular, e as redes de socialização
estabelecidas entre os escravizados ajudavam a preservar: ele era conhecido “entre os
seus” como Abubec’Kir. Paul Lovejoy analisou o caso de Mahommah Gardo Baquaqua,

813
LIVRO 17 de Batismo da Paróquia Santíssimo Sacramento de Cantagalo -1905 a 1910, folha 74,
registro 342. Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo (CMPD-CAN).
814
KROPF, Henny. Cantagalo, cidade dos melros. Cantagalo, RJ: cópia mimeografada,1987. Consultado
na Biblioteca Pública Municipal Jornalista Acácio Ferreira Dias, em de outubro de 2014.
815
Jornal Adjá , Rio de Janeiro, março, abril, 1978, nº 2, p.1
816
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte; Brasília: Editora
UFMG; Representações da Unesco no Brasil, 2003.
817
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1823, p. 4. A grafia original pode ser Abu-
Béquer.

231
escravizado na África Ocidental, transportado para o Brasil, em 1845, e que alcançou a
liberdade em Nova Iorque, em 1847. O autor explica que o nome Gardo, ou, mais
propriamente, Gado, ligava-o à memória de sua família e assim mantinha o seu sentido
de identidade em termos de parentesco. No processo de construção de significados
identitários, a busca pela ancestralidade torna-se um elemento chave e, no século XX,
encontramos entre praticantes dos cultos afro-brasileiros essa fundamentação. Isso fica
evidente na viagem feita por Mestre Didi à África, especialmente, Nigéria e Daomey,
cujo objetivo era reconhecer: “Os lugares que a nossa tradição nos indicava como
diretamente relacionadas com a nossa herança, contaram com nossa mais assídua
presença”.818 Mestre Didi enfatiza o reconhecimento de antigas tradições vivenciadas
por seu grupo familiar, em Salvador, com algumas tradições dos locais visitados na
África: “O antigo reino de Ketu, com suas cidades e vilas, historicamente relacionadas
com as nossas mais importantes casas de culto foram objetos de pesquisas mais
demoradas”.819
No ambiente em que conviviam as heranças das relações escravagistas — que o
pós-abolição não conseguiu solucionar — e as tradições culturais dos antigos
escravizados, Tancredo viveu a sua infância. Bourdieu apresenta o conceito de habitus
como sendo: “um operador, uma matriz de percepção e não uma identidade ou uma
subjetividade fixa”.820 Ou seja, existe uma aptidão dos sujeitos para assimilar elementos
que, ao longo do tempo, servem como um arcabouço que embasarão seu modo de
pensar e que serão determinantes na sua visão do mundo. Wacquant analisa que o
habitus fornece ao mesmo tempo um princípio de sociação e de individuação:
sociação porque as nossas categorias de juízo e de ação, vindas da sociedade,
são partilhadas por todos aqueles que foram submetidos a condições e
condicionamentos sociais similares (assim podemos falar de um habitus
masculino, de um habitus nacional, de um habitus burguês etc.); individuação
porque cada pessoa, ao ter uma trajetória e uma localização únicas no mundo,
internaliza uma combinação incomparável de esquemas. 821

Como observado por Wacquant, cada pessoa pode internalizar uma combinação
incomparável de esquemas. Portanto, a interação com outros agentes sociais permite que
novos traços culturais sejam incorporados. Tancredo da Silva Pinto cresceu em uma
818
SANTOS, Deoscoredes Maximiliano dos. Rituais e arte sacra da África Ocidental no Brasil. 1967,
datilografado. Biblioteca Nacional, Seção Manuscritos, Localização: 51,18,95. p. 1. Mestre Didi (1917-
2013) era filho de Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, e descendente de Marcelina da Silva,
fundadora do Casa Branca-Engenho Velho, na Bahia.
819
Idem, ibidem
820
BOURDIEU, Pierre. Entrevistado por Maria Andréa de Loyola. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. p. 83
821
WACQUANT, Loic. Notas para esclarecer a noção de habitus. Revista Brasileira de Sociologia da
Emoção, v.6, n.16, p. 5-11, abril 2007, p. 8.

232
terra, cuja presença de africanos e seus descendentes era acentuada — quando ele
nasceu, havia apenas 17 anos da abolição — e sua família era mantenedora de tradições
“africanas”. Em Cantagalo, a presença de africanos centrais era predominante.
Thompson analisa que, “embora a vida social esteja em permanente mudança e a
mobilidade seja considerável, essas mudanças ainda não atingiram o ponto em que se
admite que cada geração sucessiva terá um horizonte diferente”.822 Para o autor, “as
tradições se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com o seu
repertório de anedotas e narrativas exemplares”.823 Levando em consideração essas
ideias apontadas por Thompson, podemos observar a importância da tradição oral nas
religiosidades afro-brasileiras e concluirmos, com base no pensamento de Jan Vansina,
que uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais: “ a
tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de
uma geração para outra”.824 Partindo dessas ideias, podemos compreender, para os
escravizados e as primeiras gerações de seus descendentes brasileiros, a importância das
tradições que lhes eram repassadas através de seus vínculos sociais e como esses
elementos eram fundamentais nas suas construções identitárias.
Robert Slenes destaca que, entre o final do século XVIII e a primeira metade do
século XIX, o Brasil recebeu um enorme contingente de africanos, especialmente o Rio
de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Para ele, quase a totalidade dos escravos trazidos
para o sudeste provinha de “Angola”, dos portos de Luanda e Benguela.825 O autor
ressalta que “se a escravidão no Centro-Sul era africana, isto vale dizer que era
bantu”.826 Em Cantagalo, isso ficava evidente em alguns registros de óbitos.
No registro de 28 óbitos de escravos ocorridos em Cantagalo, entre 1852 a 1870,
23 eram de africanos centrais – oito congos, cinco benguelas, quatro cabindas, três
moange, dois monjolo, um rebolo –, três eram africanos orientais – moçambique – e
dois africanos ocidentais – minas. Portanto, eram aproximadamente 80% identificados
com procedência da África Central. Por outro lado, observamos que 34% estavam
acima dos 60 anos, e os dois minas eram os únicos abaixo dos 30 anos. Por certo, essas

822
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 18.
823
Idem, Ibidem.
824
VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI -ZERBO, Joseph. História geral da África.
São Paulo; Paris: Ática; Unesco, 1982. Cap.7, p. 157-180. p. 157.
825
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem! A África Coberta e Descoberta do Brasil. Revista da USP,
nº. 12, p.48-67, dez/fev 1991-1992, p.55.
826
Idem, ibidem.

233
idades registradas podem, na maioria dos casos, não serem as idades reais do falecidos.
Contudo, o fato de os “minas” serem os mais jovens – ambos falecidos em 1860 – pode
apontar para uma presença recente na região. O fato é que os registros de óbitos, em
Cantagalo, mostram uma grande presença de africanos centrais.827
Um detalhe familiar sempre destacado por Tancredo é que seu avô participou,
em Cantagalo, da fundação de blocos como o Treme Terra, surgido em 1912, e
especialmente do Cordão Místico, em que sua tia Olga se vestia de Rainha Ginga, a
lendária Rainha de Matamba. Nos registros de óbitos, ocorridos em Cantagalo, existe o
de Francisca Maginga, falecida em 16 de junho de 1852, com quarenta e cinco anos de
idade.828 Não localizei, até a presente data, nenhum outro escravo do que poderia ser
uma “etnia Maginga”. Mas um anúncio, publicado em 1869, fala de uma sociedade
maginga no Rio de Janeiro.
Attenção
Divertimento todos os Domingos à tarde na rua da Pedreira da Candelária.
Matricula dos sócios da sociedade Maginga.
Presidente A.C.F, Secretario E.P. de Oliveira, Thesoureiro C.G. M. Maia.829

Lamentavelmente, as pessoas que publicaram o anúncio procuraram manter o


anonimato, reforçando a ideia de algo que não era legal. O fato de o “divertimento”
acontecer aos domingos, dia em que tradicionalmente os escravos tinham folga, pode
ser um indicativo da origem da sociedade, embora não fossem apenas escravos que
usavam o domingo para se divertirem. Wilson Nascimento Barbosa, analisando o
desenvolvimento da umbanda no Brasil, cita que a palavra “Macumba”, de origem
bantu, vem de Cumbe ou Kumbé, que, com qualquer grafia, significa “dança de
tambores”.830 O prefixo MA lhe dá ênfase, podendo ser traduzido como “muito
poderosa”. Portanto, supondo que afirmação do autor possa ser aplicada à “Maginga”,
essa poderia, então, significar “Muito Poderosa Ginga”. Assim, Francisca, a escravizada
em Cantagalo, e a sociedade que reunia seus sócios, aos domingos, na rua da Pedreira
da Candelária poderiam ser um referencial da poderosa rainha de Matamba? Por outro
lado, Mahadi Adamu ressalta que a história política de Yawuri mostra que, no fim do
século XVI, quando os hausás começaram a se expandir para a região, entraram em

827
LIVRO de Óbitos de Pessoas cativas na Freguesia do Santíssimo Sacramento da Cidade de Cantagalo,
nº 2, 1855-1883. Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo (CMPD-CAN).
828
Ibidem. O registro de Francisca Maginga foi feito, em 11 de novembro de 1861, pela firma Clemente,
Van Erven e Companhia. Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo (CMPD-CAN).
829
Echo Popular, Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1869, p. 4.
830
BARBOSA, Wilson do Nascimento. Da `nbandla à umbanda: transformações na cultura afro-brasileira.
Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, nº 1, p.7-19, jun 2008, p.8.

234
choque com a chefaria Kambari de Maginga, dominando-a.831 O autor destaca ser
possível que Maginga já formasse um reino por volta do ano 1200. Portanto, o Maginga,
usado por Francisca e pela sociedade sediada na rua Pedreira da Candelária, poderia ser
reminiscências do antigo reino, no Rio de Janeiro do século XIX? Qualquer das
hipóteses serve para uma reflexão sobre a sobrevivência cultural dos povos africanos em
terras fluminenses.
Havia, em toda a província do Rio de Janeiro, uma forte presença dos africanos
centrais, como venho destacando. Em seus estudos etnolinguísticos Yeda Pessoa de
Castro destaca que a influência “bantu” era muito mais profunda em razão da sua
antiguidade no Brasil.832 A relevância cultural desses africanos também foi marcante na
cidade do Rio de Janeiro. Um exemplo disso foi a Devoção a São Balthazar. Na
hagiografia, São Balthazar, um dos três reis magos que visitaram o menino Jesus no dia
de seu nascimento, é representado como negro. Sua devoção foi incentivada desde os
primeiros contatos dos portugueses e os povos da África, como um meio de conversão.
Na igreja da Lampadosa, na cidade do Rio de Janeiro, existe uma antiga imagem do
santo vestido como rei de Congo. Vieira Fazenda informa que, naquela igreja, a
devoção ao rei Balthazar era realizada por pretos africanos de diferentes nações: “Nos
domingos e dias festivos, saiam à rua, cantando e dançando à moda de seu país com o
fim de tirar esmolas para seu patrono negro”.833 O viajante americano Thomas Ewbank,
que esteve no Brasil em 1846,visitou a Igreja da Lampadosa. No livro Vida no Brasil,
publicado originalmente em 1856, relatou ter visto ali, à direita do altar mor da
padroeira, a imagem de “Balthazar, o rei de Congo, cujos globos oculares evernizados
de branco fitam-na de dentro de orbitas de azeviche”.834
Segundo Marina de Mello e Souza, a coroação do rei congo ocorreu com mais
intensidade “nas regiões que receberam um número maior de africanos das etnias
bantos, oriundos da África Centro-Ocidental, à qual pertenciam os bacongos, habitantes
do antigo reino do Congo”.835 Vieira Fazenda revela que, no tempo do conde da

831
ADAMU, Mahadi. História geral da África. 2ªed. rev. Brasília: Unesco, 2010. (vol. IV: África do
século XII ao XVI). p.320
832
CASTRO, Yeda Pessoa. A influência das línguas africanas no português brasileiro. Disponível em
<http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/documentos/linguas-africanas.pdf>. Acesso em 19 de
novembro de 2014.
833
FAZENDA, Vieira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 95, 1924, p.125.
834
EWBANCK, Thomas. A Vida no Brasil ou Diário de uma Visita ao País do Cacau e das Palmeiras.
vol. 2, Rio de Janeiro, Conquista, 1973, p.383
835
SOUZA, Marina Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da coroação do Rei Congo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 258.

235
Cunha,836 foi coroado imperador, Antonio, da nação Rebolo Tunda.837 De acordo com
Clóvis Moura, na cidade do Rio de Janeiro, cada distrito possuía o seu “Rei do Congo”,
eleitos pelos negros congos.838
Câmara Cascudo, definiu as congadas como autos populares brasileiros, de
motivação africana, que consistem na coroação dos reis do congo, préstitos e
embaixadas, reminiscências de bailados guerreiros e da Rainha Njinga, de Angola. A
origem da congada estava ligada a irmandades religiosas católicas, especialmente a do
Rosário e São Benedito. Nesse auto, estão presentes, entre outros personagens, o rei e a
rainha Nzinga Mbandi,839 que se destacou na resistência ao domínio português no
século XVII, representada em Cantagalo, onde predominavam os africanos centrais,
pela tia de Tancredo da Silva Pinto.
Nas primeiras décadas do século XX, Cantagalo tinha, além das congadas e
folias de reis, outras manifestações culturais como caxambu, cuja coreografia consistia
em uma roda, formada por homens e mulheres, e no centro ficava o responsável por
“puxar” a curimba (cântico). O caxambu, embora mostrasse um lado “profano”, tinha
sentido marcadamente religioso. Outra manifestação cultural em Cantagalo era o
mineiro-pau. A principal característica dessa dança é ser essencialmente masculina. Os
participantes, homens adultos e crianças, executam movimentos, em círculos ou fileiras,
coordenados com as batidas de bastões. Embora não tenha uma conotação religiosa tão
forte como o caxambu, esse aspecto não está de todo excluído.840
As últimas décadas do cativeiro, na província fluminense, foram marcadas pela
função da lavoura cafeeira no vale do Paraíba que englobava regiões como Cantagalo e
Vassouras. Com a Abolição, muitos senhores mantinham os libertos trabalhando apenas

836
O conde da Cunha, a que Vieira Fazenda faz referência, era Antonio Álvares da Cunha, que ocupou o
cargo de vice-rei (1763-1767). Com a mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, o
conde da Cunha foi o primeiro vice-rei a governar essa cidade.
837
Segundo Nina Rodrigues, em Pernambuco, só aos congos era permitido esse privilégio: “Desta notável
diferença só pode dar justa explicação a maior importância dos colonos Congos ou Angolas em
Pernambuco. A singularidade, entre os Africanos, concedida aos Congos neste privilégio, só explicável
no predomínio dos Negros desta procedência”. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª ed. São
Paulo; Brasília: Editora Nacional; Ed. da Universidade de Brasília, 1982. p. 34.
838
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil , São Paulo, Editora da Universidade de
São Paulo, 2004, p.344.
839
Sobre a rainha Ginga, ver: FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em
Angola. Século XVII. Dissertação (Mestrado em História Social) - Programa de Pós-Graduação em
História Social, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
840
Luciana de Araujo Aguiar estudou, em 2006, em Salinas, distrito de Nova Friburgo, um grupo de
Mineiro Pau. Ver: AGUIAR, Luciana de Araujo. A produção de subjetividade a partir de uma dança
tradicional: o Mineiro-Pau de Salinas. ENCONTRO NACIONAL DE ANTROPOLOGIA E
PERFORMANCE ENAP, São Paulo, 16 a 19 de março de 2010. In: Anais... 2010. São Paulo: ENAP,
2010. p. 347-353.

236
na época da colheita da safra e, com o desenvolvimento de nova corrente imigratória no
final do século XIX, europeus foram levados à força para Cantagalo e Valença,
ocupando as antigas as senzalas: “o Rio de Janeiro dentro em pouco tinha esses pobres
imigrantes vagabundeando pelas ruas, pois negavam-lhes passagem para São Paulo, a
título de já o terem dado para Cantagalo e Valença”.841 Aquelas localidades passavam
por mudanças com o declínio das lavouras cafeeiras e, obviamente, isso se refletia na
vida dos ex-escravizados. Entretanto, para aqueles que haviam vivenciado o cativeiro, o
período pós-abolição também era de posicionamentos: havia, nas décadas seguintes à
abolição, a opção de permanecerem nas terras de seus ex-senhores, na maioria das
vezes, “pagando dia para morar”, ou juntar-se à corrente migratória que, na esperança
de uma vida melhor, buscavam a cidade do Rio de Janeiro. Esse foi o caminho seguido
pela família Silva Pinto. Das terras de Cantagalo, o menino Tancredo da Silva Pinto
traria a sua memória familiar do cativeiro e o legado ancestral.
A família deve ter saído de Cantagalo após 1910.842 Uma filha de Belmiro da
Silva Pinto, chamada Henriqueta – mesmo nome da avó materna – faleceu em 1916,
quando a família já estava residindo na rua do Riachuelo, n. 353,843 o que está de acordo
com as informações de Tancredo, que teria vindo para o Distrito Federal quase
adolescente. Em entrevista concedida em 1973, quando criticou as mudanças ocorridas
na umbanda, denunciando a “comercialização do culto”, ele afirmou que estava com
sessenta e nove anos de idade, vivia no Rio há cinquenta e sete anos e há quarenta anos
no Estácio.844Assim, podemos concluir que as tradições culturais mantidas por africanos
centrais e seus descendentes, em Cantagalo, fizeram parte da história familiar dos Silva
Pinto. Bourdieu mostra que, na infância, adquire-se um “capital cultural”845 e, nos
primeiros anos de vida de Tancredo, a convivência com familiares e, possivelmente,
com antigos escravos foi, para ele, um importante referencial cultural e religioso.
Entretanto, as lembranças das tradições culturais vivenciadas na infância se mesclaram
com suas convivências cariocas e foram fundamentais na formação daquele que seria o
principal líder do omolocô.

841
Novidades, Rio de Janeiro, 7 de março de 1891, p.1.
842
Existe um registro civil, feito em agosto de 1934, de Belmiro da Silva Pinto, filho de Belmiro da Silva
Pinto e Edwiges Miranda, nascido em 13 de outubro de 1909, em Cantagalo. Arquivo Nacional,Fundo
Pretoria Civil do Rio de Janeiro (Freguesia da Glória, Lagoa e Gávea) Serie Talões de Nascimento.LTN
102/F. 039.
843
A Noite, Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1916, p. 4
844
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1973, p.7.
845
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo; Porto Alegre: Edusp; Zouk,
2007.

237
O OMOLOCÔ E AS TRADIÇÕES REIVENTADAS

O omolocô, que fez a confraternização dos cultos, tornando-se o elo central


dos mesmos, faz suas saudações por meio de corimbas e toques para todos os
cultos afro-brasileiros e ameríndios.846

Segundo relato de Tancredo , ele teria sido “feito no santo”, no ritual do


omolocô, em 1918, por Carlos Guerra.847 Existia em Cascadura, subúrbio do Rio de
Janeiro, um curandeiro chamado Carlos Guerra de Aguiar Andrade, morador na rua
Andrade Bastos, nº 19, e que se dizia da Irmandade de S. Domingos. Embora não seja
possível afirmar que esse era o Carlos Guerra citado por Tancredo, também não se pode
descartar essa possibilidade. Em 1904, Guerra havia sido acusado, por uma “cliente”, de
entrar em sua residência para lhe fornecer ervas, com o objetivo de melhorar sua vida
familiar, mas havia furtado joias em sua casa. Esses tipos de denúncias eram comuns,
como vimos anteriormente, aos “curandeiros” que, muitas vezes, por seus serviços não
resultarem no esperado pelos consulentes, eram acusados de charlatanismo e roubo.
Essa situação pode ser comparada com o ocorrido a João Mina que, no final do século
XIX, também foi acusado por seu cliente Francisco Lemos. Informado por uma pessoa
de suas relações, de que o feiticeiro João Mina era o único de que poderia, com seus
sortilégios, encontrar uma criada que há tempos desaparecera, se dirigiu a casa do
“feiticeiro”. João Mina, cujo verdadeiro nome era João Gonçalves da Costa, pediu
quantia de 54$000, em duas prestações, para realizar o “trabalho”. A primeira parcela
foi paga pelo “cliente”, e o “contrato foi verbalmente” firmado no sobrado n.158 da rua
Senador Pompeu, onde residia João Mina e sua mulher Sebastiana da Gloria. Como a
criada não foi localizada, Lemos denunciou João Mina como charlatão.
Devido à denúncia, o delegado da 8ª circunscrição, às 11 horas da manhã,
acompanhado do escrevente Soares e do Inspetor Faria, dirigiu-se à casa de João Mina,
onde o encontrou recolhido ao seu quarto, aguardando a hora da consulta. Na entrada da
casa, alguns clientes, sentados em um sofá, esperavam atendimento. No cômodo em que
João Mina estava, foram encontrados vários objetos: um cágado seco, uma ponta de
rabo de burro, uma grande boneca, que tinha o nome de “Guida em si”, dentro de uma

846
PINTO,Tancredo da Silva. O Dia, Rio de Janeiro, 22 de julho de 1963. 3º caderno, p.3.
847
Luta Democrática, Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1963, p.5

238
redoma de vidro, uma rosa de Jericó e ervas. O jornal descreveu João Mina como um
preto alto, natural da Costa da África, com bigodes, “cujas pontas se confundem com as
suissas, tinha 65 anos, estava de chinelos, sem meias, vestindo calça de algodão riscado
e camisa branca, sem colarinho, com 3 botões pequenos de ouro e brilhante”.848
João Mina, proprietário da casa de cômodos — apresentado como conversador e
curandeiro muito conhecido na Cidade Nova849 — foi interrogado e preso. Várias
pessoas acompanharam a sua prisão: “poucos serão os que não ouviram ainda fallar das
proezas do famigerado feiticeiro João Mina que a policia por vezes tem chamado as
contas”.850 Ainda de acordo com o relato jornalístico, “ o mandingueiro, longe de se
corrigir continua no seu officio de produzir malefícios por meio de manipanços e
sortilégios”. Ele ainda teria ameaçado seus vizinhos na Senador Pompeu”.851
Cinquenta anos após as denúncias contra João Mina, ocorreu, no morro da
Favela, uma entrevista de um velho capoeirista, de mesmo nome, a um repórter do
Estado da Bahia, que “Buscava entrevistar um africano – quase centenário – morador
desse morro, e que diziam ser um dos derradeiros sobreviventes da escravidão africana
na cidade”.852 Naturalmente, também nesse caso, não dá para provar que o capoeirista é
o mesmo homem que, em 1898, foi acusado de curandeirismo.853 Entretanto, no morro
da Favela, concretizava-se um encontro memorável: estava presente na reunião “um tal
de Tancredo Silva, que apesar de “jovem” era um dos últimos reinventados africanos
remanescentes daquela época heróica do batuque.”854 Após a entrevista, o jornalista e
Tancredo saíram caminhando em direção ao Estácio. O provável encontro do velho
“feiticeiro” e Tancredo é um símbolo do entrelaçamento, no fim da primeira metade do
século XX, de duas importantes “tradições africanas-cariocas” que, reinventadas, deram
origem a novas religiosidades surgidas, como a macumba e o omolocô.

848
O Paiz, Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1898, p.2.
849
A Noticia, Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1898, p. 1.
850
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1899, p. 2.
851
Ibidem.
852
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flavio dos Santos. No
labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro.Arquivo Nacional, 2005, p.300
853
Não posso garantir ser esse João Mina o mesmo homem que, em 1889, foi preso como curandeiro .
Afinal “João Mina” existiam aos milhares nas terras cariocas. Entretanto, em relação a Tancredo da Silva
Pinto, alguns detalhes podem nos levar a essa conclusão: ao terminar a entrevista, Tancredo saiu,
acompanhado do repórter, em direção ao Estácio, local em que residia. Em Origens da umbanda,
relembrando os batuqueiros famosos da cidade, cita “o grande João Mina, introdutor da cuíca no samba”.
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da umbanda, Rio de Janeiro: Editora Espritualista, 1970. p. 72.
854
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flavio dos Santos; FARIAS, Juliana Barreto. Op.cit.,
p.301

239
Como mostram Burger e Luckman, a identidade de cada indivíduo é alcançada
pelo processo de socialização ou de interiorização da realidade, ocorrendo ao longo de
toda a existência do indivíduo na sociedade.855Tancredo da Silva Pinto, nascido nos
anos seguintes ao pós-abolição, vivenciou na infância as tradições mantidas em
Cantagalo. Com sua família, migrou para o Distrito Federal, encontrando outras
tradições antigas na cidade ou trazidas pelas levas dos que chegaram a partir da segunda
metade do século XIX até o pós-abolição e que, mesmo com todas as mudanças
“civilizadoras”, impostas nas primeiras décadas do século XX, ainda estavam presentes
na cidade. A vivência no Estácio, bairro inserido no que formava a Cidade Nova — que
guardava a memória desde os antigos quilombos do século XIX até os cortiços e favelas
das primeiras décadas do século XX — permitiu ao jovem nascido em Cantagalo a
percepção de outros elementos culturais. Afinal, na rua do Catumbi, aonde Tancredo
transitava, ainda ecoavam o som das ancestrais festas, realizadas defronte ao cemitério,
“onde se reúnem, ao que dizem, para mais de trezentos negros”.856
Lovejoy destaca que “a etnicidade não é importante em si, ou por si só, mas,
sim, porque ela fornece uma chave metodológica para a reconstrução de padrões mais
gerais de história, do que permite a história isolada de uma pessoa”.857 Podemos aplicar
o pensamento de que “as tradições se perpetuam em grande parte mediante a
transmissão oral, com o seu repertório de anedotas e narrativas exemplares”.858 Sob essa
perspectiva, podemos observar a história de Tancredo da Silva Pinto, desde sua infância
em Cantagalo, suas tradições familiares tão decisivamente marcada por padrões
culturais de africanos centrais, e a observação, em sua terra, das memórias do cativeiro.
Por outro lado, a chegada, ainda adolescente no Distrito Federal, onde, ao longo dos
séculos, havia ocorrido uma “simbiose cultural”, permitiu ao jovem novos encontros
que ajudaram na construção identitária do líder do omolocô.
O omolocô tem como seu principal elemento constitutivo a afirmação de sua
origem em antigas tradições africanas. Segundo Tancredo da Silva Pinto, embora
possuindo uma relação intrínseca com os demais cultos afro-brasileiros, seus
princípios teriam vindo do sul de Angola, “de uma nação pequenina às margens do rio

855
BURGER, Peter; LUCKMAN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. Petrópolis: Vozes, [1985] 2004.
856
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1862, p.2.
857
LOVEJOY, Paul. Identidade e a miragem da etnicidade: a jornada de Mohammah Gardo Baquaqua
para as Américas. Afro-Ásia, n. 27, p.9-39, 2002, p.10.
858
THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p18.

240
Zambeze”.859 Assim, “o omolocô é de origem angolense e o seu povo (os homens)
tinha como marca distintiva uma argola na orelha esquerda”.860
Edson Carneiro comenta sobre um “preto velho experiente e sabido”, chamado
tio Gregório, que afirmava: “Todo povo que é de pemba vem de Angola”.861Porém, na
realidade, havia uma diversidade étnica acentuada. Paul Lovejoy, analisando dados
apresentados por Mary Karasch, destaca que, no século XIX, existiam sete grupos
étnicos principais: mina, cabinda, congo, angola (ou loanda), cassange, benguela e
moçambique. No entanto, havia outros grupos menores, e as “nações” da África Centro-
Ocidental representavam quatro grupos étnicos: kongo, mbundu, lunda-cokwe e
ovimbundu-ngangela.862 É natural que esses povos, mesmo em um contexto diferente do
que viveram em seus territórios de origem, tenham preservado alguns componentes
elementares das suas religiosidades originais e que foram apropriadas por seus
descendentes religiosos brasileiros. Nesse aspecto, podemos destacar os espíritos
ancestrais e os nkinsis.
Como analisa Ivete Previtalli, no Brasil, os espíritos tutelares perderam a força
que tinham na África, uma vez que os escravizados foram afastados dos seus grupos
familiares e de suas terras. Previtalli ressalta que “foram os inquices ou espíritos da
natureza que se tornaram importantes, inclusive para a formação das famílias de santo
que, de certo modo, reconstituíram as famílias dissolvidas pelo sistema escravagista”.863
Todavia, um aspecto observado por Robert Thompson é de que o nkisi era considerado
como possuidor de vários poderes, como por exemplo, o de cura: “A crença em que
existe um lampejo de divindade ou de alma dentro do nkisi leva os Bakongos a suporem
que o nkisi tem vida”.864Portanto, ele era um objeto que continha um espírito que,
possivelmente, poderia ser controlado por seu possuidor.
Nas perseguições policiais, os “manipanços” eram as principais provas da
“feitiçaria”. Na maioria dos dicionários brasileiros, o termo “manipanço” apresenta a

859
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da umbanda. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, 1970, p. 9.
860
FREITAS, Byron ; PINTO, Tancredo da Silva. Camba de umbanda. Rio de Janeiro: Gráfica Editora
Aurora, s/d. p.82.
861
CARNEIRO, Edison. Os caboclos de aruanda. Revista do Livro, ano V, p. 75-81, set 1960, p. 80.
862
LOVEJOY, Paul. The impact of the Atlantic slave trade on Africa: a review of the literature. The
Journal of African History, v.30, n.3, p. 365-394, 1989.
863
PREVITALLI, Ivete Miranda. Minkisi e inquinces: cosmovisão banta e ressignificação no candomblé
angola. Anais dos Simpósios da Associação Brasileira da História das Religiões (ABHR), Vol. 13 (2012)
864
THOMPSON, Robert Farris. Flash of spirit. Arte e Filosofia africana e afro-brasileira. São Paulo:
Museu Afro-Brasil, 2011, p.121.

241
mesma definição: ídolo ou fetiche africano.865 Em relação às práticas envolvendo esses
fetiches, observamos que são similares àqueles em relação aos nkinsi. Alberto Costa e
Silva menciona que o médico alemão George Tams, engajado em 1841 em uma frota
comercial de seis navios, organizada pelo cônsul-geral de Portugal a Angola, deixou um
relato sobre as devoções dos cabindas e, dentre elas, o manipanso:
Dá-se ao cabinda um copo de brande ou água. Ele põe na boca um gole e o
cospe no manipanço, para com essa libação o predispor ao diálogo. Começa a
murmurar preces ininteligíveis e, em seguida, cola o manipanço em sua
orelha esquerda. Após alguns minutos, repete em voz alta o pedido ou a
pergunta que fez ao ídolo. Se o manipanço não se mostra disposto a
responder-lhe imediatamente, o que com frequência ocorre, o cabinda repete
as preces no mesmo tom baixo de voz e volta a pôr o ídolo contra a orelha, a
fim de verificar se obterá resposta. […] Antes de receber resposta, o devoto
encosta a parte baixa do ídolo no nariz. Supõe-se, assim, que a comunicação
se efetua por meio das narinas. Ao se produzir o efeito desejado, o ídolo é
novamente levado à orelha. O negro é então tomado por convulsões
violentas, e as contorções de seu corpo indicam que o manipanço começou a
conversar com ele. Enquanto continua a olhar fixamente para a pequena
escultura que sua mão segura, ele transmite aos espectadores as
comunicações que recebeu. Em seguida, repetindo-se a libação já descrita,
termina a cerimônia.866

A importância dos manipansos para os cabindas também foi descrito por


Castilho Junior, outro viajante do século XIX, que disse sobre eles:
trazem pendurado no pescoço ou a cintura o inseparável manipanço, ídolo
que em uns é um boneco de pao, em outros uma pelle de cobra do matto,
estes manipanços são acompanhados do milongo, saquinho (ou mesmo dentro
do manipanço) cheio de sulphato de quinino: quando algum cabinda está
doente são curados por outro, que pisa o doente até o moer; em seguida o
doente deita fora o manipanço e compra ou faz outro; quando bebem
aguardente, borrifam o manipanço e dizem que elle bebe... Não consentem
que nenhum branco lhes toque no manipanço; dizem que lhes fez quesilia. 867

Em uma série de crônicas publicadas, na década de 1930, por Magalhães Corrêa,


sobre o que chamou de “Sertão Carioca”, encontramos descrições, muitas vezes
preconceituosas, sobre as experiências religiosas praticadas na área rural carioca, em
que o autor procura enfatizar que “Tais manifestações são interpretadas como um sinal
do atraso cultural de segmentos da população sertaneja, sendo inclusive levantada a

865
AULETE, F.J.de Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Lisboa: Sociedade
Industrial de Tipografia Limitada,3ª edição, 1952.
866
SILVA, Alberto Costa e. Imagens da África . Disponível em
<https://escrevivencia.files.wordpress.com/2015/02/imagens-da-africa-alberto-da-costa-e-silva.pdf>.
Acesso em 4 de maio de 2015.
867
CASTILHO JUNIOR, Alexandre Magno. Descripção de viagem feita pela corveta- Oito de Julho de
Lisboa para S. Paulo de Loanda. Revista IRIS, Periódico de Religião, Bellas Artes, Sciencia, Lettras,
Historia, Poesia, Romance, Noticias e Variedades, V.II, Rio de Janeiro, Typographia de L. A. Ferreitra
de Menezes. p.133-139, 1849. p.139

242
proposta de efetiva repressão destas práticas”.868 Magalhães Corrêa comenta que havia
numerosas sociedades secretas entre os negros e também o culto aos fetiches
particulares dos quais seus proprietários tinham uma total dependência, e que o jujuismo
— religião fetichista—teria vindo da África e estava irradiado por todos os estados,
inclusive no Distrito Federal.
O fetiche é um objeto material trabalhado ou não que encerra o espírito
ancestral, tornando-se espírito protetor de um grupo. Essa crença, tão
enraizada nas almas dos negros, que adopta mesmo, materializando, as
doutrinas mais elevadas que aprendem, como o Christianismo..... o culto dos
fetiches tem por sacerdotes os mágicos ou feiticeiros que sacrificam,
presidem os oráculos, instruem os processos.869

Estabelecendo uma comparação entre as informações fornecidas pelos dois


viajantes da primeira metade do século XIX, as do cronista carioca das primeiras
décadas do século XX e as inúmeras notícias de invasões ocorridas nas casas religiosas
do Rio de Janeiro, é interessante observar a importância dos nkinsi/manipansos.
Encontramos a repetição de determinados traços culturais como, por exemplo, dar
bebida às figuras. Um hábito, relativamente comum no Rio de Janeiro era, antes de
ingerir uma bebida, dar “um gole para o santo”. Não que isso signifique um transporte
unilateral da “África para o Brasil”, mas pode significar que outra das inúmeras
tradições da África Central, em confronto/agregação com tradições africanas ocidentais
— não esquecendo o catolicismo — foram reinventadas na cidade do Rio de Janeiro.
Nos cultos afro-brasileiros, a projeção dos líderes resultava do poder de
convencimento que eles tinham em fazer crer no controle que possuíam sobre as forças
sobrenaturais. Suas capacidades de persuasão, associadas a carismas pessoais, foram
fundamentais para o sucesso. De acordo com La Porta, “a estrutura e função dos rituais
afro-brasileiros correspondem à de uma organização centrada num chefe de culto, que,
portador de grande prestígio, possui um poder espiritual muito grande”.870 No caso do
omolocô, a figura determinante foi o tata Tancredo e, embora esse culto esteja muito
associado ao seu nome, as primeiras reportagens sobre o que foi chamado de “bárbaro e
misterioso ritual pagão”871 afirmam que era uma nova seita de um advogado: “o
estranho ritual é pontificado por um conhecido criminalista do Rio que trocou as

868
SARMENTO, Carlos Eduardo. Pelas veredas da capital: Magalhães Corrêa e a invenção formal do
sertão carioca. Rio de Janeiro: CPDOC, 1998. p12
869
CORREA, Magalhães. Correio da Manhã, 20 de novembro de 1932, p2
870
LA PORTA, E.M. Estudo psicanalítico dos rituais afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Atheneu, 1979.
p.53.
871
Diário da Noite, Rio de Janeiro ,7 de novembro de 1952, p. 1.

243
audiências no foro pelas consultas no “pegi”.872 O advogado em questão era Otacílio da
Silva Chaves, com grau de bacharel em 1938,873 bastante atuante nos tribunais e com
inscrição aceita, em 1950, na Ordem dos Advogados do Brasil.874 No relato jornalístico,
uma propriedade da baronesa Modesto Leal havia sido transformada, pelo dr. Otacílio,
em um “santuário do omolocô”: “quem o vê no terreiro, possuído de uma entidade
qualquer, mastigando charuto e dando cabeçadas não reconhece nele o criminalista
famoso, com banca de advogado no Distrito Federal e Estado do Rio”.875
No final do século XIX, João Leopoldo Modesto Leal iniciou sua ascensão como
dono de uma das maiores fortunas na cidade do Rio de Janeiro e, nos primeiros anos do
século XX, tornou-se um grande proprietário de terras no Vale do Paraíba, chegando a
possuir trinta fazendas. Como reconhecimento, as grandes somas doadas para obras de
caridade, a Santa Sé lhe concedeu o título de barão Modesto Leal. As terras que dr.
Otacílio alugara para realizar o culto do omolocô, próximas de Mesquita, faziam parte
do patrimônio dos descendentes do barão. A narrativa jornalística destaca, de maneira
preconceituosa, que o local era “apropriado para a prática de um ritual macabro, como
aquele pontificado antigamente pelos adoradores de Moloch”.876
No texto do Diário da Noite observa-se que havia sigilo sobre o local, muito
provavelmente porque, como afirma Tancredo da Silva Pinto, o “omolocô é seita
secreta”.877 A preocupação em relação à presença de estranhos era evidente: “Lá só
entra quem é iniciado — disse-nos um negro velho. Outros nos encaravam com espanto
e com desculpas esfarrapadas negam-se a responder as nossas perguntas”.878
Ressaltando os aspectos ligados à natureza e os rituais praticados nas cachoeiras, afirma
que “as iaôs vão na frente render suas obrigações. Elas levam na mão os ‘eches’ de
Oxum Japandá e quando tem aprovação de cima, fazem a cabeça amarrando os cabelos,
que são atirados nas águas”.879Após a reportagem, nome do dr. Otacílio desapareceu dos
noticiários, inclusive em publicações sobre atividades jurídicas. Porém, foi Tancredo da
Silva Pinto que se transformou no principal sacerdote do omolocô. Seus livros são as
principais referências sobre o culto.

872
Diário da Noite, Rio de Janeiro ,7 de novembro de 1952, p. 1.
873
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1938, p. 14.
874
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1950, p. 7.
875
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1952, p.1.
876
Ibidem, p.2.
877
PINTO, Tancredo da Silva. O Eró , Rio de Janeiro, Editora Eco,1968, p.133
878
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1952, p.2.
879
Ibidem.

244
Nos textos publicados por Tancredo, são constantes as referências de que o
omolocô nasceu dos povos lunda-quiocô. No decorrer do processo histórico da África
Central, diferentes grupos tribais e linhagens se deslocaram pelo território centro
africano e, como parte de uma multiplicidade étnica e cultural, destacam-se, entre
outros, os bakongo, nganguela, quimbundo, ovimbundo e também os lunda-quioco. O
importante reino da Lunda possuía, conforme destaca Redinha, chefias fortes e
autoritárias que dominaram o nordeste de Angola durante os séculos XVII e XVIII.880
No século XIX, os grupos étnicos lundas dominavam um vasto território
liderados pelo Muati-Ianvo: “o antigo reino do Muati-ânvua, é constituído pelas várias
tribos Lunda hoje acantonadas na bacia do Kassaí e nas planícies ocidentais do Alto
Zambeze”.881 Entre esses povos, como em outras áreas “bantu”, havia o culto dos
antepassados e o culto a Zambi (Nzambi). Essas crenças e determinadas formas como
africanos centrais lidavam com alguns princípios religiosos estão presentes no omolocô.
Os vínculos deste culto com as culturas da África Central—“o omolocô é de origem
angolense”882— não impedem a absorção de traços de outras religiosidades,
especialmente o candomblé “nagô” e seus orixás. Porém, submetiam a liderança dos
orixás a Zambi Opongô, “Deus supremo ou poder supremo”.883 O padre Pedro Dias, em
Arte da língua de Angola,884 definiu Zambi como o ser supremo entre os povos de
Angola. Tancredo da Silva Pinto descreve Zambi — o criador — como o que não pode
ser incorporado, e todos os seres, espirituais e humanos, lhe estão subordinados. A
importância de Zambi entre os Quiocôs da Lunda está presente na súplica que lhe fazem
para a boa sorte nos seus empreendimentos e, em caso de doença, suplicavam: Nzambi
guive kama induke (Que Deus me ajude para ficar bem).885
Segundo Kabengele Munanga, Zambi seria a divindade longínqua, que criou o
mundo “e distanciou-se dele, deixando a administração a seus filhos divinizados que são

880
REDINHA, José. Etnias e culturas de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científicas de
Angola, 1974. p. 301
881
RAMOS, Arthur. Introdução à antropologia brasileira. 2ªed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, 1951. Vol. 1. p. 338.
882
PINTO, Tancredo da Silva; FREITA, Byron Torres de . Camba de umbanda. Local de edição: Gráfica
Editora Aurora, p.82. É interessante observar, como analisou Robert F.Thompson, que, assim como
Kongo foi utilizado, na época do tráfico interatlântico, por qualquer pessoa da costa ocidental da África
Central, o significado de “Angola” também foi ampliado.
883
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da umbanda. Rio de Janeiro, Editora Espiritualista,1970 p.31
884
DIAS, Pedro. Arte da Lingua de Angola, e Oferecida a Virgem Senhora N. Do Rosario, May, &
Senhora dos mesmo Pretos, Pelo P. Pedro Dias Da Companhia de Jesus. Lisboa: Na Officina de Miguel
Deslandes, Impressor de Sua Magestade, 1697.Ed. Facsmilar. Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca
Nacional, 2006.
885
REDINHA, José. Op.cit, p. 311.

245
ancestrais fundadores de linhagens”.886 O autor esclarece que ele é raramente objeto de
culto coletivo como acontece com as divindades secundárias (espíritos ancestrais). “São
estes que fazem o elo entre os homens e o deus único, criador de tudo que existe no
mundo bantu”.887 Nos terreiros de umbanda, Zambi é homenageado, porém, não ocorre
a sua incorporação.
De acordo com Redinha, entre os elementos da religiosidade dos povos
africanos-centrais — especialmente o culto aos mortos —, ressalta-se “a crença em
seres espirituais, almas ou espíritos”888. Essa característica das “religiosidades bantus”
permite que Tancredo absorva os orixás como as divindades secundárias da cadeia
liderada por Zambi — nos candomblés “nagô” Olorum é a divindade suprema —, e ,
segundo ele, essas divindades “gozam do dom de ubiquidade, isto é, podem estar ao
mesmo tempo em vários lugares”.889 Ainda de acordo com o Tata Tancredo, existem
espíritos da natureza e espíritos evolutivos. Os orixás estariam entre os espíritos da
natureza que têm uma ligação intrínseca com a Terra, “porque aqui tem suas químicas,
suas ervas, suas árvores, suas pedras, com uma infinidade de outras tantas, que irão nos
alimentar”.890
Em Origens da umbanda, Tancredo aprofundou informações sobre o omolocô,
fez um apanhado de diversas influências dos cultos afro-brasileiros e, apresentando
princípios da cabala judaica, islamismo e catolicismo, referindo-se constantemente a
Jesus como O Grande Iluminado, afirma que “na sua origem a umbanda, desenvolveu
mais aqui no Brasil, onde se proliferou devido às imigrações africanas com vários cultos
de diversas regiões ou aldeias daquele continente, professando e respeitando a doutrina
de uns e outros”.891 Ele também ressalta que, cada negro africano tinha os seus sinais ou
traços de base, onde indicavam as regiões tribais a que pertenciam. “Aqui, no Brasil,
deixamos de usar esses sinais tribais, onde fazemos uso por meio de pembas, riscando
nossos pontos”.892
De acordo com Kabengele Munanga, os escravizados africanos e seus
descendentes nunca ficaram presos aos modelos ideológicos excludentes. O autor

886
MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, n.28, p. 56-63, dez-
fev 1995/96, p.62.
887
Idem, Ibidem.
888
REDINHA, José. Etnias e culturas de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científicas de
Angola, 1974.p.363.
889
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da Umbanda, Rio de Janeiro, Editora Espiritualista,1970, p.69
890
Idem, ibidem, p.31.
891
Idem, ibidem. p. 45.
892
Idem, Ibidem.

246
analisa que foram desenvolvidas práticas e estratégias “dentro do modelo transcultural,
com o objetivo de formar identidades pessoais ricas e estáveis que não podiam
estruturar-se unicamente dentro dos limites de sua cultura”.893 Enfatiza ainda que foi
possível “dar e receber influências culturais de outras comunidades, sem abrir mão de
sua existência enquanto cultura distinta”.894 Assim, podemos compreender o
pensamento do Tata Tancredo quando chama a atenção que esse culto fez um
entrelaçamento com outros por meio de corimbas e toques para todos os cultos afro-
brasileiros e ameríndio. Embora o omolocô tenha absorvido traços constitutivos de
outras religiosidades — desde “mina-gege”, maometana e católica —, persistem
elementos específicos dos africanos centrais.
Segundo Tancredo da Silva Pinto, os orixás, como espíritos da natureza, não
fazem suas passagens através da matéria: “São aqueles da ordem superior junto a cadeia
de Zambi (Deus)...sem que com isso tenham suas encarnações na forma de matéria”.895
Os espíritos evolutivos, ao contrário dos orixás, “fizeram suas passagens aqui na terra
na forma de matéria , como protetores, guias espirituais, tornam a voltar para cumprir
seu ciclo evolutivo”.896 Portanto, conclui-se que, nessa categoria, estariam os “pretos
velhos” e “caboclos”. Nesse complexo quadro de reinterpretações, Tancredo estabelece
a relação dos cultos africanos com Jesus Cristo: “Para nos guiar e orientar, veio a nosso
mundo, o Grande Iluminado Jesus Cristo, que por nós tomou a Dijina ou Suna (nome)
de Oxã-Guiam- Oxá-Alá-Guian”.897 Ressalta a ligação dos africanos com Jesus e
destaca a presença de tradições como o Presépio e Estrela Guia: “levadas para a África,
pelo seu Rei Mago, o preto Baltazar (...) os africanos, passaram a segui-lo, porque
através das profecias dos grandes Reis Magos, sabiam da sua vinda, como Salvador da
humanidade”.898
É relevante observar que, entre o culto “bantu” e o candomblé “nagô”, existem
diferenças, como: a cadência dos atabaques, as nomenclaturas dos graus hierárquicos e
as entidades. Resumindo, em um quadro elaborado por Yeda Pessoa de Castro,899
podemos comparar alguns elementos das religiosidades afro-brasileiras:

893
MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, n.28, p. 56-63, dez-
fev 1995/96, p.63.
894
Idem, ibidem.
895
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista,1970. p.33
896
Idem, ibidem, p. 33.
897
Idem,ibidem. p.33
898
Idem, ibidem, p. 16.
899
CASTRO, Yeda Pessoa de. Línguas e nação de candomblé. África: Revista do Centro de Estudos da
Universidade de São Paulo, n.4, p. 57-77,1981, p.77

247
Designações e nações Jeje Nagô-Queto /Ijexá Congo/Angola
sacerdotisa humbono ialorixá mameto
sacerdote humbondo babalorixá Tateto/tata
iniciada vonduce iaô muzenza
lugar de cerimônias abaça ilê Canzuá/ganzuá
cerimônia funebre sirrun axexê intambi
língua dos cânticos jeje nagô/queto/ijexá Congo/angola
origem Fon Yorubá Banto

Sob essa perspectiva, podemos analisar aspectos básicos do omolokô, como os


cargos hierárquicos, o processo de iniciação religiosa e as cerimônias fúnebres. No
quadro acima, podemos observar que os cultos afro-brasileiros possuem vários graus
hierárquicos sacerdotais. Na hierarquia sacerdotal do omolocô, como nos demais cultos,
cada sacerdote tem uma função, que vai desde o que realiza o ritual de iniciação
religiosa até o responsável pelas ervas. Assim, de acordo com os textos de Tancredo,
podemos estabelecer como os principais graus sacerdotais:
Tabela 7: Graus sacerdotais do omolocô
Sacerdote responsável pela processo de iniciação religiosa dentro das forças
Tata Ti Inkice
encantadas.
Tata Zamburo Através do jogo de búzios, interpreta a fala das entidades.
É o mestre de cerimônias do ritual de incitação. Possui as indumentárias de
Tata-Ne
todas as entidades.
Sacerdote que conhece as ervas sagradas e as fases certas da lua para colhê-
Onan de Ofan las. Como cada entidade tem seu domínio sobre determinada erva, cabe a
esse sacerdote conhecer essa relação.

Há uma primazia do tata ti inkince sobre os demais: “Até hoje muita gente
ignora o termo tata, empregado nos cultos bantus: tata é o chefe de família”,900
especialmente, porque é ele que inicia os demais. Portanto, comparando os cargos de
sacerdotes “omolocô” e “nagô”, podemos identificar que o Tata Ti Inkice e o Onan de
Ofan, do omolocô, são similares aos cargo de babalorixá e o babalossain nagô: o Tata e
o babalorixá são responsáveis pelo processo iniciático, enquanto o Onan de ofan cumpre
funções similares ao do babalossain —profundos conhecedores das folhas e ervas.
Tancredo chamava a atenção para o fato de que, muitas vezes, um sacerdote poderia
exercer vários desses cargos. Esse foi o caso do famoso Cypriano Abedé e também do
Tata Tancredo.
900
O Dia , Gb,1/2 de setembro de 1963, 2 cad., p.4.

248
Na cultura afro-brasileira, uma palavra que desperta atenção é “samba”. De
acordo com Tancredo, “As sambas ou cotas fazem parte da hierarquia de um
terreiro”.901 A adepta começa por ser iaô (iniciada), depois passa a samba, quando
aprende o “pé de dança” dos orixás e outras práticas, chegando depois de intenso
aprendizado a cota (no omolocô) ou ekete (no nagô). Ou seja, “samba” é um grau na
escala da iniciação religiosa:
Samba é um verbo conguez da 2ª conjugação que significa “adorar, invocar,
implorar queixar-se, rezar”. Quem reza queixa-se de seus males, invoca a
divindade a quem adora, e pede remédio e consolação. Samba é, pois, rezar.
No angolense ou bundo, igualmente rezar é cusamba: na conjugação o
verbo perde a syllaba inicial do presente do infinito; de sorte que, além,
deste tempo e modo, em todos os outros o termo bundo é samba, e assim é
também o substantivo “adoração, rezar”, samba, mussambo “dansar” é no
bundo cuquina; no Congo, quinina. Como, pois, samba é dansa? É sem
dúvida: mas uma dansa religiosa, como é, o candombe, uma cerimônia do
culto, dansa em louvor da divindade.902

Soares ainda analisa que, no Brasil, na genuína acepção, samba seria a dança
sagrada dos feiticeiros, dos curandeiros, dos rezadores de quebrantos e olhados, dos
dispensadores da fortuna e conclui: “ O samba é a dansa ritual, a dansa da reza; a
profana, o baile, o mero divertimento, é o batuque, o lundu, o jongo, o xiba, ao som da
puíta, e da zabumba, e do ricungo e do tamboril de pandeiro”.903
O comentário preconceituoso sobre samba está presente em uma notícia sobre o
tão citado Juca Rosa. Segundo o texto, na casa do “feiticeiro”, havia “uma mulher por
nome Samba; que finda a consulta vinha Rosa para a sala onde se continuava a dança e
o toque de macumba”.904 É interessante observar que “samba” passou a significar,
popularmente, uma dança profana; porém, nas casas de culto, designava a iniciada que,
através do “pé de dança”, entrava em contato com o sagrado.
O tata Tancredo estabelece diferenças no processo de diferentes iniciações
religiosa: “no nagô, raspa-se e pinta-se a cabeça do iaô; e no Congo, costumam raspar a
cabeça, deixando no centro uma coroa circular”.905 Ressaltando a responsabilidade do
ritual de iniciação, afirma que não saber dirigir a cerimônia pode causar graves danos ao

901
O Dia , Gb,1/2 de setembro de 1963, 2 cad., p.70.
902
SOARES, A.J. Macedo. Estudos Lexicographicos do Dialecto Brazileiro: Sobre algumas palavras
africanas introduzidas no portuguez que se fala no Brazil . Revista Brazileira, tomo IV, p.243-271, 15 de
maio de 1880, p. 244.
903
Idem, ibidem.
904
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1870, p. 1
905
Idem, ibidem, p.97

249
iniciado. O roncó é o local onde ocorre o processo iniciático: “encontramos no seu
interior os vultos e os assentamentos dos santos de origem do nosso culto”.906
Outro cargo iniciático de destaque é o de “ogan”, descrito por Tancredo como
aquele que tira “as corimbas” para as cerimônias e, caso seja “confirmado nas sete
linhas”, deverá saber cantar para os diversos rituais. Sob a responsabilidade do “ogan de
tambor”, fica a limpeza, conservação e encouramento desses instrumentos. “Não é
permitido a outra pessoa tocar esses tambores consagrados dentro do ritual”.907 A
importância do instrumento no culto, estabelecendo o contato com o sagrado, é que
“levam as nossas mensagens, com seus sons e ondas, através da gravitação da terra”908 e
“conforme o ponto cantado, sabe-se no omolocô que culto se trata.”909 Alguns ogans
tiveram destaque no cenário religioso carioca, como o do “terreiro do falecido
Sizenando, em Oswaldo Cruz”.910
Conforme apresenta Geertz, o conceito de cultura denota um conjunto de
“concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida”.911 Nas tradições da África central, uma das crenças mais permanentes era a de
que mortos e vivos podiam comunicar-se. Tancredo destaca que o culto aos mortos
realizado no omolocô, procede dos lundas e dominavam a vida religiosa desses povos.
Redinha, analisando as culturas dos africanos-centrais, afirma que esses cultos
“constituem o processo central das manifestações religiosas e é sempre acompanhado de
ritos sacrificiais, que variam, na sua liturgia, de tribo para tribo, ou mesmo de região
para região, conquanto a sua essência cultural permaneça idêntica”.912
Assim, os rituais funerários praticados nos cultos afro-brasileiros perpetuam
significados de que os mortos podem continuar interferindo na vida dos vivos. Portanto,
é necessário estabelecer o desligamento do falecido, para que ele transite do “mundo
dos vivos” para o “mundo dos mortos”. Durante o ritual, consideram que o espírito do
morto está presente, e que “o vumbi é para retirá-lo da casa”.913 Ou seja, ele passa a

906
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista,1970, p.11.
907
Idem, Ibidem, p.80
908
Idem, ibidem, p.28
909
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 14 de março de 1961, p.21.
910
FREITAS, Byron Tôrres de; PINTO,Tancredo da Silva. As mirongas da umbanda. Rio de Janeiro:
Gráfica Editôra Aurora, 1953 –p.s/nº
911
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989. p.66.
912
REDINHA, José. Etnias e culturas de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola,
1975 p.363.
913
PINTO, Tancredo da Silva. Op. cit., p. 87.

250
pertencer a um outro mundo, para o qual o ritual irá ajudá-lo a se transpor, porém, ele
poderá comunicar-se com os vivos através do transe mediúnico.
O sepultamento também envolve rituais específicos: o mina Apotijá, como era
um alufá, foi sepultado de bruços e envolto em uma peça de morim branco. Em 1938,
mãe Aninha, em Salvador, teve seu ritual funerário obedecendo ao culto africano e as
“filhas de santo”, com vestimentas típicas, acompanharam o corpo à Igreja. Os “filhos
de santo tocavam atabaques e outros instrumentos do culto (...) O ato foi dirigido pelo
babalorixá Martiniano Bonfim e o corpo foi encomendado pelo babalorixá ‘Pae Adão’,
de Pernambuco”.914 Portanto, como há um laço muito forte entre o babalaô e o iniciado,
que é alterado com a morte do pai de santo, ele será rompido quando for realizada a
retirada da “mão de vumbi”.
Em alguns rituais, junto com o corpo do iniciado, seguiam seus objetos de culto.
Em 1876, no Cosme Velho, durante as obras em uma pedreira , “nas mattas embaixo da
pedra de Santa Martha”,915 foi encontrada uma caixa de folha fechada com cadeado, já
toda estragada, contendo uma caveira, ossos humanos e uma caixinha fechada, dentro
do qual achou um sapo, dois bonecos (manipansos), duas moedas de dez reis, uma pedra
e um rosário arrebentado. O texto jornalístico destacava que, pelo estado dos ossos,
deveria remontar a muitos anos. Os terrenos em que estava a pedreira pertencia a João
Ferreira de Andrade Couto e, segundo as informações colhidas no local, havia cerca de
12 anos havia morado naquele local uma “família de pretos em uma casinha já
demolida, e que taes pretos festejavam certos dias do anno e eram dados à feitiçaria”.916
Não localizei nenhuma outra informação sobre o assunto, a não ser que João Ferreira de
Andrade Couto, antes de partir definitivamente para a Europa, libertou “dois escravos e
suas crias, Joana de 16 anos e Fabiana de 15”.917Contudo, em relação à caixa
encontrada, podemos levantar algumas questões. Poderia o material, de acordo com as
características, significar um “assentamento”: a caveira, os manipansos, a pedra ,
especialmente, eram usados como “segurança” dos espaços religiosos. Porém, pode ser
apenas um sepultamento em que, junto com o falecido, seguiram alguns objetos rituais
ou, também, pode ser o “despacho” de algum trabalho realizado. Entretanto, em
qualquer das hipóteses, está implícita uma ligação entre os mortos e apetrechos
ritualísticos.

914
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1938, p. 8.
915
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1874, p.2.
916
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1874, p.2.
917
Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1876, p.1.

251
Segundo Slenes, entre os bakongos, o lugar dos espíritos é junto dos seus
descendentes vivos e que voltam para viver perto de seu povo e de sua aldeia.918 Os
rituais funerários realizados nos cultos afro-brasileiros, seriam meios de estabelecer uma
separação entre o mundo do vivo e do morto, mas não era um rompimento definitivo,
uma vez que eles poderiam manifestar-se como os inkinces e pretos velhos e, tanto no
omolocô quanto na cabula, ocorre a invocação dos espíritos através do transe. Na
complexa diversidade religiosidade afro-brasileira, a Cabula — descrita pela primeira
vez, ainda no século XIX, pelo Bispo Nery denunciando a prática, registrada por ele no
Espírito Santo — traz elementos que influenciaram decisivamente o omolocô e a
umbanda.

A CABULA NAS ORIGENS DO OMOLOCÔ

O bispo Nery identificou um grande número de adeptos da Cabula e, destacando


seu caráter secreto devido às perseguições que sofria, destaca que não havia local fixo
para a realização dos encontros, que, geralmente, aconteciam nas matas, e sinaliza para
a origem africana do ritual:
Houve alguém que disse ser grande e mais prejudicial do que pensamos a
influência exercida pelos africanos sobre os brasileiros. Parece mesmo que
muito se tem escrito nesse sentido. Em certa região de nossa diocese, tivemos
em nossa última excursão oportunidade de observar a verdade desse asserto.
Encontramos três freguesias minadas por uma seita misteriosa, que nos
parece de origem africana. Nossa desconfiança mais se acentuou , quando
nos asseveraram que antes da libertação dos escravos tais cerimônias só se
praticavam entre pretos e mui reservadamente. Depois da lei de 13 de maio,
porém, generalizou-se a seita, tendo chegado entre as freguesias a haver para
mais de oito mil pessoas iniciadas.919

Na descrição do bispo sobre a cabula, encontramos padrões semelhantes em


outros cultos afro-brasileiros. Conforme analisa Slenes, “o vocabulário da cabula atesta
claramente um parentesco com a macumba do século XX, que reconhecidamente tem
antecedentes centro-africanos”.920 O autor observa que “o nome da reunião dos adeptos

918
SLENES, Robert . “Malungu, Ngoma Vem!”: África Coberta e Descoberta No Brasil. Revista USP ,
São Paulo, v. 12, p. 48-67, 1992.p. 54
919
NERY, D. João Batista Correa. A cabula: um culto afro-brasileiro. Cadernos de Etnografia e Folclore,
Comissão Espírito-santense de Folclore, n. 3., 1963 Apud MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão
negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 75-77
920
SLENES, Robert. A árvore nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no
sudeste brasileiro (século XIX). In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho
livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. p.296

252
da cabula (engira) é praticamente o mesmo que o da sessão de macumba”.921 Na cabula,
existia a crença na direção imediata de um bom espírito, a que chamavam de “Pata”,
“que se encarna nos indivíduos e assim mais perto os dirige em suas necessidades
temporais e espirituais”.922 Talvez influenciados pelo espiritismo, os cabulistas
chamavam suas sessões de “mesa”.
Há duas mesas capitulares: a de Santa Barbara e a de Santa Maria,
subdividindo-se em muitas outras com as mesmas denominações. Disseram-
nos que havia uma terceira mesa de São Cosme e São Damião - mais
misteriosa e mais central, que exercia uma espécie de fiscalização suprema
sobre as duas outras, cujos iniciados usavam nas reuniões compridas túnicas
pretas, que cobriam o corpo todo, desde a cabeça até os pés - uma espécie de
saco dos antigos penitentes.923

O chefe de cada mesa era conhecido como “embanda” e tinha como seu auxiliar
nos trabalhos o “cambone”.924 A obediência ao embanda era inquestionável, sob pena de
castigos severos, e poderiam reunir-se, secretamente, em uma determinada casa ou, mas
comumente, nas florestas à alta noite.
À hora aprazada todos de camisa e calças brancas, descalços, se dirigem ao
camucite (templo). Uns a cavalo, outros a pé, caminham silenciosos,
fechando a retaguarda o embanda. Um camaná ou um ebone vai na frente e
conduz a mesa ( toalha, vela e pequenas imagens). Em um ponto dado,
deixam o caminho e tornam a vereda só conhecida dos iniciados. Então
acendem as velas. Chegado ao camucite, que é sempre debaixo de uma
árvore frondosa, no meio da mata, limpam aí uma extensão circular de
cinquenta metros mais ou menos. Fazem uma fogueira e colocam a mesa ao
lado do oriente, rodeando as pequenas imagens de velas acesas,
simetricamente dispostas.

Segundo Nery, o embanda aparece descalço com um lenço amarrado na cabeça,


ou com o camolete (espécie de gorro), tendo um cinto de rendas alvas e delicadas. À
presença do chefe, os camanás o imitam, amarrando lenços na cabeça. Segue-se uma
espécie de ritual com uma oração preparatória, feita de joelhos diante da mesa, e, em
seguida, o embanda concentra o espírito e tira o primeiro nimbu (canto). Todos os
cantos são acompanhados, “enquanto o embanda, em contorções, virando e revirando os

921
SLENES, Robert. A árvore nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no
sudeste brasileiro (século XIX). In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho
livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. p.296
922
NERY, D. João Batista Correa. A cabula: um culto afro-brasileiro. Cadernos de Etnografia e Folclore,
Comissão Espírito-santense de Folclore, n. 3., 1963 Apud MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão
negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 75-77. p.76.
923
Idem, ibidem.
924
Tancredo da Silva Pinto, fazendo uma análise dos graus sacerdotais do omolokô, acrescenta aos já
comentados o grau de cambone: “Cambone- auxiliar, com os nomes de cambono de ebó e de gira”.
PINTO, Tancredo; FREITAS, Byron. Umbanda-Guia e ritual para organização dos terreiros. Rio de
Janeiro: Editora Eco,1963. Slenes chama a atenção para a similaridade entre o termo “cambone”, usado
na cabula e na macumba, designando um auxiliar dos rituais, no culto que também teria origem na
associação entre cultos africanos, católicos e kardecistas. SLENES, Robert. Op. cit., p.296.

253
olhos, faz trejeitos, bate no peito com as mãos cruzadas e compassadamente, emitindo
roncos profundos e soltando afinal um grito estridente e horroroso”. 925 O transe
mediúnico, como na maioria dos cultos afro-brasileiros, é a parte decisiva do ritual,
quando cantos e palmas cumprem a função de estímulo. Esse aspecto também foi
destacado por Redinha, em relação aos cultos em Angola. De acordo com o autor, “o
fenômeno de possessão, frequente entre os bantus angolanos, utiliza, por sua vez, o
recitativo e o canto, ora simplesmente vocal ao ritmo de palmas”.926
Tancredo da Silva Pinto também credita a origem da umbanda aos lunda-
quiocôs, “tribo situada ao sul de Angola, de grande fundamento e tão deturpada,
devorada e cobiçada por uma avalanche de mentores e aventureiros de todas as camadas
sociais e que dizem ser umbanda uma religião nacional”.927 Segundo Redinha,
“Umbanda é uma palavra das línguas Mbunda, usada entre os Mbundos e outras etnias
do sul de Angola”928 e consta dos dicionários de kimbundo como sinônimo de magia e
arte de curar. O autor descreve que os “ritos que seguem o estado de possessão entre os
Quiocos, entoa-se ao compasso de palmas uma canção em que alguns dos seus passos
exortam o mal a desaparecer”929 e informa que, na Lunda, estavam os principais centros
de Umbanda de Angola.
Ao longo deste estudo, venho enfatizando a importância da identidade familiar
na formação de Tancredo da Silva Pinto. A vivência, nos primeiros anos de vida, em
uma área rural, deixou conhecimentos como, por exemplo, a importância das fases
lunares para o plantio: “os frutos que dão a sua formação embaixo da terra, deverão ser
plantados quando a lua estiver na fase minguante”.930 Porém, é necessário questionar até
que ponto ele ficou isento da influência de intelectuais que se debruçaram sobre os
cultos afro-brasileiros. Tancredo teve, na produção de seus livros, a parceria de Byron
Torres de Freitas. A trajetória de Byron é bastante interessante. Em 1931, ele aparece
como professor de Cosmographia do Liceu Maranhense e, na Intentona Comunista, em
1935, foi preso sob acusação de participação no movimento.931

925
NERY, D. João Batista Correa. A cabula: um culto afro-brasileiro. Cadernos de Etnografia e Folclore,
Comissão Espírito-santense de Folclore, n. 3., 1963 Apud MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão
negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 75-77. p. 76.
926
REDINHA, José. Etnias e culturas de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola,
1975. p. 309.
927
PINTO, Tancredo; FREITAS, Byron. Umbanda, guia e ritual de organização dos terreiros. Rio de
Janeiro: Editora Eco, 1963.p 9
928
REDINHA, José. Op. cit., p.375
929
Idem, Ibidem, p.309.
930
PINTO, Tancredo da Silva. Origens da umbanda. Rio de Janeiro: Editora Espiritualista, 1970. p.38.
931
O Imparcial, Rio de Janeiro, 18 de junho de 1937, p. 3.

254
Na década de 1940, Byron esteve ligado ao Partido Social Trabalhista, tendo se
afastado, durante certo tempo, passando a integrar o Partido Democrata Cristão, do qual
fazia parte o conhecido umbandista Atila Nunes. Paralelamente à atuação política,
Byron exercia cargos públicos e participou ativamente na organização do 1º Congresso
Brasileiro de Administração, apresentando palestra sobre a organização do serviço
público. A produção bibliográfica de Byron inclui livros de administração e, com ou
sem Tancredo, escreveu sobre as religiões afro-brasileiras.
É interessante observar a possível influência intelectual que Byron possa ter
exercido sobre Tancredo. Muitos líderes religiosos tinham acesso aos trabalhos de Nina
Rodrigues, Artur Ramos e Edson Carneiro. A relação entre Aninha e Martiniano
Bonfim e Edson Carneiro é bastante conhecida. Em Umbanda, guia e ritual de
organização dos terreiros, publicado por Tancredo e Byron, citam-se textos de Nina
Rodrigues e Donald Pierson. Porém, Tancredo também foi importante para Byron, a
quem iniciou religiosamente no omolocô. Os dois tiveram participação fundamental na
luta pela liberdade dos cultos afro-brasileiros e, embora o governo brasileiro também
tenha consagrado, com o decreto n. 119,932 a liberdade de culto, na realidade, as
perseguições continuaram durante a maior parte da primeira metade do século XX.
Segundo Tancredo da Silva Pinto, para enfrentarem as perseguições sofridas
pelo “povo do santo”, eram necessárias força e competência dos dirigentes. As
mudanças ocorridas nos cultos afro-brasileiros provocavam críticas de Tancredo: “hoje,
os ‘Pai Joaquim’ têm até ficha para consulente ser atendido. Os ‘velhos’ têm horário
para baixar. Já não mandam nos médiuns, mas os médiuns é que mandam neles”.933
Assim, relembrando antigos líderes religiosos do Rio de Janeiro, cita nomes como
Maria Bombochê, José Espinguela, Alexandrina Roxa e as ialorixás Marta, Branja e
Elvira da Bôca do Mato. Entre os tatas, destaca “Napoleão José do Nascimento,
Benedita do Nascimento, Hortênsia Maria da Conceição e outros, que nunca admitiram
mistificações na zona onde trabalharam, em Madureira e Oswaldo Cruz. Foi o pessoal
da Linha das Almas que criou a famosa Escola de Samba da Portela”.934
A região de Madureira e Osvaldo Cruz, como destacou Tancredo, concentrava,
nas primeiras décadas do século XX, importantes figuras das experiências religiosas

932
Decreto Nº 119-A, de 7 de Janeiro de 1890. Coleção de Leis do Brasil - 1890, Página 10 Vol. 1.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-119-a-7-janeiro-1890-
497484-publicacaooriginal-1-pe.html> . Acesso em: 23 de agosto de 2014
933
FREITAS, Byron. PINTO, Tancredo. As mirongas da umbanda. Local: Editora Aurora,1953. p. 140.
934
Idem, ibidem, p.207

255
afro-carioca como, por exemplo, “Seu Napoleão”, “Seu Vieira” e José Gonçalves
Patriota, o “Seu Zé Patriota”, homem respeitado na localidade, militar aposentado 935,
membro do Conselho Fiscal da Caixa Beneficente da Irmandade de N.S. da Conceição,
em Oswaldo Cruz936 e “pai de santo” famoso. Porém, em 1932, o terreiro de José
Patriota, na rua Henrique Mello, nº 168, foi invadido pela polícia que prendeu, além do
chefe da casa, cerca de cinquenta pessoas.937 Apesar da prisão, o líder religioso
continuou atuando na localidade, faleceu em 1939 e, durante muitos anos, seu nome era
lembrado como um dos principais “macumbeiros” do Rio de Janeiro.
Durante a década de 1940, a campanha contra a “macumba” tomou grandes
proporções. Nos jornais cariocas, a palavra “macumba” aparece, na década de 1870,
poucas vezes, e, entre os primeiros registros, temos um relacionado aos vulgos de Firmo
Macumba e do famoso capoeirista Julio Lopes de Oliveira, da Freguesia de Santa Ana,
conhecido como Julio Macumba. A citação do termo macumba, mais associado
diretamente ao ritual, está relacionado ao feiticeiro Juca Rosa, que usava “o toque da
macumba”938. Seria então empregado para definir um instrumento musical usado
durante as cerimônias. Na década de 1940, o vocábulo macumba predominava nos
jornais cariocas como o local dos cultos ou o próprio ritual e pela intensa campanha
policial que lhe foi empreendida. O Brasil Polícia,939 no final da década de 1940
publicou matéria, escrita pelo dr. Agenor Lopes de Oliveira, em que afirmava ser a
“Macumba, coisa de negro” e dos malandros cariocas. Ainda destacava que a Liga de
Higiene Mental combatia as macumbas por serem perniciosas para a sociedade,
provocando graves distúrbios mentais. Essa notícia corroborava a atitude adotada pelas
autoridades em relação aos cultos afro-brasileiros.
O governo de Vargas, no período de 1930 a 1940, implementou uma série de
políticas sociais que beneficiavam, especialmente, a população urbana e medidas de
reconhecimento de direitos da cidadania. Porém, em 1934, o governo instituiu o Decreto
nº 24.531, determinando o regulamento que seria aplicado na Polícia Civil do Distrito
Federal e, no art.33, estabelecia que à 1ª Delegacia Auxiliar competia “processar a
cartomancia, mistificações, magias, exercício ilegal da medicina e todos os crimes

935
José Gonçalves Patriota consta como reformado na Polícia Militar do Distrito Federal, patente de
soldado eletricista, com “soldo por inteiro”. In. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, de 19 de abril de
1925, Seção 1, p.2.
936
O Jornal,Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1931, p.11.
937
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 6 de abril de 1932, p.7.
938
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de dezembro de 1870, p.1.
939
Brasil Policial, Rio de Janeiro,10 de setembro de 1948.

256
contra a Saúde Pública”.940 O fato de os “terreiros” praticarem rituais considerados
como “feitiçaria” – como uso de ervas e rituais de cura – foram usados para justificar a
invasão das casas e a prisão dos líderes.
Os adeptos buscaram meios para enfrentarem as perseguições e, para isso,
contavam com a ajuda de possíveis adeptos e simpatizantes como informantes sobre as
“batidas” policiais. Slenes,941 analisando os dados coletados por Stanley Stein entre
aqueles que haviam sido escravos em Vassouras, comenta que os cativos lançavam os
desafios do jongo durante o trabalho nos cafezais, para comentarem algum assunto que
desejavam manter em sigilo como, por exemplo, o deboche em relação ao feitor ou a
aproximação do senhor. Essa prática também era usada pelos iniciados dos cultos.
Assim, alguns “pontos” poderiam denunciar a presença não só da polícia, mas também
de pessoas indesejáveis e eram considerados pontos de “demanda”:
Vovó não quer
Casca de coco no terreiro
Casca de coco faz lembrar
O tempo do cativeiro942

Entretanto, a aproximação com políticos foi a tentativa mais comum encontrada


por alguns para conseguirem a liberdade dos cultos afro-brasileiros. Vários líderes no
Rio de Janeiro, inclusive Cipriano Abedé, contaram com o apoio de políticos para
continuarem suas atividades. Ainda nos anos de 1930, ocorreram, em Recife (1934) e
Salvador(1937), Congressos dos Cultos Afro-Brasileiros. Edson Carneiro, em 1937,
escreveu cartas a Arthur Ramos, pedindo apoio para A União das Seitas Afro-
Brasileiras na Bahia: “Estou organizando um Conselho Africano na Bahia, que ficará
encarregado de dirigir a religião negra, tirando da policia essas attribuições. Vamos
mandar um memorial ao governo, pedindo a liberdade de religião.943
Para enfrentarem as perseguições policiais, muitos líderes adotaram, para suas
casas, o título de “centro espírita”, uma vez que o espiritismo kardecista – diferente dos
cultos afro-brasileiros que eram tidos como “baixo espiritismo” – estaria fora dos cultos

940
DECRETO nº 24.531, de 2 de Julho de 1934. Disponível em
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24531-2-julho-1934-498209
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em 21 de maio de 2014
941
SLENES, R. Malungu, ngoma vem: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, p. 48-
67, 1991.
942
Ponto cantado nos terreiros de Umbanda.
943
CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos agradecendo pela colaboração na revista
Flamma, informando que remeterá o capítulo e os clichês que estavam faltando no livro Negros bantus e
que está organizando o Conselho Africano da Bahia. Bahia, 15/7/1837. 2 p. Biblioteca Nacional, Ms. I-
35,25,888

257
proibidos. No Rio de Janeiro, a Federação Espírita de Umbanda, criada em 1939, “tinha
como objetivo unir os diversos templos de Umbanda”.944 As perseguições aos cultos
afro-brasileiros se acentuaram durante toda a década de 1940, especialmente na capital
do país, e vários terreiros foram fechados.
O Decreto- Lei nº 2.848 foi publicado no Diário Oficial, em 7 de dezembro de
1940, e instrumentalizou as perseguições às “macumbas”. Embora estabelecendo, no
art.208, ser crime escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função
religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; e vilipendiar
publicamente ato ou objeto de culto religioso, na prática, esses dispositivos foram
esquecidos. O que prevaleceu foram os que permitiam criminalizar as práticas das
religiosidades negras como: Charlatanismo - Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por
meio secreto ou infalível; Art. 284. Exercer o curandeirismo: prescrevendo, ministrando
ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; usando gestos, palavras ou qualquer
outro meio.945 Portanto, o decreto de 1940 funcionou como “carta branca” para as
perseguições.
No Distrito Federal, estava declarada guerra à “macumba” e instaurada uma
“fulminante ofensiva na Delegacia Geral de Investigações – D.G.I. – contra os ‘Pais de
Santo Profissionais’”.946 Os jornais destacavam que o chefe de polícia Filinto Müller
estava impressionado com “as estatísticas dos hospitais de doenças mentais, reveladores
de um número assustador e sempre crescente de distúrbios cerebrais ocasionados pela
prática do baixo espiritismo, da macumba”.947 Após reunir-se, uns dois meses antes,
com o diretor da D.G.I., dr. Cesar Garcez, encarregado de traçar um plano para acabar
com o “problema”, foi realizada uma “batida policial”. Na madrugada de 30 de março,
os investigadores se espalharam pelos quatro cantos da cidade, com o objetivo de
prenderem os “macumbeiros”, e todos os detidos seriam levados para a Penitenciária
Agrícola de Ilha Grande.
Embora muitos “terreiros” estivessem em atividade, com a presença de vários
adeptos, a ordem era prender apenas os líderes. Mais de sessenta casas foram invadidas
pelos policiais e o número de presos variava de jornal para jornal: alguns falavam em 72
944
Fonte: Congregação Umbandista do Brasil. Disponível em <http://www.ceubrio.com.br/textos-e-
artigos/34-uniao-espiritista-de-umbanda-do-brasil-casa-mater-da-umbanda-pede-ajuda>. Acesso em 10 de
abril de 2014
945
Decreto Lei nº 2848 de 7 de Dezembro de 1940. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em 13 de setembro de 2014
946
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1941, p.1
947
Ibidem.

258
presos, o Diário de Notícias chegou a 80, sendo que 31 líderes religiosos tiveram suas
fotografias expostas nos jornais. Alguns eram bastante famosos como, por exemplo, o
velho Sizenando José da Silva, residente à rua Cardoso de Melo, nº 52, em Oswaldo
Cruz, com sessenta anos de idade, filho de índios e sempre citado com respeito por
Tancredo da Silva Pinto. Entre os presos, também estava Altina Maria da Conceição,
que residia na rua Carmo Neto, 213, na Cidade Nova, “filha de africanos legítimos”,948
com 45 anos de idade, trabalhava há mais de 10 anos nos ‘serviços do terreiro’ sob
proteção de ‘Oxalá’. “É especializada nas ‘rezas’, nos ‘passes’ e em ‘banhos’, ‘fecha’ e
‘abre’ corpos. Executa todos os trabalhos de ‘magia’”.949
Do grupo de líderes presos, o que mais chamava a atenção era Dilermando
Juventino da Silva, de quarenta e cinco anos, residente à rua Oliveira Ribeiro, nº 26, em
Bangu. Dilermando trabalhava, há mais ou menos dez anos, “em toda a espécie de
‘serviços’ de magia negra”, ele havia seguido a tradição de seu pai, o famoso Napoleão
Juventino da Silva, “que deixou renome no Estado do Rio de Janeiro”. Dilermando era
“festeiro africano dos mais celebres do Distrito Federal”, e jornais ironizavam os trajes
com que o líder religioso havia sido preso: “o mais pitoresco de todos os prisioneiros é
indiscutivelmente Dilermando Juventino da Silva que intitulou-se Rei do Congo”.950
A questão da hereditariedade dos cargos religiosos também foi ressaltada, pelos
jornais, em relação a Custódio de Souza Caravana Filho, residente à rua Zélia, nº 4, em
Madureira, que, aos vinte e sete anos de idade, já trabalhava há muito anos na
“doutrina”, devido a sua história familiar. Seu pai era o renomado Custodio de Souza
Caravana, “celebre na prática dos serviços de ‘magia negra’”.951 Os jornais que
noticiaram as prisões destacavam a notoriedade e a situação financeira de Custódio de
Souza Caravana Filho.952
Custódio de Souza Caravana, pai do líder religioso preso em 1941, era
proprietário de terras em várias localidades do estado do Rio de Janeiro, especialmente
em Vassouras, Queimados e Madureira. Na década de 1920, alguns dos terrenos de
Caravana, em Vassouras, foram vendidos para a expansão da Estrada de Ferro Central

948
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1941, p.1.
949
Ibidem.
950
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1941, p.14.
951
O Imparcial, Rio de Janeiro, 1 de abril de 1941, p.8.
952
Custódio de Souza Caravana Filho nasceu em Vassouras (24 de março de 1913), e sua mãe, Marieta
Seabra Caravana, teria nascido no quilombo São José (Valença). Certidão de nascimento de Custódio de
Souza Caravana. Arquivo Nacional, Pretoria Cível do Rio de Janeiro, 5 (Freguesias do Espírito Santo e
Engenho Velho) - Registro Civil - 6Q.FES.LTN.027/f.095.

259
do Brasil.953 Nos anos 1930, ele participava do Centro Político Pró-Melhoramentos de
Madureira.954 Era casado com Marieta Seabra Caravana, com quem teve filhos, entre
eles, Custodio de Souza Caravana Filho. Através da história familiar dos Caravana,
vamos poder vislumbrar um aspecto fundamental para o desenvolvimento do omolocô
na cidade do Rio de Janeiro.
Custódio de Souza Caravana teve uma trajetória religiosa diferente da maioria
dos líderes religiosos do século XIX e início do XX: era de uma família de posses, filho
de um português e, assim como o prof. Agenor Miranda Rocha, foi iniciado no “santo”
ainda criança, devido a problemas de saúde, por um negro africano chamado Fabrício.
Com a morte do seu “pai de santo”, Custódio passou a incorporar o espírito de “Pai
Fabrício” e, segundo relatos das comunidades religiosas praticantes do omolocô,
Custódio teria continuado sua aprendizagem com Deawe, filho da africana Maria
Batayo.955 Custódio de Souza Caravana faleceu em 1939, e a missa em intenção do
falecido, mandada rezar pela viúva, foi na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em
Cascadura.956 Porém, deixou uma descendência que prosseguiu com suas atividades
religiosas. Segundo Tancredo da Silva Pinto :
Todas as vezes que qualquer pessoa ficava muito doente em quaisquer
fazendas e os médicos já os consideravam incuráveis, apareciam Pretos Velhos
(já falecidos) e nestas aparições, nas horas sagradas da noite, iam à cabeceira
de doentes que, ao amanhecer, estavam plenamente curados. Estas aparições
começaram com Pai Manoel da Luz, Pai Tomás, João D’Angola, Pai Fabricio e
Pai João da Costa.957

O depoimento de Tancredo, que destaca, entre as primeiras aparições dos


espíritos de Pretos Velhos, o de Pai Fabrício, pode sugerir que ele conhecia Custódio
Caravana — pai ou filho — e tinha contato com as experiências religiosas dos
africanos-centrais e seus descendentes vindos da região de Vassouras. De acordo com a
memória oral de algumas comunidades religiosas afro-brasileiras do Rio de Janeiro,
Gerson Gentil de Azevedo, conhecido como Fujeko, presidente da Tenda Espírita dos
Humildes,958 na região de Madureira, relatou que Maria Batayo era uma escrava,
provavelmente de origem yorubá, e teria vivido em uma fazenda do interior fluminense.
Depois de livre, teria vindo para o morro de São Carlos, criando ali sua “roça” de
953
A Noite, Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1921, p.7.
954
O Radical, Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1937, p.5.
955
Ver <https://povodearuanda.wordpress.com/2007/07/27/historia-do-omoloko/>. Acesso em 10 de abril
de 2014
956
A Noite, Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1939, p.7.
957
O Dia, Rio de Janeiro, 12 de maio de 1968, 1º cad, p.15.
958
O registro de criação da Tenda foi publicado no Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 10 de abril de
1958, seção I, p.7 727.

260
omolocô. Fujeko, embora iniciado no santo por Batayo, teria afirmado a importância de
Custódio Caravana no seu aprendizado religioso.
Custódio Caravana viveu e foi proprietário de terras entre Vassouras, Madureira
e Queimados, na baixada fluminense, onde a presença de ex-escravos e seus
descendentes, nas primeiras décadas do século XX, era significativa. Em Vassouras,
ocorreu, em 1838, o levante de escravos, da Fazenda Santa Catarina – na localidade de
Paty do Alferes – em que o africano Manoel Congo foi condenado à morte. Embora o
movimento tenha sido duramente reprimido, ele, certamente, não deve ter sido
esquecido por aqueles que partilharam o cativeiro na região. Segundo texto atribuído a
Alexandre Joaquim de Siqueira, juiz de direito em Vassoura, os cativos estavam, em
1847, organizados para uma nova insurreição.
Uma associação secreta dos escravos dividida em círculos de diversas
categorias, cada uma das quais era composta de cinco membros cujo chefe
recebia as ordens de categoria imediatamente superior, e assim por diante até
o chefe principal, pardo livre, ferreiro de profissão, de nome Estevão
Pimenta. A sociedade era de natureza mística, porque com suas aspirações à
liberdade, votava um culto supersticioso à imagem de Santo Antonio. Era ela
conhecida com o nome de Ubanda, os chefes inferiores com o nome de
TATES, e os superiores com o nome de TATES-CORONGOS.959

Siqueira era advogado conhecido no Rio de Janeiro: atuou na defesa de Manuel


Congo, considerado o líder da revolta de 1838, ocupou inúmeros cargos administrativos
e chegou a presidente da província de Minas Gerais (1850). Como juiz de direito, em
Vassouras, desagradou determinados setores políticos locais e seus aliados políticos
afirmavam:
Consta que pessoas de uma família rica, a quem o procedimento
eminentemente, recto e imparcial do digno juiz de direito há desagradado, tem
feito fortes empenhos para o removerem da comarca, envidando os esforços de
gente poderosa da Corte para o conseguirem do Ministério da Justiça. 960(grifo
do original)

Não podemos deixar de observar que, em 1850, foi promulgada e lei Eusébio de
Queiroz, determinando o fim do tráfico interatlântico de escravos. Por coincidência, ou
não, no mesmo período da saída de Siqueira do cargo de juiz de direito, também era
noticiado que José de Sousa Breves, importante fazendeiro e conhecido por seu
envolvimento com o tráfico, foi pronunciado, e que uma força policial havia recebido a

959
SIQUEIRA, Alexandre Joaquim de. Memória histórica do município de Vassouras. Apud RIBAS,
Rogério de O. Tates-corongo: insurreição e resistência negra no início da modernização do Estado
escravista brasileiro. Bulletin de la Société Suisse des Américanistes, n. 59-60, p. 31-35, 1995-1996. Ver
também: SLENES, Robert. “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP,
v. 12, p. 48-67, 1992.
960
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 6 de abril de 1853, p.2

261
incumbência de prendê-lo. A ordem não foi cumprida pelo fato de Breves não ter sido
encontrado.961 Siqueira retornou para o Rio de Janeiro e foi nomeado chefe de polícia da
Corte. Entretanto, teria oferecido ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em
1852,962 um manuscrito, no qual contava sobre a tentativa de insurreição, ocorrida em
1847, dos Tates-Corongo. Segundo Salles, alguns fragmentos do texto de Siqueira
foram publicados, em 1896, pelo O Vassourense.963
Alexandre Joaquim de Siqueira indica, como líder do movimento de 1847,
Estevão Pimenta. Localizei uma notícia , de 1837, sobre a compra de um bilhete lotérico
feita por um homem, morador de Paty do Alferes, chamado Estevão Pimenta de
Moraes.964 Pimenta, em 1855, fez o registro da sua fazenda Bom Jardim, na freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes,965 adquirida por compra “que fiz a
vários”.966 Por outra provável coincidência, Pimenta foi contemplado com ações da
Estrada de Ferro Central D. Pedro II, em 1855, quando o dr. Alexandre Joaquim de
Siqueira era diretor da companhia.
Em relação à insurreição dos Tates-corongos, não localizei nenhum outro
registro, no período, sobre o movimento.967 Assim, o texto de Siqueira seria a fonte
sobre a rebelião. Provavelmente, o fato de a rebelião ter sido imediatamente sufocada,
como foi relatado, pode ser a justificativa para a falta de divulgação. Siqueira era
familiarizado com a região e, como juiz de direito da localidade, pode ter tomado
conhecimento do ocorrido e inclusive, caso Estevão Pimenta de Moraes fosse o chefe
dos Tates-Corongo, poderia conhecer o líder daquela “maçonaria negra”.968 Autores que
se debruçaram sobre o texto de Siqueira chamam a atenção, especialmente, para o fato
de a descrição feita sobre os rebelados de Vassouras mostrar uma acentuada relação
entre os cargos dos chefes e os dos praticantes da cabula comentada pelo bispo Nery. Os
graus hierárquicos dos tatas — usados pelos cabulistas capixabas e pelos insurretos de

961
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1853, p2
962
Nas Revistas do IHGB, aparecem listas de documentos doados ao Instituto. Não existe no período de
1852, quando Siqueira teria doado o documento, nem nas edições seguintes, o registro dessa doação.
963
SALLES, R. . Vassouras - 1850-1870: Escravos e senhores no coração do Império. In: SEMINÁRIO
DO CENTRO DE ESTUDOS DOS OITOCENTOS, 2., 2005, São João del Rei. Anais... Juiz de Fora:
Clio Edições Eletrônicas, 2005.
964
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 14 de julho de 1837, p. 3
965
A localidade Paty do Alferes foi desmembrada de Vassoura, em 15 de dezembro de 1987, pela Lei
Estadual nº 1254.
966
REGISTRO Paroquial de Terras, Livro 74 (1854-1858), Vassouras, Nossa Senhora da Conceição de
Paty do Alferes, Registro 56. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
967
O texto de Siqueira foi publicado pela primeira vez in: BRAGA Greenhalgh H. Faria. Vassouras de
ontem. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas, 1975.
968
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 3ª ed., São Paulo. Livraria
Editora Ciências Humanas, 1981, p.102

262
Vassouras — são, igualmente, descritos por Tancredo da Silva Pinto como os dos
omolocô, como os cânticos acompanhados de palmas e a possessão mediúnica que,
também, foi descrita entre os cabulistas: “De repente um deles, geralmente embanda,
verga o corpo, pende a cabeça e rola pelo chão em contorções”.969 Encontramos, tanto
na cabula como no omolocô, o mesmo traço fundamental da religiosidade dos africanos-
centrais: o culto aos espíritos dos mortos.
Com a migração, ocorrida no pós-abolição, ex-escravizados na região de
Vassouras deslocaram-se, com seus descendentes, para a baixada fluminense — não
podemos deixar de lembrar que dr. Otacílio realizava seus rituais em uma localidade
próxima de Mesquita — e outros vieram para o Distrito Federal. Considerando o
depoimento de Fujeko, ligando Custódio Caravana a Batayo, pelo menos através de
Deawe — filho da africana—, compreendo que elementos do omolocô estavam
estruturados na região de Vassouras, através das mesclas culturais ocorridas entre os
antigos africanos-centrais e os novos grupos étnicos ali introduzidos por meio do tráfico
interprovincial. Desse modo, com as migrações, é possível apreendermos que o
caminho percorrido para a chegada do culto, no final do século XIX, ao morro de São
Carlos, segue a trajetória dos africanos-centrais e seus descendentes das antigas
fazendas do Vale do Paraíba. Assim, Tancredo da Silva Pinto, no século XX,
impregnado desde sua infância pelas religiosidades praticadas pelos povos “bantus” e as
associando a outras influências que vivenciou nas terras cariocas, divulgou o culto e se
tornou o Rei do Omolocô.

969
NERY, D. João Batista Correa. A Cabula: Um Culto Afro-brasileiro. Cadernos de Etnografia e
Folclore, Comissão Espírito Santense de Folclore, n.3, Vitória, 1963. Apud MOURA, Clóvis. Dicionário
da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p.76

263
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Examinamos, ao longo deste estudo, a diversidade religiosa das populações


negras na cidade do Rio de Janeiro e a maneira como foram entendidas por vários
segmentos sociais. O período analisado é emblemático para essas religiosidades: 1870
marca o início do processo contra José Sebastião Rosa: “conhecido vulgarmente por –
Juca Rosa. Creoulo, creado e vivendo nesta vasta cidade, onde é escassa a civilisação,
entre o povo, filho de uma africana, que lhe legou o mysterioso arcano de dar
fortuna”.970 Nessa notícia, estão presentes os estigmas que acompanharam os africanos
e seus descendentes. No decorrer dos anos, essa visão preconceituosa persistiu e, pelo
Decreto- Lei nº 2.848, de 7 de novembro de 1940, mesmo transcorridos tantos anos e
com todas as mudanças ocorridas no país – desde as leis emancipacionistas à
proclamação da República –, os praticantes dos cultos afro-brasileiros continuaram a
conviver com as discriminações e perseguições policiais.
Em 1871, João Sebastião da Rosa, o Juca Rosa publicou carta no Diário do Rio
de Janeiro, em que protestava pela maneira humilhante como foi “acre e virulentamente
insultado”. Setenta anos decorridos desde o “linchamento público”, enfrentado por Juca
Rosa, a discriminação aos praticantes dos cultos afro-brasileiros ainda eram constantes.
Ao longo de todo o século XIX e primeira metade do século XX, as perseguições
persistiram. Outros líderes passaram pela humilhação de verem suas casas invadidas e
sua religião ironizada. Esse quadro foi um reflexo das condições impostas por uma
sociedade estruturada com base na escravidão. O reconhecimento de direitos significa
ver o outro ser humano como igual e, portanto, com cultura e valores. Por uma
estratégia de aniquilamento, negava-se aos africanos e seus descendentes até o direito de
suas diversidades culturais. O respeito ao outro implica em não avaliarmos suas
práticas partindo da nossa visão do mundo. Portanto, podemos considerar a afirmação
de Herskovits, de que todos os povos formam juízos acerca dos modos de vida
diferentes dos seus e baseados na experiência que é interpretada pelo indivíduo em
termos de sua própria endoculturação.971
Naturalmente, foi importante compreender que a diversidade étnica foi
determinante no cenário religioso. Mesmo tratados de forma genérica, como escravos
970
Diário de Noticias, Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1870, p.2.
971
HERSKOVITS, Melville J. O problema do relativismo cultural. São Paulo: Mestre Jou, 1963.
(Antropologia Cultural Tomo I). p.86.

264
ou africanos, suas identidades étnicas não foram apagadas pela escravidão. Entretanto,
ser traficado e escravizado não significava, para aqueles que vinham adultos, o
esquecimento de seu passado africano e dos familiares deixados do outro lado do
Atlântico. Desse modo, eles eram Maria, “nação benguella, com umas estrellas na testa
signal de sua nação”;972Tereza, nação Mugumbê;973 Manoel, nação Munganjera, tem
certos riscos muito miúdos em ambas as frontes, sinal de nação;974 Menelvina, de nação
mina, tem um sinal de nação atravessado nos dois lados da face e um círculo redondo
com uma cruz dentro, “que parece marca de consignação”.975 Portanto, essas pessoas
traziam, literalmente, nas suas peles, as suas histórias de vida .
Nas entrevistas feitas por Francis Castelnau com africanos, na Bahia, nas
primeiras décadas do século XIX, uma chama especialmente a atenção: So-Allah, do
país de Adamah, batizado como Davi, na Bahia, tinha apenas oito dias que havia
chegado e teve sua fala traduzida por um interprete hausá. So-Allah traçou o longo
caminho que percorreu desde que foi capturado em seu país, pelos hausás e, após
sucessivas revendas, chegou a Eko sendo, em seguida, revendido para o Brasil. Ele
disse que ouviu falar, em Booché, sobre os homens brancos e “acreditava que eles
fossem antropófagos e que compravam escravos para come-los, mas ele os viu só em
Eko, onde foi vendido”.976 De certa forma, So-Allah não deixava de estar certo: era um
ritual antropofágico, em que milhares de africanos foram devorados e tiveram, como
Slenes destacou, que se reconstruírem sob a condição de cativos, procurando novas
formas de manutenção de suas identidades.
Era condição primordial de sobrevivência adaptar-se, o quanto melhor possível,
a nova forma de vida, construir redes de socialização. Se, para os africanos, a diáspora
significava perda de seus laços familiares — a vinda para o desconhecido, o incerto—
por outro lado, inseria um elemento explicado pelas suas crenças: fazer a travessia da
Kalunga Grande significava a morte, mas o contato com o morto não era rompido. Os
africanos-centrais, através do culto aos ancestrais, que “incorporavam” em seus rituais,
embasaram, nas religiosidade afro-brasileiras, a reverência dos “pretos velhos”. Robert
Farris Thompson destaca que os povos do Congo e de Angola, “partilhavam crenças e
línguas fundamentais e quando se encontram nas plantações, fazendas e cidades do

972
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1825, 86.
973
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2 de julho de 1821, p. 3.
974
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro , 25 de abril de 1825, p. 76.
975
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de abril de 1825, p. 24.
976
CASTELNAU, Francis. Entrevistas com escravos africanos na Bahia oitocentista. Rio de Janeiro : J.
Olympio, 2006. p. 50

265
hemisfério ocidental, estes fomentaram sua herança comum”.977Assim, podemos
perceber como as tradições e experiências religiosas dos africanos-centrais se
desenvolveram na cidade apesar da forte influência daquelas dos “baianos”, chegados
na segunda metade do século XIX, que consolidaram um território em suas
especificidades e imprimiram importantes elementos nos cultos afro-brasileiros como,
por exemplo, os orixás. Essas complexas conexões religiosas ocorridas no Rio de
Janeiro, nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, foram resumidas
por Bastide: “existiam três religiões independentes: a dos orixás, isto é, dos
descendentes dos yorubás, a dos alufás, dos descendentes dos muçulmanos negros e a
da Cabula, dos descendentes dos bantos”.978 Nesse sentido, na compreensão dos cultos
afro-brasileiros, é importante a forma como foi assimilada, ao longo dos tempos, a
identificação de determinados rituais com a “nação” do culto, embora isso não
signifique uma correspondência exata aos rituais similares praticados naquelas “nações”
africanas. Serra esclarece que “o termo ketu corresponde, hoje, em nosso país, a uma
denominação ritual e identifica uma ‘nação de candomblé’”.979 Assim, os rituais
correspondem a uma classificação étnico-religiosa: os adeptos do candomblé se dividem
em “nações” como ketu, jeje, ijexá e angola. Portanto, o termo nação se adequou a
determinadas liturgias.
Quando Heitor dos Prazeres afirmou ser a região portuária uma “Pequena
África”, estava expressando sua vivência de um lugar, seu espaço de nascimento e
convivências, e que ele reconhecia como um “território africano” em plena cidade do
Rio de Janeiro. Havia nesse local uma diferença que permitia, para aquela população,
uma noção de pertencimento reinventado como um espaço africano. Não foi por acaso
que João Alabá criou ali o “Liga Africana”, que Cipriano Abedé reinava com seu Culto
Africano, Horácio de Sá Pacheco, o famoso alufá, mantinha sua comunidade
muçurumin980 e tantos outros que, através de suas atividades culturais, buscavam aquele
seu território de identificação.
Entretanto, abordamos neste estudo, as outras “pequenas áfricas cariocas”, que
iam desde Tia Chimba, Pedro Gonzaga e Manuel da Ignácia, no Meier, à velha

977
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit. Arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo:
Museu Afro-Brasil, 2011. p.108.
978
BASTIDE, Roger. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro; Edusp, 1974. p. 90
979
SERRA, O. J. T (Orgs.). O mundo das folhas. Salvador: Universidade Estadual de Feira de Santana;
Editora da Universidade Federal da Bahia, 2002. V. 01. p.4.
980
Termo usado para definir os negros islamizados e cultos afro-brasileiros influenciados pelos malês.

266
Alexandrina, em Bento Ribeiro, ao Tata Tancredo no morro de São Carlos. Todos esses
marcados principalmente pelas tradições dos africanos centrais, assim como havia sido,
no século XIX, Juca Rosa. Por acaso, não podemos reconhecer no Engenho Novo, onde
Pai Quintino tinha em sua casa uma árvore cuja raiz estaria na África, como outra
Pequena África? E o que dizer de Madureira, Oswaldo Cruz e Bangu, aonde Juventino
incorporava o Rei Congo, vestindo-se do que seria uma indumentária reinventada da
África Central? Por outro lado, é fundamental destacar que as tradições religiosas
daqueles que chegaram à cidade, no início do século XX, especialmente os do Vale do
Paraíba, como a família de Tancredo da Silva Pinto, todos influenciados basicamente
pela cultura dos africanos-centrais, foram decisivos na criação do omolocô.
Outro aspecto que foi determinante neste estudo é que o “poder” dos líderes e
de seus cultos, mesmo que associados a práticas católicas ou kardecistas, advinha da
ligação com a África . Repetindo Hobsbawm: “Houve adaptação quando foi necessário
conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos
fins”.981 Lovejoy destaca que, na busca do conhecimento sobre o cotidiano de homens e
mulheres escravizados, existe uma lacuna que consiste na ausência de dados sobre o que
aqueles escravos pensavam e no que eles acreditavam. Certamente, a imprensa não
supriu inteiramente a lacuna sobre as vivências dos escravizados e seus descendentes,
mas abriu brechas importantes. João José Reis observou que a informação saía da “pena
de escrivães de policia”.982 Nos jornais, ela poderia vir de um jornalista, ou de uma carta
publicada por um líder religioso, como Juca Rosa ou Cypriano Abedé. Entre as
linguagens de jornalista e escrivães, os enfoques do problema são diferentes, mas, em
ambos, podemos encontrar importantes registros sobre as experiências religiosas afro-
brasileiras e as vivências da população negra.
Assim, neste estudo, procurei debruçar-me sobre pessoas comum, em suas
trajetórias cotidianas, inseridas nos seus contextos histórico-culturais, que permitiram o
conhecimento de como se consolidou o cenário das experiências religiosas, de matrizes
africanas, no Rio de Janeiro de 1870 a 1940. Mesmo tendo como foco os líderes
religiosos, considerei importante buscar outros agentes, que, no período estudado,
vivenciaram o processo de exclusão imposto aos escravizados e seus descendentes.
Com isso, perceber que a intolerância ia muito além dos aspectos religiosos. Foi

981
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
p. 17.
982
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês de 1835, São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. 10.

267
possível encontrar seres humanos, como as meninas Agueda e Joanna, massacradas
pela tirania do cativeiro. As exclusões impostas aos negros e seus descendentes
marcaram trajetórias como a do dr. Jacarandá, velho rábula dos pobres capoeiras e das
“meninas do Mangue”. Essas pessoas eram “retratos” da população que ocupava os
diferentes espaços cariocas.
Através das narrativas dos periódicos, ainda podemos identificar a maneira como
a sociedade brasileira era informada sobre os cultos afro-brasileiros. Assim, no processo
de busca do conhecimento das religiosidades de matriz africana vivenciadas no Rio de
Janeiro, no período estudado, foi possível estabelecer — inclusive nos periódicos
alinhados com a ideologia dos grupos sociais que colocavam aquilo que pretendiam
como nação para o Brasil — o lugar daquela massa populacional que não tinha, com
seus rituais de “feitiçaria”, a fisionomia em uma sociedade que pretendia ser tão
“higiênica”. Essa perspectiva encontrou ressonância na forma como africanos ocidentais
– “os minas – e setores da intelectualidade, no século XX, propalaram uma suposta
superioridade “yorubá” em detrimento dos povos “bantus”, tão antigos e entranhados na
cultura brasileira e considerados como “bárbaros” e destituídos de cultura. Isso foi
sempre criticado pelo Tata Tancredo que, embora mesclando elementos da cultura dos
“minas” – principalmente, os cultos dos orixás ao dos ancestrais –, mostrava a
complexidade das religiosidades dos africanos-centrais.
Tancredo da Silva Pinto se projetou, nos círculos religiosos da cidade, como
Tata de Nkinsi. Sua influência permitiu que ajudasse a fundar, na década de 1940, a
Federação Brasileira das Escolas de Samba (1947) e a Federação Espírita Brasileira (em
1949). Era consultado por vários políticos. No famoso “Atentado na Toneleros” contra
Carlos Lacerda, em que morreu o major Rubens Vaz, Tancredo foi convocado para
depor, no cartório da Divisão de Polícia Técnica, como testemunha do seu compadre e
parceiro musical José Alcides — que havia sido indiciado por afirmar ter recebido de
Mendes de Moraes, de quem era motorista, a proposta para matar Lacerda. No entanto,
a ligação entre Tancredo, José Alcides e Gregório Fortunato envolvia a Tenda Vovó
Cambinda, na rua Maia Lacerda , aonde Gregório e sua mulher, Juracy, “iam às sextas-
feiras bater com a cabeça no chão e rezar o omolocô”.983
Tancredo morou no morro de São Carlos até a sua morte, em 1977, e seu corpo
foi velado no Ilê de Umbanda Babá Oxalufan, em Coelho Neto. O sirrum do Tatá

983
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1954, p.9

268
Nskinsi obedeceu à tradição dos africanos-centrais e foi realizado por José Catarino da
Costa, conhecido como Zé Crioulo”.984 Segundo as comunidades afro-brasileiras,
Tancredo foi homenageado, por sua importância e renome, como Tata Nkinsi, por um
Tata Zamburo africano, que lhe enviou uma bandeira representando a “nação” omolocô.

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Códice 41.3.37
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OR 6932.
OI, 5ª Pretoria do Rio de Janeiro - 1896, maço 1315, nº 4784, galeria A. Réu: João
Miguel Pereira da Costa

984
“Pertenço a Nação do Omolocô, de origem angolense. Sou filho-de-santo do falecido Frederico de
Lalu, um dos mais famosos macumbeiros do Rio de Janeiro, e também meu tio carnal. Após vinte anos de
<<feito>>, fui confirmado como Ogan”. Depoimento de José Catarino da Costa. O Dia, Cultos Afro-
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Fundo ZM, Juízo de Órfãos e Ausentes da 2ª Vara Exame de Sanidade Mental. Numero
2078, maço 107 , ano 1886. Requerente: José Joaquim de Magalhães. Examinada
Francisca da Silva Castro
Série Justiça, IJ6-525, nº 584
Ação de despejo, 1906, nº 883, maço, 1390, Galeria A.
Código de Fundo 6n 4ª pretoria cível, ano 1920, maço 66 nº 3159
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Pretoria Civel do Rio de Janeiro 3, Freguesias de S. Antonio de Santana, n. 4746, maço
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revista Flamma, informando que remeterá o capítulo e os clichês que estavam faltando
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