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RIO DE JANEIRO
2021
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 2
PLANO DE CURSO
Ano: 2021. Semestre: 1º. Série: 3º ano. Turno: Noturno. Aulas: quarta-feira.
• Conteúdo:
• Plano do curso:
• Avaliações:
➢ BEUTLER, Johannes. Evangelho Segundo João. São Paulo: Loyola, 2016. (Coleção
Bíblica Loyola 70).
• Recuperação final:
COMENTÁRIOS
BEUTLER, Johannes. Evangelho Segundo João. São Paulo: Loyola, 2016. (Coleção Bíblica Loyola
70).
BROWN, Raymond. Comentário ao Evangelho segundo João. São Paulo: Paulus / Academia
Cristã, 2020.
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos 2: Lucas e João. 4ª edição. São Paulo:
Loyola, 2010.
KÖNIGS, J. Evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000.
LÉON-DUFOUR, X. Leitura do evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. Volumes 1-4.
LOPES, Augustus Nicodemus. Primeira carta de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
MAZZAROLO, I. O Apocalipse de São João. 3ª ed. Rio de Janeiro: Isidoro Mazzarolo, 2010.
______ Nem aqui, nem em Jerusalém – Evangelho de São João, exegese e comentário. Rio de
Janeiro: Mazzorolo, 2015.
GRÜNZWEIG, F.; HOLMER, U.; De BOOR, W. Cartas de Tiago, Pedro, João e Judas. Curitiba:
Esperança, 2008.
DICIONÁRIOS
COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São
Paulo: Vida Nova, 2004. 2 volumes.
DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1999.
REID, Daniel G. (editor). Dicionário Teológico do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova/Loyola,
2012.
OBRAS ESPECAIS
CASALEGNO, Alberto. O evangelho de João na interpretação dos padres da Igreja e dos teólogos
medievais. São Paulo: Loyola.
FARMER, Craig S.; GEORGE, Timothy F.; MANETSCH, Scott M. João 1-12. (Comentário
Bíblico da Reforma). São Paulo: Cultura Cristã, 2016.
KÖSTENBERGER, Andreas J.; SWAIN, SCOTT R. Pai, Filho e Espírito Santo, A Trindade no
evangelho segundo João. São Paulo: Vida Nova, 2014.
BEALE, G. K. Teologia Bíblica do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2018.
BLOMBERG, Craig L. A confiabilidade histórica dos evangelhos. São Paulo: Vida Nova, 2019.
BLOMBERG, Craig L. Introdução de Atos a Apocalipse. São Paulo: Vida Nova, 2019.
CARSON, D. A.; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2008.
DUNN, J. D. G. Unidade e diversidade no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2009.
MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos Escritos do Novo Testamento. São Paulo: Vida, 2010.
GUNDRY, R. H. Panorama do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2005.
O QUARTO EVANGELHO:
ESBOÇO:
O esboço mais difundido academicamente é o que divide o evangelho em duas partes
principais, antecedidas por um prólogo e sucedidas por um epílogo.1 Existem diversas outras
tentativas, não necessariamente ruins, mas esta tem alguns motivos que a recomendam.
1.1-18: Prólogo
1.19-12.50: Livro dos sinais (trazem sete atos significativos de Jesus denominados “sinais”)
13.1-20.31: Livro da Paixão ou Livro da glória
13.1-17.26: Discursos de despedida2
18.1-20.31: Narrativa da paixão
21.1-25: Epílogo3
AUTORIA:
Popularmente todos conhecem o quarto evangelho como o “Evangelho segundo João”,
conforme o título que aparece nas Bíblias. De fato, pelo menos desde o século II a autoria deste
evangelho é atribuída ao apóstolo João, filho de Zebedeu.
Entre os manuscritos, o P66, que data aproximadamente do ano 200, e o P75 do século III, são
1
Para essa divisão, entre outros, THOMPSON, M. M. João, Evangelho de. DTNT. p. 748; BROW, R. E. Introdução ao
Novo Testamento, p. 461; DODD, C. H. A interpretação do Quarto Evangelho, p.379-381.
2
Dodd entende que os discursos de despedida pressupõem a situação da paixão, embora literariamente venham antes.
3
Aqui certamente Dodd falha, visto entender que o capítulo 21, acrescentado ao evangelho, é um elemento estranho
estrutura do mesmo. Entretanto, apesar de ter sido acrescentado, o capítulo estruturalmente está balanceado com o
capítulo 1, e traz contribuições significativas ao conteúdo do Evangelho.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 9
os primeiros a trazerem o título “Evangelho segundo João”.4 Nos pais da Igreja, a principal tradição
segue a conexão entre o apóstolo João, Policarpo (69-155), discípulo de João e Irineu (130-200),
discípulo de Policarpo, isto é, através das afirmações de Policarpo registradas nas obras de Irineu
que chegaram até nós. Outros testemunhos no século II são: Justino Mártir (aproximadamente 100-
166; é uma citação disputada); Teófilo de Antioquia (morto em 181; citou o evangelho atribuindo-o
a João); Cânon Muratoriano (final do século II – 180, é a 1ª lista de livros considerados canônicos,
continha 22 livros).
Dessa foma, percebe-se que já no século II a autoria joanina do quarto evangelho já estava
bem estabelecida.5 Quando Eusébio de Cesaréia escreve no 4º século essa posição já era uma
unanimidade.6
Não obstante, com a aplicação da crítica histórica ao Novo Testamento a partir do século
XIX levantou-se a questão se essa atribuição é realmente correta, ou é apenas tradição eclesiástica.
Muitos problemas e respostas foram apresentados, mas uma questão interna do livro que ficou
sendo determinante para definição da autoria do evangelho é a figura do discípulo amado. Este
personagem aparece em momentos importantes da narrativa, a saber:
Ora, ali estava conchegado a Jesus um dos seus discípulos, aquele a quem ele amava; a esse fez
Simão Pedro sinal, dizendo-lhe: Pergunta a quem ele se refere. Então, aquele discípulo,
reclinando-se sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: Senhor, quem é? (Jo 13.23-25).
4
NESTLE, E.; ALAND. K. et alli. Novum Testamentum Graece. 27ª ed. Stuttgart: Deutschebibelgesellschaft, 1993.
Appendices I.
5
CARSON, D. A. O Comentário de João. São Paulo: Shedd, 2007. p. 25-30. O século segundo é o século fundamental
para o cânon do Novo Testamento. As obras que foram reconhecidas ainda neste século evidenciam um alto grau de
autoridade. Não obstante, havia no século II um grupo denominado de alogoi, expressão grega que significa: “os
ignorantes”, e que era aplicada pelos “ortodoxos” àqueles que rejeitavam o quarto-evangelho. Cabe observar, entretanto,
um fator que influenciava na rejeição tanto do evangelho, quanto do Apocalipse, que era a utilização desses livros pelos
montanistas, justamente um movimento considerando herético pela ortodoxia da Igreja Antiga. Gaio, por exemplo, era
um presbítero ortodoxo, mas era considerado alogoi porque rejeitava as obras joaninas em vista de ser contrário ao
montanismo. cf. CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2008. p. 158.
6
Por outro lado, é o próprio Eusébio quem coloca outro nome na discussão. Ele registra a seguinte citação de Papias
(bispo de Hierapólis, na primeira metade do século II): “Se alguém que tivesse estado em companhia dos líderes
cruzasse meu caminho, eu indagaria sobre as palavras desses líderes. 'O que', perguntaria eu, 'André ou Pedro disse ou
Filipe, ou Tomé, ou João ou Mateus ou quaisquer outros dos discípulos de Jesus ensinaram' O que Aristion e João, o
ancião, discípulos do Senhor ensinaram?' Nunca achei que os ensinos dos livros pudessem me ajudar tanto quanto o que
ouviria de viva e fiel voz”. Logo após a citação, Eusébio comenta: “Aqui, é digno de nota que em sua enumeração ele
tenha mencionado o nome de João duas vezes: ele coloca o primeiro desses Joões na mesma lista que Pedro, Tiago,
Mateus e outros apóstolos, claramente indicando os evangelistas; mas o último, ele coloca com o soutros, em uma
sentença separada, fora do grupo dos apóstolos, com Aristion antes dele; e claramente o chama de 'ancião'”. Desse
modo alguns interpretaram que existiam na Igreja primitiva dois líderes chamados João: um, o apóstolo, filho de
Zebedeu; e outro, o presbítero, e teria sido esse o autor do quarto evangelho. Carson questiona essa interpretação, e
considera que o próprio Eusébio interpretou a citação de Papias de forma equivocada, mas indica que essa mesma
interpretação apareceu em um manuscrito do século VII. cf. CARSON, D. A. O Comentário de João. p.70-71. Já F. F.
Bruce analisa a citação de Papias e outros dados históricos, e acha plausível que realmente na igreja primitiva haviam
dois líderes distintos chamados João: o apóstolo e o presbítero, embora não chegue a atribuir o quarto evangelho ao
ancião. cf. BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. São Paulo: Shedd, 2005. Quanto às citações, para a citação de
Papias em Eusébio segui a tradução existente na obra de Bruce (que diverge da de Carson). Já para o comentário, segui
Carson.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 10
Vendo Jesus sua mãe e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí teu filho. (Jo 19.26)
Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-
lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram. (Jo 20.2)
Aquele discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor! Simão Pedro, ouvindo que era o
Senhor, cingiu-se com sua veste, porque se havia despido, e lançou-se ao mar; (Jo 21.7)
Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual
na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor? (Jo 21.20)
7
Os três primeiros argumentos aparecem em CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo
Testamento. p. 163 e são repetidos em CARSON, D. A. O Comentário de João. p.72-73.
8
É o que evidencia o seguinte comentário de C. K. Barret: “Deve-se reconhecer que não é impossível que o apóstolo
João tenha escrito o evangelho; é por isso que emprego o termo 'certeza moral'. O apóstolo deve ter vivido até uma
idade avançada; deve-se admitir que ele pode ter recorrido a outras fontes além de sua própria memória; ele deve ter
aprendido não só a língua, mas o modo de pensar dos novos ambientes em que viveu (Éfeso, Antioquia ou Alexandria);
ele pode ter pensado sobre as palavras de Jesus por tanto tempo que elas tomaram forma em um novo idioma; ele pode
ter-se tornado uma pessoa tão obscura que, por algum tempo, os cristãos ortodoxos não deram atenção a seu livro. Tudo
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porém, conforme a análise exegética contemporânea, ele foi realmente o escritor do evangelho. Em
uma perspectiva estrita de autoria, o autor permanecerá no anonimato.9
DATA:
Aqui a pergunta é: quando o evangelho foi publicado pela primeira vez? Carson propõe 80.
Depois de 100 é tarde, pelo testemunho dos pais e porque o mais antigo fragmento conhecido do
Novo Testamento é um fragmento de João: p52, datado de 130. Teriam se passado dez após a queda
de Jerusalém, tempo razoável para se omitir o fato. O evangelho usa linguagem semelhante ao
gnosticismo (um fenômeno que se difundiu no final do século 1º), sem combatê-lo explicitamente.
João morreu idoso e 21,23 ou indica que ele havia morrido, ou que havia especulações acerca de
sua idade avançada. A teologia joanina está articulada com linguagem mais próxima ao final do
século, sobretudo a ênfase na divindade de Jesus e na pré-existência.
Finalmente, em favor da década de 80 pode-se acrescentar aos argumentos de Carson, a
provável anterioridade dos sinóticos ao evangelho de João, tendo em vista que consideramos
provável os sinóticos estarem prontos entre 65-80.
LOCAL:
Onde o evangelho foi publicado? Éfeso, na Ásia Menor, é o único local defendido pelos pais
da igreja. Segundo F. F. Bruce, uma tradição afirma que lá, na colina Ayasoluk, foi enterrado o
apóstolo. Na mesma colina, no século VI, o imperador Justiniano edificou uma Basílica em
homenagem a São João. Porém, recentemente, arqueólogos australianos concluíram que a basílica
foi construída sobre uma Igreja que dataria do século IV.10
PROPÓSITO:
Deve-se rejeitar algumas opções.11 Primeiramente, João não deve ser visto como uma
correção ou suplemento aos sinóticos, uma visão muito tradicional. Cresce a ideia de enxergar em
João um testemunho independente, que tem valor em si, independentemente dos sinóticos. Também
é improvável que o evangelho tencione combater o gnosticismo, uma finalidade mais próxima a
1João (contra W. G. Kümmel). Também a visão sintética deve ser desconsiderada: vários objetivos,
nenhum objetivo (causado pelas diversas leituras hoje possíveis).
isso é possível, mas, probabilisticamente, nem tudo deve ter acontecido”. C. K. Barret apud CARSON, D. A. O
Comentário de João. p. 79.
9
THOMPSON, M. M. João, Evangelho de. p. 745.
10
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. p. 113-114.
11
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.87-95.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 12
12
Um argumento pastoral (empírico, obviamente) também cabe aqui como auxiliar: o quarto evangelho é possivelmente
o livro mais indicado para um neófito começar a ler o Novo Testamento e até mesmo a Bíblia.
13
Citando Thomas Popp, Scholtissek afirma: “o evangelho de João convida o leitor a lê-lo várias vezes”. Cf.
SCHOLTISSEK, Klaus. O evangelho de João em pesquisas recentes. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R.
Faces do Novo Testamento. p. 480.
14
Ibidem, p. 481. A percepção e aplicação da técnica da releitura a João foi desenvolvido por Jean Zumstein.
15
KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 473. Cabe
registrar que o original em inglês é de 1987.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 13
exemplo: o Espírito Santo (parácletos) teria sido dado antes de pentecostes? Também existem
dificuldades cronológicas. Por exemplo: tempo de ministério de Jesus (3 páscoas x 1 páscoa); os
acontecimentos da semana da Paixão. Há ainda questões de estilo e gramática: o vocabulário é
diferente; o estilo literário é diferente, e é muito difícil separar as falas de Jesus dos comentários do
narrador em João.
Não quer dizer, por outro lado, que não existem semelhanças entre João e os sinóticos:
eventos na vida de Jesus; metáforas da natureza nos discursos de Jesus; realização de milagres,
entre outros. Lembrando que quando há concordância entre João e os sinóticos, encontramos um
quadro histórico muito bem definido.
Em seu comentário Carson opina que nem a dependência nem a independência de João para
com os sinóticos pode ser provada (ele mesmo não se posiciona), repousando as diferenças da busca
por objetivos diferentes. Em contrapartida, Scholtissek considera que a tendência contemporânea da
exegese alemã é que o quarto evangelho tenha tido conhecimento de um ou mais sinóticos, ou pelo
menos tinha conhecimento das tradições que serviram de base para algum deles.16
Em todo caso, vale observar: cada evangelho pode e deve ser entendido de forma completa
em si mesma.
OUTRAS CARACTERÍSTICAS
Existe uma unidade estilística em todo o livro. Mesmo os discursos de Jesus são
transmitidos através do estilo de João.
O pano de fundo, o substrato das ideias é a tradição judaica e Antigo Testamento, isto é, a
matriz de pensamento não é helenística, mas veterotestamentária.17
A precisão geográfica na descrição dos lugares da Palestina, indica o bom conhecimento que
o autor tinha da região. A maioria dos estudiosos concorda que o autor do quarto evangelho era um
judeu da Palestina.
Carson cita Meir Sternberg para pontuar uma questão importante na discussão atual: a
diferença entre ficção e registro histórico, não é de quantidade de verdade (ambos têm), mas de
reivindicação de transmitir a verdade. Desse modo, não se pode julgar que João não tinha intenção
de registrar eventos históricos para transformar sua narrativa histórica em teológica. Assim, o
evangelho deve nos dar acesso não apenas à teologia do evangelista, mas ao próprio Jesus, sua
16
SCHOLTISSEK, Klaus. O evangelho de João em pesquisas recentes. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R.
Faces do Novo Testamento. p. 481. Especialmente o evangelho de Lucas (as tradições que serviram de base para Lucas)
entram em consideração, como defende Isidoro Mazzarolo.
17
“João é visto hoje como preso a uma tradição fundamentalmente judaica, embora influenciada por ideias
helenísticas”. KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p.
473
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O TEXTO:
Entre as questões no texto do quarto evangelho, duas chamam a atenção.
A primeira é a perícope de 7.53-8.11.20 Carson mostra que a passagem está ausente de
praticamente todos os antigos manuscritos gregos. Todos os pais da Igreja omitem essa narrativa.
Entre os pais orientais ela não é citada antes do século X. Ela falta nas versões siríaca, copta,
armênia e outras. E ainda alguns manuscritos trazem a passagem em outros lugares de João e até
após Lucas 21.38.21
E ainda segundo Carson, mesmo que alguém decidisse incluir a passagem, dificilmente
poderia se afirmar que ela é autenticamente joanina, pois traz uma série de termos e expressões
inexistentes no quarto evangelho, e mais afins aos sinóticos. A sugestão do próprio Carson é fazer
18
Para um panorama da pesquisa acadêmica internacional e uma defesa a favor do quarto evangelho como uma fonte
histórica confiável cf. BLOMBERG, Craig L. João e Jesus. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R. Faces do
Novo Testamento. pp. 224-242.
19
SCHOLTISSEK, Klaus. O evangelho de João em pesquisas recentes. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R.
Faces do Novo Testamento. p. 486.
20
O título que a maioria da Bíblias dá a passagem é horrível: “a mulher adúltera”, pois salienta o pecado da mulher, e
não o perdão de Jesus, que é o objetivo da passagem. O título deveria ser: “a mulher perdoada”.
21
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.334. Os mesmos argumentos são repetidos literalmente em CARSON,
D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 196-197.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 15
como algumas versões e separar a passagem do texto.22 Não obstante, ele acredita que,
possivelmente, a passagem se refira a um acontecimento real no ministério de Jesus.23
Conforme a nota na Bíblia de Jerusalém: “Esta perícope omitida nos mais antigos
documentos … não pode ser de São João... Sua canonicidade, seu caráter inspirado e seu valor
histórico, no entanto, não sofrem alteração”.24
Outro texto bastante discutido é o capítulo 21. Aqui o problema não são os manuscritos.
Todos os manuscritos conhecidos trazem o evangelho incluindo o capítulo 21. O ponto é que 20.30-
31 é claramente um final nítido para o evangelho. T. Zahn afirma: “nenhum escrito histórico do NT
e poucas obras historiográficas da Antiguidade possuem um final tão nítido como o quarto
evangelho em João 20.30s”.25 Segundo Kümmell, a única pergunta é quem é o autor desse adendo:
o mesmo autor de 1-20 ou uma mão estranha.26 O mais plausível parece ser basear a decisão na
interpretação dos versículos 21.20-24:
Então, Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual
na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus e perguntara: Senhor, quem é o traidor? Vendo-o, pois,
Pedro perguntou a Jesus: E quanto a este? Respondeu-lhe Jesus: Se eu quero que ele permaneça até
que eu venha, que te importa? Quanto a ti, segue-me. Então, se tornou corrente entre os irmãos o
dito de que aquele discípulo não morreria. Ora, Jesus não dissera que tal discípulo não morreria,
mas: Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa? Este é o discípulo que dá
testemunho a respeito destas coisas e que as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é
verdadeiro.
22
Infelizmente nenhuma das versões em português conhecidas tomou a mesma medida ainda.
23
CARSON, D. A. O Comentário de João. p.334.
24
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000. p. 2005. Raymond Brown postula que o texto teve dificuldade de se
estabelecer por conta hesitação na Igreja antiga em perdoar o pecado do adultério. Cf. BROWN, Raymond E.
Introdução ao Novo Testamento. p. 511. O caso de João 7.53-8.11 nos coloca diante do complexo problema da relação
entre autoria, canonicidade e inspiração. O fato puro e simples de o evento ser considerado histórico não faz ele ser
inspirado (Jesus realizou milagres que não foram registrados pelos evangelhos). Ao mesmo tempo, o fato de o texto não
ser joanino não retira a sua inspiração (como vimos, nem tudo do 4º evangelho foi escrito diretamente pelo apóstolo).
Na hipótese de desconsideração do texto, note-se que nenhuma doutrina neotestamentária ou evento cristológico é
afetado. Ao mesmo tempo, as lições espirituais ensinadas pelo texto podem ser sustentadas por outros textos (entre
outras lições poderíamos citar: Jesus como aquele que oferece perdão, e também aponta para uma vida de santidade –
vai e não peques mais; aquele que não descumpre a lei, mas apresenta uma saída inovadora para os seus dilemas; aquele
que não se curva à pressão dos religiosos; aquele que se coloca ao lado dos considerados pecadores e em oposição aos
religiosos, entre outras). Dessa forma, se alguém por coerência textual, intelectual e teológica não utilizar o texto, não
estará abrindo mão de qualquer aspecto do ensino do Novo Testamento. Em contrapartida, aqueles que resolverem por
usá-lo deveriam fazê-lo com a ressalva de que sua argumentação teológica e orientação espiritual para igreja não
deveriam ser baseadas exclusivamente na perícope, mas também em outras partes da Escritura.
25
T. Zahn apud MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos escritos do Novo Testamento. São Paulo: Vida, 2010. p. 259.
Também considera um adendo MARSHALL, I. H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: 2007. p. 442. Discorda
veementemente CARSON, D. A. O Comentário de João. p. 665-668.
26
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 2ª edição. São Paulo: Paulinas, 1982. p.263. Kümmell conclui
pela opção de um redator desconhecido para o capítulo 21.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 16
2) O dito da morte pode ser interpretado de duas maneiras: ou João tinha falecido e isso provocou
questionamentos diante uma má interpretação do dito de Jesus (a palavra de Jesus teria falhado?),
ou João estava muito idoso e alguns estavam interpretando o dito de Jesus no sentido de que ele, de
fato, não morreria até a volta de Jesus. A primeira alternativa dá impressão de ser mais viável, mas
seja como for, é bem provável que alguém está tentando corrigir alguma coisa relacionada à
situação do apóstolo João.
3) O versículo 24 faz uma reivindicação da autenticidade do testemunho de João (também 19.35).
Portanto, embora seja uma questão para qual nunca haverá uma solução definitiva, a visão
de que os discípulos de João completaram a sua obra tem mais a seu favor. Certamente, eles fizeram
isso logo após a obra ter sido concluída, mas não publicada, visto que a evidência manuscrita
sempre traz o evangelho com o capítulo 21.27.
A COMUNIDADE JOANINA
“Hoje é lugar comum dizer que a escola ou comunidade círculo joanino preservou os
escritos de João a respeito de Jesus (o Evangelho de João) e também a correspondência de João
(1João; 2João; 3João)”.28 A obra “A comunidade do discípulo amado” de R. E. Brown, publicada
em 1979, foi a primeira tentativa de apresentar uma teoria completa sobre a existência de uma
comunidade em torno do apóstolo João, de onde teria surgido a maior parte do material joanino
neotestamentário. A partir de aperfeiçoamentos históricos e exegéticos, a tese atualmente é assim
apresentada (em linhas gerais):
Primeira fase: o apóstolo João planta igrejas na região de Éfeso. Uma comunidade de crentes
heterogênea, formada por judeus da diáspora e gentios que não conheciam quase nada do AT. Em
comum a fé e a lealdade em Jesus como Messias.
Segunda fase: a produção do quarto evangelho. Para uma comunidade que vivia sob a ameaça e o
preconceito judaicos, a primeira versão do evangelho de João é produzida, colecionando os
testemunhos de João, e enfatizando 1) a separação do mundo, que é hostil à igreja; 2) a união com
Deus e ação do Espírito Santo no meio de deles; 3) a unidade da igreja.
Terceira fase: a produção das cartas. As ameaças que antes eram externas, agora são internas
também. Um grupo de cristãos passou a usar elementos do quarto evangelho para se considerarem
27
Considerando que muitos estudiosos acham estranho que João chame a si mesmo de “o discípulo amado”, o que soa
um pouco pretensioso, poderia-se dar um passo adiante nessa hipótese e afirmar que todas as ocorrências dessa
expressão foram inseridas pelos mesmos discípulos que foram autores do capítulo 21.
28
BURGE, G. M. João, Cartas de. In: DTNT, p. 730.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 17
inspirados pelo Espírito e aplicar a irmãos da igreja o vocabulário que antes era reservado ao
mundo. Nessa fase, o quarto evangelho passou um processo de edição, para explicitar uma visão
contrária aos ensinos desse grupo (nesse ponto foi acrescentado o prólogo, por exemplo). A morte
de João também deve ter dado ensejo à produção do capítulo 21 e a criação do título “o discípulo
amado”. E nesse ponto, as cartas foram produzidas como respostas a esses grupos dissidentes que
distorciam o quarto evangelho.
Quarta fase: divisão. 2 e 3 João sinalizam que provavelmente a igreja joanina dividiu. O
aproveitamento do quarto evangelho por grupos gnósticos, pode indicar que alguns desses grupos
são dissidentes dessa primitiva comunidade joanina. Especialmente 1João é a tentativa de manter o
quarto evangelho alinhado à ortodoxia neotestamentária.
AS EPÍSTOLAS DE JOÃO
ESBOÇO DE 1ª JOÃO:29
1.1-4: prólogo;
1.5-2.17: a comunhão com Deus como andar na luz;
1.5-2.2;
2.3-6;
2.7-11;
2.12-14;
2.15-17;
2.18-3.24: a situação atual da igreja;
2.18-29;
3.1-3;
3.4-10;
3.11-18;
3.19-24;
4.1-5.12: a separação entre os que são da Igreja e os que são do mundo;
4.1-6;
4.7-12;
29
As grandes seções são sugeridas na obra de CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo
Testamento. p. 493-494, seguindo a sugestão de Rudolf Schnackenburg. A identificação das perícopes individuais são
fruto da avaliação pessoal do professor. 2ª e 3ª João são tão pequenas que não cabem divisão de conteúdo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 18
4.13-21;
5.1-5;
5.6-12;
5.13-21: conclusão;
5.13-20;
5.21.
AUTORIA/CANONICIDADE:
A discussão sobre a autoria das cartas joaninas passa pela relação das cartas com o quarto
evangelho. Nesse sentido, a primeira carta é unanimemente atribuída ao mesmo autor do quarto
evangelho, isto é, o apóstolo João. No que se refere a evidência externa, textos de Clemente de
Roma, da Didaquê, da Epístola de Barnabé e de Policarpo, todos do final do século I e do início do
século II, contém alusões que podem ter sido extraídas sobretudo de 1João. Irineu, no século II,
atribui explicitamente 1 e 2João ao mesmo autor do 4º evangelho. Orígenes (185-254) é o primeiro
a referir-se às três epístolas, mas ao mesmo tempo ele afirma que muitos dos seus contemporâneos
duvidavam da autenticidade de 2 e 3João. Dionísio de Alexandria (falecido em 265) discípulo de
Orígenes, afirmou que o apóstolo João escreveu o evangelho e 1João, e apenas conheceu 2 e 3João.
Orígenes (por volta de 231) e Eusébio (em cerca de 325) fizeram listas apontando o estado
da discussão sobre canonicidade dos livros do Novo Testamento. E em ambas as listas, o evangelho
e 1João aparecem como incontestáveis, enquanto 2 e 3 João eram consideradas escritos duvidosos.
Já nas listas de Atanásio (367) e dos concílios de Hipona (393) e Cartago (397), 2 e 3João
figuravam como escritos certamente canônicos. Na época da Reforma, tanto do lado católico,
quanto do protestante ressurgiram questionamentos acerca da autoria de 2 e 3João.30
Do ponto de vista interno, a relação entre o evangelho e 1João é indiscutível. Como afirma
Sief van Tilborg: “Não há quem prescinda de João para explicar 1João – nem mesmo os que
pensam que 1João foi escrito por outro autor”.31 São relações vocabulares, estilísticas e teológicas.
Já para a 2 e 3 epístolas, essa relação é mais tênue, até por causa do seu tamanho muito pequeno.
Por outro lado, é mais fácil enxergar alguma relação entre 2João e 1João, 32 e um pouco menos entre
30
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 494-499, 506.
31
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. São Paulo:
Loyola, 1999. p.179.
32
Muito forte para Sief van Tilborg. cf. THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas
de Pedro, João e Judas. p.277.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 19
3João e 1João.33
Excetuando-se algumas reconstruções históricas muito especulativas, pode-se dizer que há
duas posições principais, plausíveis histórica e textualmente. A primeira é que atribui as três cartas
ao mesmo autor do evangelho, o apóstolo João.34 A segunda é que atribui 1João e o evangelho ao
mesmo autor, e 2 e 3João ao João, chamado de “o presbítero” por Papias.35 O ponto é que
justamente na 2 e 3 cartas é assim que o autor se qualifica: 2João 1 “O presbítero à senhora
eleita...”; 3João 1 “O presbítero ao amado Gaio...”.36 Esta posição é favorecida pela aceitação lenta
e polêmica das duas cartas na Igreja antiga, bem diferente da realidade do evangelho e de 1João.
Ademais, a escolha é corroborada pela posição exegética contemporânea que fala de uma
“escola”, uma “comunidade” ou um “círculo” joanino. É um grupo que teria sido inspirado pelo
apóstolo João, mas teve vários discípulos (inclusive o presbítero João da citação de Papias), de
modo que a autoria dos cinco livros da literatura joanina seria atribuída a distintos autores desse
círculo. O círculo estava radicado em Éfeso. F. F. Bruce considera plausível essa proposta,
mostrando que já antigas tradições apontavam nessa direção.37
DATA:
Para a datação das cartas pesam sobretudo duas considerações.
1) A relação com o quarto evangelho. Os estudiosos favorecem a opinião de que as cartas são
posteriores ao evangelho.
2) A questão do conteúdo. As cartas parecem conceitualmente mais próximas da virada do século I
para o II, isto é, elas são escritas para combater problemas religiosos mais comuns nesse período,
inclusive suscitados por uma interpretação equivocada do quarto evangelho.38 É necessário ainda
lembrar que 1João está mais próxima do evangelho, e que as atestações nos pais da Igreja começam
no século II, com mais citações em favor de 1João.
Assim sendo, uma data provável para 1João seria entre 85-90 e para 2 e 3João entre 95-100.
33
Sief van Tilborg considera que esta carta está longe do restante do corpo joanino. cf. THEVISSEN, G.; KAHMANN,
J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.285.
34
Assim, CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 494-499; MARSHALL, I. H.
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: 2007. p. 457. KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. 2ª edição.
São Paulo: Paulinas, 1982. p.571-593. Cabe observar, porém, que Kümmell considera que o autor do evangelho e das
epístolas é o mesmo, mas não é João, o apóstolo. Por outro lado, ele considera possível que 2 e 3João possam vir da
autoria de João, o presbítero, citado por Papias, mas ele não julga ser capaz de decidir sobre essa citação.
35
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. p. 122, mostra vários exegetas modernos, inclusive conservadores,
avaliam que Eusébio entendeu corretamente a citação de Papias, isto é, a existência de dois Joões.
36
Quem atribuí tudo ao João filho de Zebedeu tem que explicar porque o apóstolo intitula aqui de “o presbítero”.
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 497-498 nota a dificuldade.
37
BRUCE, F. F. Pedro, Estevão, Tiago e João. Essa ideia é reforçada pela impressão que o capítulo 21 do evangelho
possa ter sido acrescentado pelos discípulos de João.
38
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 500; MAUERHOFER, E. Uma
Introdução aos escritos do Novo Testamento. p. 557.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 20
LOCAL:
Não há nenhum outro lugar tão relacionado à tradição quanto Éfeso.
CARACTERÍSTICAS:
1João não apresenta nenhum destinatário específico. Também faltam os elementos formais
das cartas gregas contemporâneas. Juntando-se a isso a dificuldade de apontar uma estrutura clara
no livro, alguns estudiosos pensam que não se trata realmente de uma carta, mas seria um manifesto
dirigido a todos os cristãos da época.39 No entanto, uma solução intermediária propõe que a carta
tenha sido encaminhada a várias congregações específicas de uma determinada região.40
Quanto ao objetivo de 1João, Sief van Tilborg assevera com muita propriedade: “na exegese
de 1Jo... dá-se muita importância à caracterização dos adversários com os quais o autor polemiza”.41
Ele afirma isso, para defender que nesta epístola “o protagonista é Jesus”. De fato, 1João é uma
carta polêmica, com objetivo de combater tendências heréticas relacionadas a um protognosticismo
ou docetismo e cerintianismo embrionários, que até mesmo influenciou um grupo de membros, a
ponto de eles terem abandonado a comunidade.42 A importante colocação de Tilborg mostra que o
conteúdo da epístola pode ser entendido tendo como foco a revelação do filho de Deus em Jesus.
2João se dirige à “senhora eleita e seus filhos”. Respeitados exegetas consideram que
realmente se trata de uma respeitável mulher com grande número de filhos, 43 mas parece ter razão
44
quem considera que aqui temos uma referência a uma comunidade cristã. Já 3João foi dirigida a
um indivíduo chamado Gaio. Quanto aos objetivos, segundo Kümmell, 2João visa combater uma
cristologia docética, enquanto 3João quer incentivar a acolhida aos pregadores itinerantes. Ela
elogia Gaio e Demétrio, e critica Diótrefes. O pequeno tamanho e os elementos formais de ambas
expressam melhor o estilo epistolar helenista.45
39
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 574-575.
40
Assim, CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 493; MARSHALL, I. H.
Teologia do Novo Testamento. p. 460.
41
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.181-183.
42
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 501-505; MARSHALL, I. H. Teologia
do Novo Testamento. p. 461.
43
Alguns nomes em THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e
Judas. p.285. Já MARSHALL, I. H. Teologia do Novo Testamento. p. 458, embora não se decida, afirma: “seria
agradável pensar que ao menos um texto do Novo Testamento tenha sido dirigido especificamente a um destinatário
feminino”.
44
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.285. Deve-se
perceber, assim, que não é uma carta dirigida à Igreja universal, conforme observa CARSON, D.A; MOO, D. J.;
MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 500.
45
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 586-590.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 21
CONTEÚDO:46
Teologia - Há uma dupla ênfase: a relação Deus e Jesus, de um lado, e a relação Deus e seu
povo do outro. Se testemunhar é se comprometer, 1João afirma que Deus se comprometeu com
Jesus.
Cristologia - 1João combate tendências docéticas. Diante dos muitos “espíritos” (pessoas
supostamente inspiradas), a encarnação é o critério da mensagem. Esse é o anticristo: quem não
confessa que Jesus veio em carne. Qualquer um pode ser um anticristo. O problema do docetismo
também está em vista em 5.6: Jesus é o Cristo tanto no batismo quanto na morte de cruz. Jesus
também é visto como “advogado” (1João 2.1).47 Ou seja, ele é nosso intercessor (aponta para o
título de Sumo Sacerdote) e ele continua em atividade.
A vida cristã - É preciso renunciar ao pecado. O pecado não pode ser a rotina de quem está
em Cristo. Destarte, o amor é a característica do comportamento cristão, tanto em relação aos
crentes, quanto aos não crentes. Nosso amor às pessoas é resposta ao amor de Deus por nós. O amor
é a essência de Deus, e assim, apenas olhando para Deus e para Jesus podemos conhecer
verdadeiramente o que é o amor.
CRÍTICA TEXTUAL
Do ponto de vista da crítica textual, o texto de 1João 5.7-8 é consensualmente considerado
um acréscimo posterior, que não fazia parte do texto original da carta. Ele é chamado de Comma
Ioaneum, e é proveniente de um comentário de Cipriano. Na Espanha, ele foi introduzido na
Vulgata e então passou a fazer parte do texto canônico.48 Entre os manuscritos gregos ele só aparece
a partir do século XI!49 No textus receptus, ele foi acrescentado por Erasmo.50
46
O que segue é o resumo do que está apresentado em MORRIS, L. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2009. p. 347-352.
47
Duas observações. Primeiramente, a expressão grega é parácletos, que vai muito além do sentido moderno de
advogado. Em segundo lugar, a expressão “junto ao Pai” não quer dizer que o Pai seja o nosso acusador, mas indica, ao
contrário, onde e com quem está o nosso parácletos: “junto ao Pai”.
48
THEVISSEN, G.; KAHMANN, J. J. A.; DEHANDSCHUTTER, B. As cartas de Pedro, João e Judas. p.267, nota
180.
49
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 505.
50
KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 578.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 22
APOCALIPSE DE JOÃO
AUTOR
Ao contrário das outras obras joaninas, Apocalipse identifica claramente o seu autor: João
(1.1, 4, 9; 22.8). Entre os pais da Igreja, no século II Justino Mártir, o cânon Muratoriano, Irineu e
Melito de Sardes reivindicavam que esse João era o apóstolo João. No século III, Clemente de
Alexandria, Tertuliano, Orígenes, Hipólito e Cipriota defenderam a mesma identificação.51 Daí para
frente a atribuição do Apocalipse a João apóstolo foi quase unânime, com exceção de uma séria
contestação.
Em meados do terceiro século, Dionísio de Alexandria (bispo desta cidade a partir de 248)52
fez uma profunda avaliação das obras atribuídas a João, e concluiu que o autor de Apocalipse não
pode ser o mesmo autor do evangelho, pelas seguintes razões:
1) O autor de apocalipse não afirma ser apóstolo, nem testemunha ocular de Jesus, nem se
denomina “o discípulo amado”, como no evangelho.
2) Os conceitos e a disposição do material em Apocalipse são completamente diferentes do
evangelho e de 1João.
3) O grego de Apocalipse é bem diferente (e inferior) do evangelho e de 1João.53 Na época,
Dionísio e outros que compartilharam sua opinião lutavam contra a doutrina do quiliasmo baseada
em Apocalipse 20.1-6, isto é, a ideia de um futuro reino milenar de Cristo na Terra. 54 Assim, muitos
estudiosos consideram que a ação de Dionísio de questionar a autoria apostólica de Apocalipse foi
influenciada pela sua objeção à doutrina quiliasta.
Não obstante, no século IV o Apocalipse foi incluído nas listas canônicas conciliares, com
exceção do concílio de Laodicéia (360). As igrejas ocidentais não mais questionaram a
canonicidade de Apocalipse a partir do século quarto. Entre as igrejas orientais isso só foi realidade
a partir do século VI.55 Na época da reforma, Lutero inicialmente teve algumas reservas ao livro. Ao
longo dos anos, ele passou a olhá-lo de forma mais positiva, mas sempre o colocou em uma lista
canônica separada, que também incluía Hebreus, Tiago e Judas.56
51
KISTEMAKER, S. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 33-37; CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L.
Introdução ao Novo Testamento. p. 520-521; KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 618-621;
MAUERHOFER, E. Uma Introdução aos escritos do Novo Testamento. p. 569-571.
52
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 77.
53
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 521.
54
Idem. É o que depois ficou conhecido como pré-milenismo.
55
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 78.
56
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 78s; KÜMMELL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. p. 620. Segundo
Kistemaker, embora Calvino não tenha escrito um comentário sobre o Apocalipse, as citações desse livro nas diversas
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 23
participar do culto. Foi a perseguição local que os que cristão sentiram, não a perseguição romana
oficial”.64
Note-se que as três cidades que possuíam cultos ao imperador estabelecidos na Ásia menor
estão entre as destinatárias das cartas às igrejas nos capítulos 2 e 3. Por conseguinte, vemos que a
luta do Apocalipse não é apenas com um imperador específico, mas contra todo um sistema
cultural, político e religioso, que o autor vai sintetizar na expressão “Babilônia”.
A data do livro, portanto, fica situada em algum momento na década de 90 d.C.65 Os
destinatários do livro são os cristãos da Ásia menor, conforme 1.4: “... às sete igrejas que se
encontram na Ásia”.66 O objetivo é incentivar os cristãos a perseverar na fé diante da pressão
cultural e religiosa, fazer uma interpretação teológica da realidade da sociedade, promover a
confiança em Jesus no presente, pois ele está no controle da história, ele é o “Soberano dos reis da
Terra” (1.5), e a esperança no futuro, porque Deus é “aquele que é, era e há de vir” (1.8).
GÊNERO
A chamada literatura apocalíptica judaica é considerada um gênero literário surgido no
século II antes de Cristo, e que perdurou até o século I da era cristã. 67 O período de surgimento é o
tempo que os judeus sentem a ausência da voz profética, e ao mesmo tempo experimentam fortes
pressões religiosas, sobretudo as perseguições e a helenização provenientes de Antíoco Epífanes.
Nesse cenário, os textos apocalípticos eram escritos para explicar o momento atual de prevalência
do mal, estimular a esperança na intervenção futura e escatológica de Deus e ainda motivar a
perseverança dos fiéis em meio às perseguições. 68
A literatura apocalíptica possui antecedentes na literatura profética do Antigo Testamento,
mas possui diferenças significativas. Entre as suas características peculiares, destacam-se:69
64
FIENSY, David A. O Império Romano e a Ásia Menor. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R. Faces do Novo
Testamento. p. 55-57.
65
Contra a data na época de Nero temos que a perseguição com ele foi localizada em Roma; o culto ao imperador não
estava disseminado e a situação das Igrejas descritas no Apocalipse se encaixa melhor no final do século 1. Uma
questão interna que poderia contribuir para a elucidação da data do Apocalipse é a interpretação de Apocalipse 17.9-10:
“... as sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais caíram cinco, um
existe, e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco”. A mulher sentada é uma referência a Roma.
Os reis seriam imperadores romanos, dos quais o sexto está no poder. Os estudiosos, porém, não entram em consenso na
identificação e contagem dos imperadores.
66
A escolha do número sete pode indicar, dentro do simbolismo do Apocalipse, que o livro tem em vista todos os
cristãos.
67
COSTA, H. M. P. A literatura apocalíptico-judaica. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1993. p. 26-27;
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 532-33.
68
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. 2ª ed. São Paulo: Vida
Nova, 1999. p.89-91.
69
Vale ressaltar com Osborne, que nenhuma obra apocalíptica atende rigorosamente a todos os critérios. Cf.
OSBORNE, Grant R. Tendências recentes no estudo do livro de Apocalipse. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant
R. Faces do Novo Testamento. p. 500.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 26
70
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. p.89-91.
71
R. H. Charles apud COSTA, H. M. P. A literatura apocalíptico-judaica. p. 36.
72
Ray Summers apud COSTA, H. M. P. A literatura apocalíptico-judaica. p. 36.
73
COSTA, H. M. P. A literatura apocalíptico-judaica. p. 37.
74
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. p.90.
75
BIRSDALL, J. N. Apocalíptica. In: DOUGLAS, J. D. (org.). O Novo Dicionário da Bíblia. p.90, chama isso de
característica “pseudo-preditiva”, mas conforme a discussão do item “pseudonímia”, não considera boa essa
terminologia.
76
CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução ao Novo Testamento. p. 533-534, considera a designação do
Apocalipse como literatura apocalíptica um pouco equivocado. Ele prefere ver no Apocalipse um misto de livro
profético e apocalíptico.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 27
MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO80
Podemos resumir os métodos de interpretação em quatro.
1) Abordagem historicista. Interpreta o livro como um roteiro da história mundial, sagrada e secular,
desde o pentecostes até o juízo final. Nessa perspectiva, o intérprete procura correlacionar símbolos
do Apocalipse com datas e eventos históricos e contemporâneos. Assim, na Idade média a besta que
emergia do mar era o Islamismo; na reforma, o anticristo era o Papa, e assim por diante. Ainda hoje
é uma visão popular entre os dispensacionalistas.
2) Abordagem preterista. Interpreta que todo o conteúdo do Apocalipse se refere a época de João.
Assim, não haveria no livro nenhuma referência ao futuro.
3) Abordagem futurista. Aqui, todo o conteúdo a partir do capítulo 4 se refere aos últimos
momentos da história, concomitantes a vinda de Cristo.
77
OSBORNE, Grant R. Tendências recentes no estudo do livro de Apocalipse. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE,
Grant R. Faces do Novo Testamento. pp. 499-505.
78
Ibidem, pp. 504 e 505.
79
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 31. Por outro lado, existem 14 citações diretas do Antigo Testamento no
Apocalipse.
80
Para o que segue, cf. KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 60-68; CARSON, D.A; MOO, D. J.; MORRIS, L. Introdução
ao Novo Testamento. p. 538-539.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 28
4) Abordagem idealista. Entende que o Apocalipse não trata de uma lista de acontecimentos, seja do
passado ou do futuro, mas de princípios teológicos que perpassam a história humana até a volta de
Cristo. É um livro que mostra para o povo de Deus a realidade espiritual que opera ao longo (e por
trás) dos eventos históricos, tanto a ação e oposição diabólicas, quanto a soberania de Deus, o
cuidado dele para com seu povo até o grande momento da volta de Jesus Cristo, com o juízo final e
os novos céu e terra.
A abordagem idealista é a opção mais equilibrada, que dá conta de forma satisfatória dos
principais aspectos do livro. No entanto, com bem observa Osborne, com exceção da abordagem
historicista, as abordagens idealistas, preteristas e futuristas podem ser combinadas.81 Em nosso
caso, mesmo tendo a posição idealista como predominante, iremos verificar que partes do texto se
referem a situações reais e concretas na época do livro, enquanto outras partes apontam para
situações somente serão reais nos eventos da parusia de Cristo. Ou seja, seguimos um ecletismo
com predominância para o idealismo.
ARRANJO DO CONTEÚDO
Não é fácil estruturar o conteúdo do Apocalipse. Propostas que enxergam uma disposição
linear, como uma narrativa onde os eventos se sucedem, não demonstram ser muito apropriadas. Do
ponto de vista literário, o livro é mais bem compreendido pelo método da recapitulação:82 ciclos e
cenas que recapitulam a mesma mensagem básica, mas sempre ampliando ideias e imagens. Junto
com a recapitulação o autor usa o método da inclusão, em que o final de uma sequência funciona
com abertura de outra, e o método de intercalação, em que uma sequência é interrompida para
introduzir uma outra cena, continuando a seguir a narrativa da sequência anterior. 83 Do ponto de
vista profético-teológico, podemos designar a compreensão do conteúdo como um “paralelismo
progressivo”.84 Dessa forma, o conteúdo do Apocalipse está disposto em ciclos que tratam dos
mesmos eventos, sendo que cada ciclo apresenta novos e diferentes aspectos dos mesmos eventos:
várias vezes o conflito entre o exército do mal e o povo de Deus; várias vezes o juízo final; várias
vezes a vinda de Cristo.
81
Osborne afirma que desde 1970 os estudos especializados do Apocalipse abandonaram o historicismo e seguem uma
abordagem eclética com as outras abordagens. Cf. OSBORNE, Grant R. Tendências recentes no estudo do livro de
Apocalipse. In: McKNIGHT, Scot; OSBORNE, Grant R. Faces do Novo Testamento. p. 515.
82
Segundo McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p.
571-572, o bispo mártir grego Vitorino de Pettau, escreveu em cerca de 300 d.C. um comentário em latim do
Apocalipse, em que pela primeira vez a noção de recapitulação foi utilizada.
83
McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 565-566.
84
KISTEMAKER, S. Apocalipse. p. 23-24.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 29
SENHOR GLORIOSO
Jesus é visto de forma gloriosa.87 Ele é visto no céu, recebendo o louvor de toda a criação.88
Ele está no controle dos acontecimentos.
Mas paradoxalmente esse Senhor glorioso é o Cordeiro: aquele que foi morto. João enfatiza
o sacrifício de Jesus.
DEUS
João mostra sua reverência para diante de Deus ao evitar descrevê-lo. Ele usa a fórmula “é
semelhante” (o(/moioj).
A questão da justiça de Deus também sobressai no Apocalipse. Os sofrimentos e
calamidades estão relacionados aos males praticados pelas pessoas.
Deus está em oposição às forças do mal, vistas de forma espiritual. A liderança pertence ao
próprio Satanás. A grande cidade da Babilônia é a metáfora da sociedade humana corrompida. E
assim, João espera o juízo de Deus sobre Satanás e sobe todos os seus seguidores.
85
O que segue é o resumo de MORRIS, L. Teologia do Novo Testamento. p. 353-359.
86
Não dá para saber porque Morris fala em “pequena igreja”. As sete igrejas dos capítulos 2-3 de Apocalipse têm a
intenção de se referir a todas as igrejas da época.
87
O livro de Apocalipse não enfatiza o tema da humanidade de Jesus.
88
Destaque para os quatro seres viventes, que parece representar todos os seres espirituais que servem a Deus, e os
vinte quatro anciãos, que deve significar todo o povo de Deus.
89
Os estudiosos de liturgia encontram no Apocalipse um rico material relativo ao culto cristão neotestamentário.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 30
ANTECEDENTES
Percebemos de antemão, que o gênero evangelho possui antecedentes no Antigo
Testamento. Com a profecia compartilha os dois níveis de ouvintes: os ouvintes do Jesus histórico e
os ouvintes (e/ou leitores) dos evangelhos escritos. Em relação a narrativa hebraica, os evangelhos
seguem o estilo de apresentar a sequência de cenas e discursos, e também assumem uma perspectiva
religiosa da história.
O GÊNERO EVANGELHO
Greidanus começa discutindo as possibilidades de interpretação desse gênero. Assim, ele
rejeita a biografia (que embora valorize o aspecto histórico, deve ser rejeitada pela comparação com
literatura biográfica helenística) e a história dramática (um gênero artificial), e fica com o
entendimento de que se trata de um gênero inédito, criado pelos próprios cristãos.
Mais importante do que a designação é a caracterização do gênero. Evangelho, então, é:
1) Proclamação (kerygma). Evangelistas, antes de escritores, são proclamadores do evangelho, que
é Jesus. Dessa forma, os objetivos dos evangelhos não são informações, mas fazer pregação.
2) Boa nova. Os evangelhos são as boas novas de salvação, o que envolve julgamento,
arrependimento, perdão, graça e reconciliação com Deus.
3) Centralizados em Jesus e no Reino. Os evangelhos falam de Jesus, e Jesus falou do Reino de
Deus.
4) História kerygmática Escrita. Os evangelhos descrevem eventos históricos reais, nos quais Deus
manifestou a salvação em Jesus.
Características:
Relatos pós-ressurreição – obviamente os evangelhos são textos escritos pela Igreja sob o
impacto da ressurreição de Jesus. Foi este evento que impulsionou a coleção de histórias ligadas a
90
Resumo baseado principalmente em GREIDANUS, S. O pregador contemporâneo e o texto antigo. São
Paulo: Cultura Crista, 2006. p. 317-369, mas também com considerações a partir de GOLDSWORTHY, Graeme.
Pregando toda a Bíblia como Escritura Cristã. São Bernardo do Campo: Fiel, 2012.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 31
Jesus, primeiro oralmente, e depois de forma escrita, pelos evangelhos atuais. Muitos críticos,
porém, alegam que o fato de os evangelhos serem pós-pascais, implica que eles inventaram histórias
sobre Jesus para justificar a sua fé. Porém, essa desconfiança é gratuita, e certamente não passaria
desapercebido da audiência contemporânea. Não obstante, pode-se sim dizer que a narrativa
histórica dos evangelistas foi influenciada e colorida pela fé pascal, mas não inventada.
Foco kerygmático do material – por fim, Greidanus lembra que todos os procedimentos
citados acima visavam, em última análise, uma efetiva proclamação do evangelho para uma
audiência específica.
Critérios para historicidade – alguns estudiosos estabeleceram critérios diversos para separar
o que e historicamente verídico de supostas criações dos evangelistas (ou da Igreja posterior). No
entanto, a própria discussão sobre critérios já insinua uma posição de desconfiança para com os
textos. Retirando-se este pressuposto, todas as evidências apontam para a historicidade dos
evangelhos.
91
GREIDANUS, S. O pregador contemporâneo e o texto antigo. p. 328.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 33
evangelho e tradicionalmente dividido em duas partes: O livro dos sinais, capítulos 1-12, e o livro
da Paixão, capítulos 13-20/21,92 tendo 13.1 como eixo divisor.
CARACTERÍSTICAS NARRATIVAS
Cena – muitas narrativas nos evangelhos são estruturadas em sequência de cenas. Algumas
cenas apresentam um quadro completo, e devem apenas ser comparadas com outras cenas que
apresentam quadros semelhantes. Outras cenas estão conectadas umas com as outras, e o intérprete
deve perceber qual relação o autor tencionou nesta sequência.
Diálogo – os diálogos são conversas entre dois personagens, em que as vezes um deles ou
até os dois, representam grupos maiores, inclusive o próprio leitor. É um recurso muito importante
em João (por exemplo, o diálogo de Jesus com a mulher samaritana, de Jesus com Nicodemus, dos
judeus com o cego de nascença que foi curado).
92
Como é possível que o capítulo 21 tenha sido acrescentado após a conclusão do evangelho, podemos ver nele uma
espécie de epílogo, em conexão com o prólogo de 1.1-18.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 34
distinguir entre a situação histórica dos personagens, e suas respectivas posições, da visão do
narrador. Exemplos: separar as posições de Jesus das posições dos evangelistas. O problema é que
só temos acesso aos personagens através dos narradores.
ESTRUTURAS RETÓRICAS
Repetição – instrumento pelo qual são repetidas palavras, frases, cenas e até discursos, com
intuito de enfatizar uma posição teológica, e/ou delinear uma estrutura literária maior.
Inclusão – são repetições como as citadas acima, mas que servem para marcar o início e o
fim de uma unidade textual, seja uma perícope, uma seção maior de várias passagens ou até mesmo
um livro inteiro. Podem ser encontradas, por exemplo, no início e no fim de Mateus (1.23/28.20) ou
na perícope de João 21.1-14.93
Paralelismo – recurso literário por excelência na literatura judaica, também aparece nos
evangelhos. São importantes pois a explicação do texto não aparece nas linhas isoladas, mas nas
linhas paralelas. Podem ser, como no Antigo Testamento, sinonímicos, antitético ou, mais
raramente, sintético.
93
Usamos essa inclusão para delimitar a perícope trabalhada acima.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 35
fenômeno também pode ser percebido na transformação da água em vinho, no ensino de Jesus de
comer a sua carne e seu sangue, entre outros.94
Ironia – novamente temos um recurso muito utilizado em João. Geralmente a ironia só existe
no nível narrativo, isto e, só faz sentido dentro do texto e após fato. Assim, João leva seus leitores a
perceber que, ironicamente, os adversários de Jesus falam verdades sobre ele, mesmo quando estão
atacando-o e criticando-o. Um tipo de ironia, com um toque de bom humor, aparece na conversa
entre o cego curado e os fariseus (João 9.24-33 – João “fala” através do cego).
Passivo divino – e a utilização da voz passiva do verbo quando Deus e o sujeito da ação, e
assim evita-se o uso nome de Deus. Segundo Ralph Martin, citado por Greidanus, este recurso se
tornou predominante na literatura apocalíptica e foi usado amplamente por Jesus (o que demonstra
uma influência daquela literatura sobre Jesus). A função do intérprete é explicitar o sujeito.
Escolha do texto
Quanto a escolha de um texto para pregação nos evangelhos, a regra principal é que o texto
seja uma unidade. Como toda a perícope forma uma unidade, quem escolhe uma perícope não erra.
No entanto, considerando que a análise literária revela que uma perícope pode ser parte de uma
estrutura literária maior, ou, por outro lado, que uma perícope pode ser formada ou estruturada por
várias partes literárias, um sermão pode se utilizar de várias perícopes (desde que estejam
interligadas em uma mesma estrutura), ou de alguns versos de uma perícope. É preciso lembrar que
as opções precisam ser justificadas literariamente, e que as unidades precisam ser interpretadas à luz
do seu contexto. Não é de forma alguma recomendável (do ponto de vista exegético) o sermão
baseado em versos ou perícopes avulsas de um ou vários evangelhos, selecionados apenas pelo
gosto do pregador.
94
Kermode indica, por exemplo, que os milagres em João possuem sentidos diferentes para “os de dentro” e os “de
fora”, ou seja, para a comunidade crente o milagre possui um significado teológico maior do que simples demonstração
de poder ou fazer algo maravilhoso. KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia
Literário da Bíblia. p. 482.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 36
Interpretação literária
Contexto literário – não se entende um texto a parte do seu contexto. Eles não devem ser
ignorados na interpretação e na pregação.
a nossa reconstrução da vida de Jesus que é inspirada, mas aquilo que os autores escreveram sobre a
vida de Jesus.
História do Reino universal – os pregadores devem entender que o seu texto não é um ponto
isolado no tempo, mas está conectado com a totalidade da história da salvação, que começa no Éden
e vai até a parousia, passando pelo hoje, que é a situação do pregador.
Goldsworthy chama nossa atenção para o fato de que mesmo pregando nos evangelhos não
podemos perder de vista a perspectiva da história da salvação. Destacamos duas recomendações.
Primeiro, a vinculação da passagem evangélica com o Antigo Testamento e com o futuro da história
da salvação. Exemplo: a relação da promessa do Espírito Santo feita por Jesus com a dos profetas
do AT; a perspectiva escatológica das bem-aventuranças. Segundo, a percepção da existência de
diferentes etapas da história da salvação dentro dos evangelhos, sobretudo: João Batista; ministério
de Jesus até a ressurreição; ressurreição e pentecostes; tempo de testemunho da Igreja.95 Ou, em um
arranjo mais próximo das sugestões de Cullmann: a sobreposição entre a chegada da nova aliança e
o fim da antiga aliança (de João Batista até a cruz) e os eventos da cruz, ressurreição, ascensão e
pentecostes entendidos como “o meio do tempo” separados do período do Antigo Testamento e dos
últimos tempos vividos atualmente.96
Interpretação teológica
95
Essa estrutura ajuda, por exemplo, a distinguir o batismo de João Batista do batismo cristão. Goldsworthy destaca a
diferença como Jesus lidava com seus contemporâneos (fisicamente) e como lida conosco hoje (pela Palavra e pelo
Espírito Santo).
96
Isso ajuda a compreender que os capítulos iniciais do livro de Atos tratam de um período de transição entre tempos.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 38
cristocêntrica, se não conectarmos os milagres, ensinamentos e outros eventos da vida de Jesus com
a sua obra na cruz em perspectiva histórico-salvífica.97
Formulação do tema
A primeira tarefa do intérprete é definir o tema do texto. Ele deve ser formulado através de
uma declaração simples e direta, com sujeito e predicado, que expresse a intenção do autor em
escrever aquela perícope.
Após o tema do texto, passa-se ao tema da pregação, que pode ser idêntico ao texto, ou
sofrer ajustes, tendo em vista o desenvolvimento da história da Salvação e o escopo inteiro da
revelação (por exemplo, um texto em que Jesus se refere ao Espírito Santo precisa ser interligado
com Atos 2), bem como as realidades da sociedade contemporânea, isto e, quais são as perguntas de
hoje, que esse texto pode responder? Quais as perguntas o seu autor original quis que ele
respondesse? Qual a relação entre aquelas e as nossas perguntas de hoje?
Forma do sermão
De acordo com Greidanus, a forma do sermão deve refletir a forma do texto. Assim, a
melhor forma de pregar uma narrativa é fazer uma narrativa que siga o desenvolvimento do texto
(não recriar uma outra sequência), e ter como clímax da mensagem o clímax do texto. No caso dos
discursos incluídos no evangelho, a ordem recomendada também é aquela do texto. Nesse caso é
preciso levar em consideração a formulação literária e retórica da passagem, identificá-la e usá-la na
exposição do texto na pregação.98
Relevância do sermão
Certamente não existe lugar na Bíblia onde a relevância de pregar se mostre do que nos
Evangelhos. Neles estamos em contato direto com a vida e a obra de Jesus. Mas mesmo aqui, a
relevância da perícope não pode ser inventada pelo pregador. O único controle histórico confiável é
perguntar pela intenção do autor. Os evangelhos serão relevantes para Igreja de hoje na medida em
que descobrirmos a relevância que tinham para os seus autores e primeiros leitores.
97
Um caso a pensar: qual é o sentido da parábola do bom samaritano?
98
O capítulo sete da obra de Greidanus é dedicado totalmente a este ponto. Vale a pena conferir!
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 39
EXERCÍCIO EXEGÉTICO
Esta perícope foi escolhida por uma razão pastoral. A passagem apresenta o drama da
restauração de Pedro, que como discípulo fracassou ao negar Jesus, mas é o próprio Cristo quem
realiza a sua restauração. O tema é recorrente no cotidiano pastoral: pessoas que fracassaram na sua
fé e precisam de restauração. E justamente o papel que Pedro já exercia entre os apóstolos aproxima
o texto de uma realidade ainda mais desafiadora para as igrejas: como lidar com os líderes que
erraram? Sendo que o texto não apenas oferece uma forma da igreja olhar para esta situação, como
dá pistas aos próprios líderes, isto é, como eu devo encarar a realidade do meu próprio pecado? Será
que é possível a restauração? Em quê condições? São perguntas que o texto ajuda a responder,
oferecendo um subsídio exegético para a construção de uma abordagem pastoral. E considerando
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 40
que a exegese em questão servirá para análise entre estudantes de teologia, entre os quais muitos
miram o ministério pastoral, a proposta é mais do que pertinente.
2. Delimitação:
O texto foi assim delimitado porque nesses versículos temos um diálogo entre Jesus e Pedro
em torno da relação de Pedro com Jesus. Os versículos 1-14 constituem uma unidade baseada da
manifestação do Jesus ressurreto aos discípulos. O verbo φανερόω (manifestar-se) marca o início e o
fim da seção (vs. 1 e 14). Este artifício é chamado na exegese de inclusio.
A partir do vs. 20, embora Jesus e Pedro continuem a conversar, e no vs. 22 Jesus repita a
ordem para Pedro segui-lo (dada primeiro no vs. 19), o eixo da conversa passa de Pedro para o
discípulo que Jesus amava. Claramente, o foco narrativo muda para este discípulo. O narrador faz a
transição no versículo 19 quando interpreta o dito de Jesus como se referindo ao tipo de morte que
Pedro, para então discutir a morte do discípulo amado.99
3. Texto grego:
Ὅτε οὖν ἠρίστησαν λέγει τῷ Σίμωνι Πέτρῳ ὁ Ἰησοῦς· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με πλέον
τούτων; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ· βόσκε τὰ ἀρνία μου. 16 λέγει
αὐτῷ πάλιν δεύτερον· Σίμων Ἰωάννου, ἀγαπᾷς με; λέγει αὐτῷ· ναὶ κύριε, σὺ οἶδας ὅτι φιλῶ σε.
λέγει αὐτῷ· ποίμαινε τὰ πρόβατά μου. 17 λέγει αὐτῷ τὸ τρίτον· Σίμων Ἰωάννου, φιλεῖς με; ἐλυπήθη
ὁ Πέτρος ὅτι εἶπεν αὐτῷ τὸ τρίτον· φιλεῖς με; καὶ λέγει αὐτῷ· κύριε, πάντα σὺ οἶδας, σὺ γινώσκεις
ὅτι φιλῶ σε. λέγει αὐτῷ [ὁ Ἰησοῦς]· βόσκε τὰ πρόβατά μου. 18 ἀμὴν ἀμὴν λέγω σοι, ὅτε ἦς
νεώτερος, ἐζώννυες σεαυτὸν καὶ περιεπάτεις ὅπου ἤθελες· ὅταν δὲ γηράσῃς, ἐκτενεῖς τὰς χεῖράς
σου, καὶ ἄλλος σε ζώσει καὶ οἴσει ὅπου οὐ θέλεις. 19 τοῦτο δὲ εἶπεν σημαίνων ποίῳ θανάτῳ δοξάσει
τὸν θεόν. καὶ τοῦτο εἰπὼν λέγει αὐτῷ· ἀκολούθει μοι.
4. Análise gramatical:
Versículo 15:
Ὅτε – conjunção subordinada: depois.
99
A favor desta delimitação R. Schnackenburg. cf. CARSON, D. A. O Comentário de João. p. 675. Não obstante, o
próprio Carson delimita a perícope entre os vs. 15-34. Entre as traduções bíblicas brasileiras, a Edição Pastoral faz a
delimitação entre os vs. 15-19. cf. Novo Testamento Edição Pastoral. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1986. A ARA delimita
os versos 15-23, a NVI delimita entre 15-25. Nas edições em grego, tanto o Novo Testamento Grego, quanto o texto da
27ª edição de Nestle-Aland dividem a perícope em 15-19. cf. ALAND, B.; ALAND; K.; et alli. O Novo Testamento
Grego. 4ª ed. Stuttgart: Deutsch Bibelgesellschaft; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009; NESTLE, E.; NESTLE,
E. et alli. Novum Testamentum Graece. 27ª ed. Stuttgart: Deutsch Bibelgesellschaft, 1993.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 41
Tradução: Quando, pois, tomaram a refeição da manhã, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, [filho]
de João, amas-me mais do que estes? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe:
Alimenta os meus cordeiros.
Versículo 16:
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
πάλιν – advérbio: novamente.
δεύτερον – advérbio: segunda vez.
Σίμων – substantivo no vocativo masculino singular: Simão.
Ἰωάννου – substantivo no genitivo masculino singular: de João.
ἀγαπᾷς - verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de ἀγαπάω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
ναὶ - partícula afirmativa: sim, com certeza.
κύριε – substantivo no vocativo masculino singular: Senhor.
σὺ - pronome pessoal 2ª p. no nominativo singular: tu.
οἶδας – verbo no indicativo perfeito ativo 2ª p. do singular de οἶδα: soubeste, sabes.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
100
HAUBECK, W.; VON SIEBENTHAL, H. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. p. 1443.
101
HAUBECK, W.; VON SIEBENTHAL, H. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. p. 665.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 42
Tradução: Disse-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-me? Disse-lhe: Sim,
Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: pastoreia as minhas ovelhas.
Versículo 17:
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
τὸ τρίτον – artigo + adjetivo (ordinal) no acusativo neutro singular: pela terceira vez ou na terceira
vez.
Σίμων – substantivo no vocativo masculino singular: Simão.
Ἰωάννου – substantivo no genitivo masculino singular: de João.
φιλεῖς – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de φιλέω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
ἐλυπήθη – verbo no indicativo aoristo passivo 3ª p. do singular de λυπέω: entristeceu-se.
ὁ Πέτρος – artigo + substantivo no nominativo masculino singular: Pedro.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
εἶπεν – verbo no indicativo aoristo ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
τὸ τρίτον - – artigo + adjetivo (ordinal) no acusativo neutro singular: pela terceira vez ou na terceira
vez.
φιλεῖς - verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de φιλέω: amas.
με - pronome pessoal 1ª p. no acusativo singular: me, mim.
καὶ - conjunção coordenada: e.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
κύριε – substantivo no vocativo masculino singular: Senhor.
πάντα – adjetivo indefinido no acusativo neutro plural: todas as coisas, tudo.
σὺ - pronome pessoal 2ª p. no nominativo singular: tu.
οἶδας – verbo no indicativo perfeito ativo 2ª p. do singular de οἶδα: soubestes, sabes.
σὺ - pronome pessoal 2ª p. no nominativo singular: tu.
γινώσκεις – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de γινώσκω: conheces.
ὅτι – conjunção subordinada: que.
φιλῶ - verbo no indicativo presente ativo 1ª p. do singular de φιλέω: amo.
σε – pronome pessoal 2ª p. no acusativo singular: te.
λέγει - verbo no indicativo presente ativo 3ª p. do singular de λέγω: disse.
αὐτῷ - pronome pessoal 3ª p. no dativo masculino singular: ele.
[ὁ Ἰησοῦς] – artigo + substantivo no nominativo masculino singular: Jesus.
βόσκε – verbo no imperativo presente ativo 2ª p. do singular de βόσκω: alimenta, apascenta.
τὰ πρόβατά - artigo + substantivo no acusativo neutro plural: as ovelhas.
μου – pronome pessoal 1ª p. no genitivo singular: minha.
Tradução: Disse-lhe a terceira vez: Simão, de João, amas-me? Entristeceu-se Pedro porque disse-
lhe pela terceira vez: amas-me? E respondeu-lhe: Senhor, todas as coisas tu sabes, tu conheces que
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 43
Versículo 18:
ἀμὴν ἀμὴν – partícula asseverativa: em verdade, em verdade, verdadeiramente.
λέγω – verbo no indicativo presente ativo 1ª p. do singular: falo, digo.
σοι – pronome pessoal 2ª p. no dativo singular: te, a ti.
ὅτε – partícula temporal (conjunção): quando.
ἦς – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. do singular de εἰμί: eras.
νεώτερος – adjetivo (comparativo) no nominativo masculino singular: mais jovem.
ἐζώννυες – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. do singular de ζωννύω: aprontavas.
σεαυτὸν – pronome reflexivo 2ª p. no acusativo masculino singular: a ti mesmo.
καὶ - conjunção coordenada: e, também.
περιεπάτεις – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. singular de περιπατέω: andavas.
ὅπου – conjunção subordinada: onde.
ἤθελες – verbo no indicativo imperfeito ativo 2ª p. singular de θέλω: desejavas.
ὅταν – conjunção subordinada temporal: quando.
δὲ - conjunção coordenada adversativa: mas, porém.
γηράσῃς – verbo no subjuntivo aoristo ativo 2ª p. singular de γηράσκω: envelheceres.
ἐκτενεῖς – verbo no indicativo futuro ativo 2ª p. singular de ἐκτείνω: estenderás.
τὰς χεῖράς – artigo + substantivo no acusativo feminino plural: as mãos.
σου – pronome pessoal 2ª p. no genitivo singular: tua.
καὶ - conjunção coordenada: e, também.
ἄλλος – adjetivo indefinido no nominativo masculino singular: outro.
σε – pronome pessoal 2ª p. no acusativo singular: te.
ζώσει – verbo no indicativo futuro ativo 3ª p. do singular: aprontará.
καὶ - conjunção coordenada: e.
οἴσει – verbo no indicativo futuro ativo 3ª p. do singular de φέρω: conduzirá.
ὅπου – conjunção subordinada: para onde.
οὐ - advérbio de negação: não.
θέλεις – verbo no indicativo presente ativo 2ª p. do singular de θέλω: desejas.
Tradução: Em verdade, em verdade, te digo, quando eras mais jovem aprontavas a ti mesmo e
andavas onde desejavas; quando, porém, [te] envelheceres, estenderás as tuas mãos, e outro te
aprontará e [o] conduzirá para onde não desejas.
Versículo 19:
Tradução: Isto, porém, disse indicando que tipo de morte [ele] glorificará Deus. E, tendo dito isto,
disse-lhe: Segue-me.
5. Tradução literal:
15
Quando, pois, tomaram a refeição da manhã, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, [filho] de
João, amas-me mais do que estes? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Alimenta
os meus cordeiros. 16Disse-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-me? Disse-
lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: pastoreia as minhas ovelhas. 17Disse-lhe a
terceira vez: Simão, de João, amas-me? Entristeceu-se Pedro porque disse-lhe pela terceira vez:
amas-me? E respondeu-lhe: Senhor, todas as coisas tu sabes, tu conheces que te amo. Disse-lhe
Jesus: Alimenta os meus cordeiros. 18Em verdade, em verdade, te digo, quando eras mais jovem
aprontavas a ti mesmo e andavas onde desejavas; quando, porém, [te] envelheceres, estenderás as
tuas mãos, e outro te aprontará e [o] conduzirá para onde não desejas. 19Isto, porém, disse indicando
que tipo de morte [ele] glorificará Deus. E, tendo dito isto, disse-lhe: Segue-me.
6. Comparação de versões:
lhe Jesus: Jesus lhe disse: lhe disse: sabes que te Jesus disse:
Alimenta os Apascenta as “Apascenta as amo”. Disse- “Cuide das
meus minhas minhas lhe Jesus: minhas
cordeiros. ovelhas. ovelhas. “Cuide das ovelhas.
minhas
ovelhas.
vs. 18 Em verdade, Em verdade, Em verdade, Digo-lhe a Eu garanto a
em verdade, te em verdade te em verdade, te verdade: você: quando
digo, quando digo que, digo: quando Quando você você era mais
eras mais quando eras eras jovem, tu era mais moço, você
jovem mais moço, tu te cingias e jovem, vestia- colocava o
aprontavas a ti te cingias a ti andavas por se e ia para cinto e ia para
mesmo e mesmo e onde querias; onde queria; onde queria.
andavas onde andavas por quando fores mas quando for Quando você
desejavas; onde querias; velho, velho, ficar mais
quando, quando, porém, estenderás as estenderá as velho,
porém, [te] fores velho, mãos e outro te mãos e outra estenderá as
envelheceres, estenderás as cingirá e te pessoa o suas mãos, e
estenderás as mãos, e outro conduzirá vestirá e o outro colocará
tuas mãos, e te cingirá e te aonde não levará para o cinto em
outro te levará para queres”. onde você não você e o levará
aprontará e [o] onde não deseja ir”. para onde você
conduzirá para queres. não quer ir”.
onde não
desejas.
19
vs. 19 Isto, porém, Disse isto para Disse isso para Jesus disse isso Jesus falou isso
disse indicando significar com indicar com para indicar o aludindo ao
que tipo de que gênero de que espécie de tipo de morte tipo de morte
morte [ele] morte Pedro morte Pedro com a qual com que Pedro
glorificará havia de daria glória a Pedro iria iria glorificar a
Deus. E, tendo glorificar a Deus. Tendo glorificar a Deus. E Jesus
dito isto, disse- Deus. Depois falado assim, Deus. E então acrescentou:
lhe: Segue-me. de assim falar, disse-lhe: lhe “Siga-me”.
acrescentou- “Segue-me”. disse: “Siga-
lhe: Segue-me. me!”
Como se percebe acima, nenhuma das traduções analisadas compromete o sentido original
do texto grego. Ainda assim, pode-se anotar as seguintes observações:
vs. 15: A expressão “refeição da manhã” aparece na tradução literal para explicitar a ideia do
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 47
verbo ἀριστάω, que traz esse sentido (também pode ser “desjejum”).
vs. 15: Na expressão “Simão, filho de João”, o termo “filho de” é deduzido da utilização do
genitivo, não existe literalmente no grego.
vs. 15: A ARA e a BJ traduzem o verbo βόσκω por “apascentar”, enquanto a NVI e a EP por
“cuidar”. Todas as traduções estão relacionadas ao sentido do verbo grego, mas parece que a ideia
principal do verbo é a de alimentação,102 sendo assim utilizado na LXX.103
vs. 16: A BJ traduz ποιμαίνω por “apascentar”, que embora seja uma tradução possível, não
explicita a mudança de verbo ocorrida no grego em relação ao versículo 15 e 17, onde aparece o
verbo βόσκω (que ela também traduz por “apascentar”). Por outro lado, na BJ, assim como nas
demais versões, inclusive na tradução literal, os verbos diferentes ἀγαπάω e φιλέω são traduzidos
“amar” pois são considerados sinônimos em grego, e não existir em português um sinônimo real
para “amar”.
vs. 17: Aqui aparece outra utilização de verbos de forma sinônima: οἶδα e γινώσκω. Como
parece não haver no texto nenhuma distinção explícita, não há dificuldades na opção da ARA, da BJ
e da NVI. A EP seguiu a opção da tradução literal, e tentou fazer uma distinção.
vs. 18: Neste versículo aparece o verbo ζωννύω. A ARA e a BJ traduzem por “cingir”. A NVI
opta por “vestir”, enquanto que a EP utiliza “colocar o cinto”. Todas as opções são possíveis, mas
parece que o sentido da afirmação de Jesus é mais amplo do que simplesmente colocar uma roupa.
Não obstante, “cingir” dá impressão de ser rebuscada demais.
vs. 18: Aqui também ocorre, no início da fala de Jesus, um duplo ἀμήν, que ARA e BJ
traduzem por “em verdade, em verdade”. Já a NVI optou por “Digo a verdade”, enquanto que a EP
usou “Eu garanto”. Ou seja, as primeiras foram mais literais, e outras interpretativas, mas sem
comprometer o sentido.
Conclusão: o último comentário já dá o tom das diferenças entre as traduções. Todas
102
cf. LOUW, J. P.; NIDA, E. A (editores). Greek-English Lexicon of the New Testament Based on Semantic Domains.
2ª New York: United Bible Societies, 1988.
103
KÖSTENBERGER, Andreas J. João. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (orgs.). Comentário do uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento. p. 633.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 48
preservam o sentido, mas a ARA e a BJ esforçam-se para uma correspondência mais literal com o
grego, enquanto que a NVI e a EP mostram preocupação em ter uma linguagem mais compreensível
ao leitor moderno.
8. Crítica textual:104
Versículo 15-17: o termo ’Iwa/nnou é substituído por Iwna (substantivo próprio no genitivo
masculino singular de Ἰωνᾶς) nos seguintes manuscritos: os unciais A, C² (uncial que passou por
revisão por um grupo de corretores por volta do século 6), K, N, G, D, Q, Y; os minúsculos das
famílias f¹ e f¹³ e os 33, 565, 700, 892, 1241, 1424, M (a maioria dos manuscritos bizantinos); o
manuscrito da antiga Latina c (em uma versão que possui pequena variação em relação ao texto que
ela apoia); toda a tradição da versão Siríaca. O aparato também informa que o termo ’Iwa/nnou é
omitido na leitura original do uncial sinaítico ()א. Apoiam o texto como está (com a inclusão de
’Iwa/nnou): os unciais a (em correção feita pelo primeiro grupo de corretores), B, C (em leitura
original de um manuscrito que sofreu correções), D, L, W; lecionário 844; todas a versões coptas
disponíveis, a Vulgata e boa parte dos manuscritos da antiga versão latina.
A adoção da variante levaria o texto ser traduzido da seguinte forma: “Simão [filho de]
Jonas...”. O observar que a mesma substituição é feita nos versículos 16 e 17 da seguinte forma. No
16 a distribuição das variantes é idêntica, com a única alteração no lecionário 844 que testemunha
em favor de Iwna. No versículo 17, além do lecionário supra, Orígenes também é testemunho em
favor da alteração, enquanto o P59 (em leitura determinada por probabilidade) é adicionado aos
manuscritos anteriores em favor de ’Iwa/nnou.
Na perspectiva dos tipos de texto encontramos melhor testemunho do texto alexandrino em
favor de ’Iwa/nnou (a [nos versos 16 e 17], B, C, L W, versão copta). O Novo Testamento Grego4
classifica ’Iwa/nnou como {B}, isto é, “é quase certo que esse é o texto”. Omanson indica que a
alteração foi introduzida na tradição sob a influência da informação de Mateus 16.17, onde se diz lê:
“Simão, filho de Jonas”, explicando assim a origem da variante.105
104
O objetivo aqui é apenas apresentar uma amostra. Assim, não se fará a análise crítica de todo o texto.
105
OMANSON, Roger. As variantes textuais do Novo Testamento Grego. p. 213.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 49
106
PERKINS, Pheme. Evangelho Segundo João. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY,
Roland E. (editores). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. p. 738. Esses
“grupos cristãos” poderiam ser comunidades que se separaram da comunidade joanina. É possível que a importância
dada a Pedro no Evangelho de João tenha como intenção manter a comunidade joanina alinhada aos demais cristãos e
igrejas apostólicas, ao mesmo tempo que se distanciando dos grupos cismáticos.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 50
promover a fé em Jesus, e por intermédio desta ter vida em seu nome. Ele mostra o viés pelo qual o
capítulo 21, e aliás, todo o livro deve ser lido.
O verbo ἀγαπάω ocorre 143x no Novo Testamento, enquanto que o substantivo a)ga/ph possui
107
KÖSTENBERGER, Andreas J. João. In: BEALE, G. K.; CARSON, D. A. (orgs.). Comentário do uso do Antigo
Testamento no Novo Testamento. p. 633.
108
O que segue é o resumo de GUNTHER, W.; LINK, H. G.; BROWN, C. “amor”. In: COENEN, L.; BROWN, C.
Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2004. p.113-125.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 51
116 ocorrências. Ambos estão distribuídos de forma uniforme por toda a literatura neotestamentária,
com duas exceções: o verbo e o substantivo estão completamente ausentes do livro de Atos, e por
outro lado, há uma concentração dos dois na literatura joanina, especialmente nas epístolas de João,
de modo que o verbo ocorre 71x (sendo 31x apenas nas epístolas) e o substantivo 31x (sendo 22x
somente nas epístolas), isto é, 40% do vocabulário relacionado à a)ga/ph está no Novo Testamento
está em João.109
O mesmo resultado encontramos na avaliação de φιλέω. São 25 ocorrências deste verbo no
Novo Testamento, e destas, 13 estão no quarto evangelho e duas em Apocalipse.110
ἀγαπάω - No grego extra bíblico haviam várias palavras para amor. O Novo Testamento,
porém, somente fez uso das duas palavras que ocorrem nesse texto: ἀγαπάω e φιλέω. A primeira é a
que ocorre mais vezes. Curiosamente era uma palavra sem relevância no idioma grego antes do uso
bíblico. Na LXX (Septuaginta) frequentemente ἀγαπάω traduz o hebraico 'aheb, denotando tanto o
relacionamento entre seres humanos, quanto o relacionamento entre as pessoas e Deus. No primeiro
nível de relacionamento, pode naturalmente ser aplicada ao relacionamento sexual. Não existe uma
palavra equivalente a eros no Antigo Testamento. No relacionamento entre Deus e os homens a
palavra “amor” é usada com cautela, a fim de evitar os equívocos gregos, isto é, tanto o misticismo
exacerbado, quanto a noção de uma amor humano para com Deus, a parte de uma iniciativa de Deus
anterior. Ao longo do Antigo Testamento, o amor de Deus é descrito em uma série de ações divinas:
a criação, a eleição, as promessas, o Êxodo, entre outros, sempre tendo vista o seu povo. Assim, por
trás dessa fidelidade ao povo está o amor de Deus. Esse amor fiel de Deus ganha contornos
dramáticos em Oséias. O profeta permanece casado com uma mulher adúltera, da mesma forma que
YHWH continua fiel ao seu povo, apesar deles eles praticarem a idolatria (adultério religioso). Em
Oséias o amor de Deus é demonstrando de forma apaixonado. Essa abordagem também vai aparecer
em outros profetas. Já em Deuteronômio sobressai o tema da obediência aos mandamentos e da
dedicação ao próximo como a resposta esperada ao amor de Deus. No judaísmo helenístico ἀγαπάω
ficou sendo o conceito central para o relacionamento entre Deus e os seres humanos, e vice-versa. O
amor ao próximo era visto como fundamental para os judeus. Em Qumran o quadro era bem
diferente. Deus ama os integrantes da comunidade, e odeia todos que não fazem parte dela. E essa
era a atitude esperada dos membros comunidade: amar os eleitos de Deus, e odiar os que que Deus
odeia.
109
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
Fiel, 1994.
110
Encontra-se apenas uma ocorrência do substantivo relacionado à φιλέω no Novo Testamento. O termo fili/a só
aparece em Tiago 4.4.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 52
Φιλέω - No grego clássico, desde Homero a palavra é utilizada como amor, afeição, amizade
e sentidos afins. Como visto acima, a LXX privilegia o uso de ἀγαπάω, mas também utiliza φιλέω,
embora o hebraico tenha apenas uma única palavra para amor: ‘aheb. No Novo Testamento, é João
quem mais utiliza o verbo (13x). Os substantivos fi/lh e fi/loj são usados para amigos e para
irmãos da mesma fé. Não encontramos usos especiais do verbo Φ nos escritos neotestamentários,
além do significado básico de gostar, sentir afeição ou mesmo amar, sem distinções claras em
relação à ἀγαπάω. No caso dos substantivos, é interessante que tanto em ambientes judaicos, quanto
gregos, não se distingue claramente entre “amigos” e “parentes”, e geralmente, estes estavam
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 53
incluídos entre os primeiros. Já o φίλημα (beijo), era uma saudação comum de cortesia entre os
judeus, inclusive entre os rabinos. Foi desta natureza o beijo de Judas em Jesus. Assim, as
congregações primitivas incluíram nas suas celebrações o φίλημα ἅγιος: o ósculo santo.
Pastorear (ποιμαίνω)111
O verbo ποιμαίνω ocorre 11x no Novo Testamento, e no quarto evangelho apenas nesta
passagem. É peculiar o uso do verbo no livro de Apocalipse, em que 3x o verbo é aplicado à ação de
Jesus sobre os seres humanos. Não obstante, o substantivo poimh/n que aparece 18x no Novo
Testamento, é usado no Evangelho segundo João 6x, todas referindo-se a Jesus.112
Entre os gregos e no Antigo Oriente em geral, pastor tanto designava o trabalho de cuidar de
animais, quanto era aplicado às funções de liderança política, militar e religiosa. Até mesmo
divindades eram designadas assim. Platão fala do pastor humano como cópia do divino pastor. No
período patriarcal, o pastoreio de ovelhas, cabras e gado fazia parte das famílias nômades.
Esperava-se que os pastores se dedicassem ao seu rebanho, provendo água, descanso e proteção
contra inimigos. Após a ocupação de Canaã, a pecuária continuou sendo algo importante nas
atividades econômicas de Israel. Teologicamente, perpassa no Antigo Testamento a ideia de YHWH
como único pastor de Israel, e ao mesmo tempo, de Israel como rebanho de YHWH, ressaltando sua
soberania e seu amor espontâneo em relação ao povo. Nessa perspectiva, existem restrições à
aplicação do título de pastor aos dirigentes nacionais. Esta aplicação vai ocorrer nos profetas, mas
de forma negativa, ou seja, os pastores políticos e religiosos de Israel são criticados pela idolatria e
corrupção. Em Ezequiel e Zacarias, no entanto, começa a se delinear o Messias esperado como
futuro pastor a ser enviado. No judaísmo rabínico, a profissão de pastor de animais foi
profundamente desvalorizada. Os pastores eram suspeitos de desonestidade.
O Novo Testamento não reflete essa visão negativa em relação aos pastores vigente no
judaísmo contemporâneo. Na verdade, Jesus aplica a si mesmo e a Deus o título de pastor,
recuperando as noções veterotestamentárias (cf. Salmo 23). De fato, nos sinóticos Jesus é
apresentado como o Pastor messiânico esperado, que vem: 1) Reunir as ovelhas perdidas da casa de
Israel, embora seu rebanho contenha ovelhas de todas as nações. 2) Ele vem morrer em prol do seu
rebanho. 3) No dia do juízo, todos estarão diante do Pastor, e ele mesmo fara a separação entre as
ovelhas e os cabritos. As ovelhas, então, formam o rebanho, a Igreja, sobretudo em João onde não
111
BEYREUTHER, E. “pastor”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 1587-1592.
112
Os dados estatísticos foram extraídos da Concordância Fiel do Novo Testamento. Volume 1. São José dos Campos:
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se utiliza a expressão ekklesia. Nos demais escritos do Novo Testamento, Jesus aparece como Pastor
celestial da Igreja, mas o título perde espaço para kyrios. Como título para a liderança da Igreja, os
textos são muitos tímidos, sobressaindo o título de presbítero. A exceção e justamente a conversa de
Jesus com Pedro em João 21, onde o próprio Jesus exorta que o apostolo pastoreia as ovelhas de
Jesus (comparar com a conversa de Paulo com os presbíteros em Atos 20 e a exortação de 1Pedro
5.2-4).
ἀρνίον e ἀμνός - No grego, ἀμνός é a palavra para o cordeiro, em contraste com πρόβατον
(ovelha). A LXX faz uso de ἀμνός para traduzir kebes. A palavra aparece principalmente em
passagens relacionadas aos sacrifícios. Assim, ἀμνός é o cordeiro da Pascoa na saída do Egito, nos
cultos regulares e mesmo em Isaías 53.
No Novo Testamento Jesus é descrito como ἀμνός em João 1.29, 36; Atos 8.32; 1Pedro 1.19.
Nas duas primeiras passagens é João Batista quem fala, e sua afirmação pode ser entendida a partir
de Isaías 53: Jesus é aquele que remove o pecado do mundo. Em Atos 8.32 Jesus aparece como
aquele que sofreu pacientemente e 1Pedro 1.19 sublinha a perfeição do seu sacrifício. Já o termo
ἀρνίον é encontrado apenas em João 21.15 e no livro de Apocalipse, que a utiliza 27 vezes. Em João
se refere às ovelhas de Jesus, enquanto que no Apocalipse se refere a Jesus: ele e o cordeiro que foi
morto, mas também é o líder da igreja celestial, aquele que precisa adorado, que é o Senhor da
história.
Πρόβατον - Na língua grega a palavra conheceu vários usos. Primeiro, designava qualquer
animal de quatro patas. Depois, passou a designar o coletivo de animais: manada, rebanho, até que
também designou ovelhas propriamente ditas. Simbolicamente, a palavra podia ser usada
113
GESS, J.; TUENTE, R. “cordeiro”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 429-432.
114
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negativamente como uma ofensa a uma pessoa considerada inferior, bem como positivamente,
como alguém que precisa ser guiado por outra pessoa.
Na tradução grega do Antigo Testamento a palavra traz o sentido do animal ovelha em geral.
Também aparece como metáfora para o povo, sobretudo o povo de Deus. Dessa forma, o povo de
Deus são as ovelhas de Israel que precisam do cuidado e da proteção de YHWH, em última análise,
o pastor do seu povo. No Novo Testamento, Jesus segue a linha veterotestamentária, e se refere as
pessoas como ovelhas, que sozinhas ficam desorientadas e desprotegidas, mas podem encontrar
salvação no bom pastor. Assim, em Mateus ovelhas são os discípulos de Jesus, reunidos
principalmente da casa de Israel, e que após a ascensão de Jesus serão atacadas pelos lobos. João
também sublinha o relacionamento entre Jesus como pastor e os discípulos como ovelhas, com o
acento de que estas ovelhas são os eleitos pelo Pai, de todos os lugares.
Seguir (ἀκολουθέω)115
Este verbo é usado 90x no Novo Testamento, principalmente em relação aos discípulos de
Jesus durante o seu ministério terreno, por isso a grande concentração nos evangelhos: 60x nos
sinóticos, 19x em João. Além disso, 6x em Apocalipse, 4x em Atos, 1x em 1Coríntios.116
Entre os gregos o verbo possuía o sentido literal (ir atrás de alguém, acompanhar) e o
sentido metafórico (seguir a opinião de alguém, concordar). Encontra-se um uso religioso entre os
estoicos, isto é, a grande meta da vida é seguir a natureza ou Deus mesmo. Esse seguir leva a
incorporação do indivíduo na divindade.
O Antigo Testamento é muito cuidadoso em utilizar a ideia de “seguir YHWH”, e quando ela
aparece, nunca significa, como entre os estoicos, tornar-se como Deus, mas sim obedecer a ele,
submeter aos seus mandamentos. No aspecto teológico predomina o uso negativo, com crítica aos
israelitas que seguem outros deuses, desviando-se para a idolatria. O uso mais próximo dos
evangelhos e em 1Reis 19.20, onde Eliseu segue Elias como servo dele. Entre os rabinos, a palavra
serve para descrever o relacionamento entre o aluno da Torá e seu mestre.
No Novo Testamento a palavra se aplica especialmente no contexto do ministério terreno de
Jesus. Repare que o verbo aparece 56 vezes nos sinóticos e 14 João, e apenas 10 em todos outros
livros. E todas as ocorrências relativas a Jesus, somente em João 21.19-21 e Apocalipse 14.4, é o
Jesus exaltado que se tem em vista. No contexto do ministério terreno de Jesus o significado
115
BLENDIGER, C. “ἀκολουθέω”. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. p. 578-581.
116
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teológico é relativo. Quando se registra que as multidões seguiam Jesus, se entende isso apenas de
forma literal: iam atrás de Jesus. Quando, porém, Jesus chama alguém a segui-lo, isso sempre
envolve discipulado. Nesse caso, o seguir é o submeter-se ao senhorio e liderança de outra pessoa,
no caso, do Mestre Jesus de Nazaré. Mas mesmo nesta concepção, o sentido literal está em vista,
pois os discípulos sempre vão atrás do seu Mestre. Não obstante, é necessário distinguir entre o
discipulado de Jesus e o praticado pelos rabinos. Podem-se elencar quatro motivos: 1) Jesus não
esperava voluntários. Ele chama os seus discípulos com autoridade. 2) Os discípulos de Jesus
participam da autoridade do seu Mestre, trazem a mesma mensagem, fazem as mesmas obras e se
sentarão com ele como juízes do mundo. 3) O chamado de Jesus exige renúncia de antigos modos
de viver, de velhas vocações. 4). O discípulo de Jesus não pode esperar sorte melhor do que seu
Mestre, isto é, precisa estar disposto ao sofrimento, a carregar a cruz. Resta ainda dizer que, todos
esses sentidos que aparecem no âmbito do ministério terreno de Jesus, podem e são desdobrados
para o relacionamento com o Cristo exaltado. O evangelho de João é quem mais caminha nessa
direção.
Segundo a classificação formal de Klaus Berger a perícope de Jo 21.15-19 foi construída a partir
da utilização de alguns gêneros.118 Dominando a passagem está o que ele denomina “relato de visão
e audição”,119 visto que nos versículos 15-19 todo o cenário narrativo é suspenso e temos apenas
Pedro diante de Jesus. O objetivo da “visão” é trazer uma incumbência celestial ao visionário, que
no caso de Pedro, era a de pastorear a comunidade de discípulos de Jesus.
Os versículos 21.15-17 foram inspirados no gênero Paideutikon,120 que traz duas características
principais. Primeiro, a ideia de instruir o instrutor, ou seja, o destinatário é encarregado a liderar
e/ensinar um grupo com base na autoridade que quem exorta. Há, então, uma estrutura tripartite:
Jesus – Pedro – os discípulos de Jesus (que serão pastoreados por Pedro). A segunda característica
deste gênero é o uso dos imperativos, que realmente ocupam papel central na passagem, sendo
utilizados quatro vezes por Jesus.
117
O objetivo desta etapa é a identificação do gênero literário do texto; caracterização do gênero literário do texto e a
identificação de estruturas literárias e retóricas menores.
118
Conforme observa LIMA, M. L. C. Exegese Bíblica. p. 123-124, texto pode fazer uso de vários gêneros literários
distintos. O exegeta deve nesse caso avaliar qual seria o gênero dominante da passagem.
119
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 255-258.
120
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 192-193.
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O texto também se utiliza do gênero literário diálogo, controlado pela pergunta “tu me amas?” e
da forma do vaticínio de sofrimento, que a previsão feita por Jesus em 21.18 do futuro martírio de
Pedro.121
121
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 233 e 266.
122
BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento. p.226-227.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 58
O conteúdo do texto está claramente estruturado em torno do verbo λέγω, caracterizando assim
o gênero diálogo, mencionado acima. Excetuando a moldura narrativa são 12 frases, todas elas
contendo o verbo (que ao todo aparece 14 vezes). As frases, por sua vez, estão estruturadas em
quatro seções, cada qual com um modelo tríplice: Jesus fala, Pedro responde, Jesus fala. Está última
fala de Jesus (parte C do esquema) sempre traz um imperativo. Na parte 4 a estrutura se mantém,
sendo que a fala de Pedro é substituída pelo comentário do narrador, justamente para manter o
formato. Segue o esquema:
PARTE 2: A (Jesus) Disse [λέγει]-lhe novamente, segunda vez: Simão [filho ] de João, amas-
me?
B (Pedro) Disse [λέγει]-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo.
C (Jesus) Disse [λέγει]-lhe Jesus: pastoreia [imperativo] as minhas ovelhas.
PARTE 4: A (Jesus) Em verdade, em verdade, te digo [λέγω], quando eras mais jovem
aprontavas a ti mesmo e andavas onde desejavas; quando, porém, [te] envelheceres,
estenderás as tuas mãos, e outro te aprontará e [o] conduzirá para onde não desejas.
B (Narrador) Isto, porém, disse [εἶπεν] indicando que tipo de morte [ele] glorificará
Deus.
C (Jesus) E, tendo dito [εἰπὼν] isto, disse [λέγει]-lhe: Segue-me [imperativo].
A situação de Pedro
É importante analisar a passagem, um diálogo entre Jesus e Pedro, à luz de todo o
relacionamento de Pedro com Jesus. Os relatos dos Evangelhos mostram que Pedro, logo assim que
Jesus formou o grupo apostólico, já ocupava um papel de destaque entre os apóstolos (o que se
confirmou depois no início da igreja, conforme o livro de Atos). Ele pertencia aquele grupo mais
íntimo de Jesus, com Tiago e João. Jesus afirmou que ele seria a “pedra” sobre a qual sua igreja
123
O objetivo aqui foi fazer uma exposição pastoral do texto, com base na interpretação firmada a partir dos
levantamentos exegéticos acima. Por esse motivo, prescindiu-se de dialogar com os diversos comentaristas que
analisam a passagem.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 60
seria edificada (Mateus 16.17-19).124 A diferença de Pedro ficava ainda mais clara por suas
afirmações e atitudes que demonstravam um grande comprometimento com Jesus, como quando ele
afirmou que, se preciso, daria a própria vida por Jesus (João 13.37).
Entretanto, ao se aproximar a morte de Jesus, Pedro sofreu um grande revés. Conforme
Jesus já tinha lhe falado ele negou, não apenas que fosse um discípulo, mas até que conhecesse
Jesus (Mateus 26.66-74; João 18.17-18). Obviamente sua tristeza foi muito grande: “chorou
amargamente”, segundo Mateus 26.75. Logo ele que sempre se destacou entre os apóstolos, e que já
tinha sido advertido por Jesus que tal fato ocorreria.
Agora é preciso olhar para o capítulo 21 de João. Não se pode perder de vista que a essa
altura Pedro já tinha encontrado Jesus após sua tríplice negação. Ele foi, inclusive, um dos
primeiros a testemunharem que o túmulo estava vazio. Mas nada nos quatro evangelhos atesta que
Jesus tivesse conversado particularmente com ele antes desse episódio. A primeira parte do capítulo
21 mostra Pedro indo pescar com mais sete apóstolos: “vou pescar”, disse ele. Em Lucas 5.1-11, há
uma perícope muito semelhante a esta, onde se conta que após uma pesca frustrada, Jesus aparece a
Pedro, faz acontecer uma pesca bem-sucedida e vocaciona Pedro: “Não temas, doravante serás
pescador de homens” (Lucas 5.10). Assim sendo, o fato do Evangelho de João registrar Pedro
voltando a pescar peixes, isso após ter negado Jesus três vezes, somando-se a provável motivação
de Jesus em conversar com Pedro, leva a crer que, de algum modo, o apóstolo estava desistindo da
vocação, e voltando para sua antiga profissão. No mínimo tinha dúvidas sobre sua dignidade para
cumprir tal tarefa.
As perguntas de Jesus
Jesus pergunta três vezes a Pedro se ele o ama. Por que essa insistência? Independentemente
da variação das palavras,125 com certeza Cristo teve alguma intenção ao reforçar o questionamento.
Primeiramente deve-se lembrar que Pedro negou Jesus justamente três vezes. Como visto acima,
esse fato ocasionou grande frustração no apóstolo. Por outro lado, Jesus parece esperar uma
resposta positiva, ou seja, ele sabia do amor de Pedro por ele. Daí a pergunta: “Tu me amas?” Jesus
visava exatamente que ele demonstrasse para ele, para os discípulos e para Deus o seu amor por
124
No sentido que ele era um representante dos apóstolos. Em última análise, a pedra era o grupo apostólico. É claro
que existem outras interpretações para a expressão.
125
Do ponto de vista gramatical, não é possível estabelecer a existência de alguma diferença no tipo de amor por causa
da alternância entre os verbos. Conforme LOURENÇO, Frederico. Bíblia, volume I: Novo Testamento: Os quatro
evangelhos. p. 411, “um consenso alargado entre os especialistas do NT de que agapân e phileîn são sinônimos no grego
dessa época”.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 61
As respostas de Pedro
Nas suas respostas, Pedro sente-se inseguro de expressar seus sentimentos. Quando ele fala
“tu sabes que te amo”, o “tu sabes” joga a responsabilidade para Jesus. Ele não se sente à vontade
de dizer, como seria natural: “sim, eu te amo!”. Talvez tenha aprendido a lição de ser um pouco
mais comedido em suas afirmações, um servo mais humilde.
O texto diz que Pedro “entristeceu-se” por Jesus ter perguntado a terceira vez, e assim a
resposta de Pedro também muda. Ao “tu sabes que te amo”, ele acrescenta “tu sabes todas as
coisas”. Notadamente o apóstolo percebe a ligação das três perguntas de Jesus com suas três
negações. Por isso, a resposta de Pedro significa: “Senhor, tu sabes todas as coisas, sabes que te
126
LOURENÇO, Frederico. Bíblia, volume I: Novo Testamento: Os quatro evangelhos. p. 411, afirma: “há aqui uma
ambiguidade na palavra ‘estes’ (toutôn), que pode ser masculina (referindo-se, assim, aos outros discípulos) ou neutra
([...] referindo os apetrechos próprios da vida de pescador que Pedro vai ter de abandonar para seguir Jesus até as
últimas consequências).
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 62
neguei, sabes das minhas limitações, e também sabes que eu te amo”. E era exatamente neste ponto
que Jesus queria que Pedro chegasse. Queria que Pedro lembrasse que ele foi escolhido, não para
ser perfeito, mas para amá-lo. E Jesus sabia que ele o amava.
A renovação da vocação
Se Jesus repetiu três vezes a mesma pergunta, após as respostas de Pedro, ele também
repetiu três vezes uma ordem para o apóstolo: “pastoreia as minhas ovelhas!”. É nesta afirmação
imperativa que se percebe que a intenção de Jesus era tratar do ministério de Pedro. Na proporção
que o apóstolo o negou, Cristo lhe dá uma missão. E como se dissesse: “Eu sei que você me negou.
Eu conheço as suas falhas, mas eu ainda tenho uma missão para você. Ainda estou interessado em
sua vida!”.
Toda a situação quando isso ocorre também tem um significado especial para Pedro. O
encontro de Jesus com ele ocorre quando ele e outros apóstolos estavam pescando, no mar de
Tiberíades. Segundo os evangelhos sinóticos,127 a vocação de Pedro, no início do ministério de
Jesus, aconteceu da mesma forma. Nos três sinóticos Pedro é chamado a ser “pescador de homens”.
O relato de Lucas é ainda mais semelhante ao de João. Em ambos, os apóstolos tiveram uma
pescaria fracassada, e Jesus ordena-lhes que lancem a rede novamente. E sob as ordens de Jesus,
eles conseguem pescar muitos peixes. Daí, vê-se que Jesus repetiu aquela cena para,
intencionalmente, lembrar da sua vocação, do seu chamado para ser pescador de homens, não de
peixes.
Não obstante, a forma como Jesus dirige-se ao apóstolo também chama a atenção. Nas três
perguntas Jesus não fala “Pedro”, mas “Simão”. Por que? Pode ser uma mera coincidência, mas
vem à mente que o nome “Pedro” foi dado pelo Jesus (João 1.42),128 e equivalia a um título. Jesus,
então, quer lembrar o apóstolo do “Simão” que anteriormente foi vocacionado por ele, do “Simão”
que precisava recomeçar para ser um novo Pedro, deixando para trás as falhas do antigo Pedro. Por
conseguinte, se a intenção de Jesus no diálogo é renovar a vocação de Pedro, através das afirmações
imperativas: “Pastoreia as minhas ovelhas”, Jesus deixa claro para Pedro que seu ministério precisa
basear-se no seu amor a Cristo. Jesus lhe fez uma pergunta e foi só após a resposta que ele deu a
ordem a Pedro. Ainda que o apóstolo continuasse a ter falhas, ele nunca teria sucesso no seu
ministério se prescindisse do seu amor por Jesus, ou não fizesse dele a sua base ministerial.
127
Mateus 4.18-20; Marcos 1.16-18; Lucas 5.1-11. “Mar de Tiberíades” (João); “Mar da Galileia” (Mateus e Marcos) e
“Lago de Genesaré” (Lucas) referem-se ao mesmo lugar.
128
Diz o texto que Jesus o designou “Cefas (que quer dizer Pedro)”. Pedro (ou Simão Pedro) é a forma mais comum dos
evangelhos referirem-se ao apóstolo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 63
O sustento da vocação
Quando os apóstolos perceberam que pelas ordens daquele homem conseguiram pescar
muitos peixes, reconheceram que não se tratava de um homem qualquer, e sim de Jesus. Logo a
seguir Jesus os faz um convite: “Vinde, comei!”. Ele está na praia, lhes oferece uma refeição, e ele
próprio os serve. Diz o texto: “Veio Jesus, tomou o pão, e lhes deu, e de igual modo, o peixe”. O
relato ecoa as narrativas sinóticas da instituição da eucaristia, bem como o do encontro do
ressuscitado com os discípulos de Emaús.129 Perceba que os verbos “tomar” e “dar” em todas as
passagens são variações dos verbos λαμβάνω e δίδωμι.
E, tomando um pão (λαβὼν ἄρτον), tendo dado graças, o partiu e lhes deu (καὶ
ἔδωκεν), dizendo: Isto é o meu corpo... Semelhantemente (ὡσαύτως), depois
de cear, tomou o cálice... (Lucas 22.19-20)
E aconteceu que, quando estavam a mesa, tomando ele o pão (λαβὼν τὸν
ἄρτον), abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu (ἐπεδίδου); então, se lhes
abriram os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles.
(Lucas 24.30-31)
Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. Veio Jesus, tomou o pão (λαμβάνει τὸν
ἄρτον), e lhes deu (καὶ δίδωσιν), e, de igual modo (ὁμοίως), o peixe.
(João 21.12-13)
Partindo da premissa de que o fato ocorreu exatamente conforme João narrou (não é uma
mera produção literária), é plausível pensar que Jesus teve a intenção de lembrar os apóstolos
aquele importante acontecimento. Agora, pensando principalmente em Pedro, qual intenção seria
essa? Tendo em vista que Jesus encontrou um apóstolo em crise é que o objetivo era renovar a
vocação apostólica dele, pode-se concluir que Jesus queria exatamente oferecer alimento para
Pedro: o pão e o peixe apontavam para a Ceia do Senhor,130 e esta remetia ao verdadeiro alimento
espiritual, que é Cristo. Dessa forma, Jesus queria lembrar ao seu apóstolo enfraquecido, que ele
129
Aliás, é interessante observar que as aparições do Jesus ressurreto sempre foram acompanhadas de alguma refeição.
Além deste texto no quarto evangelho, temos em Lucas a refeição com os discípulos do caminho de Emaús e, em 24.42,
Jesus comendo “um pedaço de peixe assado” como prova de sua ressurreição corporal. No texto extra canônico de
Marcos 16.14 relata-se que Jesus aparece aos discípulos quando eles “estavam à mesa”. Não obstante, parece haver
algum paralelo entre o relato lucano do caminho de Emaús e a narrativa joanina de João 21.1-14. É assunto para
pesquisas posteriores.
130
LOURENÇO, Frederico. Bíblia: Novo Testamento: Os quatro evangelhos. p. 410, comenta que em João 21.13 há
“uma sutil ressonância eucarística”. Lembremos que um dos artifícios literários preferidos por João é o significado
duplo. Ver abaixo a discussão desse item.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 64
deveria renovar as suas forças alimentando-se de Cristo. Por outro lado, quando Jesus fala para
Pedro pastoreia, apascenta as minhas ovelhas, isso inclui o alimentar as ovelhas. Por conseguinte, o
mesmo alimento que Pedro terá para se fortalecer, é o alimento que ele dará as ovelhas. Afinal, as
ovelhas não são dele. O Senhor é enfático ao falar: “minhas ovelhas, meus cordeiros”. Toda essa
interpretação da refeição oferecida aos apóstolos está de acordo com a ênfase do evangelho de João
em ver Jesus como alimento espiritual, tendo o crente a necessidade de “comer” e “beber” Cristo.
Observe-se, especialmente, alguns trechos do capitulo 6, passagem que também aponta para a
eucaristia:
Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome;
e o que crê em mim jamais terá sede. (vs.35)
Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o
pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. (vs. 51)
Portanto, Jesus mostrou para Pedro, para os outros discípulos e para todos os crentes que só
em Cristo há sustento para os desafios da vocação. Sem esse alimento, qualquer ministério está
fadado a perecer.
16. Implicações
Consideramos que o eixo central do texto de João 21.15-19 é a questão do exercício ministerial,
especificamente as condições para o exercício do ministério, o sustento espiritual do ministério e a
renovação do ministério.
para o exercício de qualquer ofício na igreja.131 No entanto, o que o diálogo entre Jesus e Pedro nos
lembra é que, antes de sermos chamados a cumprir qualquer tipo de ofício ou função eclesiástica,
somos vocacionados ao relacionamento com Jesus Cristo. Esta é a primeira e fundamental vocação
de todos os cristãos: amar Jesus Cristo.132 E na verdade, o próprio ministério de Jesus Cristo deve
ser entendido desta forma: não podemos compreender a missão de Jesus na Terra a parte do seu
relacionamento com o Pai. Esta ênfase nos ajudará a esquivar-se de dois equívocos: avaliar a
vocação tão somente pela quantidade de conhecimento teológico ou enxergar o ministério apenas
como um tecnocrata. Qualquer ofício, dom ou cargo só deve ser exercido na igreja como expressão
do nosso relacionamento e da nossa comunhão com Jesus. Do nosso amor, na linguagem de João, e
na linguagem de Paulo em 1Coríntios 13. Mais do que teólogos e técnicos, precisamos ser
discípulos.
131
Por isso uma definição teológica de vocação está incluída na Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil, a saber, o
artigo 108. cf. Manual Presbiteriano, edição 2013.
132
McKIM, Donald. A “vocação” na Tradição Reformada. In: McKIM, Donald (editor). Grandes Temas da Tradição
Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998. p.298-299.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 66
O EVANGELHO DE JOÃO133
133
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2007. p. 425-455, capítulo 20.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 67
paradoxo.134
2. O universo foi criado pelo Verbo. As trevas entraram no universo sem explicação: 2º
paradoxo.
3. A luz brilha nas trevas trazendo salvação.
4. O mundo (especialmente os judeus) rejeita a luz. Mas alguns aceitaram. O 3º
paradoxo está na possibilidade das pessoas tornarem-se filhas de Deus: aqueles que
creem ou aqueles que Deus faz nascer. Marshall: Deus responde à fé humana,
produzindo o novo nascimento.
5. A encarnação. Mais um paradoxo: o Verbo-Deus torna-se ser humano. Quanto à
compreensão dos versículos 10-13: interpretação cristã da resposta a Jesus. Não algo
antes do cristianismo.
6. O autor e sua comunidade reconheceram o Verbo.
7. A plenitude da graça e a verdade chega à humanidade em Jesus (não em Moisés).
NARRATIVA TEOLÓGICA
Marshall trabalha com a ideia de narrativa teológica. Mas não resolve a questão entre João e
Jesus.
134
LOURENÇO, Frederico. Bíblia: Novo Testamento, volume I: Os quatro evangelhos. p. 319: “João inicia seu
evangelho com uma das mais intraduzíveis afirmações alguma vez registradas por meio da palavra escrita: uma
afirmação de fulminante arrojo assertivo, de sublime alcance teológico, carregada de múltiplos e complexos sentidos”.
135
Segundo Kermode, o prólogo é uma poesia cujo eixo está entre o era e o vir a ser (ἦν e ἐγένετο). KERMODE,
Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 478.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 68
JESUS E OS DISCÍPULOS
13.1-30: é o ambiente da última ceia não registrada por João. Ocorrência do lava pés. Jesus
servindo os discípulos, e o dever do serviço mútuo. A marca distintiva da comunidade cristã no
136
A relação entre fé e milagre pode ser assim caracterizada: o milagre desperta e/ou reforça a fé, mas nunca pode
sustentá-la.
137
Segundo KERMODE, Frank. João. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia. p. 486-
487, a narrativa de João sempre possui um “propósito mais profundo, que é a representação do eterno em relação ao
transitório” e justamente a eucaristia é “o ponto de encontro do transitório e o eterno”.
138
Este tópico de João lembra a ênfase gnóstica da libertação através do conhecimento.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 69
MORTE E RESSURREIÇÃO
O capítulo 21 é um acréscimo. O objetivo do Evangelho inclui cristãos e não cristãos. Agora
Jesus é chamado de “Senhor” na narrativa.
TEMAS TEOLÓGICOS:
O pano de fundo do quarto evangelho é judaico, mas transitando por ideias helenistas, sendo
assim passível de entendimento por gentios não inteirados com o judaísmo. Nesse sentido, João
reconhece o dualismo temporal (preferido pelos judeus), mas destaca o dualismo entre Deus e o
mundo (dualismo espacial preferido pelo helenismo).
O tema de João é apresentar Jesus como Messias e Filho de Deus. Nessa perspectiva, ele é o
enviado, o missionário de Deus no mundo. João também trabalha outras designações cristológicas.
Ele chama Jesus de Profeta; Pastor; Filho do Homem (não apenas como juiz vindouro, mas como
aquele que traz a salvação), e sobretudo, Filho de Deus, pois mais que qualquer outro, João quer
ressaltar o relacionamento entre Jesus como Filho e Deus como Pai, sendo o quarto evangelho o
livro que mais usa esse título para Deus. Jesus é o unigênito de Deus, mas possibilita que outros se
tornem filhos de Deus também. Já o título Verbo, reservado ao prólogo, sublinha Jesus como meio
de comunicação de Deus com o mundo.
Por conseguinte, os seres humanos no pecado louvam os homens. Jesus que é Deus louva
com seu sacrifício a Deus.
139
“Outro” significando “do mesmo tipo”. Veja que em 1João 2.1 é Jesus o consolador.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 70
A Verdade: o nosso mundo é caracterizado pela mentira, mas Jesus revela a verdade; ele é a
verdade; o Espírito Santo é o Espírito da verdade, que nos guia à verdade.
Salvação: em João salvação é vida ou vida eterna. João utiliza as metáforas do alimento
físico, para mostrar que Jesus sacia nossas necessidades espirituais. A vida dada por Jesus é
permanente a partir de agora, antecipando a esperança do futuro. A fé é o meio de se conseguir a
salvação. Mais do que em outros lugares, João acentua Jesus como conteúdo da fé. Jesus é o doador
e o dom. A fé em Jesus é a resposta esperada ao evangelho. Ela pressupõe, no entanto, uma relação
contínua de permanecer. Conhecer Jesus é o conteúdo da fé. João não usa o termo igreja, mas fala
do amor mútuo que caracteriza os discípulos, que ao mesmo tempo estão unidos a Jesus (a videira).
A verdade: 3Jo 3.4,8,12; 2Jo 1.2-4; 1Jo 1.6-8; 2.4,21; 3.18-19; 4.6; 5.7. A verdade divina se
encontra na mensagem cristã apostólica (ortodoxia) e no comportamento expresso pelo amor. Aí se
distinguem as duas partes da realidade: os que são da luz e os que são das trevas.
joaninas. A manifestação do amor divino é Jesus. O amor a Deus é a resposta ao amor de Deus, e
amar o próximo é expressão do amor a Deus, indica quem pertence a ele.
Apresenta o paradoxo do pecado na vida do crente: a meta é buscar uma vida sem pecado,
mas não podemos nos vangloriar de que já alcançamos o alvo. Haviam pessoas que abandonaram a
igreja por não compreender o paradoxo.142 O pecado para morte deve ser a apostasia deliberada e
persistente.
O APOCALIPSE DE JOÃO143
141
O quadro da participação e avaliação dos profetas parece o mesmo que Paulo apresenta em 1Coríntios.
142
Parece que alguns setores do cristianismo primitivo tiveram dificuldade em lidar com o pecado na vida do cristão.
Esse pode ser, inclusive, um dos problemas dos destinatários da carta aos Hebreus. cf. LINDARS, Barnabé apud
TIDBALL, Derek. Ministério segundo o Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 173.
143
MARSHALL, H. Teologia do Novo Testamento. p. 473-488, capítulo 22.
144
Uma das formas mais simples de se estudar o livro de Apocalipse é conferindo os seus textos com as referências
veterotestamentárias. A melhor ferramenta para isso são as indicações nas margens externas do Novum Testamentum
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 72
apocalíptica.
A narrativa do livro não é disposta em uma sequência contínua, lógica ou cronológica, mas
de forma cíclica, mostrando o mesmo conflito por vários ângulos diferentes.145
NARRATIVA TEOLÓGICA
O livro começa com João recebendo uma revelação com finalidade profética, ou seja, com
promessas e exortações. Há logo uma referência à Trindade, sendo o Espírito Santo visto como “os
sete espíritos”.146 Uma designação interessante para Jesus é a de testemunha fiel, padrão e
inspiração para a igreja perseguida (além de um importante tópico associado à sua humanidade).
Por outro lado, João mostra Jesus como aquele que é soberano sobre toda a história, ainda que
poderes adversos se levantem contra.
Na seção das cartas (2-3) Marshall destaca as futuras recompensas reservadas àqueles que
perseverarem na fé. São recompensas diferentes, expressando a realidade da salvação eterna de
forma variada. Podemos observar tanto a ênfase na responsabilidade do crente em perseverar,
quanto o cuidado e a proteção divina sobre os crentes.
Nos capítulos 4-5 João apresenta a realidade celestial através de imagens e comparações,
nunca uma descrição direta. Lá a atividade permanente é a adoração. E Jesus, por causa do seu
sacrifício, é considerado o único digno de abrir os selos do livro da história do plano de Deus.
A primeira série de juízos no capítulo 6 apresenta quatro cavaleiros trazendo quatro
desgraças diferentes. A natureza limitada dos juízos sugere o caráter de advertência, como exortação
ao arrependimento.
Nos capítulos 7-10 destacam-se os selos que Deus coloca sobre o seu povo, os 144 mil.147
Ainda que nessa vida e nesse mundo enfrentemos perseguições,148 João está mostrando que a
salvação do povo de Deus está garantida pelo próprio Deus. O último selo abre uma nova sequência
de juízos. Mas antes de iniciá-lo há um novo interlúdio.149
O capítulo 11 traz a imagem das duas testemunhas. Elas têm a missão de testemunhar
durante 3,5 anos150, sempre enfrentando perseguição, até mesmo ser morta.151 Depois elas
ressuscitam após 3,5 dias, e são elevadas ao céu. Elas também representam o povo de Deus em sua
missão de testemunhar nesse mundo. Mas assim como o mundo rejeitou Jesus, rejeita sua Igreja, e
mesmo a faz morrer. Mas na volta de Cristo, a Igreja se levanta gloriosa.
Nos capítulos 12-14 devemos salientar a figura da mulher, que dá a luz uma criança, e que
ambas são perseguidas pelo dragão. A mulher representa o povo de Deus. A criança é Jesus, que
nasce do seu povo. O dragão é Satanás que perseguia e persegue o povo de Deus.
Os capítulos 15-18 descrevem mais uma sequência de juízos, que culmina com a destruição
da Babilônia, a grande cidade, vista como uma prostituta. A vitória de Deus e do seu povo sobre
esse sistema pecaminoso é vista e celebrada no capítulo 19. O capítulo – um dos mais discutidos do
Apocalipse – trata de uma prisão temporária de Satanás, um reinado milenar de Cristo, até que
Satanás seja solto, e por um breve período persiga a Igreja, para finalmente ser destruído com seus
seguidores. Diante da questão do milênio, Marshall oferece duas interpretações: 1) o milênio como
o período do reinado de Cristo no céu e do testemunho da Igreja na terra, iniciado com a vitória de
Jesus na cruz, que limitou os poderes do Diabo, até a “grande perseguição”, onde por um breve
período ele perseguirá a Igreja.152 2) o milênio sem significado independente, sendo apenas uma
imagem paralela ao novo céu e nova terra.153
Os capítulos 21-22 descrevem os novos céus e nova terra, a nova Jerusalém, na qual o
próprio Deus habitará com seu povo. Salta aos olhos que o livro termina com um aviso e uma
súplica relacionada à volta de Cristo. João está esperando pela volta de Jesus.
quase completo, quase perfeito. 3,5 anos são, então, um grande período, mas não eterno.
151
Parece que a perspectiva do Apocalipse é que a perseguição contra a Igreja só vai aumentando, até um período
crítico, no qual ela apesar de ainda existir, estará silenciada.
152
De qualquer forma, Marshall rejeita esta interpretação, que é a mais aceita pela escatologia reformada.
153
Do ponto de vista histórico, a interpretação simbólica e espiritual do milênio remonta a Agostinho e a um exegeta
donatista do final do século IV chamado Ticônio. A interpretação milenarista (que no futuro Jesus virá e estabelecerá
um reino terreno de literalmente mil anos sobre a Terra) foi defendida no século II por escritores como Justino e Ireneu.
A partir do século IV perdeu força através da influência de Agostinho e Ticônio, mas será retomada no final da idade
média. Joaquim de Fiore, um abade calabrês do século XII, afirmou que recebeu na manhã da páscoa de 1183 ou 1184
uma revelação divina que lhe dava a correta intepretação do Apocalipse. Nessa linha, ele verá no livro a descrição dos
principais eventos da História da Igreja, progredindo para uma era futura de purificação e plenitude da Igreja. A exegese
de Fiore reintroduziu o milenarismo no cristianismo e exerceu grande influência nos séculos seguintes. Uma variação
foi introduzia pelo franciscano Nicolau de Lyra, no final do século XIV, que difundiu a interpretação de que o livro
apresenta a história da Igreja em perspectiva linear e histórica, mas sem defender um milênio literal. Assim, “na véspera
da Reforma havia, então, três modos amplos de interpretar o livro: o modelo ticoniano-agostianiano (recapitulativo,
moral e eclesiológico, mas resolutamente a-histórico e antimilenar); o modelo joaquinita (também recapitulativo, moral
e eclesiológico, mas progressivamente histórico e milenar); e o disseminado por Nicolau de Lyra e seus seguidores
(linear-histórico, eclesiológico e antimilenar)”. McGINN, Bernard. Apocalipse. In: ALTER, Robert.; KERMODE,
Frank. Guia Literário da Bíblia. p. 576. O mesmo autor afirma que o que caracterizou os comentários de Apocalipse da
Reforma foram seu anti-romanismo: “o Apocalipse, corretamente entendido, mostrou como o papado ao longo da
história funcionava com o Anticristo perseguidor”, p. 577. McGinn ainda afirma que na geografia da Reforma, a
Inglaterra foi o lugar em que o livro de Apocalipse foi estudado e debatido com maior avidez, levando ao ressurgimento
do milenarismo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 74
TEMAS TEOLÓGICOS
Geograficamente Apocalipse opera com três realidades: céu, terra e inferno.
O propósito do livro é encorajar os cristãos ao testemunho e à fidelidade nesses tempos de
perseguição, e ao mesmo tempo, lançar um apelo evangelístico relacionado ao chamado de Deus ao
arrependimento.
Mais que em outros livros do Novo Testamento, o principal aspecto salientado em relação a
Deus é seu poder. Isso diz respeito aos propósitos do livro.
Quanto à cristologia, em Apocalipse ela aparece desenvolvida, valorizando o sacrifício de
Jesus e seu status de igualdade com Deus.
Os anjos exercem papel proeminente neste livro. Marshall não define uma interpretação para
os anjos das Igrejas dos capítulos 2-3.154
Em Apocalipse encontramos um verdadeiro exército do mal. Temos uma trindade satânica: o
dragão, que lidera esse exército – Satanás, a 1ª besta, que imita Jesus, até na mesmo numa suposta
ressurreição, e a 2ª besta, que atua como profeta da primeira, fazendo propaganda dela. Entretanto,
Deus permanece controle. A locução verbal “foi dado” mostra que todos esses acontecimentos
passam pela permissão de Deus.
A humanidade é vista em dois grupos. Os que seguem o Cordeiro e os que sucumbem às
tentações da Babilônia. Existe a possibilidade de se mudar de lado: há o receio dos cristãos
abondarem sua fé (por isso a ênfase na perseverança e na fidelidade) e ao mesmo tempo, há a
exortação para que as pessoas se arrependam, “lavem suas vestiduras no sangue do cordeiro” e
passem a fazer parte do povo de Deus. Em contrapartida, os nomes do povo de Deus estão selados
no livro da vida, dando-lhes a garantia da sua salvação. Aqui, como em outros lugares, prevalece o
paradoxo da salvação.155
Não obstante, essa realidade faz a Igreja sentir-se ameaçada e leva ao entendimento que não
pode existir conciliação entre ela e a Babilônia. Estamos sempre em guerra.
O livro termina com julgamento, salvação e convite. Julgamento sobre as forças do mal e os
incrédulos, constituído de morte e destruição, e sofrimento eterno. Marshall percebe a tensão
existente entre as duas ações, e se inclina a considerar a temática da morte e destruição como central
na narrativa.156 A salvação realiza-se em uma nova terra, na qual céu e terra se uniram. O convite:
154
A interpretação tradicional entende que os anjos são os pastores. O problema é que nenhum lugar na Bíblia chama os
pastores de anjos, e em todo o restante do livro os anjos são de fato seres angelicais, além do quê, a ideia de anjos
auxiliando o povo de Deus era corrente no judaísmo. Por outro lado, TIDBALL, Derek. Ministério segundo o Novo
Testamento. p. 239, observa que as cartas são exortações à congregação como um todo, e não a indivíduos específicos,
de modo que os anjos podem ser personificações da igreja.
155
Marshal parece, as vezes, enfraquecer o lado da soberania de Deus nesse paradoxo.
156
Assim, ele parece adotar a posição do aniquilamento como consequência do juízo final, uma posição periférica no
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 75
“O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve, diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e quem
quiser receba de graça a água da vida”.
OS SINÓTICOS
A tradição joanina deve remontar a João filho de Zebedeu. O autor do evangelho deve ter
tido algum conhecimento de Marcos e Lucas159.
Em João a terminologia do Reino de Deus (isto é, Jesus como proclamador e iniciador do
reino; as bênçãos do governo de Deus sobre a humanidade; o discipulado como resposta ao
PAULO
Paulo enfatiza mais a pessoalidade do Espírito Santo.
João não usa a linguagem da justificação pela fé.
Ambos concordam que o evangelho é destinado para todos, judeus e gentios, e a “seleção”
ocorre através da resposta de fé ou não.
A convergência teológica principal entre Paulo e João está na linguagem do estar em Cristo,
com a noção da habitação mútua entre Jesus, o crente, e Deus Pai. É a relação entre Cristo e os
crentes, no nível individual e coletivo.160
A vida em comunidade: em João através das metáforas do rebanho e da videira, e mediante a
ação do Espírito Santo.
Missão: assim como Jesus foi enviado pelo Pai, nós somos enviados.
ANEXO
160
Não obstante, para Paulo nós estamos em Cristo de forma diferente da maneira que Cristo está em Deus. Já João é
mais ousado: estamos em Cristo e estamos Deus, e ambos podem estar em nós.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 77
Segundo Dodd, o quarto evangelho faz parte de um grupo de textos que possuem linguagem
em comum, e afinidades filosóficas e religiosas. São textos que se influenciam mutuamente, mas
mantêm características próprias. São eles:
1.2 GNOSTICISMO
É um movimento religioso sincrético característico do helenismo. Iniciado antes do
cristianismo, influenciou e foi influenciado por ele. Para o gnosticismo o problema do ser humano é
que o mundo existe. A alma humana é de natureza divina, e está aprisionada no corpo, neste mundo.
A salvação é reconhecer que esse mundo é mal, admitir sua origem divina, e assim a alma volta ao
nada. Esse reconhecimento é a gnose, conhecimento. O anúncio é feito pelo revelador.
1.4 MANDEÍSMO
O mandeísmo é uma seita ainda existente nas regiões do Iraque e do Irã. Os documentos
escritos remontam ao século 7º e 8º, mas é provável que a tradição oral seja dos primeiros séculos.
É possível que o grupo religioso tenha começado na Palestina, simultaneamente ao cristianismo,
dentro do movimento gnóstico.
Hinário do século 2º, composto de cânticos que misturam conceitos do Antigo Testamento,
com a religiosidade gnóstica.
2) O SIMBOLISMO
A diferença entre o simbolismo de João e as parábolas dos sinóticos: a parábola descreve
uma situação plausível aos ouvintes. Os detalhes da história contada não possuem uma significação
independente. Em geral a “moral da história” é óbvia aos ouvintes, a partir da qual Jesus apresenta
sua aplicação. Os discursos em João estão mais para a alegoria. Cada detalhe possui significado
importante, que nem sempre é explicado. Por exemplo: nos sinóticos o cuidado de Jesus para com
as pessoas é comparado ao pastor que tinha cem ovelhas, perdeu apenas uma e foi buscar. Em João
Jesus afirma: “Eu sou o bom pastor, e o bom pastor dá a vida pelas ovelhas”.
Análises do simbolismo:
− O bom pastor: 10.1-19: No AT e na literatura apocalíptica intertestamentária o povo de Deus
é representado como rebanho de Deus, os representantes de Deus (Moisés, Davi, e outros)
são descritos como pastores, e os maus líderes são chamados de maus pastores
(mercenários). Já em Fílon o Logos é chamado pastor do cosmos.
− A videira verdadeira: 15.1-17. No AT o povo de Israel é descrito como vinha ou videira
plantada por Deus. Uma vinha tirada do Egito e plantada em uma boa terra. Porém, a vinha
degenerou. No helenismo era conhecida a figura de Deus como agricultor. O interessante é
que o significado não vem de uma comparação que Jesus está fazendo com as prática
agrícolas do seu tempo, mas ele está utilizando todo esse patrimônio de associações.
− O pão e água: o pão era símbolo dos mandamentos da lei e da sabedoria. O conceito de “pão
do céu” representava no judaísmo as bênçãos da era messiânica, e em Fílon também era uma
figura para o Logos. A água estava ligada nos escritos Herméticos à criação inferior. Veja
que ela é substituída pelo vinho. Mais importante são as associações veterotestamentárias:
água como símbolo de vida.
− O verdadeiro: aponta para os significados eternos. Pão, vinha e luz: são verdadeiros porque
161
É necessário utilizar esses escritos com prudência, porque quase todos são posteriores ao Novo Testamento.
Outrossim, realmente testemunham um gnosticismo e um judaísmo contemporâneo.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 79
3) A VIDA ETERNA:
Conceituação: vida e vida eterna (zwh//; h) zwh\ a)iw/nioj). No AT significa bem estar na
vida e terrena, e apenas em alguns lugares se insinua uma vida após a morte. O conceito bíblico de
eternidade não é atemporal, mas de um tempo indefinidamente para o futuro.162 O judaísmo
desenvolveu a escatologia das duas eras: o tempo era dividido entre esta era e a era vindoura. A
diferença entre as duas estava na qualidade e na quantidade. João usa vida eterna no sentido judaico.
A teologia de João expressada sobretudo no sinal da ressurreição de Lázaro, mostra que Jesus
trouxe a possibilidade de uma ressurreição já agora, ou seja, antes da morte e que supera de
antemão a morte. João sabe que haverá uma ressurreição escatológica, mas enfatiza o aspecto
presente da salvação.163 Agora já podemos desfrutar da qualidade da vida eterna (não ainda da
quantidade).
4) O CONHECIMENTO DE DEUS:
Conhecimento era um tema importante em todo o pensamento religioso da época. No
gnosticismo, nos escritos herméticos, e em Fílon.
De acordo com R. Bultmann, para os gregos conhecimento não implica em relacionamento.
Conhecimento tem haver com contemplação à distância. Para os judeus conhecer sempre envolve
relacionamento entre quem conhece e quem é conhecido. Em relação a Deus: contemplá-lo em sua
realidade última ou viver em aliança com Deus.
Para o gnosticismo conhecimento não é um exercício intelectual, mas um dom divino, que
faz do homem um ser divino. Por ironia o sentido gnóstico acaba se aproximando do sentido
judaico-veterotestamentário, especialmente nos Hermética. Conhecemos a Deus por que ele se
revelou. Nosso conhecimento de Deus depende da vontade de Deus.
Peculiaridades do conhecimento de Deus em João.
− Ignorância de Deus não falta de conhecimento intelectual, é deixar de reconhecê-lo e de
162
Assim também pensa O. Cullmann, e creio que ambos estão corretos.
163
Em outras palavras, na tensão do já e ainda não, João crê no ainda não, mas enfatiza o já.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 80
5) A VERDADE:
Substantivo: a)lh/qeia; adjetivos: a)lhqh/j; a)lhqino/j.
No hebraico a expressão é ’êmet. Significa: constância; fidedignidade. Deus é o absolutamente
fidedigno.
Os adjetivos podem se significar:
a) Uma afirmação verdadeira, verídica; uma pessoa sincera.
b) O real, o genuíno em relação à mera representação, imagem ou cópia. Esse é o sentido da
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 81
afirmação de Jesus em 4.23: verdadeiros adoradores são os reais adoradores. Os outros não são
falsos adoradores, eles não são adoradores. Também significa a realidade, o conhecimento da
realidade ou a manifestação da realidade. Assim, a verdade é a realidade divina revelada aos
homens em Cristo, em si e sua revelação. O mundo jaz no maligno, o pai da mentira: ou seja, a
negação da realidade divina.
− 1.17: graça e a verdade através de Cristo – em Cristo temos a realidade dessas coisas (antes
apenas a sombra).
− 3.21: praticar a verdade – agir honradamente; praticar a fidelidade.
− 8.32: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará – promessa de libertação através do
conhecimento da realidade divina, ou seja, o conhecimento de Jesus.
− 14.6: Jesus é a verdade – ele é a realidade divina, e a revelação do divino.
− 17.17: tua a palavra é a verdade – a realidade divina revelada.
− 18.37: testemunha da verdade – testemunha da realidade divina; aquele que é dá verdade.
6) A FÉ:
Verbo: pisteu/w.
Concepções na literatura grega: 1) dar crédito a; crer. 2) ter confiança em, confiar. No
hebraico sobressai a noção de permanecer firme tanto literalmente (aplicado a animais), quanto
figuradamente, como virtude moral do ser humano.
Em João:
a) Dar crédito às palavras de Jesus. cf. 4.21; 14.11.
b) Se tornar cristão, como em Atos. cf. 4.53.
c) verbo + dativo: crer em. cf. 2.22; 5.46; 8.31-47.
d) verbo + frase com o/(ti: acreditar, estar convencido. cf. 8.24; 13.19; 11.27; 20.31.
A união com Deus é expressa como mútua imanência: o filho está no Pai; o Pai está no filho;
os homens estão no filho; o filho está nos homens; os homens estão no Pai e no filho.
“Em Deus” no helenismo indica estar na dependência de Deus: estar nas mãos de Deus. No
estoicismo e nos Hermeticos predomina o sentido espacial, de união com o divino. Em Fílon tem
haver com o êxtase profético (ter a mente possuída por Deus).
O uso cristão antes de João: Paulo 5x usa a expressão “em Deus” (Rm 2.17; 5.11; Ef 3.9;
1Ts 2.2; Cl 3.3). Mas o principal antecedente do uso joanino é a expressão “em Cristo”. Em Paulo o
sentido da metáfora é estar no corpo de Cristo. A união do crente com Cristo é orgânica, através da
igreja (Schweitzer). Estamos em Cristo de maneira diferente da que Cristo está em Deus. Essa é a
diferença entre o uso paulino e o joanino. Neste a relação de Cristo com Deus é o modelo da nossa
relação com Cristo.
A união entre Jesus e o Pai significa: unidade de revelação (ver Jesus é ver Deus); unidade
de ação (o que Jesus faz é a ação do Pai – na verdade isso também tem haver com a revelação, pois
Jesus é sempre a manifestação de uma ação originada no Pai).
A unidade do Pai e do filho é reproduzida na unidade entre Cristo e os fiéis: amor expresso
pela obediência; participação de vida na realização de obras. É um triângulo entre o Pai; o filho e os
discípulos, baseados no amor, obediência sempre glorificando o Pai.
característica do a)ga/ph é a origem divina e a doação. Outrossim, a única forma de união entre
pessoas é o amor. Assim, nossa união com Deus expressa-se em um relacionamento de amor de
Deus para conosco ocorrido na história, e o no relacionamento de amor entre o crente e Cristo.
9) O ESPÍRITO:
Substantivo pneu=ma.
Em grego podia ser associado ao ar em movimento (vento e sopro dos seres vivos) ou a
yuxh\ (alma, princípio de vida).
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 84
Para o estoicismo, pneu=ma era uma força que penetrava todo o universo, passível de
transformações.
Na LXX é usada para traduzir o hebraico rúah. A ideia fundamental é a de um poder sobre-
humano, invisível, irresistível, e material. Podia vir sobre os homens concedendo-lhes capacidades:
força física; sabedoria intelectual, visão profética. Posteriormente pneu=ma passou a se identificar
com o sentido de נפׁש/yuxh\: emoções humanas, princípio de vida que Deus dá e retira na morte.
No helenismo popular havia a ideia de um espírito desencarnado individualizado, seja como
um espírito sobre-humano ou como espírito de um morto.
Nos escritos Herméticos há flutuação entre uma concepção material e não-material de
espírito, que representava um movimento de vida no universo e no ser humano.
Fílon relaciona o Espírito à revelação, e assim à inspiração profética.
Em João:
− 3.8: mostra a noção primitiva de vento.
− 11.33 e 13.21: o sentido hebraico de emoção interior ou a ideia de alma.
− 19.30: sentido hebraico de princípio de vida ou alma.
− 14.17; 15.26; 16.13: Espírito da Verdade, que age como guia para à verdade.
− 6.63: o Espírito dá vida, vivifica.
− 3.5-6: o Espírito é o agente do renascimento, e a antítese da carne, a sa/rc. O contraste
não é primeiramente ontológico, mas entre poder e limitação. A semelhança entre
Espírito e vento é que ambos são misteriosos, incontroláveis.
− 4.24: Deus é espírito. Não é Deus é um espírito (dentro de uma classe de espíritos).
Também não é uma afirmação sobre a substância de Deus. É uma analogia. Assim como
pode se dizer que Deus é fogo ou que Deus é luz. O Espírito tanto segundo o
pensamento do AT, quanto entre os gregos, era o que trazia a vida. Então, em João temos
que Deus traz a verdadeira vida que é a do relacionamento com Deus.
10) O MESSIAS:
João considera irrelevante a filiação davídica para o Messias. O messianismo de João
relacionado a outros títulos:
− Rei: O Messias é visto como um Rei não-terreno, um Rei da verdade.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 85
− Cordeiro de Deus: Jo 1.29: “Eis o Cordeiro [a)mno\j]de Deus, que tira o pecado do mundo!”
(ARA).164 Também em Apocalipse é enfatizada a obra de Jesus como Cordeiro de Deus. Lá
a expressão é a)rnion. cf. Ap 5.6.12; 6.16; 7.14.17; 14.1-5; 17.14; 22.13. Ali o cordeiro é
tanto aquele que é sacrificado, quanto o líder do povo de Deus, que luta e vence seus
inimigos.
− Na apocalíptica judaica (Enoque; Testamento dos 12 Patriarcas e outros) os líderes do povo
são descritos como carneiros-guias, e mais ainda, o Messias é descrito como o cordeiro que
luta e derrota os inimigos do seu povo. Na perspectiva cristã, além de líder e vencedor de
inimigos, o Messias-Cordeiro também se auto sacrifica.
− O cordeiro também poderia se referir ao cordeiro do AT que é sacrificado pelo pecado.
Nessa interpretação surgem dois problemas: 1º no AT a oferta característica pelo pecado é
aquela feita por bodes; 2º João, segundo Dodd, não trabalha a ideia da morte de Jesus como
sacrifício expiatório. Por outro lado, a expressão “que tira o pecado” não deve ser entendida
como quem leva ou carrega o pecado, mas como quem destrói, acaba com o pecado. Ele é o
Messias que veio combater e destruir o pecado.
− O cordeiro poderia ainda se referir ao cordeiro da Páscoa. Em 19.36 a citação “Não lhe
quebrareis osso algum”, pode ser uma alusão ao Sl 33.21 (que fala das aflições do justo e
sua libertação), assim como os Salmos 21.19 e 68.22 são citados no mesmo contexto da
morte de Jesus, não sendo portanto uma citação da prescrição para a preparação do cordeiro
para Páscoa. João não alterou as datas da crucificação para faze-la acontecer na Páscoa.
Outrossim, Dodd considera discutível se havia um elemento expiatório no rito da Páscoa no
AT.
− Outra associação possível é com o Servo Sofredor de Is 53, sobretudo o verso7: “como o
cordeiro é levado ao matadouro”. Mas ali parece mas uma comparação que um título, e não
era entendido assim pelas pessoas. João faz menção da teologia do Servo de Isaías, mas não
enfatiza o caráter expiatório.
− Salvador do Mundo: 4.42. No NT é comum para Jesus nas obras um pouco mais tardias
como pastorais, 2Pe e Judas. No AT se referia a Deus, no helenismo a deuses e imperadores.
João não define, deixa à mercê da narrativa.
− Profeta (que vem ao mundo): 7.40, 6.14. João parece admitir que o título lança alguma luz
164
No seu comentário a João, Carson mostra que existem em torno de 12 opções de interpretação para a expressão
“Cordeiro de Deus”.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 86
filho de Deus envolve uma relação de aliança com YHWH. Israel era povo de Deus (Ex 4.22; Os
11.1): eleição por graça, e vida de fidelidade. O rei de Israel era o representante do povo diante de
Deus. Sl 2.7: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” está relacionado a entronização. O indivíduo pode
ser filho de Deus quando vive na perspectiva da aliança. Talvez até o Messias poderia ser
identificado como o Filho de Deus. Sempre se tem em vista que a adoção é para ser tornar filho de
YHWH.
Em João:
− Jesus é filho de Deus porque foi enviado pelo Pai ao mundo. No mundo ele fala as palavras
do Pai, e faz as obras do Pai, sempre em submissão ao Pai. Como os profetas do AT.
− Como filho de Deus Jesus exerce as funções exclusivas da divindade: ele julga e vivifica,
não de forma autônoma, mas em contínua dependência do Pai. Assim, há uma unidade de
ação entre o Pai e o Filho. É o aspecto único da filiação divina.
− É no sentido de missão que se afirma que a vinda do Filho se origina no Pai. Essa passagem
da essência divina para esfera da humanidade não é explicada por João. Ele não faz
referência ao nascimento virginal, mas afirma a sua pré-existência temporal. Nesse sentido
ele não é comparável aos profetas, nem a Abraão, pois pertence a uma outra ordem de seres.
− A relação do Pai com Filho não começou com o tempo, nem termina com o fim da história.
Na carreira de Jesus ela se expressou no amor e na obediência.
14) O LOGOS:
Substantivo lo/goj.
Entre os gregos logos possui dois sentidos: o logos na mente = pensamento; o logos
pronunciado = palavra. Há relação entre os sentidos, pois palavra não é simples som ou grafia, mas
um significado, e pensamento é uma unidade de sentido que se expressa em palavra, textos ou
discursos.
Exegese da literatura joanina – Seminário Simonton – prof. Jackson Willian 88
A LXX usa logos para traduzir ָּדבָּ ר. A dabar YHWH é auto-revelação de Deus, sendo a
Torá a melhor expressão dela. Assim no AT a noção de revelação é muito mais sonora (a palavra
falada e ouvida), do que visual.
De acordo com a tendência do pensamento hebraico a palavra de Deus possui um poder
próprio, uma existência independente após ser pronunciada.
João:
− Ao longo do Evangelho o termo pode se referir as palavras, o ensinamento de Jesus. O
plural logo/i: literalmente palavras faladas por Jesus ou por outros. Sinônimo de ῥήματα.
Singular logos: pode se referir a uma afirmação ou discurso específico de Jesus. cf. Jo 2.19-
22. Mas também pode ter sentido coletivo, referindo-se a toda mensagem de Jesus, como
revelação, como mandamentos. Em tudo isso a noção de logos tem haver com o sentido das
palavras. Ouvir o logos é conhecer o significado das palavras de Jesus, é perceber a verdade
(eterna, de Deus, a a)lh/qeia) expressa nas palavras.
− Fora do Prólogo: nunca se diz que Jesus é o logos. Ele apenas anuncia o logos, revela o
logos. Mas considerando que Jesus não apenas anuncia a verdade, mas é a verdade, como
não apenas dá a vida, mas é a vida, daí é lógico que se Jesus traz o logos, ele é o logos.
Assim, tudo que há em Jesus, há em suas palavras. Jesus não nos dá do que ele tem, nos dá
do que ele é.
− A interpretação do logos do prólogo:
a) como a Palavra de Deus do AT: A priori a dabhar YHWH no AT era intercambiável com a
Torá. Assim o vs.10: A Palavra de Deus estava no mundo, reflete a noção de uma revelação
geral ou universal. O vs. 11: A Palavra veio para o povo de Israel, mas este não a recebeu. O
vs. 12: alguns, porém, receberam o direito (não poder; noção legislativa ou judiciária) de
serem filhos de Deus. Versículo 14: a Palavra de Deus se torna homem, trazendo a ׁשכִ ינָּה,
ְׁ a
Shekinah de Deus. Dificuldades: a Palavra era Deus; a Palavra se faz carne. A vantagem é
combinar o uso no prólogo com o restante do evangelho.
b) como a Sabedoria da literatura sapiencial: diversas afirmações do prólogo parecem ecoar
textos da tradição sapiencial. Pv 8.22: “YHWH me criou, primícias da sua obra”; 8.30 “Eu
estava junto com ele como o mestre-de-obras [artífice]”; 8.35 “Quem me encontra encontra
a vida”; 1.29 “Porque odiaram o conhecimento e não escolheram o temor de YHWH”;
Sabedoria 9.4 “... a Sabedoria contigo entronizada”; 9.2 “e com a tua Sabedoria formaste o
homem”; 7.26 “Pois ela é um reflexo da luz eterna”; 7.30 “pois a luz cede lugar à noite, ao
passo que sobre a Sabedoria não prevalece o mal”; 7.25: “Ela é um eflúvio do poder de
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Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se
introduz”; Eclesiástico 24.6 “Saí da boca do Altíssimo e como a neblina cobri a terra”. Tudo
isso mostra a Sabedoria como um pensamento hipostasiado de Deus, imanente na criação e
no homem.
c) com o pensamento de Fílon: o logos é o pensamento de Deus acerca da realidade, seja de forma
transcendente na mente de Deus, seja como imanente na criação. Assim, o logos é Deus enquanto
revelação dele na criação. Reflete a flutuação grega entre pensamento e palavra. Dodd considera o
sentido filônico plausível para o 4º evangelho, pois nele há certa síntese entre os sentidos Palavra de
Deus, Sabedoria, e a noção grega de logos.165
d) quanto à interpretação final do prólogo, Dodd identifica dois níveis de leitura: no primeiro, os
versículos 1-13 refere-se a realidade antes de Cristo (o logos pré-encarnado), no qual o logos é a
revelação universal de Deus manifesta a todos os homens na criação. Esse era o sentido que o
cidadão helenista iria encontrar na primeira leitura do Evangelho. Após ler todo o evangelho, e
voltando para prólogo, ele teria condições de ver a partir do vs. 4 uma referência ao logos como
sendo o logos encarnado, Jesus de Nazaré. Assim, os vs. 4-13 descrevem tanto as relações do logos
com a humanidade e o mundo, quanto se referem ao ministério histórico de Jesus Cristo.
165
É a tendência de Dodd de buscar uma fonte para o pensamento joanino, procedimento passível de crítica.