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Teologia

Da
Igreja ortodoxa
ÍNDICE

1º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA
Introdução .................................................................................................................. 6
Antiga Aliança ............................................................................................................ 6
Nova Aliança .............................................................................................................. 8
O Colégio Apostólico em Jerusalém ........................................................................ 10
O Proto-Concílio de Jerusalém ................................................................................ 11
A Pregação Apostólica ............................................................................................. 13
As Primeiras Igrejas Locais ...................................................................................... 15
Os Contornos Jurisdicionais das Primeiras Igrejas Cristãs....................................... 16
A Pregação Apostólica ............................................................................................. 17
São Paulo – As Quatro Viagens Apostólicas........................................................ 17
Primeira Viagem Apostólica ............................................................................. 18
Segunda Viagem Apostólica ............................................................................ 19
Terceira Viagem Apostólica ............................................................................. 21
Quarta Viagem Apostólica ............................................................................... 23
Apologetas ............................................................................................................... 25
Perseguições: Décio e Diocleciano .......................................................................... 26

CONCÍLIOS
Introdução ................................................................................................................ 30
A Era dos Concílios Ecumênicos (325-787) ............................................................. 31
Concílios Ecumênicos .............................................................................................. 32
O Primeiro Concílio Ecuménico ............................................................................... 33
Antecedentes do Concílio .................................................................................... 33
A Visão da Cruz ................................................................................................... 34
O Concílio de Nicéia - (325) ................................................................................. 34
Conseqüências de Nicéia .................................................................................... 36
São Basílio, o Grande, Metropolita da Capadócia (329-379) ............................... 37
São Gregório de Nazianzo, o Teólogo ................................................................. 38
São Gregório de Nyssa, “Pai dos Padres da Igreja” ............................................. 38
Movimento Monástico .......................................................................................... 39
O II Concílio Ecumênico ........................................................................................... 39
Constantinopla I (381) .......................................................................................... 39
São João Crisóstomo (347-407) .......................................................................... 40
O Terceiro Concílio Ecumênico ................................................................................ 42
Éfeso (431) .......................................................................................................... 42

TEOLOGIA DOGMÁTICA
O Sistema Doutrinal da Igreja Ortodoxa ................................................................... 46
O Desenvolvimento Dogmático ................................................................................ 50
Fonte e Base da Doutrina Ortodoxa ......................................................................... 52
Doutrina da Santíssima Trindade ............................................................................. 54
Divina Trindade ........................................................................................................ 57
A Santíssima Trindade (2ª Parte) ............................................................................. 60
A Verdade ............................................................................................................ 60
Glória ................................................................................................................... 60
O Ser ................................................................................................................... 61
A Imagem ............................................................................................................ 62
Desvendando o Filho e o Espírito ........................................................................ 62
Antropologia ............................................................................................................. 63
O Primeiro Homem Criado ................................................................................... 63
A Queda .............................................................................................................. 64

PATROLOGIA
Introdução ................................................................................................................ 65
Padres Apostólicos .................................................................................................. 65
São Clemente, Papa de Roma (+ 97) .................................................................. 65
Santo Inácio do Antioquia (+ c. 110) .................................................................... 66
São Policarpo, Bispo de Esmirna (+ 156) ............................................................ 67
Papias, Bispo de Hierápolis ................................................................................. 68
Epístola de Barnabé ............................................................................................ 68
Hermas ................................................................................................................ 68
Didakê (ou Doutrina dos Apóstolos) ..................................................................... 69
Apologetas do Século II ........................................................................................... 70
Os Padres da Igreja ................................................................................................. 70
Os Padres da Igreja ................................................................................................. 72
são Justino, O Filósofo (+ c.165) .............................................................................. 73
santo Irineu, Arcebispo de Lion, Primaz da Gália (c.150-202) .................................. 76
Clemente de Alexandria (Meados Séc. Ii ± C.214) ................................................... 81
Orígenes (183/184 – C.254) ..................................................................................... 85
santo Eusébio de Cesaréia (+ C. 340) ..................................................................... 92
santo Atanásio, O Grande (c. 295—373) ................................................................. 97
São Basílio, O Grande. Arcebispo de Cesaréia, Metropolita da Capadócia (c.330-
379) ....................................................................................................................... 104
São Gregório de Nazianzo, o Teólogo Arcebispo de Constantinopla (c.330-390) .. 109

SAGRADA LITURGIA
Introdução .............................................................................................................. 115
A Ação Dramática .................................................................................................. 117
O Sentido do termo Liturgia ................................................................................... 118
Instituição do Sacramento Eucarístico ................................................................... 120
Por quem, onde e quando é celebrada a Divina Liturgia? ...................................... 121
Desenvolvimento do Rito da Divina Liturgia - Período Apostólico e Século II ......... 123

MARIOLOGIA
Apontamentos de mariologia .................................................................................. 126
Evangelho de São Mateus ..................................................................................... 126
Evangelho de S. Marcos ........................................................................................ 127
Evangelho de S. Lucas .......................................................................................... 128
Anunciação ............................................................................................................ 129
Visitação ................................................................................................................ 129
Magnificat .............................................................................................................. 130
Nascimento de Jesus ............................................................................................. 132
Apresentação no Templo ....................................................................................... 132
Jesus entre os Doutores ........................................................................................ 133
São Lucas, Iconógrafo ........................................................................................... 133
Evangelho de São João ......................................................................................... 133
Bodas de Caná .................................................................................................. 133
Junto a Cruz ...................................................................................................... 134
Atos dos Apóstolos ................................................................................................ 134
Apocalipse ............................................................................................................. 135

2º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA
O Quarto Concílio Ecumênico ................................................................................ 138
Calcedônia – 451 ............................................................................................... 138
Justiniano I (527-565) ........................................................................................ 139
O Quinto Concílio Ecumênico ................................................................................ 141
Constantinopla II - 553 ....................................................................................... 141
O Sexto Concílio Ecumênico .................................................................................. 141
Constatinopla III – 680 ....................................................................................... 141
Presença Bizantina na Península Ibérica até ao ano 711 ...................................... 143
São Martinho de Dume (510 ? 20/03/579) ............................................................. 143
Limites da Representação do “Invisível” na Antiga Lei ........................................... 145
O Iconoclasmo e o VII Concílio Ecumênico (787) .................................................. 146
Carlos Magno e os princípios da Centralização Romana ....................................... 149

TEOLOGIA DOGMÁTIICA
Conseqüências da Queda ...................................................................................... 153
Cristologia .............................................................................................................. 154
A Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus ............................................................. 155
A Obra da Salvação realizada por Cristo ............................................................... 156

PATROLOGIA
São Gregório, Bispo de Nissa (C.335-394) ............................................................ 160
Sinésio de Cirene, Metropolita da Pentápole (C.370-413) ...................................... 165
São João Crisóstomo, Arcebispo de Constantinopla (C. 354-407) ......................... 168
Padres Latinos ....................................................................................................... 176
Tertuliano ............................................................................................................... 177
São Cipriano, Bispo de Cartago (C.2007-257) ....................................................... 182

SAGRADA LITURGIA
Desenvolvimento do Rito da Sagrada Liturgia - Séculos III e IV ............................ 190
A Diversificação das Liturgias Orientais ................................................................. 192
Grupo Antioqueno .............................................................................................. 193
Grupo Alexandrino-Romano ou Euro-Africano ................................................... 195
Rito Copta...................................................................................................... 196
Rito Etíope ..................................................................................................... 196
Rito Bizantino ................................................................................................ 197
Preparação para a Sagrada Liturgia .......................................................... 201
Alfaias litúrgicas ........................................................................................ 204

ANGEOLOGIA
“Hierarquia Celeste” - de S. Dinis, o Areopagita ..................................................... 208
3º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA
O Enfraquecimento dos Direitos Metropolitanos .................................................... 225
Os Primórdios do Monaquismo .............................................................................. 226
Florescimento do Monte Athos ............................................................................... 227

TEOLOGIA DOGMÁTICA
A Obra da Salvação realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo (continuação) ....... 231
Participação do Homem na sua Salvação .............................................................. 232
A Santificação pela Graça do Espírito Santo .......................................................... 234

PATROLOGIA
Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão (339-397) ..................................................... 236
Bem-Aventurado Agostinho, Bispo de Hipona (354-430) ....................................... 242
S. Martinho de Dume, Metropolita de Braga, Arcebispo Primaz das Espanhas (510?
– 579)..................................................................................................................... 255
I Concílio de Braga (561) ................................................................................... 257
II Concílio de Braga (572) .................................................................................. 258
Obras literárias de S. Martinho de Dume ........................................................... 259
Obras Ascético-Morais .................................................................................. 259
Obras Canônicas ........................................................................................... 262
Conclusão .......................................................................................................... 262

SAGRADA LITURGIA
Liturgia dos Catecúmenos...................................................................................... 264
Glossário Litúrgico ................................................................................................. 272
Simbologia – A Sagrada Liturgia. A Atemporalidade Litúrgica ................................ 278
I - O “Mistério” na Liturgia – O seu caráter ......................................................... 278
II – Mistério da Economia de Deus .................................................................... 279

ANGEOLOGIA
A Angeologia no Livro do Santo Profeta Ezequiel .................................................. 281
Conteúdo do Livro de Ezequiel .......................................................................... 281
Ezequiel e o Período Profético ........................................................................... 281
Personalidade de Ezequiel ................................................................................ 282
O Livro de Ezequiel............................................................................................ 283
Capítulo I ....................................................................................................... 283
O Céu aberto ................................................................................................. 283
Os três Arautos .................................................................................................. 284
O Ícone da Glória Divina .................................................................................... 286
Os Seres Vivos – I, 5-14: ............................................................................... 286
As rodas – I, 15-21: ....................................................................................... 286
O aspecto do Homem sobre o Trono – I, 22-28: ............................................ 287
1º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA – 1º. Ano

Introdução

Vamos começar por fazer uma sucinta introdução à História da Igreja,


servindo-nos da Eclesiologia que, como ouviram Sua Beatitude referir há algumas
horas atrás, é uma parte da Teologia Dogmática. A Eclesiologia diz-nos o que é a
Igreja, como é a Igreja, donde vem a Igreja. Ora, esta mesma Eclesiologia diz-nos
que a Igreja é uma “Sociedade” Divino-humana (O termo “sociedade” colocamo-lo
entre aspas porque de forma alguma traduz com exatidão a realidade da Igreja, no
entanto fazemos-lhe apelo por nos ser de fácil manuseio e permitir, ainda que com
condicionalismos, falar da Igreja enquanto comunidade inserida neste mundo).
A Igreja é uma “Sociedade” Divina porque as suas raízes remontam à
Santíssima Trindade e é humana porque é composta por homens. Homens que ao
longo dos séculos sofreram vicissitudes de várias ordens, ultrapassando-as ora
melhor, ora pior, e a Igreja acompanhou sempre os movimentos da vida de todos
estes homens.

- Antiga Aliança
Pré-História da Igreja
- Nova Aliança

Antiga Aliança

Ao falarmos da História da Igreja, propriamente dita, que começa


precisamente quando da descida do Espírito Santo no Dia de Pentecostes, impõe-
se-nos que falemos dos seus antecedentes, ou seja, de todos os acontecimentos
que lhe são cronologicamente anteriores e que indiciaram e anunciaram o seu
nascimento. Todos estes acontecimentos, que tiveram lugar antes do Pentecostes,
são abarcados por aquilo que denominamos Pré-História da Igreja, a qual se divide,
por sua vez, em Antiga e Nova Aliança.
A Antiga Aliança, que começa com Abraão e culmina em São João o
Precursor, é toda ela uma prefiguração da Igreja que com a Encarnação do Verbo
no ventre de Maria irá nascer, enquanto Instituição visível neste mundo, no dia de
Pentecostes.
É Abraão que, pela sua resposta pronta, imediata, ao chamamento de
Deus, vai assumir a responsabilidade de ser o Pai do seu Povo.
Abraão é descendente de Noé e era originário da cidade de Ur na
Mesopotâmia, vindo posteriormente a fixar-se em Haran na Síria. É importante reter
de Abraão que ele era pagão e a Palavra de Deus vai pô-lo em marcha em direção
a um lugar que Abraão desconhece; esta Palavra constitui já o povo contido em
gérmen nesta Família patriarcal. Convém salientar que, além de ser pagão, Abraão
não tem descendência – Sara, sua mulher, é infecunda, estéril. Deus, todavia,
prometera-lhe um filho, ao qual Abraão poria o nome de Isaac.
Pelo que acabamos de dizer se infere que a Palavra que se dirige a
Abraão o convida a um duplo ato de fé: pôr-se em marcha para um lugar
unicamente de Deus conhecido e esperar um filho (Gn 12, 1ss). A esta Palavra
totalmente desconhecida de Abraão, responde o Patriarca tudo arriscando na Fé;
entre ele e Deus é estabelecida uma relação de justiça (Gn 15, 6). Abraão está em
tudo de acordo com o Deus vivo, correspondendo em tudo àquilo que Deus dele
espera.
Por esta razão a vida de Abraão pode ser considerada a Grande Aventura
da Fé; Abraão renuncia a toda a segurança para viver da única certeza que lhe dá

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a Palavra. É a este homem, que se despoja de todo o comodismo e que acredita
sem reservas nem hesitações na Palavra, que Deus vai confiar a árdua tarefa de
criar e preparar um povo que espere e reconheça o Messias, que Deus pela boca
dos Profetas irá anunciar. Lembremos ainda que Deus convida Abraão a pôr-se em
marcha e a seguir para uma terra que só Ele conhece, onde o Patriarca deve
esperar; no entanto não é revelado a Abraão o que é que ele deve esperar; ele não
sabe que vai esperar o Messias. Só mais tarde, através dos Profetas, será revelado
ao povo que este deve esperar o Messias. E Abraão, apesar de estar mergulhado
no desconhecido, avança, confia em Deus e não vacila um momento sequer na sua
decisão.
Deus vai pôr à prova o Seu povo ao longo de dois mil anos que o
separam da vinda do Messias e do nascimento da Sua Igreja, por várias vezes,
porque queria um povo adulto na fé, firme e inabalável quanto à Aliança, quanto ao
contrato que tinha selado com Deus.
Mas antes do povo ser posto à prova, Deus põe Abraão à prova. Dá-lhe
um filho, que Abraão ama profundamente, e ordena que Lhe ofereça. Esta ordem
de Deus visa a um tempo testar mais uma vez a fé de Abraão. Amará Abraão mais
o seu filho do que Deus que lho ofertara? Deus sabe que Abraão O ama mais do
que ama a Isaac, contudo quer que o Patriarca tenha ele próprio essa certeza para
poder, pela confiança acrescida depositada em Deus, pela prova a que fora sujeito,
fazer face a todas a intempéries e vicissitudes que o futuro lhe irá trazer e tudo
aceitar. Por outro lado, esta provação a que Abraão é submetido, é já uma
prefiguração da imolação de Cristo na Cruz, por isso mesmo anúncio da Igreja que
há de vir. Deus, ao interromper o sacrifício, cumpre a promessa feita a Abraão,
tornando-o Pai de um imenso Povo.
Notem que Isaac é salvo da morte para poder ser ele o continuador da
obra de Abraão, construtor de um grande povo de Deus, mas que vive somente a
esperança do Reino de Deus; ao passo que Cristo vai morrer e Deus Pai não
impede essa morte. Esta morte, seguida da Ressurreição, abre a todo o povo da
Nova Aliança, não a possibilidade de viver na esperança o Reino de Deus que há
de vir, mas viver realmente o Reino de Deus na Terra, para o qual se entra por uma
morte também – o Batismo – morrer com Cristo para com Ele ressuscitar,
alimentando-se do Corpo e do Sangue do Salvador.
Isto é verdadeiramente uma antinomia e à primeira vista parece quase
uma contradição. Isaac é poupado por Deus, é-lhe dado viver para continuar a obra
de seu pai, todavia o seu povo, podê-lo-íamos afirmar, é um povo de mortos. De
mortos porque vivem apenas na fé e na esperança do Reino, numa terra prometida
por Deus, é certo, mas estrangeira, alimentados pelos frutos dessa mesma terra em
que vivem. Ao passo que, na Nova Aliança, não é mais o sacrifício de um homem
qualquer que se avizinha, é o Sacrifício do próprio Filho de Deus. E Deus não vai
parar esse Sacrifício, não o interrompe como fez com Isaac. Aqui, o Sacrifício é
consumado, precisamente porque era o único capaz de nos abrir as portas do
Reino, pela Morte e Ressurreição do Messias. O que teria sido inútil e injusto em
Isaac é agora imprescindível para que o Homem não mais viva apenas na fé e na
esperança do Reino que há de vir, mas possa, através de Cristo, que inaugura o
Reino do Amor e da Misericórdia divinos, entrar realmente no Reino de Deus que
pela Ressurreição do Messias nos é franqueado, nos é aberto.
O tempo da fé e da esperança no Reino findou. Na Nova Aliança o Homem,
pelo Batismo, entra no Reino onde vive com Cristo, que está presente ao Homem
através dos Sacramentos que a Igreja distribui.
Na Antiga Aliança é necessário que seja poupada uma vida para que um
povo de mortos possa existir. Na Nova Aliança é necessária uma morte, a do

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próprio Filho de Deus, para que por essa mesma morte venha a vida para todos os
homens.
Voltando ao povo do Antigo Testamento, é bom recordar que este mesmo
povo vai sofrer ao longo de toda a Antiga Aliança, vítima da sua própria
inconstância, porque impaciente, jamais sabendo esperar pelo tempo anunciado
por Deus.
Contudo é este povo que Deus elegeu como herdeiro da Sua promessa. É
ele que vai ser, em todas as suas ações, um prefiguração constante da futura Igreja
de Cristo. Já na sua permanência forçada no Egito, sob o pesado jugo da
escravidão, se pode antever a perseguição que irá ser movida à Igreja nos três
primeiros séculos da sua existência.
A instituição da Realeza em Israel é ele também prefiguração da Realeza do
Messias. Messias que o povo de Israel não soube esperar, preferindo à esperança
no Messias anunciado a evidência palpável de um rei, à semelhança do que era
próprio aos demais povos seus vizinhos (I Sm. 8-12).
A transitoriedade da Tenda da Reunião, prefiguradora também ela da vinda
do Messias, anuncia a instituição da Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, só Ele
perene, imutável e eterno. Convém que falemos um pouco acerca da Tenda da
Reunião (Ex. 40 e ss). O livro do Êxodo narra como Deus instituiu no meio do Seu
povo um Santuário; lugar vazio, pois só a Presença invisível do Senhor o enchia na
plenitude; e como “sacramento” pediu que fosse feita a Arca da Aliança onde foram
colocadas as Tábuas da Lei e o Maná que tinha alimentado o povo no deserto. Este
Santuário (Tenda da Reunião) será doravante o lugar de encontro entre Deus e o
Seu povo; o homem não terá mais necessidade de subir às montanhas para O
encontrar. Deus abaixa-Se, desce dos Céus e habita no meio dos homens.
Todavia, não é nem a Tenda, nem a Arca que contam, que são importantes: elas
são provisórias. Só a Palavra e a Presença de Deus enchem tudo, são
definitivamente tudo, presentes que devem estar sempre em todos.
Só Cristo é a Nova Tenda, é o novo Tabernáculo, não provisório, mas eterno:
“A Palavra fez-Se carne e habitou entre nós”, como diz João no capítulo 1,14 do
seu Evangelho.
À guisa de informação, diremos que a Tenda da Reunião albergava:
- a Arca do Testemunho, ou da Aliança, que estava coberta com um véu;
- a Mesa da propiciação (onde era preparada a vítima a oferecer):
- o Castiçal de ouro, que tinha sete braços;
- o Altar do incenso;
- o Altar do holocausto, diante da porta da Tenda da Reunião;
- a Pia da água, que estava entre a Tenda e o Altar.
Ainda aqui o povo renuncia à esperança, preferindo a estabilidade ilusória
que o templo construído de pedra e madeira lhe oferece, perdendo de vista o seu
verdadeiro e único objetivo, que consistia em esperar o Messias e Sua Igreja.
A Antiga Aliança é uma contínua prefiguração da Igreja porque a anuncia no
decorrer dos séculos através dos atos do seu povo, mesmo quando estes se não
coadunam com a vontade de Deus, veiculada pelos Profetas.

Nova Aliança

É através de um Profeta que nós chegamos à Nova Aliança. Profeta este que
é a um tempo o último da Antiga e o primeiro da Nova e o único que em toda a
história da profecia em Israel assiste à realização das suas profecias. São João o
Precursor anuncia a vinda do Messias, anuncia que o Reino dos Céus chegou e
assiste a essa realidade.

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Também a Nova Aliança, mas agora de uma forma evidente, nos anuncia a
vinda da Igreja, sendo ela própria já a Igreja de Cristo. Começa logo por no-la
anunciar quando do Diálogo entre São Gabriel e a Santíssima Virgem Maria.
Porque Maria aceitando ser a Mãe do Messias, do Verbo Encarnado, é certeza
inegável do nascimento da Igreja, na medida em que Aquele que o seu ventre vai
transportar, alimentar e proteger será o seu fundador.
Cristo vai durante todo o tempo da Sua pregação deixando cada vez mais
evidente a vinda da Igreja. A Paixão, a Morte e a Ressurreição constituem um só
acontecimento que é a glorificação do Filho junto do Pai, condição para a descida
do Espírito Santo no Pentecostes, logo conseqüente nascimento da Igreja. Cristo
vai, durante o tempo do Seu ministério, preparar tudo para a vinda da Sua Igreja.
Não rompendo com a Antiga Aliança nem com a Lei que a informa, Cristo vai, no
entanto, sublimá-la, elevando-a a um expoente conseguido porque Ele é Deus.
Cristo vai assim decalcar a estrutura eclesial da futura Igreja naquela já
existente no Templo de Jerusalém; vai chamar Doze Apóstolos à imagem dos doze
Sumo-sacerdotes que compunham o Sinédrio; vai instituir o presbiterado e o
diaconado, à semelhança dos Levitas que estavam incumbidos de preparar e
oferecer os sacrifícios cruentos no Templo. Convém salientar que Cristo não institui
diretamente o Presbiterado e o Diaconado; um e outro foram instituídos pelos
Apóstolos por mandato do Mestre. Daí se afirmar que ambos foram instituídos por
Cristo. Tudo o que os Apóstolos (Doze) fizeram – cada um dos seus atos – fizeram-
no no cumprimento da vontade de Cristo, logo é como se o próprio Senhor os
tivesse praticado.
Vai, também, tornar presente o Sacrifício que a Antiga Aliança praticava, só
que não mais se oferecerão sacrifícios cruentos, não mais se oferecerão animais
pela expiação dos pecados do homem, para que Deus, aceitando-os, poupasse a
vida do Seu povo que lhos ofertava, mas é Ele próprio, o Messias, o Filho de Deus,
que Se vai oferecer – deixando-Se imolar na Cruz – e de uma vez por todas
conseguir o Perdão e a Salvação do Seu povo, junto do Pai.
O povo da Nova Aliança tem, assim, pelos méritos pessoais de Cristo, a
salvação como garantia, bastando-lhe que aceite Cristo e viva segundo os Seus
mandamentos ao interior da Sua Igreja. Desta forma, pela sua vontade de homens
livres, sinérgica, concomitante com a vontade de Cristo, eles podem e devem
enveredar pelo caminho da santidade. Porque todas as obras de fé do Homem, no
cumprimento da vontade de Deus, têm por fim a sua santificação pessoal e não a
sua salvação, uma vez que esta foi por Cristo conseguida para todos os homens
que O aceitem, de uma vez por todas na Cruz.
O que vamos dizer, embora seja mais do âmbito da Eclesiologia, convém ser
referido. Cristo vai ainda, por intermédio da Sua Igreja, dar a todo o Seu povo algo
que na Antiga Aliança era apenas de uma “casta”, de uma tribo, a de Levi. Este
“algo” é o sacerdócio que na Nova Aliança vai ser conferido a todo o povo. Todo o
povo passa a ser um povo real, sacerdotal e profético. Enquanto na Antiga Aliança
só à tribo de Levi era lícito oferecer e consumir o sacrifício, na Nova Aliança é por
Cristo dada a todas as tribos a faculdade de oferecer e consumir o Sacrifício,
comungando do precioso e Santo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Deus e
Salvador Jesus Cristo. É porque o povo da Nova Aliança é um povo de sacerdotes,
que ele pode comungar a Sagrada Eucaristia. Aquilo que era tão somente um
símbolo na Antiga Lei, Cristo vai torná-lo real.
O povo da Nova Aliança deixa de ser um povo de servos (o que era de fato na
Antiga) para passar a ser um povo de filhos de Deus. Filhos por adoção, mas filhos
realmente. A relação entre Senhor e servo esfuma-se para dar lugar à relação entre
Pai e Filho. Deixa de imperar o Reino da Justiça para nascer com Cristo o Reino do
Amor. A expectativa do Reino de Deus, que era própria ao povo da Antiga Aliança,

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cede lugar à entrada do Reino, com Cristo. E esse Reino é a Sua Igreja nesta Terra
onde habitamos e onde Cristo está presente conosco continuamente pelos
Sacramentos que a Sua Igreja Santa distribui.

O Colégio Apostólico em Jerusalém

Com a partida de Cristo para o Reino dos Céus, após estar junto dos
Doze quarenta dias, os Apóstolos ficam reunidos em Jerusalém aguardando a
promessa da Descida do Espírito Santo à Sua Igreja. Permanecem assim durante
dez dias. No qüinquagésimo dia após a Ressurreição do Senhor, diz São Lucas no
livro dos Atos dos Apóstolos (2, 1-4) que “cumprindo-se o dia de Pentecostes
estavam todos reunidos no mesmo lugar. E de repente veio do Céu um som, como
de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam
assentados. E foram vistas por ele línguas repartidas, como que de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e
começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que
falassem”.
Começa desta forma a narração do Pentecostes. Surge muitas vezes uma
pergunta: “Sobre quem – precisamente – desceu o Espírito Santo? Sobre Maria,
Mãe de Deus, sobre os Doze Apóstolos somente (cujo número acabava de ser
completado pela eleição de São Matias), sobre um círculo mais alargado
compreendendo os irmãos do Senhor, algumas mulheres (entre as quais estaria a
Virgem Maria) – mencionadas em 1,14 – ou ainda sobre os 120 discípulos reunidos
para a eleição de São Matias (1,15)?” A Tradição da Igreja diz-nos que o Espírito
Santo desceu primeiramente sobre Maria, Mãe de Deus, depois sobre os Apóstolos
e segundo as palavras de São João Crisóstomo, descera também sobre toda a
comunidade.
São Lucas esboça um quadro da vida da primeira comunidade em
Jerusalém; os fiéis, em número de 120 primeiramente (At 1, 15), de 3 a 5 mil em
seguida (2, 41; 4, 4) agrupam-se em torno dos Doze, no meio dos quais São Pedro,
durante este período, é incontestavelmente o primeiro, enquanto ícone da unidade
do Colégio Apostólico (Mt 10, 1-2). É ele, com efeito, que antes do Pentecostes,
toma a iniciativa da eleição de um décimo-segundo Apóstolo, São Matias, para
ocupar o lugar deixado vago por Judas (At 1, 15 ss.); é ele que no meio dos Doze e
em seu nome pronuncia a pregação inaugural após o Pentecostes (2, 14-41); é ele
que, acompanhado por São João o Teólogo, realiza o milagre do templo (3, 1-10),
proferindo nesta ocasião um importante discurso sob o pórtico de Salomão (3, 11-
22); é ainda ele que deve responder perante o Sinédrio (4, 8-12; 5, 29-32).
Durante todo o tempo em que os Apóstolos estão em Jerusalém, São Pedro
é a referência obrigatória de todos eles. Sendo o primeiro entre eles, São Pedro
não lhes é, todavia, superior. Tudo o que Pedro tem, foi dado por Cristo igualmente
aos restantes Apóstolos, na mesma medida e grau. São Pedro preside à
colegialidade do Círculo Apostólico e embora tenha sido o porta-voz dos Doze
nesta altura em que estão na Cidade Santa, aquilo que faz e proclama não é da
sua lavra exclusiva, mas resultante do conselho dos outros Apóstolos. Para nos
demonstrar que São Pedro não é um super-Apóstolo, não tendo nada que os
demais não possuam, São Lucas narra-nos nos Atos que “os Apóstolos estavam
em Jerusalém e ouvindo que a Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para
lá Pedro e João” (8-14). Se São Pedro fosse o “chefe” dos Apóstolos no sentido
jurídico do termo, teria sido ele a enviar e não seria o enviado. Isto não acarreta
demérito algum para São Pedro, apenas o enquadra na justa medida do seu múnus
apostólico, em tudo igual aos restantes Apóstolos.

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Quando a Igreja sai dos muros de Jerusalém e das regiões circunvizinhas,
São Pedro continuando a ser o ícone da unidade do Colégio Apostólico, não é mais
o ponto de referência obrigatório, ordinário, o que não exclui a possibilidade de ser
uma referência autorizada à qual qualquer cristão, diácono, presbítero ou apóstolo
podia fazer apelo. Com a expansão da Igreja por outras regiões, por outras terras e
mesmo por outros países, as comunidades locais nascentes tinham como
referência obrigatória e natural o apóstolo ou apóstolos que estiveram na base da
sua origem.
Todos nós sabemos que os Apóstolos não se intrometiam nos territórios da
ação pastoral dos seus irmãos, respeitando as suas jurisdições. Assim, pouco a
pouco começaram a imprimir um cunho pessoal nessas comunidades, que
passaram a diferenciar-se das demais em muitos aspectos da sua vida em Igreja.
Mas, apesar disto, a primazia de Pedro jamais foi posta em causa enquanto ícone
da unidade dos Doze, enquanto referencial autorizado e idôneo. Não podemos é
extrapolar esta Primazia de Honra que Pedro detém e conferir-lhe uma Primazia de
chefia, de mando, de poder, de jurisdição.
Nesses primeiros anos e durante os três séculos que se lhes seguiram até ao
aparecimento dos Padres Capadócios, o ensinamento e a pregação dos Apóstolos
cingia-se a textos de circunstância que eles escreviam às comunidades que
fundavam, visitavam e dirigiam de longe. Estes textos, por sua vez, conservados
pelos seus destinatários, eram em seguida comunicados a outros, sendo trocados,
constituindo pouco a pouco um conjunto de textos apostólicos que se liam e
comentavam nas comunidades cristãs.
Foram constituídas desde muito cedo antologias de textos
veterotestamentários, aos quais era conferida uma interpretação cristã. Foram
estes textos, que continham um grande número de “Palavras de Cristo”, que eram
citações mais ou menos desenvolvidas dos Sermões do Senhor, que serviram de
guia à pregação cristã nas diferentes comunidades da Igreja que começava a
florescer.
É também por esta altura que começa a surgir a necessidade de preservar
estes textos que narravam os atos, os milagres, enfim todo o percurso de Cristo
entre os homens, até a Sua Ascensão aos Céus.

O Proto-Concílio de Jerusalém

É necessário dizer que a comunidade Jerusalém era composta de judeu-


cristãos que permaneciam fiéis à Lei de Moisés e, pelo menos parcialmente, ao
culto do templo (At 2, 46; 3,11; 5, 20). E é devido, em parte, a esta grande
vinculação (que existia por parte de grande número dos primeiros cristãos) ao
templo que surge o Proto-Concílio de Jerusalém. Este primeiro Concílio da Igreja,
que irá servir de protótipo, de modelo para todos os que se lhe vão seguir, tem
lugar no ano 50 da nossa era.
Nessa altura já a ação missionária dos Apóstolos tinha galgado os muros da
cidade de Jerusalém; a primeira viagem apostólica de São Paulo, por exemplo, já
se havia efetuado entre os anos 45 e 49, permitindo-lhe anunciar o Evangelho em
Chipre, na Panfília, Pisídia e Licaônia (At 13-14).
O Concílio vai tratar de um problema que na altura estava a suscitar grande
controvérsia e que consistia em saber se a Lei mosaica obrigava os cristãos
oriundos do paganismo a submeter-se à circuncisão. O capítulo 15 do livro dos
Atos dos Apóstolos começa assim: “Então alguns que tinham descido da Judéia
ensinavam desta forma os Irmãos: Se vos não circuncidardes, conforme o uso de
Moisés, não podeis salvar-vos. Tendo tido Paulo e Barnabé não pequena discussão
e contenda contra eles, resolveu-se que Paulo e Barnabé e alguns dentre eles

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subissem a Jerusalém aos Apóstolos e aos Anciãos sobre aquela questão” (At 15,
1-2).
Tratava-se, como atrás dissemos, de saber se os cristãos provenientes do
paganismo deviam ou não estar sujeitos à Lei de Moisés. O Concílio respondeu
negativamente, libertando os cristãos dessa sujeição à antiga Lei mosaica,
doravante realizada em Cristo. O que era distintivo apenas do povo eleito não tinha
mais razão para continuar a persistir, uma vez que a Nova Aliança estende-se a
todos os povos que aceitem Cristo. A condição para entrar no Reino de Deus passa
pela aceitação de Cristo, morrendo com Ele no Batismo e ressurgindo com Ele das
águas para entrar no Seu Reino. Não tem mais sentido passar pela circuncisão
antes do Batismo. A chave da nossa entrada no Reino é o Batismo e não a
circuncisão.
Esta foi a decisão sancionada pelo Concílio e os Apóstolos falaram com uma
autoridade que em qualquer outra ocasião poderia parecer ousada ou presunçosa.
Com efeito, as suas decisões conciliares começaram por estas palavras: “Pareceu
bem ao Espírito Santo e a nós...”. Estas decisões do Concílio desligaram os novos
convertidos da obrigação da circuncisão e da observância dos ritos judaicos.
É certo que nós somos judeu-cristãos. Todo o Antigo Testamento faz parte
da nossa História enquanto povo de Deus. E também é verdade que Cristo não
veio ab-rogar com a antiga Lei, mas dar-lhe um outro sentido, o verdadeiro; aquilo
que eram símbolos e prefigurações tornou-se realidade na Nova Aliança. Logo, não
devemos confundir a Igreja Cristã com judaísmo. A Salvação foi por Cristo auferida
para todos os homens. O Antigo Testamento foi apenas o seu veículo, vivido pelo
povo judeu, mas cujo fim respeitava a toda a humanidade, sem que, no entanto,
esta tivesse de se judaizar. Este princípio prevaleceu desde o início da Igreja,
recusando um nacionalismo judaico exacerbado que não queria admitir salvação
alguma fora dele.
Voltando à definição conciliar: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...”,
devemos referir que ela foi retomada por todos os Concílios Ecumênicos. Não foi
por acaso que esta fórmula foi revelada aos Apóstolos e Bispos reunidos em
Concílio. É que só os Santos Concílios, depositários da infalibilidade da Igreja,
podem falar com esta segurança.
Sabemos que São Pedro tinha uma posição judaizante face ao problema em
questão. Contudo a decisão conciliar infirmou a sua posição. Daqui, podemos com
verdade inferir contra aqueles que pretendem fazer de São Pedro uma coisa que
ele nunca foi – Vigário de Cristo – que, fora verdade o que esses afirmam e não
veríamos o Apóstolo submeter-se às decisões conciliares. Sem mais delongas, só a
Igreja é infalível e não há sobre a Terra nenhum homem que conglomere nele esta
infalibilidade. Todo o resto que não se coaduna com esta posição é espúrio e
estranho à Tradição da Igreja.
É importante ainda salientar um fato extremamente importante. Quem preside
o Concílio de Jerusalém não é São Pedro – que era o ícone da unidade do Colégio
Apostólico – nem nenhum dos outros Apóstolos. Preside o Concílio Sant’Iago,
irmão do Senhor, Bispo de Jerusalém. Todos os Apóstolos respeitaram a jurisdição
episcopal de Sant’Iago, sendo ele que toma a palavra no Concílio, como é dito no
capítulo 15,13 dos Atos dos Apóstolos.
O Apóstolo é Bispo do mundo inteiro, mas o Bispo é Apóstolo do lugar, logo
era lícito respeitar a jurisdição daquele Bispo, Sant’Iago, que tinha à sua guarda o
cuidado da Igreja de Jerusalém. Neste primeiro Concílio estão reunidos todos os
Chefes das Igrejas locais, que são na sua maioria os Apóstolos. Preside ao
Concílio o Chefe da Igreja de Jerusalém, Sant’Iago. Os Apóstolos ao sagrarem
Sant’Iago tinham-lhe conferido um poder igual ao seu, com exceção da jurisdição
universal dos Apóstolos, chamados por Cristo diretamente.

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Mas esta jurisdição universal dos Apóstolos não anulava a jurisdição local
dos Bispos por eles sagrados. A responsabilidade direta dessas primeiras dioceses
pertencia aos Bispos e só em última instância aos Apóstolos. Desta forma se
entende melhor a posição dos Apóstolos quanto à presidência do Concílio de
Jerusalém.
Após a realização do Concílio, os Apóstolos partem novamente,
empreendendo a sua ação missionária entre os vários povos, nos diversos países
de então.

A Pregação Apostólica
A pregação apostólica, levada a cabo inicialmente pelos Apóstolos e
posteriormente pelos Bispos, gira em torno da narração da Paixão de Cristo, da
Sua Ressurreição, da Sua Exaltação em glória, da efusão do Espírito Santo na
Igreja e da Parusia; ou seja, a chegada dos tempos messiânicos na expectativa da
gloriosa Vinda do Senhor. Estes temas constituem o cerne primitivo da pregação
apostólica, essencialmente baseada sobre a exegese do Antigo Testamento,
denotando uma forma toda ela impregnada de aspectos aramaizantes. Por
exemplo, a menção do “Nome de Jesus” denota uma forma judaica de expressão.
Um dos temas maiores da Igreja primitiva é o Kerigma da efusão do Espírito
Santo. “De sorte que, exaltado pela destra de Deus e tendo recebido do Pai a
promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vede e ouvis” (At 2, 33).
Os Apóstolos e os Padres Apostólicos não esqueciam nunca nas suas
pregações a referência imprescindível à Festa do Pentecostes, lembrando os
primeiros cristãos que esta festa era para os Judeus o dia da renovação anual da
Antiga Aliança, mas mais importante que isto, a descida do Espírito Santo neste
mesmo dia é o sinal da chegada da Nova Aliança, selada pelo Sangue de Cristo.
Enquanto a Antiga Aliança é reservada exclusivamente ao povo Judeu, a Nova
Aliança é destinada a todos. É tendo em linha de conta esta realidade
pneumatológica que a pregação apostólica começa a dar os primeiros passos. O
Espírito Santo acompanha aqueles que pregam a palavra (At 4, 8-31; 6, 10; 9, 17-
22). De todos os Apóstolos, aquele em cuja pregação o Espírito Santo Se torna
mais nítido é sem dúvida alguma São Paulo, que descreve o Espírito Santo como
uma Pessoa (divina) agindo na Igreja. Os Apóstolos tinham a certeza de que o
Espírito Santo conduzia a Igreja. Uma das vertentes da sua pregação consistia em
dizer ao povo cristão que mentir ao interior da Igreja não é mentir diante dos
homens, é mentir ao próprio Espírito Santo (At 5, 3-9). Santo Estevão acusa o
Sinédrio de se opor ao Espírito Santo (At 7, 21).
Os Apóstolos admoestavam ainda os fiéis dizendo-lhes que “estar cheio do
Espírito Santo” (esta é uma expressão que se encontra amiúde sob a pluma de São
Lucas nos Atos 2, 4; 4, 8-31; 6, 3-5; 7, 55; etc.) não significa que se tenha recebido
os dons espirituais como, por exemplo, línguas de fogo, sabedoria e fé, mas viver
uma vida nova sob a conduta direta do Espírito Santo.
A pregação apostólica é toda ela inspirada na vida do Mestre durante o
tempo em que esteve entre os homens, fazendo menção dos Seus inúmeros
milagres, das Suas palavras e dos Seus atos salvíficos. A pregação nesta época
ainda não tem como suporte, como apoio, toda a formulação teológica que começa
a tomar corpo com a realização do primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia I (325).
Todavia, o conteúdo desta formulação, que irá ter lugar a seu tempo, está incluso
na Igreja desde a sua origem, começando a tomar forma à medida que a Igreja se
vai descobrindo a Ela própria. Como um ser vivo que é, a Igreja necessitou de
tempo para se conhecer. Logo, neste primeiro século (segundo e terceiro também)
a pregação, mais do que uma explanação teológica é fruto de uma experiência

13
vivida, pessoal, conferindo às comunidades cristãs um cunho próprio, diferenciado
dos demais.
As dificuldades quanto à pregação começam muito cedo. Inicialmente ela é
dirigida aos Judeus que estavam extremamente agarrados à letra da Lei de Moisés,
à sua Religião e aos seus costumes, isto tanto em Jerusalém como na maioria das
cidades em que os Apóstolos como São Paulo pregaram. Os Judeus formavam
agrupamentos nitidamente à parte no seio do mundo helenizado, usufruindo, além
do mais, alguns privilégios concedidos pelos Imperadores Romanos, que tornavam
a sua existência mais amena.
Os problemas agravam-se quando os Apóstolos e principalmente São Paulo
começam a sair dos muros da Cidade Santa de Jerusalém, indo pregar a Boa-nova
entre os gentios, entre os pagãos. Não esqueçamos que os primeiros fiéis são
judeo-cristãos e que as leis judaicas eram bastante estritas em relação ao contato
com os pagãos; estava, por exemplo, vedada aos Judeus a possibilidade de tomar
qualquer refeição com os não circuncidados.
Para vermos o grau de dificuldade com que se deparou a pregação
apostólica, é bom recordarmos alguns episódios da vida do povo judeu, para
constatarmos a amplitude da sua intransigência. Jerusalém, que recebe em primeiro
lugar a Boa-nova do Evangelho de Cristo, sofria desde há dois séculos uma
fortíssima pressão por parte dos monarcas helenizados circundantes, dos seus reis,
como Herodes: os aristocratas, as famílias dos Sumo-Sacerdotes e os Saduceus
aceitaram esta helenização. (Os Saduceus formavam a casta sacerdotal e
aristocrática de Jerusalém. Conservadores em religião, só admitiam como canônicos
os cinco primeiros livros do Antigo Testamento – o Pentateuco. Rejeitavam todos os
outros e com eles a ressurreição e a existência dos anjos. Em política eram abertos
à cultura e à autoridade greco-romana). Pelo contrário, os homens “piedosos”, os
Fariseus, os Essênios e em geral o povo humilde dos campos e da própria cidade de
Jerusalém opuseram-se a essa helenização, por devoção, por respeito pelas antigas
tradições e por fidelidade para com a Lei de Moisés. (Quanto aos Fariseus, eram
descendentes ideológicos dos que apoiaram a revolução de Judas Macabeu (I Mac
2, 42). Politicamente opunham-se a todo o poder civil; pois só Deus era o Rei de
Israel. Por isso não simpatizavam nem com os herodianos – partidários de Herodes
– nem com os Romanos. Rígidos até ao extremo na observância da Lei, era
progressistas nas idéias religiosas, admitindo a Ressurreição final e a existência dos
anjos, coisas que os outros grupos geralmente não admitiam. Por sua vez, os
Essênios esperavam o Salvador, a quem designavam por Mestre de Justiça, viviam
no deserto em comunidades só de homens, tinham tudo em comum e viviam
afastados de todos os demais grupos existentes em Israel).
O templo, centro de peregrinação de toda a Diáspora judaica, torna-se o
bastião da resistência à helenização. Quando Pôncio Pilatos, segundo nos narra o
historiador Flávius Josefus, quis introduzir em Jerusalém os estandartes da efígie
do Imperador, uma multidão de Judeus dirigiu-se a Cesaréia suplicar a Pilatos –
durante vários dias – que tal não permitisse, preferindo a morte a desonrar a Santa
cidade. Quando Calígula ordena que se coloque a sua estátua no templo, os
protestos tornam-se tão violentos que os membros do governo encarregados da
execução da ordem imperial decidem não dar provimento ao desejo do Imperador,
arriscando as suas próprias vidas.
A primeira comunidade cristã de Jerusalém, composta por Judeus que se
tornaram cristãos, permanecia fiel à Lei de Moisés e ao culto do templo. Os judeu-
cristãos reclamavam que todos os pagãos fossem circuncidados antes do Batismo.
Diante destes acontecimentos, compreende-se bem as violentas reações que
suscitaram as missões de São Paulo.

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O Evangelho vai progressivamente propagar-se a partir da primeira
comunidade de Jerusalém (judeu-cristã) até Roma, capital do mundo pagão, até ao
Oriente (Armênia) e até às Espanhas. O Evangelho é ainda pregado na Samaria.
(Os Samaritanos eram descendentes duma população mista, judaica e pagã.
Tinham templo próprio no monte Gerisim – II Re 17, 24-28; Ed 4, 1-4. Só admitiam
o Pentateuco como livro sagrado e não simpatizavam com os Judeus – Jo 4, 4 ss).
(À guisa de informação diremos que existiam ainda mais dois grupos em Israel, os
Zelotes e os Escribas: os Zelotes eram um grupo político que favorecia um
nacionalismo exacerbado e não suportavam o jugo romano. Provocavam
constantes rebeliões. Os Escribas eram os copiadores dos manuscritos da Lei.
Tornavam-se intérpretes oficiais da mesma. Não formavam um partido. Havia
Escribas entre os Fariseus e os Saduceus, cuja religião era considerada como
herética pelos Judeus – At 8, 5-25).
A pregação apostólica é em primeiro lugar dirigida aos Judeus, que a
rejeitam, e em seguida, com São Paulo, é dirigida aos pagãos, que acolhem a sua
palavra com grande entusiasmo. A pregação da era apostólica atinge o seu clímax
com São Paulo, que irá levar a Boa-nova a todo o mundo pagão.

As Primeiras Igrejas Locais

As primeiras Igrejas locais são o fruto do árduo trabalho empreendido pelos


Apóstolos e continuado com igual dedicação e amor por parte dos Padres
Apostólicos que se lhes seguiram. Seguindo as ordens do Senhor, os Apóstolos
partiram através do vasto mundo que os circundava, para ensinar os povos dessas
regiões, batizando-os em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Segundo a
Tradição, São Pedro fundou a Igreja de Antioquia (Síria), tendo depois com São
Paulo fundado a Igreja de Roma, onde selaram o seu apostolado com a morte. A
fundação da Igreja de Corinto é igualmente atribuída aos dois Apóstolos. O irmão
de São Pedro, Santo André, pregou na Ásia Menor e posteriormente nos Bálcãs
(que se estendem sobre a Bulgária, a Iugoslávia, a Albânia, a Grécia e a Turquia
européia). De acordo com uma tradição assaz antiga, que prevalece na Igreja
Ortodoxa, Santo André é reputado por fundador da Igreja de Constantinopla. O
Evangelista São Marcos, discípulo de São Pedro, exerceu o seu ministério no Egito
e fundou a Igreja de Alexandria.
No que concerne à atividade dos restantes Apóstolos, os dados históricos
são bem mais escassos. Contudo, tendo em conta a Tradição, o Apóstolo São
Filipe, um dos primeiros chamados, pregou na Ásia Anterior e no Sul da atual
Rússia. São Bartolomeu evangelizou a Índia, a Mesopotâmia (região da Ásia entre
os rios Tigre e Eufrates) e a Armênia. São Tomé levou o Evangelho aos Partos
(antigo povo syta da região da Pérsia) e à Índia. São Simão “o Zelote” terá
evangelizado primeiramente os Judeus e depois, juntamente com São Judas
Tadeu, a Mesopotâmia e a Pérsia (atual Irã). São João, o discípulo bem-amado do
Senhor, que recebeu o nome de “Teólogo” e que como São Pedro e Sant’Iago era
uma das três Colunas da primitiva Igreja, consagrou-se a Éfeso (região da Jônia
situada na costa do mar Egeu na Ásia Menor, entre Mileto e Fócia e que era
habitada pelos Gregos emigrados); Sant’Iago (o “maior”), irmão de São João,
segundo uma tradição pouco verossímil teria pregado nas Espanhas. Um dos 72
discípulos, São Matias, foi eleito Apóstolo, após a tiragem à sorte, para ocupar o
lugar de Judas Iscariotes. Segundo a Tradição, evangelizou inicialmente os Judeus
e depois partiu para a Etiópia.
Convém ainda salientar que a Tradição nos afirma ter São Paulo estado na
Península Ibérica, nas Espanhas, onde fundara as primeiras comunidades cristãs,
tendo sagrado sete bispos.

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Muitas outras Igrejas foram fundadas pelos Apóstolos, como, por exemplo, as
Igrejas de Cartago, de Tessalônica, de Chipre, entre outras e muitas mais deveram
a sua fundação e incremento aos Padres Apostólicos, como a Igreja de Gália (atual
França), a Igreja da Bretanha, para não citarmos mais nenhuma.
As primeiras Igrejas a evidenciarem-se devido a circunstâncias de ordem
sócio-política foram as Igrejas de Roma, de Alexandria e de Antioquia. A Igreja de
Roma deve a sua ascensão essencialmente por ser o centro onde as decisões de
toda a ordem eram tomadas, daí que o seu bispo assumisse uma grande
importância, uma vez que, cristãos e bispos de outras regiões do Império, quando
se viam confrontados com problemas graves de cariz jurídico-político,
demandavam os bons serviços do bispo de Roma. Esta posição de dependência
em que estavam os demais bispos do Império face a Roma, veio a originar e a
fomentar pouco a pouco um desejo hegemônico por parte da Igreja de Roma face
às restantes Igrejas suas irmãs.
Alexandria e Antioquia deviam principalmente a sua importância ao poder
determinante de sua economia. Todo o Império se alimentava com produtos
(nomeadamente cereais) originários dos países onde se encontravam estas duas
cidades – Egito e Síria. Mais uma vez, a proeminência das Igrejas se deve a fatores
de ordem política, na medida em que a economia gera necessariamente
movimentações políticas de várias ordens.
Temos finalmente Jerusalém que, ao invés das Igrejas que acima citamos,
não usufruiu nenhuma “benesse” política. A sua importância nos primeiros séculos
da vida da Igreja é meramente de cariz eclesial. Tinha sido o lugar da Encarnação,
Vida, Morte, Ressurreição e Ascensão do Senhor. Lá nascera a Igreja, no dia de
Pentecostes. Lá também surgiram as primeiras controvérsias ao nível de Igreja.
Enfim, em Jerusalém a Igreja de Cristo começa a dar os seus primeiros passos. Daí
e somente daí, lhe advém o seu lugar único na História da Igreja cristã.
Estas não eram as únicas Igrejas florescentes nos três primeiros séculos. A
Igreja de Cartago, a Igreja de Milão, a Igreja da Gália, a Igreja da Armênia e a Igreja
das Espanhas, entre muitas outras, encontravam-se em pleno desenvolvimento.

Os Contornos Jurisdicionais das Primeiras Igrejas Cristãs


Nesta época (três primeiros séculos da era cristã) os limites jurisdicionais das
várias Igrejas ainda não estavam definidos (o que vem a acontecer no I Concílio
Ecumênico, mas somente em relação a Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém).
Com o crescimento da Igreja, pouco a pouco torna-se necessário estabelecer
fronteiras demarcando o campo de ação das diversas Igrejas, tendendo a evitar
conflitos que só poderiam ser nefastos à vida da Igreja. As várias Igrejas começam
por se formar algumas vezes (na maioria dos casos) em torno de Sés Apostólicas
importantes, outras vezes em torno de Bispos eminentes que se distinguiam pela
sua santidade e trabalho pastoral. Com o decorrer do tempo iam-se impondo como
postos de referência idôneos, conglomerando em torno de si várias dioceses e
bispos. Todos os Concílios que futuramente se vão debruçar sobre os problemas
de todas estas Igrejas locais, não vão impor coisa alguma. Partem tão só da
realidade eclesial já existente e conferem determinações bem precisas, onde até
então imperava um certo costume consuetudinário. Durante estes três primeiros
séculos, apraz-nos ainda realçar que existia por diocese uma única Igreja – a
Catedral do bispo. Isto porque unicamente o bispo celebrava a Sagrada Liturgia,
coadjuvado pelos presbíteros, que concelebravam na catedral com ele e pelos
diáconos, que eram a ponte entre a comunidade e o altar, entre os fiéis e os bispo.
Estes últimos estavam incumbidos de toda a parte material da Igreja, como o cuidar
dos doentes, das viúvas, dos órfãos e dos pobres. Os presbíteros estavam

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incumbidos de ajudar o bispo na parte espiritual. Nesta época a ação diaconal do
ponto de vista exterior, visível, era muito mais relevante que a do presbítero.
Todavia, com o crescimento da Igreja, chega um momento em que existem
fiéis cada vez mais distantes da catedral, vendo-se impossibilitados de participar na
Sagrada Liturgia. Constatando esta situação, surge em meados do século IV um
homem – São Martinho de Tours – que pela primeira vez funda aquilo a que se
chamaram as paróquias rurais. Pela primeira vez são enviados presbíteros a
celebrar a Sagrada Liturgia nesses locais recônditos. Estas comunidades cristãs
rurais não tinham possibilidade de se deslocarem à Igreja do seu bispo. A solução
pastoral encontrada por São Martinho depressa foi seguida por todos os bispos de
todos os quadrantes da Terra. Poder-se-ia perguntar por que razão não se
sagraram mais bispos para governar essas novas Igrejas. A razão consiste não só,
mas também, no fato de a Igreja nesta altura auferir de um novo estatuto que
tolerava a sua existência em pé de igualdade com as restantes religiões e conferia
aos bispos a equiparação a senadores. Ora, havendo uma profusão de bispos,
ficava diminuída a sua dignidade e em certa medida a Igreja iria sofrer com esta
perda de influência por parte do episcopado. Influência esta de que a Igreja – neste
preciso contexto histórico – carecia para que o seu percurso terreno fosse mais
ameno face aos – por vezes – incontornáveis condicionalismos políticos impostos
pelas próprias estruturas que regiam a organização do Império.

A Pregação Apostólica
São Paulo – As Quatro Viagens Apostólicas

Ainda no âmbito da pregação apostólica, da qual falamos anteriormente, é


imprescindível que falemos do Santo Apóstolo Paulo, cuja ação missionária e
pastoral não encontra paralelo em nenhum dos demais Apóstolos. De todos os
Apóstolos São Paulo é aquele que melhor se conhece, seja através do livro dos
Atos dos Apóstolos, seja através de suas próprias Epístolas, duas fontes
independentes que se confirmam e se completam, não obstante existirem algumas
divergências de detalhe entre ambas.
São Paulo nasce em Tarso da Cilícia (At 9, 11; 21, 39; 22, 3) por volta do ano
10 da nossa era. Era oriundo de uma família judaica da tribo de Benjamim (Rm 11,
1; Fp 3, 5). Seu pai era cidadão romano e transmitiu-lhe essa preciosa prerrogativa,
que permitiu ao Apóstolo deslocar-se por todo o Império com relativa facilidade.
Pensa-se que São Paulo não terá recebido uma educação helênica clássica
formal (o que poderia ter acontecido, tendo em conta o meio sociocultural em que
estava inserido) devido ao fato de ser Fariseu. No entanto aprendeu a língua grega,
que falava fluentemente, e estava de posse de todos os elementos da cultura
clássica helênica, que lhe permitiram proclamar o Evangelho nas comunidades
judaicas já helenizadas que estavam espalhadas por todo o Império Romano de
então. É provável que São Paulo tenha assimilado alguns elementos da ética
estóica cujo ensino era ministrado na Universidade de Tarso. Assim, o Santo
Apóstolo emprega, por exemplo, o termo estóico “Pneuma” (sopro) que atualmente
se traduz por “espírito”.
Após ter recebido, enquanto jovem, o ensinamento do ofício de fabricante de
tendas e anda haver apreendido toda a instrução religiosa que a sinagoga local de
Tarso lhe podia oferecer, seu pai enviou-o a Jerusalém para freqüentar a Escola
Teológica de Gamaliel. Aqui recebeu uma profunda educação religiosa, ministrada
pelo Sumo-Sacerdote Gamaliel (que seria neto de Hillel tendo-lhe sucedido na
presidência do Sinédrio) mediante as doutrinas farisaicas em estrita conformidade
com a Lei (At 22, 3; 26, 4s; Gl 1, 14; Fp 3, 5). Convém salientar que a reputação da
Escola de Gamaliel tinha chegado aos pontos mais recônditos do Império Romano.

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Gamaliel tinha tomado a continuação da tradição de uma interpretação da lei tendo
em conta a fragilidade humana. Existindo mesmo alguns Fariseus mais estritos que
se chocavam de o ver exprimir alguma consideração mesmo até para com as
mulheres pagãs. Era de tal forma erudito que os Judeus, que honravam os Sábios
Doutores, o apelidavam de “Beleza da Lei” e lhe conferiram pela primeira vez o
título de “Rabbino” (Nosso Mestre); depois dele só outros seis tiveram este
tratamento. É deste homem que São Paulo vai receber todo o ensinamento da
antiga Lei e é sabido que a capacidade de perspicácia da inteligência de São Paulo
permitiu-lhe apreender tudo o que o seu mestre tinha para lhe transmitir, fazendo
dele um dos seus mais ilustres alunos, senão mesmo o mais ilustre, o que lhe
possibilitou compreender a Mensagem de Cristo como poucos dos outros Apóstolos
e pô-la em prática através das comunidades que fundou, como nenhum outro.
Inicialmente São Paulo foi um feroz perseguidor da jovem Igreja Cristã (At 22,
43; 26, 9-12; Gl 1, 13; Fp 3, 6). Tendo sido repentinamente transformado, no
caminho de Damasco, pela aparição de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus
Cristo (após a Sua Ressurreição) que lhe revelou a sua missão especial de
Apóstolo dos Gentios (At 9, 3-19; Gl 1, 12s; Ef 3, 2s). A conversão de São Paulo
ocorreu dois anos após a Ascensão de Cristo, ou seja, por volta do ano 35 ou 36 da
nossa era. Desde esta data, São Paulo vai dedicar toda a sua vida exclusivamente
ao serviço de Cristo (Fp 3, 12). Depois de ter passado algum tempo na Arábia,
regressa a Damasco – Síria – (Gl 1, 17) onde prega (At 9, 20); em seguida sobe a
Jerusalém cerca do ano 39 (Gl 1,18; At 9, 26-29), retirando-se depois para a Síria –
Cilícia (Gl 1, 21; At. 9, 30) donde é levado por São Barnabé para Antioquia, com o
qual ele ensina (At 11, 25s; cf. 9, 27).

Primeira Viagem Apostólica


A sua primeira Viagem Apostólica permite-lhe anunciar o Evangelho em
Antioquia da Pisídia, em Perge da Panfília, em Chipre, em Icônio e em Listra e
Derbe, cidades da província da Licaônia, onde continuou a pregar o Evangelho (At
13, 51; 14, 6-7). A pregação de São Paulo e de São Barnabé não é bem recebida
em Antioquia; os judeus locais incitaram algumas mulheres e os principais homens
da cidade contra os Apóstolos, após os terem inicialmente recebido com
generosidade (At 13, 50). “Sacudindo, porém, contra eles o pó dos seus pés,
partiram para Icônio” (At 13, 51). Em Icônio uma grande multidão, não só de judeus,
mas também de gregos, creu no Evangelho de Cristo. Todavia, alguns judeus
incrédulos instigaram contra os Apóstolos os ânimos dos gentios (At 14, 5). São
Paulo e São Barnabé partem então para Listra e Derbe, cidades da Licaônia, e para
a província circunvizinha. Em Listra São Paulo faz um milagre curando um varão
lesado dos pés e que era coxo desde o ventre de sua mãe (At 14, 8), o qual nunca
tinha andado. A multidão presenciando o milagre apelidou-os de deuses e queria
sacrificar-lhes, o que entristeceu os Apóstolos, que rasgando os seus vestidos e
saltando para o meio da multidão, disseram: “Varões, por que fazeis estas coisas?
Nós também somos homens como vós, sujeitos às mesmas paixões e vos
anunciamos que vos convertais dessas vaidades ao Deus vivo, que fez o Céu e a
Terra, e o mar, e tudo quanto há neles” (At 14, 15).
Pouco depois surgiram uns judeus de Antioquia e de Icônio que, tendo
convencido a multidão, apedrejaram São Paulo, arrastando-o para fora da cidade
julgando que estava morto (At 14, 19). No dia seguinte partem para Derbe onde
foram bem recebidos, fazendo muitos discípulos, voltando depois para Listra, Icônio
e Antioquia. Em cada uma destas cidades São Paulo fundou uma Igreja, tendo
eleito anciãos (sagrado bispos) que confiou à guarda do Senhor (At 14, 23). Depois
passando por Pisídia, dirigiram-se a Panfília e tendo anunciado a Palavra em Perge
(da Panfília) desceram a Atália e dali navegaram para Antioquia, donde haviam sido

18
enviados para a obra que já tinham cumprido. Quando chegaram, reuniram a Igreja
local e narraram quão grandes coisas Deus fizera por eles e como abrira aos
gentios a porta da Fé. Em Antioquia ficaram pouco tempo com os seus discípulos.
Logo depois São Paulo e São Barnabé descem a Jerusalém por causa da questão
do rito mosaico, onde participaram no Concílio.
Terminado o Concílio, São Paulo achou por bem visitar as Igrejas que havia
fundado. Contudo houve desacordo entre este Apóstolo e São Barnabé, o qual
aconselhava que levassem consigo João, chamado Marcos, mas São Paulo não
aceitou que aquele (Marcos) que os abandonou desde Panfília os acompanhasse
naquela viagem. Tal contenda houve entre eles que se apartaram um do outro. São
Barnabé levou consigo Marcos e navegou para Chipre.

Segunda Viagem Apostólica


São Paulo, tendo escolhido Silas, partiu também e passou pela Síria e Cilícia,
confirmando as Igrejas na Fé. Passando pela Frígia e pela província da Galácia, o
Apóstolo foi impelido pelo Espírito Santo a anunciar o Evangelho na Ásia. Quando
chegou a Mísia intentou ir para Bitínia, mas o Espírito Santo não lhe permitiu (At 16,
7); assim desceu a Troas. Nesta cidade São Paulo teve uma visão de um varão da
Macedônia que lhe rogava dizendo: “Passa à Macedônia e ajuda-nos” (At 16, 9).
Logo depois desta visão, São Paulo, Silas e Timóteo (que São Paulo recebera em
Derbe) partiram para a Macedônia, navegando de Troas a Samotrácia e no dia
seguinte para a cidade de Nápoles e dali para Filipos que era a primeira cidade
daquela parte da Macedônia, onde existia uma grande colônia de Judeus. No dia
seguinte (que era Sábado) saíram às portas da cidade para a beira do rio e,
assentado-se, falaram às mulheres que ali se ajuntaram. Ali, uma certa mulher
chamada Lídia, vendedora de púrpura da cidade de Tiatira, ouvia com muita
atenção o Apóstolo. Tendo sido batizada, ela e toda a sua casa, rogou ao Apóstolo
que entrasse na sua residência. Pouco depois, quando se dirigiam para a oração,
São Paulo e Silas encontraram uma jovem que tinha o espírito de adivinhação, a
qual adivinhando dava grande lucro aos seus senhores. Durante muitos dias aquela
mulher seguiu os Apóstolos dizendo: “Estes homens que nos anunciam o caminho
da Salvação são servos do Deus Altíssimo” (At 16, 17). Mas São Paulo, perturbado
com a persistente presença daquela mulher, voltou-se e disse ao espírito: “Em
Nome de Jesus Cristo te mando que saias dela. E na mesma hora saiu” (At 16, 18).
Contudo os seus senhores, vendo perdida a esperança do lucro, prenderam São
Paulo e Silas, levando-os à praça dos magistrados, onde os apresentaram a estes
últimos dizendo: “Estes homens sendo judeus perturbaram a nossa cidade e nos
expõem costumes que nos não é lícito receber nem praticar, visto que somos
romanos” (At 16, 21). A multidão ergueu-se contra eles e os magistrados,
rasgando-lhes os vestidos, mandaram que fossem açoitados com varas, lançando-
os na prisão. Perto da meia-noite São Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a
Deus e os outros presos escutavam-nos atentamente. De repente sobreveio um tão
grande terremoto que os alicerces da prisão se moveram abrindo todas as portas,
tendo todas as celas ficado abertas. O carcereiro, vendo as portas abertas e
cuidando que os presos já tinham fugido, quis matar-se tirando a sua espada. Mas
São Paulo, clamando com grande voz, disse: “Não te faças nenhum mal, que todos
aqui estamos” (At 16, 28). Entrando na cela, prostrou-se diante de São Paulo e
Silas e, tendo-os tirado para fora, disse: “Senhores, que é necessário para me
salvar? E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo, tu e a tua
casa” (At 16, 31).
O carcereiro e toda a sua casa foram recebidos na Igreja e, sendo já dia, os
magistrados enviaram quadrilheiros para soltar os Apóstolos. Todavia São Paulo
não aceitou, dizendo: “Açoitaram-nos publicamente e, sem sermos condenados,

19
sendo homens romanos, nos lançaram na prisão e agora encobertamente nos
lançam fora? Não será assim; mas venham eles mesmos e tirem-nos para fora” (At
16, 37). Os quadrilheiros foram e disseram aos magistrados, os quais ouvindo dizer
que eram romanos, temeram e tirando-os para fora da prisão, lhes rogaram que
saíssem da cidade. Antes de abandonarem Filipos estiveram ainda em casa de
Lídia, tendo confortado os cristãos recém-chegados à Igreja.
Partem depois para Tessalônica e para Bereia. Em Tessalônica existia uma
grande sinagoga e São Paulo, como era seu costume, foi ter com os judeus e
durante três sábados disputou com eles as Sagradas Escrituras. Alguns deles
creram e ajuntaram-se com São Paulo e Silas e também uma grande multidão de
gregos e não poucas senhoras da aristocracia local. Mas os judeus que não
aceitaram o Evangelho, movidos de inveja, tomaram consigo alguns homens
perversos, dentre os vadios e, reunindo o povo, assaltaram a casa de Jasom
tentando tirar os Apóstolos para o meio da multidão. Não os achando, levaram
Jasom e alguns irmãos à presença dos magistrados da cidade, clamando: “Estes
que têm alvoroçado o mundo, chegaram também aqui: os quais Jasom recolheu; e
todos estes procedem contra os decretos de César, dizendo que há outro Rei,
Jesus” (At 17, 5-7). Tendo, porém, recebido satisfação de Jasom e dos demais,
soltaram-nos.
São Paulo, Silas e Timóteo, que estiveram escondidos, partiram de noite para
Bereia; logo que chegaram dirigiram-se à sinagoga local. Aqui foram extremamente
bem recebidos estando durante vários dias presente uma grande multidão que
ouvia as palavras do Apóstolo. Foram muitos os que se tornaram cristãos dentre os
judeus e também muitas mulheres gregas da classe nobre e não poucos varões (At
17,12). Mas quando os judeus de Tessalônica souberam que São Paulo estava em
Bereia, foram lá e compeliram a multidão a maltratar os Apóstolos. São Paulo parte
então para Atenas, mas Silas e Timóteo permanecem em Bereia.
Os que acompanharam São Paulo até Atenas receberam ordem dele para
que se lhe juntassem Silas e Timóteo o mais depressa possível. Todos os dias na
sinagoga com os judeus e nas praças com os que se apresentavam, São Paulo
pregava. Alguns filósofos partidários das correntes epicurista e estóica, ouvindo-o
falar, quiseram ouvi-lo e conduziram-no ao Areópago, dizendo: “Poderemos nós
saber que nova doutrina é essa de que falas?” (At 17,19). São Paulo começou por
lhes dizer que vinha falar-lhes do Deus Desconhecido a quem os gregos haviam
erigido um altar. Depois de uma longa dissertação alguns escarneceram dele
porque não acreditavam que o Deus de quem o Apóstolo lhes falava pudesse
ressuscitar morto algum, no entanto muitos foram os que acreditaram nas suas
palavras e se converteram, como Dinis o Areopagita e sua família e ainda uma
mulher de nome Damaris, bem como muitos outros. Pouco depois São Paulo partia
para outra cidade grega, Corinto, onde encontrou um judeu chamado Áquila,
natural do Ponto, que pouco tempo havia tinha chegado da Itália com Priscila sua
mulher (pois o Imperador Cláudio tinha mandado que todos os judeus saíssem de
Roma). Como ambos tinham o mesmo ofício, fazedores de tendas, aí permaneceu,
indo todos os Sábados à sinagoga falar com os judeus e nas praças, proclamando
o Evangelho aos gregos. Entretanto, juntaram-se-lhes Silas e Timóteo, que tinham
descido da Macedônia (At. 18, 5). Pouco depois, dirigindo-se para Éfeso, entrou em
casa de Tito, o Justo, que servia a Deus e cuja casa estava junto da sinagoga, e
toda a sua família foi recebida. Também Crispo, Príncipe dos sacerdotes, principal
da sinagoga, creu no Senhor, com toda a sua casa. Então, o Senhor disse a Paulo
numa visão: “Não temas, mas fala e não te cales; porque Eu sou contido e ninguém
lançará mão de ti para te fazer mal, pois tenho muito povo nesta cidade” (At 18, 9-
10). Ali ficou o Apóstolo um ano e seis meses (em Corinto) ensinando entre eles a
palavra de Deus. Mas mais uma vez alguns judeus ergueram-se contra Paulo e

20
levaram-no ao tribunal, diante do Procônsul da Acaia, Gálio, que não vislumbrando
crime algum que São Paulo houvesse cometido, o soltou, admoestando os judeus.
Não podendo nada contra o Apóstolo, os judeus agarraram Sóstenes, príncipe da
sinagoga e feriram-no.
São Paulo ficou ainda mais alguns dias em Éfeso, depois acompanhado de
Áquila e de sua mulher Priscila, e de Silas e Timóteo, partiu de Éfeso rumo a
Cesaréia, subindo a Jerusalém para saudar a Igreja, e logo partiu para Antioquia.
Deteve-se algum tempo nesta última cidade e partiu, passando sucessivamente
pela província da Galácia e da Frígia, visitando e confirmando as Igrejas já
fundadas.

Terceira Viagem Apostólica


São Paulo volta a Éfeso para visitar a Igreja e confirmar na Fé os cristãos.
Por espaço de três meses falou São Paulo na sinagoga acerca do Reino de Deus.
Mas como alguns dos judeus tivessem o coração endurecido e não acreditassem, o
Apóstolo retirou-se deles e separou os discípulos, falando todos os dias na escola
de um certo Tirano. Isto durou por um espaço de dois anos, de tal forma que todos
os que habitavam a Ásia ouviram a palavra do Senhor, judeus e gregos. Deus fazia
através de São Paulo muitos milagres como aconteceu quando alguns exorcistas
judeus que deambulavam de terra em terra tentaram invocar o Nome de Nosso
Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo sobre os que tinham espíritos malignos,
dizendo: “Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo prega. Os que faziam isto eram
sete filhos de Sceva, judeu, príncipe dos Sacerdotes. Respondendo, porém, o
espírito maligno, disse: Conheço a Jesus, e bem sei quem é Paulo; mas vós, quem
sois?” (At XIX, 15). Nisto o homem que tinha o espírito maligno saltou sobre eles e
feriu-os gravemente. Desta forma o Nome do Senhor era engrandecido e muitos
vieram ter com São Paulo para serem recebidos na Igreja. Pouco depois São Paulo
decidiu ir a Jerusalém, passando pela Macedônia e pela Acaia, dizendo que
posteriormente era seu desejo ir a Roma. Logo em seguida enviou à Macedônia
dois dos seus discípulos, Timóteo e Erasto, ficando ele ainda mais algum tempo na
Ásia.
Após terminar uma acesa controvérsia suscitada pelos artífices que faziam
em prata nichos da deusa Diana para venderem aos visitantes que vinham
conhecer o templo da deusa. São Paulo de novo partiu para a Macedônia e andou
por aquelas paragens algum tempo exortando os cristãos com muitas palavras,
descendo depois à Grécia. Ali passou três meses, mas como tivesse de navegar
para a Síria, determinou voltar pela Macedônia. Acompanharam-no até à Ásia,
Sopater de Bereia, e dos de Tessalônica Aristarco, Segundo, Gaio de Derbe e
Timóteo, e dos da Ásia Tíquico e Trófimo (At XX, 4). Todos estes discípulos foram
adiante de São Paulo para o esperarem em Trôas, onde estiveram sete dias. No
primeiro dia da semana São Paulo ajuntou os discípulos (pois era a Páscoa), partiu
o Pão e esteve com eles toda a noite até nascer a alvorada. Nesse dia São Paulo
ordenara aos discípulos (acima mencionados) que tomassem o navio para Assom,
onde o deveriam esperar. Paulo iria por terra. Assim que se juntou aos discípulos
em Assom, partiram todos para Mitilene. Dali navegaram até Mileto, passando
defronte da ilha de Quios, aportando em Samos e ficando em Trogílio. São Paulo já
havia determinado não parar em Éfeso, porque pretendia, se possível, estar em
Jerusalém no dia de Pentecostes. Enquanto estava em Samos mandou a Éfeso
chamar os bispos daquela Igreja, com os quais falou durante muitas horas, após o
que orou com eles. Depois acompanharam-no ao navio, tristes, porque o Apóstolo
lhes havia dito que não mais o veriam. Houve pranto entre todos, lançando-se ao
pescoço de São Paulo, beijavam-no (At XX, 37-38).

21
Separando-se deles, São Paulo e dos discípulos rumaram a Coos e no dia
seguinte a Rodes, donde passaram a Patra. Achando aí um navio que ia para a
Fenícia, embarcaram nele e partiram. Indo já à vista de Chipre, deixando-a à
esquerda, navegaram para a Síria e chegaram a Tiro. Achando alguns discípulos,
ali permaneceram sete dias. Os discípulos diziam a São Paulo que não subisse a
Jerusalém porque era grande a perseguição movida aos cristãos. Mas o Apóstolo
havia tomado a decisão de partir e, acompanhado por todos os cristãos de Tiro,
com suas mulheres e filhos, até fora da cidade, de joelhos postos em terra, oraram.
Chegados a Ptolemaida, saudaram os cristãos, com eles ficando um dia. Na manhã
seguinte, partindo dali, chegaram a Cesaréia e entrando em casa de Filipe, que era
um dos Sete (Diáconos), ficaram em sua casa.
Então veio ter com ele (após estarem em casa de Filipe alguns dias) um
profeta da Judéia, de nome Ágabo, que tomando a cinta de São Paulo e ligando os
seus pés e as suas mãos, disse: “Isto diz o Espírito Santo: Assim ligarão os judeus
em Jerusalém o varão de quem é esta cinta, e o entregarão nas mãos dos gentios”
(At. XXI, 11). Todos rogaram a São Paulo que não fosse a Jerusalém. Todavia o
Apóstolo estava decidido e partiu. Chegado a Jerusalém ficara em casa de
Sant’Iago, Bispo de Jerusalém, e todos os Bispos ali se vieram reunir. Dias depois,
quando São Paulo subiu ao Templo, alguns judeus da Ásia, vendo-o, incitaram o
povo contra ele, dizendo que São Paulo era o causador do abandono da Lei de
Moisés por parte de muitos milhares de judeus que haviam aceitado o cristianismo e
que além disto tinha profanado o Templo ali introduzindo os gregos (Trófimo de
Éfeso). Deliberaram matá-lo, mas o tribuno presente em Jerusalém pegou em
soldados e, aproximando-se, o prendeu e lhe perguntou quem ele era (Paulo) e o
que tinha feito. Depois de responder ao Tribuno, São Paulo pediu-lhe que o
deixasse falar ao povo, ao que anuiu o Tribuno. Mas os judeus não o quiseram
escutar. Depois o Tribuno mandou chamar todos os membros do Sinédrio para
saber do que o acusavam, mas a contenda que São Paulo gerou entre Saduceus e
Fariseus presentes foi de tal ordem que o Tribuno viu-se coagido a enviar os
soldados buscar São Paulo. Depois o Tribuno Lísias, sabendo que os judeus o
queriam matar, ordenou que aprontassem para as três horas da noite duzentos
soldados e setenta de cavalo e duzentos arqueiros, para acompanharem o
Apóstolo, incólume, até Cesaréia à presença do governador Félix. Desceu então a
Cesaréia o Sumo-Sacerdote Ananias para conseguir que o governador lhe
entregasse São Paulo. Foi em vão a sua tentativa. Contudo, dois anos o Apóstolo
permaneceu em Cesaréia, prisioneiro. Passados estes dois anos, sucedeu a Félix o
governador Pórcio Festo, que conduziu o Apóstolo à presença do Rei Agripa com o
intuito de não permitir que fosse morto pelos judeus, dizendo ao Rei que era sua
intenção enviar São Paulo para Itália, porque era romano e havia apelado para o
Imperador. Depois de ouvido pelo Rei Agripa, este dissera que se São Paulo não
houvesse apelado para Roma bem se poderia soltar.
Quando iam para Itália, o navio naufragou, mas graças à presença do
Apóstolo todos se salvaram, indo dar a uma ilha que se chamava Melita (Malta).
Ainda aqui São Paulo fez milagres, curando Públio o principal senhor da ilha, tendo
após isto vindo todos os enfermos da ilha, que se curaram depois de São Paulo lhes
haver imposto as mãos. Três meses depois partiram num navio que, vindo de
Alexandria, aportara na ilha. Partiram e chegaram a Siracusa, onde se quedaram
por três dias. Depois foram de Régio a Putéolos, onde acharam alguns irmãos que
rogaram ao Apóstolo que com eles ficasse três dias. Em seguida, dirigiram-se para
Roma. Aí os cristãos saíram-lhe ao encontro na praça de Ápio e às Três Vendas e
São Paulo, vendo-os, alegrou-se muito.
Em Roma foi-lhe permitido morar à parte apenas com o soldado que o
guardava, pelo que pôde convocar os príncipes dos judeus e com eles falar e

22
muitos acreditaram na sua palavra. São Paulo ficou durante dois anos preso em
Roma, após o que foi libertado, empreendendo a sua última viagem apostólica –
desta vez às Espanhas.
Quarta Viagem Apostólica
A Quarta Viagem Apostólica de São Paulo tem levantado ao longo dos
séculos grande polêmica quanto à sua efetivação. Todavia, para nós é uma certeza
a sua realização. Primeiramente e o mais importante, o Apóstolo na sua Epístola
aos Romanos diz explicitamente: “Quando eu me dirigir à Hispânia espero ver-vos
de passagem e ser até lá encaminhado por vós, depois de gozar por algum tempo
da vossa companhia” (Rm XV, 24-28).
São Clemente Bispo de Roma, (88-97), ao escrever aos fiéis de Corinto,
menciona (no ano 96) os exemplos dos Apóstolos Pedro e Paulo, enaltecendo o
trabalho missionário deste último, dizendo que ele se fez “pregador do Evangelho
no Oriente e no Ocidente” e que “tendo ensinado a Justiça do Evangelho a todo o
mundo e tendo vindo até ao termo do Ocidente e dado testemunho na presença dos
chefes, assim saiu do mundo e foi levado até o lugar santo”. O Santo Bispo de
Roma, Clemente, foi um homem que havia privado com São Paulo, testemunhando
inequivocamente a sua viagem apostólica às Espanhas, razão pela qual ele afirma
lapidarmente, sem hesitações, a efetivação da mesma.
Quando São Clemente diz que o Apóstolo veio “até ao termo do Ocidente”,
está implicitamente a referir-se às praias lusitanas do nosso atual Portugal.
Nesta época a cidade mais importante das Espanhas era Bracara Augusta,
cidade consular onde existia uma grande colônia de judeus e de gregos. O Apóstolo
terá certamente aportado num dos portos da costa marítima do Minho, donde partiu
para Braga.
A tradição local diz-nos que São Paulo sagrara nas Espanhas sete bispos,
dos quais mencionamos São Pedro de Rates, São Gens de Lisboa, São Mansos de
Évora e São Basileu do Porto, que evangelizaram a Península e tão bem levaram a
cabo a sua ação pastoral que volvido pouco mais de um século sobre a estada do
Apóstolo em terras da Península, o crescimento da Igreja era de tal forma
perceptível que Santo Irineu de Lião, por volta do ano 180, invocava o exemplo da
Igreja das Espanhas contra os hereges. Algum tempo depois, pelos anos 200-206,
Tertuliano, no seu livro Adversus Iudaeos, afirma que o cristianismo se estendera
até aos lugares mais recônditos da Hispânia.
Ainda em favor da vinda de São Paulo às Espanhas temos um fragmento do
Cânone de Muratori, que refere o seguinte: “Os Atos de todos os Apóstolos estão
escritos num livro. Lucas conta ao ótimo Teófilo coisas que se passaram em sua
presença, como evidentemente o mostra a exclusão da paixão de São Pedro e bem
assim a saída de Paulo ao partir da cidade para a Hispânia.” (Este texto foi escrito
cerca do ano 200). Refere que São Lucas só narra o que presenciou e, por isso,
omite dois acontecimentos: o martírio de São Pedro e a viagem de São Paulo às
Espanhas, daí não figurar no livro dos Atos dos Apóstolos como as restantes três
viagens. O florescente estado da Igreja na Península, que já nos finais do século II
se encontrava completamente evangelizada quando a Igreja da Gália (atual França)
apenas começava a dar os primeiros passos, denota ter recebido um impulso que
vislumbramos em todas as Igrejas de fundação apostólica.
Recapitulando o que dissemos anteriormente, diremos que a Primeira
Viagem Apostólica decorreu entre os anos de 45 a 49. A Segunda (At XV, 36 a
XVIII, 22) teve lugar entre os anos 50 e 52. A Terceira (At XVIII, 23 a XXI, 17)
efetuou-se de 53 a 58, altura em que o Apóstolo é preso em Jerusalém. Depois São
Paulo fica encarcerado dois anos em Cesaréia (até 60), indo para Roma onde
permanece no cárcere mais dois anos (até 62), altura em que é libertado, podendo
então efetuar a sua Quarta Viagem Apostólica, que terá decorrido entre os anos de

23
62 e 64. Já neste século, Monsenhor Cassiano (Bispo ortodoxo), um eminente
exegeta e professor de Novo Testamento, afirma claramente que o Apóstolo tendo
sido libertado se dirigiu às Espanhas, segundo era seu desejo (Rm XV, 24, 28).
São Paulo parte para o Reino dos Céus, após sofrer o martírio em Roma,
quando regressava das Espanhas, sob a perseguição do Imperador Nero, São
Paulo apresenta-se como um homem de “aspecto insignificante” e acrescenta,
dizendo: “A fim de me preservar do orgulho, uma dura aflição física me foi enviada”.
A Tradição diz-nos que aos 50 anos São Paulo era um asceta curvado, calvo, de
longas barbas, com uma testa enorme, de rosto pálido e olhos penetrantes. Vinte
anos de trabalho missionário deixaram São Paulo debilitado fisicamente e exaurido
de forças. O seu trabalho pastoral não encontra paralelo em nenhum outro
Apóstolo. São Paulo é verdadeiramente o Apóstolo das Gentes. É o primeiro a
romper com hábitos e costumes da antiga Lei que estavam arraigados nos fiéis
provenientes do judaísmo, e que de forma alguma se coadunavam com o Espírito
da Nova Aliança. Ao partir estes grilhões que durante algum tempo haviam tolhido
os restantes Apóstolos, São Paulo abre a todos os povos e a todas as raças a
possibilidade de encontrarem a Cristo. O seu desejo de proclamar a Boa Nova, o
Evangelho do Reino Futuro, é ímpar. A sua preocupação com os filhos, que havia
gerado pela pregação da palavra, é para ele motivo de constante cuidado, como o
demonstram as Epístolas que escreveu às comunidades que fundava, bem como as
repetidas viagens a essas mesmas comunidades.
Assim agruparemos as Epístolas Paulinas da seguinte maneira:
- Primeiras Epístolas: I e II aos Tessalonicenses, escritas durante a sua
Segunda Viagem missionária.
- Grandes Epístolas: Gálatas, Romanos, I e II aos Coríntios, escritas
durante a sua Terceira Viagem missionária.
- Epístolas do Cativeiro: Filipenses, Efésios, Colossenses e a Filêmon,
escritas durante os dois anos de cativeiro da primeira vez em que foi
preso em Roma.
- Epístolas Pastorais: I a Timóteo e a Tito, escritas após a sua libertação e
a II a Timóteo, escrita durante a sua segunda estada na prisão de Roma,
após haver regressado das Espanhas, e que culminou no martírio do
Apóstolo por volta do ano 64.
- À parte temos a Epístola aos Hebreus escrita nos anos 60.
No conjunto das Epístolas escritas por São Paulo durante as suas Quatro
Viagens Apostólicas, a Doutrina concernente à Igreja é simples. A Igreja é uma
comunidade local, um organismo vivo, carismático e eucarístico, um lugar de
efusões múltiplas do Espírito Santo, um corpo que compreende, que abrange os
membros de origem judaica e pagã, um corpo que é o Corpo de Cristo, Nosso Deus
e Salvador.
Num primeiro grupo de Epístolas (as Primeiras e as Grandes Epístolas), o
Apóstolo dos Gentios fala-nos da Igreja como sendo uma comunidade de fiéis que
vivem dos inumeráveis Dons concedidos pelo Espírito Santo, mas que é constituída
em Corpo de Cristo pelos Sacramentos. Num segundo grupo de Epístolas (as
Epístolas do Cativeiro), é-nos dado descobrir toda uma eclesiologia enriquecida e
unida a uma cristologia muito mais aprofundada. Por fim, um último grupo de
Epístolas (as Pastorais) dá-nos a conhecer São Paulo preocupado com a
organização hierárquica da Igreja e com a continuidade das suas estruturas.
Durante os séculos que se seguiram aos primeiros cristãos, a Igreja
“reconheceu-se quer nas Epístolas Pastorais quer nas outras; a consciência dos
Padres da Igreja não dava nenhuma preferência a nenhum dos aspectos
eclesiológicos desta ou daquela Epístola; a Igreja recebeu em bloco toda a

24
experiência dos cristãos do primeiro século, num espírito de continuidade duma
Tradição viva” (Monsenhor Cassiano).
Cabe-nos, pois, a nós, cristãos ortodoxos do século XX, redescobrir
continuamente o pensamento e a experiência da Igreja primitiva para que
possamos prosseguir na continuidade da Antiga Tradição.

Apologetas

Vamos começar por falar, ainda que sucintamente, da Apologia e de alguns


Apologetas do século II (sobre este tema cf. também as aulas de Patrologia).
Estávamos em plena época de perseguição movida à Igreja pelas forças imperiais e
pagãs, que visavam o aniquilamento da Igreja, quando se erguem do silêncio alguns
homens que posteriormente viemos a designar por Apologetas, os quais,
verbalmente ou através dos seus escritos, mantiveram acesas discussões com os
adversários do cristianismo, nomeadamente com o paganismo e com o judaísmo.
Nas suas dissertações recorrem largamente à filosofia platônica e estóica,
sendo os seus destinatários e os próprios Imperadores.
Todos eles combatem particularmente as conhecidas invectivas e as calúnias
levantadas contra o cristianismo e procuram demonstrar a verdade cristã, tomando
como argumento a Palavra de Cristo e dos Profetas, a grande antiguidade da
Sagrada Escritura e especialmente os ótimos efeitos morais na vida dos cristãos.
A esta defesa do cristianismo juntam-se os mais duros ataques contra
mitologia e a imoralidade pagãs.
Todavia, apesar da grande boa vontade de todos os Apologetas, às suas
idéias e conceitos era estranha toda e qualquer formulação teológica que, como
sabemos, só iria iniciar-se um pouco mais tarde, no princípio do século III, com
Orígenes.
Para citar apenas alguns desses eminentes Apologetas, começaria por referir
Marciano Aristides, “filósofo” cristão de Atenas. Toda a sua apologia é dedicada ao
Imperador Antonio Pio (138-161) ou então ao seu predecessor Adriano (117-138),
como nos diz Eusébio de Cesaréia. Ele tenta demonstrar que a religião pagã dos
bárbaros e dos helenos era inconciliável com o verdadeiro conceito de Deus e que
era um caminho aberto para a imoralidade. Acrescenta que o culto dos judeus era
um culto tributado aos anjos e superficial e que a verdade e a pureza dos costumes
se encontram, pelo contrário, na nova geração cristã, cujo procedimento edificante é
descrito de um modo comovente.
Depois temos São Justino, filósofo e mártir, que nascera de uma família
greco-pagã, em Flávia Neápolis (Siquém), tendo sido por causa da sua fé
decapitado em Roma no tempo de Marco, por volta do ano 165.
É considerado o principal apologeta do século II, ainda que não
particularmente hábil como escritor. Vai defender a religião cristã com todo o ardor e
com o ânimo aberto ao Verdadeiro e ao Bem, em face dos pagãos, dos hebreus e
dos hereges e procura harmonizá-la com a doutrina de Platão e Fílon.
Das suas obras (Eusébio de Cesaréia conhece oito delas) chegaram até nós
duas apologias contra os pagãos e uma contra os hebreus. A mais antiga e a
melhor das duas primeiras é dirigida ao Imperador Antonio Pio e foi escrita pelo ano
150. No texto que se conserva refuta, em primeiro lugar, as acusações de ateísmo,
de impudícia, de banquetes tiésticos, procura provar a Natureza divina de Cristo
baseando-se sobre profecias do Antigo Testamento e fornece importantes notícias
sobre o culto dos cristãos.
A apologia menor, mais recente, é uma espécie de suplemento à primeira,
mas independente; foi provocada pela execução capital de três cristãos em Roma.

25
Um outro grande apologeta foi sem dúvida nenhuma Taciano que, nascendo
na Síria Oriental e sendo discípulo de São Justino em Roma, era diversamente do
seu manso e delicado mestre, dum caráter cheio de paixão, inclinado ao
extremismo.
No ano 170 escreveu uma “Oratio ad Graecos”, que é antes de mais uma
áspera polêmica contra a mitologia, a filosofia e a cultura em geral, do que
propriamente um texto em defesa do cristianismo. Nela refuta, com particular
energia, a acusação de novidade da religião cristã, fazendo apelo à antiguidade dos
Livros Sagrados do Antigo Testamento.
Poderíamos ainda citar muitos outros, como por exemplo, a Epístola a
Diogneto e o Pastor de Hermas (inseridos entre os Padres Apostólicos), o
fragmento do Cânone de Muratori, etc. Todavia, aqueles que referimos bastam para
exemplificar algumas vertentes da arte da Apologética.
Os Apologetas do século II apresentam a Doutrina da Igreja, veiculada pela
Tradição aos filósofos e homens cultos do seu tempo, como o conhecimento
supremo. A religião cristã é, segundo eles, superior a todas as outras e a única
onde a Verdade não é fruto de uma especulação filosófica, mas sim revelada por
Deus.
Não refletem sobre a Doutrina que a Igreja, por intermédio da Tradição, lhes
apresenta. Aceitam-na e apresentam-na aos adversários da Igreja como a mais
sublime e verdadeira.

Perseguições: Décio e Diocleciano

Após uma curta perseguição do Imperador Maximino, a Igreja usufruiu 40


anos de paz. Neste período pôde notavelmente desenvolver-se, crescer e
organizar-se sem perturbação. Conseguiu, mais do que anteriormente, penetrar na
hierarquia do Estado e em todos os estratos sociais, conquistando muitos homens e
mulheres entre os nobres e os funcionários imperiais. Contudo o aperfeiçoamento
interior não correspondia ao crescimento exterior; a longa paz proporcionaria um
relaxamento e um emburguesamento de vários clérigos e leigos, que se entregam
às solicitações do mundo, tendo-se tornado cristãos tíbios.
Como nos diz São Cipriano de Cartago (De Lapsis 5), “para provar a Sua
família” Deus permitiu que outra perseguição acontecesse. Foi de breve duração,
mas violentíssima e assaz perigosa. É devido a Décio (249-251), um dos
imperadores militares rudes e pouco cultos, mas cheios de energia, de origem
panônico-ilírica, que tentaram realizar uma política de restauração em todas as
províncias do Império. Décio pretendia dotar o Império, quase em ruínas pela
corrupção e pela invasão sufocante dos costumes orientais, de maior força de
resistência contra os inimigos externos e internos e recolocá-lo no esplendor de
outrora; julgava, portanto, ser seu dever submeter à antiga religião nacional unitária,
em primeiro lugar, os cristãos, em seu entender os inimigos mais perigosos do
Estado romano. Procedeu com tal decisão e tão sistematicamente que a sua
perseguição teve uma importância e conseqüências muito superiores a todas as
procedentes e vai inaugurar um novo período na história das mesmas.
No fim do ano de 249, ou 250, um édito ordenava a todos os súditos que
oferecessem aos “deuses”, juntamente com mulheres e filhos, um solene sacrifício
propiciatório (suplicatio). Contra as hesitantes dever-se-ia proceder recorrendo a
todos os meios próprios de uma justiça cruel: cárcere, confiscação dos bens, exílio,
trabalhos forçados; depois, aumentando a aspereza, vinha a tortura e, finalmente,
em muitas circunstâncias também a pena de morte.
Os Bispos eram visados de modo especial. O Imperador Décio afirmava
tolerar com maior facilidade um rival no Império do que um Bispo cristão em Roma.

26
Os cristãos foram surpreendidos pela violência das perseguições e, infelizmente,
em muitos casos deram prova de pouca força, coragem e resistência: nas grandes
cidades como Alexandria, Cartago, Esmirna e Roma, verificou-se uma defecção em
massa (Eusébio VI, 39-41; S. Cipriano, de Lapsis, 7-9); até mesmo alguns Bispos
traíram a fé. Uma parte dos cristãos apóstatas (lapsi) ofereceu sacrifícios de
animais ou de incenso aos “deuses”; outros, ao invés, sem oferecer sacrifícios,
souberam proceder de tal modo, seja como astúcia, seja com corrupção, que
conseguiram da autoridade instituída o certificado prescrito de sacrifício realizado
(libellus) e o registro nas listas oficiais (libellatici acta, ou accepta facientes).
Mas para gaúdio nosso houve também “uma multidão” (São Cipriano, De
Lapsis 2) de mártires de todas as idades e sexos, que selaram como seu sangue o
amor que tinham a Cristo, demonstrando uma Fé inabalável. O Bispo de Roma
Fabiano foi uma das primeiras vítimas da perseguição (a sua Diocese ficou vacante
mais de um ano), o presbítero Piônio de Esmirna foi queimado vivo, os Bispos
Babila de Antioquia e Alexandre de Jerusalém morreram na prisão; Orígenes, já
venerável ancião, sofreu graves torturas, mas depois foi libertado. Muitos, como os
Bispos Cipriano de Cartago, Dionísio de Alexandria e Gregório o Taumaturgo, de
Neocesaréia, salvaram-se, mercê de graves fadigas, com a fuga. Quando na
Primavera de 251 Décio se viu obrigado a preocupar-se com os Godos da Mésia, a
perseguição arrefeceu um pouco. Com a sua morte, em Maio ou em Junho do ano
251, em que ele caiu combatendo contra o inimigo nas margens do Baixo Danúbio,
sobrevém uma paz absoluta.
A Igreja tinha sido gravemente abalada, mas não fora vencida. Muitos
apóstatas, “lapsi” retornaram à Igreja arrependidos; em Roma e em Cartago a sua
readmissão causou controvérsias.
O sucessor de Décio, o Imperador Galo (251-253) deixou inicialmente em paz
a Igreja cristã. No entanto, quando pouco tempo depois sobreveio uma
surpreendente e grave pestilência que devastou todo o Império, ele dispôs que para
esconjurar o flagelo se fizessem sacrifícios expiatórios (holocaustos) a Apolo. Para
os cristãos de novo vieram os sofrimentos, embora não tenham tido lugar grandes
perseguições.
Com a chegada de Valeriano ao trono imperial (253-260), regressou a paz. O
novo Imperador tinha até muitos cristãos no seu palácio ao seu serviço. Mas,
estando o Estado na extrema miséria, deixou-se seduzir pelas insinuações do
ministro das Finanças Macriano a assumir uma atitude hostil (Eus. VII, 10-12). A
perseguição visava principalmente quebrantar, enfraquecer e debilitar a organização
das comunidades cristãs de maneira a tornar impossível a sua coesão.
Um édito (decreto) de 257 prescrevia que Bispos, presbíteros e diáconos
oferecessem sacrifícios sob pena de exílio; a visita aos cemitérios e a participação
às reuniões de culto foram proibidas, sob pena de morte.
Um segundo édito datado de 258 (São Cipriano, Ep 80,1) ordenava que os
eclesiásticos de grau superior (ordens maiores) se persistissem na sua Fé, fossem
executados imediatamente e que fossem levados à morte homens eminentes do
laicado que não tivessem renunciado à sua fé, perante a ameaça da privação de
cargos públicos e de bens. As grandes Senhoras da Aristocracia romana que se
haviam tornado cristãs foram ameaçadas com o exílio e os funcionários imperiais
(cristãos) com a pena de trabalhos forçados em condição de escravos.
Em algumas províncias a perseguição foi muito cruenta e sanguinária, mas,
excetuando o Oriente onde ainda por algum tempo continuou por ordem do
Imperador Macriano (usurpador), cessou, contudo, substancialmente com a captura
deste mesmo Imperador na guerra persa (259).
Os Mártires mais conhecidos deste período são: o Bispo de Roma Sixto II,
que, surpreendido nas catacumbas de São Calixto ao celebrar a Sagrada Liturgia,

27
foi decapitado nesse mesmo lugar (dentro da igreja) juntamente com seis diáconos
(6 de Agosto do ano 258); quatro dias depois o seu Arcediago, São Lourenço, foi
queimado vivo; na África, em Utica (hoje Massa Candida) um número de mártires,
não melhor conhecidos, foram martirizados com o seu Bispo Quadrato e ainda o
grande Bispo de Cartago, que foi decapitado no dia 14 de Setembro do mesmo
ano; em Espanha o Santo Bispo Frutuoso de Tarragona e os seus diáconos Augúrio
e Eulógio foram queimados vivos num anfiteatro (259).
Todavia, o Imperador Galiano (260-268), filho de Valeriano, não só deixou em
paz os cristãos como lhes restituiu os cemitérios e os edifícios de culto (igrejas), dos
quais haviam sido despojados durante a perseguição (Eus. VII, 13) e que tinham
conseguido construir já desde o fim do século I, não obstante a religião cristã ser
proscrita (proibida).
A disposição de Galiano equivalia, pelos efeitos produzidos, quase a um
verdadeiro Édito de tolerância.
Iniciava-se, assim, por volta do ano 260, para o cristianismo, um quarenténio
de paz, interrompido apenas por breve tempo por uma perseguição de pouca
monta, a de Aureliano (270-275). Imperador valoroso era um fervoroso adorador
dos deuses, especialmente do Sol invictus (de Palmira). O culto do sol, unido ao do
Imperador, tornou-se por algum tempo como que a religião do Estado.
Contudo, Aureliano inicialmente manteve em vigor o édito do Imperador
Galiano. Atendendo o pedido dos cristãos de Antioquia, entregou ao legítimo Bispo
Dommo (272) as igrejas da cidade, contra as pretensões do herege e deposto bispo
Paulo de Samosata; a isso, todavia, foi levado por motivos políticos, visto que Paulo
era partidário da rainha Zenóbia de Palmira, combatida e vencida por Aureliano. No
entanto, em 275, saiu um édito de perseguição, o qual, todavia, não teve grande
importância, pois o Imperador era assassinado pouco depois e os seus sucessores
não o aplicaram.
Chegamos finalmente à grande perseguição movida aos cristãos por
Diocleciano (284-305). Inicialmente deixou os cristãos em paz.
Era dotado de uma enorme energia e capacidade de estadista, levando a
cabo uma profunda reorganização do Império. Transformou a engrenagem do
Estado numa monarquia militar absoluta, por “graça de Júpiter”, com um cerimonial
de corte de tipo oriental, transferiu a residência para o Oriente (Nicomédia) e criou
uma nova repartição administrativa constituída por 4 Prefeituras, 12 Dioceses e 96
Províncias, com um empolgante aparato de funcionários.
Ao governo unitário substituiu o governo de quatro, tetrarquia: tomou como
segundo Augusto, para a metade ocidental do Império, o seu companheiro de
armas Maximino Hercúleo (286-305) e nomeou como regentes e sucessores ao
trono (293), com o apelativo de Césares, o seu genro Galério para o Oriente e
Constâncio Cloro para o Ocidente.
A paz, que durava desde 260, favoreceu muitíssimo a difusão da Fé cristã.
Nas cidades surgiram então igrejas de notável importância, uma das quais
abertamente pública, até mesmo na cidade residencial de Nicomédia. Muitos
cristãos ocupavam cargos mui elevados no exército e na corte. Parecia que em
breve a nova religião, que numa população global de 50 milhões podia contar com 9
a 10 milhões de fiéis e à qual se inclinavam provavelmente a mulher de Diocleciano,
Prisca e sua filha Valéria, tomaria a dianteira sobre a antiga, especialmente no
Oriente.
Todavia, o partido da antiga religião, guiado por adeptos do neoplatonismo,
conseguiu persuadir o César Galério, valoroso na guerra e fanaticamente brutal e,
através dele, o titubeante Imperador Diocleciano, que a política imperial de
restauração e centralização exigia, como coroamento, a supressão dos inimigos do
culto do Estado.

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Chega-se assim à última grande perseguição, a mais grave e a mais longa de
todas, a verdadeira e decisiva batalha entre o cristianismo e o paganismo. Um
prelúdio da mesma foi o expurgo do exército: os soldados foram postos perante a
alternativa ignominiosa de sacrificar aos deuses ou serem expulsos das suas
carreiras (Eusébio III, 1) e em semelhantes circunstâncias muitos encontraram a
porta do Reino dos Céus ao passarem pela abertura da morte (Marcelo, Dasis,
Quanto à Legião Tebana).
A perseguição entrou na fase mais aguda em 303. No decorrer de um ano
foram publicados quatro éditos que constituíam um autêntico sistema de
disposições tendentes a aniquilar, se possível, o cristianismo. O primeiro édito
(Eusébio VIII), de 23 de Fevereiro de 303, impunha que se demolissem as igrejas e
se queimassem os livros sagrados. Os eclesiásticos que obedeceram entregando
os livros sagrados aos perseguidores foram depois chamados “traidores”, uma nova
classe de lapsos.
A todos os cristãos foi cominada a perda dos direitos civis, aos dignitários a
degradação, aos dependentes imperiais a privação da liberdade.
Já na aplicação deste decreto houve, aqui e ali, derramamento de sangue;
em Nicomédia, aliás, houve muitos mártires. Nesta cidade uma série de incêndios
na residência imperial foi atribuída aos cristãos e em base a essa acusação foram
condenados à morte todos os membros do clero e funcionários da corte. Eclodiram
então algumas desordens militares na Síria e na Capadócia, que ofereceram
pretexto para uma ulterior intervenção. Dois novos éditos (Eusébio VIII, 6)
ordenaram o encarceramento dos eclesiásticos e a obrigação de sacrificar.
Por fim, um quarto decreto, nos finais da Primavera do ano de 304, estendeu
a ordem de sacrificar a todos os cristãos. Aos que, a despeito da tortura,
permaneciam firme na Fé, era infligida a pena de morte muitas vezes de forma
extremamente cruel. Correram nesta altura rios de sangue cristão.
Conhecem-se 84 narrativas de martírio da pequena província da Palestina.
Do Egito (Tebaida) Eusébio (Hist. Ecle. VIII, 9-3-4) assinala execuções em massa,
de 10 a 100 cristãos por dia. Naturalmente houve também muitos apóstatas
(Eusébio VIII, 3). Foi exceção a essa perseguição geral a prefeitura da Gália, que
compreendia a França, Espanhas e a Britânia, pois Constâncio, que detinha o
governo deste território, não ultrapassou a aplicação do primeiro decreto.
Em conseqüência de um acordo, em 305, Diocleciano e o segundo Augusto
abdicaram: como Augustos ficaram Constâncio Cloro e Galério, tendo tomado o
lugar de Césares Severo e Maximino Dajas (Gaza), este último sobrinho de Galério.
A perseguição continuou; todavia, os cristãos da África e da Itália tiveram
logo dias mais calmos devidos ao usurpador Maxêncio (306-312), filho de
Maximiano, que suplantou Severo.
Na Gália, Constantino, que depois da morte do pai (Constâncio Cloro) foi
proclamado Augusto pelo exército, continuou o governo pacífico (306). Licínio,
proclamado Augusto pela Panônia e pela Nórica (308), foi menos hostil aos cristãos
que o seu companheiro de armas, Galério.
No Oriente, ao invés, o derramamento de sangue, salvo leves interrupções,
durou ainda por uma série de anos; Galério pôde dar livre vazão ao seu ódio contra
os cristãos e o seu César Maximino superou-o ainda em refinada crueldade. Junto
com muitos outros, morreram então como Mártires gloriosos os doutos presbíteros
Panfílio de Cesaréia e Luciano de Antioquia e os Bispos Pedro de Alexandria,
Metódio de Olimpo e Silvano de Gaza (este último com 39 companheiros).
Mas, como era de esperar desde o princípio, a luta cruel foi vã; por fim o
Império Romano teve de capitular diante do Cristianismo. Galério, atingido por uma
terrível doença mortal, publicou, juntamente com os seus três co-regentes, em Abril
de 311, em Sárdica, um édito (decreto) de tolerância. Neste édito, enquanto se

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reconhece o malogro da perseguição, a Religião Cristã, com suas práticas relativas,
foi declarada permitida, por lei imperial, embora com uma cláusula restritiva.

CONCÍLIOS

Introdução

Existem dois tipos, dois gêneros de Concílios: locais e gerais. Nos


Concílios locais estão representados apenas (normalmente) os Bispos de
determinadas Igrejas locais e as deliberações do Concílio (que se referem apenas a
questões canônicas, não a questões de Fé) só obrigam essa mesma Igreja. No
entanto, se determinada disposição conciliar (local) for pouco a pouco aceita por
todo o pleroma da Igreja, passa naturalmente a ser lei em toda a Igreja Ecumênica.
Como exemplos disto temos a criação das paróquias rurais por S. Martinho de
Tours, muitos dos cânones exarados pelos Concílios locais de Cartago, etc.
Nos Concílios gerais estão representados Bispos de várias Igrejas. O
Concílio geral pode e deve legislar em matéria de Fé. Em princípio, as
determinações verificadas no Concílio geral deverão ser aceitas por todas as
Igrejas. Se isso se verificar, temos então o Concílio Ecumênico. Caso contrário, fica-
nos um Concílio geral que compromete as Igrejas nele representadas, mas que é
somente normativo em questões canônicas (ou disciplinares) e não em matéria de
Dogma.
O Dogma não pode ser aceito unicamente por uma parte da Igreja. O
Dogma, enquanto Verdade revelada por Deus, impõe-se, pela sua própria natureza,
a toda a Igreja. Se, o Concílio ou os Padres conciliares, por razões meramente
humanas, não permitem que o Espírito Santo os habite e ilumine, não se
vislumbrando desta forma a Verdade dogmática que deveria estar presente nas
suas proclamações formais quando do encerramento do Concílio, então assim o
Concílio não se reveste de foros de ecumenicidade.
É claro que o Espírito Santo está presente aos Padres conciliares que
tomam assento no Concílio. Só que o Espírito Santo não força, não obriga, não
impõe nada nem “coisa” alguma ao Homem. E os Bispos reunidos em Concílios são
homens; homens que muitas vezes não se despojaram de problemas de cariz
circunstancial (seja de ordem social, política, econômica ou outra).
Nestas circunstâncias de imponderabilidade e fragilidade humana, o
Espírito Santo não age. E não age não porque não queira – mas porque os homens
(neste caso os Bispos reunidos em Concílio) não deixaram espaço para que Ele
pudesse agir, conduzindo-os e iluminando-os. O seu coração está fechado ao
Espírito Santo porque estão cheios de convicções pessoais, de certezas humanas,
logo, onde poderá o Espírito Santo fecundar, pela Sua ação santificante, corações
empedernidos, refratários à Graça? Não pode. E como não pode, as deliberações
conciliares não têm o Selo indelével do Espírito Santo, mas tão-somente a marca
infeliz do Homem caído.
Como exemplos de Concílios Gerais temos:
- O Concílio de Elvira, reunido em 303 – estiveram presentes 19 bispos
e 24 presbíteros, representando 40 dioceses. Este Concílio redigiu 81 cânones.
- Os dois Concílios de Braga reunidos na segunda metade do século VI,
tendo o segundo (572) sido presidido por S. Martinho de Dume. Estiveram
presentes várias dezenas de bispos, presbíteros e diáconos, tendo o
Concílio elaborado 9 cânones (II Concílio Bracarense).
- Os 19 Concílios de Toledo, reunidos nos séculos VI e VII.
- Os Concílios de Cartago.

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- Os Concílios de Sárdica (século IV).
- Os Concílios de Gália, que se reuniram ao longo do século IV.
Como exemplo de Concílios meramente locais, temos, à guisa de exemplo, o
Concílio Provincial de Braga de 675, ao qual presidiu o Metropolita de Braga, tendo
estado presentes os Bispos Genitivo de Tui, Froarico do Porto, Bela de Britónia,
Isidoro de Astorga, Alário de Orense, Rectogenis de Lugo e Ildulfo de Iria. O
Concílio exarou 8 cânones disciplinares. No seu I cânone vai proibir a administração
da Comunhão ao povo com a hóstia (pão não fermentado) molhada em vinho.
- Temos ainda os Concílios de Terragona (516), Gerona (517), Lérica e
Valência (524). Muitos outros existiram, todavia estes são suficientes para termos
uma noção aproximada da sua realidade eclesial e histórica.
É importante referir, todavia, que todos os Concílios locais, gerais ou
ecumênicos se reuniram à imagem do santo Protoconcílio de Jerusalém. O Concílio
de Jerusalém vai ser o parâmetro, a norma, o exemplo a ser seguido pela Igreja.
A necessidade da convocação de todo e qualquer Concílio teve e terá
sempre (ou quase sempre), como fundamento, a incapacidade do Homem para a
resolução dos problemas e das questões que a vida em Igreja lhe vai colocando.
Como o Homem só é parcial e momentaneamente justo, generoso, solícito e
cordato, a Igreja, para defender a sua harmonia divino-humana, teve que decidir-se
pela convocação deste seu órgão extraordinário. Normalmente só é convocado em
momentos de crise, não da Igreja, pois Ela, pela sua natureza que toma raízes na
Trindade, não é passível de ser atingida ou ferida por crise alguma, mas porque a
fragilidade do Homem é constante. Então, para salvaguardar a pureza e a justiça,
na sua plenitude, a Igreja age conciliarmente.

A Era dos Concílios Ecumênicos (325-787)


A vida da Igreja cristã durante o período bizantino é inteiramente dominada
pelos Sete Concílios Ecumênicos, iniciando-se pelo de Nicéia I (325) e culminando
no de Nicéia II (787).
Estes Concílios tiveram a dupla tarefa de formular a organização da Igreja
(exterior), cristalizando as posições das cinco grandes Sés ou Patriarcados (é aqui
que se baseiam os defensores da dita “Pentarquia”) e de definir, de uma vez por
todas, o ensinamento da Igreja sobre as Doutrinas fundamentais da Fé cristã: a
Trindade (dois primeiros) e a Encarnação (os cinco restantes).
A transcendência destes Mistérios era do conhecimento de todos os cristãos.
Por isso, quando os Bispos reunidos em Concílio descobriram e elaboraram (não
inventaram) algumas definições dogmáticas, nunca foi sua intenção explicar e muito
menos explicitar e dissecar estes Mistérios. Limitaram-se somente a excluir toda e
qualquer falsa aproximação de pensamento e de linguagem. Para impedir que se
caísse no erro, isto é, na heresia, os Padres Conciliares protegeram estes Mistérios.
Hoje, estas questões podem parecer por vezes – aos olhos incautos,
desatentos e míopes de muitos – abstratas e ultrapassadas, mas elas partiam e
partem de um ponto de vista absolutamente concreto: a Salvação do Homem.
O Homem, segundo o ensinamento do Novo Testamento, estava separado
de Deus pelo pecado e não podia, pelos seus próprios esforços, destruir o muro
opaco da separação que este mesmo pecado havia erguido. Era, pois, necessário
que Deus tomasse a iniciativa. E Ele tomou; fez-Se Homem, foi crucificado,
ressuscitou dentre os mortos, libertando assim a humanidade da escravidão do
pecado e da morte. Esta é a Mensagem da Fé cristã e foi esta Mensagem que os
Concílios salvaguardaram. As heresias eram muito perigosas e tinham que ser
condenadas porque falseavam todo o ensinamento do Novo Testamento,
restabelecendo uma barreira entre o Homem e Deus, tornando de novo a Salvação
impossível para o Homem.

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São Paulo exprimiu esta Mensagem em termos de partilha. Cristo partilhou a
nossa pobreza a fim de que nós pudéssemos partilhar com Ele das riquezas da Sua
Divindade: “Vós conheceis bem a liberalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, como
de rico Ele Se fez pobre por vós, a fim de vos enriquecer, pela Sua pobreza” (2 Co
VIII, 9).
Sob uma forma ligeiramente diferente reencontramos a mesma idéia em São
João o Teólogo: “Dei-lhes a glória que Me deste, para que sejam um, como Nós
somos um. Eu neles e Tu em Mim, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo
reconheça que Me enviaste e os amaste, como Me amaste a Mim” (Jo XVII, 22-23).
Pela participação que Cristo lhes dera na Sua Glória divina, é preciso que os Seus
discípulos alcancem a união completa com Deus.
Os Padres gregos tomaram estas palavras no seu sentido literal, e foi assim
que ousaram falar da “deificação” do Homem (theosis). Se o Homem é chamado a
partilhar a Glória de Deus – diziam eles – se ele deve ser perfeitamente “um com
Deus”, o que de fato implica a sua deificação, então o Homem é chamado a tornar-
se pela Graça o que Deus é pela Sua própria Natureza. Foi desta forma que Santo
Atanásio resumiu os ensinamentos acerca da Encarnação, dizendo: “Deus fez-Se
Homem, a fim de que o Homem pudesse tornar-se ‘Deus’”.
Mas para que seja possível ao Homem tornar-se “Deus”, para realizar esta
Theosis, era e foi necessário que Cristo fosse, simultaneamente, verdadeiro Homem
e verdadeiro Deus. Ninguém senão Deus pode salvar o Homem, logo se Cristo nos
deveria salvar era imperativo que Ele fosse Deus. Mas, por outro lado, somente na
medida em que Ele fosse perfeitamente Homem como nós, é que nós poderíamos
participar no que Ele fez por nós.
Cristo é a ponte deitada entre Deus e os homens. “Em verdade, em verdade
vos digo, vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do
Homem” (Jo I, 51). Mas esta escada não é exclusivamente para os anjos: é também
para toda a raça humana que aceite Cristo como seu Salvador.
Cristo é plenamente Deus e plenamente Homem. As sucessivas heresias
tentaram minar a importância desta afirmação fundamental e vital. Ou muito bem
Cristo era inferior a Deus (arianismo); ou bem a Sua humanidade estava separada
da Sua divindade, de tal maneira que Ele Se tornava em duas pessoas
(nestorianismo), ou não era considerado como verdadeiro Homem (monotelismo e
monofisismo). Cada Concílio opôs-se a estas afirmações.
Os dois primeiros, reunidos no século IV, insistiram, sobretudo na plena
divindade de Cristo e formularam a Doutrina da Santíssima Trindade. Os outros
cinco definiram a humanidade de Cristo e explicaram a união, numa mesma
Pessoa, da Natureza Humana e da Natureza Divina.

Concílios Ecumênicos
Existe uma concepção própria à Igreja Ortodoxa, que é necessário ter em
linha de conta quando falamos de um Concílio Ecumênico. É que a fidelidade
invariável e a verdade infalível dos Dogmas cristãos não dependem da ordem
hierárquica, pois eles são guardados pela totalidade, por todos os fiéis da Igreja,
que é o Corpo de Cristo. O guardião da Fé cristã é a própria Igreja; isto é, o (Laos),
o próprio povo.
Esta concepção do estado do laicado e do seu lugar na Igreja deve sempre
estar presente no nosso espírito quando se considera a natureza de um Concílio
Ecumênico. Não são os leigos que ensinam, mas são eles que guardam. Contudo,
embora possam assistir aos Concílios e neles tomar parte ativa (como Constantino
e outros Imperadores bizantinos), quando o Concílio chega ao momento das
proclamações formais, são os Bispos (unicamente), em virtude do seu carisma de
ensinamento, que tomam as decisões finais.

32
Mas um Concílio de Bispos pode enganar-se. Ora como se pode ter a certeza
de ecumenicidade de um Concílio, cujos decretos e deliberações seriam infalíveis?
Muitos Concílios se consideraram Ecumênicos e reivindicaram falar em Nome de
toda a Igreja, mas Esta rejeitou-os como sendo heréticos; basta pensar no Concílio
de Éfeso de 449, no Concílio de Liéria em 754, ou no de Florença de 1438-1439.
Mas, à primeira vista, estes Concílios não parecem diferentes dos Concílios
Ecumênicos. Então por que critério é que se pode definir um Concílio Ecumênico?
A opinião de Khomiakoff e da sua escola parece, à primeira vista, clara e sem
possibilidade de contestação: um Concílio só pode ser considerado Ecumênico se
os seus decretos forem aceitos por toda a Igreja.
Os Bispos, diz Khomiakoff, sendo Doutores da Fé, definem e proclamam a
verdade nos Concílios, mas as suas decisões devem em seguida serem acolhidas
por todo o povo de Deus (do qual os leigos, evidentemente, fazem parte) uma vez
que é o povo de Deus, na sua globalidade, que é o guardião da Tradição.
Todavia, a aceitação das decisões conciliares pela totalidade da Igreja não
tem um caráter jurídico: “Não significa que as decisões do Concílio devem ser
confirmadas por um plebiscito geral e que, sem este, elas não tenham força. Não
existe plebiscito algum. Mas, pela vivência dos Dogmas proclamados, afere-se, ou
não, se a voz do Concílio foi verdadeiramente a voz da Igreja”.
Num verdadeiro Concílio Ecumênico os Bispos reconhecem a verdade e
proclamam-na; esta proclamação é em seguida verificada pela aceitação de todo o
povo cristão, uma aceitação que não é expressada formalmente e explicitamente,
mas que é vivida.
Não é também o número ou a repartição dos seus membros que faz a
ecumenicidade de um Concílio.
“Um Concílio é Ecumênico não porque nele estejam representadas todas as
Igrejas autocéfalas, mas sim porque ele dá testemunho da Fé da Igreja Ecumênica”.
A ecumenicidade de um Concílio não pode ser definida unicamente por
critérios exteriores: “A Verdade não pode ter e não tem critério exterior. Ela
manifesta em si própria uma evidência interior. A infalibilidade da Igreja não pode
ser “exteriorizada” nem entendida num sentido “material”.
Não é a ecumenicidade, mas a verdade dos Concílios que torna a sua
decisão obrigatória para nós.
E aqui nós tocamos no mistério fundamental da Doutrina Ortodoxa sobre a
Igreja: a Igreja é o milagre da presença de Deus entre os homens, para além de
todo e qualquer “critério” formal e de toda e qualquer “infalibilidade” formal. Não
basta convocar um Concílio para que ele seja ecumênico... é necessário que no
meio daqueles que estão reunidos esteja presente Aquele que disse: “Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”. Sem esta presença, por mais numerosa e
representativa que seja a assembléia, ela não estaria na Verdade e, não estando na
Verdade, não será assistida pelo Espírito Santo. Logo, quando os Padres
Conciliares se erguerem para dizer “O Espírito Santo e Nós decidimos...”, estarão
sozinhos e sozinhos, necessariamente, estarão fora da Verdade.
Protestantes e católicos romanos têm, ordinariamente, grande dificuldade em
compreender esta Verdade fundamental da Ortodoxia; uns e outros materializam a
presença de Deus na Igreja – uns na letra da Escritura, outros na pessoa do Papa –
não evitando por isso o milagre, mas revestindo-o de uma forma concreta. Para a
Ortodoxia, o único, “critério de Verdade” é o próprio Deus vivendo misteriosamente
na Igreja, conduzindo-a, sobre o caminho da Verdade.

O PRIMEIRO CONCÍLIO ECUMÉNICO


Antecedentes do Concílio

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Dois acontecimentos, que tiveram lugar poucos anos antes da convocação
do I Concílio Ecumênico, marcaram definitivamente uma mudança na atitude do
Imperador para com a Igreja cristã.
No ano 311, em Sárdica, é publicado um Édito de Tolerância que, embora
permitisse todas as práticas da religião cristã, tinha, todavia algumas cláusulas
restritivas. Por fim, os cristãos são exortados a rezar pelo Imperador Galério, que
sofria de terrível doença.
Mas é o segundo destes dois acontecimentos aquele que maior relevância
tem para a vida da Igreja: trata-se do famoso Édito de Milão.
No ano de 312 o Imperador Constantino vence Maxêncio na Ponte Mílvea,
perto de Roma (28 de outubro de 312). Constantino intervém, no fim desse mesmo
ano, a favor dos cristãos, numa carta ao perseguidor Maximino.
O Imperador Constantino encontra-se com o seu cunhado Licínio em Milão
no ano de 313 (Fevereiro) com o intuito de aliviarem os cristãos africanos dos
graves ônus municipais e com o fim, também, de regularizarem a questão religiosa.
Com base nestes acordos foi emanada uma lei em favor dos cristãos
(apelidada de Édito de Milão), mais precisamente um rescrito, ou seja, um mandato
circular a todos os Procônsules.
Este Édito (decreto), suprimindo as restrições postas ainda por Galério em
311, concedia a todos os cristãos plena liberdade de religião e de culto, além da
restituição ou indenização dos edifícios eclesiásticos e das terras confiscadas
durante as perseguições aos cristãos.
Com este ato desfazia-se pela raiz o nexo exclusivo até então existente entre
o Estado romano e o culto pagão; abria-se uma nova era na política religiosa e
inaugurava-se uma “mudança de rumo memorável” nos anais do cristianismo.
Contudo, esta nova ordem esbarrava ainda com um inimigo irredutível, que
odiava os cristãos: Maximino (César do Imperador Galério), que renovara as
hostilidades contra a Igreja.
Licínio, Imperador do Oriente, vencera-o numa batalha decisiva perto de
Adrianópolis (30 de abril de 313); na fuga Maximino morre em Tarso. Nesta altura
as decisões de Milão tornam-se válidas também para o Oriente.
Existe ainda um outro fato que, pelo seu simbolismo, merece ser
referenciado.

A Visão da Cruz
Na campanha contra Maxêncio (ainda na Gália ou Norte da Itália), enquanto
invocava o Deus de sua Mãe, Constantino viu, juntamente com todo o seu exército,
sobre o sol, numa tarde, o sinal luminoso da Cruz, ladeada com as palavras:
IC XC, Cristo Vence.
NI KA

Na noite seguinte Cristo apareceu-lhe e ordenou-lhe que pusesse em todos


os escudos dos seus homens esse sinal.
O Concílio de Nicéia - (325)

Duas razões estiveram na origem da convocação do I Concílio Ecumênico


de Nicéia I: por um lado a grave crise motivada pela heresia arianista, que punha
em causa a unidade e a paz na Igreja; por outro lado a existência de várias
insurreições locais, decorrentes da polêmica levantada pelo arianismo, que
separaram a população criando profundos antagonismos, e que punham em causa
a estabilidade do Império.

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Face a esta situação o Imperador Constantino (+337) decide convocar o
Concílio, com o intuito de restabelecer a paz ao interior do Império, mas também
proporcionar que houvesse entendimento no seio da própria Igreja.
Enquanto detentor do poder da Jurisdição em todo o Império, o Imperador
tinha o direito e o dever de convocar o Concílio, uma vez que os Bispos, fossem
eles Arcebispos, Metropolitas ou Patriarcas, continuavam a serem súditos do
Imperador.
O Concílio reúne-se finalmente em Nicéia no ano de 325, estando presentes
318 Padres Conciliares. A primeira questão a ser debatida foi a heresia arianista.
De todas as heresias que no decorrer dos séculos assolaram a Igreja, o
arianismo foi aquela que mais rapidamente se propagou, suscitando graves conflitos
entre os cristãos. Os arianos estavam em toda a parte; desde a Ásia Menor,
passando pela Itália, indo até aos confins do Ocidente.
Esta heresia é veiculada pela primeira vez em Alexandria (no Egito) por
Árius, presbítero nessa mesma cidade, o qual sustentava que o Filho era inferior ao
Pai; alegava – procurando salvaguardar a transcendência de Deus – que o Filho
fôra criado (não gerado) antes de toda a Criação, tomando necessariamente
existência fora de Deus. Não tinha noção alguma do Mistério da Santíssima
Trindade, nem das relações das três Pessoas Divinas com a Criação. Árius tinha a
percepção de um Deus Onipresente, Onisciente, Onipotente, completamente
transcendente; acreditava que o Filho era Deus, não segundo a Sua Natureza
divina, mas pela Vontade e predileção do Pai. Afirmava que toda a Criação existia
em função do Filho, que Ele era o Salvador de todos os homens e que seria no fim
dos tempos o Juiz de toda a humanidade. Para Árius, o Filho é semelhante ao Pai;
não é igual ao Pai; é um Deus por semelhança e não um Deus segundo a
Consubstancialidade da Sua Natureza divina, que O tornaria por essa razão, Deus,
na mesma plenitude em que o Pai o É.
É com esta heresia que o I Concílio Ecumênico de Nicéia (325) vai ter de se
confrontar. Neste Concílio, distingue-se pelo discernimento teológico e pela
veemência da sua palavra, Santo Atanásio de Alexandria, afirmando que o Filho é
um por Natureza com o Pai (homoousios – de mesma natureza). Não é nem um
semi-deus, nem uma criatura superior; sendo consubstancial ao Pai, Ele é Deus
desde toda a eternidade, como o Pai o é.
O Concílio vai condenar o arianismo começando por definir o Dogma
Trinitário, que o II Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381) concluirá, ficando
solenemente inscrito no Símbolo da Fé (Credo), redigido pelo Concílio de Nicéia,
que o Filho é um por natureza com o Pai, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro,
gerado não criado, consubstancial ao Pai. Cristo, Filho de Deus e Verbo Encarnado,
é nosso Salvador, em nada inferior a Deus Pai; tudo o que o Pai é, o Filho é – o na
mesma plenitude. A única distinção entre o Pai e o Filho espelha-se na ação de
cada uma destas duas Pessoas Divinas ao interior da Santíssima Trindade e na
relação de cada uma delas com o Homem. No entanto, esta diferenciação de ações
não estabelece inferioridade ou subordinação alguma de nenhuma destas Pessoas
Divinas em função da outra; pelo contrário, pressupõe uma concomitância, uma
harmonia e uma sinergia de vontade.
Assim, este I Concílio define os sete primeiros artigos do Credo:
I – Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, de
todas as coisas visíveis e invisíveis.
II – Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Único de Deus, nascido do
Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus Verdadeiro de
Deus Verdadeiro: gerado não criado, consubstancial ao Pai, por quem todas as
coisas foram feitas.

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III – E por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos Céus. E
encarnou pelo Espírito Santo, no seio de Maria Virgem, e Se fez Homem.
IV – Também por nós foi crucificado, sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi
sepultado.
V - Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras.
VI – E subiu aos Céus, onde está sentado à Direita de Deus Pai.
VII – De novo há de vir, cheio de glória, para julgar os vivos e os mortos (“e o
Seu Reino não terá fim” - acrescentado em Constantinopla I, em 381).
Neste I Concílio Ecumênico e abordando uma interpretação abusiva de uma
das suas deliberações formais, que respeita à proeminência de algumas Sés:
Roma, Alexandria e Antioquia (cânone 6), e Jerusalém em 4º lugar, embora ficasse
submetida à Metrópole de Cesaréia (cânone 7), não sendo mencionada
Constantinopla por a sua inauguração só se realizar cinco anos mais tarde, começa
a delinear-se a plataforma a partir da qual se irá dissertar sobre a famigerada
pseudo-Pentarquia, que irá “nascer” com a ascensão de Constantinopla ao 2º lugar,
sancionada pelo II Concílio Ecumênico de Constantinopla I.
Todavia, esta apetência para a “formalização” da dita Pentarquia está
embrionariamente patente já no I Concílio.
Contrariando os adeptos desta aberração eclesiológica, basta-nos citar a
existência e o florescimento das Igrejas de Cartago, da Gália, da Armênia, da
Bretanha e – porque nos toca diretamente – da Igreja Peninsular (das Espanhas).
Só estes exemplos contrariam todo e qualquer desejo de, com legitimidade,
se poder falar de “Pentarquia”. Devemos tomar em linha de conta que a ordem que
vai ser seguida no que concerne à proeminência das Sés que se inserem na
pseudo-Pentarquia (que se inicia logo no I Concílio Ecumênico) é uma ordem
decorrente de meras apreciações sócio-econômicas e políticas.
A Roma é-lhe conferido o primeiro lugar porque tinha sido a antiga Capital do
Império; Constantinopla irá ocupar o segundo por ser a nova Capital imperial;
Alexandria toma o terceiro lugar porque é indubitavelmente o celeiro de todo o
mundo romano; Antioquia ocupa o quarto lugar por deter a maior frota pesqueira do
Império. Finalmente, Jerusalém surge-nos em quinto lugar como resultado da “má
consciência” dos Padres Conciliares. Era o mínimo que podiam fazer à Mãe de
Todas as Igrejas.
Conseqüências de Nicéia

Ao contrário do que se possa pensar, o I Concílio Ecumênico (325) não pôs


fim à heresia do Arianismo. Esta heresia ainda em finais do século VI teimava – já
numa acentuada fase de enfraquecimento – em persistir.
No entanto, o Concílio definiu qual a Verdadeira Doutrina que toda a Igreja
deveria de seguir. Naturalmente, muitos foram os que, recusando-se a aceitar as
deliberações conciliares (embora fossem uma ínfima parte, quando comparados
com a mole imensa que seguiu as determinações conciliares), continuaram, por isso
mesmo, a ser motivo de perturbação para a Igreja e para o Império; e não obstante
a sua inferioridade numérica, os contestatários do Concílio, quando secundados,
apoiados e defendidos pelo poder imperial, restringiam de uma forma brutal a
liberdade de todos aqueles que aceitavam – na sua integralidade – o Concílio
niceno.
A partir do momento em que a Igreja passa a usufruir, no princípio do século
IV, de um estatuto – não ainda de privilégio, mas de equiparação e de tolerância
face às demais seitas do Império – vê-se confrontada com a necessidade de viver
uma nova etapa, de equilíbrio instável, difícil de sustentar face às flutuações
políticas do poder imperial.

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Para além dos graves perigos que representam as heresias, um outro perigo
espreita a Igreja. Vive-se uma nova etapa na vida da Igreja. Com a subida ao trono
imperial do Imperador Teodósio, o Grande, a Igreja passa a beneficiar de um novo
estatuto perante o Estado. De simples religião “tolerada”, Ela passa a ser a única
religião oficial para todo o Império. É uma nova conjuntura que a Igreja vai ter de
enfrentar e com a qual terá de saber “lidar” com grande prudência.
Todavia, diante de tão “irresistíveis” privilégios – concedidos pelo governo
imperial – como fosse a equiparação dos Prelados a Senadores do Império, etc...,
alguns bispos houve que principiaram a ter uma vida faustosa, vivida na
suntuosidade dos seus palácios, que o Império tinha disponibilizado para o seu
serviço. Este comportamento permitiu que se começasse a verificar em certo
comodismo e alguma instalação por parte da Igreja. Os mártires de outrora,
molestados, perseguidos e injustiçados, sentam-se agora à mesa imperial e alguns
esquecem a vertente missionária da Igreja, que tão fortemente enraizada havia
estado durante aqueles três primeiros séculos da sua existência.
Agora o poder imperial ergue-se em defesa da “Unidade da Igreja e da sua
Ortodoxia (Verdade)”.
No entanto, este recente posicionamento do Império face à Igreja, vai
postular a necessidade de uma vivência difícil por parte da Igreja. Alguns bispos,
erradamente, tentam suprimir os dissidentes, as várias seitas heréticas, servindo-se
do braço secular, o que reforça as hostes dos hereges, passando estes muitas
vezes aos olhos do povo como verdadeiros mártires.
Assiste-se também a um período politicamente muito conturbado. Os filhos
de Constantino, Constâncio (337 – 361), Constantino II (337 – 340) e Constante
(340-350), iniciaram uma luta fratricida, enfraquecendo o Império, quando este
precisava de força e de unidade interna para resistir à crescente pressão dos
bárbaros que assolavam as suas fronteiras.
O Imperador Juliano, o Apóstata (361 – 363) tentou sem sucesso reavivar o
paganismo; morreu a comandar um exército contra os Persas. O Imperador Valens
(364-378) era partidário ativo dos Arianos e as suas tentativas para preencher
lugares de chefia, nas Sés, com hereges, criou uma enorme confusão.
Este foi um período de grande preocupação para o Império e para a Igreja.
Contudo a Igreja permitiu que brotassem do seu seio homens com a estatura
espiritual de São Basílio, São Gregório de Nazianzo e São Gregório de Nissa, aos
quais apelidamos de Padres Capadócios.

São Basílio, o Grande, Metropolita da Capadócia (329-379)

São Basílio nasceu em Cesaréia da Capadócia no ano de 329. Seu pai era
bispo, e sua mãe Emília ficou célebre pela sua beleza e piedade. Todos os seus
nove irmãos foram glorificados pela Igreja.
São Basílio estudou em Constantinopla e em Atenas, onde encontrou aquele
que para sempre viria a ser o seu eterno e inseparável amigo São Gregório de
Nazianzo.
Após a morte de seu irmão Nancrácio, São Basílio decide enveredar pela
vida do deserto (monástica).
Uma de suas irmãs, Santa Macrina, formou uma comunidade de mulheres
que sentiam o desejo de um encontro pessoal com Cristo mais profundo do que
aquele que lhes era proporcionado nas comunidades locais onde viviam (princípio
dos mosteiros de monjas) e o seu exemplo tornou-se conhecido em toda a
Capadócia e Ponto.
São Basílio, por sua vez, retirou-se para uma propriedade de seu pai, fez-se
rodear de jovens que perfilhavam a mesma vontade de experimentar a vida árida do

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deserto e funda uma comunidade que irá ter uma importância capital no
desenvolvimento do monaquismo oriental.
Segundo São Basílio, a vida cenobítica era mais benéfica do que a vida
solitária do deserto. A regra monástica que irá compor mostra que o Amor por Deus
nunca pode ser separado do Amor pelos homens.
Todavia, a Igreja necessitava do seu serviço e em 358, “contra sua vontade”,
Santo Eusébio bispo de Cesaréia da Capadócia (não confundir com Eusébio de
Cesaréia da Palestina – o historiador), ordenou-o presbítero e à sua partida para o
Reino dos Céus (370) São Basílio é eleito seu sucessor.
Fraco de saúde, amante da paz e genuinamente humilde, com rara firmeza
de caráter, tolerante e paciente, mas inflexível na defesa da Ortodoxia.
Certa vez, instado pelo muito temido prefeito Modesto, São Basílio provocou-
o até ele gritar: “Nunca ninguém ousou falar-me assim!” Ao que São Basílio
respondeu: “É que provavelmente nunca se encontrou com um bispo...”
Todo o seu tempo de episcopado foi exercido com o fim de reconciliar e
trazer à Verdade as seitas que proliferavam no Oriente.
Parte para o Reino dos Céus em 379, com apenas 49 anos de idade, doente
e cansado de uma vida esgotantemente vivida ao serviço de Cristo e da Sua Igreja.
É o teólogo por excelência do Espírito Santo. São Basílio tem a percepção
plena e justa da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, só que, homem
pastoralmente prudente, sabe que ainda não chegou o tempo de desvendar, naquilo
que pode ser desvendável, o Espírito Santo.

São Gregório de Nazianzo, o Teólogo

São Gregório de Nazianzo é outro eminente Padre Capadócio. Homem de


saúde débil - de pequena estatura – grande pregador, foi Arcebispo de
Constantinopla. Presidiu, inicialmente, o II Concílio Ecumênico. Tinha sido
anteriormente Bispo de Sázima.
É o teólogo do Deus Trinitário – Tri-Único. Foi dos teólogos que mais
profundamente penetrou nos Mistérios da Santíssima Trindade. A ele se deve o
neologismo grego de “Aghias Trias”, que quer dizer Santíssima Trindade. É dos
teólogos Capadócios o mais profundo e o mais perfeito nas suas imagens
teológicas por ele feitas poesia.

São Gregório de Nyssa, “Pai dos Padres da Igreja”

São Gregório de Nyssa é irmão de São Basílio. Sua mulher, Teosebeia de


uma beleza inefável, tornou-se diaconisa, após a Sagração Episcopal de São
Basílio.
São Gregório de Nyssa foi um poeta inspirado, escritor de talento e um
teólogo de eleição; poucos, como ele, conseguiram alcançar semelhante
profundidade teológica, numa época que podemos denominar “época por
excelência da descoberta teológica”. Naturalmente a descoberta teológica não se
findou no tempo dos Padres Capadócios. Hoje continua a haver espaço para a
descoberta teológica e para o surgimento de novos Padres da Igreja. Só que estes
três eminentes Bispos estão na origem da formulação dogmática. Atualmente, os
teólogos contemporâneos têm como segurança para a sua descoberta teológica os
limites traçados pelo Dogma, que os preservará de caírem na heresia; e naquele
tempo longínquo os primeiros Padres da Igreja não se encontravam salvaguardados
dessa possibilidade que os espreitava a cad momento de suas vidas.
Ainda voltando a São Gregório de Nyssa, apraz-nos referir que este grande
Padre da Igreja acreditava que a natureza humana seria restaurada na sua glória e

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beleza originais, pois o Homem foi criado à Imagem e Semelhança vivas de Deus e
abençoado pelo seu Criador com a imortalidade. De acordo com São Gregório, a
queda do Homem só temporariamente o privou da retidão que lhe foi dada no
Paraíso, para de novo lhe ser conferida no fim do mundo.

Movimento Monástico

O novo estatuto conferido à Igreja pelo Édito de Milão permitiu que


começasse a vislumbrar-se uma certa acomodação e instalação por parte de alguns
bispos e das suas Igrejas. É precisamente contra este entorpecimento da Igreja
(dos homens que a compunham) que muitos leigos se insurgem. E com tamanha
acuidade sentem o perigo de desvirtuamento da Tradição e da Fé, que a Igreja
poderia correr, que não hesitam: partem para o deserto, vivendo na aridez do
deserto a apetência para o martírio que sempre esteve subjacente, como um
convite amoroso e de eleição, feito por Cristo, a toda a Igreja.
Já não havia perseguição, logo, não havia mais mártires. O testemunho que
o mártir era chamado a dar, fôra substituído (algumas vezes) por uma subserviência
diante do Império.
E estes homens e mulheres, que abandonam a vida citadina e rural,
abandonam tudo; família, emprego, amigos, bem-estar econômico e social e
enveredam pela via difícil do deserto.
Já desde o século II que viviam homens no deserto, levando uma vida de
jejum, de vigilância interior e de oração. Só que não viviam em comunidade. Viviam
como eremitas, nas grutas das montanhas, nos buracos encontrados no solo cálido
do ermo em que pernoitavam.
Entre muitos outros grandes monges deste tempo citamos Santo Antônio do
Deserto, o Grande, que embora conglomerando em torno de si, ainda em seus dias,
cerca de 50.000 monges, não lhes conferiu um estatuto de vida cenobítica
(comunitária).
A vida monástica em comunidade inicia-se realmente, já com uma regra
monástica muito semelhante à dos nossos dias, com Abades como São Pacômio,
mais tarde continuada por outros Abades como Santo Arsênio, São Sabas, etc... A
regra monástica que vigora em toda a Igreja Ortodoxa é a de São Basílio, o Grande.

O II CONCÍLIO ECUMÊNICO
Constantinopla I (381)

Este Concílio Ecumênico foi convocado pelo Imperador Teodósio, o Grande,


no ano de 381. Estiveram presentes 150 Padres Conciliares. Não foi enviado por
Roma nenhum emissário ou representante. Contudo, duas razões podem ser
invocadas para fundamentar a razão do não envio de representantes ao Concílio
por parte de Roma.
A primeira tem a haver com uma questão de fragilidade humana. Os
Bárbaros encontravam-se acantonados nas fronteiras ocidentais do Império e Roma
corria sérios riscos de ser tomada. A segunda razão é de ordem teológica. É que a
Igreja de Roma não tinha as heresias combatidas pelo Concílio, no seu território.
Daí ser, do seu ponto de vista, desnecessário enviar emissários.
O Concílio reuniu-se para combater as heresias de Macedônio, que afirmava
ser o Espírito Santo uma “coisa” abstrata criada pelo Filho; contra Apolinário, contra
os Eunomianos, os Eudoxianos, os Sabelianistas, contra os Marcelianos, contra os
Focianos – ou seja – em geral o Concílio reuniu-se para combater todas as
“pequenas” heresias que haviam surgido durante os reinados dos Imperadores
Constâncio, Juliano e Valens.

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O II Concílio Ecumênico sancionou (confirmou) todas as deliberações
conciliares do I Concílio Ecumênico de Nicéia I (325).
Terminou o Credo Niceno (que por isso se chama de Nicéia-Constantinopla),
formulando os seus últimos cinco artigos (total de doze).
Foi o Concílio da clarificação teológica e dogmática no que concerne à
Terceira Pessoa da Santíssima Trindade – o Espírito Santo – precisamente como
Terceira Pessoa da Trindade.
Exarou sete Cânones.
E combateu ainda a grande heresia ariana, que o I Concílio Ecumênico tinha
condenado. O arianismo só vai “desaparecer” no século VI.
O Concílio estabelece também a ordem de precedência das Sés (pseudo-
Pentarquia).
São João Crisóstomo (347-407)

São João Crisóstomo, eminente Padre da Igreja, é um vulto que se agiganta


numa época extremamente rica da vida da Igreja, do ponto de vista da descoberta
teológica, mas também um tempo assaz conturbado pelas constantes e graves
heresias que grassavam por todo o Império.
São João é um homem que abarca todo o conhecimento helênico clássico da
sua época, ao mesmo tempo em que se deixa embeber por toda a reta formulação
teológica ancorada na Tradição. Depois de haver concluído os seus estudos, ainda
muito jovem, decide-se por enfrentar a árdua vida do deserto. Desejoso de um
encontro pessoal com Deus, mais profundo do que aquele que lhe era
proporcionado almejar, como simples fiel, assume a condição de monge (eremita,
solitário). Envereda então por uma radical ascese, à qual permaneceu fiel durante
todo o tempo em que teve o deserto por companheiro. Os jejuns rigorosos e o
estado de permanente vigília que mantinha, exauriram-no (esgotaram-no) de forças
e ficou marcado por uma debilidade física para o resto da sua vida.
Como sempre acontece com homens desta envergadura espiritual, não foram
muitos os anos em que pôde usufruir a serena tranqüilidade do deserto. A auréola
de santidade que o acompanhava em breve atraiu o povo ao ermo onde São João
vivia. Pouco a pouco a oportunidade, lucidez e retidão dos seus ensinamentos
começam a ser notadas em Antioquia e o bispo desta cidade chama São João para
pregador oficial, ordenando-o presbítero.
No ano de 387, quando dos distúrbios locais em Antioquia, as estátuas de
Teodósio I e de toda a sua família são destruídas pela multidão enfurecida. Este ato
era um grave desafio ao poder e instituição imperiais e, na época, fora considerado
um crime político de extrema gravidade. Era de esperar que em breve se abatesse
sobre a cidade a justiça imperial, através de execuções sumárias e desterros em
massa. Toda a cidade ficou aterrorizada quando se apercebeu das naturais
conseqüências dimanadas das ações praticadas. Diante do espectro da punição,
toda a cidade apela para o Patriarca para que este interceda junto do Imperador,
implorando o perdão e misericórdia para a cidade.
O Patriarca Flaviano (que partiu para os Céus em 404), já avançado em
anos, não temendo nem as tempestades nem o frio indescritível do Inverno, parte
nessa difícil, mas necessária viagem: e consegue o perdão do Imperador para toda
a cidade.
Entretanto, enquanto se desenrolavam todos estes acontecimentos, São
João, pregando aos corações ansiosos da população incauta da cidade, punha em
evidência a dura realidade do contraste entre os vícios daquela urbe opulenta e os
mandamentos do Evangelho. Nunca, como então, a difícil arte da homilética foi tão
magistralmente exercida. São João Crisóstomo possuía a mestria de associar a
eloqüência do verbo, da palavra oportuna e clara, com a tonalidade intelectual e a

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capacidade de apreensão do auditório que o escutava. Quando via que o assunto
que abordava e a forma como o veiculava estava a causar tédio e inquietação na
comunidade que o escutava, imediatamente mudava de tema e alterava a
articulação do seu discurso. Para ele, o importante não era a eloqüência enfatuada
e diletante que eximiam muitos pregadores, mas sim a certeza de que a mensagem
de Cristo era ouvida com atenção e apreendida.
São João Crisóstomo, mercê da sua ação junto dos fiéis durante todo este
tempo de difícil vivência, notabilizou-se ainda mais do que até então.
Quando no ano de 398 a Sé de Constantinopla fica vaga, São João
Crisóstomo é o escolhido para ocupar o trono da capital do Império. Aceitou esta
enorme responsabilidade porque urgentemente solicitado pelo Imperador Arcádio,
que tudo fez para que São João ocupasse aquela Sé.
Sagrado por Teófilo, o Primaz de Alexandria, em breve se instalou um clima
de animosidade entre as duas Igrejas.
É que, ao invés do Papa de Alexandria, São João Crisóstomo logo que
assumiu a chefia da Igreja de Constantinopla abdicou de todos os bens que possuía
no seu palácio primacial, distribuindo pelos pobres o produto da venda desses bens;
construindo locais de acolhimento para os mais indigentes; criando postos de
tratamento gratuito para os inúmeros feridos e doentes que deambulavam pela
cidade.
Mas a sua tranqüilidade durou pouco tempo. A Imperatriz Eudóxia, outrora
grande admiradora de São João, logo se transformou em sua fidalga inimiga, uma
vez que a sua conduta era fortemente criticada pelo Santo Arcebispo.
É precisamente a seu convite que em 403 o Papa Teófilo de Alexandria vem
para Constantinopla e se instala no palácio do Carvalho, nas circunvizinhanças de
Calcedônia e reúne um Sínodo de 299 bispos (dos 36 que compunham o Sínodo
Alexandrino).
Segundo um dos cânones exarados pelo II Concílio Ecumênico, Alexandria
não tinha qualquer direito de interferir nos assuntos internos de Constantinopla. Mas
este Sínodo intimou São João a comparecer diante dele e, na sua ausência,
condenou-o por vários “delitos” e “infrações”, absolutamente falsos. Embora tendo
protestado contra nítida violação dos cânones e da justiça, não quis defender-se e
entregou-se à guarda imperial. Mas como, logo após ter sido levado de
Constantinopla, sobre veio um avassalador tremor de terra, Eudóxia mandara-o
chamar, implorando que voltasse a pastorear o seu rebanho.
O Papa de Alexandria foge para o Egito, atemorizado pela exaltação da
população, mas o regresso de São João indignou fortemente os seus opositores e
de novo a Imperatriz reergueu uma campanha contra ele. Muitos dos seus amigos
foram deportados, enquanto o Imperador Arcádio (395-408) assistia a todos estes
ardis, impotente e tíbio nas suas decisões, incapaz de defender o homem que
chamara para a sua capital.
Quando no ano de 404 São João é de novo feito prisioneiro, o Senado e a
Catedral de Santa Sofia são devorados por um incontrolável incêndio. Desta vez,
Eudóxia enviou-o para Cucuso, no limiar das fronteiras do Império. Em breve se
tornou no centro das atenções e dizia-se que Antioquia estava deserta, uma vez
que os seus filhos mais eminentes tinham seguido São João e viviam naquela
aldeia, com o firme propósito de usufruírem os doutos e justos ensinamentos do
Santo Bispo. Todavia esta sua popularidade incrementou a hostilidade dos seus
inimigos e foi enviado mais para norte, para Pítias, no Cáucaso, morrendo no
caminho. Acorrentado, descalço, tolhido de movimentos pelas pesadas correntes
que o prendiam, como se de um temível salteador se tratasse, magro, sofrendo de
dores atrozes provocadas por incontáveis úlceras que o seu estômago albergava,
exposto aos impiedosos efeitos do sol intenso e da chuva, São João Crisóstomo,

41
sentindo que a sua partida para junto do Mestre estava próxima, pediu lhe fosse
concedida autorização para celebrar, pela última vez, a Sagrada Liturgia. Pedido
este que fora deferido. No fim do Santo Ofício, ainda paramentado, partiu para o
encontro com o Mestre. As suas últimas palavras foram: “Glória a Deus por tudo”.
Em 438, sob o reinado do Imperador Teodósio II (408-450), as suas Relíquias
foram transladadas para Constantinopla. O Imperador e suas filhas ajoelharam
diante das suas Santas Relíquias implorando o perdão para os seus antecessores.

O TERCEIRO CONCÍLIO ECUMÊNICO


Éfeso (431)

Após este clima de instabilidade causado pelo exílio de São João


Crisóstomo, houve um período de aproximadamente vinte anos em que os cristãos
puderam viver em paz.
Contudo, neste período de constante descoberta teológica, corria-se o risco
de se cair em graves heresias quando se ousava enveredar por caminhos ínvios de
especulação teológica que não tinham em linha de conta a Tradição.
Assim nasce a famosa heresia denominada “nestorianismo”, que provocou
graves dissensões entre os cristãos e foi motivo para a convocação do III Concílio
Ecumênico.
O III Concílio Ecumênico (431) foi convocado pelo Imperador Teodósio II
(408-450) e reuniu 200 Padres Conciliares. A obra máxima do Concílio foi a formal
condenação do Nestorianismo, bem como do heresiarca Nestório, que foi deposto
da Sé de Constantinopla e enviado para um mosteiro.
Nestório fôra presbítero em Antioquia, homem erudito, profundo conhecedor
de toda a cultura clássica, e em 427 eleito Arcebispo de Constantinopla. Nestório
pretendia acabar com todos os grupos dissidentes e, com a ajuda da guarda
imperial, organizou uma acérrima campanha contra os hereges, fechando os seus
lugares de culto (não autorizado). Ao tentar definir, com maior precisão, a distinção
entre Deus e o Homem em Cristo, possibilitou que a sua própria ortodoxia fosse
posta em dúvida pelos seus opositores. A Tradição dizia que Cristo era Verdadeiro
Deus e Verdadeiro Homem simultaneamente, mas uma só Pessoa (divina). Esta
asserção difícil de ser compreendida por alguns quase antinômica, de unidade e
distinção, permitia duas interpretações diferentes, mas complementares (segundo a
Tradição Ortodoxa). A famosa Escola Teológica de Alexandria acentuava em Jesus
Cristo a vertente do Logos encarnado e salientava a Natureza divina de Nosso
Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo.
Quanto à Escola de Antioquia, esta enveredava pela exaltação da Natureza
humana de Cristo, pondo em evidência toda as vertentes da Encarnação que
poderiam revelar Cristo como um homem comum, com experiências e limitações
normais, com exceção dos pecados e das divisões íntimas.
Ora o Arcebispo Nestório vai ser um lídimo representante da Escola
antioquina, mas pela sua impaciência em ver rapidamente o aniquilamento das
hostes heréticas, acabou, mercê dos seus “extremismos”, por terminar os seus dias
usando o execrável epíteto de heresiarca.
Nestório foi tolerado nas suas várias dissertações enquanto não ousou tocar
na Santíssima Mãe de Deus. A sua derrota teológica começa quando ele tem a
temeridade de dizer que a Santíssima Virgem Maria não é Mãe de Deus (Theotokos
– portadora de Deus), mas apenas Mãe de Cristo (Cristotokos – portadora de
Cristo).
Para que isto fosse verdade teria de existir em Cristo não uma só Pessoa
(divina), mas duas (sendo a segunda, humana). Maria seria a Mãe desta segunda
Pessoa (humana).

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Quando esta grave heresia ecoa pelos extensos vales do Egito e chega ao
conhecimento do Papa, São Cirilo de Alexandria, este põe-se a caminho de
Constantinopla, condenando os erros de Nestório e lançando sobre ele 12
excomunhões, isto ainda antes da convocação do Concílio. São Cirilo era um
eminente teólogo e ao mesmo tempo o “chefe” natural de todo o povo copta. Era
inamovível nas decisões que tomava e que visavam salvaguardar a justa Tradição
Ortodoxa.
Quando chega a Éfeso faz-se acompanhar por algumas dezenas de bispos,
por centenas de padres e por largos milhares de monges egípcios que o haviam
acompanhado. Diante de tão majestática visão, os partidários do Arcebispo Nestório
ficaram intimidados.
O Concílio desenrolou-se sob um clima de grande animosidade.
São Cirilo pretendia que o Concílio se limitasse a sancionar as excomunhões
que lançara contra Nestório. Mas os bispos nestorianos, que se haviam atrasado no
caminho de Éfeso, ao chegarem à cidade e tomando conhecimento da atitude de
São Cirilo, excomungaram-no. Diante de tão inusitados acontecimentos, o
Imperador Teodósio II confirma ambas as excomunhões e destitui das respectivas
Sés, Nestório e São Cirilo.
O Arcebispo Nestório obedece à ordem imperial e é deposto da Sé
Constantinopolitana. Morre num mosteiro em 452.
São Cirilo permanece como Papa de Alexandria, uma vez que aquela região,
ao tempo, não era de fato parte integrante do Império, embora o fosse
nominalmente.
São Cirilo consegue fazer com que os bispos orientais reconheçam que em
Cristo há duas Naturezas, divina e humana, mas uma só Pessoa (divina) e que a
Santíssima Virgem Maria é indubitavelmente Mãe de Deus.
Alguns bispos alexandrinos afirmavam que Cristo, sendo uma só Pessoa
(divina), também tinha uma só natureza, por sua vez divina e humana. São Cirilo
nunca perfilhou tais opiniões e é aqui (nestas afirmações) que se instale o gérmen
da futura grande heresia que o IV Concílio Ecumênico vai combater – o
Monofisismo.
Hoje se pensa, com alguma verossimilidade, que houve graves atropelos
terminológicos. A terminologia usada por Alexandria e por Constantinopla não era a
mesma e até no que concerne a algumas palavras gregas existia uma grande
dificuldade de objetividade. Por exemplo: “hipostasis” podia ser compreendida quer
como pessoa quer como substância.
Nestório muitas vezes repudiou e negou veementemente interpretações e
formulações que lhe eram atribuídas, e as suas obras não demonstram cabalmente
que ele fosse extremista nas posições que tomava.
Nestório tinha muito medo que os fiéis divinizassem a Santíssima Virgem
Maria, ao apelidarem-Na de Mãe de Deus.
Era uma preocupação legítima, pois de forma alguma se pode pretender a
divinização de Maria igualando-A a uma das três Pessoas da Santíssima Trindade.
A “Divinização” da Gloriosa Mãe de Deus será – como para cada um de nós
que um dia tenha a incomensurável alegria de entrar no Reino dos Céus – uma
“divinização” por semelhança, e não por natureza, porque isso torná-La-ia uma
Pessoa divina.
Mas Nestório não teve a prudência pastoral de transmitir aos fiéis a
necessidade da justa veneração da Santíssima Virgem Maria, tal como a Tradição a
apresentava. Diante desta grave dificuldade pastoral, opta por uma via mais fácil e
mais simples, mas que indubitavelmente entra em ruptura com a Tradição.
A visão errônea que Nestório vai divulgar distorce completamente a imagem
de Maria.

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Para os cristãos daquele tempo – como para os de hoje – a Virgem Nossa
Senhora e Mãe de Deus era não só esperança, como certeza apodítica de Salvação
para todos os homens e mulheres que tomem o seu exemplo e se abriguem
debaixo do seu manto de misericórdia. Maria era (e é) a porta larga, aberta de par
em par; o caminho amplo e a estrada segura que os cristãos ansiavam (e anseiam)
por trilhar para o encontro com o Seu Filho.
Os cristãos não esqueciam (e não esquecem) que Maria era (e é) em tudo
igual a eles, menos no que respeitava à apetência para o pecado, na medida em
que Maria nunca pecou.
Todavia, a Santíssima Mãe de Deus não tem – como Cristo – duas
naturezas, divina e humana: tem uma só natureza humana, em tudo igual à nossa,
logo um exemplo mais perto do Homem para ser seguido, mais ao alcance das
parcas forças do homem e mulher decaídos. Cristo é o exemplo a seguir, sem
dúvida, porque nosso Salvador e Deus, mas só depois de encaminhados e
oportunamente postos por Maria no caminho e no tempo certos, para encontrarmos
o Seu Filho.
Para elucidar o que acabamos de referir, proponho contar-vos uma pequena
história: todos têm presente a visita dos Reis Magos a Belém (o que no Ocidente se
chama Epifania).
Os Magos vão para Belém, chegam, estão lá, visitam Cristo recém-nascido.
Eles não são visitas para Maria, não são visitas para São José (muito menos para a
vaquinha ou para o burrinho) ou ainda para os pastores... Os Reis Magos são
visitas para o Mestre. Eles não foram chamados pela Fé, mas Deus encarrega-se
de dar sinais nos Céus a quem, fora da Igreja, queira olhar para os Céus. Há
aqueles que têm um livro onde as profecias vêm (esses têm a responsabilidade de
as saber interpretar, e de saber se os tempos são chegados, e se o caminho que
trilham é ou não o caminho do Senhor).
Os outros não têm essa obrigação! Mas Deus encarrega-Se de Se lhes
revelar e lhes tocar por outros meios. E Deus fá-lo. Assim fez com os Reis Magos. E
como sinal uma estrela apareceu no céu. E vendo a estrela, deixaram-se conduzir
por ela.
Não foi a Sagrada Escritura que os conduziu. Eles não viviam no círculo dos
eleitos, dos salvos, daqueles que tinham os Profetas, os Reis, os Patriarcas. Eles
eram oriundos daqueles que não tinham nada disto, nem sequer tinham a promessa
do Messias.
Mas até para esses (nessa altura, como hoje), Deus manifesta-Se. Deus
manifesta-Se por sinais que é necessário interpretar; e mesmo fora da Igreja é
dever de todos os homens estarem atentos e serem vigilantes, como de fato o
foram os Reis Magos. Estiveram atentos aos sinais e puseram-se a caminho de
Belém levando ouro, incenso e mirra para oferecerem a Cristo.
E agora chegou o momento de perguntarmos: A quem é que entregaram as
ofertas? A Jesus Cristo, de um mês, de seis meses? A Cristo de um ano? De
certeza que entregaram as dádivas a Maria!
E para quem eram? Para Cristo! O ouro, o incenso e a mirra, que serão
simbolizados pelos Padres da Igreja como a Humanidade, a Realeza e a Divindade
de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, são confiados à guarda de Maria e
não a Jesus Cristo, que com um ano não poderia guardar coisa alguma.
É a Santíssima Mãe de Deus que vai guardar, preservar e proteger intacto o
primeiro testemunho da Divindade de Cristo, da Sua Realeza e da Sua Humanidade.
Naquela altura (como hoje) era esta a visão que habitava os corações dos
cristãos. A Santíssima Mãe de Deus é Aquela que recebe em Nome de Cristo,
porque Mãe atenta a todos e, porque Mãe de Deus, aqueles que vêm chamados
pelos sinais dos céus, mesmo que estejam longe da Igreja.

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Maria é a porta grande, aberta, que recebe o que nós trazemos ou o que não
temos, e entrega o que somos, ou a falta daquilo que somos, a Cristo... Mas só
quando vir que Cristo poderá receber.
Porque Mãe de Deus era esta a dimensão de Maria que os cristãos viviam (e
vivem) no século IV, e Nestório vai desfigurar a Santíssima Virgem Maria tal como
Ela se apresentava à Igreja. Com a sua heresia, Nestório vai por em causa a
dimensão da Maternidade de Maria.
A nós, de nos perguntarmos:
- E a dimensão da nossa Veneração a Maria?
- E a dimensão da nossa Fidelidade a Maria?
- E a dimensão do nosso Amor a Maria?
- E a nossa intimidade com Maria? Como vai? Que fazemos dela? Como se
processa?
É bom que saibamos dar uma resposta a cada uma destas perguntas, não
com o intelecto, mas sim com o coração, para que, contrariamente a Nestório, a
Imagem de Maria permaneça intacta nos nossos corações e seja justamente
venerada como Mãe de Deus.
Maria é certeza de Salvação para todos nós porque é Ícone adequado da
Igreja e a primeira dentre toda a humanidade a ser salva por Cristo. Porque foi a
primeira a fazer a experiência única da Salvação.
Maria via receber neste III Concílio Ecumênico o título indelével de Theotokos
(Portadora de Deus), que para sempre lhe foi reconhecido.

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TEOLOGIA DOGMÁTICA – 1º. ANO

O Sistema Doutrinal da Igreja Ortodoxa

O meio de origem do Dogma cristão e da Teologia Dogmática foi o Oriente;


deu igualmente origem a diversas heresias, contra as quais teve de se refugiar no
Dogma. Naturalmente, também o Ocidente cristão participou nas lutas contra as
heresias e contribuiu para a elaboração de fórmulas dogmáticas que exprimem as
Verdades cristãs; no entanto, o Ocidente cristão consagrou-se principalmente à
prática da vida eclesiástica, preocupando-se com a administração e com a
disciplina, no seio das suas comunidades. Dotados de um espírito mais predisposto
ao manuseamento dos conceitos filosóficos, os gregos, ao combaterem as heresias,
desenvolveram o conteúdo dogmático do cristianismo e formularam as Verdades
dogmáticas da Igreja. Este foi o papel que a Igreja Ortodoxa Grega desempenhou,
no seio do Oriente cristão, até à queda do Império Bizantino.
Os russos ortodoxos, primeiramente limitaram-se a repetir o ensinamento que
haviam recebido dos seus mestres, os gregos. No século XV, contra a seita dos
“judaizantes”, os téologos russos, como por exemplo São José de Volokolamsk, São
Máximo, o Grego e outros, limitavam-se a refutar os heréticos servindo-se de textos
e de enunciados dogmáticos extraídos das obras dos antigos Padres da Igreja. Não
foi senão nos séculos XVI e XVII, quando os Prelados da Rússia se viram obrigados
a oporem-se ao progresso do catolicismo romano invasor, que surgiram as
primeiras obras sistemáticas da autoria de teólogos russos versados no estudo dos
Dogmas. Mas não eram ainda trabalhos originais; eram apenas amplificações
superficiais seguindo passo a passo os manuais dogmáticos do catolicismo romano
para posteriormente contestá-los; suprimiam somente o que o Credo ortodoxo não
continha e acrescentavam o que, a este respeito, poderia faltar. É a esta categoria
de teólogos ortodoxos que pertencem “O Grande Catecismo” de Lourenço Sisanius
e “A Confissão Ortodoxa” do célebre Metropolita de Kiev, Pedro Moghila. Tanto a
forma como o conteúdo sofreram fortemente a influência da escolástica latina.
Quando os teólogos de Kiev, educados no espírito desta categoria, chegam a
Moscou, não encontram simpatia alguma; pelo contrário, são conotados com os
heresiarcas. No século XVIII, esta teologia tornou-se cada vez mais forte e acabou
por ser preponderante, principalmente porque os teólogos de Kiev usufruíam a
proteção de Pedro, o Grande. Depois dele, as condições exteriores contrariaram o
desenvolvimento de uma teologia russa ortodoxa independente. Se anteriormente
tinha dominado a influência da teologia católica romana, as influências protestantes
suplantaram-na, pois na Corte dos Tzars vários representantes do protestantismo
estavam em posição de fazer valer os seus pontos de vista. Os estabelecimentos de
ensino teológico, então pouco numerosos, refletiam simplesmente as influências,
tendências e disposições predominantes. Ainda em 1900 um teólogo russo, o
“hieromonge” Tarassi, formulava esta exigência: “É necessário conduzir a nossa

46
Ortodoxia à pureza original do tempo dos Padres da Igreja; somente então
compreenderemos que ela é capaz de seguir o seu desenvolvimento, em oposição
à hostilidade das circunstâncias exteriores”.
Desde o princípio do século XX, todos os principais Prelados e Teólogos
russos repetiam, unânimes: Basta de escolástica! Basta de escolástica! Retornemos
aos antigos Padres da Igreja e às doutrinas da época patrística!
Um dos representantes do movimento eslavófilo, J.F.Samarine, criticava a
Teologia ortodoxa moderna por se ter afastado demasiado da vida e da Igreja viva.
Sustentava mesmo que esta Teologia racionalista tinha a responsabilidade da vasta
expansão que haviam tomado a indiferença religiosa e a incredulidade. Segundo um
outro teólogo, a Teologia ortodoxa oscilava e via intelectual e dogmática (objetiva)
ou a via empírica, psicológica (subjetiva), uma e outra extremamente perigosas,
porque a primeira leva ao pelagianismo e à escolástica racional, ao passo que a
segunda dá acesso à teologia do protestantismo. É preciso libertar a Teologia
ortodoxa do espírito do racionalismo e do método racionalista analítico; é necessário
dar uma expressão ao espírito e à vida religiosa da Ortodoxia, empiricamente
fundada; só por este preço será possível devolver às fórmulas dogmáticas dos
Concílios Ecumênicos e dos Santos Padres, o seu sentido vivo original e o seu
alcance integral. Dois teólogos bem conhecidos, teólogos distintos, o Metropolita,
depois Patriarca, Sérgio e o Metropolita Antônio (Chrapowitzky), afirmavam que na
Teologia racionalista tradicional o valor moral das Verdades dogmáticas não podia
ter expressão, uma vez que não se considerava senão o Dogma, separado, cortado
da vida religiosa eclesiástica.
Como exemplo desta Teologia racionalista citemos a Teologia dogmática de
Macário, Metropolita de Moscou. O método é analítico e racionalista. A exposição
do Dogma não repousa de forma alguma sobre a experiência eclesiástica; não se
elucida mais o conteúdo e o significado ético; tudo se reduz a uma dedução de
silogismos em série. Desta maneira, esta Teologia não poderia franquear o caminho
à alma em busca de Deus, nem estancar a sua sede religiosa.
O que caracteriza igualmente a Teologia Dogmática Ortodoxa mais recente
são as tendências que visam colocar na base da Teologia Dogmática uma idéia
determinada; esta idéia, por assim dizer, deve ser a alma do sistema e o centro
donde dimanam todos os artigos de Fé. Pretende-se seguir a Teologia Apostólica e
Patrística, toda ela animada e penetrada, como é do conhecimento de cada um, de
idéias determinadas. Assim a idéia central dos Evangelhos, é o Reino de Deus; a
dos escritos joaninos não é outra senão o amor e a vida eterna; quanto à Teologia
do Apóstolo São Paulo, ela gravita em torno da salvação pela Fé. O horizonte
teológico dos antigos Doutores da Igreja, como Santo Atanásio, o Grande, São
Cirilo de Jerusalém, Clemente de Alexandria, São Máximo, o Confessor e outros,
estava penetrado pela idéia da deificação. No que concerne aos modernos teólogos
russos, constata-se que as concepções teológicas de A S. Chomiakow repousam
sobre a idéia da Igreja que se realiza no amor cristão; a Igreja é o organismo do
amor que une todas as coisas. Segundo W S. Soloviev, o cristianismo tem por idéia
fundamental o Reino de Deus, onde se realiza a Justiça de Deus, na sua universal
unidade. Igualmente bem conhecida é a idéia da humanidade de Deus. Quanto ao
padre e professor Svietlov, falava deste princípio: todo o conteúdo dogmático do
cristianismo não pode ser enunciado senão em relação à idéia do Reino de Deus;
esta é a condição para a Teologia Dogmática obter um significado para a vida. Já
anteriormente um professor da Academia Eclesiástica de Moscou, A. Bieliaiev, tinha
elaborado um sistema dogmático em que todos os dogmas eram derivados da idéia
do Amor divino. Dois teólogos já mencionados, o Metropolita (depois Patriarca)
Sérgio e o Metropolita Antônio (Chrapowitzky) desenvolveram nas suas obras uma
concepção e uma explicação morais dos Dogmas; em cada Dogma encontra-se

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contida uma idéia moral; é por este motivo que o Dogma dá o seu fundamento à
vida moral do cristão. O bispo russo Theófano (o Recluso) representava uma
Teologia Ortodoxa de base ascética. Entre os teólogos russos emigrados na Europa
Ocidental, foi o padre S. Bulgakow, que ensinou no Instituto Teológico Ortodoxo de
Paris, a desenvolver um sistema original (que ficou inacabado); esforçava-se por
conciliar os Dogmas ortodoxos com a Sofiologia gnóstica. Todavia, esta ideologia
na interpretação dos dogmas foi rejeitada pela maioria dos teólogos ortodoxos; o
Patriarcado de Moscou chegou mesmo a qualificá-la de heresia.

A própria noção do Dogma é quase idêntica na Teologia Ortodoxa e na


Teologia Ocidental. Para os cristãos ortodoxos, o Dogma é a definição de uma
Verdade revelada, definição que, sancionada pela Igreja Ecumênica, é Lei para
todos os fiéis, porque é necessariamente obrigatório conhecê-la e confessá-la, para
a Salvação. O Dogma contém o Credo da Igreja Ecumênica e não o de uma Igreja
local. Assim se exprime um Teólogo de Dogmática ortodoxo, o bispo Silvestre,
dizendo que os Dogmas são Verdades de Fé cristã. Porque as Verdades da Fé
cristã são revelações divinas, os Dogmas são também divinos; por conseguinte
irrevogáveis e imutáveis. Eles são, além do mais, Verdades que, definidas pela
Igreja, “Coluna e apoio fundamental da Verdade”, são indispensáveis para a
Salvação de todos os homens.
Pelo seu conteúdo, o Dogma é a expressão da experiência religiosa. É na Fé
que o homem reconhece Deus. Através do ato da Fé o sujeito que reconhece
penetra naquele que deve ser reconhecido; aí cumpre-se, realiza-se a união, a
comunhão do sujeito com o objeto. O Dogma dá uma expressão ao conteúdo deste
ato religioso onde a fé reconhece Deus; ele exprime assim a experiência religiosa
interiormente vivida. A Fé é bem um ato vivo e um processo dinâmico da alma do
fiel. Falo da aspiração dinâmica e da sua penetração na esfera do Ser divino. O
Dogma, como resultado da reflexão da inteligência sobre o conteúdo da fé, marca a
consciência que se tomou do conteúdo da experiência da fé.
A experiência sobre a qual repousa a Teologia Ortodoxa não é
evidentemente a da personalidade individual isolada; é a da Igreja Ecumênica, é a
experiência da vida divina que se revela nos membros do organismo que constitui o
conjunto da Igreja. Eis a razão pela qual o Dogma não exprime experiências e
estados subjetivos da alma do fiel. O cristianismo repousa sobre fatos objetivos,
fatos da Revelação divina. É precisamente segundo a concepção ortodoxa, “a
expressão da consciência que a totalidade da Igreja possui dos fatos da Salvação
que formam os elementos principais e as bases da Fé cristã” (padre e professor
Svietlov). No Dogma, a consciência da Igreja Ecumênica cristalizou-se; aqui vêm
juntar-se as duas faces, exterior e interior, da vida da Ortodoxia, bem como da sua
natureza. Os Dogmas são “Palavras da Igreja”. Ao formulá-las, a Igreja realiza um
ato através do qual Ela se determina a si mesma. É por esta razão que a Igreja
considera a época dos Concílios Ecumênicos como a idade de ouro da História
eclesiástica.
Mediante a concepção ortodoxa, os dogmas são assim expressões
simbólicas de fatos respeitantes à ordem mística da vida divina e divino-humana
que se revela e se realiza na Igreja. Falando com propriedade, a Ortodoxia não é
uma doutrina mas uma vida; ela nem sequer é a Doutrina da vida, mas sim a vida
em toda a sua verdadeira realidade, surgida em Cristo e implantada no seio do
mundo empírico pela Encarnação do Logos. É por esta razão que os Dogmas
designam esta realidade divina, estes fatos divinos, tornados imanentes a este
mundo e à existência humana sobre a Terra, na revelação do Logos encarnado.
Bem–entendido, as noções e as palavras humanas jamais conseguiriam
exprimir, na sua perfeita plenitude, a Verdade divina (cf. São Paulo, 1 Co XIV, 12; 2

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Co XII, 2–4). Somente mais tarde, após a morte, contemplaremos a Verdade face a
face. Dizemos também que os Dogmas permanecem unicamente símbolos dos
mistérios cristãos.
Explica-se desta forma por que razão a Ortodoxia se afasta da teologia
parcialmente racionalista. Esta jamais poderia penetrar até ao centro místico do
cristianismo; ela não constrói senão uma doutrina abstrata e teórica de Deus e das
outras verdades da Fé. A História da Igreja prova-nos, demonstra-nos que quase
todas as heresias germinaram sobre o terreno racionalista; tal foi o caso do
arianismo, do pelagianismo, da querela das imagens (ícones), etc.
Na sua época, o distinto filósofo russo A. Wendensky elaborou uma teologia
dogmática filosófica. Ninguém contestará, seguramente, que tão grandioso sistema
assim concebido apresenta reais atrativos. É também preciso reconhecer que a
aplicação dos métodos filosóficos ao exame, à exposição e à explicação das
verdades da Fé não tem nada de inútil. Mas por outro lado, mais do que um teólogo
ortodoxo sublinhou o fato que, nesses sistemas metafísicos dificilmente se encontra
a vida divina que aparece em Cristo. Não é que a Ortodoxia rejeite da Teologia todo
o elemento especulativo: deve ser-lhe conferido um lugar justo, por exemplo,
quando se trata de agrupar organicamente num sistema diversos artigos de Fé. O
elemento filosófico é útil também quando se opõe a Fé à incredulidade e quando se
pretende expor o fundamento da Fé cristã, ou a sua sublimidade. Todavia, se os
Dogmas são monumentos que marcam o encontro da alma crente com Deus que
Se revela, as expressões da experiência da Fé e da consciência que a Igreja
possui; se os Dogmas designam simbolicamente elementos, fatos e conhecimentos
místicos: os eu conteúdo jamais poderá ser abarcado por um trabalho puramente
intelectual; o conteúdo do Dogma só poderá ser compreendido através da
experiência mística, a aspiração para Deus, a ascensão até ao mundo divino,
sustentada pela graça da iluminação. A experiência viva está sempre ligada a fatos
concretos. Por esta razão, a Teologia por sua vez fundada sobre a vida religiosa e
embebida da experiência também ela religiosa, não pode nunca ser algo de
abstrato, permanecendo sempre concreta e viva. As fórmulas dogmáticas possuem
carne e sangue. O cristianismo deve ser compreendido como uma vida e força
divinas.
Mas o que permanece decisivo para a Teologia não é a experiência pessoal,
individual; é a experiência eclesiástica ecumênica. Não existe possibilidade alguma
de conhecer as Verdades da Fé senão mediante uma condição: é necessário que o
teólogo participe na vida eclesiástica, na consciência da Igreja e no entendimento
ecumênico eclesiástico.
O filósofo ortodoxo russo Ivan Kireievsky desenvolveu uma teoria gnóstica
religiosa do “Saber da totalidade” ou “Saber vivo”. Segundo ele, “todo o cristão
ortodoxo tem consciência, no mais profundo da sua alma, de que a Verdade divina
não pode ser compreendida através de considerações da inteligência ordinária, mas
requer uma visão espiritual mais elevada... O justo lugar para a Verdade superior é
a íntima integralidade (totalidade) do pensamento... o lugar da consciência de si
mesmo... onde não só o entendimento abstrato, mas o conjunto integral das forças
intelectuais e psíquicas coloca o mesmo selo de certeza sobre o pensamento
presente diante a inteligência... O principal caráter do pensamento crente encontra-
se na aspiração que tende a reunir todas as partes da alma numa força única e a
procurar o centro íntimo do ser, onde inteligência e vontade, sentimento e
consciência..., todo o domínio do espírito se concentra numa unidade viva; desta
forma, a essencial personalidade do homem é restabelecida, indivisa como na
origem... O ‘Saber vivo’ resulta de dois processos intimamente associados, que se
condicionam um ao outro: processo moral e processo místico... Este ‘Saber vivo’
eleva-se mediante a medida (a intensidade) da aspiração interior em ordem à

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elevação e integridade morais... A fonte mística do conhecimento não é outra senão
a Fé; esta tem por base a consciência da relação entre a Pessoa divina viva e a
personalidade humana, isto é (a consciência) do encontro de Deus como homem”.

Esta gnoseologia de Kireievsky equivale propriamente àquilo a que se chama


“conhecer através do coração”, designando aqui o “coração”, centro da
personalidade humana. “O coração é o ponto central não somente da consciência,
mas também do inconsciente, não somente da alma, mas também do espírito, não
somente do espírito, mas também do corpo... Como tal, enquanto centro absoluto
da personalidade religiosa, o coração é o órgão da percepção religiosa” (B.P.
Wyschelavzew). “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”, diz
o Nosso Deus e Salvador Jesus Cristo. Unicamente um coração puro, onde arda a
chama do amor, acede ao conhecimento de Deus. Por esta razão, também os
Startsi russos não cessaram de repetir que se o homem consegue conhecer Deus e
os mistérios da Vida divina, é somente quando a sua “inteligência habita no seu
coração” que tal acontece.
O verdadeiro conhecimento de Deus tem como primeiras condições a pureza
e a virtude. “Admiro-me, escreve São Simeão, o ‘Novo Teólogo’, de ver que existe
bom número de homens que não hesitam em argumentar sobre Deus, embora
estejam cheios de pecados...”. Um outro Padre da Igreja, São João Clímaco, dizia:
“É a virtude que faz o teólogo”. Assim, não existe verdadeiro conhecimento de Deus
senão lá onde o homem purificou o seu coração, ou seja, todo o seu ser íntimo, de
todos os pecados e manchas, caminhando na senda da virtude, praticando
principalmente o amor ativo, crescendo na vida espiritual e elevando-se para Deus
na oração contemplativa. Somente então o homem recebe o Espírito Santo, Espírito
de verdade que o conduz em toda a verdade. Tal é a via místico-pneumática onde
se adquire o conhecimento de Deus; tal é o método dominante na Teologia da Igreja
Ortodoxa. Esta Igreja está certa e segura de que as verdades dogmáticas,
reveladas pelo Espírito Santo que habita a Igreja desde o Pentecostes apostólico,
só podem ser apreendidas e conhecidas através da mística e da graça iluminante
do mesmo Espírito Santo.
O Desenvolvimento Dogmático
Quando a Igreja foi fundada, escreve Santo Irineu de Lion, “os Apóstolos nela
depositaram em abundância, como numa rica arrecadação, tudo o que concerne à
Verdade, a fim de que todo aquele que queira aí beba a bebida de vida” (Adv. Haer.
3, 4). A Igreja tem por missão conservar intacta, imaculada, esta Verdade que lhe foi
confiada, em nada a modificar, a ela nada acrescentar ou suprimir seja o que for.
“Mas ainda que nós mesmos ou um anjo do Céu vos anuncie outro Evangelho para
além do que já vos tenho anunciado, seja anátema” (Gl I, 8) – assim afirma o
Apóstolo São Paulo. Por esta razão, segundo a Igreja Ortodoxa, não se pode pôr
sequer a questão da evolução, do desenvolvimento, aperfeiçoamento ou
amplificação das verdades dogmáticas conservadas no seu seio.
Ao emitirem as suas definições dogmáticas, os Padres dos Concílios
Ecumênicos jamais tiveram a intenção de instaurar novas doutrinas, até então
desconhecidas ou ainda não professadas conscientemente pela Igreja. Por
intermédio das fórmulas que adotaram, eles queriam unicamente salvaguardar de
toda e qualquer alteração toda a Verdade revelada por Cristo e anunciada pelos
Santos Apóstolos, a qual era combatida e desfigurada pelos heréticos. As
disposições dogmáticas conciliares não foram, pois, senão medidas de proteção.
Por isso a Igreja Ortodoxa considera como seu dever único e o mais sagrado, a
manutenção e a proteção da Fé apostólica, rejeitando toda a espécie de inovações
dogmáticas, desconhecidas da antiga Igreja. Ela vê neste “conservadorismo” o seu
privilégio.

50
A Teologia Ortodoxa distingue entre a forma exterior do Dogma e a sua
essência (a sua natureza). A essência é o conteúdo dado, conferido pela Revelação
divina; a forma é o invólucro, a expressão, a letra através da qual os homens
reconhecem o que é o conteúdo do Dogma, apropriando-o. O conteúdo essencial
do Dogma não pode, não é passível de sofrer modificação alguma, pois ele é de
origem divina. O Divino jamais pode ser submetido à evolução. O papel da Igreja
consiste em assegurar, com o maior cuidado possível, a sua conservação. Quanto à
forma exterior, quanto à expressão do Dogma traduzido em palavras, a Teologia
Ortodoxa tolera um certo aperfeiçoamento quando se afigura útil dar ao conteúdo
dogmático uma melhor explicação e uma apropriação mais satisfatória. O que pode
sofrer alteração é a forma de proclamação das Verdades dogmáticas, tendo em
conta o momento histórico e as condições e condicionalismos idiossincráticos dos
receptáculos dessa mesma proclamação dogmática. Só o Kerygma é passível de
sofrer alterações – nunca o conteúdo do Dogma, isto é, a Verdade revelada por
Deus. Conhecimento e consciência religiosa são susceptíveis de se desenvolver e
de se aperfeiçoar; daí resulta a mesma possibilidade para as fórmulas em questão.
Por outras palavras, objetivamente as Verdades dogmáticas, revelações divinas,
são invariáveis e para sempre imutáveis. Subjetivamente, logo em relação à
capacidade humana de conhecimento e de interpretação, as fórmulas dogmáticas
podem modificar-se, evoluir. Se o conteúdo essencial do Dogma é absolutamente
perfeito, a sua forma exterior, a sua expressão não possui senão uma perfeição
relativa. Dogmatizar ao interior da Igreja é um processo divino-humano no qual
participam, de um lado o Espírito Santo, de outro lado o espírito do homem. O
Espírito Santo revela a vontade divina; o espírito humano aspira a conhecê-la e dela
se apropriar. Ao passo que na Revelação é conferida, é dada a essência absoluta,
invariável do Dogma, todavia, não é senão progressivamente, pouco a pouco, que
se realiza o conhecimento, a compreensão e a apropriação da Verdade dogmática.
A Igreja Ortodoxa não admite a redação de fórmulas dogmáticas que
exprimam novos Dogmas, sejam eles quais forem, pois Ela não recebeu o dom da
inspiração enquanto fonte de novas revelações. A Igreja Ortodoxa também tem a
certeza de que as definições dogmáticas dos Concílios Ecumênicos não
introduziram dogmas “novos”. Elas somente formularam com maior precisão as
antigas Doutrinas apostólicas, que a Igreja conhecia e anunciava desde o primeiro
dia da sua História. Assim compreendidas, as definições renovadas podem ser
possíveis no futuro.
A Teologia atual distingue entre a Dogmática e a Moral. Divisão estranha à
Santa e Sagrada Escritura esta, onde a Doutrina e a Vida, o Dogma e a Moral
formam um todo inseparável. Não se pense que a Dogmática e a Moral constituem
dois domínios diferentes, uma vez que cada uma delas trata os seus próprios
problemas: a Dogmática defrontando-se com questões que dizem respeito ao
mundo transcendente (doutrina de Deus, atributos divinos, etc.) e a Moral tratando
das questões da vida prática. Na realidade, as duas ordens de problemas estão
estreitamente ligadas, são interdependentes; não os podemos, pois, tratar
separadamente. Cortai, separai um dogma da sua raiz, ou seja, da sua vida
religiosa, da experiência ecumênica eclesiástica e dele restará apenas uma noção
abstrata, uma fórmula morta, desprovida de todo e qualquer significado para a vida
religiosa.
Nunca os Padres e os Doutores da antiga Igreja separaram as verdades da
Fé das verdades da vida. Foi somente a partir do século IV que se começou a
aplicar de preferência a palavra “dogma” às verdades compreendidas na Doutrina
professada. Mas ainda no decurso dos séculos ulteriores, todos os grandes
teólogos da Igreja do Oriente evitaram o mais possível racionalizar o conteúdo da
Fé, isto é, separar a doutrina da vida em Cristo. Estes teólogos, como Santo

51
Atanásio, o Grande, São Máximo, o Confessor e outros, consideravam o conjunto
do conteúdo do cristianismo como uma unidade orgânica indecomponível. Para
eles, o Dogma exprimia a essência viva do cristianismo, por exemplo, a idéia da
divinização e principalmente a da salvação. Nem um só Padre da Igreja escreveu
uma “Teologia Dogmática” distinta da “Teologia Moral”. O Dogma, aos seus olhos,
tinha um conteúdo ético e as verdades de ordem ética estão enraizadas nos
Dogmas. Os Dogmas não são simplesmente os postes indicadores balizando o
caminho que conduz ao conhecimento da Verdade na experiência eclesiástica e na
participação da vida divino-humana da Igreja. Os Dogmas não se limitam a
desenvolver, concretizar e explicar o conteúdo da Revelação Divina, a vida mística
do Corpo de Cristo (a Igreja) e o dinamismo do conhecimento intuitivo de Deus. O
Dogma não é unicamente um princípio teórico que regula a ordem da vida cristã em
espírito e em verdade. O seu significado prático não se reduz a conglomerar os
cristãos na unidade eclesiástica e na consciência eclesiástica da Fé, preservando
assim cada um deles do isolamento religioso. Enfim, o Dogma não é mais
exclusivamente uma proteção contra a heresia, ainda que habitualmente tenha sido
formulado em ordem a combater os heréticos e que, em conseqüência disso, tenha
servido e sirva ainda hoje de medida eclesiástica tutelar, ou, por assim dizer, de
sinal de advertência para os filhos da Igreja.
O significado do Dogma consiste também em determinar a vida prática do
cristão, vida religiosa e moral, por sua vez. O Dogma é “um regulador prático da
vontade consciente” (P. Kalenw).
A idéia fundamental do cristianismo, a sua essência e o seu significado
próprio, é a salvação do gênero humano pelo Amor divino, a Encarnação, a Morte e
a Ressurreição de Cristo. Todo o Dogma está organicamente ligado a esta idéia; ele
desenvolve-a e participa na sua realização. O Dogma funda a vida moral cristã. O
Dogma da Santíssima Trindade está na base do Amor cristão e da unidade
essencial de todos os fiéis no seio da Igreja, Corpo místico de Cristo. O Dogma da
Encarnação do Logos divino, Deus que Se torna homem, dá ao fiel o protótipo
concreto e o “ideal” vivo da verdadeira humanidade e da vida cristã na virtude.
Cada um dos Dogmas possui, por isso, um significado moral; os Dogmas orientam e
animam a vida moral, fundam a piedade cristã e estimulam o crescimento espiritual.
Todos os mandamentos cristãos e todas as virtudes cristãs encontram no Dogma o
seu fundamento, a sua justificação e o seu sentido último. Não poderia ser de outra
forma, porque necessariamente a Verdade encerra um significado para a vida moral
prática, dá a toda a existência um sentido superior e transfigura-a para o ser
humano. Por outro lado, a atividade não se pode cindir da concepção; toda a ação
religiosa pressupõe uma idéia. Evidentemente, esta visão ortodoxa não tem nada de
comum com a noção pragmático-voluntarista do Dogma que expuseram os
modernistas franceses E. Le Roy, o padre Laberthonniére e outros, pois o teólogo
ortodoxo permanece convencido de que ao Dogma, enquanto postulado prático,
corresponde um fato real e que entre este fato e o mandamento moral existe uma
real, uma essencial unidade interior.

Fonte e Base da Doutrina Ortodoxa

Como fonte e base das Verdades da Fé, a Igreja Ortodoxa reconhece a


Revelação divina contida na Santa e Sagrada Escritura e na Tradição eclesiástica
(da Igreja).
Pertencem à Sagrada Escritura primeiramente os 22 livros que já a Igreja do
Antigo Testamento admitia como inspirados por Deus e em seguida os 27 escritos
apostólicos agrupados no Novo Testamento. No que concerne àqueles livros que se
apelidam de apócrifos do Antigo Testamento, a apreciação do seu valor variou no

52
decorrer dos séculos. Atualmente, muitos teólogos da Igreja Ortodoxa não
consideram como Escrituras santas, inspiradas, no Antigo Testamento, senão as 22
obras hebraicas já reconhecidas no seio do judaísmo pré-cristão. No que respeita
ao apócrifos (livro de Tobias, livro de Judith, a Sabedoria de Salomão, a Sabedoria
de Jesus filho de Sirac e os três Macabeus) os teólogos ortodoxos adotam a visão
de Santo Atanásio, o Grande, que consistia em ver nestes livros piedosos
exposições úteis para nos instruirmos e nos edificarmos, em relação aos quais
aconselha e recomenda a leitura. Desta forma se pronuncia também o Catecismo
Completo russo ortodoxo do Metropolita Filarete. É preciso ainda acrescentar que
dois Sínodos reunidos em Constantinopla em 1642 e em 1672, como também a
Confissão de Fé de Dositeu, reconhecida por todos os Patriarcas Ortodoxos,
declararam que os livros apócrifos, ou escritos deuterocanônicos do Antigo
Testamento, fazem parte do Cânone.
Distinta da Sagrada Escritura, a Santa Tradição é habitualmente designada
(erroneamente) como a segunda fonte das Verdades da Fé. Ora, semelhante
distinção e justaposição afigura-se-Nos estar desprovida de sentido, na medida em
que a Tradição da Igreja cristã é a fonte original e a base da Fé , cronologicamente
anterior à Sagrada Escritura. Quanto aos livros do Novo Testamento, eles
nasceram em diversas datas e só pouco a pouco encontram no uso eclesiástico
geral, como o atesta e confirma o Cânon escriturístico (bíblico). Foi mediante o
testemunho da Tradição eclesiástica que foi fixado o valor canônico de cada um
destes escritos neotestamentários; a Tradição eclesiástica (a Tradição da Igreja) foi
o seu critério.
Correntemente qualifica-se de oral a Tradição da Igreja. Todavia, ao longo
dos séculos, também ela foi escrita. Disto dão testemunho: as obras dos Padres
Apostólicos e dos Doutores da Igreja ulteriores, as definições dogmáticas dos Sete
Concílios Ecumênicos e os Símbolos da Fé reconhecidos pela Igreja Ortodoxa,
sendo o mais empregado o de Nicéia-Constantinopla. A antologia intitulada Livro do
Cânon dos Santos Apóstolos, dos Santos Concílios Ecumênicos e Locais e dos
Santos Padres, reproduzem em primeiro lugar os “Dogmas” dos IV, VI e VII
Concílios Ecumênicos. Igualmente reconhecido é o Símbolo dito de Santo Atanásio,
o Grande. Além do mais, no ritual ortodoxo da Sagração episcopal, figuram ainda
duas confissões detalhadas da Fé ortodoxa. Enfim, entre os testemunhos
importantes da Tradição eclesiástica, é necessário colocar os livros litúrgicos da
Igreja Ortodoxa, nos quais se perpetuam até aos nossos dias, não só a vida de
oração que foi a da antiga Igreja Cristã, mas também a sua confissão de Fé.
Ora importa sublinhar expressamente o fato de que, na Igreja Ortodoxa,
como diz exatamente F. Heiler, “a Tradição não é a reprodução mecânica de
fórmulas estabelecidas, mas sim um rio inesgotável de vida”. O teólogo grego
Bratsiotis apresenta a Tradição como “o laço vivo com a experiência eclesiástica na
sua plenitude”. A noção de Tradição é, portanto, dinâmica, nunca estática. O filósofo
russo Simeão Frank dizia do tradicionalismo que ele marca “o respeito diante da
unidade da História que domina o tempo, processo divino-humano, e a alta
consideração que daí decorre face à totalidade do passado”. Eis a razão pela qual a
Igreja conserva fielmente a herança que recebeu, onde se encontram intactas, na
sua integralidade, as Verdades da Salvação.
A Santa e Sagrada Escritura é propriedade da Igreja; a sua autoridade
repousa sobre o fato de que a Igreja reconhece, tendo sido Ela a sancionar a
compilação, o Cânone dos livros santos. Por sua vez, a Santa Tradição é o
testemunho dado pela Igreja à sua confissão de Fé apostólica. A Tradição é
autoridade enquanto testemunho da Igreja. Assim, na realidade, a verdadeira fonte
e base das Verdades cristãs da Fé, não é outra senão a Igreja Ecumênica. Como
referia o Santo Apóstolo Paulo, só a Igreja é “a coluna e fundamento da Verdade” (1

53
Tm III, 15); só Ela é a guardiã da Revelação divina; unicamente Ela, por
conseguinte, pode conferir a uma doutrina a autoridade de uma Verdade divina. Por
esta razão, já os antigos Padres da Igreja apelidaram os Dogmas de “Dogmas da
Igreja”.
Mesmo formulada por um Concílio, uma Doutrina só se torna Dogma quando
ela é reconhecida como tal pela Igreja Ecumênica. E um Concílio só é Ecumênico a
partir do momento em que a Igreja o reconheça como tal. Tudo depende, pois, do
“Consensus ecclesiae”.

Doutrina da Santíssima Trindade

Da mesma forma que para os cristãos ocidentais, também para a Igreja


Ortodoxa a doutrina de Deus constitui o Dogma fundamental, capital. Único na Sua
natureza, Deus é Um em Três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Três
Pessoas inseparavelmente unidas na Sua natureza divina. Elas penetram-Se
mutuamente, habitando cada Uma d’Elas nas outras Duas. Dotadas, pois, de uma
natureza total, plena na sua perfeição, isto é, com os seus atributos que são a
onipotência, a onipresença, a onisciência, a bondade infinita, etc. Sendo a natureza
comum às Três Pessoas, Elas têm igualmente em comum a atividade divina dirigida
para o exterior. Eis o que declara o candidato ao Episcopado na Segunda Confissão
que profere antes da investidura: “Creio num Deus distinto em Três Pessoas, o Pai,
o Filho e o Espírito Santo. Distinto em propriedade, mas unido em substância e ao
mesmo tempo inteiramente Trindade e inteiramente Unidade. Unidade segundo a
substância, a natureza e a forma; Trindade segundo a propriedade e a
denominação, pois um é chamado Pai, outro Filho e o outro Espírito Santo”. No
Grande Cânone da Penitência oramos nestes termos: “Como inseparável na
natureza, não misturável quanto às Pessoas, eu Te proclamo, oh Divindade Trina,
Única, que reina em comum...”
As Três Pessoas da Santíssima Trindade distinguem-Se pelas Suas
qualidades pessoais. Deus Pai é inengendrado e não teve princípio, não nasceu de
ninguém, não procede de ninguém; Deus Filho é engendrado pelo Pai desde toda a
eternidade; Deus Espírito Santo procede do Pai desde toda a eternidade. Mas
apesar destas qualidades próprias a cada uma das Três Hipóstases, não há senão
um Único Deus.”... Inteiramente Trindade, inteiramente Unidade. Unidade segundo
a substância, a natureza e a forma; Trindade segundo a propriedade e a
denominação, pois um é chamado Pai, outro Filho e outro Espírito Santo”.
“O Pai é inengendrado e sem princípio, pois nada há mais antigo do que Ele:
Ele era e é absolutamente Deus; é sem princípio, pois que o Seu Ser não provém
de outro que não de Si próprio. Creio também que o Pai é princípio do Filho e do
Espírito Santo: do Filho por meio da geração e do Espírito Santo por meio da
processão; e não se distingue entre Eles qualquer separação ou diferença, a não
ser a distinção das propriedades hipostáticas... Por isso venero um só princípio e
reconheço uma só origem do Filho e do Espírito Santo... E nem o Pai está separado
do Filho, nem o Filho do Espírito, nem o Espírito Santo do Pai e do Filho; mas o Pai
está inteiramente no Filho e no Espírito Santo, assim como o Filho inteiramente no
Pai e no Espírito Santo, e o Espírito Santo inteiramente no Pai e no Filho, pois Eles
são unos sendo distintos, e distintos permanecendo unos”. (Kirotenia Episcopal,
Segunda Confissão de Fé).
A Igreja Ortodoxa não admite o “Filioque”, acrescentado ao Credo no
Ocidente. Ela confessa, como anteriormente foi referido, que Deus Pai é o único
princípio, a única origem, a única causa tanto do Filho como do Espírito Santo. Ela
distingue entre a eterna emissão do Espírito Santo procedente do Pai (ao interior da
Santíssima Trindade) e a emissão do Espírito Santo tendo em conta a ordem

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temporal (fora da Trindade) que comporta a ação do Filho, ou mais precisamente o
envio temporal do Espírito Santo ao mundo, igualmente pelo Filho. Vejamos o que a
Teologia Ortodoxa diz em relação a este envio temporal do Espírito Santo que
procede do Pai: “O Espírito Santo sai do Pai através do Filho”. Esta mesma idéia
encontra também a sua expressão nos textos litúrgicos, onde freqüentemente se
afirma: “O Espírito Santo repousa no Filho e aparece no mundo através d’Ele. São
João Damasceno escreveu na sua Exposição Precisa da Fé Ortodoxa: “O Espírito
Santo é o Poder do Pai, revelando o segredo da Divindade (Poder), que emana do
Pai através do Filho... O Pai é a fonte e o princípio do Filho e do Espírito Santo; mas
não é Pai senão do Filho e Produtor do Espírito Santo... O Espírito Santo não é
Filho do Pai, mas Espírito do Pai, como saindo do Pai; pois nenhuma ação se opera
sem o Espírito Santo; mas Este é também Espírito do Filho, não como saindo d’Ele,
mas como saindo do Pai através d’Ele (Filho). Porque só o Pai é o fundamento”. (I,
ch. 12. Cf. l, 8).
De acordo com o VII cânone do Concílio Ecumênico de Éfeso, a Teologia
Ortodoxa considera como injustificável a adição ao Símbolo (Credo) de Nicéia-
Constantinopla do termo “filioque”, pois isto exprime já uma fé outra que não aquela
confessada pelos Padres do I e II Concílios Ecumênicos no Símbolo que adotaram.
O nosso Deus e Salvador Jesus Cristo declarou de próprio aos Seus discípulos com
uma perfeita clareza: “Quando vier o Consolador, que Eu da parte do Pai vos hei-de
enviar, Aquele Espírito de Verdade que procede do Pai, Ele dará testemunho de
Mim” (Jo XV, 26).
Na sua Exposição Precisa da Fé Ortodoxa, São João Damasceno desde o
primeiro livro faz alusão ao caráter inapreensível da Divindade: “A Divindade é tanto
Inexprimível quanto Inconcebível” (I, ch. I). “Deus É, nada de mais claro; mas o que
Ele É na Sua natureza permanece inteiramente inapreensível e inexplicável” (I, ch.
IV). Mesmo a incorporalidade “não é constitutiva da Sua natureza, tal como o fato
de não ter princípio, a invariabilidade e a perpetuidade ou ainda tudo o que se pode
dizer de Deus. Porque isto não designa o que Ele É, mas o que Ele não É. Ora
quando se trata de enunciar uma natureza, é preciso dizer o que ela é, não o que
ela não é. Como é impossível dizer o que Deus É, na Sua natureza, convém antes
proceder por eliminação geral. Pois Deus não É nada do que é; não que Ele não
seja, mas porque Ele está elevado acima de todos os seres e mesmo do próprio
Ser... O que nós dizemos de Deus sob uma forma afirmativa não designa a Sua
natureza, mas as relações da Sua natureza (I, ch. IV). Estas frases de São João
Damasceno repetem tão-somente o que já havia sido dito pelos grandes Padres da
Igreja do Oriente como São Basílio, o Grande, São Gregório de Nissa, bem como
São Dinis, o Areopagita nos seus escritos. Não obstante, suficientemente
fundamentada na literatura patrística, a Doutrina será de novo apresentada quando
do “conflito hesicasta”, suscitado pelo monge de Calábria, Barlaão. Dois Sínodos
Regionais, reunidos em Constantinopla em 1351 e 1352, definirão então o Dogma
ortodoxo de Deus.
No que concerne à Doutrina do Deus Trinitário, a Igreja Ortodoxa distingue a
Natureza de Deus e as Energias da Divindade. Segundo a Sua Natureza, Deus, em
relação a todo o ser criado, é em Si absolutamente transcendente e incognoscível,
inexplicável, inapreensível e indescritível. Ele não pode receber nenhum Nome, nem
ser determinado por nenhuma noção; duma maneira geral, d’Ele nada se deveria
enunciar, quer negativa quer positivamente. Ele ultrapassa tudo, está para além de
tudo. Por esta razão São Gregório Palamas não fala da natureza de Deus, mas da
Sua “sobrenatureza”. A noção do “Ser” não se aplica mais a Deus, porque Deus é o
Criador do próprio ser e como tal ultrapassa-o e domina-o. Elevado acima de tudo,
Deus é, contudo imanente ao mundo, nas Suas Energias através das quais Ele Se
revela ao mundo e age no mundo. Todo o ser criado só existe porque participa nas

55
Energias divinas. Nas Suas Energias, Deus é a essência de todos os seres.
Participando nelas, a criatura pode aproximar-se de Deus e entrar em comunhão
com Ele. As Energias não se podem separar da Natureza de Deus. Tal como a
Natureza de Deus que nelas aparece, também as Energias são incriadas e eternas.
Pode ler-se nas atas do Sínodo de Constantinopla de 1351: “Nós não a
concebemos (a Energia divina) como exterior à Natureza divina, mas dizemos que
ela brota e flui da Natureza divina como de uma fonte eterna, sem o que jamais dela
nos aperceberíamos. Ela permanece (a Energia divina) inseparavelmente ligada à
Natureza divina; a Energia divina coexiste com a Natureza divina desde toda a
eternidade, indissoluvelmente unida a ela”. Por isso também se designa Energia
pelo termo “Divindade”.
Vejamos ainda o que precisam as mesmas atas sinodais: “O que exprime a
palavra ‘Divindade’ não é a Natureza, mas sim a Energia visível”. A Energia não é,
pois, uma Hipóstase particular, uma vez que ela não existe separada da Natureza
divina. São Gregório Palamas entende a relação da Natureza com a “Energia” como
aquela da causa e efeito, na condição de se conceber este laço causal somente
“correspondente a Deus”. Inumeráveis são ainda as Energias divinas que pode
designar a palavra “Graça”. Mas todas as Energias são comuns às Três Pessoas da
Santíssima Trindade no seu conjunto, na medida em que todas elas são uma só e
mesma Natureza; Deus Filho e Deus Espírito Santo possuem toda a plenitude da
Energia de Deus Pai. Cada Energia é, pois, uma teofania (uma manifestação) da
totalidade de Deus.
A Natureza divina é indivisível, incomunicável e ultrapassa, como já vimos,
todo o nome e toda a noção. A Energia, quanto a ela, pode comunicar-se, partilhar-
se inseparavelmente, revestir um nome que a exprime e pelos seus efeitos ela
deixa-se apreender... (Decisão do Sínodo de 1351). Não poderia ser de outra
forma, porque se a criatura pudesse participar na Natureza de Deus, esta mesma
participação faria dela uma Pessoa divina; teria desaparecido toda e qualquer
fronteira entre o Criador e a criatura. Isto conduziria inevitavelmente ao panteísmo.
Se o Apóstolo São Pedro disse que o cristão deve participar na Natureza divina, isto
não significa que o cristão deva ou possa ter parte na Natureza divina. Trata-se de
uma participação na Energia Divina, inseparável da Verdade divina. Assim, as
Energias são “o próprio Deus, na Sua atividade e na Sua revelação face ao mundo:
nas Suas Energias ou atividades, Deus avança para o exterior, revela-Se,
comunica-Se, dá-Se”. Nas Energias divinas “a criatura toma realmente parte na
própria Divindade e nelas Deus está presente à Sua Criação” (O Monge Basílio, op.
Cit., p. 52, 53, 61 cf. W. Lossky S., Espírito e Amor, déc. 1947, p. 290).
Esta Doutrina exprime a Teologia principalmente apofática (negativa) do
Oriente ortodoxo, em vez da Teologia da Igreja Católica Romana, onde prevalece a
tendência catafática (positiva). Todavia, visões análogas não foram estranhas nem
a místicos da Idade Média ocidental nem a mais do que um teólogo protestante dos
nossos dias.
A Doutrina da Natureza de Deus e das Energias divinas condiciona também a
interpretação da Graça. Este termo, a Graça, é mais do que uma vez aplicado,
como notamos, à Energia divina. A Graça é a Energia divina, a ação da força divina
que se revela, imediata, no homem; ela é, pois, algo de divino e de incriado.
Numerosos e diversos são os efeitos da Graça divina. Quem receber esta força
torna-se participante na Energia divinizante e entra em verdadeira comunhão com
Deus, une-se a Ele e é deificado. “A Graça, duma maneira geral para a Tradição
Ortodoxa, designa toda a riqueza da Natureza divina, enquanto ela se comunica aos
homens; é a Divindade que por Natureza avança para o exterior, dando-se – é a
Natureza divina que se participa nas Energias divinas” (W. Lossky S., Espírito e
Amor, déc. 1947, p. 291 s). “É unicamente fundando-se sobre esta doutrina que se

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pode logicamente afirmar a realidade de uma comunhão divina do homem e de uma
divinação, sem correr o risco de fundir, de absorver, à maneira panteísta, a criatura
na Divindade. Este perigo, com efeito, surge fatalmente se se identifica em Deus
Natureza e Energia” (O Monge Basílio, op. Cit., p. 90).

Divina Trindade

Tal como para os cristãos ocidentais, a Doutrina de Deus constitui o Dogma


capital, fundamental para a Fé da Igreja Ortodoxa. Única Natureza, única Essência,
Deus é Um em Três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Três Pessoas
inseparavelmente unidas e definitivamente unidas sem separação; Três Pessoas
participando plenamente da Natureza divina. Três Pessoas inseparavelmente
unidas na mesma Natureza que auferem do Pai. As Pessoas penetram-Se
mutuamente, habitando uma nas outras (Perikorese). Dotada, pois, de comum
Natureza, partilhando a mesma Essência, cada uma destas Pessoas possui a
Essência total na sua perfeição; isto quer dizer que, com os atributos que são o
poder infinito, a presença infinita, a ciência infinita, Elas também têm igualmente em
comum a atividade própria à divindade, dirigida para o exterior de Si mesmas.
O candidato à Sagração Episcopal declara durante esta ação litúrgica, na sua
Segunda Confissão que precede a imposição das mãos: “Eu creio em um Deus
Único, partilhando em Três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Partilhado
afirmo-o no que diz respeito à especificidade das Pessoas, mas indiviso quanto à
Sua Natureza. E toda a triplicidade é a mesma e toda a unidade em Deus é a
mesma.
Unidade segundo a Natureza, a Essência e a Forma; triplicidade quanto às
qualidades, à apelação e ao modo como se relacionam com o Pai”.
No grande Cânone da Penitência ora-se nestes termos: “Como inseparável
na Essência, eu Te proclamo, ó Divindade Tripla, Única, não misturada quanto às
Pessoas, que Se sentam no mesmo Trono”.
As Três Pessoas da Santíssima Trindade distinguem-Se pelas Suas
qualidades pessoais. Deus Pai não tem princípio, não nasce de pessoa alguma, não
é engendrado, não procede de nenhuma pessoa; Deus Filho nasceu de Deus Pai,
engendrado por Ele de toda a eternidade; Deus Espírito Santo procede do Pai
desde toda a eternidade sob a forma de spiração. Porém apesar destas Três
Pessoas terem qualidades próprias a cada uma das Três Hipóstases, porque
partilham a mesma Natureza que é igual nas Três, Elas são um só Deus; porém,
como o Pai, Princípio imprincipiado gera de toda a eternidade o Filho e spira o
Espírito Santo, nós somos levados a admitir que ao interior da vida íntima da
Trindade há um só princípio de Divindade, que é o Pai, e podemos desta forma
dizer que há um só Deus, baseados neste Pai Princípio, neste Pai Monarca e assim
sendo, poderemos falar de um Deus Único. “Toda a triplicidade é a mesma e
partilhada pelas Três Pessoas da Trindade; como o princípio de Divindade é Um e
Único, a Natureza é Uma e Única e como o movimento ao interior da Vida íntima de
Deus é cada uma das Pessoas da Trindade repousar nas outras, podemos afirmar
que as Três Hipóstases da Trindade são um Único e só Deus. Unidade de
Natureza, unidade de Essência, unidade de Forma, Tríade quanto às qualidades,
aos qualificativos e à apelação, porque se chama seja o Pai, seja o Filho, seja o
Espírito Santo. O Pai incriado, inengendrado, ininspirado, sem começo e sem
princípio porque Ele não tem o Ser de nada, de nenhuma pessoa que não de Si
mesmo. Mas eu creio que o Pai é a causa do Filho e do Espírito Santo – do Filho
por geração, do Espírito Santo por efusão, sem que seja observada n’Eles nenhuma
partilha ou mudança, mas unicamente subsistem as diferenças de qualidade
hipostáticas... eu proclamo, por isto mesmo, um só princípio e conheço o Pai como

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princípio causal do Filho e do Espírito Santo... o Pai não está separado do Filho
nem do Espírito Santo, nem o Espírito do Pai e do Filho, ao contrário, o Pai está
inteiro no Filho e no Espírito Santo; da mesma forma o Espírito Santo está todo
inteiro no Pai e no Filho, porque Eles são Um na separação e separados na
Unidade” (Chirotenia Episcopal)
A Igreja Ortodoxa não admite, definitivamente, o Filioque ajuntado ao Credo
no Ocidente pela costumada via da prepotência romana, acréscimo unilateral, forma
bastarda e espúria da Tradição da Igreja. A Igreja Ortodoxa confessa, já acima o
afirmamos, que Deus Pai é o Único Princípio, a Única Origem, a Única Causa, ao
interior da vida íntima da Trindade, do Filho e do Espírito Santo. A igreja Ortodoxa
distingue também entre a eterna emissão do Espírito Santo, saído do Pai por modo
de Spiração, e a emissão do Espírito Santo em vista à Salvação, em dado momento
histórico, no tempo que comporta neste caso também a ação do Filho, ou mais
precisamente o envio temporal do Espírito Santo ao mundo, Ele que procede do Pai
e nos é enviado pelo Filho. Eis o que a Teologia Ortodoxa diz a respeito deste envio
temporal do Espírito Santo que procede do Pai: “O Espírito Santo, que procede do
Pai, é enviado ao mundo pelo Filho”. A mesma idéia encontra também a sua
expressão nos textos litúrgicos, onde não é raro que isto seja afirmado. “O Espírito
Santo repousa no Filho e vem ao mundo através d’Ele”. São João Damasceno
escreveu no seu livro ‘Exposição precisa sobre a Fé Ortodoxa’: “O Espírito Santo é
a Força e o Poder do Pai revelando o segredo da Sua Divindade (Força de Deus),
que emana do Pai através do Filho (Poder)... o Pai é a fonte e a base do Filho e do
Espírito Santo ao mesmo título; mas Ele não é Pai senão do Filho, da mesma forma
que só é emanador do Espírito Santo... o Espírito Santo não é Filho do Pai, mas Ele
é o Espírito do Pai, como tendo sido spirado pelo Pai; porque nenhuma ação na
vida íntima da Trindade ou no mundo se opera sem o Espírito Santo; desta forma
Ele é também chamado Espírito do Filho, não porque tenha saído d’Ele, mas porque
tendo sido spirado do Pai repousa necessariamente no Filho” (São João
Damasceno, op. Citada). Segundo o 7º Cânone do III Concílio Ecumênico de Éfeso,
a Teologia Ortodoxa considera como injustificada a adição ao Símbolo de Nicéia–
Constantinopla do termo Filoque, porque isto exprime já uma Fé diferente daquela
que foi confessada pelos Padres dos primeiro e segundo Concílios Ecumênicos no
Símbolo que eles adotaram. O Senhor e Salvador Jesus Cristo não declarou Ele
próprio aos Seus discípulos, com uma perfeita claridade: “Quando vier o Consolador
que Eu vos enviarei do Pai, o Espírito de Verdade que procede do Pai, Ele dará
testemunho de Mim”. (Jo XV, 26)?
Na obra acima citada do grande Padre da Igreja que foi e é São João
Damáskinos (de Damasco), é feita alusão, desde o primeiro livro, ao caráter
inacessível da Divindade. “Inexprimível é a Divindade tanto quanto inconcebível” (I,
cap. I). “Deus é nada de mais claro; mas aquilo que Ele é na Sua Natureza
permanece inteiramente e eternamente inacessível e inexplicável (I, cap. I). “Deus é
nada de mais claro; mas aquilo que Ele é na Sua Natureza permanece inteiramente
e eternamente inacessível e inexplicável (I, cap.IV). Mesmo a incorporalidade de
Deus não é constitutiva da Sua Essência, da mesma forma o fato de não se ter
tornado em alguma coisa, de não ter princípio, a invariabilidade e a perpetuidade,
ou tudo aquilo que ainda se possa dizer de Deus. Porque nada disto designa o que
Ele é, mas tão-somente aquilo que Ele não é. Ora quando se enuncia uma Essência
ou uma Natureza, é forçoso dizer-se o que ela é, e não aquilo que ela não é.
Todavia, é ao Homem completamente impossível dizer o que Deus é em Sua
Natureza; convém, pois, proceder por via de eliminação geral. Porque Deus não é
nada daquilo que é (existe); não que Ele não seja, mas tão-somente porque Ele
está elevado acima de todos os seres e mesmo acima do Ser” (I, cap. IV). “O que
nós podemos dizer de Deus sob uma forma afirmativa, não designa de forma

58
alguma a Sua Natureza, mas tão-somente as relações dessa Natureza”. A Teologia
de São João Damasceno, nestas poucas frases que acabamos de enunciar, não faz
outra coisa senão repetir o que os antigos e Santos Padres Capadócios – São
Basílio, o Grande, São Gregório de Nyssa, São Gregório de Nazianzo – afirmaram,
da mesma forma que os escritos tão controversos de São Dinis, o
Pseudoareopagita. Ainda que suficientemente fundada, desta forma, na literatura
patrística, a Doutrina será de novo apresentada quando do “conflito hesicasta”,
suscitado pelo monge calabrês Barlaam. Dois Sínodos gerais reunidos em
Constantinopla em 1351 e 1352 definirão, definitivamente, o Dogma Ortodoxo de
Deus.
Na Doutrina de Deus Trinitário, a Igreja Ortodoxa distingue entre a Natureza
(Essência) de Deus e as Energias da Divindade.
Segundo a Sua Essência, Deus em função de todos os seres criados, na
Terra ou nos Céus, é em Si mesmo absolutamente transcendente e desconhecido,
inexplicável, inacessível, indescritível. Ele não pode receber nenhum nome nem ser
determinado por nenhuma noção racional; de uma maneira geral, d’Ele nada se
poderia dizer, tanto positiva como negativamente - (catafaticamente ou
apofaticamente). Ele ultrapassa tudo. Esta a razão por que São Gregório Palamas,
nos seus tratados, não fala nunca na Essência de Deus, mas sempre na Sua
“Sobreessência”. A noção de Ser “Esse” também se não aplica a Deus melhor do
que qualquer outro nome, porque Deus é o Criador do Ser e como tal Ele
ultrapassa-o e domina-o. Elevado acima de tudo, Deus é, todavia emanente ao
mundo pelas Suas “Energias”, através das quais Ele Se revela e age na Criação.
Todo o ser criado só existe porque participa nas energias divinas. Nas Suas
energias Deus é a Essência profunda de todos os seres. Participando nelas, a
criatura pode aproximar-se de Deus e entrar em comunhão com Ele. As energias
não se podem separar da Essência. Também, como a Essência de Deus que
aparece nas Energias, estas são Incriadas e Eternas. Lê-se nas atas do Sínodo de
Constantinopla de 1351: “Nós não concebemos a Energia como exterior à Essência
divina, mas nós afirmamos que ela decorre e brota da Essência divina como uma
nascente eterna, sem o que nós não nos aperceberíamos da Sua existência nunca.
Ela permanece inseparavelmente ligada à Essência divina; ela coexiste com a
Essência divina, desde a eternidade indissoluvelmente unida a ela”. Esta é a razão
pela qual se designam as Energias incriadas pela palavra “Divindade”. Mais uma
vez, lançando mão das atas sinodais dos chamados Concílios Palamitas,
acrescentamos: “O que exprime a palavra “Divindade” não é a Essência, mas as
Energias visíveis”. As Energias não são desta forma uma hipóstase particular, na
medida em que elas não existem separadas da Essência divina. São Gregório
Palamas compreende a relação entre “Essência” e Energia como aquela (relação)
que existe entre causa e efeito, com a condição de conceber esta ligação causal
somente “correspondendo a Deus”.
Inumeráveis são as Energias divinas que podem designar-se pela palavra
“Graça”. Todas as Energias são comuns às Três Hypostasis (Pessoas) da
Santíssima Trindade na sua unidade, pois todas as Três são Uma só e mesma
Essência e têm uma só e mesma causa incausada, o Pai.
Deus Filho e Deus Espírito Santo possuem toda a plenitude de Energia, da
mesma forma que Deus Pai. Cada Energia é, portanto, uma teofania do Deus
Triúnico.
A Essência divina é indivísivel, incomunicável e ultrapassa toda a noção
racional e todo o conceito filosófico.
A Energia, quanto a ela, pode ser comunicada, partilhar-se inseparavelmente,
revestir um nome que exprima, e pelos seus efeitos ela deixa-se apreender pelo
pensamento. E de outra forma não poderia ser, pois se a criatura humana fosse

59
suscetível de participar na Essência de Deus, esta participação faria dela uma
“pessoa divina”; entre o Criador e a criatura todas as fronteiras teriam desaparecido.
E isto, levar-nos-ia, inevitavelmente, a um baixo panteísmo.
Se o Apóstolo São Pedro, o amado Corifeu dos Apóstolos, disse que o
cristão deve participar na Natureza divina, isto não quereria significar de forma
alguma, que o cristão deva ou possa tomar parte na Essência divina. Esta
afirmação de São Pedro não pode querer dizer senão que o cristão participa à
“Energia” divina, inseparável da divina Verdade. Desta forma, as Energias Incriadas
são “o próprio Deus na Sua atividade e na Sua revelação face ao mundo”; nas
Energias ou atividades, Deus avança para o exterior, revela-Se, comunica-Se, dá-
Se. Nas Energias Incriadas a criatura toma realmente parte à Divindade Ela própria,
e por elas Deus está presente, sustenta e encaminha a Sua própria Criação.
Estas doutrinas exprimem a Teologia, principalmente apofática, da Igreja
Ortodoxa, não devendo, todavia descurar a Teologia catafática, tão em voga no
Ocidente.
Estas duas vias análogas não foram estranhas nem aos místicos da Idade
Média ocidental, nem a alguns bons teólogos protestantes dos nossos dias.
A Doutrina da Essência de Deus e das Energias Incriadas condiciona toda a
interpretação da Graça. Este termo, graça, é aplicado, várias vezes, pelos teólogos
ortodoxos às Energias divinas.
A Graça é a Energia divina, a ação da Força divina revelando-se
imediatamente em todo o homem; ela é, pois, algo de divino e de incriado.
Numerosos e diversos são os efeitos da Graça divina. Quem receba esta força
torna-se participante da Energia divinizante, entra em comunhão verdadeira com
Deus, une-se a Ele, é finalmente divinizado. “A Graça, duma forma geral para a
Tradição da Igreja Ortodoxa, tem o significado de toda a riqueza da Natureza divina,
enquanto comunicada aos homens; é a Divindade que, através da Essência, avança
para o exterior e se dá - é na Natureza divina que o Homem participa, por
intermédio das Energias incriadas que recebe” (W. Lossky, Espírito e Amor, p. 291).
É somente fundamentando-se sobre esta Doutrina que se pode logicamente
afirmar a realidade de uma comunhão divina do Homem e duma divinização, sem
corrermos o risco de fundir, de absorver, à maneira panteísta – condenada
veementemente pela Igreja – a criatura na Divindade. Este perigo, com efeito, surge
somente, mas fatalmente, se se identificar em Deus Essência e Energia.

A Santíssima Trindade (2ª Parte)

A Verdade

Não podemos dar por finda a aproximação que temos vindo a fazer à
Santíssima Trindade, sem darmos alguns elementos que vos ajudarão, penso Eu, a
fazer em vós aquele “rasgão necessário” no entendimento e na alma, para que
todos possam mais facilmente se deixar penetrar pelo Mistério.
Os Padres da Igreja atribuíam à Trindade, geralmente, um só Nome, ou uma
só noção e aplicavam-nos de forma diversa às Três Pessoas.
São Gregório de Nyssa (Pai dos Padres da Igreja), nomeava o Pai:
Verdadeiro; o Filho: Verdade; e o Espírito Santo: Poder, Conteúdo da Verdade,
Verídico, o que quer dizer, Espírito de Verdade. Esta maneira própria aos Padres
Capadocianos distingue as Pessoas na Trindade, apreendendo a multiplicidade na
Unidade.

Glória

60
Nas Epístolas de São Paulo e de São Pedro encontram-se vários textos que
se exprimem assim: Pai de Glória, Filho Esplendor de Glória e Espírito Sopro de
Glória (Ef I,17; 2 Co IV, 4; Hb I, 3; 1 Pe IV, 14).
Esta contemplação distingue-se nitidamente da primeira porque não é
utilizado senão o nome de Glória; mas com três aplicações: Pai, Esplendor e Sopro,
ao passo que São Gregório de Nyssa, precedentemente dá Três Nomes:
Verdadeiro, Verdade e Espírito de Verdade e não aplica três vezes o Nome de
Verdade.
Experimentemos com humildade, e se assim o entenderdes, a contemplação
desta Glória. O que é a Glória divina? Responderei com alguma audácia: A Glória
de Deus é a matéria divina.
Matéria? Por que empregar este termo impróprio de matéria para Aquele que
é puro Espírito? Porque o Esplendor divino aparece-nos sob a forma de Glória – na
Arca do Antigo Testamento construída por Moisés ou no Templo edificado por
Salomão – enchendo tudo. “O Céu e a Terra estão cheios da Tua Glória!” Por Ela,
com Ela e n’Ela Deus está presente. Se Deus, como os Padres o afirmam, é
extático, se pela Sua riqueza inesgotável, Ele brilha fora d’Ele próprio, a paragem
destes raios, destas Energias é como se Elas “endurecessem”, se transmitissem, se
deixassem tocar pelo Homem, tocando-os Elas próprias, e isto constitui a Glória de
Deus.
Eu entendo que esta linguagem possa parecer difícil. Por Glória, com efeito,
não podemos compreender no sentido de glorificação (ou de glorificar), no sentido
de honrar; isto seria talvez um outro aspecto da questão. Todavia, quando nós
falamos da Glória do Senhor, Deus está presente, a Sua Natureza é manifestada e
aqui teremos de distingui-La necessariamente daquilo a que nós chamamos Poder,
Força, Graça, ou Energia.
Atendamos somente aos dois termos “Esplendor de Glória” e “Sopro ou
Espírito de Glória”, a fim de que o vosso espírito seja penetrado da ação do Filho e
da ação do Espírito Santo no mundo; depois, voltando a Deus, tentemos contemplar
as Suas Hipóstases.
O Cristo, o Filho, o Logos é chamado Esplendor de Glória. O que é então o
Esplendor? Alguma “coisa” que resplandece e que brilha, que se mostra e se
manifesta. Deus, pelo Seu Filho, que é Esplendor, resplandece plenamente, e
olhando este Esplendor nós conhecemos Deus. Mas o Sopro – o vento impetuoso –
não resplandece nem mostra, Ele não é a Glória resplandecente do Pai, mas o Seu
Poder glorifica-nos e a Sua função é a de nos comunicar a Glória.
Diremos, abreviando, que nós podemos conhecer Deus contemplando o
Filho, mas que nós comungamos a Deus no Espírito Santo. Podemos suportar a
contemplação do Filho unicamente porque esta Glória entrou em nós pelo Espírito,
pelo Sopro que comunica e que dá Deus ao mundo; ao passo que Cristo – o Filho –
é Deus aparecido ao mundo, Deus conosco, Deus entre nós, Deus em nós, Deus
em face de nós – Ele é Deus “lá”! Olhando Cristo, o Filho, contemplando-O,
amando-O, imitando-O, nós aprendemos e conhecemos quem é Deus, como é
Deus, mas o Espírito não mostra Deus; Ele penetra-nos pela Sua Glória divina, pela
Sua Divindade. Ele esclarece-Nos, concede-nos pela Divindade que nos transmite a
possibilidade de contemplar, em Cristo, o nosso Deus.
Este concede-nos a Natureza divina, Aquele manifesta-a.

O Ser

Os Padres da Igreja aproximam-se das Três Pessoas Divinas, tomando a


palavra “Ser”. A Moisés, revela-Se “Aquele que É”. E os Padres da Igreja distinguem
o Pai que “É” - porque Deus É; o “Ser” que é o Filho – porque Deus é o Ser; e o fato

61
de “Se Ser”, que é o Espírito Santo – porque Deus Se dá continuamente. Porque
tudo “É” d’Ele (Pai), tudo “É” por Ele (Filho), e tudo “É” n’Ele (Espírito Santo);
“Tudo”, mesmo Deus (Rm XI, 36).
Deus “É” Verdadeiramente Deus, porque Filho. Deus “É” Deus como Fonte,
porque Pai. Mas Deus “É” Deus por conteúdo, por Essência, porque Espírito Santo,
Aquele que faz Deus, “Deus”.

A Imagem

Os Padres da Igreja, São Gregório, o Taumaturgo, São Gregório de Nyssa ,


São João Damasceno, servem-se das palavras “Imagem” para o Filho e Espírito e “
Proto-Imagem” para o Pai. O Filho É a Imagem de Deus, mas o Espírito “Imagia
Deus”. O Espírito “Imagia-O” não que seja Fonte da Imagem, porque o Pai, só,
engendra a Imagem que é o Filho, mas porque Ele realiza essa “Imagem”. O Selo
Divino que nós recebemos, é Cristo, mas é o Selo do Espírito Santo, pois só Ele
imprime com este Selo o fogo interior no Homem. Cristo propõe-Se, dá-Se, a fim de
que nós, n’Ele, contemplemos Deus; o Espírito Santo penetra-nos e deifica-nos, a
fim de cada um de nós reconheça Deus através da Sua “Imagem adequada”, em
Cristo. Precisemos: o Espírito Santo penetra porque Cristo Se revelou.

Desvendando o Filho e o Espírito

Já vos falei da contemplação de Cristo, Verdade, Logos, Ser, Imagem,


Plenitude da Verdade. Ora, quando nós O queremos contemplar, Ele escapa-Se-
nos! Todavia, facilita-nos a tarefa aproximando-Se do ser humano gradualmente,
progressivamente, através de uma multidão de manifestações, e até por um grande
número de revelações. Ele vem, Ele aproxima-Se cada vez mais de nós e, por fim,
encarna! Encarnado-Se, tornando-Se Filho de Deus e Filho do Homem – Jesus
Cristo – Ele traz-nos o conhecimento perfeito da Pessoa Divina. Dizendo: “Se vós
Me vedes, vós vedes o Pai”, e aqui faz-nos notar: Por Mim, vós aprendeis e
conheceis como Deus age, como Deus pensa. No Evangelho e em Cristo nós temos
uma porta, uma imagem perfeita do que Deus é pessoalmente e trinitariamente,
mas não, nem nunca em “Sua Natureza”. Cristo, com efeito, é critério adequado
para o conhecimento de Deus; nós conhecemos hoje como Ele vai agir, como Ele
agiu; Cristo descobre-nos Deus como Pai, descobre-nos Deus como Filho,
descobre-nos Deus como Espírito Santo; Ele descobre-nos Deus Trinitário, Deus
agindo, Deus pessoal. Todavia na Sua Encarnação nada descobrimos daquilo que é
a Sua Natureza Divina, nós não temos comunicação com Ela, Ela está escondida
pela Sua Natureza Humana, Ela permanece por detrás da cortina da matéria e do
espírito humano. Por Cristo, nós sabemos como Deus pensa, nós sabemos como
Ele age, mas nós não O saboreamos; mesmo na Sagrada Eucaristia nós
comungamos a Deus, conservando o gosto do Pão e do Vinho. Por Ele nós não
temos o gosto de Deus, por Cristo nós não temos o aroma de Deus, nem temos a
Luz divina que Ele mostrou no monte Thabor aos Apóstolos. Jesus Cristo
resplandeceu de Glória na Sua ação, no Seu comportamento, nos Seus
ensinamentos, desvendando-nos Deus “Pessoa”, mas pertence ao Espírito Santo a
comunicação da Natureza Divina, permitindo ao Apóstolo Pedro dizer com toda a
força: “Nós comungamos à Sua Natureza” (2 Pe I, 4).
O Símbolo das chamas de fogo descendo sobre a cabeça de todos os
presentes, no dia de Pentecostes, comunicou-lhes esta Natureza: o Espírito Santo
faculta-nos saborear Deus, de vermos as Luzes divinas conscientemente,
realmente, e de considerarmos na Eucaristia o Pão e o Vinho exatamente como a
Pessoa de Jesus: Corpo, Sangue, Espírito e Divindade (esta operação em cima do

62
Altar não se faz quando o Sacerdote repete as Palavras da Instituição do
Sacramento, ditas por Cristo na Última Ceia, mas tão-somente quando da Descida
do Espírito Santo – Epiclesis).
A inspiração do Alto, profético, vinda do Espírito Santo, é necessária. Não
são nem a carne nem o sangue, mas o Espírito do Alto que faz gritar Pedro: “Tu és
o Filho do Deus Vivo”! Quando Cristo anuncia: Aquele que Me vê, vê o Pai, mas
este só verá o Pai em Cristo quando o Espírito Santo lhe comunique e lhe insufle a
Energia divina. É difícil de seguir as graduações espirituais nas manifestações da
ação do Filho: profecias, símbolos, sinais, aparições, teofanias, até à manifestação
de Deus na Sua Encarnação, fazendo-O, então, realmente palpável a todos nós!
Isto é verdade igualmente para o Espírito Santo que, levando em conta a nossa
fraqueza, Se exprime junto de nós, em nós, pelas Suas Energias, pelas Suas
Graças, pelos Seus Dons, tanto quanto nós os possamos suportar; a Sua Obra
magnífica só estará completa quando tudo for divinizado, quando Deus for tudo em
todos.
A Igreja conhece momentos excepcionais: um São Serafim de Sarov
saboreia Deus, aspira o Seu perfume, vê a Sua Luz incriada; todavia estas
experiências de Deus não são nem duradouras nem contínuas. Eis porque
podemos dizer que a Obra de Cristo, pela Sua Encarnação, está realizada na
História, ao passo que a Obra do Espírito Santo se vai realizando progressivamente.
Eu preciso o que disse, sublinho e repito, não para vos dizer a razão pela
qual o Espírito vem depois de Cristo, mas para vos ensinar que as ações de Cristo
e as ações do Espírito Santo são inseparáveis, ao mesmo tempo que distintas. O
Espírito e o Filho têm uma só Fonte, um só Princípio, mas Eles são Duas Pessoas
distintas. Experimentai, por favor, de compreender a distinção que existe entre o
“manifestado” e o “comunicado”. Manifestar, por exemplo, o fogo, acendendo um
fósforo e comunicar o calor deste mesmo fósforo, são dois acontecimentos distintos.
Existe uma diferença essencial que deve ser bem entendida, entre a manifestação
de Deus pelo Filho e a comunicação de Deus pelo Espírito.

ANTROPOLOGIA

Na sua doutrina sobre o Homem – Criação, Queda e suas conseqüências – a


Igreja Ortodoxa afasta-se pouco das confissões cristãs ocidentais.

O Primeiro Homem Criado

O primeiro homem é criado por Deus como um ser composto de um corpo e


de uma alma. O corpo, tirado do húmus da terra, pertence ao mundo material. A
alma, quanto a ela, emana de Deus; ela foi insuflada ao primeiro homem pelo
Criador. O ritual de defuntos exprime-se nestes termos: “A Tua Palavra criadora
conferiu-me a origem do ser, pois Tu quiseste que eu me tornasse num ser vivo,
composto de uma natureza visível e de uma natureza invisível; por esta razão Tu
criaste o meu corpo retirando-o da terra e Tu deste-me a alma pelo Teu Sopro
Divino que anima e vivifica”. Aqui é claramente afirmado que a Criação do Homem
constitui um ato particular da Palavra criadora de Deus e que o ser humano,
enquanto ser espiritual, é absolutamente de origem divina.
Eis como São João de Damasco (Damasceno) enumera as qualidades do
primeiro homem criado: “Deus fez o homem inocente, honesto, bom, sem tristeza,
sem preocupações, possuindo todas as virtudes, ornado de todos os bens,
semelhante a um segundo universo, a um mundo menor no centro do grande
mundo, a um outro anjo em adoração, ao mesmo tempo contemplador da Criação
visível, conhecedor das coisas espirituais, dominador das coisas terrestres,

63
governado dos Céus, terrestre e celeste, perecível e imortal, visível e espiritual,
colocado no centro entre a grandeza e a pequenez, ao mesmo tempo espírito e
carne, espírito pela Graça...” (Exposé précis de la Foi Orthodoxe, II,12).
Todavia, a suprema dignidade do primeiro homem criado consistia em ter
sido criado à Imagem e à Semelhança de Deus. “É segundo a Tua Imagem e a Tua
Semelhança que no princípio Tu formaste o Homem e o colocaste no Paraíso, a fim
de crescer e dominar as criaturas” (Ritual funerário dos leigos). As palavras: “a Tua
Imagem” designam, como também faz notar São João Damasceno, “a capacidade
de pensar e a liberdade de querer”; quanto às palavras: “à Tua Semelhança”,
designam “a Semelhança na virtude, tanto quanto ela é possível” (Exposé précis de
la Foi Orthodoxe II, 2). A vocação do primeiro homem criado tinha por objeto a
glorificação de Deus: “Pois Tu fizeste de mim um ser vivo dotado de razão para que
glorifique, ó Todo-Poderoso, o Teu Santo Nome” (Domingo, Ofício Noturno, I). O fim
da criação do Homem era a sua deificação. É, pois lembrando-se desta alta
posição, dignidade e posição humana que a Igreja Ortodoxa canta na primeira parte
do seu Ofício de Domingo à noite: “Lembra-te, ó minha alma pecadora, da tua divina
origem e da tua imorredoura ligação de nascimento..., tu és de essência supra-
terrestre”.

A Queda

A fim de exercer, desenvolver e consolidar as forças divinas orientadas para


o Bem, Deus interdita ao primeiro homem de comer do fruto da árvore do
conhecimento do Bem e do Mal. “Mas, seduzido pelo diabo ciumento, o Homem
comeu deste fruto; ele caiu na transgressão dos Teus mandamentos” (Sexta-feira,
Ofício da Noite, 7).
Todavia, os livros litúrgicos da Santa Igreja Ortodoxa não falam somente de
desobediência, do pecado e da queda de Adão e Eva; eles visam também a parte
que incumbe a todos os outros homens, a toda a descendência do primeiro casal no
pecado original e a queda.
Todos os homens de todos os tempos pecaram com Adão e na sua pessoa
e, assim sendo, herdam inevitavelmente, todos sem exceção, as conseqüências
devidas a este pecado: todos são igualmente culpados e merecem o mesmo
castigo. Esta assimilação e esta solidariedade entre todas as gerações humanas e
os seus primeiros pais baseiam-se nas palavras bem conhecidas do Apóstolo São
Paulo: “De sorte que por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a
morte, é por isto que a morte se estendeu sobre todos os homens, porque todos os
homens pecaram”(Rm V, 12).

64
PATROLOGIA – 1º. ANO

Introdução

Antes de começarmos a falar sobre a Patrologia, que para já, poderíamos


dizer de uma forma simples, consiste no estudo dos chamados Padres da Igreja,
queríamos dizer que nos propomos fazer este estudo sem pretensões de grande
erudição ou de dar lições do alto duma cátedra, com toda a sua carga acadêmica e
magistral, mas sim que me sinto do vosso lado, isto é, daqueles que procuram
aprender a viver a Ortodoxia, reunidos em torno daquele que podemos considerar,
afinal, o nosso legítimo professor, o nosso Metropolita Primaz e nosso Pai na Fé,
Sua Beatitude Gabriel I.
Posto isto e antes de começarmos a falar sobre os Padres da Igreja
propriamente ditos, convém fazermos uma espécie de ponte entre o Novo
Testamento e esses mesmos Padres, procurando saber em traços gerais como se
deu a evolução da instrução dos Apóstolos até meados do século II, altura em que
começam a surgir os primeiros Padres da Igreja.
Assim, depois dum período, ainda na segunda metade do século I, em que
circulavam paralelamente aos livros canônicos do Novo Testamento outros pseudo-
evangelhos, epístolas e apocalipses, que a Igreja mais tarde rejeitou como
apócrifos, vemos então surgiram alguns escritos na sua maioria sob a forma
epistolar (ou seja, cartas, ou epístolas) e outros escritos espirituais, que nós
podemos situar na transição do séc. I para o II, e que são designados
genericamente por Padres Apostólicos.
São considerados Padres Apostólicos os Bispos sagrados pelos Apóstolos e
os Bispos que sucederam a esses primeiros. Estes “discípulos dos Apóstolos”
procuram mostrar, em termos despretensiosos, a importância da Salvação
manifestada em Cristo e fortalecer nos cristãos a esperança na Segunda Vinda do
Senhor. Inculcam, além disso, obediência aos pastores das comunidades e
acautelam-nas contra heresias, cismas e costumes contrários à vida religiosa em
Igreja. Estão ainda longe de utilizar uma argumentação metódica e “científica” do
cristianismo em geral, ou das verdades da fé em particular, a que se propõem os
Apologetas do Séc. II.
Enquanto testemunhas do cristianismo primitivo e da Tradição da Igreja
possuem grande valor, tendo alguns deles chegado a serem temporariamente
considerados canônicos (isto é, obras suas incluídas na Sagrada Escritura).
Encontram-se entre os Padres Apostólicos São Clemente de Roma (do qual
nos resta somente a sua Carta aos Coríntios), Santo Inácio de Antioquia (com as
suas sete Cartas enviadas quando se encontrava a caminho de Roma para aí sofrer
o martírio) e São Policarpo de Esmirna (do qual somente conhecemos hoje a sua
Carta aos Filipenses e a Acta do seu martírio).
Pertencem a esta mesma época, embora com diferentes estilos literários,
outros escritos: a Didakê (ou Doutrina dos Apóstolos), a Carta apócrifa de Barnabé,
o Pastor de Hermas, a Carta a Diogneto e pequenos fragmentos da obra de Pápias
de Hierápolis. Passamos agora a abordar brevemente cada um destes:

Padres Apostólicos

São Clemente, Papa de Roma (+ 97)

Enquanto Orígenes e Eusébio de Cesaréia afirmam identificá-lo com o


colaborador de São Paulo mencionado em Fp IV, 3, Santo Irineu afirma ser São
Clemente o terceiro Papa, após São Lino e São Cleto, e Tertuliano declara que ele

65
foi sagrado pelo próprio São Pedro; finalmente, Epifânio procurando conciliar estas
informações, refere que São Clemente terá sido sagrado pelo Apóstolo São Pedro
mas, por amor à paz, terá cedido o pontificado a São Lino, sucedendo mais tarde a
este.
São Clemente gozava de grande autoridade, apesar de se ter conservado
apenas um escrito saído da sua pena: a Carta aos Coríntios, que chegou a ser
incluída no Cânone das Escrituras da Igreja Siríaca e inserida também no “Codex
Alexandrinus”.
A Carta aos Coríntios foi escrita nos últimos anos do imperador Domiciano
(c.96) e era já citada na Carta de São Policarpo (aos Filipenses). Conhecida como
1ª Epístola de São Clemente (porque existe uma 2ª, mas não da sua autoria e que
constitui a mais antiga homilia conhecida até hoje), a ocasião e motivo da sua
redação aos Coríntios foram contendas na sua (deles) Igreja. Alguns membros mais
jovens da comunidade haviam-se rebelado contra a autoridade dos presbíteros,
expulsando-os dos seus ofícios.
Depois da 1ª parte (1/36) com admoestações gerais, na 2ª (37/61) alude às
dissensões dos Coríntios e exige submissão aos chefes eclesiásticos estabelecidos
pelos apóstolos ou pelos seus sucessores, exemplificando com a estrutura de um
exército, a constituição do corpo humano e também com a hierarquia
veterotestamentária (do Antigo Testamento). O epílogo (62/65) exprime a esperança
de um pronto e feliz regresso dos portadores com a notícia do restabelecimento da
paz.
Afirma nomeadamente que os chefes das comunidades são chamados
episcopos (bispos) e diáconos; e noutras passagens são englobados pelo nome de
presbíteros. O autor declara categoricamente que não podem ser depostos pela
comunidade por não terem recebido dela os seus poderes. Foram-lhes diretamente
transmitidos pelos apóstolos que, por seu lado, agiram conforme a ordem de Jesus
Cristo, o “Enviado de Deus”.
A “oferenda das oblações” é mencionada como a sua função mais
importante. Para além de nos transmitir alguns pormenores interessantes na sua
doutrina, encontramos na sua Carta uma referência que nos diz diretamente
respeito: trata-se da viagem do Apóstolo São Paulo às Espanhas. São Clemente
escreve literalmente que este Apóstolo “depois de ter ensinado a justiça a todo o
mundo e ter ido até ao extremo Ocidente, deu o seu testemunho pelo martírio,
perante os governantes”. Este é um dos testemunhos desta viagem do Apóstolo,
por ele próprio atestada a intenção de a fazer, na sua Epístola aos Romanos, por
duas vezes (XV, 24 e 28).

Santo Inácio do Antioquia (+ c. 110)

Para além de se saber ter nascido em Antioquia, pouco se conhece sobre a


origem, conversão e mesmo as circunstâncias que levaram à prisão e condenação
de Santo Inácio. Mas podemos ouvir ainda a sua voz regozijando-se com a
aproximação do martírio. Os seus escritos são uma revelação única do espírito de
um mártir.
O que conhecemos dele é-nos veiculado pelas suas sete Cartas, que ele
escreve ao ser levado da Síria para Roma, no tempo do imperador Trajano, para ser
devorado pelas feras na arena.
De Esmirna escreveu às Igrejas de Éfeso, Magnésia e Trales, na Ásia Menor,
para lhes retribuir as saudações enviadas por delegações suas, já no caminho para
o martírio. Em seguida escreveu à Igreja de Roma pedindo que se abstivesse de
qualquer intervenção junto do imperador para o libertar. Mais adiante, em Trôades,
recebeu a notícia de que terminara a perseguição em Antioquia; escreveu, por isso,

66
às Igrejas de Filadélfia e de Esmirna e a São Policarpo, bispo desta última cidade,
pedindo-lhe que felicitassem, devido ao restabelecimento da paz, os irmãos de
Antioquia, por intermédio das delegações.
São Policarpo (que veremos a seguir) menciona na sua epístola as Cartas de
Santo Inácio, afirmando ser “o seu conteúdo de fé, de paciência e ainda de grande
edificação a respeito de Nosso Senhor”. Delas testemunham também Santo Irineu,
Orígenes e Eusébio de Cesaréia. O estilo das epístolas é de infalível originalidade:
um estranho amálgama de vigor, arte retórica e ausência de forma. Delas emana
uma personalidade profundamente religiosa, vibrante de um apaixonado amor
místico a Cristo e repleta de anelos pelo martírio. Ele escreve: “Sou o trigo de Deus,
peneirado pelos dentes dos leões, para me tornar no mais puro pão de Deus...
Venha o fogo, a cruz, a luta com as feras, a mutilação, o deslocamento dos ossos, o
cortar dos membros, o esmagamento de todo o meu corpo, caiam sobre mim os
tormentos do mal, mas que eu chegue à presença de Cristo”.
Na sua doutrina afirma inequivocamente que a Igreja é hierárquica e
sacramental. Lá onde está o Bispo, lá está a Igreja Católica. A primeira e mais
importante função do Bispo é a Celebração da Eucaristia, que é “a carne do nosso
Salvador Jesus Cristo” (Esm 7.1) A comunidade local é a Igreja. A Igreja é uma
sociedade eucarística: a sua organização exterior é secundária à vida sacramental.
Refere-se à Igreja Romana como “a Igreja que preside na caridade” (Rm 1), aliás,
como a Igreja Ortodoxa sempre a encarou, enquanto ela esteve em comunhão
conosco, em oposição à sua pretensa “primazia universal”.
Foi o primeiro a utilizar a expressão acima referida de “Igreja Católica”.
Quanto à organização eclesiástica, as suas Cartas pressupõem a existência de
bispos à cabeça de cada comunidade e consideram o episcopado monárquico como
uma instituição espontânea, segundo a natureza das coisas. O bispo é o ícone de
Cristo, os presbíteros devem ser respeitados como os apóstolos e os diáconos
como a Lei de Deus.

São Policarpo, Bispo de Esmirna (+ 156)

É discípulo de São João, o Teólogo, que o sagrou como Bispo de Esmirna.


Em 155 tentou, em vão, um acordo com Roma, com o papa Aniceto sobre a data e
a celebração litúrgica da festa da Páscoa. Quando Marcião, o heresiarca, deposto
pelo seu bispo, perguntou a São Policarpo se o conhecia, este respondeu-lhe: “Sim,
conheço-te. És o primogênito de Satanás!” Conforme atesta Santo Irineu de Lião,
São Policarpo escreveu diversas cartas a comunidades e a bispos em particular,
das quais resta somente a Carta aos Filipenses. Quatro escritos, testemunhos da
sua vida e da sua morte, trazem o seu nome:
a) Carta de Santo Inácio a São Policarpo (supramencionada), em que este é
instruído sobre os seus deveres de pastor e exortado a ser um “atleta firme como
uma bigorna sob os golpes do martelo”.
b) Carta de São Policarpo aos Filipenses: a comunidade de Filipos pedira a São
Policarpo uma cópia das cartas de Santo Inácio endereçadas a ele a várias Igrejas
da Ásia Menor. Enviou-lhas, “todas que tinha”, anexando outra pessoal. Dirige aos
Filipenses, tendo como referência a Epístola de São Clemente, toda a ordem de
exortações sobre a verdadeira fé e a vida cristã e inculca oportunamente a
obediência aos “presbíteros e diáconos” (5, 3) , certamente por não haver bispo
local. Afirma nomeadamente que “o episcopado é um todo que cada bispo recebe
na totalidade, tal como a Igreja é um todo, se bem que formado por muitas Igrejas.
Há muitas Igrejas e, no entanto uma só Igreja, há muitos bispos, mas um só
episcopado”.

67
c) Martírio de São Policarpo – É a mais antiga narrativa da paixão e morte de um
mártir que se tenha conservado. O autor, um certo Marcião, rememorando a Paixão
de Cristo, descreve o testemunho cruento do bispo, citando também a resposta
dada ao precônsule Estácio Quadrato quando este lhe mandou amaldiçoar a Cristo:
Há oitenta e seis ano que o sirvo e nunca me fez mal algum; como poderei eu
blasfemar contra o meu Rei e Salvador? “No capítulo 14 o autor põe na boca do
mártir uma oração de extraordinário valor para a história das antigas orações
cristãs. Dado que as chamas se abaulam em torno do mártir, ele é trespassado por
uma lança. Os seus companheiros reconheceram as suas relíquias, mais valiosas
que pedras preciosíssimas, mais apreciadas que o ouro e sepultaram-nas num local
apropriado, onde se poderiam reunir em cada aniversário” (cap. 18).
d) A “Vida de Policarpo”, de Piónio, composta por volta do ano 400, parece ser
totalmente lendária.

Papias, Bispo de Hierápolis

Discípulo do Apóstolo São João e amigo de São Policarpo. Escreveu cerca


do ano 130 cinco livros com relatos sobre palavras e obras do Senhor e de Seus
Discípulos, baseada principalmente na tradição oral de discípulos.
Restam pequenos fragmentos, incluindo um referente à origem dos
Evangelhos segundo São Mateus e São Marcos, com observações referente a São
João e ao fim de Judas.
Epístola de Barnabé

Enquanto São Clemente de Alexandria e Orígenes, bem como a tradição


escrita em geral, atribuem a Carta de Barnabé ao discípulo do mesmo nome,
Eusébio de Cesaréia e Jerônimo rejeitam-na como apócrifa.
A 1ª Parte (1-17), dogmática: valor e significado do AT. Os preceitos de Deus
relativos aos sacrifícios, à circuncisão e aos alimentos devem ser compreendidos
num sentido mais elevado e espiritual; em vez de sacrifícios exteriores, Deus
exigira um coração contrito; em vez da circuncisão da carne, a circuncisão do
ouvido e do coração. Os judeus, seduzidos pelos anjos maus, forçaram o sentido
da vontade de Deus, interpretando e cumprindo a lei à letra. Conseqüentemente, o
autor vê prefigurada “a glória de Jesus” em todos os fatos e nas instituições do A T.
A 2ª Parte (18-21), moral, descreve analogamente à Didakê (1-6), as duas
vias, denominadas aqui, ainda, luz e trevas.
Hoje não existem dúvidas em afirmar que São Barnabé não pode ter sido o
autor da Carta. São Paulo, de quem ele foi companheiro, considerava as
instituições do Antigo Testamento, particularmente a circuncisão, como emanadas
de Deus, enquanto o autor da Carta atribui a circuncisão à sedição de um anjo mau
(9, 4). O autor terá sido, assim, um mestre pagão, convertido ao cristianismo, que
terá escrito este edificante tratado didático após a destruição de Jerusalém.
Pela sua refutação radicalmente hostil ao judaísmo, a Carta representa um
dos escritos mais singulares da literatura cristã antiga. A exegese alegórica da
Escritura faz entrever a influência de Fílon, sugerindo ser, talvez, Alexandria a
pátria do autor.
A data da composição, difícil de precisar, situar-se-á entre o fim do Século I e
o ano de 140.
Hermas

Composto segundo o modelo dos apocalipses judaicos (especialmente


Esdras 4), o Pastor de Hermas é assim designado por causa do anjo em figura de

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pastor que aparece depois da igreja, como mensageiro das revelações, anjo da
guarda e de penitência.
Enquanto apocalipse, o livro chegou a ser considerado canônico por Santo
Irineu, Tertuliano, São Clemente de Alexandria e Orígenes. O cânone de Muratori,
pelo contrário, admite-o apenas para uso particular.
Em oposição a Orígenes e outros escritores, que consideravam ser Hermas o
discípulo mencionado na Epístola aos Romanos (XVI, 14), aceita-se geralmente
que o autor do Pastor se trata de Hermas, irmão do Papa São Pio.
O autor é de condição modesta, com vistas estreitas, porém sinceramente
piedoso e fidedigno, humilde e alegre. A linguagem denota influência helênica
associada a elementos da tradição judaica tardia. A data da composição parece
remontar aos anos 140.
O conteúdo da obra consiste principalmente na convocação à penitência de
todos os cristãos pecadores; os traços apocalípticos não passam de um esboço,
tendo muito pouco a haver com os mistérios ultra-terrenos. A obra divide-se em 5
visões, 12 preceitos (mandata) e 10 comparações (similitudines), divisão nem
sempre correspondente ao conteúdo.
As visões 1-4 representam a Igreja, na forma de matrona em contínuo
processo de rejuvenescimento e portadora da Revelação; a visão 5 até simil. 10,
trata do pastor. Hermas tem a missão de chamar os cristãos à penitência porque o
tempo urge; tal é o argumento intrínseco duma carta do Céu, entregue à Igreja. Na
3ª visão Hermas vê uma torre em construção, símbolo da Igreja: as pedras
engastadas na torre significam os bons cristãos; as imprestáveis lançadas fora, são
os pecadores, que devem ser talhados pela penitência para poderem ser
empregadas nessa construção. Na 5ª visão, onde aparece o pastor, introduz os
preceitos que, com as comparações 1-5, são um tratado de moral cristã: fé, temor
de Deus, continência, sinceridade, verdade e castidade, que se opõem à cólera, à
dúvida e à tristeza. As subseqüentes comparações 6-9 ocupam-se da execução e
das conseqüências da penitência. A 9ª comparação retoma e completa a imagem
da torre, inserindo-lhe um elemento novo: a construção é interrompida a fim de
prorrogar o prazo da penitência, no início rigorosamente limitado, porque a Parusia
de próxima se torna mais distante. Na 10ª e última comparação aparece o próprio
Filho de Deus sob a figura de anjo, repetindo as exortações à penitência,
particularmente aos ricos.
Pode-se dizer, em síntese, que, se a Antiguidade aceitou sem dificuldades a
teologia duvidosa desta obra, foi porque os fiéis – à semelhança do próprio Hermas
propunha como fim principal – procuravam no Pastor uma exortação prática
acentuada à penitência e à vida cristã em geral.

Didakê (ou Doutrina dos Apóstolos)

Este texto contém duas partes distintas: 1-6 e 7-15.


A 1a parte não apresenta características de uma catequese cristã, mas dum
texto grego com conotações muito aproximadas da doutrina judaica das duas vias
– da vida e da morte – com substituição do título judaico por Didakê, ou Doutrina
dos Apóstolos e a interpolação cristã do trecho 1, 3b a 2, 1 com prescrições
litúrgicas para o batismo, preceitos sobre o jejum e a oração.
A 2ª parte inclui orações para os ágapes (7-10); determinações concretas
relativas aos apóstolos itinerantes, doutores e profetas; acerca da celebração do
domingo e da instituição dos bispos e diáconos (11-15). E conclui (16) com
exortações à vigilância em vista do fim último.
Encontramos, assim, neste pequeno texto, para além de prescrição relativas
à vida religiosa dos cristãos, informações relativas à organização eclesiástica, em

69
que constatamos a existência de apóstolos, doutores e profetas, todos eles sem
local de ação pastoral fixo e, por outro lado, os bispos e diáconos, instituídos
localmente.

Apologetas do Século II

No decurso do século II novas circunstâncias marcaram outro rumo à


literatura cristã, imprimindo-lhe o caráter de demonstração “científica”, em forma
apologética. (Apologia é uma forma literária em defesa da religião cristã contra os
seus opositores).
Deu-se a entrada na Igreja de grande número de gentios, muitos deles
dotados de sólida formação intelectual. A Verdade, à qual haviam aderido, obrigava-
os ao confronto com a filosofia pagã. A atividade literária dos apologetas
ultrapassou, assim, os limites do ambiente onde se inseriam e empreendeu a
primeira e decisiva tentativa de expor, com hábil adaptação das correntes filosóficas
da época, a doutrina cristã, como sendo o remate e coroamento das mais sublimes
aspirações culturais do mundo intelectual.
Os escritos apologéticos do século II revestem principalmente a forma de
discurso ou de diálogo, elaborados segundo as regras da retórica grega e em parte
destinados aos imperadores. Rebatem as calúnias pagãs, desmascaram as
inconsistências e a imoralidade da mitologia e defendem, sobretudo, o monoteísmo
e o dogma da ressurreição. Visam demonstrar que a filosofia pagã, baseada
meramente na razão humana obscurecida pelas maquinações dos demônios,
conhecera parcialmente a Verdade, entremeando-a com erros; que o cristianismo,
pelo contrário, apresentava a Verdade íntegra que em Cristo, o Logos, isto é, o
próprio intelecto divino, apareceu na Terra.
A verdade do cristianismo era veiculada pelos seguintes argumentos
particulares:
I– O dos efeitos morais do cristianismo, sobretudo os da caridade fraterna;
II– O das predições de Cristo e dos profetas (AT);
III- O da antiguidade: acentuação da unidade intrínseca e da conexão existente
entre o AT e o NT; o conteúdo dos livros proféticos realiza-se no NT; o cristianismo
não é religião nova nem recente, porque Moisés – que anunciou Cristo – é anterior
aos poetas e sábios gregos;
IV– O dos milagres de Cristo: raras vezes aduzido, porque também pseudocristos e
magos operavam prodígios pela intervenção dos demônios.

Os Padres da Igreja

O estudo da PATROLOGIA ou PATRÍSTICA pode ser encarado segundo


várias perspectivas – literária, histórica ou filosófica – abrangendo a análise,
explicação e crítica das obras literárias dos Padres da Igreja.
Padres da Igreja são geralmente bispos, mas também há presbíteros e até
simples monges, cuja obra literária, no todo ou em parte, é síncrone com a Igreja.
Eles não são teólogos de escola cuja doutrina seja baseada no intelecto e na
erudição, mas antes transmissores da Tradição, da Verdade e da Fé cristãs, que
eles próprios viveram nas suas vidas.
Pela nossa parte, vamos tanto quanto possível ler essas obras tentando
penetrar na mentalidade da época, conhecer as vidas e gestos valorosos dos seus
autores e falar do seu pensamento, das suas escolas, sem, no entanto, fazermos
um estudo literário, histórico, biográfico ou filosófico enquanto tal. Sendo todos
estes elementos de importância significativa para se poder estudar e compreender
os Padres, permanecerão, contudo, para nós, num plano secundário, funcionando

70
como instrumentos de trabalho; as nossas preocupações centrar-se-ão, isso sim, no
conteúdo dessas obras, no legado que os Padres nos transmitiram (pelas suas
vidas e pelos seus escritos).
Quando nos surgirem problemas causados, por exemplo, pela crítica
histórica, não os ignoraremos; falaremos deles, mas atentaremos sempre e
principalmente nesse legado transmitido e isso não por ignorância, obscurantismo e
teimosia, mas porque para nós o conteúdo certo é expressão da Verdade, imagem
da vida da Igreja. A crítica histórica fica na periferia da obra, obtendo visões
parcelares, logo de pouco interesse para nós. Enquanto a perspectiva histórica
muda com o tempo, o legado da Tradição é, no seu conteúdo, intemporal.
Será talvez interessante vermos agora como é que os Padres da Igreja se
consideravam a si próprios: longe de se considerarem simplesmente como literatos
ou eruditos, eles tinham o sentimento profundo de serem os mensageiros da
palavra divina e tomaram a peito assegurar a sua continuidade no seio das
comunidades cristãs contemporâneas. Não desejando a glória dos rectores ou a
dos eruditos, eles chegavam até a condená-la. Quando surgem preocupações de
ordem literária ou histórica elas não são postas em primeiro plano.
Os Padres da Igreja consideram-se, em suma, como doutores esclarecidos e
legítimos da Igreja, e comentadores probos e competentes da Sagrada Escritura. Se
os não compreendermos neste sentido estamos a falsear a sua intenção primeira e
única, a esquecer a gravidade das suas obras, a transformar arbitrariamente o fim
com que eles escreveram.
Estes homens deixaram uma obra imensa, escrita com a preocupação de
permanecerem, eles e aqueles para quem escreveram, dentro da Tradição da
Igreja.
As suas obras voaram céleres e libertaram-se dos lugares geográficos onde
nasceram, correram do Oriente ao Ocidente e vice-versa, muitas vezes ainda em
suas vidas, com o fim único de afervorar os irmãos na Fé, Fé que Jesus nos deu, os
Apóstolos no-la transmitiram e repousa inteira na Tradição da Igreja.
Sendo por vezes confrontados com as antigas tradições, souberam uni-las
para sempre à Tradição cristã, adaptando-as e conformando-as a esta última, não
pelo valor da autoridade que aquelas heranças antigas detivessem, mas porque
eram passadas ao crivo da Verdade absoluta, veiculada pela Tradição da Igreja em
geral e pela Sagrada Escritura em particular.
A Tradição deixou-nos dois grandes grupos nos quais inserimos todos os
Padres da Igreja:
- Os Padres da Igreja Grega;
- Os Padres da Igreja Latina.
Esta divisão não existia nos princípios da Igreja e Padres como Santo
Atanásio o Grande, Patriarca de Alexandria, era lido tanto no Oriente como no
Ocidente; assim como Santo Ambrósio de Milão e São Leão Magno, Papa de Roma
foram lidos, comentados e respeitados por gregos e latinos. Esta divisão começa a
acentuar-se quando:
1º Roma deixou de falar grego (séc. III);
2º O Império do Ocidente caiu nas mãos dos Bárbaros (séc. V);
3º Depois do VII Concílio Ecumênico, em 787;
4º Separação das Igrejas, em 1054.
Ou mais precisamente:
1º Ruptura lingüística (séc. III);
2º Ruptura política (século IX): sagração de Carlos Magno, Imperador dos
Romanos, separando o Império em dois, um no Oriente e outro no Ocidente;
3º Ruptura religiosa (1054) – Cisma do Ocidente.

71
Com esta divisão surgem duas correntes diferentes de pensamento que
engendram duas mentalidades (como vimos já na aula anterior de Teologia
Dogmática); uma juridista e evolucionista dogmática (com Agostinho de Hipona,
Vicente de Lerins, etc.) para os Ocidentais; e outra mística e profundamente
pneumática (com Basílio, Gregório de Nazianzo, Gregório Palamas, etc.) para o
Oriente. Uns e outros são ao mesmo título Doutores da Igreja Universal, pouco
importando as suas mentalidades ou idiomas, quando aquilo que afirmam é a
Verdade, enraizada na vida e na Tradição da Igreja.
Quanto àquilo a que se chama “Era Patrística”, nós, Ortodoxos, mal fixamos
o seu início e, sobretudo não fixamos o seu fim. O Ocidente, cuja teologia envereda
pela tendência escolástica, limitando a liberdade de pensamento teológico criativo e
espartilhando-o, fixa, por via disso, o fim da sua Era Patrística no século V (salvo
para a Península Ibérica no Século VII).
Nós, Ortodoxos, pelo contrário, sendo a nossa teologia mística e pneumática,
afirmamos que o Espírito Santo está presente na Igreja hoje, tal como ontem e
estará também amanhã. Logo, a possibilidade de haver homens que escrevem ou
falem, inspirados pelo Espírito, baseados na Tradição da Igreja e que apresentem a
Doutrina de Jesus como resposta às heresias de hoje, tal como um Cirilo de
Alexandria, um Irineu de Lion e muitos outros fizeram no seu tempo.
Como exemplos mais recentes temos São Gregório Palamas (séc. XIV) e
São Marcos de Éfeso (séc. XV) – Padres da Igreja Indivisa.

Os Padres da Igreja

Vimos já que os Padres da Igreja são geralmente bispos (mas não só) cuja
obra literária, no todo ou em parte, é síncrone com a Igreja. Podemos, assim, dizer
que eles são os primeiros teólogos, não no sentido que hoje damos de “teólogos de
escola”, de mestres eruditos de alta teologia, mas de fidedignos transmissores do
legado da Tradição, cooperando eles próprios decisivamente na progressiva
definição do Dogma (e note-se bem, deve precisar-se aqui definição e não evolução
do Dogma – como defendem erradamente os católicos romanos), expressando-o
em função das realidades que eram chamados a enfrentar nas suas vidas,
nomeadamente em refutação das heresias.
Vamos ver agora, sucintamente, como surgiram os primeiros teólogos,
aqueles a quem chamamos os Padres da Igreja.
Os primitivos cristãos não eram teólogos no sentido hoje utilizado – que é o
de homem de Igreja que pela sua reflexão pessoal e o exemplo das suas vidas
transmitiram pela palavra e por escrito o legado que lhes foi transmitido, definindo-o
progressivamente, ajudando a torná-lo mais acessível àqueles a quem se dirigiam;
todavia, não basta veicular os dogmas, a Verdade cristã tal qual foi recebida (e isto
só por si já é meritório) para se ser considerado teólogo: estes que assim
transmitem a Verdade cristã são os chamados repetidores (dos quais já ouvistes
falar nas aulas de Teologia Dogmática, quando Sua Beatitude se referiu àqueles
largos períodos da História da Igreja Russa e também da Grega, em tempos mais
recentes, caracterizados precisamente pela ausência de verdadeiros teólogos);
logo, pode dizer-se que teólogo não é aquele que traz uma nova Revelação –
porque esta foi-nos manifestada de uma vez por todas por Nosso Senhor Jesus
Cristo – nem tão-pouco aquele que, partindo dessa Revelação, faz dela uma
reflexão pessoal, mas isolado da Igreja e fechado em si mesmo: e temos neste caso
os heresiarcas e os seus seguidores, os hereges; o teólogo é, antes, aquele que
partindo também duma reflexão pessoal da Revelação, temperada por uma vivência
autenticamente cristã, dela se não afasta, mantendo os pés bem assentes em
Igreja, elaborando os quadros duma doutrina sobre a qual fundamenta e defende a

72
Verdade cristã – doutrina esta atestada e aprovada pela própria Igreja. Ele é, assim,
o intérprete fidedigno da Verdade cristã perante os seus irmãos e o mundo.
Como dizíamos atrás, os primitivos cristãos não eram teólogos no sentido
que hoje lhe damos, antes procuravam viver as suas tradições locais enraizadas,
sublimadas e cristianizadas pelos seus Hierarcas. Sabemos também, pelos escritos
dos Apologetas (nomeadamente a Didakê), que essas comunidades cristãs
primitivas estavam organizadas hierarquicamente do seguinte modo: apóstolos,
profetas e doutores – bispos e diáconos.
O apóstolo era o missionário, o evangelizador dos povos, segundo o conceito
de São Paulo (I Co IX).
O profeta é aquele que fala inspirado por Deus, como diz o mesmo Apóstolo
em I Co XIV: “Profetizando, fala aos homens a linguagem da edificação, exorta e
consola... quem profetiza edifica a Igreja”.
Os doutores eram os que falavam da doutrina com autoridade, munus
semelhante ao dos profetas, mas sem a intervenção do Espírito Santo. O profeta
tem o dom da profecia; o doutor tem o dom do conhecimento.
Os bispos eram eleitos pela comunidade e eram tidos como “profetas e
doutores”, bem como os diáconos. Distingamos, porém, os bispos e os diáconos
dos profetas e doutores: enquanto estes (profetas e doutores) eram itinerantes, não
fixos a uma comunidade, os bispos e os diáconos eram ordenados para uma
comunidade bem determinada e definida geograficamente.
Distingamos agora os bispos dos diáconos: enquanto o bispo era “o chefe da
comunidade, o sucessor dos Apóstolos, o ícone da unidade, o pastor ordinário das
almas, o moderador do culto” (Sto. Inácio de Antioquia, Filip 8,1), o diácono era o
coadjutor do bispo – lia o Evangelho, assistia os enfermos, as viúvas, os órfãos, etc.
(aliás, funções estas que, num e noutro caso, assim continuam hoje a serem vividas
na Igreja Ortodoxa).
Assim, pouco a pouco, o lugar de profeta e o de doutor começou a ser
exercido pelo bispo, ajudado pelos presbíteros e pelos diáconos. Donde, quando foi
necessário pregar, defender este ou aquele ponto da Fé, foi aos bispos que se
recorreu; todavia, porque, como já vimos, o bispo era o pastor de determinado
grupo de cristãos, não era itinerante, começou a escrever cartas, as chamadas
“epístolas comendatórias”, que só eles podiam redigir e enviar às Igrejas.
No século III começam então a surgir homens que a partir duma reflexão
pessoal e duma vida em Igreja iniciam a elaboração dos quadros de uma doutrina
sobre a qual procuravam fundamentar e defender a Verdade cristã. Esta evolução, é
necessário frisá-lo, só foi possível graças ao espírito grego, à sua concepção da
Razão e às formas tradicionais da cultura helênica.
Esta influência não foi só exterior: para que fosse elaborada uma corrente de
pensamento cristão, pensamento teológico cristão, foi necessário que o
pensamento fosse acolhido ao interior da Igreja e assimilado por todos. Claro que
foi necessário um grande, um enorme esforço para se atingirem resultados
considerados ótimos.
Deste esforço nasce para a Igreja um “Filósofo Cristão”, um Santo e Mártir:
São Justino.

SÃO JUSTINO, O FILÓSOFO (+ c.165)

São Justino era oriundo de Flávia Neápolis, cidade da Palestina junto à


antiga Siquém, mas ele não pode ser considerado um oriental. A sua cidade
tornara-se numa colônia greco-romana. Originariamente pagão, de classe média,
era cidadão leal, abastado, de espírito largo e livre das velhas concepções dos
antepassados, empreendedor, tenaz, cosmopolita e homem de grande probidade e

73
honra. Nunca trabalhou para ganhar a vida, mas organizou as suas economias e os
seus proventos para melhor se dedicar à filosofia.
“O cristianismo é a única filosofia sólida que eu encontrei em toda a minha
vida” - dizia ele. E foi a este homem, elo entre o passado e o futuro, pela sua
educação e pela sua isenção em relação às tradições, que Cristo chamou.
Converteu-se em Éfeso, onde localizou retrospectivamente o seu livro
“Diálogo com Trifão, o Judeu”. Encontramo-lo mais tarde, por volta do ano 150, em
Roma, onde dirige aos pagãos, na pessoa do Imperador e dos Senadores, a sua
“Apologia” (na realidade são duas Apologias, sendo a segunda considerada quase
um acréscimo da primeira, se bem que independente e daí as englobarmos numa
só). São estas as obras dele que nos restam.
Na introdução do seu “Diálogo com Trifão, o Judeu” dá-nos uma descrição da
sua evolução espiritual. De tendência platonizante, constata a incomparável
superioridade do cristianismo pelo seu conhecimento claro do SER VERDADEIRO
DE DEUS, conhecimento que só é possível no exercício da “justiça”. Na “Apologia”
sublinha com insistência as virtudes cristãs, a saber, o amor pelos inimigos, a
paciência, a castidade, o respeito pela Verdade e a coragem perante a morte,
virtudes estas que, em si mesmas, permitem refutar as calúnias que circulavam
contra os cristãos e às quais São Justino jamais concedeu crédito. Os cristãos,
afirma, possuem a verdade: a sua vida, a sua moral dela testemunham e as fontes
donde extraem o conhecimento que têm de Deus jamais se esgotarão. A sua
doutrina concretiza, assim, a tarefa própria da filosofia que, segundo ele, consiste
essencialmente numa busca, numa procura de Deus.
São Justino vê e constata que o cristianismo é a “primeira filosofia vivida”; e
conhecendo os cristãos, contradita tudo o que no mundo romano se afirmava deles.
Por outro lado, para ele a filosofia foi um caminho e não um fim a atingir: ele chama
inclusivamente à filosofia “um monstro com várias cabeças” (Dial. 2,2). E podia
afirmá-lo: percorrendo sucessivamente os principais sistemas filosóficos, a todos
abandonou pelo platonismo. O que não se pode dizer é que tenha abandonado o
platonismo pelo Cristianismo, nem que tenha feito uma reflexão filosófica do
primeiro ao interior do segundo, como mais tarde, por exemplo, Orígenes.
Encontramos, assim, um certo dualismo em Justino: põe em evidência a
noção de Verdade pura do Ser Autêntico, à qual têm acesso o pensamento puro
e a razão, Deus, que é UNO, para além do mundo criado e que Se identifica com o
BEM e o BELO.
Platão será, pois, sempre um guia, um mestre, que Justino cita, repete, imita.
É, por assim dizer, “a ponte espiritual” que conduz aos “mais velhos filósofos” (Diál.
7.1) – os Profetas do Antigo Testamento (Apol.) e, através deles, ao próprio Cristo.
A intenção de São Justino não era, porém, de interpretar filosoficamente a
mensagem cristã, nem de fundir numa só doutrina a filosofia de Platão e o
Evangelho de Cristo. Para ele não existe outra Verdade filosófica para além do
cristianismo e se adota Platão é porque este tem o mérito de se conformar já em
grande parte a esta Verdade única. Deus manifestou-Se ao longo de todos os
séculos e a todos os povos. Desde sempre e sempre por meio do Verbo Ele revelou
a todas as nações – e não somente aos judeus – fragmentos, porções da Sua
Verdade eterna. Enfim, na Pessoa de Jesus Cristo, apareceu para sempre a Sua
Razão eterna. Por este motivo afirma que “todos os homens que viveram segundo a
razão” foram cristãos; nos Gregos, por exemplo, Sócrates e Platão; nos Bárbaros,
Abraão e Elias entre tantos outros (Apol. I, 46).
Assim, por meio duma síntese audaciosa, toda a história do espírito humano,
da qual a sua grandeza aparece na “filosofia” será recapitulada em Cristo e
completada por Ele.

74
Justino justifica perante os outros filósofos a sua fé em Cristo, Filho de Deus.
Refuta a acusação de ser politeísta, ao afirmar que Cristo é o “Logos”, isto é, a
própria Razão divina que Deus Pai fez nascer d’Ele sem diminuição do Seu SER.
Assim, a criação do mundo brota desta mesma Razão, Logos, que vai a ponto de
Se encarnar para poder, sem limitações, transmitir aos homens a Verdade que é,
ela mesma, participação em Deus. O maravilhoso cumprimento de todas as
profecias que constitui a vinda à Terra de Jesus Cristo prova incontestavelmente a
verdades das suas afirmações. Os milagres que Cristo realizou e continua a realizar
e o caráter sublime da Sua mensagem não deixam subsistir dúvidas alguma quanto
à origem divina do Salvador. Ele é o “novo Legislador” que triunfa sobre todas as
resistências demoníacas e traz ao mundo, antes do fim deste, a Salvação eterna.
Mas Cristo morreu? Pois morreu, para exemplo de todos, como sempre morreram
os verdadeiros filósofos.
A sua fé era duma tal evidência que ele não compreendia como podiam
existir homens inteligentes que não aceitassem a Cristo como Filho de Deus e ao
Cristianismo como a sua verdadeira filosofia.
Justino fundou uma escola de filosofia em Roma “por cima das Termas de
Timóteo”, onde ensinava gratuitamente “a doutrina da Verdade”. A sua escola
alcançou uma certa reputação; Crescendo, filósofo romano pagão, invejoso do
sucesso de Justino, acusa os cristãos de obscurantismo, desviacionismo (do
paganismo) e outras.
Justino justifica os cristãos publicamente, põe a ridículo Crescendo e este,
não podendo suportar a derrota, denuncia-o como cristão.
*****************************
No seu “Diálogo com Trifão o Judeu” está figurada uma discussão filosófica
entre um cristão e um judeu. Ambos, sem atropelos, querem ficar fiéis à Tradição.
Justino conduz o diálogo com mestria e dignidade; os seus argumentos são de
ordem apologética e pouco teológicos.
Ele cria ter para tal obra um “carisma” de Deus. Em vez de fazer uma
exposição da fé, limita-se a repetir fórmulas usadas nas comunidades cristãs
referentes à Santíssima Trindade. Em vez de falar da natureza íntima da Igreja,
transcreve a vida de uma comunidade cristã, com os seus ofícios litúrgicos.
Mas o Diálogo não se fica por um elementar compêndio de catequese cristã:
noutro domínio Justino não repete apenas o que ouvira, mas procura interpretar, ir
mais longe que os seus predecessores – empreende fazer um estudo exaustivo das
provas escriturísticas.
Para isso utiliza o método alegórico-tipológico, já há muito em uso na
Sinagoga entre os Judeus, tornando-se depois característicos da escola teológica
de Alexandria – que teve em Orígenes o seu expoente máximo – e que ainda hoje é
amplamente utilizado na Igreja Ortodoxa. (Paralelamente à escola de Alexandria
existiu uma outra grande escola teológica – a de Antioquia, que teve Padres como
Luciano, São João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e o próprio heresiarca
Nestório. Ao contrário da escola de Alexandria, utilizava um método literal e
histórico na interpretação das Sagradas Escrituras. Enquanto a escola de
Alexandria acentuava a divindade de Cristo, a de Antioquia sobrevalorizava a Sua
humanidade).
Voltando a São Justino, para ele, por exemplo, a vara de Moisés abrindo as
águas, a árvore da vida no Paraíso, a vara de Jacob (de que se servia para mudar a
cor das ovelhas), sem esquecer a árvore plantada na corrente das águas, cantada
pelo Salmista, são prefigurações da Cruz de Cristo, logo indícios claros do próprio
Cristo. Até hoje, nada melhor se fez em Apologia, desde São Justino. As suas
conclusões sobre o caráter cristão do novo povo de Deus, sobre a sua santidade e

75
natureza espiritual e sobre a maravilhosa universalidade da Igreja disseminada pelo
mundo inteiro são particularmente impressionantes.
São Justino cria-se filósofo e, como tal, tinha uma missão a cumprir, o
Cristianismo era a resposta a todas as escolas que buscavam honestamente a
Verdade. Logo, ele tinha de a fazer chegar a todos e a todo o mundo. Esta
tendência à universalidade não se explica nem pelo simples gosto da discussão
nem pela preocupação de iluminar todos os povos, mas pela vontade tenaz de
constranger o mundo inteiro a uma escolha definitiva: a Verdade não mais se
encontra numa fria neutralidade, abstrata, mas pelo contrário ela concretizou-se em
Cristo e vive numa dada comunidade, num determinado ensinamento, numa palavra
divina; ela é doravante acessível a todos. A marca desta vontade de São Justino
podemos encontrá-la nas suas “Apologias” dirigidas ao Imperador Antonino o
Piedoso, ao Senado, aos Príncipes e a todo o Povo romano. Este texto adquire a
forma duma petição expressa, duma queixa pública, como nos podemos aperceber
pelos dois excertos seguintes:
“Que imensa injustiça se faz aos cristãos quando se consideram como uma
seita de criminosos e são perseguidos sem tréguas! Que se provem, então, os seus
pretensos crimes! Se entre eles houver criminosos, não serão protegidos pela
comunidade. Não, o Império não tem súditos mais justos, mais leais, mais piedosos
que os cristãos! Serão sempre os aliados dos soberanos para a manutenção da paz
no Mundo! Pode um governo esclarecido recriminá-los por não partilharem das
idéias perversas preconcebidas e da superstição?”
A multidão pagã que persegue os cristãos é, na realidade, levada pelos
inimigos dos homens, os demônios invejosos do seu poder. Mas filósofos realmente
piedosos seguirão sempre a razão que lhes ordena de honrarem e de amarem
somente a Verdade! Recusar-se-ão a aderir às opiniões erradas, ainda que
estabelecidas pelas tradições” (Apol. I,2,1).
“Sois louvados por todos como soberanos piedosos e filósofos, como
protetores da justiça e amigos das letras. Veremos se o sois verdadeiramente. Não
me apresentei diante de vós para vos adular no que escrevi, mas para vos submeter
um pedido: depois de um exame minucioso e penetrante deveis decidir, se não
quereis ser julgados vós mesmos; não vos deixeis intimidar pela força brutal dos
preconceitos e da superstição e não cedeis à pressão da multidão ignorante; não
deveis dar uma sentença levados por uma precipitação e influenciados por velhas e
maldosas calúnias! Podeis matar-nos, mas não podereis nunca causar-nos dolo!
(Apol. 1, 22).
Subjacente a esta sua ingenuidade de que César lhe daria primeiro ouvidos e
depois razão, fica sobranceira a sua indômita vontade de ser e permanecer cristão,
a sua probidade, a sua franqueza, o seu amor à verdade, pouco comuns mesmo
hoje entre os homens. Um homem assim era incômodo; São Justino caiu entre os
anos de 163 –167, sendo Prefeito de Roma Rústico, tendo sido decapitado fora dos
muros da cidade.
Segundo rezam as Atas do martírio de Justino e seus companheiros,
chegados até nós, “não querendo sacrificar aos deuses nem obedecer às ordens do
Imperador, serão, segundo a lei, flagelados e conduzidos ao local do suplício para
serem decapitados”.
Filósofo e Mártir, no dizer de Tertuliano a vida deste homem é todo um
programa. Quase todos os Padres da Igreja, consciente ou inconscientemente,
marcharam no caminho aberto por São Justino.

SANTO IRINEU, ARCEBISPO DE LION, PRIMAZ DA GÁLIA (c.150-202)


Considerado no Ocidente o mais exímio teólogo do século II, Santo Irineu
pertence a uma geração posterior a São Justino e a sua reflexão teológica não

76
escapou à influência deste precursor. Todavia, a vários títulos, ele faz parte dum
tipo mais antigo de mestre cristão e testemunhando duma doutrina mais antiga.
Santo Irineu não veio para a Igreja como um estranho, portador de todas as
exigências do paganismo e da sua expectativa inquieta, como ocorrera com São
Justino. Pelo contrário, cresceu já ao interior da antiga Igreja, conhecia as suas
tradições e vivia para o seu serviço. Não pretendia ser um “filósofo” mas um
discípulo dos antigos Padres, um depositário fiel da autêntica Tradição dos
Apóstolos.
De Santo Irineu conhecemos tão-somente escritos destinados a cristãos,
enquanto que de São Justino só conhecemos apologias destinadas aos não-
crentes. O único escrito apologético que dele se conhece dirigido “aos Gregos”
(pagãos) era, segundo o historiador Eusébio de Cesaréia, ”muito peremptório, mas
também bastante curto”. A conversão dos pagãos não constituía o centro das suas
preocupações, como atestam os seus próprios escritos até nós chegados. Santo
Irineu fala como pregador profissional, não como filósofo ou missionário: a sua frase
é rica, o tom paternal e edificante, mas também por vezes colérico. Não se
distinguiu particularmente pela erudição, mas sim pelo calor, a profundidade, a
seriedade na abordagem dos temas religiosos essenciais, que ele desenvolve com
um ardor convencido e convincente. É assim, já no seu tempo, o tipo clássico do
pastor de almas consciencioso e do defensor infatigável do ensinamento da Igreja.
Os séculos seguintes consideram-no com uma veneração cheia de gratidão, como
grande testemunha da verdade apostólica num tempo pesado e cheio de
dificuldades.
Santo Irineu nasceu provavelmente na década de 150 e foi criado na Ásia
Menor, terra grega desde a antiguidade mais longínqua. Ele próprio contava que em
criança, várias vezes, teve a oportunidade de ouvir em Esmirna, sua cidade natal,
sermões de São Policarpo, o grande Bispo e Mártir, discípulo dos Apóstolos – e há
uma tradição dizendo expressamente que na sua juventude ele foi discípulo do
grande Bispo de Esmirna.
Foi na sua cidade natal que ele descobriu o puro e autêntico Evangelho, ao
qual quis, durante toda a sua vida, permanecer fiel. Já homem feito encontramo-lo
como presbítero em Lion, na antiga Gália. Com o martírio e nascimento para os
Céus do Santo Bispo Claro de Lion, após perseguição violenta no ano de 177,
Santo Irineu, relativamente novo ainda, foi eleito para lhe suceder, vindo ele próprio
mais tarde, no ano de 202, a sofrer também o martírio, segundo afirma São
Gregório de Tours. A jurisdição da sua diocese estendia-se ao Sul da Gália. A
grande maioria da população falava o grego, língua materna de Santo Irineu, que
era nesse tempo (século II) a língua litúrgica em todo o Ocidente. Quando se dirigia
a auditores de origem céltica expressava-se no idioma deles. No seu ardor de
propagar a fé, a Igreja cristã primitiva mostrava-se assim mais “ecumênica”, no seu
sentido mais puro, e menos sujeita aos preconceitos que a sociedade greco-romana
pagã, que ignorava o mundo “bárbaro”.
A influência exercida por Santo Irineu não ficou circunscrita às Gálias. Da
mesma maneira que ele se veiculava na Igreja Universal e dela celebrava a unidade
como um milagre divino, também a sua palavra bem cedo foi ouvida e venerada em
todo o mundo cristão. Sendo ele ainda presbítero, o seu bispo, então preso, enviou-
o a Roma munido de recomendações calorosas. Nessa cidade entregaria uma carta
à Hierarquia solicitando um pouco mais de compreensão benevolente face à “nova
profecia” do montanismo. (O montanismo foi uma heresia do século II, surgida na
Ásia Menor, que pregava a encarnação do Espírito Santo e a iminência da Parusia;
caracterizava-se por um misticismo voltado para a profecia, os carismas e o
ascetismo; foi condenada pelo I Concílio Ecumênico de Nicéia, em 325). O próprio
Santo Irineu mostrou uma certa atração por esta corrente espiritual com a sua fé

77
antiga e a sua austeridade moral. Desejava, sobretudo, evitar que esta aspiração da
sua própria comunidade lionesa e dos seus “profetas” a uma piedade mais profunda
não esbarrasse com a incompreensão das autoridades eclesiásticas e não fosse
condenada por elas por simples via administrativa.
Mais tarde, foi ele próprio que escreveu, em seu nome, cartas que chegaram
até Roma e Alexandria. Elas inspiravam-se no desejo de reconciliar as partes
adversas e de restabelecer a paz. Quando o papa Victor de Roma chegou a ponto
de cortar relações com as Igrejas asiáticas por causa de antigos diferendos relativos
à liturgia pascal, Santo Irineu dirigiu-lhe uma missiva enérgica condenando “como
era seu dever” este procedimento por ser demasiado autoritário (Eusébio de
Cesaréia, Hist. Ecles.). Já nesse tempo ele defendia – como a Igreja Ortodoxa o
continua a fazer – que a diferença de práticas rituais podia ser, sem prejuízo,
tolerada e que, de certa forma, elas punham em evidência a unidade permanente
que suscita a Fé (ou seja, “a diversidade de ritos na unidade da Fé”). O que é
verdadeiramente preponderante é esta Fé e a Verdade evangélica transmitida pelos
Apóstolos. Neste domínio, sim, importa exercer vigilância apertada, quando
apareçam novos mestres que pretendem reivindicar o tesouro original ou falsificá-lo.
Perante determinados clérigos cuja teologia era duvidosa, Santo Irineu exigiu a
exclusão deles, senão da Igreja, pelo menos do clero; mas a sua ação era
essencialmente pedagógica: um exemplo disto são as instruções dogmáticas que
ele próprio enviou ao diácono que o representava em Viena, e que versavam sobre
a melhor maneira de instruir os hereges.
Pode dizer-se que Santo Irineu fez da luta contra a heresia um dever
imperioso, ao qual consagrou a sua vida. E a sua atividade como escritor
eclesiástico largamente contribuiu para isso. Dele conservaram-se até hoje, na
íntegra, duas obras: A Demonstração da Pregação Apostólica, encontrada no
princípio deste século numa tradução em língua armênia e aquela que é a sua obra
capital, em cinco volumes, a Denúncia e Refutação de Falsa Gnose, mais
conhecida por Adversus Haereses (Contra as Heresias), consagrada inteiramente à
luta contra a heresia e que ainda hoje é considerada como a mina mais
considerável para a história da Teologia e das seitas do seu tempo. Todavia, não
será por este motivo que se poderá considerar Santo Irineu como um contendor de
vistas estreitas querendo sempre e em tudo ter a última palavra e comprazendo-se
nas discussões dogmáticas. A Igreja atravessava então momentos bem difíceis: se
por um lado a sua doutrina se espalhava rapidamente, por outro lado Ela nunca
estava segura de que essas conquistas se pudessem manter íntegras e intocáveis
num mundo hostil, estranho e pagão. A substância religiosa da sua fé e os seus
fundamentos históricos estavam ameaçados de alteração e até de destruição.
Somente uma defesa enérgica a podia socorrer.
Santo Irineu seguia a linha de São Justino e de vários outros teólogos da sua
geração na via da resistência. Os adversários estavam, na sua maior parte,
separados da Igreja, constituindo numerosos grupos ou “escolas”, constituindo por
vezes comunidades sólidas (como a de Marcião, que parecia ser a mais
importante). Estas diferentes seitas tinham todas um traço comum: deformavam e
combatiam aquilo que Santo Irineu considerava ser o ensinamento apostólico
primitivo. Apesar de muitas diferenças entre si, elas assemelhavam-se na aspiração
daquilo que nós conhecemos pelo nome de “gnose”, por os seus adeptos
reivindicarem a posse dum mais amplo "conhecimento” religioso. O próprio Santo
Irineu dizia – e bem – que eles utilizavam erradamente essa palavra
“conhecimento”. Efetivamente, os gnósticos, que nós sabemos terem coabitado com
as práticas marginais e imorais mais incríveis, pretendiam transformar o cristianismo
numa religião dualista da Salvação (Deus/Mundo, espírito/matéria, luz/trevas) que
consistia em fugir do mundo. Segundo eles, não só o Antigo Testamento como a

78
concepção da fé e da história da salvação próprias ao Cristianismo primitivo, seriam
somente uma prefiguração inferior e elementar daquilo a que eles chamavam a
“perfeição”. Eles já não viam em Cristo um homem real, histórico, de carne e osso,
que cumpriu as promessas feitas a Israel, mas antes um ser celeste, semi-mítico, de
dimensão cósmica. A Sua ação determinante seria a de transmitir a mensagem da
Revelação para arrancar a alma humana ao mundo sensível e atraí-la à verdadeira
Pátria eterna. Baseada nesse novo “conhecimento libertador” e apoiando-se em
práticas pseudo-sacramentais e ascéticas, a alma voltar-se-ia assim
espontaneamente para o alto, atingindo desse modo o ser espiritual e divino de que
Cristo testemunhou. Nesse estado a alma nada mais teria a haver com o mundo. O
próprio Deus Criador, com os Seus Anjos e os Seus mandamentos seria para ela
uma potência hostil, de que deveria fugir.
Santo Irineu, se bem que não podendo nem combater todas as matizes
dessas representações, mitos e especulações gnósticas, empenhou-se no entanto a
analisar as doutrinas e pretensas fontes de cada seita. Se bem que pusesse nas
suas refutações um cuidado metódico, faltava-lhe, porém, a clareza sistemática e a
sua obra apresenta-se por vezes desordenada, utilizando não importa quais
argumentos para denegrir, tornar suspeitos e caricaturizar os seus adversários. Ele
faz desfilar aos nossos olhos as pretensões ridículas deles, as contradições e o
caráter fantasista das suas proposições arbitrárias, a discórdia reinante no seio
desses grupos e clãs e, sobretudo a vida vergonhosa e o caráter desleal dos seus
chefes.
Mas quando Santo Irineu passa à exposição positiva da Fé da Igreja, o tom
eleva-se e deixa antever a sua adesão profunda à Verdade, objeto do seu combate.
Refuta a blasfêmia gnóstica, o desprezo da criação e a lenda dum Deus oposto a
Cristo, dum Deus que seria tão-somente O dos judeus e do mundo material. Para
este Santo Padre importa, pelo contrário, compreender o significado do laço que
une a Criação à Salvação e captar o sentido da união íntima que preside à tripla
atividade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Pelas Suas duas mãos, que são o
Filho e o Espírito, Deus Pai, pela Sua vontade, no princípio criou o mundo, povoou-o
e fez o Homem segundo a Sua própria imagem. Certamente que o Homem e toda a
Criação caíram; mas Deus não os abandonou à sua sorte. Em três etapas, Deus
reconduziu o Homem à sua grandeza original: no Antigo Testamento, pelos
Profetas, Ele manifestou-Se como Senhor; pelo Seu Filho Ele ofereceu-nos
presentemente a filiação adotiva; e no Reino que há de vir Ele revelar-Se-nos-á
como nosso Pai.
No Seu Ser (Natureza), Deus na verdade permanece sempre insondável e
inacessível para nós, no entanto, no Seu amor Ele tornou-Se para nós próximo e
familiar e encheu-nos do Seu Espírito. “É para glória de Deus que o Homem vive,
mas a vida do Homem é ver a Deus” (Adversus Haereses). A partir da vinda do
Filho de Deus à terra, a História do mundo revela-se em toda a sua extensão, e a
Salvação, longe de abolir a Criação, realiza-a agora de modo superabundante.
Santo Irineu não admite um processo de fé qualquer. Para ele, tudo provém da nova
relação de filiação com Deus estabelecida por Jesus Cristo. Mas Ele é sempre o
único e mesmo Deus que, no Seu poder uno e trino, enche tudo e, no Seu desígnio
misterioso, conduz o mundo e a humanidade à realização eterna.
Devemos, todavia, realçar aqui que estas concepções não pertencem
propriamente a Santo Irineu. Ele mesmo apela na sua obra ao testemunho dos
“Anciãos”, que ele deseja transmitir fielmente. A originalidade deste Santo Primaz
da Gália consistiu, sobretudo em apoiar a sua doutrina na Sagrada Escritura, como
nenhum outro teólogo o fizera antes dele, e na renúncia em combater os hereges no
terreno dogmático para os atacar com argumentos históricos. Ele trata-os como
inovadores e denuncia incessantemente a fragilidade do cristianismo deles, sem

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tronco nem raízes, diante do qual se levanta o testemunho autêntico da fé
apostólica original. A verdadeira Igreja não tolera alterações arbitrárias do bem que
lhe foi confiado no princípio. A referência aos documentos antigos basta-lhe para
provar a autenticidade da mensagem da Igreja.
Quanto à Sagrada Escritura, para este Santo Padre o Cânone dos quatro
Evangelhos ao qual se acrescenta uma série de escritos apostólicos mais tardios –
Cânone que não é ainda totalmente coincidente com o nosso (incluía nele o Pastor
de Hermas e retirava-lhe a Epístola aos Hebreus) – completa o Antigo Testamento.
A reunião de ambos os Testamentos (Antigo e Novo) constitui “a Escritura”. A sua
posição sobre esta elaboração do Cânone Escriturístico é rigorosa: sempre declarou
não ter por autênticas senão as revelações da origem do cristianismo e afirmou a
sua convicção de que o depósito, doravante fechado, do ensinamento apostólico, é
quanto basta, de uma vez por todas, para a salvação. Segundo ele, os textos são
imutáveis.
Quando os gnósticos fazem apelo às suas tradições privilegiadas e secretas,
sente-se compelido a dizer-lhes que eles, ao invés, são inovadores e que somente
os “anciãos” da Igreja, os bispos e doutores, conservaram em linha direta a herança
dos Apóstolos. Tão somente eles possuem, pois, a Tradição autêntica e original. E a
unanimidade magnífica patenteada pelas comunidades ortodoxas confirma mais
uma vez onde se encontra realmente a verdade.
Como exemplo e modelo dessa linha de sucessão dos Apóstolos apresenta a
lista dos bispos da Sé apostólica de Roma, lista esta que os católicos romanos
aproveitam para afirmar que é o primeiro documento indicando a primazia do bispo
de Roma, quando nós sabemos que Santo Irineu se exprimia contra a gnose e num
sentido muito mais amplo da Igreja, que nada tinha a haver com as jurisdições
territoriais...
Colocando assim em evidência a catolicidade, a sucessão e o magistério dos
bispos, Santo Irineu dispôs as pedras de base que viriam a servir mais tarde à
elaboração das estruturas da Igreja. Para além disso, a Igreja é fundada de modo
imediato na Palavra apostólica da Verdade e pelo Espírito Santo, que lhe concede
os Seus dons sobrenaturais, unindo em toda a parte, os fiéis, pela Fé.
A mensagem cristã aparece sob a forma de uma história bíblica, que começa
pela Criação, seguida pouco depois pelo pecado original; e a história santa do povo
de Israel conduz a Jesus Cristo. Pela Sua Paixão, Morte e Ressurreição, Cristo
salvou a humanidade e regenerou-lhe a vida. Esta concretização decisiva não
necessita de outras garantias senão das provas dadas pelo Antigo Testamento,
provas largamente desenvolvidas por Santo Irineu, tal como São Justino o fizera
antes dele. Depois de Cristo, os Apóstolos difundiram na Terra a Sua mensagem e
fundaram a Igreja, plantada neste mundo como um novo Paraíso. O poder dos
ídolos e da idolatria foi doravante cerceado e começou a partir daí uma vida nova de
santidade perfeita. O judaísmo em si mesmo pertence agora definitivamente ao
passado, pois, como ele próprio afirma, “nós possuímos o Senhor da Lei, o Filho de
Deus, e pela Fé n’Ele aprendemos a amar a Deus de todo o coração e ao próximo
como a nós mesmos. O amor de Deus não tem comunhão alguma com tudo o que é
pecado e o amor ao próximo nada faz de mal para com os semelhantes.” A Santa
Igreja pelo seu espírito de simplicidade está ao abrigo de todas as seduções
humanas, pois os seus fiéis sabem que um ignorante piedoso vale mais que um
sofista impúdico.
São Justino afirmara, como “filósofo”, que o Cristianismo é uma verdade
inteligível ao julgamento crítico da razão. Santo Irineu acrescenta que, sendo
embora racional, o Cristianismo não será nunca uma simples filosofia, pois repousa
antes na Revelação e na Santa Tradição; ele opera pela ação do Espírito Santo e

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conduz à fé unicamente pela Igreja Católica – no seu sentido pleno – e pela sua
palavra apostólica.
O testemunho do Santo Arcebispo de Lion e Primaz da Gália cedo
estabeleceu uma influência que se manteve sempre viva no Ocidente. Os seus
escritos foram traduzidos em latim, siríaco e armênio. A sua profissão de Fé
Ortodoxa baseada na Tradição foi inteiramente atestada pelos outros Padres da
Igreja Grega. Todavia, de início, por questões literárias, por o seu estilo ser algo
primitivo, a sua influência não se exerceu sobre estes últimos. Além disso, quanto à
compreensão do cristianismo e da Igreja, os teólogos gregos viram-se confrontados
com novas e delicadas questões, que não podiam ser resolvidas baseando-se em
piedosas tradições das comunidades. Estes Padres, sendo embora de uma
surpreendente independência de pensamento e de ação, procuraram bem mais do
que Santo Irineu soluções filosóficas e novos caminhos para captarem a Verdade e,
interpretando-a, torná-la mais inteligível aos seus contemporâneos.

CLEMENTE DE ALEXANDRIA (meados séc. II ± c.214)

Como São Justino, Clemente de Alexandria chegou ao Cristianismo pela via


da filosofia. Mas para ele esta via encerra um sentido mais profundo e mais rico que
para São Justino que, animado pelo desejo de converter prontamente os pagãos,
não adquiriu uma bagagem filosófica da envergadura da de Clemente. Clemente é
um dos Padres da Igreja que suscitou as mais variadas críticas sobre si próprio. De
caráter amável e flexível, era ao mesmo tempo muito complexo,
extraordinariamente dotado e brilhante. Ele evita os caminhos batidos, as fórmulas
feitas, os pensamentos banais. Os seus problemas, investigações, meditações não
conduzem nunca a uma conclusão fixa e definitiva; a discussão é o seu forte.
Aparentemente parece um homem de letras incorrigível, um boêmio de academia.
Mas é acima de tudo cristão. Este posicionamento impô-lo a si próprio, canalizando
as suas curiosidades e preocupações intelectuais para um objetivo preciso e
irreversível; além disso, comprometeu-se também a servir: conduzir os homens a
Cristo torna-se a sua razão de ser. Privilegiava, ainda, a experiência espiritual e a
direção das almas. Intuitivo, curioso em saber, sondava problemas de que era o
único a aperceber-se. É possível que alguns doutores de pequenas seitas gnósticas
se tenham reunido a ele; mais tarde, alguns monges de cultura excepcional leram e
apreciaram as suas obras. Mas os seus adeptos de séculos posteriores caíram
quase sempre na heresia. O século de Clemente não via, porém, razão alguma
aparente para se alarmar da sua doutrina.
Não se conhecem muitos pormenores da vida de “Titus Flavius Clemens”;
diz-se ter nascido de pais pagãos, em Atenas, embora a alusão a esta cidade possa
ter apenas valor simbólico. Como São Justino, também viajou. Já cristão,
atravessou as províncias de língua grega, a Ásia Menor e a Síria. Depois passou à
Itália e ao Egito procurando completar a sua formação. Encontrou um bom mestre
em Panteno, o sexto dos seus professores que, ao que parece, suplantava todos os
outros na arte de comentar as Escrituras, mas imagem dos “anciãos” do
cristianismo primitivo, desdenhava de passar por escrito os seus discursos,
veiculando-os tão-somente pela via oral. Clemente conheceu-o por volta do ano 180
em Alexandria e este encontro decidiu-o a residir nesta cidade cosmopolita, onde
em breve se estabeleceu como mestre, tal como São Justino o havia feito em
Roma. Segundo uma tradição ele teria sido incumbido pela própria Igreja de instruir
os catecúmenos, o que não parece ser verossímil, pois ele estabeleceu uma “escola
privada” onde se reuniam livremente auditores pertencentes a todas as crenças e
convicções, como pagãos, judeus, “filósofos” de todas as tendências, cristãos e até
heréticos, mas cultos e desejosos de se instruírem. Os seus progressos espirituais,

81
fruto do ensinamento que recebiam, determinavam-nos, em muitos casos, a serem
recebidos na Igreja.
Clemente sentia-se cristão, católico, ortodoxo e era-o de fato. A fé na
Sagrada Escritura, sobre a qual se desencadearam as lutas contra os gnósticos, foi
para ele a pedra de toque da Ortodoxia. A sua teologia foi também e, sobretudo
uma exegese. Ele via na interpretação das Escrituras a sua vocação particular; não
deixava, porém, de levar em conta as doutrinas correntes e os “filósofos” do
momento, que procurava integrar nos debates. É claro que ele combatia as falsas
doutrinas da gnose e outras heresias, mas não desdenhava de extrair delas os seus
aspectos positivos. Essas discussões, mais do que procurar um anátema rigoroso,
visavam a obtenção dum esclarecimento mútuo das teses em presença. Assim,
conviveu com filósofos pagãos num universo cultural comum, à exceção dos
epicuristas e de todos os outros que negavam a Providência divina. Como São
Justino, preferiu Platão entre todos os filósofos como sendo aquele que mais se
aproxima da Verdade cristã.
É numa capital como Alexandria, onde se cruzavam e fundiam correntes
literárias e filosóficas, civilizações, idéias e tradições, que devemos situar e tentar
compreender Clemente. A proximidade do velho mundo mágico do Egito com todo o
seu mistério e a coexistência de antigas “revelações” e tradições secretas, atraíam-
no irresistivelmente, mesmo quando as condenava; por outro lado, ele concebeu o
cristianismo não somente como uma “filosofia” mas mais ainda como uma realidade
e uma força misteriosa capaz de transformar e sublimar o Homem na sua totalidade.
Todavia, diferentemente de muitos mestres gnósticos, Clemente não se
afundou nunca no mundo mágico da quimera. Pois se ele procurava o êxtase do
mistério, não era pelo amor do mistério em si ou da quimera, mas para encontrar a
verdade, a verdade severa, integral, base e critério de toda a vida humana, verdade
que para ele significava ao mesmo tempo conhecimento de Deus, julgamento moral
e razão. Já outrora, ao ler Platão, intuíra este aspecto terrível da verdade e depois,
pela compreensão da Teofania do Logos divino, isto é, de Jesus Cristo, adquirira a
certeza dela. A partir daí, as suas experiências espirituais realmente vividas não
podiam ser senão a descoberta da única verdade viva de Deus, verdade tão clara
quanto inesgotável e misteriosa, se bem que revelada e reconhecida.
A herança literária de Clemente sofreu a mesma sorte que a de todos os
Padres dos primeiros séculos cristãos: foi em grande parte perdida. No que lhe diz
respeito, porém, restam escritos suficientes para ilustrar a extraordinária
flexibilidade do seu espírito aberto aos domínios mais variados, nomeadamente o
Protréptico (Exortação aos Gentios), o Pedagogo (em três livros) e os Stromatta
(Seleções – em oito livros), para além de uma homilia e de curtos excertos de
outras obras.
O Protréptico é destinado a difundir a Fé. Pelo estilo aparenta-se às
exortações filosóficas dos moralistas antigos e pelo conteúdo pode comparar-se às
apologias cristãs tão difundidas no século II, se bem que o nível literário atingido em
nada faça lembrar a banalidade fastidiosa e mal alinhavada dos escritos anteriores;
a sua prosa aprimorada releva antes, como alguém afirmou, “da arte mais refinada
dos sofistas”. Num estilo eloqüente, Clemente convida os leitores a ouvir, não
cantos místicos sobre os antigos deuses, mas o poema novo, cujo chantre e tema é
o novo Orfeu oriundo de Sião, o próprio Cristo, cantor e Mestre do novo mundo.
Esboça seguidamente um quadro horripilante da loucura e imoralidade dos mitos
pagãos e do culto dos mistérios. Nos capítulos 5-7 volta-se contra a doutrina dos
filósofos gregos sobre a essência divina, sem deixar de conhecer, entretanto, neles
em particular em Platão e nalguns poetas, muitas idéias verdadeiras em relação a
Deus. Mas o conhecimento pleno e lúcido só se pode encontrar nos Profetas e
acima de tudo no próprio Logos, que introduziu toda a verdade; Clemente descreve

82
então, com palavras entusiastas, a sublimidade da revelação do Logos e a
maravilhosa riqueza da graça divina, que satisfaz toda a nostalgia do Homem pela
Luz, a Verdade e a Vida. Em vista da salvação eterna concedida aos cristãos pelo
Logos, os seus leitores poderão optar entre o juízo e a graça, a morte e a vida.
A seqüência das suas exortações é desenvolvida no volumoso Pedagogo.
Nele propõe-se instruir os gentios convertidos sobre o procedimento quotidiano, os
problemas de moral pessoal e social que se lhes punham desde as questões
práticas do saber viver, passando pelas boas maneiras no comer e no beber, da
casa, do mobiliário, da higiene, dos enfeites, até um capítulo dedicado ao calçado, e
outro de extensão considerável é dedicado aos perfumes, aos nardos, às coroas!
Embora se entregando a estas reflexões livres, Clemente segue uma linha bem
clara que vai muito além das suas premissas. O exterior, como ele diz, não define o
cristão. Não se trata aqui de exigências nem de “leis a cumprir”; o cristianismo é um
assunto do coração, isto é, do Homem inteiro. Clemente não nutre simpatia especial
pelo ascetismo. Segundo ele, “assim como a humildade não consiste na maceração
do coração, mas na doçura, também a temperança é uma virtude espiritual que tem
a sua essência não no que é visível, mas no que é oculto” (Stomatta III, 48,3). Esta
liberdade do cristão não é, porém, arbitrária nem licenciosa. A boa medida, o
autodomínio, a modéstia, o racional, o espiritual são também cristãos; estas
qualidades são igualmente aplicáveis às exigências filosóficas. No entanto, a força
última que age, ordena e guia a liberdade cristã não é a razão pura, mas o amor, o
amor a Deus, o amor ao próximo. Mas este amor que nos era já pedido no Antigo
Testamento é exigido igualmente pela equidade e pelo sentido da comunidade,
noção fundamental de toda a filosofia social antiga. O Pedagogo é concluído com
um belo hino a Cristo, Ele mesmo o verdadeiro Pedagogo de todos os salvos.
Clemente permanece fiel ao ideal clássico, ao ideal helênico. Não somente
funda todas as suas afirmações nas doutrinas escriturísticas, como tenta justificá-las
por uma filosofia racional. A Sagrada Escritura não lhe parece opor-se à filosofia.
Os filósofos clássicos, assim como os “bárbaros”, isto é, os Profetas do Antigo
Testamento, parecem por vezes inserir-se numa mesma linha, a dos precursores
daquela verdade que Cristo tornou manifesta. Nenhum povo foi alguma vez
completamente abandonado pela Providência e “toda a beleza, seja helênica ou
cristã, tem por único e só autor o verdadeiro Deus” (Stromatta I, 28). Que junto dos
filósofos, em oposição à Sagrada Escritura, se encontra muito “joio” e pelo fato de
entre eles “nem todas as nozes serem boas” (Stromatta I, 7,3) não muda nada a
esta verdade de fundo.
Para Clemente o Cristianismo é uma religião à parte que transcende quer o
liberalismo pagão quer o rigorismo judaico. O Cristianismo é uma vida nova, oriunda
dum novo ser, que se realiza muito acima de todo os modos anteriores de vida, para
além de todo o reconhecimento racional comum e de toda a moral legalista, no
entusiasmo novo de comungar com Deus pela fé, a esperança e o amor. O
Cristianismo constitui a perfeição de toda a religião; é a realização da vida em Deus.
Para melhor conhecer Clemente é necessário ler-se os Stromatta (ou
Seleções, ou Tapeçarias), obra volumosa, difusa, prolixa e à primeira vista assaz
estranha. Este conjunto de livros pertence a um gênero literário cultivado pelos
escritores da Antigüidade. Trata-se da recolha de temas diversos, por vezes sem
qualquer relação entre si. O 8º e último volume da obra, que ficou inacabada, não
contém senão notas e referências, sem dúvidas destinadas a serem desenvolvidas
mais tarde. Aliás, não é seguro que o conjunto da obra dos Stromatta tivesse sido
escrito para o grande público.
Sendo o conteúdo das Seleções bastante variado, aborda, porém sempre
problemas essenciais. Assim vemos Clemente tratar da importância da filosofia
antiga; fala do problema da fé e do saber, do amor a Deus, do casamento e da

83
virgindade. Em longos parágrafos expõe o significado e a importância do verdadeiro
martírio, do testemunho do cristão pela palavra e pelo sangue. Clemente perfilha
algumas das doutrinas particulares às tradições recebidas dos seus próprios
mestres e dos mais antigos Padres da Igreja. Em conclusão, volta-se com afeição e
interesse para a figura do “gnóstico perfeito”, ou seja, o cristão que pelo
conhecimento e pelo amor se faz um só com Deus – o que para Clemente
representa o último degrau da perfeição pessoal, a realização integral do
cristianismo... (comentaremos mais adiante esta sua última posição).
No meio desta manta de retalhos que são os Stromatta, as reflexões de
Clemente encontram no modelo escriturístico o seu caráter essencial. Mas para
além da Sagrada Escritura ele cita também poetas e filósofos, não dissimulando
partilhar muitas das suas idéias. Na sua explanação não evita as tomadas de
posição e os juízos, embora estes se revistam sempre de caráter provisório; dá a
impressão de tender para um objeto de algum modo inacessível e que, mesmo se
por fim o alcança, ele escapa-se-lhe ainda. Todavia, esta composição embrulhada e
ambígua é de algum modo voluntária, pois força o leitor a pensar mais além e a
questionar-se mais. Por outro lado ela reflete um problema de difícil resolução (com
o qual o próprio Platão havia já esbarrado): como transmitir uma verdade de
maneira individual e essencial, já que um conhecimento real vivo e vital não pode
ser senão um ato pessoal? Conseqüentemente ela só pode ser ensinada,
demonstrada, gerada por uma relação pessoal, por uma presença amada, por um
compromisso voluntário. Por esta razão o autor muda tão freqüentemente de ponto
de vista e de perspectiva, recusando ligar-se por princípio a regras fixas. Este
método adapta-se melhor, segundo ele, à natureza do ideal cristão, que ele quer
servir.
Outro aspecto de peso levantado por esta questão de relacionamento
espiritual é a importância extraordinária da pessoa do mestre. Clemente exorta
então – como a Igreja Ortodoxa sempre o fez, no meio monástico – a que cada um
escolha um pai espiritual, amigo e confessor, que saiba dizer com franqueza a
verdade e não tema, se for caso disso, para reconfortar e curar, tratar com rudeza.
Finalmente, o “gnóstico perfeito” não necessitará mais de um mestre
humano, comungando diretamente com Deus... Este posicionamento de Clemente
subestima a importância da Hierarquia e da organização eclesiástica em geral. Para
ele, os clérigos são como que “exemplos típicos e alegorias” dos diversos graus da
perfeição espiritual, que constitui a única preocupação de Clemente. No fundo, para
ele, os mestres gnósticos são os verdadeiros sacerdotes e deixa em plano
secundário os autênticos sacerdotes das comunidades. Isto não significa, todavia,
que ele hostilizasse secretamente ou repudiasse os clérigos; estes seriam antes,
para ele, uma espécie de “funcionários” e, como uma vez afirmou, os “verdadeiros
gnósticos” não deviam evitar os ofícios divinos da comunidade, se bem que deles
não necessitassem para si mesmos! ... Neste seu posicionamento é evidente o
afastamento de Clemente da Eclesiologia Ortodoxa.
Se pouco se conhece da vida de Clemente, tão pouco se sabe sobre os seus
últimos dias. Sabemos, no entanto, que esses últimos dias não foram passados em
Alexandria, cidade que ele tanto tempo habitara. Retirou-se de lá em 202 ou 203,
provavelmente para escapar às perseguições de Sétimo Severo, que ameaçava os
cristãos e a sua atividade missionária. Em 211 encontrava-se na Capadócia, onde
“havia confirmado na fé a comunidade do Senhor, fazendo progredir o
conhecimento de Cristo” (Eusébio de Cesaréia, Hist. Ecles. VI, 11, 5 ss.). Portador
duma missiva desta Igreja, ter-se-á nascido para os Céus pouco tempo depois.
Efetivamente, por volta dos anos 215-216 Alexandre, o novo Bispo da Capadócia,
falando de “S. Clemente, seu Revmo. Senhor e irmão”, invoca-o com Panteno “entre
os Padres que nos precederam na vida eterna” (id. VI, 14, 8, ss.).

84
A Igreja recusou-se posteriormente a considerar em Clemente um dos seus
Santos. De todos os Padres da Igreja ele foi certamente o mais “anticlerical”, o que
maior indiferença mostrou em função da Hierarquia. Todavia, na sua época a Igreja
insistia nos seus direitos, no seu ministério e na sua Ortodoxia, e tinha já definido a
importância prática e dogmática da sua organização. Esta evolução conferiu à sua
autoridade um significado religioso incontestável, de forma que não era já possível
tratá-la, como Clemente o fez, com indiferença. O Cristianismo vivo é concebido
doravante como Igreja: e não como um assunto de cultura e de conhecimento
unicamente pessoais; nem é já a doutrina duma realização espiritual individual.

ORÍGENES (183/184 – c.254)


Comparada à de Orígenes, a obra espiritual dos primeiros Padres da Igreja
parece ser uma simples introdução. Estes Padres haviam retido de toda a riqueza
da Tradição cristã primitiva – cada qual segundo as tendências próprias às suas
origens ou ao seu temperamento – aquilo que mais lhes tocava o coração a fim de o
apresentarem ao mundo pagão num grande espírito missionário. Insistiam no papel
do Cristianismo enquanto realização de toda a sabedoria e de toda a religião;
sentiam-se incumbidos de anunciar a verdade revelada, consistindo a Sagrada
Escritura, livremente interpretada, no seu único e firme apoio. Mas nunca fundaram
um sistema teológico: limitaram-se a debater os interesses apologéticos e
polêmicos do momento. Não haviam tomado ainda consciência da sua situação na
Igreja.
Orígenes, considerado, até hoje, o maior teólogo da História da Igreja,
engendrou um sistema teológico capaz de dar aos cristãos a consciência espiritual
e eclesial que lhes era necessária neste século (III). Ele foi, com o pagão Plotino, o
espírito mais genial e universal do seu tempo, aparecendo num ponto crítico da
História em que a Igreja voltava definitivamente as costas à estreiteza de sua
existência “clandestina” para avançar bem de frente para os caminhos do futuro.
Oferecendo aos seus contemporâneos uma visão do mundo, um ideal de vida e um
sentido missionário da Igreja, ele determinou durante mais de um século as
tendências da Teologia grega.
Conhecemos melhor a vida e atividade de Orígenes que a de seus
predecessores. Eusébio de Cesaréia consagrou-lhe quase todo o 6º livro da sua
História Eclesiástica. Efetivamente, ele tinha à sua disposição na biblioteca de
Cesaréia todas as obras de Orígenes. Hoje possuímos uma quantidade apreciável
de escritos do Alexandrino, que sabemos terem chegado às várias centenas – e há
quem diga serem em número de dois mil – sendo, no entanto a maior parte deles
traduções e comentários, em que as suas idéias mais arrojadas, e, por conseguinte,
mais chocante, foram corrigidas ou suprimidas.
Esta atividade tão extraordinariamente prolífica e sem paralelo na História da
Literatura poderá talvez explicar-se por dois fatores: por um lado, pelo seu caráter
extremamente metódico e disciplinado, persistente e incansável – como diz
Eusébio, “a vida dele foi notável desde as fraldas, nunca perdeu um instante da sua
existência e jamais conheceu a menor dúvida” (Hist. Ecles. VI, 2,2); por outro lado,
em determinada altura da sua vida, um certo Ambrósio, homem rico que Orígenes
convertera ao cristianismo, pôs à sua disposição uma equipe de copistas
estenógrafos, escribas e jovens calígrafas, que se substituíam por turnos
determinados, de forma a que nenhuma das suas palavras se perdesse. Só assim
se poderá compreender a produtividade quase inconcebível deste homem.
Distinguem-se, aliás, na grande maioria dos seus escritos, passagens onde o estilo
um pouco descuidado reflete mais as preocupações do orador que as do escritor. É
sobre as idéias essenciais de Orígenes que faremos objeto do nosso estudo.

85
Orígenes é o primeiro escritor cristão que sabemos com segurança ter
nascido duma família cristã e educado como cristão; contrariamente aos seus
predecessores, ele não vai preocupar-se em estabelecer “pontes” nem “vias de
aproximação” da Igreja ao mundo e de tornar-lhe inteligível; para ele a fé cristã é um
dado intocável, o âmago de toda a verdade, a partir da qual pensa tudo abarcar. A
sua evolução espiritual processou-se sem fanatismos, nem compromisso, crises ou
interrupções. A sua aspiração a uma vida espiritual foi-lhe provavelmente legada por
seu pai, Leônidas, professor em Alexandria, que lhe ensinou todo o ciclo clássico
(matemática, gramática e retórica) assim como os rudimentos do “conhecimento”
cristão. Leônidas foi martirizado em 202, vítima duma perseguição. Orígenes, que
tinha nesta altura a idade de 17 ou 18 anos, escrevera-lhe para a prisão suplicando-
lhe a não ceder a ela por amor da mulher e dos filhos. Conta-se também, não se
sabe se isto é realidade ou lenda, que também ele teria sido martirizado se sua mãe
o não tivesse impedido de sair de casa escondendo-lhe as roupas! Não
encontramos em Orígenes aquela maneira de ser que se comprazia nos
refinamentos de espírito, tão característica em Clemente que, aliás, nessa mesma
perseguição escolheu a fuga. O seu trabalho intelectual, verdadeiramente
gigantesco, traz desde os primórdios a marca duma concepção severa e ascética
da vida: Orígenes contou sempre com a possibilidade do martírio. Segundo alguns
afirmam, o entusiasmo transbordante da sua juventude terá roçado a heresia,
acusando-o de se ter autocastrado, por ter tomado à letra a palavra de Cristo (Mt
XIX, 12), “pelo amor do reino dos Céus”, ato que teria desaprovado mais tarde. Hoje
podemos dizer que não pode ser provado historicamente e é provável não ter
passado de um boato posto a circular pelos seus antagonistas para denegrirem a
imagem dele.
Tendo sido recebido na Igreja de Alexandria, apesar das suas viagens –
como São Justino e como Clemente, esteve na Ásia Menor, na Grécia e em Roma –
permaneceu fiel à Igreja da sua infância.
Orígenes, como seu pai, tornou-se então professor; no entanto, mais que o
seu progenitor, dedicou-se ao ensinamento religioso. Havia neste tempo falta de
mestres cristãos, tendo a perseguição sido lançada, sobretudo contra eles. Mas
este risco sempre ameaçador não podia amedrontar Orígenes. O enérgico bispo
Demétrio de Alexandria, tendo-lhe reconhecido o valor, apesar da sua juventude,
confiou-lhe a instrução dos catecúmenos.
Esta escola semi-oficial sob a direção de Orígenes atingiu quase o estatuto
de Academia. Ela foi freqüentada, gratuitamente, inclusive por heréticos e pagãos.
Para poder subsistir, Orígenes vendeu a biblioteca de seu pai, que continha uma
coleção de autores pagãos; dela tirou uma renda módica, mas suficiente para
sustentar um asceta, trabalhador infatigável e que se recusava ao prazer inútil.
Mas esta carreira não era ainda definitiva: os seus sucessos de professor e a
admiração dos amigos não bastaram para ele pensar que a sua formação
intelectual estivesse concluída. Recomeçou então o estudo aprofundado do ciclo
das disciplinas clássicas e, sobretudo da filosofia, sob a direção dum mestre pagão,
o único à altura desta tarefa, Amonios Saccas, que foi também mestre do Plotino.
Teve ainda como condiscípulo Heráclio, futuro bispo de Alexandria, que decidiu a
colaborar com ele na direção da sua escola. Heráclio ensinava os principiantes e
Orígenes reservava-se para os alunos já iniciados e instruía-os sobre temas
filosófico-teológicos e escriturísticos. Mais tarde Heráclio sucedeu-lhe na direção da
escola, após a ruptura com o bispo Demétrio.
Estes anos de estudos filosóficos foram para Orígenes duma influência
incomensurável. Ele foi o primeiro cristão a pertencer realmente à fina-flor
intelectual do seu tempo e a professar a doutrina cristã duma forma que forçava o
interesse e o respeito dos seus adversários. Porfírio, o biógrafo de Plotino, dele

86
testemunha com um sentimento tanto de amargura quanto de admiração. Ele
censura Orígenes de ter professado a doutrina “bárbara” e de ter vivido como
cristão, desobedecendo às leis do Estado e tendo sobre a questão de Deus e do
mundo idéias helênicas (Eusébio, Hist. Ecles. VI, 19, 7 s). Segundo aquele autor
pagão, “infelizmente ele atribuía erradamente os pensamentos de pagão ao mito
estranho”, ou seja, ele assimilava os pensamentos do filósofo aos propósitos da
Sagrada Escritura judaico-cristã.
É evidente que Orígenes jamais teria aprovado esta afirmação. Se ele
estudava os filósofos pagãos era para os refutar e se encontrava entre eles idéias
semelhantes às suas, estava convencido de que elas já antes se encontravam, e
duma forma mais perfeita, na revelação cristã. Não considerava, porém, como inútil
o estudo metódico da filosofia e fazia mesmo dele uma obrigação para os seus
alunos. Ficará por comprovar até que ponto a crítica severa que lhe dirige Porfírio
será objetivamente fundada. Orígenes aparece como o primeiro exemplo
surpreendente duma teologia que, embora aspirando a um cristianismo integral, se
deixa, no entanto atrair perigosamente e sem se dar conta por adversários “tomados
a sério” e que se encontravam inseridos na área do neoplatonismo, que nesse
tempo representava um perigo temível.
No sistema do Orígenes os elementos compõem-se e interpenetram-se duma
forma assaz viva, mas complexa. Ao contrário da filosofia moderna, a filosofia
neoplatônica da época não havia ainda sido influenciada nem condicionada pelo
cristianismo; era no entanto dominada, tal como o cristianismo da Antiguidade mais
tardia, pelas correntes duma religiosidade gnóstica. Os problemas teológicos e
antropológicos, tais como a questão de Deus e o mundo, o desenvolvimento moral,
a imortalidade, o desapego pelo mundo material, o mistério da queda deste mundo
e o do regresso possível à origem da unidade divina e a investigação sobre a
concepção do Ser, todos estes temas estavam agora no primeiro plano. E as
questões fundamentais da filosofia platônica eram também, para Orígenes,
problemas fundamentais do cristianismo.
Do ponto de vista da história do pensamento e também, quer pelos
problemas que levanta quer pelas respostas que propõe, Orígenes está muito
avançado sobre o desenvolvimento teológico do seu tempo. O seu ponto de partida
é todo outro, pois, seguro do testemunho da Sagrada Escritura, ele pode apoiar-se
numa realidade primeira: a revelação universal de Deus. Filósofos judeus como
Fílon de Alexandria e gnósticos e teólogos cristãos como Clemente haviam já
trabalhado antes dele. Mas o que Orígenes trouxe de novo para a Igreja foi uma
grande recapitulação sistemática, a transformação de uma filosofia de amador, por
vezes caprichosa e superficial, num trabalho intelectual metódico e a passagem do
estilo aforístico da discussão entre literatos para a construção dum sistema
teológico solidamente fundado. Não se encontra em Orígenes frase alguma
enunciada com superficialidade, pensamento algum de que se não possa
desenvolver utilmente as conseqüências. Da mesma maneira que ele ensinava aos
seus alunos por um sistema teológico bem estruturado, começando pelo estudo da
Lógica e da Física do Ser, guiando-os seguidamente, através do estudo da
Geometria e da Astronomia, até à Ética e desta à Teologia propriamente dita e às
meditações sobre os textos no seu próprio sistema todo o pensamento,
devidamente examinado, aparece numa ordem precisa e como fazendo parte dum
vasto conjunto. Entre os seus sucessores nenhum Padre da Igreja o igualou no seu
método e na sua força de síntese.

“Dos Princípios”
Foi ainda no primeiro período da sua vida em Alexandria, por volta dos 40
anos de idade, que Orígenes escreveu a sua obra mais determinante e que define

87
claramente a sua posição em Igreja: “Dos Princípios”. Trata-se duma teologia
tratando “dos princípios” ou seja, “as origens” ou as “verdades primeiras”. A audácia
deste ensaio realça a natureza problemática de toda a teologia origenista. Para
fazer entrar a mensagem cristã no quadro duma reflexão objetiva sobre Deus e
sobre o mundo, ele dá a estes temas uma interpretação radicalmente modificada e
renovada. Aqui, a Tradição da Igreja tocante à História da Salvação, é abordada
com o auxílio de conceitos de valor provenientes da filosofia, uma espécie de
história do espírito e da Revelação, elaborada a partir de alguns dados
escriturísticos.
Orígenes começa, no prefácio, por apresentar o conteúdo da regra de Fé,
transmitido claramente pela pregação apostólica. Depois de afirmar aquilo que é
proclamado sobre Deus e cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade, declara
nomeadamente que a alma, quando deixou este mundo, receberá a bem-
aventurança eterna ou a condenação eterna, de acordo com os seus méritos (hoje
diríamos, mais corretamente, de acordo com a sua santidade); que nada se sabe
sobre a origem da alma (para além de ter sido criada por Deus); nem tão-pouco se
sabe sobre os anjos e os demônios, quando foram criados, qual a sua natureza,
como são; também não se sabe o que houve antes deste mundo nem o que haverá
depois, nem sequer se os astros são seres animados ou sem alma. Quanto às
Sagradas Escrituras, sabemos que foram redigidas por ação do Espírito de Deus e
o seu sentido não é somente o literal, mas também um outro, (místico e alegórico),
que escapa à maior parte dos homens.
Mais adiante veremos a importância destas afirmações de Orígenes, em
função dos erros de que é acusado.
Depois de assentar estas “pedras” de base como fundamento dogmático da
doutrina da Igreja, como os limites, as balizas do Kerygma (verdade revelada),
passa então ao seu próprio desenvolvimento pessoal da doutrina, apresentando-o
não já como do Dogma transmitido pela Igreja, mas como um exercício intelectual
de quem busca ardentemente aprofundar o conhecimento de Deus, ressalvando
assim a possibilidade de ser acusado de heresia por erros cometidos nas suas
hipóteses teológicas – que efetivamente os teve e dos quais falaremos em seguida
– porque fala nessas hipóteses em termos pessoais e não como doutrina da Igreja.
Aliás, na sua exposição, ao longo de todo o livro, ele chega a ponto de apresentar,
nalgumas questões, duas ou mais saídas, com argumentos em favor de cada uma
delas (sendo elas antagônicas umas das outras) e deixando a escolha ao leitor...
Avança, contudo, por determinadas linhas, perfilhando nomeadamente duas delas
condenadas pela Igreja: a hipótese da pré-existência das almas, antes do
nascimento e a teoria da apocatástase ou restauração final de todas as coisas,
segundo uma harmonia divina que permitiria ainda a conversão dos demônios e dos
condenados (negando assim a condenação como eterna e irreversível – como a
Igreja a proclama).
É interessante constatarmos aqui que ele contradiz com estas hipóteses o
que ele mesmo afirmara no prefácio: “A alma... quando tiver deixado este mundo,
receberá uma sorte conforme aos seus méritos: ou obterá a herança da vida eterna
e da beatitude, se as suas ações lhe valerem, ou será abandonada ao fogo eterno e
aos suplícios, se os pecados cometidos pelos seus malefícios para lá a arrastarem”.
Afirma, também, que os astros são seres vivos (com alma).
Para além destes erros, devemos realçar no desenvolvimento de “Dos
Princípios” - onde o autor pormenoriza cada um dos pontos mencionados no
prefácio – uma Teologia clara sobre Deus e cada uma das Pessoas da Santíssima
Trindade, bem como da Economia da Salvação, se bem que na sua época os
termos utilizados não fossem ainda muito precisos.

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Ao seu sistema correspondem uma antropologia e uma ética caracterizada
ambas pelas suas concepções idealistas e ascéticas. Cada alma, chegada, graças
a Cristo, ao conhecimento da sua origem e vocação, é chamada a libertar-se dos
entraves deste mundo visível e a começar o seu regresso e ascensão para Deus,
numa santidade sempre renovada.
Orígenes não se limita a simples pinturas e a frias considerações. Levado
pelo seu espírito missionário e, mestre espiritual, ele quer fazer dos seus discípulos
homens que orem, mártires, santos. Cada qual deve, como soldado do Espírito,
entrar nas fileiras dos cristãos e dos anjos e declarar guerra aos vícios e aos
demônios deste mundo. A Salvação encontra-se tão-somente em Cristo, Mestre e
modelo de todos os cristãos, que tudo preparou para as necessidades da alma;
para a socorrer Ele envia-lhe os Seus servos e os Sacramentos da Sua Igreja. Mas
deverá a própria alma decidir-se a recorrer a Ela; em definitivo, o conhecimento não
conhece a verdade e não proporciona a sua salvação senão pelo poder inato da
liberdade espiritual. Quanto ao processo da salvação, aborda-o não à maneira dos
filósofos – unicamente do ponto de vista do Homem – mas sim como teólogo,
descrevendo-o como a manifestação do amor e da solicitude de Deus, (apesar de
permanecer subjacente uma influência platônica). Orígenes atribui à Pessoa de
Cristo todo o conhecimento e ao Espírito Santo a santificação e reconhece à
Sagrada Escritura o valor dum documento absoluto, dum amparo e apoio à sua fé.
Continua, assim, a linha dos “doutores” cristãos, sem se deixar influenciar pelos
desaguisados filosóficos a propósito dos “mitos bárbaros” da Sagrada Escritura.

Outras Obras Literárias


A teologia de Orígenes é fundada, portanto, nas Escrituras, tal como a dos
Padres que o antecederam. Deste modo a maior parte dos seus livros compõe-se
de exegese bíblica: compôs breves “scholia” onde precisava alguns pontos
discutidos – hoje todos perdidos – homilias e sermões, que formavam uma série
contínua, de modo a tratar da totalidade dos livros escriturísticos. De todo este vasto
conjunto chegou aos nossos dias somente um terço.
Estudando a Sagrada Escritura, Orígenes não se contentava em fazer a sua
exegese. Metodicamente como sempre, procurava fundar tudo numa base ampla e
segura. Por essa razão começou por estabelecer, para seu uso pessoal, uma
importante edição do texto do Antigo Testamento, a chamada “Hexapla”, ou edição
em “seis colunas”. Ao lado do texto hebraico sem vogais havia uma transcrição
fonética em grego, depois noutras colunas as diferentes traduções gregas,
sobretudo a dos “Setenta” (versão judaico-alexandrina inicialmente destinada aos
Judeus da Diáspora, há muito consagrada e que, por ser a mais credível, é ainda
hoje a adotada pela Igreja Ortodoxa de Portugal), perfazendo ao todo seis colunas,
que se podiam abarcar num só olhar e comparar entre si, embora Orígenes lhes
podiam abarcar num só olhar e comparar entre si, embora Orígenes lhes
acrescentasse por vezes ainda mais uma, duas ou três traduções. Para um público
mais amplo chegou a publicar-se a “Tetrapla”, extracto dos “Hexapla”, que continha
as quatro traduções gregas sem dar o texto hebraico.
Estes trabalhos exegéticos de Orígenes eram tão extensos e completos
como os de qualquer comentarista moderno. Por exemplo, somente a exegese do
Evangelho de São João, até ao capítulo XIII, 33, compreende 32 volumes, sendo
um inteiro consagrado à explicação das primeiras 5 palavras da primeira frase: “No
princípio era o Verbo”.
Por princípio Orígenes não tem qualquer apreço pela beleza literária e os
efeitos retóricos. Só o conteúdo lhe interessa. Calmo, ordenado, claro, coloca
questões e responde-lhes, detendo-se sobre as opiniões divergentes e fazendo por
vezes digressões para tornar mais compreensível aquilo que quer exprimir. A

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Sagrada Escritura é a fonte de toda a ética e de toda a moral e, sobretudo de todo o
conhecimento teológico, filosófico e científico; Ele crê que o próprio Deus a suscitou
por inspirações imediatas, integrada na Revelação divina, que é “um mar de
mistérios”. As histórias, as palavras bíblicas são interpretadas e analisadas até ao
mais ínfimo pormenor e revestidas de um sentido alegórico, “misterioso”, por vezes
muito surpreendente. Embora o seu método nos possa por vezes parecer fantasista,
quanto mais a exegese alegórica é aplicada de forma absoluta e conseqüente, mais
ela parece, pela sua própria natureza, justificar-se a afirmar-se. Este método
adapta-se maravilhosamente à estrutura do seu sistema rico em degraus
hierárquicos e em relações espirituais. Não é, pois, de admirar se soubermos que
Orígenes foi o maior expoente da Escola Teológica de Alexandria, caracterizada
precisamente pelo desenvolvimento do sentido alegórico-tipológico e místico na
interpretação da Sagrada Escritura, em contraponto com a Escola Teológica de
Antioquia, que desenvolveu preferencialmente o sentido histórico-literal.
Por princípio Orígenes atribui três significados diferentes a cada texto bíblico:
o 1º pertence à esfera do corpo, o 2º à da alma (psique), o 3º à do espírito
(pneuma). Esta interpretação corresponde, nas suas grandes linhas, à distinção
posterior dos sentidos históricos, moral e teológico. Muito freqüentemente Orígenes
reúne num só os dois degraus superiores e ocorre muitas vezes que o primeiro
(significado material-histórico) seja completamente ignorado. Pois, segundo a sua
opinião, há textos que, “tomados no seu sentido literal, seriam insensatos ou
imorais, devendo um cristão “corar” da lei de Deus no AT, perante as leis humanas
dos Gregos e dos Romanos, que parecem mais elevadas e racionais” (In Lev. Hom.
5,1). A exegese alegórica era também a única maneira de defender o AT contra os
pagãos e sobretudo os heréticos gnósticos e marcionistas.
Orígenes adquirira renome mundial. De várias partes do mundo recebeu
convites para o ouvirem falar; a sua presença era particularmente solicitada para
refutar algum heresiarca, ou para trazer esclarecimentos sobre problemas
teológicos. Pela sua erudição e lucidez, Orígenes sabia não só inspirar o respeito
aos seus adversários, como obter a adesão íntima deles e convertê-los à fé cristã.
Mas surgiram problemas com a Hierarquia, ou seja, o seu bispo Demétrio de
Alexandria. Se por um lado ele estava disposto a aceitar as críticas e objeções da
autoridade eclesiástica, por outro sentia-se livre no seu ensinamento, pois
acreditava que o próprio Deus lhe concedera o “dom” da sabedoria e da ciência da
Sagrada Escritura, como aos antigos Profetas, “dom” que como tal lhe pertencia em
próprio. Quanto ao bispo Demétrio queria controlá-lo mais, exigindo a integração e
submissão formais, “como garante vivo da verdade ortodoxa, a única e clara
representação da unidade da Igreja”.
Orígenes queria aplanar esta cisão perigosa pela ortodoxia da sua teologia e
tomando parte solicitamente na vida e ofícios da sua comunidade.
Para resolver do modo mais simples esta situação tensa, Orígenes encarou a
possibilidade de ser ordenado ao sacerdócio ministerial, para assim reunir de
alguma forma os dois poderes, oficial e não-oficial. E parece ter mesmo feito
diligências nesse sentido junto do bispo Demétrio que, por seu lado, exigia tão-
somente a submissão pura e simples. Todavia, em Jerusalém, onde Orígenes era
apreciado pelo bispo Juvenal, ou em Cesaréia, onde tinha alunos seus à cabeça da
comunidade, deixavam-no, quando das suas visitas, pregar durante os ofícios. Este
foi mais um pretexto para os protestos violentos do bispo Demétrio de Alexandria
contra esta inovação. E quando, anos mais tarde, Orígenes se encontrava em
viagem tratando de assuntos da Igreja e passou novamente pela Palestina,
decidiram, sem mais delongas, ordená-lo presbítero (ou – o que será mais provável
ainda – sagrá-lo bispo). Orígenes aceitou, aparentemente na expectativa de
doravante escapar a novas restrições à sua atividade.

90
Mas sucedeu o contrário. A sua situação em Alexandria tornou-se
insustentável. Ao regressar foi recebido de modo tão hostil, que se viu coagido a
abandonar toda a atividade na sua pátria e a refugiar-se em Cesaréia, onde foi
acolhido de braços abertos. Acusando-o de se ter feito ordenar sem a permissão do
seu bispo, para além da sua condição de eunuco (que é um impedimento canônico
para a ordenação), o bispo Demétrio fê-lo exilar formalmente por uma assembléia
do clero de Alexandria, e numa segunda assembléia, em 231-232, declarou-o ainda
deposto do sacerdócio pelas duas razões já aduzidas.
Hoje, baseados no conhecimento que temos da personalidade de Orígenes,
do bispo Demétrio, que sabemos ter sido pouco isenta, do Bispo S. Juvenal de
Jerusalém – que ordenou (ou sagrou) Orígenes – e que foi canonizado, poderemos
dizer que talvez o verdadeiro motivo da oposição do bispo Demétrio a Orígenes
fosse, tão-somente, ciúmes... Atualmente, Orígenes não é mais um dos Santos
canonizados pela Igreja provavelmente pelo antagonismo contra ele exercido pelo
bispo de Alexandria!...
O bispo Demétrio continuou a mover várias influências contra ele, mas em
vão. Orígenes sofreu com nobreza e sangue-frio esses ataques do seu bispo e
antigo protegido. A sua escola foi reconstruída em Cesaréia. Orígenes assumiu,
além disso, com ardor na comunidade as funções de pregador. Os seus discípulos e
os bispos, seus amigos, amavam-no e veneram-no como um Santo.
A maior parte da vida de Orígenes desenrolou-se num período de “paz”, de
entendimento pacífico, por vezes até amigável, entre o governo imperial e a Igreja.
Orígenes testemunhava compreensão pelos direitos dos governantes e afirmava a
responsabilidade de todo o cristão quanto à prosperidade do Império. Mas recusou-
se sempre a todo o sincretismo fácil, a todo o compromisso político. Como ele
afirma, os cristãos são, entre todos os povos do Império Romano, um povo
particular, o povo santo de Deus, que se não intromete nas questões deste mundo e
se não pode pôr ao serviço das suas ambições. Os cristãos realizam
voluntariamente os seus deveres cívicos, oram pelo Imperador e seus exércitos,
porque são uma raça sacerdotal que usa somente as armas do espírito.
Na sua velhice, Orígenes compôs ainda uma volumosa apologia para refutar,
um a um, os ataques que o filósofo Celso dirigira contra os cristãos, dois séculos
atrás. Pouco depois, quando em 249 o imperador Décio subiu ao trono, houve uma
reviravolta política e desencadeou-se uma perseguição anticristã, preparada
segundo um plano preciso e aplicável a todo o Império.
Já não era possível nesta época esmagar a Igreja pela eliminação física dos
seus membros. Importava antes forçar os cristãos pelo terror e por medidas de
coerção astutamente elaboradas para os fazer abandonar as suas convicções.
A primeira condição para o êxito era a de conseguir fazer que os chefes das
comunidades renegassem a sua fé. Não parecia, sem dúvida, indicado executar
este ancião ilustre, mas impuseram-lhe o pelourinho e colocaram-no no cavalete de
tortura, de sorte que os seus pés foram estirados dias inteiros, “até ao 4º buraco”,
ameaçando-o ainda do suplício do fogo; mas todas estas violências não surtiram
qualquer resultado. Orígenes foi libertado; mas fisicamente estava acabado.
Todavia, compôs ainda vários pequenos escritos “que trouxeram grande consolação
àqueles que deles necessitavam” (Hist. Ecles., VI, 39,5). Orígenes nasceu para os
Céus, o mais tardar, em 254.
Assim, a vida e o caráter deste homem refletem até ao fim a sua retidão e
firmeza. Era uma personalidade severa e também afável, duma lealdade a toda a
prova, voltada unicamente ao trabalho intelectual e à piedade ascética, um erudito e
pensador sistemático, podendo medir-se com qualquer adversário. A sua natureza,
no fundo, não é complexa nem finalmente original. Ele une, colocando-se a um nível
mais elevado, as tradições não filosóficas da Igreja de tendências gnósticas e

91
neoplatônicas do seu século e criou um sistema teológico de que admiramos a
grandeza e estrutura lógica.
Quanto aos erros doutrinais de Orígenes, foi somente nos seus discípulos e
nos filhos destes que, pela força da evolução histórica, eles apareceram. A nova
geração sentia-se um pouco desamparada face aos acontecimentos da sua época;
por outro lado não encontrava mais respostas, mais consolações no mestre
venerado, em que reconhecia ainda a enorme superioridade, revelada pela força do
seu pensamento sistemático, pela universalidade da sua formação filosófica e pela
pureza da sua intenção e da sua fé.

SANTO EUSÉBIO DE CESARÉIA (+ C. 340)

Meio século após o falecimento de Orígenes, a sua teologia tinha-se


disseminado em toda a Igreja do Oriente. Ele aparecia como a única teologia
realmente sistemática e a única concedida às mais altas formas da cultura filosófica.
Os apologetas, os intelectuais cristãos, os mestres das escolas e centros de
formação espiritual, os bispos das comunidades mais importantes inclinavam-se
para ela e procuravam conformar ao espírito dela as suas doutrinas e ações.
Mas posta em contato com outras tradições, a herança de Orígenes
começava a transformar-se e adaptar-se a novos dados espirituais e eclesiais.
Desta sorte, a partir das regras das escolas, distinções e especificações começaram
a manifestar-se e a surgirem dificuldades internas. Elas eram tão difíceis de
ultrapassar quanto os fundamentos teológicos de Orígenes não haviam sido
firmemente mantidos. Concepções e idéias aristotélicas punham em causa as bases
platônicas do sistema; havia que se ter em consideração determinados interesses
da Igreja e impunha-se a referência às proposições literais da Sagrada Escritura;
diversas novas questões encontravam-se agora no primeiro plano.
Orígenes fora um pensador sistemático; como tal, ele elaborara a sua
exegese bem como a sua teologia e a sua ontologia numa mesma e única
perspectiva. A nova geração de teólogos esforçou-se por introduzir novos métodos
no seu trabalho científico.
A valorização de filologia (estudo da língua como base do conhecimento
literário) e exame crítico dos textos escriturísticos em desfavor da filosofia foi a
linha adotada na obra de Panfílio. Panfílio foi um jurista afortunado, oriundo de
Berítia, na Fenícia, e veio a ser o mestre de Eusébio de Cesaréia. Sob a influência
de Piérios, então diretor da escola catequética de Alexandria, Panfílio decidiu-se a
renunciar à sua carreira pública para se devotar exclusivamente ao serviço da
Igreja. Tendo recebido a ordenação presbiteral, exercia a sua pastoral em Cesaréia,
onde se tornou bibliotecário, vindo a reunir e classificar as obras que constituíam a
rica sucessão de Orígenes. Esforçou-se, sobretudo, por reconstituir o texto
autêntico da Sagrada Escritura segundo os Hexapla e os comentários origenianos
sobre o AT e o NT. Para este trabalho recorreu a colaboradores, dos quais o mais
dotado e ativo era o jovem Eusébio. Eusébio aprendeu de seu mestre a venerar
Orígenes e consagrou-se a transmitir a herança do Doutor incomparável.
Surgiu, entretanto, a última grande perseguição aos cristãos (pelo imperador
Diocleciano), tendo Panfílio sido preso mais, aguardando a sua hora, compôs uma
apologia em defesa de Orígenes contra crítica desconfiada dos seus companheiros
de prisão e de alguns teólogos mais jovens. Foi a única obra original da autoria de
Panfílio e a primeira que o seu discípulo Eusébio, após ter colaborado nela, deveria
sozinho concluir. Panfílio nasceu para os Céus como mártir e Eusébio escapou à
morte. Em breve a sua glória viria a ultrapassar a de seu mestre.
Enquanto duraram as perseguições Eusébio continuou infatigavelmente os
seus trabalhos de erudito e colecionou, como um arquivista, todas as informações

92
que pôde obter no que respeita aos mártires e aos acontecimentos da vida da
Igreja. Mais tarde, com os seus próprios escritos, saiu ele mesmo da sombra:
investigações históricas e exegéticas puramente filológicas e especialmente alguns
tratados de largas perspectivas contra os adversários pagãos e judeus do
cristianismo. Eusébio era um cristão cheio de fé e tomara a peito pôr ao serviço da
sua fé e da sua Igreja todo o seu saber e todas as suas faculdades. Aliás, após o
ano 313, esta Igreja tinha de novo o caminho livre à sua frente e parecia estar-lhe
preparado um grande e risonho futuro.
Se compararmos os primeiros trabalhos teológicos desta época com as obras
de apologetas mais antigos – como S. Justino, por exemplo - tornam-se-nos
evidentes duas diferentes situações. Os cristãos não constituem já um pobre
pequeno punhado de “bárbaros sectários” obrigados a lutar penosamente, num
mundo poderoso e seguro de si mesmo, pelo seu direito à existência e à
consideração. Pelo contrário, o cristianismo está já amplamente disseminado pelo
mundo conhecido; e as comunidades cristãs desempenham um papel determinante
nas cidades e províncias, não só no domínio da vida espiritual como em todas as
atividades mundanas. Enquanto a sociedade pagã se empobrecera, desagregara e
depravara durante o período das guerras civis e da decadência geral, a Igreja
afirmara-se pela sua coesão, disciplina, a coragem da sua fé e não cessara de
crescer.
Os antigos apologetas haviam procurado provar a Verdade imanente do
cristianismo insistindo nas correspondências que, segundo eles, existiam entre as
profecias do AT e os acontecimentos determinantes, miraculosos da vida de Cristo.
Eusébio serve-se raramente deste gênero de prova. O que sobressai agora é a
vitória do monoteísmo, a nova vida moral despertada pela Igreja, o seu progresso e
triunfo “entre todos os povos”, que fazem agora resplandecer a verdade até aos
confins da terra. O que está em causa agora é mostrar como esta evolução
surpreendente estava incluída desde os princípios nos desígnios de Deus, não
podendo efetuar-se senão pela Sua assistência maravilhosa até à sua realização
final. Quanto ao paganismo politeísta com os seus sacrifícios cruentos, as suas
superstições demoníacas e as eternas discussões estéreis destinada ao
desaparecimento e sem direito algum perante o tribunal duma razão esclarecida e
duma ética superior.
Desta sorte também se começa a modificar o sentido da esperança cristã. Já
não é somente no Além, na vida do mundo que há de vir que ela encontrará a sua
realização; a sua concretização começa já neste mundo. O cristianismo é o fator
decisivo do progresso moral da humanidade, o apogeu presente da sua História
espiritual e religiosa; as suas profecias, os seus mandamentos tornam-se, por assim
dizer, o programa da renovação humana. O monoteísmo e a nova ética que,
segundo Eusébio, exprimem o essencial do Evangelho de Jesus, não podiam
certamente impor-se ao mundo desde as suas origens. Era preciso, antes disso,
ultrapassar o estádio da sociedade nômade, construir cidades, editar leis,
desenvolver as artes e as técnicas, aculturar e modelar por um começo de filosofia
e civilização “a vida que, diríamos, ainda animal e não digna ainda de ser vivida”
(Hist. Ecles. I, 2, 17-19). Quando finalmente o Império Romano pacificou o mundo e
venceu “a anarquia dos povos”, então, segundo a vontade divina, chegou a hora do
povo cristão, universal e pacífico (Praep. Evang. I, 4). O cristianismo viveu
inicialmente numa semi-clandestinidade, a fim de não irritar os déspotas romanos e
não perturbar a ordem do Império; mas agora, chegado o seu tempo, manifesta-se
abertamente e torna-se no aliado natural do Império universal.
Algumas destas concepções de Eusébio encontram-se já esboçadas em
Orígenes, em particular quando este se dirige aos pagãos. Mas podemos dizer que
este pensamento negligencia demasiado o mundo real e se apresenta com um

93
caráter marcadamente dualista. Nem a História do mundo nem a política interessam
a Eusébio. Ele antevê talvez a vitória da Igreja, mas dum modo conceitual, sem ver
nela ainda uma função objetiva a empreender.
Santo Eusébio aprecia as coisas de outra maneira. É certo que ele vê em
Deus uma realidade absoluta e transcendente; Deus que protege “manifestamente
do alto” a Sua Igreja contra os ataques demoníacos dos Seus inimigos e a conduz à
vitória, Ela que é a luz das nações.
Foi devido a esta visão intelectual que Santo Eusébio se fez historiador da
Igreja. A concepção primitiva da História da Igreja é filha da apologética, como a dos
tempos modernos é filha da filosofia racionalista. As suas narrativas históricas têm
como características um certo extremismo, num objetivo moralizador. Elas são lidas
quer como exercícios de retórica quer como sermões edificantes e procuram
nitidamente impressionar o leitor. As afirmações teológicas que aí se encontram têm
nitidamente falta de profundidade. Segundo ele, os sucessos da Igreja são sempre
obra de Deus e sempre miraculosos; os fracassos, pelo contrário, são produto dos
poderes diabólicos e de seus aliados, os maus. Mas por vezes Deus permite-os
também para pôr à prova os cristãos ou para os punir. Todavia, ao interior da Igreja
a verdade apostólica permanece sempre vitoriosa, apesar de todas as tentativas de
inovação dos hereges. Eusébio renunciou à concepção mística que calculava a
história do mundo segundo os ciclos dos anos sabáticos do profeta Daniel e a partir
dos quais se pretendia poder indicar a data do fim do mundo e da parusia de Cristo.
A visão da história do mundo e da salvação está ligada, segundo Eusébio, ao
princípio otimista duma educação progressiva da humanidade por Deus. Ele
exercita o seu sentido crítico sem se embaraçar em problemas e entrega-se à sua
inclinação pelas curiosidades históricas.
Visto nesta óptica e para o seu tempo, o trabalho de Santo Eusébio é
exemplar e merece todos os louvores. Ele é realmente um erudito; os seus
procedimentos conscienciosos e a exatidão metódica das suas investigações
filológicas, arqueológicas e históricas provocam a nossa admiração quando nos é
possível verificá-los. Sem ele estaríamos tão pouco informados sobre os primeiros
séculos da Igreja como o estaríamos sobre o cristianismo dos tempos apostólicos
se São Lucas não tivesse reportado os Atos dos Apóstolos. Todavia, ao contrário
deste livro da Sagrada Escritura, a História Eclesiástica de Santo Eusébio não é
certamente uma obra de arte. A narrativa não é trabalhada e é freqüentemente
interrompida com páginas inteiras de anotações.
Antes de compor a sua História Eclesiástica, Eusébio elaborou os seus
próprios Cânones Cronológicos, à semelhança dos cronistas cristãos mais antigos,
mas executando o seu trabalho com maior exatidão e mais conhecimentos. Estes
Cânones contêm uma longa e sábia introdução sobre os diferentes sistemas
cronológicos e concluem-se por quadro sinópticos relativos à história mundial. Pelo
sincronismo entre as datas bíblicas e as datas da história profana, o autor quer
provar que o cristianismo, longe de ser uma nova religião, possui, graças aos
testemunhos do AT, a dignidade da religião mais antiga e mais venerável do mundo.
A aparição de Cristo marca o início do seu período final, que é a História da Igreja.
A partir daí, o relato dos acontecimentos respeitantes à História Sagrada prevalece
completamente sobre os fatos da História profana, de tal forma que esta última
quase não é levada em consideração. A História Eclesiástica forma, por assim dizer,
a última parte da crônica. Por vezes Eusébio justapôs-lhe pura e simplesmente
notícias sobre os bispos célebres, os teólogos, sobre certas heresias, as
perseguições, o destino do povo judaico.
O autor insistiu, no entanto, sobre a novidade da sua tarefa e sublinhou, com
razão, as suas grandes dificuldades. Sentiu-se comprometido numa carreira nova
“encontrando como pontos de apoio para o seu trabalho tão-somente informações

94
ocasionais, deixadas por um ou por outro daqueles que, à sua maneira, relataram
os acontecimentos dos tempos em que viveram” (Hist. Ecles. I, 1, 3). Estas
informações foram citadas literalmente por Eusébio, sobretudo quando pareciam ter
algum valor pela precisão da cronologia. Desta forma o historiador da Igreja salvou
para a posteridade fragmentos duma literatura que, sem ele, teriam sido
irremediavelmente perdidos. Este trabalho notavelmente metódico foi durante muito
tempo considerado com autoridade, de tal forma que os historiadores eclesiásticos
dos séculos seguintes limitaram-se a traduzir esta obra clássica ou a continuá-la.
Santo Eusébio começa a sua “História” pelo relato da vida de Cristo Jesus,
cujo Ser e obra se revelam a um investigador consciencioso “tão sublimes e
eficazes que é preciso, necessariamente, considerá-los sobre-humanos” (Hist.
Ecles. I,I,7). Seguidamente sete livros são dedicados ao tempo que decorreu após a
fundação do cristianismo. A época contemporânea de Santo Eusébio é contada nos
três últimos livros. Estas diferentes partes foram corrigidas e reelaboradas, segundo
a evolução dos acontecimentos e as informações que o historiador ia obtendo. Os
juízos reservados aos imperadores sofrem muitas correções em função dos seus
sucessos e da mudança de atitude deles em relação ao cristianismo. A parcialidade
do autor e a sua preocupação de “propaganda” vêem cada vez mais ao de cima. Os
relatos contradizem-se por vezes, deixando com alguma freqüência uma impressão
de ambigüidade. Na sua última edição a obra toma o seu significado último: a
História em si mesma pôs à disposição do cronista da “ecclesia triumphans” o fim
que lhe era necessário: a vitória do Imperador Constantino, amado de Deus e amigo
dos cristãos e o fato de a sua soberania ter sobrevindo sobre o Oriente e o Ocidente
consagraram com magnificência toda uma evolução. Era para o mundo o inicio
duma nova era.
Até então Eusébio jamais se ocupara de assuntos públicos ou da política da
Igreja. Empenhara-se totalmente na sua tarefa de investigador erudito e, pelas suas
obra literárias, a defender com convicção a verdade e os direitos da Igreja cristã.
Tanto mais que ele havia já recebido a ordenação presbiteral em Cesaréia. Em 313
ou 314, o eclesiástico sábio e de méritos reconhecidos foi sagrado bispo. Ele
desempenhou sem dúvida corretamente as suas novas funções: mas no fundo
continuou a interessar-se, sobretudo pelos seus próprios trabalhos literários. Ele
não era um “mestre” como Orígenes; pregava, mas não tão assiduamente como
este.
Com o triunfo de Constantino, Santo Eusébio entreviu para a Igreja novas
possibilidades; Ela podia agora passar do tempo da preparação ao da realização. O
vencedor político parecia-lhe muito bem poder trazer ao mundo a salvação. Eusébio
já anteriormente realçara o valor providencial da conexão entre o poder temporal e a
Igreja; agora, a instituição do Império e a própria pessoa do Imperador não fazem
senão confirmar a sua posição. A soberania terrestre deste Imperador, enviado de
Deus e libertador, é a imagem da soberania divina e do reino de Cristo anunciados
pelas Escrituras.
Santo Eusébio foi freqüentemente censurado pelo caráter excessivo de
muitas das suas afirmações enaltecendo o Imperador. Mas quem o fez esqueceu
que era esse o estilo habitual da corte “oriental” do Império. Quanto ao imperador
Constantino, ele sabia muito bem lidar com todos os que freqüentavam a corte.
Como ele apreciava o apego deste homem erudito e célebre pela propaganda que
organizava em seu favor na Igreja, tinha por ele muita consideração e honrava-o
com distinções lisonjeiras. Sendo de extração muito simples e não estando
familiarizado com as altas esferas políticas, não é de nos admirarmos que Eusébio
se tenha deixado deslumbrar. Mas no fundo ele tinha a certeza dum laço essencial
existente entre o Império e a Igreja. Toda a sua teologia tendia à instauração dum
Império civilizado e policiado unido à Igreja Universal. Ele atualizava assim, à sua

95
maneira, a antiga concepção pagã do Império e do Imperador. Eusébio teria sido
infiel a si mesmo se não tivesse então seguido o Imperador, instrumento escolhido
de Deus, do qual sempre desejara a vinda e em cuja missão acreditava. Era este o
cristianismo de Eusébio, cuja carreira de “político” da Igreja não lhe augurava nada
de bom.
No momento em que o triunfo de Constantino estava assegurado surgiu a
disputa do arianismo, que veio trazer muitas amarguras à Igreja no Oriente (e não
só). A luta tocava essencialmente o próprio fundamento da doutrina cristã da
salvação, a qual depende inteiramente, quanto à sua origem e estrutura, da pessoa
divino-humana de Cristo. Eusébio, pelas suas convicções teológicas, não era
ariano, se bem que tenha sido encarado como tal. Cristo era para ele mais que uma
simples criatura e mais que um semi-deus. Ário, a quem Eusébio abrigara na sua
fuga, expusera-lhe habilmente as suas concepções cristológicas, distorcendo o
verdadeiro sentido das suas últimas conseqüências. Assim, parecia-lhe estar a
acolher em Cesaréia uma vítima inocente, como outrora na mesma cidade se
recolhera Orígenes, perseguido pelo bispo de Alexandria.
Os erros antigos que afirmavam a identidade completa do Pai e do Filho, já
há muito refutados por Orígenes, pareciam reflorir no campo dos adversários de
Ário. A confissão de fé deles, simplista, parecia a Eusébio que viria arruinar toda a
teologia concedida à conjectura do seu tempo – racionalmente fundada e
filosoficamente válida. Mas, para ele, o “mistério singular da salvação dos homens”
preocupava-o menos que os objetivos da Igreja pregando um monoteísmo absoluto,
fundamento espiritual e moral da nova ordem universal. Comparadas a este grande
projeto, as dissensões cristológicas pareciam-lhe problemas de menor importância;
e ele censurava precisamente os seus adversários de os terem trazido,
imprudentemente e de maneira inoportuna, ao primeiro plano. Com angústia,
constatava que no momento histórico da libertação e do triunfo permitido por Deus,
o gosto da contenda teológica e da intolerância ameaçava abalar a estrutura sólida
do Império e da Igreja e deslocar a frente única dos cristãos, “a ponto de os santos
mistérios da doutrina divina serem objeto da zombaria ultrajante dos incréus até nos
teatros” (Vita Const. II, 61).
Neste ponto havia perfeita sintonia entre ele e Constantino. Ambos
perseguiam o mesmo objetivo: pôr fim o mais rapidamente possível e custasse o
que custasse, a esta situação desastrosa. Todavia, Eusébio era também bispo e
teólogo da sua Igreja. Ao tomar, sem se dar conta disso, os seus fins táticos e
políticos como normas das suas decisões, ele embaraçava-se em contradições que
não lhe pouparam humilhações pessoais e que, apesar da sua determinação fiel e
leal de fazer avançar a causa da Igreja, vieram a comprometer irremediavelmente o
seu bom nome.
No I Concílio Ecumênico de Nicéia, em 325, Constantino não podia deixar de
fazer valer os direitos dos adversários de Ário. Eusébio compreendeu certamente
então quão suspeita era a doutrina do seu protegido. Apesar de tudo, tentou
manter-se-lhe fiel, mas finalmente teve de o abandonar para se salvar a si mesmo
da deposição e excomunhão. Ele propôs ao Concílio, a título de compromisso, uma
profissão de fé, que foi publicamente aprovada pelo Imperador. Numerosas
alterações foram-lhe então acrescentadas que a modificaram profundamente no
sentido anti-ariano. Eusébio acabou depois por assiná-la também. Mas as
justificações que ele enviou por carta à sua Igreja revelam quão grande foi o seu
embaraço.
Eusébio prosseguiu ainda as suas investigações literárias e passava aos
olhos do povo como o porta-voz autêntico da Igreja e o arauto eminente da política
cultural e eclesial do Império para a nova era que estava a nascer. Esta política de
Eusébio trouxe-lhe a glória maior quando o Imperador Constantino o fez eleger

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Patriarca de Antioquia, dignidade ambicionada por tantos rivais. A modéstia fê-lo, no
entanto declinar esta honra, invocando a interdição de determinadas leis
eclesiásticas. Talvez ele reconhecesse os limites das suas capacidades. Preferiu
assim continuar a viver junto da sua incomparável biblioteca de Cesaréia e nela
manter as suas atividades habituais. E lá, nasceu para os Céus em paz, alguns
anos após o Imperador S. Constantino, em 339 ou 340.
Eusébio poderia agora certamente pensar que a sua vida de labor havia
alcançado o seu objetivo. O Estado e a Igreja haviam-se reconciliado, a paz,
firmada pela unidade política, parecia solidamente estabelecida e uma teologia do
“justo meio” correspondente às concepções que haviam sido as suas, encontrava a
mais vasta audiência.
Todavia esta impressão era ilusória. Na geração seguinte a oposição
religiosa, oficialmente condenada ao silêncio, iria de novo levantar a cabeça e
procurar arrancar ao regime estabelecido uma revisão integral de todas as decisões
que haviam posto em causa os defensores do Credo e influenciado na condenação
deles, pelo “partido” a que pertencera Eusébio. Esta oposição surgiu, porém e de
início, mais por táticas políticas que por razões dogmáticas e eclesiais. Mais tarde a
ortodoxia de Eusébio foi contestada. Atualmente a Igreja não apresenta dificuldades
à sua canonização. Se bem que a teologia do bispo Eusébio de Cesaréia tenha sido
de fraco valor, não se pôde deixar de recorrer às obras históricas e exegéticas dele,
“devido aos ensinamentos objetivos reconhecidamente muito úteis” (Decreto
Gelasiano 5,22) que elas continham.
Com Eusébio dá-se também a queda e o descrédito de todo um movimento
teológico, que deixou de contar com o apoio do poder imperial, de sorte que as
doutrinas por ele veiculadas deixaram de poder ser tomadas a sério. A crise do
origenismo, indispensável a uma nova compreensão da doutrina da Igreja, irrompe
com fulgor e clareza. Avizinhavam-se os tempos em que os teólogos e doutores
responsáveis pela precisão dogmática viriam corrigir essas doutrinas errôneas.

SANTO ATANÁSIO, O GRANDE (c. 295—373)

Santo Atanásio de Alexandria nasceu cerca do ano de 295 e pertence a uma


geração mais jovem que a de Santo Eusébio de Cesaréia. A sua infância foi
perturbada pelas últimas grandes perseguições aos cristãos, cujas impressões
dolorosas terão marcado profundamente o seu caráter. Ele cresceu num tempo de
grande transformação sócio-político-religiosa: a Igreja deixou de ser perseguida
para passar a ser tolerada e protegida pelo Império. No plano teológico começa
também, com Santo Atanásio, uma nova era. A sua formação, como em parte
ocorrera já com Santo Irineu, não teve influência marcada das “tradições
acadêmicas da filosofia cristã”. Esta formação é efetuada não na “escola”, mas na
Igreja e centros administrativos de Alexandria. Ele torna-se assim num “eclesiástico”
com bons conhecimentos de teologia.
No princípio do século III a Igreja de Alexandria possuía o aparelho
administrativo mais organizado e importante do mundo cristão. No tempo do
pontífice Demétrio (+232) a sua influência estendia-se além do Egito até à Líbia e à
Pentápole, onde tinha bispos sufragâneos. A escola teológica, porém, na segunda
metade do século III perdera a sua independência de outrora e via-se constrangida
a “adaptar-se às exigências práticas da vida comunitária e da ‘política’ da Igreja”.
Esta transformação tornou-se sensível com o mal-estar e a turbulência
causados pelo arianismo. Alexandre, Primaz da Igreja de Alexandria, abordou o
grave problema do arianismo pelas vertentes canônicas e política: para ele
importava primeiro submeter Ário à autoridade hierárquica; por outro lado, “outras
dissensões mais antigas relativas a um cisma local embrenhavam-se também com

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as contendas teológicas desse tempo. Efetivamente, Ário fizera parte durante algum
tempo da seita de Melécio, bastante disseminada no Egito”, o que dificultava a
resolução da situação.
É provável que Santo Atanásio tenha sido introduzido, já na sua
adolescência, neste meio de eclesiásticos preocupados com questões políticas.
Ordenado diácono, foi como arcediago e conselheiro teológico do seu bispo que o
acompanhou ao I Concílio Ecumênico em Nicéia. Falecendo pouco depois do
Concílio, em 328, Alexandre ao que parece indicara como seu sucessor o seu
arcediago. Este foi efetivamente eleito bispo, mas tendo de enfrentar desde logo
alguma contestação, pois, apesar de relativamente novo, ele não era um
desconhecido e o seu caráter forte era já temido. Era já considerado como “o
adversário encarniçado” dos arianos.
Assim que foi sagrado, Santo Atanásio interrompeu definitivamente as
conversações com os partidários de Melécio, que visavam a reunificação. A reação
destes “foi viva e a sua resistência violenta”. Estas dificuldades poderiam, porém, ter
sido ultrapassadas se a heresia se houvesse limitado ao Egito. Mas, infelizmente, já
se havia disseminado pelo mundo oriental.
“A partir desta primeira confrontação, Santo Atanásio tornou-se no homem
desta luta e esta luta tomou conta dele. Ele manteve-se, durante quarenta e cinco
anos, sempre tenaz, íntegro, enérgico, flexível nos meios e nas fórmulas, mas duma
firmeza inabalável quanto aos problemas essenciais, jamais satisfeito por alguns
sucessos parciais, jamais desencorajado por uma desfeita. No momento do seu
nascimento para os Céus o seu triunfo estava próximo. Toda a evolução posterior
da Igreja do Estado greco-bizantino é fundada na atividade deste homem, na luta
que marcou toda a sua vida, e no sucesso que ela finalmente conheceu”.
Se a pressão imperial se exerceu durante o Concílio de Nicéia, é certo que
Constantino tinha todo o interesse em que na Igreja, oficialmente protegida pelo
Estado, reinasse a paz e se estabelecesse a união. As decisões do Concílio com a
condenação de Ário e a profissão de Fé de Nicéia pareciam bastar para que ela se
concretizasse. Como os resultados esperados tardassem, o Imperador, ao arrepio
da opinião dos seus conselheiros, acabou por colocar-se do lado dos que se
opuseram ao Concílio, pensando assim favorecer a união universal da Igreja.
Finalmente, acabou por reabilitar o próprio Ário, enviando para Alexandria a ordem
de reintegrar o herege condenado. A carta imperial veio encontrar moribundo o
pontífice Alexandre, que não pode assim responder-lhe. A resposta coube então ao
seu sucessor.
“Santo Atanásio não hesitou um instante. Ele estava decidido a jamais
permitir o regresso de Ário a Alexandria”. Qualquer concessão feita ao expulso,
fosse ela qual fosse, teria sido considerada como “uma reconciliação com ele, uma
derrota teológica do Papa de Alexandria e, conseqüentemente, a vitória do seu
adversário”. Santo Atanásio declarou que, por questão de princípio, não era
possível readmitir na Igreja “gente que, em contradição com a verdade, havia
inventado uma heresia e contra a qual um Concílio havia pronunciado anátema”
(Apologia II, 59,5). Efetivamente Ário nem se arrependera nem mudara de opinião.
A recusa de Santo Atanásio de recebê-lo em Alexandria era, assim, perfeitamente
legítima. Mas ao contrário do seu antecessor na Sé alexandrina, Santo Atanásio
compreendeu desde o início o alcance da importância teológica da contenda e por
isso a sua ação não era essencialmente política mas centrada na Teologia.
Segundo Ário, “a natureza do Salvador era ‘criada’ e não de substância divina”; esta
opinião era considerada por Santo Atanásio “não só como uma solução duvidosa e
errada dum problema teológico, mas mais ainda como o fim de toda a fé cristã,
como uma traição à própria Igreja... A Igreja, segundo ele, deve visar a salvação
eterna do Homem; Ela não propõe um método que assegure o progresso interno do

98
mundo. De fato, este mundo do criado e da tão badalada ‘razão’, não pode desviar
o Homem da perdição. Para a evitar foi necessário em primeiro lugar que Cristo
viesse, o Logos que era o Logos em Si mesmo” (cf. Contra Gentes, 40); Ele
assumiu a nossa carne para ligar a nossa natureza a Deus. A Encarnação, da qual
depende inteiramente a nossa Salvação, suprimiu todas as barreiras que se haviam
levantado entre Deus e a Sua criatura... colocando ao nosso alcance a vida eterna.
Teria um “semi-Deus” poder para tal obra?
A teologia de Santo Atanásio insiste, sobretudo na salvação e deificação do
Homem, deixando em plano secundário os aspectos morais. “Ser salvo da morte e
poder entrar em comunhão de vida com Deus constitui, para ele, a idéia central do
cristianismo”. Esta teologia afasta-se em muitos pontos da doutrina de Orígenes, a
quem apelidou de “mui douto e diligente”, tendo até, em certa ocasião, chegado a
defendê-lo contra uma interpretação ariana abusiva (De Decr. 27, I; Cartas a
Serapião 4, 9). Mas no conjunto da sua obra ele menciona-o muito escassas vezes.
Pela sua profissão de fé, “assemelha-se muito mais ao antigo Santo Irineu”.
Segundo Santo Atanásio, “somente a única verdade de Cristo, verdadeiro Deus e
Salvador, faz viver a Igreja inteira. Esta verdade ensinada pela pregação da Igreja
está miraculosa e eficazmente presente nos seus Sacramentos... Quem se pode
contentar com algumas vagas doutrinas morais e com pálidas especulações sobre o
espírito, sobre o mundo e sobre Cristo - o Logos – considerado como simples
‘criatura’, esse é um ‘ariano’ e renegá-lo-ia mil vezes!”
Na apresentação das doutrinas da Igreja, Santo Atanásio afirma e repete
sempre as mesmas incessantemente as mesmas fórmulas e retoma sempre as
mesmas censuras – método este cuja monotonia se revela duma grande eficácia.
Aliás, ele não resulta duma incapacidade em conceber idéias teológicas originais.
Pelo contrário, Santo Atanásio apresenta as suas teses com bastante sagacidade e
clareza. A sua exegese escriturística, se por vezes parece um pouco artificial,
revela-se, todavia, ao mesmo tempo penetrante e profunda. Sentindo-se grego, as
grandes obras da cultura helênica não lhe inspiram, contudo, atração digna de nota;
por esta razão não será de estranhar ter ele sido, depois de Santo Irineu de Lion, o
primeiro grande teólogo de cultura helênica a pregar não somente em grego, mas
também noutra língua – no seu caso, o copta.
Neste tempo surgem novas acusações dos melecianos a Santo Atanásio,
incluindo até uma de ter assassinado um bispo afeto a estes hereges. Santo
Atanásio pode provar a sua inocência, pois seguidores seus descobriram a pretensa
“vítima” escondida num mosteiro do Alto Egito. Aliás, durante a sua vida, o Papa de
Alexandria defendeu-se, por várias vezes, de acusações – que não foram provadas
– de atos de violência e de procedimentos legais. Ele defendeu-se com vigor para
as fazer cair uma a uma. Ele sabia enfrentar as intrigas, era um condutor nato das
multidões e os seus escritos testemunham dum pensamento claro e dum espírito
superior. Aliás, os seus adversários utilizaram sempre contra ele acusações de
ordem exclusivamente política e até criminosa e, sobretudo quando detinham o
poder político, conseguiam assim abafar as vozes da oposição teológica.
De modo oposto a esta tática desonesta, Santo Atanásio fazia incidir toda a
polêmica para o plano teológico; quem quer que se lhe opusesse era apelidado de
“herege, blasfemador de Cristo, suspeito de agir com os mais baixos instintos e
considerado como inimigo da verdadeira Igreja”. Todavia, estas lutas não se
ficavam pelas palavras e o sangue corria por vezes em Alexandria; mas Santo
Atanásio não era homem que vergasse: ele nunca duvidava da legitimidade dos
seus objetivos – cria no seu direito e afirmava-o com fulgor.
Por vezes o Imperador Constantino parecia simpatizar com Santo Atanásio e
seus adeptos e aprovar a sua oposição aos arianos. Os adversários do Primaz da
Igreja de Alexandria eram, porém, personalidades influentes na corte, para além de

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manterem contato com a seita dos melecianos no Egito. Assim, tentaram fazê-lo
comparecer em tribunal. Santo Atanásio recusou-se a aceitar essa iniciativa
injustificada. Eles conseguiram então a convocação dum Concílio na cidade de Tiro.
Comparecendo aí, multiplicou com grande habilidade protestos de inocência, não
permitindo qualquer réplica aos seus acusadores; e antes que qualquer sentença
fosse pronunciada, escapou misteriosamente num barco. Voltou a aparecer em
Constantinopla e obteve uma audiência do Imperador. Mas Constantino entrou
depois em conversação com os adversários de Santo Atanásio. Estes conseguiram
convencer o Imperador de que o Papa de Alexandria controlava o mercado do trigo
egípcio e que era sua intenção suspender as remessas destinadas à capital. Então,
segundo narra o próprio Santo Atanásio, o Imperador, “de paciência esgotada, ficou
furioso, enviando o acusado, sem mais delongas, nem interrogatório, nem qualquer
processo, para o exílio no Ocidente – em Trèves”. Este foi o primeiro dos cinco
exílios que Santo Atanásio teve de suportar e que ao todo o mantiveram afastado
dezessete anos da sua Sé pontifical.
Mas Santo Atanásio sabia tirar vantagem em todas as situações em favor da
causa da Igreja, por mais adversas que elas pudessem parecer, circunstâncias
essas que lhe permitiram finalmente triunfar. Ele encontrou compreensão e apoio no
mundo ocidental. “Todo o Ocidente tomou conscientemente partido por ele: as
especulações árduas que constituíam o fundo da disputa ariana não eram
apreciadas na parte ocidental do Império. A união estreita do Pai e do Filho parecia
de tal modo evidente que se chegava a ponto de quase se não distinguir as duas
Pessoas divinas, pecado capital aos olhos dum teólogo grego formado na escola de
Orígenes”.
Dividido o Império pelos dois filhos de Constantino, Santo Atanásio foi exilado
mais duas vezes por Constâncio, que governava a parte oriental do mesmo Império.
Convocado por este Imperador para depois regressar à sua Sé, empreendeu,
depois desses dois primeiros exílios, viagens de vários meses pelo Oriente, a fim de
consolidar a sua doutrina e firmar a coesão entre os seus seguidores, sendo depois
recebido em triunfo na sua Igreja.
A situação pareceu desesperada quando Constâncio, em 353, se tornou no
único soberano do Império reunificado. Baseados os seus adversários numa carta
– falsificada, segundo afirmou Santo Atanásio – que continha a prova de relações
de conspiração do Primaz de Alexandria com um usurpador ocidental e apesar da
resistência desconsolada da população da capital egípcia, ele foi pelas forças
armadas forçado a afastar-se da sua Sé. Desta vez os próprios Sínodos ocidentais
renunciaram defender o eminente Papa alexandrino. Mas Santo Atanásio
desaparecera em tempo oportuno. Ele mantinha-se oculto na cidade organizando a
resistência dos seus seguidores. As dificuldades aumentaram ainda quando foi
nomeado um bispo para lhe suceder.
Tratado como “agitador obstinado, bispo ambicioso ou hierarca intolerante”,
não fora a sua “teimosia” e a sua coragem inabalável na proclamação da Verdade
cristã e a Igreja teria vivido numa paz sem quebras, mas amorfa e perigosa.
“Santo Atanásio aderia com todo o seu ser às afirmações teológicas que
sustentava. Na sua ótica, a Igreja, mais que uma instituição sagrada, era a
encarnação do dogma santo. Efetivamente, ele considerava como um só e mesmo
dado a Fé, o Credo e a Igreja. Por outro lado não existe profissão de fé sem fiéis e,
para estes, as exigências políticas ver-se-ão santificadas pela causa pela qual eles
combatem. Assim se explicam a paixão e a coragem intrépida com que Santo
Atanásio conduz o combate da sua vida, se mostra sempre pronto a arriscar a sua
segurança e a renunciar às honrarias mundanas, encarnando deste modo o símbolo
da Ortodoxia e da Igreja invencível”.

100
“Nos princípios fundamentais da sua teologia, Santo Atanásio permanece
sempre igual a si mesmo. Mas os métodos utilizados para afirmar evoluíram, bem
como as razões teológicas invocadas para fundamentar a sua doutrina”. De início,
ele referia-se à pessoa do santo Imperador, se bem que a devoção ao soberano
fosse mais reservada quando estavam em causa interesses graves.
Esta atitude mudou completa e radicalmente quando ele passou a relacionar-
se com Constâncio, que em nenhum aspecto estava à altura de seu pai Santo
Atanásio esteve quase permanentemente em luta com ele e demonstrando cada
vez menos consideração a esse “patrono do ateísmo... e imperador da heresia”
(Hist. Arian. 45, 4). Os procedimentos dos arianos, que “submetiam ao Imperador os
assuntos eclesiáticos e à ratificação dele as decisões sinodais, recorrendo ao
exército para as fazerem executar, todas essas manobras eram encaradas como
um crime inaudito, um rude ultraje a todo o costume canônico. Será a Igreja assunto
do Imperador?” (cf. Hist. Arian. 52, 3). Desta forma a idéia de “liberdade” da Igreja
foi pela primeira vez defendida por Santo Atanásio e seus seguidores contra um
príncipe cristão. E aqui não podemos deixar de salientar que um teólogo formado
pelas idéias de Santo Eusébio de Cesaréia nunca ousaria agir desta maneira.
Se no início do seu combate dogmático Santo Atanásio procurava
fundamentar a divindade absoluta de Cristo em argumentos objetivos e nos textos
escriturísticos – acusando de arianismo quem quer que ousasse restringir o caráter
plenamente divino do Salvador – ele manteve este método ainda algum tempo após
a excomunhão e a morte de Ário. Foi então duma forma gradual que ele constatou
as possibilidades oferecidas pelo termo “homoousios” - definição célebre que
designava no Credo de Nicéia a consubstancialidade, isto é, a unidade das Pessoas
divinas numa mesma natureza. Esta idéia, que servia muito bem a sua tese
teológica, era inaceitável para os seus adversários arianos e eusebianos. A partir de
então o ponto de referência constante passa a ser, para ele, esse santo Concílio e a
sua Profissão de Fé, considerando-o como “a única autoridade e a única origem da
Ortodoxia”. A aceitação desse fato era “condição indispensável para a paz
religiosa”. E assim ele criou e deu corpo à imagem tradicional do primeiro Concílio
Ecumênico. Doravante, o Símbolo de Nicéia, completado mais tarde pelo Concílio
de Constantinopla (381), torna-se na legítima Profissão de Fé cristã. Aquele
primeiro Concílio passa a constituir a única autoridade enunciando a autêntica
Verdade cristã. “Esta exclusividade conduzia os seus seguidores a desdenharem,
como de manobras ímpias e descosidas, da alteração constante das fórmulas pelos
seus adversários, desejosos de se adaptarem às situações sempre mutantes da
política da Igreja”. Como Santo Atanásio costumava dizer, “a Verdade foi desde há
muito revelada; bastará à Teologia, para ser considerada como uma ciência
autêntica, interpretar corretamente os dogmas e os cânones para sempre
estabelecidos pela Igreja”.
Não obstante a sua grande tenacidade na afirmação das fórmulas teológicas,
Santo Atanásio tinha em si mesmo um pensamento extremamente flexível; não
eram as fórmulas enquanto tais que estavam em causa. O importante era defender
a Fé de Nicéia. Era divulgar e consolidar a doutrina da Consubstancialidade da
natureza divina de Cristo, o Logos encarnado. Por essa razão chegou quase a
tolerar durante algum tempo a quase identificação que alguns dos seus amigos
faziam das duas Pessoas divinas. Este é mais um fato que demonstra que Santo
Atanásio não era aquele homem obstinado e inflexível que muitos pretendem fazer
dele. “Sobre a concepção de três Hipóstases unidas entre Si ao interior do único Ser
divino, ele mantinha um silêncio neutro”; talvez considerasse não ser ainda o tempo
oportuno para a afirmar e defender.
Mas havia que dar atenção à evolução política da Igreja. O Imperador
Constâncio, com o aproximar do fim da sua vida, adotou posições arianas cada vez

101
mais extremistas; quanto à política dele de “unidade a qualquer preço” ia
encontrando cada vez maiores resistências, não só de Santo Atanásio e de todos os
defensores intransigentes do Símbolo de Nicéia, como também de muitos que
outrora não se haviam definido a favor ou contra ele. Estes teriam de boa-mente
aceitado o Credo de Nicéia, mas temiam que ele conduzisse à identificação total
das Pessoas divinas. Em resposta e contra esta interpretação, Santo Atanásio
afirmou inequivocamente “reconhecer em termos claros e formais a doutrina das
três Hipóstases equivalentes, desde que se não pusesse em causa a união
indissolúvel ao interior do Ser divino”. Desta forma ele preparou o caminho para o
restabelecimento da paz com os seus antigos adversários, concretizada num
Concílio reunido em Alexandria, em 362. Entretanto, a situação política mudara uma
vez mais: “o novel Imperador Juliano, o Apóstata, permitira o regresso de todos os
exilados; ele parecia resolvido a desinteressar-se da Igreja e a abandoná-la
finalmente às suas disputas internas. A antiga política de oposição fracassara e o
caminho estava aberto para um reagrupamento das partes. Contudo, a
reconciliação não se fez tão rapidamente como Santo Atanásio o esperava: mas a
partida tinha sido dada e o acordo realizado anos mais tarde resulta efetivamente da
orientação tomada em 362”.
O Imperador, porém, mudou novamente de atitude. Juliano procurou
reanimar o antigo culto pagão, tendo em toda a parte esbarrado com a resistência
da Igreja em geral e de Santo Atanásio em especial, que pela sua parte não admitia
qualquer concessão ao “sonhador romântico” que se encontrava no trono imperial.
Em conseqüência foi forçado a deixar, uma vez mais, a sua Sé pontifical. Mas um
incidente deste gênero já não o impressionava muito. Ele consolou a multidão
desesperada que o rodeava para se despedir dele com as seguintes palavras: “Não
vos inquieteis, irmãos, não é mais que uma pequena nuvem que em breve passará”
(Rufino, Hist. Ecles. I, 34). E não se enganou. Outra vez ainda, no tempo do
sucessor ariano de Juliano, Santo Atanásio teve uma vez mais de seguir o caminho
do exílio. Então, depois de regressar, os governantes talvez tivessem compreendido
finalmente que mais valia deixar em paz o Papa de Alexandria, deixando-lhe
liberdade de ação no Egito, do que deixar o seu povo fiel em permanente
contestação.
Quando ele nasceu para os Céus, em 373, a sua doutrina não prevalecera
ainda no conjunto do Império; mas alguns anos mais tarde, o novel Imperador
Teodósio, após a realização do II Concílio Ecumênico, concretizou esta evolução e
proclamou a Fé de Nicéia/Constantinopla como norma obrigatória para todos os
seus súditos. Assim foi cumprida a vontade de todos aqueles que, como Santo
Atanásio, empenharam as suas vidas nesse triunfo da Fé Ortodoxa.
Se aos olhos dos seus contemporâneos, inclusive dos pagãos, Santo
Atanásio era já tido como uma personagem com um saber superior e algo
“sobrenatural”, os cristãos das épocas posteriores viram nele o incomparável “pilar
da Igreja” pelo qual Deus, num período crítico, havia protegido e conservado a Fé
ortodoxa (S. Gregório de Nazianzo, Discursos 2, 126). Quanto às suas obras
literárias, eram muito apreciadas e estavam muito divulgadas. Aliás, muitos autores
serviram-se da autoridade de Santo Atanásio para fazer circular com o nome dele
obras apócrifas.
Mas a importância histórica de Santo Atanásio revela-se mais na atividade
infatigável duma vida de agitação e de esforços para defender a pureza da Fé do
que nos seus próprios escritos. Numa época decisiva da História da Igreja em que
todas as antigas noções haviam sido modificadas para darem o lugar a uma Igreja
imperial, ele soube manter o caráter próprio e a liberdade interior do cristianismo
face às autoridades governamentais. “Se a Fé em Cristo passou a ser vivida como
Fé em Deus, essencialmente diferente de todas as formas pagãs, filosóficas ou

102
abstratas da crença, a muito do seu trabalho em Igreja pode ser atribuída”. Segundo
a opinião de Harnack, “sem Santo Atanásio a Igreja teria provavelmente caído nas
mãos de filósofos”, como Eusébio; “a sua doutrina teria sido adulterada ou
transformada numa lei do serviço imperial destinada ao culto da Divindade
resplandecente”. Santo Atanásio terá, pois, evitado que a Igreja fosse “absorvida”
num universo tão-somente cultural ou político. Ela começa a ser vivida como
instituição de salvação recuperando o sentido verdadeiro da sua missão.
Santo Atanásio, como antes dele Santo Irineu, sente-se mais como bispo em
Igreja do que como “filósofo cristão”. Como tal procura captar globalmente o povo
cristão e faz apelo à piedade deste. Ele não pretende restringir como, por exemplo,
Clemente, ou até Orígenes, a “perfeição” espiritual a um círculo fechado de
intelectuais refinados ou de gnósticos. Pelo contrário, ele volta-se para as
comunidades de virgens que existiam ao interior da Igreja e partilha com o povo
cristão a sua inclinação para o maravilhoso. Ele explica a esse povo – na sua
própria língua, o copta – em termos acessíveis, as idéias de base da sua teologia, o
que contribuiu também para o seu triunfo final. Ele pode, assim, “captar o despertar
dum movimento religioso oriundo das profundezas da alma egípcia e orientá-lo no
sentido da piedade universal da Igreja. E esta não foi sem dúvida uma das suas
menores obras”. Ao contatar com o monaquismo, Santo Atanásio soube também
dar-lhe a expressão e o lugar que lhe cabia em Igreja.
O monaquismo iniciara-se já no Egito na segunda metade do século III e
tivera um rápido incremento na população primitiva recém-convertida das planícies.
Seguindo com fervor os antigos mandamentos ascéticos, muitos neófitos deixaram
as comunidades para os viverem inteiramente em pleno deserto. Santo António, a
quem Santo Atanásio conheceu pessoalmente, era uma das figuras eminentes entre
os grandes ascetas. Santo Atanásio fez dele o “iniciador” e protótipo (modelo) dos
anacoretas, suscitando, no livro em que descreve a sua vida, a admiração e a
emulação pelo “Pai Antônio”.
Na narrativa propriamente dita do pequeno livro, e mantendo-se fiel à
realidade, Santo Atanásio inspira-se numa intenção de apologia. Santo Antônio é
apresentado com o seu caráter natural e simples, mas que ao mesmo tempo
encarna “todas as virtudes que Cristo, pelo poder da Sua Graça, concede tão-
somente aos Seus fiéis”. E mais, o Santo asceta consegue ainda despertar, como
representante do poder espiritual, sentimentos de veneração, mesmo perante os
pagãos sábios e os arianos heréticos, levando à conversão de muitos deles à Igreja
de Cristo. Fatores convincentes são os gestos miraculosos que por ele são
realizados e as suas iluminações espirituais. Desta maneira o ideal ascético surge
como um gênero de vida extremamente aliciante para todo o cristão, instruído ou
não, cuja vocação a ele o atraia. Esta vida é fundada no próprio Cristo, segundo a
doutrina ortodoxa da Igreja. “Santo Atanásio conseguiu, assim, ligar o monaquismo
à Fé de Nicéia e integrá-los juntamente nas profundezas do sentimento popular e da
consciência coletiva da Igreja”.
Os teólogos que seguiram as pisadas de Santo Atanásio, sobretudo os de
cultura grega, “nunca mais romperam a unidade que ele estabelecera entre as
exigências dogmáticas, ascéticas e eclesiásticas. No século IV a sua concepção
domina em todo o mundo cristão”. Santo Atanásio fora, acima de tudo, teólogo e
pastor e, por conseguinte, desempenhara também uma ação política. Com ele e a
sua geração, nova época surge no seio da Igreja no Oriente.
Uma palavra final sobre a obra literária do Santo Papa alexandrino: a sua
mais importante obra é sem dúvida o tratado “Da Encarnação do Verbo de Deus”.
Nele demonstra, utilizando a Sagrada Escritura e toda a cultura humanística do seu
tempo, que Cristo é verdadeiramente o Verbo encarnado: isto é, que o Verbo era
Deus: não descurando de afirmar que Jesus, o Messias, era também Filho da

103
natureza humana da Santíssima Virgem Maria. A sua célebre frase “Deus fez-Se
homem para que o homem se tornasse deus” sintetiza admiravelmente a sua
doutrina. Este tratado sobre a Encarnação do Verbo permanece até aos nossos dias
como a melhor e mais completa obra sobre a Encarnação.

SÃO BASÍLIO, O GRANDE. ARCEBISPO DE CESARÉIA, METROPOLITA DA


CAPADÓCIA (c.330-379)

São Basílio nasceu por volta do ano de 330, cerca de dez anos antes do
falecimento do historiador eclesiástico Eusébio de Cesaréia (na Palestina), no
tempo em que Santo Atanásio era sagrado bispo. A Igreja em que cresceu era
então reconhecida e favorecida pelo Estado.
São Basílio não era oriundo do meio eclesiástico e o seu caráter não fora
essencialmente forjado nas lutas políticas da Igreja, como ocorrera com Santo
Atanásio. O seu sentido de honra e de liberdade de espírito vêm-lhe da sua família
– uma santa família, que se distinguiu pelo zelo na Fé: os avós, os pais, tios,
irmãos, irmãs, ao todo talvez mais de vinte, foram todos eles canonizados (ou
melhor dizendo, glorificados) pela Igreja – entre eles os mais conhecidos são sua
avó Santa Macrina a Anciã, o pai (também do mesmo nome), São Basílio (que foi
inicialmente reitor e depois também bispo), a mãe, Santa Emília e os irmãos, São
Pedro Bispo de Sebástia, São Gregório Bispo de Nissa e Santa Macrina a Jovem.
A Capadócia onde nascera, província de antigas tradições que se sabe ter
sido dominada pelos hititas e depois pelos persas, já havia sido evangeliizada. São
Gregório, o Taumaturgo, discípulo de Orígenes disseminara lá o cristianismo,
naturalmente acompanhado da influência cultural grega. Os avós de São Basílio
“eram já cristãos e haviam até sido forçados a fugir, durante algum tempo, das
últimas perseguições de Maximino. Sua irmã Santa Macrina viria a precedê-lo na
consagração inteira à vida ascética, acompanhada mais tarde pela mãe, Santa
Emília” e pelas irmãs.
Com cerca de quinze anos, honrando a vontade de seu pai, começou os
estudos de todo o ciclo das ciências clássicas e filosóficas em Cesaréia da
Capadócia, para os continuar em Constantinopla. Aos vinte e três anos mudou-se
para Atenas, a fim de completar a sua formação. São Gregório de Nazianzo, com o
qual se ligou numa amizade que durou toda a vida, testemunha do comportamento
íntegro e puro do seu companheiro afirmando que “no seu entusiasmo pela cultura,
um e outro jamais conheceram outro caminho senão o do auditório e o da igreja”.
São Basílio adquiriu durante estes anos uma vasta cultura, sendo
considerado como um dos homens mais sábios do seu tempo, dentro e fora da
Igreja, embora ele não se considerasse um erudito como o seu amigo São Gregório.
“A orientação que ele dá, nos estudos, aos seus sobrinhos, testemunha do valor
que ele atribui aos grandes clássicos; mas importará escolher bem os autores. A
importância deles não é tanto pela sua qualidade estética ou domínio da forma, mas
mais pelo fato de influenciarem – e muito – na educação moral do cristão”.
De regresso a casa, em breve e resolutamente recusou todas as solicitações
que se lhe ofereciam, para seguir o seu autêntico ideal cristão, fazendo-se então
batizar. É natural que as tradições familiares, as ardentes exortações de sua irmã
Santa Macrina (que já abraçara a vida ascética) e as impressões sentidas quando
da viagem que efetuou junto dos anacoretas do Egito e outros ascetas célebres da
Síria, Palestina e Mesopotâmia, tenham pesado nessa decisão.
Fez-se discípulo dum homem nessa época venerado e mais tarde
desprezado: Eustáquio de Sebástia, na Armênia. Muito do que ele aprendeu sobre a
vida monástica poderá remontar a esse asceta. Mais tarde os dois homens
separaram-se por razões de Fé: Eustáquio opôs-se à Fé de Nicéia, o que lhe valeu

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de ser acusado de arianismo. E São Basílio optou por essa mesma Fé autêntica
“em detrimento da velha amizade com ele e da vivência do ideal ascético que
partilhavam”. Para São Basílio “o cristianismo não podia ser vivido sem consistência
dogmática”.
Para melhor podermos conhecer São Basílio devemos começar por ver nele
o monge. “Ele é asceta de corpo e alma. A ascese é o seu elemento. É nela que o
seu espírito trabalha, é nela que ele se move e vive. Ele é asceta até ao último
limite, tanto quanto é possível sê-lo sem trair o cristianismo”. Aliás, São Basílio
nunca criou uma oposição exclusiva entre a comunidade monástica e a comunidade
fiel e nele a ascese não é motivada por uma visão dualista, como para os
marcionistas e os maniqueus.
A fim de realizar na plenitude o seu ideal, São Basílio “retirou-se para os
domínios rurais que a sua família possuía nas margens do rio Íris, onde sua mãe e
suas irmãs habitavam já há algum tempo numa piedosa solidão. Ali se reuniu com
alguns companheiros animados do mesmo espírito, que se haviam submetido à sua
direção”. São Basílio compôs então para a comunidade as chamadas Regras
monásticas, cujas prescrições são fundamentadas em inúmeras citações
escriturísticas, “e que hão-de plasmar o cristão perfeito, a saber, o monge”. Regras
estas que se perpetuaram até hoje nas comunidades monásticas da Igreja Ortodoxa
e que inspiraram no Ocidente iniciadores da mesma vida ascética como São
Cassiano e São Bento. Assim, basicamente, a regra beneditina é a mesma que a
seguida na Santa Igreja Ortodoxa.
Nestas Regras deverá realçar-se a obediência absoluta, o rigor da disciplina
e a aquisição da humildade como um fim salutar em todas as coisas. Qualquer
“regresso ao mundo” está fora de causa. As orações das horas monásticas marcam
o ritmo da vida comunitária. Um espaço importante é dado às reuniões entre os
monges: o pai espiritual de cada comunidade desempenha já o seu papel
fundamental. Existe também um espaço para o modesto trabalho manual e para a
leitura – sobretudo dos Evangelhos e das Epístolas de São Paulo. “A razão e a
vontade livre são as duas vertentes distintivas da pessoa humana, imagem de
Deus, dotada da faculdade de conhecer e da capacidade de amar. ‘Conhece-te a ti
mesmo’e ‘cuida de ti mesmo’ são as mais importantes regras de vida no esforço
para se atingir a perfeição. O cristão, e ainda mais o monge, deve observar todos os
mandamentos de Deus sem negligenciar nenhum. E está em condição de observá-
los”.
A importância imensa desempenhada por São Basílio não será tanto por ele
ter fundado a vida monástica cenobítica (comunitária) – pois ela havia já sido
originada por homens como São Pacômio ou São Macário do Egito – mas mais pelo
fato de lhe ter proporcionado uma organização, uma disciplina normativa, uma
Regra servindo de apoio à direção do abade de cada mosteiro. Contudo, o espírito e
a atmosfera comunitária não deverão ser inteiramente determinados pela mesma
Regra, de forma a limitar e espartilhar o monge, mas pelo contrário, deverão
proporcionar-lhe um espírito de liberdade interior e espiritual.
Desfrutando algum tempo de paz no seu mosteiro, São Basílio é forçado a
uma intervenção ativa na vida pública da Igreja. Ora nesta época o poder imperial
estava todo do lado arianista sendo, portanto a sua política anti-nicena. Depois de
em 360 ter acompanhado Eustáquio a Constantinopla, onde se realizaram colóquios
sobre o Dogma e de se ter separado dele pelas razões já apontadas, dois anos
mais tarde São Basílio dá assistência espiritual ao seu próprio bispo que, culpado
de ter traído a Fé de Nicéia, se arrepende da sua falta no seu leito de morte. O novo
bispo, Santo Eusébio de Cesaréia (na Capadócia), teólogo e escritor eclesiástico
(não se confunda com Santo Eusébio de Cesaréia, na Palestina, historiador

105
eclesiástico), conseguiu trazer São Basílio exclusivamente para o serviço da Igreja:
em 364 ele foi ordenado presbítero.
Mais tarde, ele assumiu o papel de seu coadjutor, com o encargo da
administração duma vasta diocese. Na sua ação pastoral incluiu-se a exortação a
alguns clérigos para exercerem com maior zelo o seu múnus, sendo ele o primeiro a
admitir o erro quando dialogava com os bispos. Assim conciliou da melhor forma as
exigências objetivas da sua função com a sua humildade pessoal, não que o
necessitasse de fazer para si mesmo – porque era naturalmente humilde – mas por
ação pedagógica: porque tinha de dar o exemplo enquanto cristão e enquanto
monge.
A ação de São Basílio estendeu-se a todo um conjunto de instituições de
beneficência, que ele criou com os bens da sua família. “Agrupados em torno do
mosteiro e da igreja, elevavam-se refúgios, asilos, hospitais, leprosarias, toda uma
nova cidade” (São Gregório de Nazianzo, Discursos 43, 63) animada do amor ao
próximo. Por vezes, imitada e muito admirada esta fundação – como não poderia
deixar de ser quando se faz algo construtivo – foi também criticada com acusações
a que São Basílio não concedeu o menor crédito. Aliás, São Basílio não permitia à
comunidade laica um cristianismo tão-somente passivo. Nas suas pregações
abundam as exortações e exemplos práticos para estimular todos os fiéis à caridade
e à virtude. Mais uma vez ele deu o exemplo durante a grande fome de 368, em
que, depois de pregar contra os oportunistas e os ricos indiferentes, organizou uma
sopa dos pobres aberta a todos, incluindo os estrangeiros, os pagãos e os judeus.
Todavia, não seria correto considerar-se São Basílio como um “eclesiástico”
ou, pior ainda, um “burocrata”. Na sua ação pastoral ele manifesta-se
sucessivamente como pai espiritual e teólogo. Ele utilizou, na sua eloqüência
espiritual, as regras de retórica, exemplo que foi seguido por muitos outros
pregadores. Para além do estilo majestoso e ornamentado, os sermões de São
Basílio denotam uma energia cativante e também uma simplicidade, clareza e
precisão de cada tema desenvolvido. Quase todos eles estão ligados aos textos
escriturísticos. As suas homilias teológicas não instruem de forma teórica sobre o
dogma; elas incidem, sobretudo na luta teológica que, na época, perturbava a
Igreja, onde São Basílio viria a desempenhar papel determinante, a Capadócia
tornou-se gradualmente numa espécie de fortaleza da Igreja Ortodoxa que, no
entanto, era atacada por todas as partes e dum modo ininterrupto.
O governo imperial, continuando a exercer uma política adversa à Igreja,
levantava inúmeras dificuldades ao novo Metropolita de Cesaréia. Sabendo ele que,
para reduzirem a sua força, as autoridades oficiais projetavam a divisão
administrativa da província da Capadócia (o que implicaria a sua perda de jurisdição
para cerca de metade do território), São Basílio não se deixou, porém, intimidar. Em
viagem pastoral visitou e confortou os clérigos e fiéis das comunidades locais e
reforçou a sua Igreja para manter uma frente poderosa contra os adversários da
Ortodoxia, criando novas dioceses e sagrando bispos, homens em quem depositava
a sua confiança, como o seu irmão São Gregório, Bispo de Nissa, o seu amigo São
Gregório, Bispo de Sázima (perto de Nazianzo) e muitos outros. Além disso,
manteve uma vasta correspondência com todas as personalidades influentes. E
assim a Ortodoxia nicena continuou a ganhar terreno na Capadócia.
O sucesso obtido por São Basílio é ainda mais notável pelo fato de ele não
se ter podido apoiar num poder definitivamente conseguido nem, como Santo
Atanásio, em seguidores duma fidelidade a toda a prova.
Vejamos agora alguns traços da sua linha teológica (que seguiu fielmente as
doutrinas de Nicéia).
Face aos arianos São Basílio sabe encontrar-se perante uma oposição
elementar da Fé. “Cristo, afirma ele, não pode ser uma criatura porque, por Ele, nós

106
podemos ter a nossa parte na Salvação. Ele era verdadeiramente Filho de Deus
antes que o tempo existisse e Deus por natureza. Ele desceu ainda à nossa pobre
humanidade para livrar do poder da morte e do demônio aqueles que estavam
perdidos e dar-lhes a liberdade em que repousa a nova vida cristã, transfigurada
pela Graça”.
Contra Eunômio, um dos heresiarcas arianos que, sobre o conhecimento
natural de Deus pretendia encontrar a essência de Deus unicamente na
“inacessibilidade”, afirmando ser-nos possível apreendê-la, São Basílio declara:
“Somente pelas Suas obras podemos conhecer a Deus; mas mesmo que Deus
tivesse manifestado em Suas obras todo o Seu poder, somente poderíamos
apreender este poder, sendo manifestamente impossível para nós entender
adequadamente, por meio delas, a Sua essência divina. Das coisas sensíveis
deduzimos, pela razão, os diversos atributos divinos... Nem mesmo na eternidade
poderemos compreender Deus de modo total; de contrário, Deus seria finito. A
inacessibilidade é tão-somente um dos atributos divinos e mesmo um atributo pela
negação, não exprimindo substancialmente, de modo algum, a essência divina”.
(Eun. 1, 5.11; ep. 235-5).
Passando, a abordar o dogma da Trindade, que ele considera ser “a essência
da religião cristã”, ele defende com uma convicção cada vez maior em Deus a vida
trinitária, começando, conscienciosa e sistematicamente, por dar uma definição das
relações existentes no próprio seio de Deus. Seguidamente passa ao
desenvolvimento da Teologia do Espírito Santo, afirmando que a Divindade da
Terceira Pessoa é já anunciada no Antigo Testamento, testemunhada pelo Filho,
Segunda Pessoa, e confirmada pela pregação apostólica, nomeadamente os
escritos de São Paulo e de São Pedro (II epístola).
Esta Teologia da Terceira Pessoa veio finalmente dar uma melhor definição e
precisão à concepção das Três Hipóstases unidas em Deus (no Pai). Há um só
Deus porque há um Pai, princípio de união das outras Pessoas – como os Padres
da Igreja e a Igreja Ortodoxa sempre o afirmaram – e não porque o princípio de
união em Deus esteja na natureza ou na essência – como afirma a Igreja Romana.
Apesar de alguns autores considerarem Santo Atanásio e São Basílio como
os primeiros pregadores de uma teologia do Espírito Santo (o primeiro de uma
forma mais velada e o segundo mais claramente), que viria a preparar a definição
do Concílio de Constantinopla devemos, todavia lembrar que essa teologia foi
sendo gradualmente divulgada e proclamada pelos Padres das Igrejas anteriores.
Assim, por exemplo, Santo Irineu de Lion (cerca de 150 anos antes de Santo
Atanásio) defendeu a existência de três graus de participação ao Espírito Santo,
doutrina esta confirmada mais tarde por Padres como São Máximo, o Confessor
(século VII) – que lhe acrescentou um quarto grau – e outros místicos, até
chegarmos a São Serafim de Sarov (século XIX): esse quarto grau era nem mais
nem menos que a aquisição do Espírito Santo, a que este último não deixava de
exortar os cristãos.
Se bem que São Basílio tenha ensinado resolutamente em seus escritos a
divindade e consubstancialidade do Espírito Santo, não o exprimiu, porém, nos seus
discursos com igual precisão. Disso foi censurado por alguns bispos zelosos, mas
São Gregório de Nazianzo defendeu o seu amigo dizendo que ele tivera boas
razões para agir com prudência para não exaltar os arianos, então muito poderosos.
De contrário teria sido exilado e a sua Sé Metropolitana ficaria perdida para a
Ortodoxia. Teria sido muito arriscado, por assim dizer, pretender impor aos homens
o fardo mais pesado da divindade do Espírito Santo, quando a divindade do Filho
não era ainda universalmente admitida. Já o próprio Santo Atanásio demonstrara
reservas semelhantes.

107
Outra explicação será a do alargamento a outras frentes da política
eclesiástica de São Basílio, que “fazia todos os esforços para atrair à sua causa os
‘pneumatômacos’, que se recusavam a aceitar a divindade do Espírito Santo por ela
não estar incluída explicitamente no Credo de Nicéia, para além de procurar retomar
o diálogo com outros teólogos que professavam idéias originais acerca de alguns
dogmas”.
Os seus esforços foram freqüentemente bem sucedidos; mas “uma tal atitude
liberal, quer do ponto de vista teológico quer eclesial, nada tinha de confortável para
um homem obrigado a impor-se às facções em contenda”.
Uma outra luta que São Basílio teve de enfrentar foi a das intermináveis
disputas e polêmicas, que levavam para o seio da Igreja o grave perigo de
decadência. Pior teria sido alimentar essas discussões, não sendo, pois, de
estranhar os elogios que ele prodiga à “simplicidade duma fé sã, incentivando os
fiéis à reunião espiritual e à adoração do mistério divino”. Como ele afirma,
“reconhece-se Deus observando os Seus mandamentos, confiando no Bom Pastor
que deu a vida pelas Suas ovelhas e não ao colocar-se múltiplas questões relativas
ao Além, especulando sobre assuntos que escapam ao nosso entendimento” (Hom.
in Mam. Mart. 4). São Basílio não se propõe, todavia, a “pôr de parte toda a teologia
e contentar-se com a piedade ‘prática’ dos fiéis. Ele deseja encontrar uma boa base
de partida para uma reflexão teológica fértil, susceptível de reunir num esforço
comum todos os teólogos sinceros e conscientes do seu dever”.
São Basílio não pretendia limitar a unidade da sua doutrina à Metrópole de
Cesaréia. Ele exigia de cada bispo, de todas as Igrejas, uma atitude ecumênica.
Pela sua parte mantinha uma correspondência organizada e eficaz com todo o
mundo cristão.
Na verdade, o próprio São Basílio não chegaria a ver o triunfo da sua
teologia. Ele estava precocemente envelhecido. Há muito tempo doente e
debilitado, ele nasceu para os Céus em 379, com cerca de 50 anos de idade. Só
dois anos mais tarde terá lugar o II Concílio Ecumênico, em Constantinopla,
convocado pelo Imperador Teodósio, o Grande (com o qual o cristianismo passa a
ser considerado Religião oficial do Estado). Os Padres Conciliares, fundando-se
então nas concepções teológicas que passavam por Santo Atanásio e São Basílio,
“regularam então os assuntos da Igreja, mantendo a linha do Concílio de Nicéia”.
O Imperador, que de início dirigia a sua política relativa à Igreja passando
pelas Sés de Roma e Alexandria, rapidamente se apercebeu das vantagens duma
abertura de horizontes e, “como São Basílio o havia desejado, abriu então as portas
da Igreja imperial renovada a todos os que se definissem pela Fé de Nicéia”. Mas,
“esta regra, imposta pelo Estado, é inspirada por razões táticas. No momento
decisivo, a política prevalece, para ele, sobre a teologia. Se São Basílio estivesse
vivo muitas coisas, orientadas de modo diferente, certamente teriam evoluído de
forma mais feliz”.
A influência do grande Arcebispo de Cesaréia estendeu-se também ao plano
litúrgico. A Sagrada Liturgia que tem o seu nome foi por ele elaborada seguindo o
modelo da Liturgia então existente. Ela denota uma riqueza teológica incomparável
e apóia-se, como não podia deixar de ser, num sem-número de citações
escriturísticas. Atualmente é ainda celebrada em toda a Igreja Ortodoxa,
particularmente nos Domingos da Grande Quaresma, num máximo de dez vezes
por ano.
Na obra literária do célebre Metropolita da Capadócia encontramos além de
cartas, de que ele largamente se serviu e que abarcam gêneros múltiplos, os textos
dogmáticos – como o Tratado Sobre o Espírito Santo (do ano 365), os tratados de
Ascética e Educação, escritos exegéticos e comentários escriturísticos, para além

108
de outras homilias e sermões. Infelizmente, uma boa parte de sua obra está
perdida.
“A verdadeira grandeza deste homem torna-se-nos perceptível quando o
situamos no seu tempo, em plena luta, no papel exato que desempenhava”. Se na
sua ação de política eclesial ele só não iguale a força inabalável de Santo Atanásio
e como teólogo está um pouco aquém da profundidade e universalidade do seu
irmão mais novo, São Gregório de Nissa, como monge ele não possui ainda o
refinamento espiritual de místicos mais tardios. Mas “a sua verdadeira grandeza de
homem da Igreja revela-se também pela sua sinceridade e devotamento ao dever
do momento. A política eclesial foi para ele ainda mais árdua nem tanto por ele se
ter afirmado como dos mais inteligentes e perspicazes eclesiásticos do seu tempo,
mas mais pela sua profundidade e lealdade. Se a Igreja de raiz nicena, tão
rapidamente edificada e apoiada pelo Estado, não se contentou em aproveitar-se
dos seus triunfos fáceis, mas conservou no seu seio uma teologia autêntica e viva,
assim como a liberdade espiritual”, o mérito é atribuído à ação de homens
iluminados pela Graça de Deus como Santo Atanásio e São Basílio.
No ano de 368 São Basílio pronunciou o elogio fúnebre do Bispo Musónios
de Neocesaréia. Nele esboçou com grande vigor retórico o retrato de um bispo,
grande líder do seu tempo, cujos traços se encaixam perfeitamente nele mesmo:
“Haverá, na vida deste homem, um só aspecto que se deva calar ou
esquecer? Não os poderei mencionar todos um por um e por outro lado temo que
uma evocação fragmentária satisfaça mal as exigências da verdade. Um homem
que pelos seus talentos e faculdades superava todos os seus contemporâneos,
passou entre nós; sustento e amparo da sua pátria, ornamento da sua comunidade,
pilar e fortaleza da verdade, firma apoio da fé em Cristo, socorro fiel dos seus
amigos, resistência invencível aos seus inimigos, guardião da doutrina dos Padres,
adversário das vãs mudanças. Na sua pessoa manifestou-se a antiga figura da
Igreja. Com a força da sua autoridade organizou a vida da sua comunidade segundo
o modelo sagrado da de outrora. Aqueles que tiveram a alegria de viver com ele
podiam crer haver vivido com um daqueles homens que, há duzentos anos ou
pouco mais, quais estrelas, iluminaram o mundo” (Ep. 28, I, ad. Eccl. Neocaes.).

SÃO GREGÓRIO DE NAZIANZO, O TEÓLOGO ARCEBISPO DE


CONSTANTINOPLA (c.330 – c.390)

São Gregório nasceu em Arianzo, na propriedade rural de seus pais, situada


perto de Nazianzo, por volta do ano de 330. Ele provém, como São Basílio, do
mesmo meio social e intelectual: a “abastada aristocracia da Capadócia, que dava a
toda a região os seus bispos e que, pela vivência da fé cristã, está na origem do
renascimento religioso e cultural deste antigo território”.
A família de São Gregório é igualmente cristã. Seu pai, também Gregório, a
instâncias de sua mãe, Nona, uma piedosa e fervorosa cristã, foi convertido ao
cristianismo, sendo mais tarde sagrado bispo de Nazianzo.
São Gregório foi, como ele próprio relata, “o filho tardio dum casamento até
então estéril, sendo oferecido e consagrado pela mãe ao Senhor” (Discursos I, 77).
“A educação religiosa recebida deu os seus frutos numa natureza talentosa. Os
ideais do ‘mundo’ não lhe ofereciam o menor atrativo. Ele queria oferecer-se por
inteiro a Cristo Salvador, e achava na Palavra de Deus um saber mais doce que o
mel”.
“Mas o ‘mundo’ em que crescia não era já um mundo pagão”. Desejoso de
instruir-se, percorreu sucessivamente as escolas de Cesaréia da Palestina, de
Alexandria e, sobretudo de Atenas. A esta última cidade chegou pouco tempo

109
depois São Basílio, futuro companheiro de estudos, com o qual estabeleceu uma
profunda e santa amizade. Os estudos foram duma importância bem mais relevante
para São Gregório que para o seu amigo, que apesar de ter vindo a adquirir uma
vasta cultura, não se considerava um erudito. São Gregório, pelo contrário, tinha
uma sensibilidade mais voltada para a vida intelectual, a investigação, a poesia e a
arte, mas na condição de os valores morais e estéticos da cultura clássica serem
devidamente “filtrados” do veneno do paganismo, e de saber também pôr toda essa
cultura ao serviço de uma vida autenticamente cristã.
Com o entusiasmo e a segurança de um orador nato, e servindo-se dos seus
vastos conhecimentos literários – que se estendiam à filosofia, embora ele não se
considerasse neste domínio um pensador original – São Gregório fez-se então
reitor. Os seus numerosos discursos e sermões não são ainda homilias
escriturísticas. Tratam-se antes de orações e elogios fúnebres e ainda de discursos
ou alocuções dedicados a acontecimentos da vida da Igreja ou à sua vida pessoal.
Eles exprimem-se segundo o estilo retórico do seu tempo, desenvolvido com rigor,
com brilho e com raro virtuosismo. Os seus discursos eram concebidos como
homilias edificantes. Eles referem-se aos exemplos e palavras da Sagrada Escritura
e tudo neles é considerado “à luz da eternidade”. E – como ainda hoje nas homilias
dos sacerdotes ortodoxos – muitos deles são concluídos por uma doxologia à
Santíssima Trindade.
Nesses Discursos Teológicos – que constituem a sua mais importante obra
literária na área da Teologia – depois de combater a heresia ariana, passa a
abordar o dogma ortodoxo da Ssma. Trindade, que é já para ele o fulcro de todo o
cristianismo. Com fórmulas elegantes e equilibradas, ele professa sem reticências a
Consubstancialidade das Três Hipóstases divinas, igualmente semelhantes: “A
Unidade é adorada na Trindade e a Trindade é compreendida na Unidade. É
necessário ser adorada por inteiro, pois Ela é inteiramente poder real, participando
no mesmo trono e na mesma glória, transcendendo o mundo, para além dos
tempos, incriada, invisível. Ela não pode ser tocada nem captada: Ela é tão-
somente conhecida de Si mesma, segundo a Sua ordem interna, e para nós é
objeto de adoração” (Discursos 6, 22). Suprimir a menor parcela que seja à
Trindade, equivale, no meu ponto de vista, a destruí-La ou suprimi-La dos nossos
corações, como se alguém partisse à descoberta do conhecimento de Deus, de
cabeça descoberta” (id.6, 11). São Gregório insiste, com maior ênfase que São
Basílio, na natureza divina do Espírito Santo. Para o futuro bispo de Sázima,
igualmente formado nas concepções origenistas, “o mundo do espiritual e do
Espírito Santo constitui o domínio essencial de todo o cristianismo. E o Espírito
Santo de Deus libertará o nosso espírito dos laços terrestres; porque o fim último da
vida cristã é atingir a total divinização do ser”.
São Gregório opôs-se com grande amargura e intensidade ao Imperador
Juliano, o Apóstata. O fato desse soberano ter decretado a interdição aos cristãos
dos estudos clássicos atingia-o não só pessoalmente como punha em causa a sua
tentativa de encontrar o equilíbrio entre os valores culturais clássicos e a fé cristã.
São Gregório protestou quando quiseram opor uma à outra as duas tradições. Se
bem que ele próprio tenha afirmado que, no fundo, a sabedoria pagã lhe interessava
muito pouco, o certo é que, para ele, a retórica constitui uma “arma da virtude”
(Discursos 4, 30).
Assim que São Basílio terminou os estudos e se retirou de Atenas, São
Gregório decidiu devotar-se ao recolhimento “contemplativo” e à “filosofia”
monástica. Ele queria “penetrar no silêncio, dialogar consigo próprio e com Deus e
viver a vida do lado de lá das coisas visíveis... descobrir em si mesmo as
inspirações divinas, não ofuscadas pelas impressões enganadoras deste mundo, a
fim de se tornar incessantemente num espelho sem mancha de Deus e das

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realidades divinas. Queria também... pressentir pela esperança a alegria da
existência futura, estar na companhia dos anjos, na terra como fora dela, e pelo
espírito habitar já no Céu” (Discursos 2, 7).
A realidade, porém, é que nesta época São Gregório não passou das
intenções, não ousando contrariar o desejo de seus pais de ficar junto deles em
Nazianzo. Foi então batizado e finalmente ordenado ao presbiterado pelo seu
próprio pai. É certo que ele foi acendendo, mas insatisfeito, já depois de ordenado
presbítero, ausentou-se da catedral, retirando-se para a comunidade monástica
fundada por São Basílio, a fim de reencontrar a solidão e obter segurança junto do
seu amigo. De volta e “em compensação” compôs pelo menos três “pomposos
discursos”. A sua insegurança, segundo ele afirma, seria devido ao seu “imenso
respeito pelo sacerdócio, perante o qual também acontece vacilarem os mais
religiosos” (Discursos 2).
Pouco tempo depois o cenário das confrontações teológicas dessa época
estende-se também a Nazianzo. “O pai de São Gregório tivera a fraqueza de
assinar uma pretensa fórmula de paz, de tendência arianista, há algum tempo
divulgada, renegando assim a Fé de Nicéia”. Alguns monges introduziram no seio
da comunidade a contestação. São Gregório, porém, “conseguiu obter de seu pai
uma nova declaração, desta vez ortodoxa, que apaziguou assim os ânimos, o que
ele se apressou a celebrar com um discurso”. No fundo, São Gregório afirma não
apreciar as disputas teológicas, especialmente por quem não tem preparação para
as abordar com competência. Ele procura apaziguar a comunidade e aconselha “a
longanimidade em vez da precipitação” (Discursos 6, 20); “cada qual deverá
preocupar-se, de preferência, pelos membros da comunidade cuja fé esteja
vacilante; seria melhor para os fiéis demonstrarem a sua ortodoxia mais pelos seus
atos que pelas palavras” (cf. Discursos 3, 7).
Os esforços de São Gregório de procurar a pacificação resultam do seu
sentimento interior de afeição que ele dedicara à comunidade, da sua “veneração
ao Pai comum”. Ele escreve a São Basílio: “Se posso alcançar algum proveito da
minha vida, ele vem-me somente da tua amizade” (Ep. 58, I, ad. Basil). É devido à
sua sensibilidade que “qualquer injustiça, real ou imaginária, o fere no mais íntimo
do seu ser”.
São Basílio correspondia sem dúvida à amizade de São Gregório, não
obstante conservar a sua independência, inserida na sua vivência plena em Igreja.
Quando se deu a divisão administrativa da província da Capadócia, São Basílio
procurou fortalecer e consolidar a sua posição, fundando novas dioceses e
sagrando novos bispos. Assim naturalmente pensava sagrar também o seu amigo.
São Gregório aceitou e foi sagrado, em 372, bispo de Sázima, cidade fronteiriça
perto de Nazianzo e atreita a inúmeros litígios. Mas quando chegou a altura em que
ele deveria ser entronizado, recusou esse encargo e retirou-se para a montanha.
Nunca chegou a exercer o seu ministério em Sázima.
Não ficou muito tempo nessa situação. Novamente acedeu à solicitação de
seu pai e regressou a Nazianzo, onde desempenhou as funções de seu coadjutor,
até que ele faleceu, em 374, quase centenário. Perdendo a mãe no mesmo ano,
retirou-se para Selêucia da Isáuria onde, na ascese, viveu durante alguns anos
dedicando-se a uma reflexão espiritual e teológica. Manteve então uma vasta
correspondência com os seus amigos pró-nicenos (seguidores da doutrina do
Concílio de Nicéia), dispersos pelo mundo, que recorriam aos seus conselhos.
Após o nascimento para os Céus de São Basílio, São Gregório tornara-se,
para os grupos pró-nicenos, na personagem de Igreja mais eminente. Todavia, nem
mesmo nesse tempo ele se sente feliz. Com pouco mais de 50 anos sente-se
cansado e só. Perdera o seu irmão espiritual (São Basílio) e o seu irmão carnal
(São Cesário). Porém, “o grande impulso transformador que São Basílio havia

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incansavelmente preparado está em vias de se concretizar”. E São Gregório estava
em boa posição para o poder apoiar e defender. A derrota desastrosa de Andrinopla
(378) onde o Imperador ariano Valens, vencido pelos Godos, sucumbira, abriu
caminho ao restabelecimento da Igreja oficial. Antes do novo Imperador, Teodósio o
Grande, oriundo da Península Ibérica, se deslocar ao Oriente, São Gregório era já
disputado por vários grupos de cristãos para dirigir a Igreja de Constantinopla,
tomando posse da Sé da capital, que desde há 40 anos fora ocupada somente por
bispos arianos. Não sem resistência da sua parte, ele dispôs-se a isso. Ele
compreendera as dificuldades que teria de enfrentar, mas também a importância
histórica dos acontecimentos que se estavam a viver na Igreja e reuniu todas as
suas forças e talento para essa empresa.
Quando entrou na capital, os pró-nicenos não tinham sequer uma igreja à sua
disposição. São Gregório começou por celebrar a Sagrada Liturgia numa pequena
capela privada. Os seus grandes sermões teológicos foram apresentados com tanta
elegância oratória como com competência, clareza e eficácia. Não permitiu nunca
que o seu diálogo com os adversários descesse a níveis mesquinhos e as suas
exortações ao pequeno rebanho de fiéis estimulavam-nos a viver no seio da
comunidade com dignidade, de forma a encorajar também todos os outros que
estivessem do lado da paz a juntarem-se a ela. São Gregório procurou assegurar-se
duma posição acima das várias tendências, a fim de poder controlar e harmonizar a
situação.
Sobreveio depois um episódio que poderia ter tido conseqüências funestas,
que foi o acolhimento na comunidade de um reitor oriundo de Alexandria, que era
nem mais nem menos que um candidato do Papa egípcio à Sé constantinopolitana.
Felizmente que ele desapareceu quando se aprontavam os preparativos
precipitados para a sua sagração.
Ao chegar a Constantinopla, na festa de Natal de 380, o Imperador Teodósio
encontrou na pessoa de São Gregório o único candidato pró-niceno. O bispo ariano
da cidade foi simplesmente banido sem qualquer processo, enquanto era acolhido
solenemente São Gregório como seu próximo sucessor. Mas São Gregório não
cedeu à pressão dos seus amigos: decidiu adiar a sua posse para o Concílio
convocado para a capital escassos meses depois.
O II Concílio Ecumênico, realizado na Primavera de 381, reuniu de início
somente os pró-nicenos da Ásia Menor e da Síria. Assim, tudo correu bem de início.
O pontífice de Antioquia, Melécio, que assumiu a presidência, fez imediatamente
entronizar, com toda a dignidade, São Gregório na Sé da capital. Ele aprestou-se
então a assumir este cargo, por muitos ambicionado, mas de grande
responsabilidade. E as dificuldades começaram imediatamente a surgir,
manifestando-se oposições internas entre os diversos grupos. O pontífice Melécio
morreu de forma súbita e as velhas disputas da Sé de Antioquia voltaram à
superfície. São Gregório teve a infeliz inspiração de propor Paulino, precisamente o
candidato do grupo adversário – o dos nicenos “rigoristas” – para Primaz da Igreja
de Antioquia. “Esta proposta levava em consideração acordos antigos e era a prova
do seu verdadeiro amor à paz; mas do ponto de vista da política da Igreja este plano
era irrealizável. Não conseguindo impor o seu projeto aos seus amigos, ameaçou
demitir-se e retirar-se. Mas isso em nada alterou a situação”.
A chegada ao Concílio dos Padres pró-ocidentais e egípcios – afetos ao
grupo de Paulino, que se lhe opunham do ponto de vista teológico e eclesial – veio
aumentar as dificuldades. Não conseguindo firmar satisfatoriamente a sua posição,
São Gregório declarou “querer sacrificar-se – ainda que inocente – pelo bem
comum e, como Jonas lançando-se ao mar, renunciou ao seu mandato”. A sua
demissão foi aceita. Finalmente, o discurso da despedida foi muito digno e permitiu-
lhe sair pela porta grande, mas a sua amargura essa também não era pequena.

112
“Esta ferida custou a cicatrizar. São Gregório retirou-se inicialmente para
Nazianzo, diocese ainda vacante, nela exercendo o episcopado até conseguir, não
sem dificuldade, arranjar alguém disposto a suceder-lhe. Novas amarguras trouxe-
lhe nesse tempo a heresia cristológica dos apolinaristas. Por fim regressou à casa
paterna de Arianzo, onde passou os últimos 7 anos da sua vida, crendo-se que terá
nascido para os Céus em 389 ou 390.”
Aí retomou em profusão a sua atividade epistolar (cartas), que era agora
transmitida duma nova forma: pela poesia, utilizada em todas as formas clássicas.
Assim redigiu em verso “discursos teológicos, epigramas, elegias e estrofes
autobiográficas”. Nos seus poemas abundam “as comparações, as imagens
adaptadas a cada estado de alma, a cada pensamento”. Tendo agora poucas
oportunidades de falar em público como orador recorre, sobretudo aos seus poemas
esperando que se revelem eficazes contra os apolinaristas, que, tal como os arianos
antes deles, utilizaram também a poesia na sua propaganda”.
“Enquanto teólogo da Trindade – já o afirmamos – São Gregório não
pretende ser original. Ele faz sua a doutrina de São Basílio, completando-a,
reforçando-a e expondo-a de formas renovadas e mais harmoniosas”. Os seus
escritos posteriores sobre a Encarnação têm maior alcance. Eles eram dirigidos,
sobretudo contra os apolinaristas – que diminuíam a natureza de Cristo a fim de
“reforçarem” a Sua divindade. Em oposição, São Gregório professa “a total
humanidade do Salvador e ao mesmo tempo a Sua plenitude divina; pois, se a
natureza humana de Cristo, particularmente o Seu espírito humano (negado pelos
apolinaristas), participa no Ser divino, também o nosso espírito, unido a Cristo, será
igualmente glorificado e divinizado”. Todavia, São Gregório não se limitava a esta
“concepção espiritualista” da Salvação. “Em Cristo, Homem-Deus e Senhor, os
Seus Sofrimentos e Morte santa consumaram a expiação que triunfou do poder do
demônio, do pecado e do peso de todas as nossas faltas humanas”.
Os insucessos por que passou a vida de São Gregório, experimentados pelas
suas “fraquezas pessoais e contradições”, fizeram-lhe sentir “a grande necessidade
de ancorar a certeza da salvação para lá das vãs seguranças humanas”. Neste
ponto de vista ele é sem dúvida um dos mais profundos de todos os Padres Gregos.
O seu cognome de “O Teólogo”, que não lhe é imerecido, foi–lhe dado pelos seus
discursos teológicos de Constantinopla. Eles desfrutaram de enorme prestígio após
o seu falecimento. A sua ação teológica foi continuada por outro grande Padre da
Igreja, seu homônimo – que chegou a ser seu confidente – o irmão mais novo de
São Basílio, São Gregório de Nissa.

Errata

- Na pág. 2 destes textos de Patrologia, deverá corrigir-se a data do nascimento


para os Céus de S. Clemente, Papa de Roma: 97 (e não 102).
- Apesar das diversas versões apresentadas no parágrafo 1 referente ao mesmo
Papa, importa afirmar que a Tradição da Igreja Ortodoxa segue a de diversos
escritores eclesiásticos, dizendo:
I - São Clemente é o 3º papa, depois de S. Lino e S. Cleto.
II – Não é plausível afirmar que ele foi sagrado por S. Pedro, já que este nasceu
para os Céus na década de 60 e S. Clemente foi papa na década de 90.
III - É uma aberração histórica dizer-se que S. Pedro foi o 1º Papa de Roma, dado
que nenhum Apóstolo foi Bispo de diocese alguma. O Apóstolo é “bispo” de todo o
mundo, daí a sua jurisdição universal. E o Bispo é “apóstolo” da sua diocese, daí a
sua jurisdição local.

113
Uma das ações pastorais dos Apóstolos consistiu, precisamente, em deixar
em cada cidade que visitavam pastoralmente, um bispo – garantia da existência
duma igreja local.

114
SAGRADA LITURGIA – 1º. ANO

Introdução

A palavra Liturgia significa obra do povo. Se a oração pessoal é estimulada


pelas necessidades de movimento da alma, a oração litúrgica brota sempre da
totalidade da Verdade; está acima de todo o particularismo e emoção sentimental, e
forma a consciência católica – consciência de que somos a Igreja da Verdade plena.
A oração litúrgica filtra toda a inspiração subjetiva impondo a sua forma acabada,
tornada perfeita pelos longos séculos da sua vida na graça.
A Sagrada Liturgia ensina-nos a verdadeira relação entre a pessoa e a
comunidade, entre o membro e o corpo: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”, diz
o Senhor. Nos ofícios litúrgicos estas palavras tomam a importância da vida vivida
em Cristo e ajudam-nos a desprendermo-nos de nós mesmos, ajudam-nos a fazer
nossa a oração da humanidade. Ao lado do nosso “destino” perfilam-se todos os
destinos humanos. Precisamente porque, enquanto pessoas inseridas numa mesma
comunidade eucarística, cada um de nós é co-responsável pelo seu irmão, por
aquele que a seu lado clama por ajuda, por justiça, por amor.
A Liturgia atualiza, faz viver a Verdade do Evangelho e a salvação de uma só
alma, fazendo abstração das demais, torna-se impossível. Ninguém pode pretender
à salvação pessoal cortado da comunidade. Cristo, pela Sua Morte na Cruz e
Ressurreição conseguiu, para a humanidade que O aceite como Salvador, a
Salvação de uma vez por todas. Todavia, para que o homem possa auferir desta
Salvação, tem necessariamente que se pôr em movimento para o outro, para o
próximo. E a comunidade eucarística é o local privilegiado para o homem se tornar
presente ao seu irmão num infinito movimento de amor. É a oportunidade próxima
para o homem se despir do seu egoísmo, do seu egocentrismo, dando-se em amor
ao seu irmão. Este dar-se em amor vai gerar uma profunda compaixão naquele que
se oferece ao seu próximo, vai permitir-lhe compartilhar as suas tristezas e as suas
alegrias, dando lugar à união, à comunhão entre ambos. Isto é extensivo a toda a
comunidade eucarística. Por isso o pronome litúrgico – eu – não aparece nunca no
singular.
Por exemplo, um presbítero não pode jamais celebrar sozinho a Liturgia,
sendo necessário pelo menos a presença de mais dois fiéis para que, na pluralidade
das pessoas, o mundo inteiro esteja presente e ainda porque Cristo disse: “Lá onde
estiverem dois ou três reunidos em Meu Nome, Eu estarei no meio deles”. Assim, a
oração litúrgica erige-se em Cânone, medida de toda a oração. Toda a outra oração
dimana da oração litúrgica e deve conduzir a ela. Os Padres da Igreja diziam
“Oração”, sem mais, pretendendo designar desta forma a oração litúrgica; a única
que é normativa, sendo todas as restantes formas de oração à sua imagem.

O Colégio sacerdotal e os fiéis formam um só corpo litúrgico, em que cada


qual cumpre, desempenha a sua função própria. Esta unidade humana explica por
que razão a Ortodoxia nunca admitiu o uso, na Igreja, de instrumentos musicais, de
sons sem palavras, sem vida, pois Ela estima justamente que só a voz humana
pode revestir a dignidade, responder ao Verbo de Deus e que o coro que canta
como uma só alma é a mais adequada expressão da comunidade, unida ao coro
dos Anjos. (Deve aqui entender-se por coro toda a comunidade presente à
celebração eucarística). Todo o fiel deve participar no ofício litúrgico e esta é, sem
dúvida, a maneira mais plena da sua participação – louvar a Deus com a sua
própria voz.
Durante a Sagrada Liturgia, pelo seu poder sagrado, nós somos
transportados ao ponto em que a eternidade se cruza com o tempo. Neste momento

115
nós tornamo-nos contemporâneos reais dos acontecimentos escriturísticos, desde o
Gênesis até à Parusia (Segunda Vinda de Cristo). Nós vivemo-los verdadeiramente,
concretamente, como suas testemunhas oculares. No decorrer da Sagrada Liturgia,
quando escutamos: “Isto é o Meu Corpo”, são as palavras de Cristo que ressoam
através do tempo. Não se trata de uma repetição humana. Pela contemporaneidade
litúrgica, nós comungamos para além do tempo naquilo que permanece uma vez
por todas, e então o ofício toma o valor da vida divina de que o Templo se torna o
lugar. Os cristãos tomam o valor da vida divina de que o Templo se torna o lugar.
Os cristãos dos primeiros séculos, com o realismo tão inerente a esta época,
contemplavam com naturalidade o mundo invisível, o Templo inundado pela
presença do Além: “Agora todas as forças invisíveis estão presentes conosco”.
(Liturgia dos Dons Pré-Santificados). Estes cristãos viam a nuvem dos Anjos
presentes à Liturgia e no oficiante (no Bispo), o próprio Cristo em pessoa.
Compreende-se então melhor todo este temor sagrado, todo este respeito infinito e
esta percepção intensa que nos diz “este lugar é santo”. Esta preciosa Tradição foi
transmitida de geração em geração desde o alvor do cristianismo até aos nossos
dias.
Quando a Porta Real se abre, o Reino de Deus está já no meio de nós. O
Céu desce e o homem une-se ao coro dos Anjos para, com dignidade, ir ao
encontro d’Aquele que vem: “Eis o Rei dos Reis que Se aproxima”.
As barreiras do tempo e do espaço são vencidas pela atemporalidade da
Liturgia. Este caráter atemporal de que se reveste o ofício litúrgico é – nos
manifestado – como diz Sua Beatitude – pelo próprio Cristo, quando na Última Ceia
pronuncia as Palavras da Instituição: “Tomai e comei, isto é o Meu Corpo entregue
por vós, para a remissão dos pecados... (e tomando o Cálice) bebei todos dele, isto
é o Meu Sangue, da Nova Aliança, derramado por vós e por muitos, para a
remissão dos pecados”.
Como é, pois, isto possível se Cristo ainda não tinha sofrido a morte e
ressuscitado? Será que este Ato de Cristo era somente uma imagem da realidade
futura? Não, aquele pão e aquele vinho que Cristo toma e distribui são
verdadeiramente o Seu Corpo e o Seu Sangue. Porque embora a Liturgia terrestre
esteja dependente de todas as etapas cronológicas que irão conduzir à Morte e
Ressurreição de Cristo, a Liturgia celeste é uma realidade eterna, atemporal,
existindo nos Céus desde toda a eternidade. A Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, que como todos sabem é o Verbo, É, ontologicamente, desde toda a
eternidade com o Pai e com o Espírito Santo e desde sempre, enquanto Filho de
Deus, Ele é o Salvador e o Sumo-Sacerdote único que preside à Liturgia celeste.
Ora a Liturgia só tem realidade porque o Filho Se oferece ao Pai por todos os
homens, em ordem à sua salvação, desde toda a eternidade. O Sacrifício que tem
lugar na Cruz, em que o Filho de Deus oferece o Sacrifício oferecendo-Se ao Pai
nesse mesmo Sacrifício, esteve sempre, desde todos os tempos, presente em
Deus.
O Sacrifício na Cruz é o culminar de uma série de atos salvíficos realizados
por Cristo e, do lado do homem, tem lugar num determinado tempo histórico.
Todavia, diante de Deus, o valor salvífico do Sacrifício na Cruz é uma realidade
presente, porque o Filho Se oferece ao Pai desde toda a eternidade e por este ato
é, enquanto Pessoa divina, o Salvador e o Sumo-Sacerdote único. O Verbo é desde
toda a eternidade o Arquétipo do Homem, o Arquétipo de Cristo. E a Encarnação do
Verbo no ventre de Maria não é fruto de um ato da parte de Deus motivado pela
desobediência de Adão. Não é porque Adão não cumpre o plano que Deus tinha a
seu respeito, que Deus vai mudar de plano, “surpreendido” pela atitude do primeiro
homem. Deus não é passível de ser “surpreendido” por coisa alguma, porque
nenhum dos atos ou ações do homem é novidade para Deus. Desde toda a

116
eternidade Deus sabia que Adão ia prevaricar, no entanto para que Adão tenha a
certeza da sua total liberdade, é-lhe dada a possibilidade de escolher. Por isso a
Encarnação do Verbo faz parte dos planos de Deus desde todos os tempos. Todas
as etapas terrestres do Verbo encarnado que conduzem ao Sacrifício na Cruz
existem no plano divino desde sempre. Para o homem, a realidade objetiva do
oferecimento do Verbo encarnado ao Pai desenrola-se após uma seqüência de
acontecimentos que decorrem ao longo de um tempo e num determinado espaço.
Contudo, em Deus o oferecimento do Filho não é “algo” que vai acontecer com a
Encarnação do Verbo, chegados os tempos; em Deus, porque Deus é para além da
própria atemporalidade, tudo é presente, tudo acontece desde toda a eternidade.
Por isso Cristo, Verbo encarnado, antecipa o que parecia não poder ser antecipado
e pronuncia as Palavras da Instituição quando da Última Ceia, que segundo a visão
limitada do homem, só poderiam tomar realidade após o ato salvífico da Cruz, após
a Morte e Ressurreição do Senhor.
Mais uma vez nos é cabalmente demonstrado que não existe dicotomia
alguma entre a Liturgia terrestre e a Liturgia Celeste. Ambas têm o mesmo e Único
Senhor e Sumo-Sacerdote e são uma só e mesma realidade.

A Ação Dramática

A Liturgia é um mistério que se desenrola sobre a “cena” sagrada do templo e


leva em sua ação a assembléia dos fiéis. É um drama dialogado e dirigido pelo
bispo, assistido pelos presbíteros e pelos diáconos, arautos, mensageiros do coro
dos fiéis. Neste “serviço público” ou “causa comum” o povo apresenta a sua
oferenda a Deus e Deus gratifica-o com a Sua graça e com a Sua presença.
Os fiéis são ao mesmo tempo testemunhas e participantes no drama litúrgico.
“Aqueles que exercem o sacerdócio sabem que aquilo que se faz na Liturgia é a
imagem dos episódios da vinda do Salvador e da economia da Salvação” (São
Theodoro de Andida – 1.9.140, 417).
Historicamente, a Liturgia compõe-se à volta da Refeição do Senhor. O
Apocalipse dá-nos a visão do que acontece ao mesmo tempo na Terra e no Céu
durante a Sagrada Liturgia: “Eu vi... um Cordeiro que parecia imolado... eu vi e
ouvi... a voz de uma multidão de anjos. Eles diziam com voz forte: ‘O Cordeiro é
digno de receber a Glória e o Louvor’. E todas as criaturas, eu as ouvi dizer: ‘Ao
Cordeiro seja a Glória pelos séculos dos séculos’. E os quatro animais disseram:
Amém, e os anciãos prostraram-se e adoraram” (Ap VII, 9 –12).
Os planos cósmicos, humano e angélico unem-se na única e mesma
Eucaristia: “Do nada Tu nos chamastes ao ser, e não deixaste de agir antes de nos
elevares ao Céu e de nos abrir o Reino do século futuro” (Oração da Oblação da
Liturgia de São João Crisóstomo, p. 294). O princípio une-se ao fim, ao Gênesis
responde o Apocalipse. Em verdade, o mundo é criado para a Refeição Messiânica:
“O Anjo mostrou-me a fonte da água viva... e sobre as duas margens do rio (fonte)
encontrava-se a Árvore da Vida” (Ap XXII, 1—2). Nesta visão do Reino futuro, os
Padres da Igreja discernem a imagem da Eucaristia eterna; mas já aqui, na Terra,
“aquele que come a Minha Carne e bebe Meu Sangue tem a Vida eterna” (Jo VI,
54). A Eucaristia no mundo é “algo” de muito diferente do mundo: “Que a graça
venha e que o mundo passe”, exclama a Oração Eucarística da Doutrina dos Doze
Apóstolos (Didakê). Em face do anúncio escatológico, o tempo levanta-se, ergue-se
todo inteiro: a Encarnação, a Morte, a Ressurreição e a Parusia são anunciadas do
fundo do mesmo Cálice. É a natureza do próprio Cristianismo: o mistério da Vida
Divina põe-se em mistério da vida humana, “a fim de que todos sejam um, como Tu,
ó Pai, és (um) em Mim e Eu em Ti” (Jo XVIII, 21). Eis por que razão a constituição
da Igreja no dia de Pentecostes é seguida imediatamente pela revelação da sua

117
natureza: “ Eles perseveravam na comunhão fraterna, eles partiram o pão e oraram
em conjunto” (At II, 46). Aquilo que se faz visivelmente torna-se a expressão do
modo eucarístico da própria vida: “Todos aqueles que criam, que acreditavam,
viviam em conjunto e tinham tudo em comum” (At II, 44). Pelo Pão (que é o próprio
Cristo), os fiéis tornam-se este mesmo Pão, este mesmo amor uno e trino, a oração
sacerdotal vivida pelo homem.
Nós estamos longe da simples comemoração quando celebramos a
participarmos na Sagrada Liturgia.
A Liturgia é já o Reino de Deus nesta Terra, porque é fundamento de Igreja,
onde Cristo Se oferece e é oferecido. Cada vez que um fiel ortodoxo se aproxima da
Santa Ceia, diz: “Torna-me digno de participar hoje na Tua Ceia Mística, ó Filho de
Deus”. O memorial litúrgico convida à participação na única “coisa” que permanece,
que se perpetua. São João Crisóstomo diz: “Toda a Eucaristia foi oferecida uma só
vez e jamais esgotada. O Cordeiro de Deus, comido sempre e jamais consumido”
(Epíst. aos Heb., Homilia 17.1.9, 63,131). E São Nicolau Cabasilas afirma: “O Pão
torna-se Cordeiro” (Explication de la Divina Liturgie, chap. XXII, p.182). Segundo
Santo Irineu de Lion, “pela Epiclesis o Pão eucarístico torna-se no próprio Corpo de
Cristo e não esconde uma outra presença, mas une o alimento celeste ao terrestre
identificando-se e é o milagre” (Adversus haereses IV, 34).

O Sentido do termo Liturgia

O seu significado e o seu lugar na Economia da Salvação

A palavra Liturgia é uma palavra grega que significa serviço público ou ainda
trabalho em comum, tendo em vista uma obra de interesse geral. Era assim que a
população de Atenas era convocada para os trabalhos de fortificações ou para a
construção de uma frota ou ainda para a preparação de jogos.
No livro dos Números fala-se de Liturgia no sentido de um serviço no templo
(I, 50) onde é precisado que esse serviço foi incumbido à tribo de Levi.
O Sumo-Sacerdote Zacarias assegurava o seu tempo de liturgia quando lhe
apareceu o Arcanjo Gabriel (Lc I, 23). É sempre no sentido do serviço sagrado do
Evangelho de Deus que São Paulo utiliza o termo liturgia na sua Epístola aos
Romanos (XV, 16) ou ainda na Epístola aos Hebreus (VIII, 2).
Todavia, muito cedo na Igreja Bizantina o termo “liturgia” foi reservado para
designar o Santo ofício eucarístico – ofício público por excelência. Dir-se-á Santa ou
Divina Liturgia. O seu sinônimo no Ocidente é a Santa Missa (Romana).
“O ato essencial (da Sagrada Liturgia) é a transformação dos elementos no
Corpo e Sangue divinos”, diz São Nicolau Cabasilas (séc. XIV). E o seu propósito, o
seu fim é a santificação dos fiéis que através destes mistérios recebem o perdão
dos seus pecados, a herança do Reino dos Céus e tudo o que isso implica.
Da mesma forma que o Semeador saiu para semear (Mt XIII, 3) o que
pressupõe que o terreno já estava preparado, também a nossa alma e o nosso
espírito devem estar igualmente preparados para receber a semente. Semente esta
que é a Sagrada Eucaristia e que é certeza de vida eterna para todos aqueles que
d’Ela se aproximam vestidos com a túnica nupcial.
São Nicolau Cabasilas refere que esta preparação é assegurada pela
globalidade do rito sagrado... pelas orações, pelas salmodias, bem como por todos
os gestos sagrados e fórmulas que a Sagrada Liturgia encerra.
As orações, as salmodias e as leituras orientam-nos para Deus, tornando
Deus propício e inspirando às nossas almas temor e amor de Deus ao mesmo

118
tempo em que suscitam em nós um grande ardor na observância dos Seus
mandamentos. Por outro lado, o rito, bem como as salmodias, as leituras e os atos
do bispo representam toda a obra da Salvação do Senhor. O simbolismo no rito
completa a nossa visão do mistério e faz-nos comungar mais profundamente aos
Mistérios divinos. Através do rito sagrado e da contemplação dos símbolos... nós
somos transportados de glória em glória na mesma imagem como pelo Espírito do
Senhor (2 Co.III, 18).
É igualmente importante sublinhar que embora a Igreja Ortodoxa “tenha feito
poucas declarações explícitas em relação à Sagrada Eucaristia e a outros
Sacramentos e ainda, como por exemplo, a respeito do Outro Mundo, da Mãe de
Deus, dos Santos e dos fiéis defuntos, a fé sobre cada um destes pontos está
praticamente contida nas orações e nos hinos dos ofícios litúrgicos”.
E não são apenas as palavras dos ofícios que fazem parte da Tradição, mas
igualmente os gestos e as ações... (todos) têm um sentido particular e exprimem em
símbolos, ou dramaticamente, as verdades da fé.
A Divina Liturgia é efetivamente um ofício celeste, celebrado na Terra,
durante o qual o próprio Deus de uma forma única e extremamente íntima assiste e
permanece entre os homens, ao mesmo tempo em que Ele mesmo é o Celebrante
que oferece e é oferecido. Não existe nada sobre a Terra de mais santo, de mais
sublime, de mais majestoso, de mais solene e de mais vivificante do que a Sagrada
Liturgia (São João de Cronstadt, Sobre o Ofício Divino).
A Igreja torna-se durante este tempo o Céu terrestre, os celebrantes
representam Cristo, os Anjos, os Querubins, os Serafins e os Apóstolos. A Liturgia é
a repetição contínua do triunfo do Amor divino para com os homens e ainda uma
poderosa intercessão a favor da Salvação de toda a humanidade e de cada um dos
seus membros em particular, Boda do Cordeiro, Boda do Filho Real onde a noiva do
Filho de Deus é a alma da cada fiel e o assistente é o Espírito Santo.
Com que espírito preparado, límpido e elevado não devemos nós assistir à
Sagrada Liturgia para que não nos encontremos entre aqueles que em vez de
estarem ornados com a veste nupcial, estão revestidos com hábitos manchados
pelas paixões. Estes serão expulsos do quarto nupcial e deitados nas trevas
exteriores após lhes terem sido atados as mãos e os pés (Mt XXII, 13).
Infelizmente, nos nossos dias, são muitos os que estimam desnecessário ir à
Sagrada Liturgia; muitos assistem à Liturgia unicamente por hábito e partem da
Igreja tal como n’Ela entraram: sem elevação de espírito, sem o coração contrito
nem a alma arrependida, sem terem firmemente tomado a decisão de se
corrigirem. Alguns estão presentes fisicamente, mas distraídos, sem concentração
alguma, sem se terem preparado em suas casas pela meditação e pela
temperança, preferindo bem beber e comer melhor.
Quando Deus desceu sobre o monte Sinai, foi prescrito ao povo judeu que se
preparasse e se purificasse; ora aqui é Deus que desce também, mas mais
significativo do que isto é que lá (no Sinai) o povo judeu teve a visão de Deus pelas
“costas”, por “trás” (Ex XXXIII, 23) e aqui é a face do próprio Deus que nos é
revelada. No monte Horeb, Deus ao chamar Moisés da Sarça ardente ordenou-lhe
que descalçasse as sandálias, ora aqui tem lugar algo de muito mais importante do
que a Teofania do monte Horeb, pois nessa altura Moisés presenciou somente a
Imagem de Deus e a nós é-nos dado ver Aquele que é a origem dessa Imagem, o
próprio Deus.
Diante de tão grande mistério não há razão alguma para que o homem
divague por paragens que só o podem conduzir ao abismo.
Nós agarramo-nos de tal forma àquilo que é terrestre que muitas são as
vezes em que regateamos uma hora que damos a Deus. Mesmo durante a Divina,

119
Sagrada e Celeste Liturgia, permitindo-nos pensar nas coisas terrestres enchendo o
nosso espírito de imagens e de aspirações destas mesmas coisas terrestres.
Com que ardor não deveríamos nós orar, pôr cuidado neste grande mistério
que é a Sagrada Liturgia, confessar os nossos pecados, desejar e solicitar a
purificação, a santificação, a transfiguração e a nossa consolidação na vida cristã
pelo cumprimento dos preceitos de Cristo e orar pelos vivos e pelos mortos, pois a
Liturgia é um Sacrifício de misericórdia, de reconhecimento, de glorificação e de
súplica!
São João de Cronstadt escreve ainda: “Vós ides ao Ofício Divino e desejais
que ele vos dê à vossa alma uma ajuda efetiva. Quereis também que seja um
Sacrifício agradável a Deus, mas para isto é necessário seguir com o coração e
com o espírito as litanias, as orações e os cânticos litúrgicos. Se os cristãos
contemporâneos se aborrecem na Igreja e se lamentam da extensão dos ofícios,
não será porque desconhecem absolutamente as orações não sabendo o
significado dos atos que se realizam?” E ainda: “Muitos não gostam de ir ao Ofício
Divino porque desconhecem toda a sua riqueza, toda a sua majestade, toda a sua
sabedoria e toda a sua suavidade santificante. Mas se aprenderem tudo isto não
mais se quererão separar dele.”
O Sacramento Eucarístico foi definido por São Dinis, o Areopagita como
sendo “o Sacramento dos Sacramentos”. E São Máximo, o Confessor estima “que
nenhum Sacramento é perfeito sem Eucaristia”. São Gregório Palamas diz que a
Eucaristia é a reunião, num só fim, de orações comuns formando um ato sagrado,
misterioso e santo. São Cirilo de Jerusalém precisa que “pelo Sacramento da
Eucaristia nós adquirimos o mesmo Corpo e o mesmo Sangue que Cristo”.
Assim temos: a Eucaristia que é o Corpo de Cristo e a Igreja que também é o
Corpo de Cristo. Donde a Eucaristia é inseparável da Igreja e não é concebível fora
d’Ela.
A Eucaristia é o lugar que une o nosso estado miserável a estado futuro e
glorioso da nossa transfiguração. “Quando o nosso corpo de miséria for
transformado num corpo semelhante ao Seu (de Cristo) Corpo de glória” (Fp III, 21).

Instituição do Sacramento Eucarístico

O Sacramento Eucarístico foi instituído pelas palavras do Salvador


pronunciadas quando da Última Ceia: “Tomai e comei: Isto é o Meu Corpo... Bebei
todos d’Ele, pois isto é o Meu Sangue... Fazei isto em memória de Mim”.
Os Apóstolos tinham sido preparados para esta instituição. É assim que
Cristo após a multiplicação dos pães, quando 5.000 pessoas foram saciadas (cf. Jo
VI, 1-14), convida a “trabalhar não pelo alimento que perece, mas pelo Alimento que
subsiste até à Vida eterna, aquela que o Filho do Homem vos dará” (Jo VI, 27). Os
discípulos lembraram-se então das palavras: “Nossos pais comeram o maná no
deserto e morreram. Mas aquele que comer o Pão que desce do Céu não morrerá.
Eu sou o Pão vivo que desceu do Céu, se alguém comer deste Pão viverá
eternamente: e o Pão que Eu darei é a Minha Carne, para a vida do mundo” (Jo VI,
48 – 51).
São Cirilo de Alexandria ao comentar estas palavras explica que “o maná no
deserto alimentava somente o povo judeu, ao passo que o Pão da Vida que desceu
do Céu alimenta toda a humanidade dando-lhe a vida perfeita”.
As palavras do Senhor pareceram aos espíritos racionalistas da época,
loucura e blasfêmia e “desde então, muitos dos Seus discípulos se retiraram e
cessaram de estar com Ele”. (Jo VI, 66).
Nos nossos dias, como outrora, são numerosos os que, sobrecarregados
pelas iniqüidades que transportam, não podem ver a glória celeste. E assim a Divina

120
Liturgia apresenta-se-lhes apenas como uma recordação simbólica da Última Ceia.
Somos muitos os que não compreendemos que sem a Sagrada Liturgia não há
Eucaristia, que sem Sagrada Eucaristia não há Igreja e sem Igreja não há Cristo,
logo não há salvação para o homem.
A Igreja compara a participação à Sagrada Eucaristia com o regresso do
Filho Pródigo.
Dizem os Padres da Igreja: “Compreendamos, irmãos, a força do mistério
que é o retorno à Casa do Pai do Filho Pródigo, fugindo do pecado. O Pai abraça o
seu filho e devolve-lhe o seu lugar de honra bem como torna presente o mistério da
celebração exterior pela imolação do vitelo gordo. Participemos, pois, ao Banquete
do Amigo do homem que Se deixou gloriosamente imolar para a salvação das
nossas almas e dos nossos corpos”.
O tempo e a ordem do desenvolvimento da Ceia são conhecidos. Os quatro
Evangelistas descreveram brevemente a cerimônia que estava em uso pelos judeus
para a celebração da Páscoa.
Na noite do dia 14 de Nisan “chegada a hora” (Lc XXII, 14) o Senhor reuniu
os Apóstolos para a Ceia. O Cordeiro tinha sido preparado seguindo o costume
estabelecido, usando o vinho e as ervas amargas. A Lei exigia que os assistentes à
cerimônia permanecessem de pé (Ex. XII, 11), mas nesta altura estava já em uso o
costume romano de se estenderem sobre os bancos. Esta forma de comer era
oriunda dos Persas, que a tinham transmitido aos Gregos e aos Romanos. No
entanto, a ordem segundo a qual os Apóstolos estavam alongados pouco importa.
Sabemos que São João estava ao lado do Senhor e que Judas devia ser o outro
seu vizinho imediato. O rito hebraico que foi seguido quando da Última Ceia
influenciou o desenvolvimento das reuniões eucarísticas ulteriores.
São Lucas (XXIV, 30) diz-nos que o Senhor ressuscitado utilizou o mesmo
cerimonial em presença dos discípulos de Emaús.
Por quem, onde e quando é celebrada a Divina Liturgia?
A celebração da Sagrada Liturgia exige o desenrolar de um rito preciso. Ela
tem que ser ainda presidida por um oficiante devidamente paramentado para o
exercício desta presidência. E, sobretudo uma obra desta importância e desta
gravidade exige um presidente munido de uma graça e de poderes especiais.
Cristo é, naturalmente, o ministro principal: “Não há senão um só Deus e um
só Mediador entre Deus e os homens: Cristo nosso Deus e Salvador” (1 Tm II, 5).
Cristo é o Sumo-Sacerdote desde toda a eternidade e o Mediador entre Deus e os
homens. Mas sobre a Terra, a Igreja que recebeu todo o poder de Cristo instituiu um
sacerdócio que tomou a continuação de Aarão, dos seus filhos e de toda a Tribo de
Levi.
Assim os sucessores dos Apóstolos – os Bispos – colocam as suas mãos
sobre os homens que exprimiram o desejo de se tornarem ministros da Igreja e que
Esta reconheceu serem dignos de aceder a esta função. Ao pôr as suas mãos sobre
a cabeça do recipiendário, o Bispo diz: Tu, Senhor, enches dos Dons do Espírito
Santo aquele que Te dignaste elevar ao presbiterado; que ele seja digno de estar
diante do Teu altar, de anunciar o Evangelho do Teu Reino, de celebrar a Tua
palavra de verdade, de Te apresentar as oferendas e os sacrifícios espirituais, de
regenerar os fiéis pelo banho da regeneração, a fim de que quando da Segunda
Vinda do Grande Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, receba a recompensa devida
ao seu grau.
Logo, a celebração da Divina Liturgia exige um presbítero validamente
ordenado não basta para que o ofício celebrado por ele seja lícito e válido. O
presbítero deve de estar em perfeita união com o seu bispo, não estar interditado
(suspenso) e ao celebrar ter a vontade firme de realizar o sacramento bem como a
fé absoluta no valor daquilo que é chamado a realizar.

121
O presbítero oficiante deve estar revestido com todos os paramentos
litúrgicos; alva (ou stikarion), estola (ou epitrakilion), zona, punhos e casula (ou
felônion).
Da mesma forma que os fiéis se preparam para comungar, também o padre
se deve preparar celebrando (ou dizendo em sua casa) as matinas, ler os cânones
que preparam à Sagrada Comunhão, nada ingerir após a meia-noite e abster-se de
relações conjugais.
O desenvolvimento do rito deve ser estritamente conforme às prescrições
que o regem: “Toda e qualquer inovação, toda a novidade ou reforma introduzidas
pela sua própria fantasia, mesmo inspirada pelas mais louváveis intenções, como a
de se aproximar dos usos e costumes dos primeiros cristãos ou tentar levar o ofício
mais próximo dos fiéis (por exemplo pela leitura das orações secretas) são
inadmissíveis.”
O padre deve preparar-se para celebrar com uma profunda humildade. Os
fiéis participam no culto como ministros e co-operantes.
Já no Antigo Testamento, Israel é o Bem sagrado de Deus (Jr. II, 3), é o povo
consagrado (Dt VII, 6 e XXVI, 19), povo santo (Lv XIX, 2), povo de sacerdotes (Is
LXI,6). A Igreja é o Israel espiritual. Por esta razão, assim como o afirmam São
Pedro (1 Pe II, 5.9) e São João (Ap I, 6 e V, 10), os cristãos ortodoxos formam uma
raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa.
Quando da celebração da Divina Liturgia, os fiéis concelebram, pela oração –
seguindo pessoalmente o ofício ou cantando. É necessário saber que o espírito
comunitário da Liturgia não deixa lugar, não deixa espaço a nenhuma meditação
pessoal. A união na oração deve ser total. Todos a devem seguir “com um só
coração e com um só espírito”.
Quanto ao desenvolvimento da Divina Liturgia, se por um lado ela é imutável
e fixa, por outro existem certas partes lidas ou cantadas que mudam segundo o dia
ou o mês: dias da semana, dias de Festa do Senhor, da Mãe de Deus ou de
determinado Santo, se se encontrar na semana ou no domingo. Semanas que
precedem ou se seguem ao Natal, Páscoa, Pentecostes... Existe um livro especial –
o Typicon – que contém as regras da oração litúrgica, desde as indicações que
respeitam à leitura das Epístolas e dos Evangelhos até aos cânticos das antífonas e
dos típicos, tropários, kondakion, cântico de entrada, Triságion, hirmos e cântico da
comunhão. Isto implica para a celebração dos ofícios possuir uma pequena
biblioteca com cerca de uma vintena de volumes. Estes volumes possuem à volta
de 7.000 páginas. No entanto aquilo que à primeira vista se nos afigura ser pouco
manuseável, é de uma riqueza ímpar na Igreja Ortodoxa.
A celebração da Sagrada Liturgia deve-se realizar numa igreja sobre um altar
com um antimension – tecido em que está pintada a cena do enterro de Cristo,
tendo por trás um pequeno saco cosido contendo relíquias de Mártires. O
Antimension tem obrigatoriamente que ser sagrado pelo Bispo. Um padre só pode
celebrar uma liturgia por dia e isto antes do meio-dia. São exceção as liturgias
vesperais da antefesta do Natal, da Teofania e do Grande Sábado Santo.
Por outro lado não se pode celebrar senão uma só liturgia diária sobre o
mesmo altar e o mesmo antimension. Os vasos sagrados devem ser de metal – ou
em prata. As matérias do sacramento são: os pães levedados (prósforas) feitos com
fermento puro e vinho puro. As prósforas devem de ser frescas e o vinho deve ter
bom gosto.
Por fim, a celebração deve realizar-se num local consagrado para esse efeito,
isto é, uma igreja ou um lugar afetado ao uso duma igreja. A Igreja admite e
reconhece exceções motivadas por circunstâncias excepcionais. Mas estas
circunstâncias devem ser mesmo excepcionais.

122
A tendência atualmente manifestada pelos católicos romanos, que celebram
não importa onde, tem já em si mesma o gérmen da dessacralização e é
absolutamente estranha à Ortodoxia.

Desenvolvimento do Rito da Divina Liturgia - Período Apostólico e Século II

Nós não possuímos uma descrição detalhada sobre a forma como se


desenrolava a Sagrada Liturgia, como se celebrava a Sagrada Eucaristia na Era
Apostólica.
No livro dos Atos dos Apóstolos (XX, 7 e 11) podemos ler o seguinte: “No
primeiro dia da semana reunimo-nos para partir o pão... Paulo partiu e comeu”.
Escrevendo aos cristãos de Corinto, São Paulo lembra-lhes: “O Cálice de benção
que abençoamos não é ele a Comunhão ao Sangue de Cristo? O Pão que partimos
não é ele a Comunhão ao Corpo de Cristo? Há só um único Pão e todos nós
formamos um só Corpo, pois todos tomamos parte neste Pão único” (1 Co. X, 16-
17). No capítulo seguinte São Paulo precisa, enumera, as disposições interiores que
são requeridas a fim de que a Comunhão (participação à fração do Pão), possa ser
santificante para nós.
No tempo dos primeiros cristãos, reproduzindo o desenvolvimento da Última
Ceia, a Consagração do Pão e do Vinho fazia-se no decurso de uma refeição
“agápica”, para a qual se vinha, trazendo as suas próprias provisões, os seus
próprios mantimentos. Ora esta situação permitiu que muito em breve se
verificassem alguns excessos: “Desde o momento em que se instalam à mesa, cada
um, sem esperar, toma a sua própria refeição e um tem fome ao passo que o outro
se embriaga. Não tendes vós casas para comer e beber?” (1 Co XI, 20-22).
São Paulo, considerando isto, lembra aos cristãos de Corinto: “Eu recebi do
Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído,
tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei: isto é o Meu
Corpo, que é partido por vós; fazei isto em memória de Mim. Semelhantemente,
também, depois de cear, tomou o Cálix, dizendo: Este Cálix é o Novo Testamento
do Meu Sangue: fazei isto todas as vezes que beberdes, em memória de Mim.
Porque, todas as vezes que comerdes este Pão e beberdes este Cálix, anunciareis
a morte do Senhor, até que venha. Portanto, qualquer que comer este Pão, ou
beber o Cálix do Senhor, indignamente, será culpado do Corpo e do Sangue do
Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim como deste Pão e beba
deste Cálix. Porque, o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua
própria condenação, não discernindo o Corpo do Senhor” (1 Co. XI, 23-29).
Constatamos por este fato que, já na era apostólica, em que os cristãos
viviam em perigo de morte mercê das perseguições que lhes eram movidas, alguns
entregues a si próprios, permitiam-se a excessos: “À mesa sem esperarem... ao
passo que o outro se embriaga”. Este comportamento mostra-nos com bastante
clareza a fraqueza da natureza humana e daí resulta a necessidade para a Igreja de
regulamentar os ritos, pondo ordem e colocando, estabelecendo certos limites,
através de algumas regras e prescrições detalhadas, que nos impedem de
assumirmos uma atitude de desrespeito e de desprezo para com a Igreja de Deus
(1 Co XI, 23).
Apesar de não encontrarmos detalhes sobre o desenrolamento do rito,
temos, todavia, neste texto, indicações assaz precisas sobre o alcance, o
significado e as conseqüências da participação à Sagrada Eucaristia:
1 – A Presença real de Cristo é explicitamente afirmada;
2 – A Comunhão só é santificante quando a Ela se participa dignamente e com
Fé;

123
3 – Quando aquele que se aproxima do Santo Altar o faz sem se ter preparado e
sem Fé, esse comunga para a sua própria condenação.
A Igreja recorda sempre aos seus fiéis esta posição teológica. O Cânone que
se deve ler quando da preparação para a Sagrada Comunhão, bem como a oração
dita no momento em que o fiel se aproxima do Cálice, comportam súplicas, para
que a Santa e Sagrada Comunhão “... não seja para a minha condenação, mas que
me conceda a Vida eterna e imortal” (kondakion) ou ainda: “... Tremo ao receber o
fogo; que Ele não me seja como à cera ou à erva, mas que eu me torne
incorruptível (tropário da 8ª Ode). Na quarta oração (de São João Damasceno) ora-
se a Deus: “Que, longe de me trazerem o castigo e o agravamento dos meus
pecados, Eles (os vivificantes Mistérios, a Sagrada Eucaristia ) me purifiquem, me
santifiquem e me sejam penhor (garantia) de vida futura...”.
Posto isto, este primeiro século da era cristã não nos transmitiu senão
indicações de ordem geral, mas, todavia importantes, uma vez que o seu espírito
regula, delimita, estabelece o desenvolvimento do Sacramento até aos nossos dias.
Do princípio do século II chega-nos um documento muito importante: o
Didakê ou Doutrina dos Doze Apóstolos.
Este pequeno opúsculo foi escrito por um autor desconhecido, entre os anos
100 e 150, posteriormente descoberto numa biblioteca de Constantinopla em 1873;
este pequenino livro é uma espécie de “catecismo” ortodoxo para uso dos fiéis, que
comporta prescrições morais, indicações sobre a Hierarquia, as festas, a
administração do Batismo e da Eucaristia (apraz-nos assinalar que no parágrafo 8º
é prescrito o jejum às quartas e sextas feiras).
No parágrafo 14 é dito: “Reuni-vos ao domingo no dia do Senhor; parti o Pão
e daí graças a Deus, depois de terdes antecipadamente confessado os vossos
pecados, a fim de que o vosso sacrifício seja puro”.
Os parágrafos 9 e 10 citam as orações eucarísticas, a oração pela Igreja de
agradecimento e a Doxologia (Slavoslovié):
Parágrafo 9 – No que concerne à Sagrada Eucaristia, celebrai-A da seguinte
maneira:
2. Primeiro sobre o Cálice, dizendo: Nós Te damos graças (agradecemos), Pai
nosso, pela Santa vinha da David, Teu servo, que Tu nos revelaste por Jesus
Cristo, Teu servo; glória a Ti pelos séculos dos séculos! Amém.
3. Sobre o Pão a ser partido: Nós Te damos graças, Pai nosso, pela vida e
pelo conhecimento que nos revelaste por Jesus Cristo, Teu Servo; glória a Ti, pelos
séculos dos séculos! Amém.
4. Da mesma forma que este Pão partido primeiro fora semeado sobre as
colinas e depois recolhido para se tornar um, assim das extremidades da Terra seja
unida a Ti a Tua Igreja (assembléia) em Teu Reino; pois Tua é a glória e o poder
pelos séculos dos séculos! Amém.

Parágrafo 10 – Ação de graças depois da Ceia


Mas depois de saciados, bendizei (agradecei) da seguinte maneira:

2. Nós Te bendizemos (agradecemos), Pai Santo, pelo Teu Santo Nome, que
Tu fizeste habitar em nossos corações, e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade
que nos revelaste por Jesus Cristo, Teu Servo; a Ti a glória, pelos séculos dos
séculos! Amém.
Vem em seguida a Doxologia e a Oração pela Igreja:
5. Lembra-Te, Senhor, da Tua Igreja, para a livrares de todo o mal e a
aperfeiçoares no Teu Amor; reúne esta Igreja santificada pelos quatro ventos no
Teu Reino que lhe preparaste, pois Teu é o poder e a glória pelos séculos dos
séculos! Amém.

124
Veremos mais adiante que o nosso atual rito comporta reminiscências destas
orações dos primeiros cristãos.
Quanto à importância do Sacramento da Eucaristia para o cristão, ela é
atestada pelos mártires de Abilene (perto de Cartago). Cinqüenta cristãos foram
presos no fim da Celebração Eucarística. Bastava-lhes tão-somente negar a sua
participação no culto para que as suas vidas fossem salvas. E as respostas, não
obstante lhe haverem sido infligidas cruéis torturas, foram as seguintes – da parte
do leitor Eméritus: “Sem Sagrada Liturgia não podemos viver” – De Félix: “Não
sabes tu, Satanás, que os cristãos fazem a Sagrada Liturgia e que a Sagrada
Liturgia faz os cristãos e que uma não pode existir sem os outros?”
São Justino, mártir por volta do ano 165, o mais importante dos Padres
apologetas do século II, deixou-nos nas suas duas obras que nos chegaram:
Diálogo com Trifão e Apologias, redigidas em torno do ano de 150, onde
encontramos alguns detalhes sobre a Celebração Eucarística, o seguinte: “Nós
reunimo-nos todos os dias do Sol (Domingo), porque é o primeiro dia em que Deus,
tirando a matéria das trevas, criou o mundo e porque neste mesmo dia, Jesus
Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Na véspera do dia de Saturno
(Sexta feira) Ele foi crucificado e na manhã do dia do Sol Ele apareceu aos Doze
Apóstolos e a Seus discípulos e lhes ensinou esta doutrina, que nós submetemos
ao vosso exame...”
“... No dia que apelidamos de dia do Sol, todos, habitem cidades ou campos,
reúnem-se num mesmo local. Lemos as memórias dos Apóstolos (Evangelhos) e os
escritos dos Profetas tanto quanto o tempo no-lo permita. Terminada a leitura,
aquele que preside toma a palavra para advertir e exortar a imitar e a viver esses
bons ensinamentos. Em seguida, levantamo-nos todos e oramos juntos em voz alta.
Depois, como já o dissemos, quando terminada a oração, traz-se o Pão com o
Vinho e Água. Aquele que preside eleva as suas orações ao Céu e profere as ações
de graças, tanto quanto ele disponha de força e o povo responde pela aclamação
do Amém. Em seguida tem lugar a distribuição e a partilha, dos alimentos
consagrados, a cada um...” (1ª Apologia, parágrafo 67). Nós chamamos a este
Alimento Eucaristia e ninguém a Ele pode participar, se não acreditar na verdade da
nossa doutrina, se não recebeu o banho da regeneração, do perdão dos pecados
(ou seja, o Batismo), e se não viver segundo os mandamentos de Cristo (id.
parágrafo 66). No fim deste parágrafo 66 refere-se à instituição da Celebração
Eucarística pelo Senhor, conhecida através das “Memórias dos Apóstolos”,
apelidadas de Evangelhos.
Assim, mediante esta narrativa de São Justino, é-nos indicado que em
meados do século II a Celebração Litúrgica já havia tomado certas formas
determinadas: Celebração ao Domingo, leituras das Epístolas e dos Profetas (esta
últimas conservaram-se no rito litúrgico de São Tiago), a homilia, a ação de Graças,
a invocação do Espírito Santo. Por outro lado, São Justino afirma nítida e
categoricamente que a Eucaristia atualiza a Santa Cruz, que, sob o aspecto do Pão
e do Vinho, recebemos o Santo Corpo e o Santo Sangue do Senhor, que nos
santifica pela Comunhão e que unicamente “aqueles que crêem na verdade da
nossa doutrina” podem receber a Comunhão.
Relembramos ainda que a necessidade da Confissão é atestada na Didakê.

125
MARIOLOGIA – 1º. Ano

APONTAMENTOS DE MARIOLOGIA

Com as aulas de Mariologia proponho-vos um desafio que consiste em nos


lançarmos todos no conhecimento da Virgem Maria – a santíssima Mãe de Deus.
Procuremos penetrar nesse modelo perfeito de santidade humana, nos seus
mistérios, nos seus encantos. Procuremos sentir e partilhar o seu Amor puro, de
Mulher e Mãe, que sempre caracterizou a sua intercessão junto de Deus e em
benefício de todos nós.
Como veremos, conhecer a Virgem Maria é essencial para conhecermos a
Igreja. Ela é o modelo perfeito desta. Simboliza-a, é o seu ícone vivo. Identifica-se
com ela de tal modo que podemos afirmar que onde está a Igreja está a Virgem e
seu culto. Poderemos dizer, tal como o Padre Bulgakof: quem não ama a Virgem,
não conhece Cristo.
São escassas as referências à Santa Mãe de Deus nos textos do Novo
Testamento. Compreensivelmente, não seria essa a prioridade dos autores
sagrados. A missão da Virgem, apesar de ser vital para a obra da salvação, foi
vivida em silêncio. Pela mesma razão, as pregações apostólicas também não
abundaram nessas referências. Todavia, apesar de poucas são muito importantes e
proponho-vos que comecemos por aí o nosso trabalho.
Os livros do Novo Testamento falam-nos de várias Marias. Vejamos quem
são:
- Maria, a Mãe de Deus;
- Maria Madalena, curada por Jesus, presente na Sua morte, é a primeira a
ser reencontrada pelo Ressuscitado;
- Maria, mãe de Tiago o menor e de José – “a outra Maria” mencionada
com Maria Madalena, esteve junto da Cruz e foi avisada da Ressurreição
por um anjo;
- Maria de Betânia – irmã de Lázaro e de Marta, é a que perfuma Jesus (Lc
10, 39-42; Jn 11, 1; Jn 12, 3; Mt 26, 6-12)
- Maria, mãe de João que tinha por sobrenome Marcos (At 12, 12)
- Maria, uma cristã de Roma (Rm 16, 6)

São seis as Marias de que nos falam os textos sagrados da Nova Aliança e,
se procurarmos uma leitura simbólica desse fato, lembrar-nos-emos de que são
também seis os dias da Criação. E a Mãe de Deus é bem o expoente máximo da
Criação.
Vem ainda a propósito dizer que, em hebraico, Maria se escreve Miryâm o
que significa excelsa ou amada de Yavé.

EVANGELHO DE SÃO MATEUS

Seguindo a seqüência corrente dos livros sagrados, começamos por efetuar


o levantamento de todas as referências à Virgem no Evangelho de São Mateus.

1, 16 – Jacob gerou José marido de Maria


1, 18 – Estando Maria sua mãe
1, 20 – (a José) não temas receber Maria, tua mulher
1, 23 – eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho
2, 11 – acharam o menino com Maria sua mãe
2, 13 – toma o menino e sua mãe e foge
2, 14 – tomou o menino e sua mãe

126
2, 20 – toma o menino e sua mãe
2, 21 – tomou o menino e sua mãe
12, 46 – eis que estavam fora sua mãe
12, 47 – eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos
13, 55 – e não se chama sua mãe Maria
Aparecem neste Evangelho todos os termos com que Ela é designada nas
Sagradas escrituras: MARIA, MÃE, MULHER, VIRGEM. A própria seqüência com
que estas designações nos aparecem é profundamente significativa e evidencia a
aparente antinomia entre a sua maternidade e a sua virgindade.
É considerado, pelos padres da Igreja que as conseqüências da Queda se
transmitem de geração em geração, por via da reprodução normal. Assim sendo,
seria inevitável que o nascimento de Cristo, cuja humanidade é idêntica à de Adão e
não conhece os estigmas da Queda, teria que ser virginal. Virgindade triplamente
afirmada, porque se manteve antes, durante e após o parto.
Por outro lado, é à sua maternidade divina que se deve o lugar de grande
relevo que Maria ocupa na Igreja e no coração de todos os fiéis. E, como veremos,
depois de ser Mãe de Deus, ela é também mãe de todos nós.
No texto de S. Mateus a frase mais característica e triplamente repetida, é “o
menino e sua mãe”. O anjo ordena a José: “toma o menino e sua mãe”. Reparemos
que ele não diz “o teu menino” ou “o menino e tua mulher”. O Menino e sua Mãe são
inseparáveis e complementares. O menino define a maternidade, Ele é a causa
dessa maternidade. Ele em primeiro lugar, ela depois. Podemos dizer que esta
expressão constitui a definição evangélica do ícone de Maria, diante do qual somos
quase sempre colocados em face do Menino e de sua Mãe. Como veremos mais
adiante, em muitos ícones da Virgem, o Menino acaricia-a, benze-a e ela adora-O
em oração.
A primeira referência a Maria (Mt 1,16) remete-nos para a genealogia de
Jesus Cristo que nos fornece apenas a linhagem de José, pai jurídico ou adotivo do
Senhor. S. Justino, porém, afirma explicitamente que Maria descendia igualmente
da tribo de David.
Vejamos agora o trecho seguinte (Mt 12, 46–50)
A família de Jesus
46 – E, falando ele ainda à multidão, eis que estavam fora sua mãe e seus
irmãos, pretendendo falar-lhe.
47 - E disse-lhe alguém: Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, que
querem falar-te.
48 - Porém ele, respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe?
E quem são meus irmãos?
49 - E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha
mãe e meus irmãos;
50 – Porque, qualquer que fizer a vontade do meu Pai, que está nos céus,
este é meu irmão, e irmã e mãe.
A resposta de Cristo constitui uma alusão à sua filiação divina. Ele é Filho do
Pai (“do meu pai”) celeste. Ele nasceu daquela que cumpriu fielmente a vontade de
seu Pai.
Por outro lado, as palavras do Senhor designam a Igreja como “minha mãe”,
evidenciando essa identificação profunda e sempre presente entre a Virgem e a
Igreja.

EVANGELHO DE S. MARCOS

O Evangelho de S. Marcos é o mais lacônico nas referências à Santa Mãe de


Deus. Nele apenas encontramos três referências:

127
Mc 3, 31 – chegaram então seus irmãos e sua mãe
Mc 3, 32 – eis que tua mãe e teus irmãos te procuram
Mc 6, 3 – não é o carpinteiro filho de Maria
As primeiras duas designam a Virgem como Mãe e estão associadas ao
episódio que acabamos de comentar em S. Mateus, mas com uma única diferença
significativa no último versículo (Mc 3, 35): em lugar de “qualquer que fizer a
vontade de meu pai, que está nos céus” S. Marcos escreve: “qualquer que fizer a
vontade de Deus”. No Evangelho de S. Lucas, temos: “aqueles que ouvem a
palavra de Deus e a executam”.
A última citação de S. Marcos introduz-nos numa questão de algum modo
marginal à Mariologia, mas que não é destituída de interesse. Trata-se da profissão
atribuída a Jesus e que encontra paralelo com Mt 13, 55 (“Não é este o filho do
carpinteiro?”), no que se refere a S. José.
Ora o termo “carpinteiro” traduz impropriamente o termo grego tektôn que
está na origem etimológica de “arquiteto”. Outra tradução possível seria a de
“artesão”.
O Pe. Antônio Pereira de Figueiredo, na sua tradução das Sagradas
Escrituras editadas pela Sociedade Bíblica do Brasil, não emprega o termo
“carpinteiro”, mas “oficial”, que nesta acepção significa trabalhador especializado
num ofício e é sinônimo de artesão.
O Proto-Evangelho de S. Tiago é, no caso, ainda mais claro, pois nele
encontramos, no capítulo XIII o seguinte trecho: “Ao chegar o sexto mês da sua
gravidez (de Maria) voltou José das suas edificações”.

EVANGELHO DE S. LUCAS
É no Evangelho de S. Lucas que encontramos o maior número de referências
à Santa Mãe de Deus, a saber:
Anunciação
1, 27 – A uma virgem, desposada com um varão, cujo nome era José, da
casa de David; e o nome da Virgem era Maria.
1, 30 – Maria não temas, porque achaste graça diante de Deus
1, 34 – E disse Maria ao anjo
1, 38 – Disse, então, Maria: eis aqui a serva do Senhor

Visitação
1, 39 – e, naquele dia, levantando-se Maria
1, 41 – ao ouvir Isabel a saudação de Maria
1, 43 – que venha visitar-me a mãe do meu Senhor
1, 46 – Disse então Maria
1, 56 – E Maria ficou com ela quase três meses

Nascimento de Jesus
2, 5 – a fim de alistar-se com Maria sua mulher
2, 16 – acharam Maria, e José e o menino
2, 19 – mas Maria guardava todas estas coisas

Apresentação no Templo
2, 33 – E José, e sua mãe, se maravilharam
2, 34 – e disse a Maria, sua mãe

Jesus entre os Doutores


2, 48 – disse-lhe sua mãe: Filho porque fizeste assim
2, 51 – E sua mãe guardava no seu coração todas estas coisas

128
Família de Jesus
8, 19 – e foram ter com ele sua mãe e seus irmãos
8, 20 - estão lá fora tua mãe e teus irmãos.

O Evangelho segundo S. Lucas é indiscutivelmente o mais mariânico. Como


que a comprovar esse fato, S. Lucas refere-se à Virgem, predominantemente, com
o seu próprio nome: Maria. E fá-lo por doze vezes, número rico em simbolismo que
nos faz lembrar das doze portas da Nova Jerusalém (Ap 21), sempre abertas face
aos quatro pontos cardeais, como um convite feito em primeiro lugar às doze tribos
de Israel, e, depois, a todos os povos do mundo. Ora Maria, a primeira de entre nós
a receber Deus, mãe e virgem, como a Igreja, é também a imagem perfeita da
Jerusalém Celeste.
Este Evangelho é também aquele que descreve um maior número de
episódios da vida da Santa Mãe de Deus, alguns dos quais não encontram qualquer
correspondência nos outros Evangelhos. É o caso da anunciação, visitação, do
canto de Simeão e de Jesus entre os doutores. É ainda deste Evangelho que se
retiram algumas orações e hinos litúrgicos dedicados à Virgem, como é o caso do
Magnificat.
S. Lucas designa a Santa Mãe de Deus como: VIRGEM, MARIA, SERVA e
MÃE. É o primeiro a introduzir a designação corrente: Virgem Maria, em Lc 1, 27. É
ainda o primeiro a apresentá-la como serva do Senhor, no episódio da Anunciação,
o que evidencia a maternidade Divina como conseqüência direta da sua total
disponibilidade para Deus, do seu cumprimento fiel da vontade de Deus.

ANUNCIAÇÃO
Na Anunciação, Maria não se surpreende com o aparecimento do anjo. Aliás,
tudo indica que o contato com os seres angélicos lhe era familiar, como veremos ao
abordarmos o Proto-Evangelho de São Tiago. Apenas manifesta uma interrogação:
“Como se fará isto se não conheço varão?”. Ao que o anjo responde dizendo “a
virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra”. Esta frase faz-nos recordar o
modo como Deus se manifestou ao Seu povo, cobrindo como uma nuvem a tenda
da congregação (Ex 40, 34-38 e Nm 9, 15-23).
Maria adere voluntária e totalmente à vontade de Deus: “cumpra-se em mim
segundo a tua palavra”. Nesta expressão de sinergia perfeita com Deus ela
representou-nos a todos. E, porque abre, com a sua obediência voluntária, a porta à
obra da redenção, ela recebe o título de co-redentora.
Este ato não surge inesperadamente na sua vida, pois é preparado desde o
seu nascimento. Como veremos mais adiante, já na sua Apresentação ao Templo a
Virgem se havia entregue completamente ao serviço de Deus, preparando já o ato
que consagrou a sua fidelidade.
VISITAÇÃO
Maria fecundada pelo Espírito Santo e transportando o Verbo de Deus, é o
instrumento providencial para que Isabel e o seu filho, o Precursor, ainda no seu
ventre sejam ungidos com o Espírito Santo. É através dessa unção que Deus dá
conhecimento a Isabel o que se passa com Maria, pois sem esta nada dizer Isabel
afirma: “Bendita é tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde
me provém isto, a mim, que venha visitar-me a mãe do meu Senhor”. João, o
Precursor, cujo nome significa misericórdia de Javé, é assim também santificado
antes do seu nascimento, tal como o anjo prometera a Zacarias (1, 15): “e será cheio
do Espírito Santo, já, desde o ventre de sua mãe”.

129
MAGNIFICAT
O Evangelho de São Mateus apresenta-nos de seguida o cântico de Maria (Lc
1, 46-55) designado vulgarmente por Magnificat. Este termo é a primeira palavra da
tradução latina deste cântico de louvor, no qual a Virgem exprime a sua alegria e
louva a Deus por Ele ter mostrado a salvação e enviado a Sua misericórdia.
O texto do Magnificat contém numerosas referências do Antigo Testamento, o
que revela a profunda familiaridade da Virgem com as Sagradas Escrituras.
Podemos encontrar uma forte inspiração para este texto no cântico de Ana (1 Sm 2,
1-10) e ainda noutras passagens do Antigo Testamento. Apesar de ser possível
cotejar este texto com outros que lhe são muito anteriores, não podemos considerá-
lo como uma coleção de citações. Pelo contrário, o Magnificat possui uma identidade
bem própria.
Neste cântico encontramos quatro grandes temas: o do louvor a Deus; a
afirmação da sua misericórdia infinita; a condenação de todos os que são
orgulhosos e arrogantes do seu poder; a reafirmação da promessa feita a Abraão.

Lc 1, 46-55:
Cântico de Maria
46 Disse, então, Maria: A minha alma engrandece ao Senhor,
47 E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador; 48
Porque atentou na baixeza da sua serva; pois eis que, desde
agora, todas as gerações me chamarão bem-aventurada: 49
Porque me fez grandes coisas o Poderoso; e santo é o seu
nome. 50 E a sua misericórdia é de geração em geração, sobre
os que o temem. 51 Com o seu braço obrou valorosamente;
dissipou os soberbos no pensamento dos seus corações. 52
Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. 53
Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos. 54
Auxiliou a Israel, seu servo, recordando-se da sua misericórdia,
55 (Como falou aos nossos pais) para com Abraão e sua
posteridade, para sempre.

Observemos as semelhanças entre o Magnificat e o Cântico de Ana. Esta era


uma das duas mulheres de Elcam. Por muito foi estéril, fato considerado como uma
maldição entre os judeus. Todavia, a sua oração foi ouvida por Deus e veio a ser
mãe de Samuel.
O sofrimento e a humilhação a que era submetida pela sua rival impeliam Ana
à oração, pedindo a Deus que lhe permitisse ter um filho e prometia consagrá-lo a
Deus durante toda a sua vida. Ao menino que nasce é dado o nome de Samuel e,
quando Ana o entrega ao templo canta este hino de louvor a Deus:
1 Sm 2, 1-10
O cântico de Ana
ENTÃO orou Ana, e disse: o meu coração exulta ao Senhor, o
meu poder está exaltado no Senhor; a minha boca se dilatou
sobre os meus inimigos, porquanto me alegro não tua
salvação. 2 Não há santo como é o Senhor; porque não há
outro fora de ti; e rocha nenhuma há como o nosso Deus. 3
Não multipliqueis palavras de altíssimas altivezas, nem saiam
coisas árduas da vossa boca; porque o Senhor é o Deus da
sabedoria, e por ele são as obras pesadas na balança. 4 O
arco dos fortes foi quebrado, e os que tropeçavam foram
cingidos de força. 5 Os fartos se alugaram por pão, e cessaram
os famintos: até a estéril teve sete filhos, e a que tinha muitos

130
filhos enfraqueceu. 6 O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz
descer à sepultura e faz tornar a subir dela. 7 O Senhor
empobrece e enriquece; abaixa e também exalta. 8 Levanta o
pobre do pó, e desde o esterco exalta o necessitado, para o
fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono
de glória; porque do Senhor são os alicerces da terra, e
assentou sobre eles o mundo. 9 Os pés dos seus santos
guardará, porém os ímpios ficarão mudos, nas trevas; porque o
homem não prevalecerá pela força. 10 Os que contendem com
o Senhor serão quebrantados; desde os céus trovejará sobre
eles: o Senhor julgará as extremidades da terra; e dará força
ao seu rei, e exaltará o poder do seu ungido.

É, pois, evidente o paralelismo entre os dois textos, de tal modo que o cântico
de Ana é, muitas vezes, considerado como o protótipo do canto da Virgem Maria.
Repare-se ainda, que aquele termina invocando o Rei-Messias que estava
prometido ao povo de Israel. Promessa que se cumpre através da entrega de Maria.
Apesar da esterilidade constituir uma maldição para os judeus, uma vez que
contraria a fecundidade da natureza e ainda porque, segundo o senso comum, a
vinda do Messias não seria esperada a partir de uma mulher estéril, Deus vai servir-
se precisamente de mulheres nesse estado para cumprir etapas da sua obra
salvífica.
É o caso de:
Sara – (Gn 11) mulher de Abraão, que veio a dar à luz Isaac;
Rebeca - (Gn 25, 21) esposa de Isaac que foi estéril e veio a ser mãe de Esaú e
Jacó;
Raquel – (Gn 29, 31) esposa preferida de Jacó;
Ana – Mãe de Samuel, de quem falamos atrás;
Isabel – prima da Virgem Maria e mãe de João, o Precursor;
Ana – mãe da Virgem;
Maria – voluntariamente estéril, no seio da qual o Verbo de Deus assumiu a
condição de homem.
Na verdade, Deus é a única fonte de fecundidade, seja em que aspecto for
que esta se manifeste, porque é o único Criador. Por outro lado torna-se mais uma
vez evidente que Deus escolhe, para o cumprimento da sua insondável vontade,
aqueles que despojadamente se-Lhe oferecem.
Observemos agora, com alguns exemplos a afinidade do Magnificat com
alguns trechos do Antigo Testamento:
Minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus meu
Salvador.
1 Sm 2, 1 – o meu coração exulta o Senhor.
Is 61, 10 – Regozijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegra no meu Deus:
porque me vestiam de vestidos da salvação.
Hab 3, 18 – Todavia, eu me alegrarei no Senhor: exultarei no Deus da minha
salvação.
Pois ele olhou para a humildade da sua serva.

1 Sm 1, 11 – Se benignamente, atenderes para a aflição da tua serva (Ana) e de


mim te lembrares.
Doravante me chamarão bem-aventurada.
Gn 30, 13 – Para minha ventura; porque os filhos me terão por aventurada.
Santo é o Seu Nome.
Sl 111, 9 – Santo e tremendo é o seu nome.

131
A sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que O
temem.
Sl 103, 17 – A misericórdia do Senhor, é de eternidade a eternidade sobre aqueles
que o temem, e a sua justiça sobre os filhos dos filhos.
Mostrou a força de seu braço, dispersou os que tinham em seu coração
pensamentos orgulhosos.
Sl 89, 8 – Ó Senhor, Deus dos exércitos, quem é forte como tu, Senhor.
Sl 89, 10 – Espalhaste os teus inimigos com teu braço poderoso.
Depôs os poderosos de seus tronos, exaltou os humildes.
Is 13, 11 – Farei cessar a arrogância dos atrevidos e abaterei a soberba dos tiranos.
Job 12, 19 – Aos príncipes, leva despojados aos poderosos transtorna.
Job, 5, 11 – Para por os abatidos num lugar alto; e para os enlutados se exaltarem
na salvação.
Saciou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias.
Sl 107, 9 – Pois fartou a alma sedenta, e encheu de bens a alma faminta.
1 Sm 2, 5 – Os fartos se assalariaram por pão, e cessaram os famintos.
Is 33, 11 – Concebeste palha, produzireis pragana; e o vosso espírito vos devorará
como fogo.
Tomou sob a sua proteção a Israel seu servo.
Is 41, 8-9 – Mas tu, ó Israel, servo meu, tu, Jacob, a quem elegi, semente de
Abraão, meu amigo, tu a quem tomei desde os fins da terra, e te chamei de entre os
seus mais excelentes, e te disse: Tu és o meu servo, a ti te escolhi e não te rejeitei.
Lembrando-se da Sua misericórdia.
Sl 98, 3 – Lembrou-se da sua benignidade e da sua verdade para com a casa de
Israel: todas as extremidades da terra viram a salvação do nosso Deus.
Segundo a promessa que fizera a nossos Pais a Abraão e à sua posteridade para
sempre.
(Promessas a Abraão)
Gn 12, 3 – Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da Terra.
Gn 13, 15 – Porque esta terra que vês te hei-de dar a ti, e à tua semente para
sempre.
Gn 17, 7 – E estabelecerei o meu concerto entre mim e ti, e a tua semente depois de
ti, nas suas gerações, por concerto perpétuo.
Gn 22, 17-18 – Deveras te abençoarei, e grandíssimamente multiplicarei a tua
semente, como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a
tua semente possuirá a porta dos seus inimigos; E na tua semente serão benditas
todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz.

NASCIMENTO DE JESUS
O nascimento do Salvador operou-se nos arredores da antiga cidade de
Belém. Numa gruta e não num estábulo, como por vezes se afirma. Esta indicação,
mantida pela tradição desde o início da nossa era, vem expressa no proto-evangelho
de São Tiago, do qual falaremos mais tarde. Ainda hoje é nessa gruta sobre a qual
foi erigido um templo, que se comemora o nascimento de Jesus Cristo.
Nos Evangelhos canônicos, só Lucas descreve este episódio com algum
pormenor, embora a referência ao milagre do parto virginal se encontre devidamente
assinalada no apócrifo atribuído a São Tiago.

APRESENTAÇÃO NO TEMPLO
Quarenta dias após o nascimento, tendo-se cumprido a purificação segundo a
lei judaica, todas as mães deviam consagrar ao Senhor os jovens primogênitos e

132
efetuar uma oferta ao Templo. Os mais pobres ofereciam um par de rolas ou dois
pombinhos. Foi o caso da Santa Mãe de Deus.
Nesta ocasião o Menino é reconhecido por Simeão e Ana. Simeão dirige-se
explicitamente à Santa Mãe de Deus reconhecendo no Menino o seu Salvador e
prediz a oposição que espera Jesus da parte do seu povo e também os seus
sofrimentos de mãe.
JESUS ENTRE OS DOUTORES
Os três dias durante os quais Maria procurou Jesus, prefiguram os três dias
durante os quais Ele vai passar pela morte.
Por duas vezes São Lucas se refere ao modo como a Virgem recebia todos
os acontecimentos que envolviam o seu Santo filho. Assim, em Lc 2, 19 quando da
adoração dos pastores: “Mas Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em
seu coração”. Depois do Deus Menino ter ensinado os doutores: “E sua mãe
guardava no seu coração todas estas coisas”. Deste modo São Lucas manifesta
uma compreensão profunda dos sentimentos da Virgem e descreve-nos a sua
atitude predominantemente silenciosa e introspectiva, de quem se coloca
humildemente em segundo plano.
SÃO LUCAS, ICONÓGRAFO
A vocação mariânica de São Lucas levou-o a ser o primeiro autor de um ícone
da Santa Mãe de Deus. Segundo uma tradição local, a Virgem teria dito, ao ver a
obra: “A minha benção estará para sempre com este ícone”. São Lucas levou-o para
Antioquia para o apresentar a São Teófilo juntamente com o texto do seu Evangelho.
Em meados do século V foi transferido para Constantinopla, ao cuidado da
Imperatriz Eudóxia, como um presente para a sua sogra Pulquéria. Eram-lhe
atribuídos poderes miraculosos.
Este ícone serviu de modelo para um tipo de ícones bizantinos que se
encontrava já definitivamente elaborado no século IX e recebeu o nome de
Hodigitria. Este termo significa condutora, ou a que indica o caminho. O ícone
mostra-nos o Menino sentado sobre o braço esquerdo de Sua Mãe. O Seu terno
olhar está repleto de sabedoria, segura na mão esquerda um rolo de pergaminho
enquanto que com a direita abençoa. A Virgem está de pé, magestática e não
mostra qualquer expressão de intimidade para com o seu Filho. A sua mão direita
pode exprimir um gesto de oração, mas, com mais freqüência, trata-se de um gesto
de apresentação: A Mãe de Deus mostra aos homens o Salvador, que veio ao
mundo através dela.

EVANGELHO DE SÃO JOÃO


O Evangelho de São João apresenta aspectos que lhe são próprios e o
distinguem claramente dos Evangelhos sinóticos. São João mostra de maneira mais
profunda qual o sentido da vida e da palavra de Jesus e refere com maior clareza a
intimidade do relacionamento entre Cristo e o Pai.
Apenas em dois episódios, ambos bastante significativos e sem descrição
paralela nos sinóticos, faz referências à Santa Mãe de Deus: nas Bodas de Caná e
junto à Cruz.

BODAS DE CANÁ
2, 1 – e estava ali a mãe de Jesus.
2, 3 – a mãe de Jesus disse.
2, 4 – Mulher que tenho eu com isso.
2, 5 – Sua Mãe disse aos serventes.
2, 12 – Depois disto desceu a Cafarnaum, ele e sua mãe.

133
Este episódio verifica-se no início da vida pública do Senhor. As palavras
discretas de Maria, prevenindo sobre a falta de vinho, significam que ela espera de
Jesus uma ajuda milagrosa. A resposta do Senhor mostra-nos que a primeira
revelação do seu poder milagroso depende apenas da vontade do Pai, com a qual
nenhum fator pode interferir. Todavia, o Senhor acede ao pedido da Virgem, pouco
depois, o que demonstra a eficácia da sua intercessão. Mais uma vez, tudo começa
pela Mulher.
Quando a Virgem diz aos serventes: “Fazei tudo quanto ele vos disser”,
ensina-nos, mais uma vez, a cumprir com obediência a vontade de Deus. Ela que foi
e é o exemplo perfeito da obediência. E o Senhor deixou-nos “dito”, através dos
Evangelhos, tudo quanto é essencial para nós o seguirmos e podermos ser salvos.
Neste primeiro milagre encontramos a prefiguração do Seu Sacrifício e
também da Eucaristia. Em Caná a água é transformada em vinho. Na Cruz o Senhor
irá derramar do seu lado sangue e água, e na Protése que inicia a Sagrada Liturgia
o sacerdote derrama no cálice vinho e água que irão ser transformados em sangue
eucarístico.
JUNTO A CRUZ
19, 25 – E junto à cruz estava a sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cleófas.
19, 26 – Ora, Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava
presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.
19, 27 – Depois disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe.

Por nove vezes ela é designada como mãe por São João, o apóstolo amado
que a viria a receber, como mãe, em sua própria casa. Ora o número nove faz-nos
lembrar, simbolicamente, a potenciação da Trindade, sempre presente em todas as
obras de Cristo.
Maria está presente no princípio e no fim. Assim, “a sua mãe”, “a mãe de
Jesus”, ou a “mãe do Senhor”, completam-se pela vontade de Cristo em “mãe de
João”, isto é, nossa mãe. João, ao receber a Virgem, representa-nos como homens
e mulheres que queremos receber a Virgem, em nossas vidas como nossa mãe.
Maria, ao receber João como filho, recebe-nos a todos nós como filhos que se
recolhem sob a sua proteção.
Orígenes ilustrou bem esta situação ao afirmar: “Ninguém pode compreender
o Evangelho de João sem ter reclinado a sua cabeça sobre o peito de Jesus e sem
ter recebido d’Ele a Maria como mãe”.
Maria recupera deste modo o papel de Eva, nossa primeira mãe, passando a
ser a Nova Eva. Recordemos que ao castigar a serpente, Deus anuncia já a mulher
que iria feri-la “na sua cabeça” (Gn 3, 15). Essa mulher, a Nova Eva, é a Toda Pura,
Toda Santa e Sempre Virgem Maria, incansável inimiga dos anjos caídos, cuja
“semente” – o Salvador – veio libertar a humanidade.

ATOS DOS APÓSTOLOS


Já após a Ascensão de Cristo aos céus, o Livro dos Atos dos Apóstolos diz-
nos que, os Santos Apóstolos, “entrando, subiram ao cenáculo, onde habitavam
Pedro e Tiago, João e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de
Alfeu, Simão, o Zelador, e Judas, de Tiago. Todos estes perseveravam
unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres, e Maria, mãe de Jesus, e
com seus irmãos” (At 1, 13-14).
Este texto refere com destaques a Santa Mãe de Deus entre as santas
mulheres, os Santos Apóstolos e Discípulos do Senhor que, após o seu regresso ao
Reino dos Céus se mantiveram com firmeza em oração no cenáculo de Jerusalém.
Apesar deste livro não o referir explicitamente, sabemos que a Santa Mãe de
Deus estava igualmente presente no dia de Pentecostes. Foi uma presença rica em

134
significado, uma vez que ela foi a primeira pessoa a receber o Espírito Santo. E
recebeu-O, para a Encarnação do Verbo, num grau acima de qualquer comparação
com os Dons que o Espírito alguma vez derramou sobre todos os santos, desde os
primeiros dias da Igreja Terrena.

APOCALIPSE
No Livro da Revelação encontramos um capítulo dedicado a uma mulher que,
de algum modo, apresenta semelhanças e nos suscita a imagem da Virgem Maria.

12, 1 – Uma mulher vestida de Sol.


12, 4 – E o dragão parou diante da mulher.
12, 6 – E a mulher fugiu para o deserto.
12, 13 – Perseguiu a mulher que dera à luz o varão.
12, 14 – E foram dadas à mulher duas asas.
12, 15 – E a serpente lançou da sua boca um rio .... atrás da mulher.
12, 16 – A terra ajudou a mulher.
12, 17 – E o dragão irou-se contra a mulher.

A misteriosa mulher vestida de Sol é uma imagem da Igreja, descrita com os


traços da Gloriosa Soberana Mãe de Deus. O Arcebispo Averky de Jordanville
(1906-1976), no seu comentário ao Apocalipse de São João, mostra-nos como essa
interpretação foi desenvolvida por Santo Hipólito, São Metódio e Santo André de
Cesareia.
O brilho do Sol significa que a Igreja possui a verdadeira Sabedoria de Deus,
as Suas Leis e contém as Suas revelações. A lua, sob os seus pés, é um sinal de
que ela está acima de tudo o que é mutável.
Na coroa de doze estrelas que pousa sobre a sua cabeça, podemos ver,
numa primeira interpretação, uma alusão às doze tribos de Israel e,
subseqüentemente o símbolo dos doze Apóstolos.
Mas essa mulher estava “com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à
luz” (12, 2), o que seria incorreto se essa mulher fosse a Virgem, cujo parto virginal
foi indolor. Esses tormentos dão-nos uma imagem das dificuldades pelas quais a
Igreja passou e passará, no seu percurso terreno: o sofrimento dos mártires e as
inquietações na luta contra as heresias.
O processo de renascimento espiritual de cada cristão, que conduz à
recuperação de semelhança de Cristo, é repleto de dificuldades e não seria possível
completá-lo sem o auxílio de Cristo e da Igreja. Por isso só é possível a Salvação
em Igreja.
O dragão a que se refere o texto corresponde à imagem da antiga serpente,
identificada com o demônio. A sua cor vermelha indica-nos que está sedento de
sangue e crueldades. As sete cabeças mostram que a sua extrema astúcia se opõe
aos dons do Espírito Santo. Os dez chifres indicam que o poder demoníaco se
exerce contra os dez mandamentos da Lei de Deus. Os diademas sobre as cabeças
apontam para a autoridade do reino das trevas. Aplicando estes símbolos à história
da Igreja, alguns comentadores vêem nos sete diademas sete reis que se ergueram
contra a Igreja e, nos dez chifres, dez perseguições contra ela.
O deserto para onde a mulher foge recorda-nos a freqüente procura do
deserto como refúgio de perseguições e também a procura do deserto como via
ascética de libertação.
As asas de grande águia que foram dadas à mulher são uma imagem do
Velho e Novo Testamentos. A Igreja protege-se no deserto, entendendo este tanto
no sentido material como espiritual.

135
O rio lançado pela serpente contra a mulher pode ser entendido como a
multidão de demônios ou de tentações que afligem os membros da Igreja. No auxílio
que a terra lhe proporciona, podemos ver as obras dos santos que com humildade e
sabedoria superam as provações.
Por fim, S. João mostra-nos que esta luta perdurará até que o Senhor volte
com toda a Sua Glória e condene definitivamente os demônios ao reino das trevas.
A mulher que enfrenta o dragão é também confrontada com a grande
prostituta, embriagada com o sangue dos seus santos (Ap 17). Podemos ver nesta a
imagem oposta à da Virgem, isto é, na representação da heresia e da impureza, a
imagem de uma igreja que inverteu o seu percurso e apostatou a Cristo.

136
2º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA – 2º. ANO

O QUARTO CONCÍLIO ECUMÊNICO


Calcedônia – 451
Este Concílio havia, inicialmente, sido planejado para se reunir em Nicéia, nas
circunvizinhanças de Constantinopla, mas acabou por ser convocado para
Calcedônia.
O motivo principal que presidiu à convocação do Concílio fora a heresia
monofisita que, ao tempo, ameaçava desvirtuar a Verdade teológica e a própria
estabilidade político-social do Império, uma vez que inúmeros focos de insurreição
grassavam por todos os territórios orientais do Império, motivados por dissensões
teológicas entre os cristãos.
A heresia monofista consistia na afirmação grosseira de que em Cristo existia
apenas uma natureza (a divina). Afirmavam os adeptos do monofisismo que a
natureza humana em Cristo tinha sido absorvida pela Sua natureza divina, porque –
segundo diziam (os monofisitas) – não seria possível conceber que a natureza divina
do Verbo Encarnado coabitasse com a natureza humana, sem que esta última fosse
assimilada pela natureza divina.
Este errôneo posicionamento teológico desvirtuava e comprometia seriamente
a plenitude da Encarnação do Verbo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
O mais acérrimo partidário desta heresia era o Patriarca Dióscoro de
Alexandria, cuja doutrina foi condenada pelo Concílio.
Refutando a heresia monofisita como grave erro dogmático, o Papa de Roma
São Leão, o Grande (441-461) enviou ao Concílio o Tomos – documento em que era
explicitamente afirmada toda a correta Teologia Ortodoxa, definindo Cristo, Verbo
Encarnado, como sendo Pessoa Divina e tendo duas naturezas, divina e humana.
Por fim, o Concílio deliberou que em Cristo existam duas naturezas divina e
humana. Ambas coabitando, estando unidas, sem absorção, sem mistura, sem
divisão e sem separação; permanecendo cada uma d`Elas inteiramente plena.
Cristo, Verbo Encarnado, é – mediante as decisões dogmáticas deste Concílio –
perfeitamente Deus e perfeitamente Homem. A Sua natureza humana jamais foi
aviltada pela Sua natureza divina. A natureza humana do Verbo Encarnado usufruiu
sempre, na sua plenitude, de todas as faculdades e virtualidades inerentes ao fato
de ser natureza humana.
Dióscoro, Patriarca de Alexandria, bem como todos os partidários desta
heresia, foram condenados como hereges.
Todavia, as determinações conciliares causaram perplexidade entre os
cristãos coptas do Egito – muito particularmente – não tanto pelo conteúdo
dogmático, mas principalmente pela obrigatoriedade compulsiva de que se
revestiam e que coagia todos os cristãos a aceitá-las. Embora quase todo o
Episcopado oriental achasse por bem que as determinações conciliares fossem
aceites naturalmente pelo povo, o poder imperial, com o intuito de rapidamente por
termo às dissensões no seio do Império, preferiu decidir-se por sujeitar – através de
um Decreto imperial – compulsivamente todo o povo a aceitar imediatamente as
deliberações dogmáticas de Calcedônia.
Quem, naturalmente, reagiu negativamente a esta prepotência do poder
secular (segundo afirmavam) foram os Coptas de Egito, que identificaram a
aceitação das decisões tomadas em Calcedônia como uma sujeição ao poder
imperial bizantino.
Desde há muito tempo que o nacionalismo exacerbado dos Coptas (egípcios)
acarretava graves inconvenientes no que respeitava à aplicação satisfatória dos
Decretos imperiais provenientes de Constantinopla.

138
Os Papas de Alexandria, havia muito tempo que, eram considerados pelo
povo copta como os únicos e legítimos chefes, não só religiosos como temporais.
Por isso, quando o Concílio exilou o Patriarca e Papa de Alexandria, Dióscoro, esse
ato tomou contornos de humilhação nacional, o que desencadeou em retorno uma
unânime rejeição das deliberações conciliares.
A defesa intransigente da heresia monofisita era, no Egito, sinônimo de
oposição à lei estrangeira.
Foi, então, nomeado Patriarca, Portério (452-457), o qual pertencia à “escola”
de Dióscoro. Todavia, foi rejeitado pelo povo como sendo mais uma nomeação
imperial.
O Papa Protério foi expulso e elevado à Sé Patriarcal um novo Bispo, Timóteo
(457-477). Havia rejeitado Eutiques e de forma alguma se poderia considerar em
extremista em Teologia. Era, no entanto, monofisita e um dos seus primeiros atos foi
rejeitar Calcedônia e excomungar o Papa de Roma, Leão e o Patriarca de
Constantinopla, Anatólio.
Apesar desta sua atitude desafiadora, conseguiu manter-se como Papa de
Alexandria porque todas as tentativas de governo imperial para fazer cumprir as
determinações conciliares se afiguraram infrutíferas dada a fortíssima e obstinada
oposição dos Coptas.
Apesar de todas estas contrariedades, o Imperador Zenão (476-491),
aconselhado pelo Patriarca da cidade imperial, Acácio (471-489), propôs um
apaziguamento, que tendia a eliminar o termo “natureza” de todas as conversações
teológicas. O Imperador publica, um “célebre” documento apelidado de Henóticon ou
“Instrumento de União”, em 482. Sendo o seu conteúdo naturalmente ortodoxo, não
menciona o Concílio de Calcedônia, condenando embora Eutiques e Nestório.
Grande parte do Episcopado oriental aceitou esta solução “provisória” e
assinou o Henóticon e mesmo o próprio Papa de Alexandria, Pedro (477 – 490) a
sancionou.
Mas o futuro desta paz fictícia afigurava-se conturbado e acaba em 484,
quando o Papa de Roma, Félix III (483-492) excomunga o Patriarca Acácio de
Constantinopla por tentar evitar o uso da definição calcedônica. Todos aqueles que
se opunham à reconciliação foram encorajados por esta atitude de Roma e o
Henóticon foi globalmente repudiado, quer pelos partidários, quer pelos opositores
do IV Concílio Ecumênico, e a controvérsia em torno das definições dogmáticas de
Calcedônia continuou a persistir por parte dos Coptas até aos nossos dias,
culminando no que hoje apelidamos de Igreja Copta “monofisita”).

Justiniano I (527-565)
Este grande Imperador, seguramente um dos maiores que alguma vez
presidiram aos destinos de Bizâncio, quando chega ao trono encontra o Império
vivendo ainda perdido nos meandros das questiúnculas estéreis que incidiam em
todas as vertentes da vida quotidiana, desde o aspecto social, econômico, político e
religioso.
Podê-lo-emos descrever como o parâmetro adequado do Soberano Bizantino:
dedicado ao dever, pleno de energia, insofismável edificador de cidades, fortalezas,
pontes e igrejas.
Religiosamente era um homem profundamente convicto, sóbrio e místico; não
bebia vinho, comia muito pouco e dormia numa cama de madeira.
O interesse que dominava toda a sua vida era, sem dúvida alguma, a
Teologia e o que mais gostava era de poder falar com monges e bispos sobre todas
as questões teológicas. No cumprimento das suas funções imperiais era
brilhantemente ajudado pela sua habilíssima mulher Teodora (+ 458), quer perfilhava
a mesma paixão pela Teologia que tão querida era a seu marido.

139
Grandes ambições eram acalentadas nestes dois espíritos de eleição: um
grandioso plano de restauração do Império, devolvendo-lhe a glória que outrora
usufruíra, e trazer a paz à Igreja.
No plano político ambos conseguiram resultados singulares: expulsaram os
bárbaros do Norte de África e da Itália restauraram o Império no Ocidente. E no
âmbito religioso conseguiram que o V Concílio Ecumênico fosse aceite pela
esmagadora maioria dos cristãos e ainda o sublime milagre de perfeição
arquitetônica que é a Catedral de Santa Sofia (Divina Sabedoria), erguida nas
margens da Ponte Dourada, como coroamento do seu longo e difícil reinado.
Todavia, os seus sucessos revestiram-se de uma perenidade ilusória,
culminando, no âmbito político, por um embaraço temporário do avanço bárbaro e
no campo religioso viu gorarem-se os seus esforços ao tentar conseguir uma
reconciliação “forçada” entre os partidários e os opositores do Concílio de
Calcedônia, culminando na separação de ambos.
Dois princípios norteavam a sua política eclesiástica: que da Ortodoxia da Fé
confessada pelo Imperador e pelo seu povo dependiam a prosperidade e a
segurança do Império e que salvaguardar a integralidade da Igreja e a firmeza dos
seus ensinamentos eram o seu dever.
Podemos ler no Prefácio à sua Sexta Novela (535): “Há dois dons conferidos
por Deus aos homens: o Sacerdócio e a Autoridade imperial (Sacerdotium e
Imperium). Destes, o primeiro refere-se às coisas divinas e o segundo aos assuntos
humanos. Provenientes da mesma fonte, ambos adornam a vida humana. Nada é
de maior importância para os Imperadores do que apoiar a dignidade do Sacerdócio,
de modo que os Bispos possam, por sua vez, rezar a Deus por eles. Estamos,
portanto, interessados em manter as verdadeiras doutrinas inspiradas por Deus e
em honrar os Bispos. A prosperidade do Reino será assegurada se os Sagrados
Cânones dos Apóstolos, preservados e explicados pelos Santos Padres da Igreja,
forem universalmente obedecidos”.
Por acreditar firmemente no que acima é referido, é que Justiniano ousou
imiscuir-se nos assuntos que somente à Igreja incumbia resolver. Considerava-se
um dos principais teólogos do seu tempo e compôs vários “tratados” doutrinais que
tentou impor à Igreja.
Aqueles que o tinham precedido no trono imperial limitaram-se a apoiar uma
ou outra facção episcopal; contudo, Justiniano foi mais longe, elaborou as suas
próprias fórmulas teológicas que procurou impor aos cristãos.
Justiniano e sua mulher Teodora jamais trataram os monofisitas como
heréticos, mas sim como uma “dissonância doutrinal” ao interior da própria Igreja
cristã.
Entre as inúmeras tentativas que Justiniano liderou para unir os
Calcedonianos e os anti-calcedonianos, a mais importante foi aquela que se tornou
conhecida por a questão dos “Três Capítulos”. A censura imperial era aí dirigida
contra três grandes teólogos sírios da Escola de Antioquia e que já haviam partido
para o Reino dos Céus. Eram eles: Teodoro de Mopsuéstia (+ 428), (que havia sido
professor de Nestório e condiscípulo de S. João Crisóstomo , Teodoreto de Ciro
(458) e Ibas de Edessa (457). No ano de 543 Justiniano promulga um decreto
condenando as obras desses três eminentes teólogos, tendo todos eles partido para
os Céus, em paz com a Igreja Católica, muito venerados pelos Sírios orientais, tanto
no interior do Império como fora dele.
Os “três Capítulos” eram uma famigerada compilação de textos extraídos das
obras destes três teólogos, tendenciosamente retirados do seu contexto original,
proporcionando assim uma interpretação errônea e parcelar que desvirtuava a
globalidade das obras.

140
Naturalmente todas estas passagens perniciosas, desinseridas do texto
inicial, formavam um tríplice volume de textos condenáveis e que em nada refletiam
a ortodoxia das obras teológicas destes três Homens de Igreja.
Justiniano queria que a Igreja condenasse não só as obras (e muito
particularmente os “Três Capítulos”, que considerava serem a pálida imagem da
heterodoxia de Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa), como
os Homens em questão.

O QUINTO CONCÍLIO ECUMÊNICO


Constantinopla II - 553
O Imperador convoca, então, o V Concílio Ecumênico – e II de Constantinopla
– para que toda a Igreja sancionasse as suas determinações “teológicas”. O Concílio
permanece reunido do dia 5 de maio ao dia 2 de junho de 553, tendo sido presidido
pelo Patriarca de Constantinopla, Eutíquios.
O Concílio vai condenar, não os três grandes teólogos, que tinham
testemunhado, pelo exemplo das suas vidas, da ortodoxia da sua Fé, mas tão-
somente aquela compilação de textos que, quando juntos, tinham uma nítida
fisionomia herética.
- O Concílio vai reabilitar a estatura teológica dos eminentes teólogos,
enviando uma admoestação sutil ao Imperador para que, doravante,
deixasse à Igreja a resolução dos seus próprios assuntos.
- Vai confirmar toda a obra dogmática do IV Concílio Ecumênico de
Calcedônia (451), salientando o cuidado que se deveria de ter na
terminologia empregada na formulação dogmática, terminologia essa que
havia sido a grande causadora da divergência teológica em 451.
- Exalta a ortodoxia de S. Cirilo, dizendo que o grandioso teólogo (S. Cirilo)
copta era indiscutivelmente ortodoxo em todas as vertentes da sua
teologia e que fora a linguagem, veículo desse pensamento, que tinha sido
mal interpretada. O Concílio de Constantinopla vai ainda condenar:
- As interpretações heréticas baseadas nos ensinamentos de Orígenes, aos
quais se tinham entregado os monges da Palestina.
- A Apocatástase ou restabelecimento da inocência primordial (primeira) no
concernente aos batizados. Mesmo sendo cristão, o Homem permanece
pecador.
Mais uma vez, neste Concílio como em tantos outros, foi a Igreja que se
pronunciou conciliarmente e não uma política imperial qualquer, por muito
elaborada que fosse.
Servindo-se do desejo de reconciliação inspirado pelo interesse imperial, a
misericórdia divina permitiu que a aproximação inspirada pelos interesses do Império
acontecesse, mas, sobretudo postulou uma abertura de espírito e uma compreensão
dos problemas humanos e eclesiais que faltava a alguns homens de Igreja.
Se o Concílio de Calcedônia foi o Concílio da Encarnação do Verbo, Segunda
Pessoa da Santíssima Trindade, o de Constantinopla terá, indubitavelmente, sido o
da Misericórdia divina e da verdadeira Economia.

O SEXTO CONCÍLIO ECUMÊNICO


Constatinopla III – 680

Monotelismo

Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, tão ardentemente amado e


defendido pelos Padres da Igreja, continuava, todavia, a ser motivo de

141
interpretações errôneas, ainda em finais do século VII. Era uma heresia muito
próxima à dos monofisitas, à qual se dava o nome de monotelismo.
Os monotelistas ensinavam que Cristo tinha duas naturezas, divina e
humana, mas advogavam que tinha somente uma vontade (divina). Mediante
semelhante posicionamento teológico, os monotelistas, tal como os monofisitas,
atacavam a plenitude da natureza humana do Verbo Encarnado. Com efeito, uma
natureza humana sem vontade humana seria incompleta e constituiria uma
abstração. Cristo, Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem, possui uma vontade
divina e uma vontade humana.
O Imperador Constantino IV convoca, então, um Concílio que virá a ser o VI
Ecumênico e o III reunido em Constantinopla (680-681).
O Bispo de Roma Honórius e o Patriarca de Constantinopla, bem como a
maioria dos Hierarcas cristãos tinha caído na heresia. Como podemos constatar, ser
Chefe de Igreja não é, por si só, critério de Ortodoxia e muito menos de
infalibilidade.
Embora durante as sessões conciliares Roma e Constantinopla se tenham
pronunciado a favor da heresia monotelista, a totalidade dos Padres presentes no
Concílio posicionou-se a favor da Ortodoxia Dogmática, refutando lapidarmente o
monotelismo como heresia. Os dois Antístetes, Honórius e Sérgio, no fim das
reuniões conciliares assinaram as Atas do Concílio, submetendo-se às suas
determinações.
Os grandes defensores da Ortodoxia foram São Máximo, o Confessor e São
Sofrônio, Patriarca de Jerusalém. Antes da convocação do Concílio, São Máximo foi
um incansável batalhador em prol da reta Doutrina, que a maioria da Hierarquia não
confessava. Podemos afirmar, com legitimidade, que o principal opositor aos
heresiarcas monotelistas foi São Máximo, o Confessor, quer através do exemplo da
sua vida, quer por intermédio das cartas que infatigavelmente dirigia aos Hierarcas,
admoestando-os contra o grave perigo da heresia monotelista.
O Concílio reuniu 174 Padres Conciliares, o quais proclamaram que, da
mesma forma que em Cristo há duas naturezas, divina e humana, também há duas
vontades, divina e humana.
O monotelismo foi completamente erradicado após as deliberações
conciliares e com este VI Concílio Ecumênico pôs-se fim a todas as heresias sobre a
Encarnação do Verbo.
Este Concílio originou um outro, denominado Quini-Sexto, ou “in Trullo”,
convocado em 692. Não possui o valor de um Concílio Ecumênico. Produziu
cânones disciplinares em parte contra as práticas da Igreja latina. Foi
canonicamente exigido o celibato dos Bispos; e ao contrário do que Roma já então
começava a advogar, o Concílio ergue-se contra a idéia de aplicar este mesmo
princípio a todo o clero. Podemos, também, ler no cânone II que: “A Tradição não
consiste apenas na interpretação autorizada da Sagrada Escritura. Na vida da Igreja
existem regras fundamentais que tem implicações dogmáticas e que não são
mencionadas no Novo Testamento, mas que nos chegam da Era Apostólica e se
erigiram em Tradição da Igreja, como marcos imprescindíveis para todos aqueles
que vivem eclesialmente unidos na mesma Fé. Não se pode confundir (esta)
Tradição com um conservadorismo estreito e estático. A Tradição da Igreja Una,
Santa, Católica e Apostólica, repudia igualmente todas as inovações sectárias,
contrárias ao Espírito que anima a Igreja”.
O VI Concílio Ecumênico teve 18 sessões, desde o dia 7 de novembro de 680
até 16 de setembro de 681.
Não houve – ao invés do que tantas vezes no passado recente tinha existido
– interferências do Estado ou do Imperador.

142
Presença Bizantina na Península Ibérica até ao ano 711

Mais evidente do que em qualquer outra parte da Europa Ocidental, a


presença bizantina prolongou-se na Hispânia por mais de sete séculos.
Se esta presença oriental até à queda do Império Romano do Ocidente (séc.
V) era algo de natural que decorria da própria natureza das Instituições do Império,
com a invasão dos “Bárbaros” no princípio do século V e seguidamente no século VI,
esta presença continuou a fazer-se sentir, com contornos um pouco diferentes, por
intermédio dos povos que agora ocupavam a Península Ibérica.
Tanto os Alanos e Vândalos, como os Suevos e Visigodos, eram povos
proveninentes do Oriente que, de uma forma mais ou menos intensa, tinham tomado
contato com o cristianismo ortodoxo e sofrido a influência cultural de Bizâncio; isto
que acabamos de referir é particularmente notório no caso dos Visigodos, cujo povo
conviveu de perto com os cristãos no Oriente, tendo-se convertido ao cristianismo
(aos partidários da heresia arianista).
A monarquia visigótica que se instala na Hispânia, sempre manteve estreitos
laços políticos e culturais com o Império de Bizâncio, a ponto de haver solicitado um
corpo permanente de tropas imperiais (bizantinas) na Península. Esta
interdependência criou características próprias na Igreja Peninsular, que a iria
diferenciar das demais Igrejas no Ocidente.
Não é, contudo, este o momento de abordarmos em profundidade a questão
referente ao cristianismo na Hispânia. Fá-lo-emos oportunamente.
Incumbe-nos a grata tarefa de escolhermos o século VI da vida da Igreja
Peninsular para nele depararmos com o maior vulto teológico, pastoral e monástico
– São Martinho de Dume – que se nos impõe pelas suas virtudes e santidade, num
século extremamente conturbado da existência da Igreja cristã no Extremo Ocidente
Europeu.

São Martinho de Dume (510 ? 20/03/579)

São Martinho de Dume nasceu na Panónia (atual Hungria) por volta do ano
510 e muito cedo tomou como exemplo a vida de São Martinho de Tours (316-397).
Ainda jovem, parte para Jerusalém, onde permanece muitos anos, orando e
aplicando-se ao estudo da Teologia Patrística dos gloriosos Padres da Igreja que o
antecederam.
Cerca do ano 550 aporta a Galiza para ser o “Apóstolo dos Suevos”.
São Gregório de Tours (século VII) deixou-nos uma narrativa, de aspecto
lendário, sobre a conversão deste povo à chegada de São Martinho. Conta ele que
“um Rei ariano da Galiza, Carrarico (do qual não há nenhuma outra menção),
sabendo dos milagres de São Martinho Turonense, recorreu à sua proteção em
grave doença de um filho. Por duas vezes mandou emissários à Gália, com ricos
presentes para o túmulo do Santo, e prometeu abraçar a Fé católica se obtivesse
relíquias suas. Quando estas chegaram a Portum Galliciae (Portucale), saiu a
recebê-las o próprio filho do Rei, inteiramente curado. Nessa mesma ocasião
chegava São Martinho (de Dume), vindo de região longínqua. O Rei converteu-se à
verdadeira Fé e crismou-se com toda a gente da sua Casa e logo desapareceu a
lepra que grassava naquela província”.
Todo o tempo que Deus permitiu a São Martinho viver em terras da Galiza,
dedicou-o o grande Padre da Igreja a um apostolado exercido essencialmente entre
os Suevos, arianos, que o Apóstolo consegue trazer à aceitação da justa Doutrina.
Santo Isidoro de Sevilha atribui a conversão dos Suevos unicamente a São
Martinho de Dume (De Viribus illustris).

143
Um outro grande Padre da Igreja, São Venâncio Fortunato, na poesia que
dedica a São Martinho (p.133), compara-o aos Apóstolos; a Pedro na virtude; a
Paulo na pregação. Felicita repetidas vezes a Galiza por lhe caber em sorte este
Apóstolo, assim como a Mateus coube a Etiópia, a Bartolomeu a Pérsia, a Tomé a
Índia, a André a Acaia, etc.
Refere-se aos Suevos através de imagens, comparando-os a “uma terra
inculta e estéril, a que a Doutrina deste Evangélico Agricultor fez fértil e fecunda,
arrancados os espinhos e as venenosas plantas e reduz a boa cultura, produtiva de
admiráveis frutos”.
Representa-o como “Pastor Vigilantíssimo”, guardando o seu rebanho de
vorazes lobos, recolhendo dos montes as ovelhas desgarradas para os saudáveis
pastos de Cristo, trazendo-as a beber à fonte da vida. Representa-o como “o servo
fiel”, que tendo lucrado com os talentos recebidos, será constituído sobre muitos
bens, e entrará nas Delícias do seu Senhor.
São Martinho de Dume, servindo-se do exemplo da vida monástica que tinha
presenciado no Oriente, funda vários mosteiros na Galiza e dota-os de exigente
regra de vida.
O mais importante de todos os mosteiros que fundou foi, sem dúvida alguma,
o Mosteiro de Dume. Ainda em dias de sua vida, o Mosteiro de Dume albergou mais
de 100 monges e tornou-se numa verdadeira escola monástica pelo exemplo dos
seus monges. Incumbiu o Diácono Pascásio (São Pascásio) de verter para o latim
uma coletânea de Máxima dos Padres Orientais e ele próprio traduziu as Sentenças
dos Padres do Egito.
No ano de 556 foi sagrado Bispo pelo Metropolita Lucrécio, na igreja do
Mosteiro de Dume, que lhe conferiu jurisdição sobre o mosteiro.
Em 558 Teodomiro (cristão ortodoxo) é Rei dos Suevos e com ele grande
parte (a maioria) do povo abraça a verdadeira Fé. A Igreja atinge, no Ocidente
Peninsular, um desenvolvimento e um crescimento notáveis no início da Segunda
metade do século VI.
Estava-se no ano de 556 quando se reúne o I Concílio de Braga.
São Martinho é um dos Bispos eminentes deste Concílio. Preside o
Metropolita Lucrécio. Tomaram-se resoluções, condenando a heresia priscilianista e
redigiram-se 22 cânones sobre assuntos litúrgicos e disciplinares.
Quando o Metropolita Lucrécio parte para o Reino dos Céus, São Martinho
ascende ao Sólio Metropolitano.
Entretanto as conquistas dos Suevos haviam trazido os limites do Reino até
ao rio Mondego e, por conseguinte, ampliaram os da Província Eclesiástica. Além da
Galiza, faziam parte da Metrópole bracarense as Astúrias e parte da Lusitânia. São
Martinho achou então, por bem, dividir o Reino suévico, eclesiasticamente, em dois
Sínodos: o Sínodo Bracarense e o Sínodo Lucense. Todavia não erigiu uma
Metrópole em Lugo.
No II Concílio de Braga, reunido em 572, estiveram presentes os Bispos dos
dois Sínodos, tendo presidido São Martinho de Dume, enquanto Metropolita Primaz
das Espanhas.
O Concílio tomou disposições contra o Sabelianismo (heresia trinitária) e
redigiu 9 cânones disciplinares. Oportunamente falaremos, pormenorizadamente, da
importância dos dois Concílios havidos em Braga.
Com o intuito de complementar a obra conciliar e a fim de uniformizar a
disciplina em todo o Reino, São Martinho tomou sob a sua responsabilidade a tarefa
de ordenar uma coleção de Cânones dos Concílios Orientais, da qual enviou cópia
ao Bispo de Lugo. (Impõe-se que saibamos que, não obstante os dois Concílios de
Braga 561 e 572 terem sido Concílios regionais, as suas determinações foram
aceitas em toda a Península – nas restantes quatro Metrópoles: Bética (capital,

144
Sevilha), Lusitânia (capital, Mérida), Cartaginense (capital, Cartagena) e
Tarraconense (capital, Tarragona). A primeira Metrópole era a da Galécia (capital
Braga).
A genialidade de São Martinho ficou marcada em obras suas como a
“Formula Honestae vitae”, dedicada ao Rei Miro, “De Trina Mersione” (Sobre o
Batismo por tripla imersão) e “De Correctione Rusticorum”, assaz interessante para o
conhecimento dos costumes da época.
São Martinho parte para o Reino dos Céus a 20 de março de 579, sendo
sepultado na Catedral de Dume. Foi de 23 anos o seu Pontificado, tendo presidido à
Igreja das Espanhas durante 10 anos.
No seu epitáfio sepulcral, por ele próprio redigido, podemos ler e constatar a
veneração que tinha ao Santo Bispo de Tours: “Nascido na Panónia, atravessando
vastos mares, impelido por sinais divinos para o seio da Galiza, sagrado Bispo nesta
tua igreja, ó Martinho confessor, nela instituí o culto e a celebração da Liturgia.
Tendo-te seguido, ó Patrono, eu, o teu servo Martinho, igual em nome que não em
méritos, repouso agora aqui na paz de Cristo.”
São Gregório de Tours e Santo Isidoro de Sevilha louvaram São Martinho de
Dume como um dos homens mais notáveis do seu século, tanto no Ocidente como
no Oriente.
São Martinho de Dume veio de longe evangelizar dois povos perdidos nos
meandros da heresia e converteu-os à Ortodoxia. Fundou muitos mosteiros, pregou,
escreveu, dissipou os derradeiros vestígios da heresia e animou dois Concílios.
Podemos mesmo afirmar que – embora de longe – preparou os princípios da
Independência Portuguesa.
Devemos ainda atribuir-lhe o fato de designarmos os dias da semana como
nomes de origem eclesiástica, ao passo que no resto da Península persistiram os
nomes de origem pagã.

Limites da Representação do “Invisível” na Antiga Lei

A Lei do Antigo Testamento proibia as imagens porque elas punham em


perigo a pureza do culto do Deus invisível. Só a arte ornamental das formas
geométricas traduzia a noção do infinito.
A distância entre o Homem e Deus aumentou enormemente pelo fato de o
Homem se desviar da sua semelhança inicial com Deus. Por outro lado, o plano
angélico guardou intacta a sua natureza de “segunda luz”, receptáculo puro da Luz
divina, a tal ponto que a representação dos Anjos é ordenada por Deus. O mundo
celeste dos Anjos, destinados a serem mensageiros de Deus no serviço prestado ao
Homem, encontra, a fim de realizar este mistério, na sua expressão artística, a sua
forma humana sobre a Arca da Aliança. O Antigo Testamento deixou-nos o ícone
esculpido dos Querubins. Estes são, por sua vez, colocados no Tabernáculo.
Logo, antes da Encarnação, por receio de idolatria, toda a expressão visível
do mundo celeste fica limitada aos Anjos. Mas devemos compreender que esta
limitação é somente a purificação de uma espera; é como que (e realmente é) uma
profecia, ou melhor, uma prefiguração da chegada do Ícone de Cristo.
Quando da Festa da Ortodoxia, festa dos Ícones por excelência, a Igreja,
através de duas leituras do Evangelho que escolheu (Mt XVIII, 10 e Jo I, 43-51),
ensina-nos que os Anjos multioculares têm o Dom de contemplar Deus na Sua Luz
divina e que após a Encarnação todos os fiéis recebem este Dom angélico que o
Ícone exprime tão evidentemente.
Cristo livra os homens da mitologia e dos ídolos, não negativamente,
suprimindo (acabando) a imagem, mas positivamente, revelando o verdadeiro rosto
de Deus, enquanto Verbo Encarnado.

145
A Humanidade de Cristo (natureza humana) é Ícone da Sua Divindade, como
o proclama o VII Concílio Ecumênico, dizendo que Cristo é o único Ícone do Deus
Vivo.
O humano é afirmado na sua função iconográfica; imagem visível do Invisível.
O seu fundamento escriturístico remonta à Criação do Homem, “à imagem de Deus”.
Interrompida pela Queda, a sua plenitude realiza-se em Cristo e passa para
os cristificados. Deus n`Ele próprio transcende toda a imagem, mas pela
Encarnação dá-Se a conhecer.
A Encarnação vem de Deus, do Seu desejo de Se tornar Homem e de fazer
da Sua humanidade (natureza humana) uma teofania (manifestação divina), um
lugar e um ícone vivo da Sua Presença.
“Deus criou o mundo para Se tornar Homem e para que o Homem se torne
Deus, pela graça” (Santo Atanásio).
“O Verbo desceu em Adão antes dos séculos” (Metódio do Olimpo).

O Iconoclasmo e o VII Concílio Ecumênico (787)

O Iconoclasmo exprime, antes de tudo, um violento ímpeto, arrebatamento de


transcendentalismo semítico, judaico e muçulmano, e mesmo até cristão,
sobrevalorizando o sentido do indizível, do inefável e do incognoscível divinos, em
detrimento da Encarnação. Foi uma reação contra os excessos de um culto algumas
vezes idolátrico das imagens, contra a sua contaminação por certas concepções
mágicas, que confundiam o Ícone e a Sagrada Eucaristia e propunham a
consubstancialidade da imagem com o seu modelo.
O conflito entre iconoclastas e iconódulos surge numa altura em que uns e
outros não mais dialogam, uma vez que falavam linguagens diferentes. Segundo os
iconoclastas, não era possível conceber o Ícone, dado que (na versão deles) toda a
imagem é retratística e todo o “retrato” do Divino é inconcebível.
Recusavam ao Ícone todo o seu caráter simbólico por possuírem unicamente
uma visão realista da arte.
Acreditavam nos símbolos, isto é, na Presença real do Simbolizado no Seu
símbolo (Eucaristia), mas recusavam lapidarmente toda e qualquer relação de
Presença entre o Protótipo e a Sua Imagem iconográfica.
Caía, assim, o Ícone do plano sacramental para a arte profana. Mediante os
iconoclastas, a pretensão do Ícone em tangibilizar o Sagrado, revelava heresia e
superstição.
Para os iconoclastas não era possível – não obstante a arte realista que
reproduz o visível do visível fazendo uma duplicação ou cópia exata do objeto dado
– conceber a existência de uma arte do Ícone onde a Imagem permite ver o visível
do Invisível. No Ícone, o Invisível torna-se visível, tornando-se misteriosamente
presente, revelando-se, e então o Ícone é símbolo autêntico no plano da Presença
mística pessoal.
A nível religioso, os iconoclastas não toleravam a arte não figurativa. Se sobre
a cruz não estivesse Cristo nos Seus contornos geométricos, rejeitavam-na como
indigna de veneração e ela própria, devido à ausência de figuração tangível,
suprimia a possibilidade da Presença mística do Simbolizado. Só admitiam a
Presença mística de Cristo na Eucaristia.
A Eucaristia é um milagre e um mistério em que a matéria cósmica (o Pão e o
Vinho) são transformados em “matéria” celeste do Corpo transfigurado de Cristo.
Contudo, o milagre da transformação do Pão e do Vinho em Corpo e Sangue de
Cristo, opera-se sem nenhuma semelhança visível. Qualquer visão do Corpo “carne”
no Cálice é severamente interditada pelos Cânones.

146
O Pão e o Vinho são o Corpo e o Sangue de Cristo, mas esta identidade de
natureza esconde a Presença real de Cristo, não enquanto véu inerente a todo o
mistério, mas na medida em que esta Presença, não sendo visível, não possui
Imagem.
O Pão (que é visível) é simplesmente afirmado idêntico ao invisível (o Corpo
celeste do Verbo Encarnado), mas esta operação não permite nenhuma visão. A
Liturgia não pode servir de Ícone, na medida em que Ela é a “Ceia do Senhor” que
deve ser consumida e não contemplada.
Mas o Ícone ergue-se num plano muito diferente e é por isso que escapa a
toda a possibilidade de idolatria. A própria palavra “ícone” suprime antecipadamente
qualquer antecipação e assinala a diferença de natureza entre a imagem e o seu
protótipo, entre a representação e aquilo ou aquele que é representado.
Seria estultícia e erro crasso afirmar que o Ícone de Cristo é Cristo, da mesma
forma que sapientemente afirmamos: “Este Pão é o Corpo de Cristo”. Proferir
semelhante afirmação seria idolatria incontestável.
O Ícone vai-nos dar – porque é uma imagem – o testemunho de uma
Presença de uma outra ordem.
O Ícone vai possibilitar-nos uma comunhão orante que não é uma Comunhão
eucarística, substancial, com a Natureza glorificada de Nosso Senhor Deus e
Salvador Jesus Cristo, mas sim Comunhão espiritual e mística com a Sua Pessoa
divina.
O Ícone permite um reencontro com aquele que é simbolizado, na oração,
sem localizar esta Comunhão no Ícone, enquanto objeto material; o Ícone vai ser
veículo dessa Presença misteriosa daquele que nele é simbolizado.
O Ícone vai evidenciar a semelhança mística entre a imagem visível que nos é
dada ao olharmo-lo e aquele que é simbolizado e que permanece invisível nos Céus.
Esta semelhança revela a contemplação da Igreja e é necessária para que
possamos compreender a verdadeira natureza do Ícone. É desta forma que a Igreja
vê Cristo liturgicamente.
Esta semelhança misteriosa e dinâmica com o protótipo vai conduzir-nos ao
mistério do Ícone.
Como nos diz o VII Concílio Ecumênico, o ícone tem o nome do protótipo e
ele não transporta (não contém) a sua natureza, o que significa que a essência
mística do ícone só se reporta à Presença hipostática.
O Ícone não tem existência própria. O Ícone conduz ao protótipo e anuncia a
Sua Presença e testemunha da Sua Parusia (no caso do Ícone de Cristo). O Ícone,
ponto material deste mundo, abre uma brecha, uma janela – como nos refere sua
Beatitude – para o Reino dos Céus. O transcendente irrompe no Ícone e as vagas
sucessivas da sua presença transcendem todo o limite e enchem todo o universo.
O VII Concílio Ecumênico (787) restabelece o culto dos Ícones, mas ainda
sem uma doutrina elaborada. Contudo, os Padres da Igreja desta época
responderam às principais questões dos iconoclastas. Á questão dos iconoclastas:
“Como é que se pode circunscrever Cristo sob a forma de uma imagem?” –
responde o Concílio, no seu Cânone III, com uma pergunta: “Vós todos que negais
que Cristo possa ser circunscrito, como O reconhecereis quando da Parusia?”
Os Ícones dos Santos, para além da aparência terrestre (“distorcida”),
permitem que vejamos através da sua humanidade deificada as pessoas iluminadas
pela Luz do Oitavo Dia.
Segundo São Gregório Palamas, “o Corpo deificado de Cristo é representado
sobre os Ícones, na medida em que Ele manifesta a Divindade de Cristo”.
O VII Concílio Ecumênico afirma clara e categoricamente: “Nós não
reconhecemos no Ícone nada que não seja uma imagem representando uma

147
semelhança com o protótipo. É por isso que o Ícone recebe o seu nome; é
unicamente por isto que o Ícone é venerável e santo”.
A definição é fundamental: o milagre do Ícone, a sua participação em Cristo
situa-se unicamente na semelhança, não natural, mas hipostática. Se o Ícone mostra
a humanidade de Cristo, é como representativa da natureza humana que ela a
recapitula e é por esta razão que a sua diversidade (a multidão de diferentes ícones)
não encerra nenhum aspecto humano retratístico. Na sua qualidade de símbolo, o
Ícone veicula a Presença da totalidade divino-humana. “Nós contemplamos o
indizível e o representado”, diz o Concílio. Toda a honra prestada a um ícone é
dirigida ao seu protótipo.
O Ícone é santificado pelo Nome de Deus e pelo Nome dos Amigos de Deus
(os Santos). Escrituristicamente, o Nome de Deus é um dos lugares da Sua
Presença. No Nome que é pronunciado através e com o Ícone que o “pronuncia” à
sua maneira, o nosso amor transporta-nos a venerar e a beijar, na própria
semelhança, a graça da real Presença do protótipo.
O Ícone dum Santo não coloca a questão cristológica das duas naturezas,
mas a dos dois corpos: terrestre e celeste. O corpo terrestre, já deificado, e a
antecipação do corpo celeste; o Ícone sugere o verdadeiro rosto de eternidade que
Deus contempla e é nesta semelhança com o celeste que se situa a Presença
hipostática de um Santo.
Os Padres da Igreja respondem ao argumento, grosseiro, de idolatria muito
claramente: Um ídolo é a expressão do inexistente, da ficção, do simulacro, do nada.
Por conseguinte, idolatrar o ícone, adorá-lo como identidade substancial segundo a
natureza, é destruí-lo, pois é fechar, encerrar uma presença mística num pedaço de
madeira; é fazer um ídolo e tornar ausente a pessoa representada.
O VII Concílio Ecumênico precisa: “Quanto mais o fiel contempla o Ícone,
mais ele se lembra daquele que aí está representado... Infelizes daqueles que
adoram as imagens!”.
Entre os grandes defensores dos Ícones vamos encontrar São João
Damasceno e São Teodoro, o Estudita, e ainda Santa Irene, Imperatriz.
Santa Irene, após a morte de Leão IV, o Khazar (775-780), conseguiu
convocar o VII Concílio Ecumênico (787), que se reuniu sob a presidência de
Tarásio, Patriarca de Constantinopla (784-806). Estiveram presentes cerca de 300
Bispos e o Papa de Roma enviou dois delegados.
- As decisões do Concílio de 753, convocado por Leão III – que havia
declarado que a única representação justa e adequada era a Eucaristia e
que as imagens, que só podiam figurar a sua vertente humana, eram
heréticas – foram repudiadas e a veneração dos Ícones restabelecida.
- O Concílio afirma que o Ícone não é um ídolo, mas um símbolo.
- O cristão que o venera, não o adora.
- Esta veneração prestada aos Santos Ícones não é dirigida à madeira ou à
pintura, mas a pessoa representada.
- O Concílio de Nicéia II (787) vai realizar uma síntese dogmática de todo os
santos Concílios precedentes.
Todas as Igrejas do Oriente comemoram esta vitória dos Ícones no Domingo
do “Triunfo da Ortodoxia”. Nesta altura é proclamada a verdadeira Fé e pronunciam-
se os anátemas contra aqueles que atacaram os santos Ícones ou os Sete Concílios
Ecumênicos e as Tradições que estão conformes à Revelação divina e que a Igreja
mantém piedosamente.
Foi a última das heresias respeitantes à Encarnação do Verbo.
Ao contrário de muitas outras heresias, esta foi fomentada e protegida em
primeiro lugar pelo Basileus (Imperador). Dando origem a uma nova família imperial
– os Isaurianos – Leão III (717-741), fundador da Família, e seu filho Constantino V

148
(741-775) foram grandes e vigorosos Imperadores e consolidaram o Império. O seu
objetivo – em função dos cristãos – consistia em refrear uma veneração excessiva
dos Ícones que representavam Cristo, a Virgem Maria e os Santos.

Carlos Magno e os princípios da Centralização Romana

Com a morte do Rei Dagoberto I (639), sucede-lhe uma série de reis,


incapazes de suportar e manter a grande herança do Reino Merovíngio. A certa
altura, cessa a eleição e aclamação reais e o poder cai nas mãos daqueles que, a
partir de então, passariam a ser conhecidos como Prefeitos do Palácio de Austrásia
e de Nêustria. Carlos Martel (685-741), Prefeito do Palácio de Austrásia e de
Nêustria, era filho de Pepino de Herstal (640-714). Consegue em 732, em Poitiers,
destroçar os Árabes, comandados por Abd al-Rahmãn, impõe vassalagem à
Borgonha e à Provença e regulariza o sistema de sucessão entre os seus dois filhos:
Carlomano e Pepino.
Carlomano, Prefeito do Palácio de Austrásia, decidiu abraçar a vida
monástica e foi monge na Itália. Nesta altura, seu irmão Pepino, o Breve (715-768) é
Duque de Nêustria, da Borgonha, da Provença e recebe a Austrásia após a
abdicação de seu irmão Carlomano (747). Vence os povos da Aquitânia, os
Alamanos, os Bávaros e os Saxões, sendo proclamado Rei dos Francos em 751,
com a anuência do Papa Zacarias; recebe a unção régia em Soissons das mãos do
Papa Bonifácio. Vence o Rei dos Lombardos Childerico III e obrigou estes últimos a
dar ao Papa o Exarcado de Ravena e a Pentápole (756). Com a sua morte, o seu
reino é partilhado entre os seus dois filhos: Carlos Magno e Carlomano.
A separação de Roma e a cisão definitiva e irreversível com as demais Igrejas
cristãs, pelo menos do ponto de vista histórico, podê-la-emos situar no momento em
que foi firmado o Tratado de Quiercy (perto de Laon, Abril de 745) entre o Papa
Estêvão II (752-757) e Pepino o Breve.
Assolado pelo poder dos Lombardos, o Papa Estêvão II atravessa os Alpes,
dirigindo-se ao Palácio real de Pontion, na Campanha, onde chega na Festa da
Epifania do ano de 754.
Pepino o Breve recebe-o com as honras devidas e presta-lhe serviço de
palafreneiro, jurando-lhe proteção contra os Lombardos.
Naturalmente que a motivação predominante que impeliu Pepino a proceder
de semelhante forma, foi acima de tudo a necessidade de uma boa vizinhança com
o Papa, uma vez que, para conquistados, carecia de um posicionamento favorável
da parte do Pontífce de Roma face à sua política.
Por sua vez, o Papa de Roma viu a oportunidade histórica de alargar os seus
domínios territoriais e de lançar as bases do seu há tanto tempo ansiado desejo de
hegemonia e supremacia sobre todo o Ocidente, fundamentadas uma e outra
(hegemonia e supremacia) nas famosas Falsas Decretais (Pseudo-Isidorianas) e na
chamada Doação de Constantino (Donatio Constantino). Só que agora tinha a
oportunidade de tornar efetiva esta sua perniciosa ambição, através de uma
estrutura político-militar que lhe oferecia o crescente poder bélico do Reino Franco.
Neste Tratado havido em Quiercy, após longas negociações, é acordada uma
Aliança defensiva e ofensiva entre o Papa de Roma e o Rei dos Francos. Em
agradecimento, o Bispo de Roma confere a Pepino o título honorífico de Patricius
Romanorum (Patrício Romano), título este até então só usado pelo Exarca de
Ravena e Duque de Roma (Delegado do Imperador de Bizâncio para a Itália).
Nestes Tratado de Quiercy foram cuidadosamente fixadas as obrigações
assumidas por Pepino, o Breve, apesar de uma forte oposição por parte dos
Grandes da Gália e da Saxônia. Neste Tratado não ficava apenas firmado e selado o
empenho já assumido previamente pelo Rei dos Francos em defender a Igreja, mas

149
também e sem dúvida, uma das cláusulas mais importantes: a promessa de Pepino
em restituir à Sé Apostólica os territórios imperiais italianos ocupados pelos
Lombardos, muito particularmente o Exarcado de Ravena.
Em duas expedições, em 754 e 756, Pepino aniquila as forças lombardas,
vencendo o Rei Aistulfo. De nada serviram os protestos e a reivindicação de
Bizâncio dos seus direitos seculares sobre aqueles territórios, que se estendiam
desde Comacchio, no delta do Pó (rio de Itália) até Âncona – Jesé – Gubbio, que
mais tarde se designou por Exarcado de Ravena e a Pentápole.
Ainda a propósito da famosa “Doação de Constantino”, impõe-se que
salientemos que, segundo este falso documento, o Imperador Constantino, o Grande
teria, em sinal de reconhecimento pelo (suposto) batismo e pela cura da lepra,
concedido ao Papa Silvestre (314-350) e aos seus legítimos sucessores, dignidade e
insígnias imperiais, dando-lhes o palácio Lateranence e o domínio sobre Roma e
sobre todas as cidades, regiões, províncias e territórios de Itália e ainda de regiões
do Ocidente, transferindo por esta razão a sua residência para Bizâncio.
Este documento vai aparecer, pela primeira vez, integralmente, em meados
do século IX, numa outra grande e tão grave falsificação, apelidada de “Decretais
Pseudo-Isidorianas”. Verdadeiramente dramático foi, durante toda a Idade Média,
esta monstruosa falsificação ter sido considerada como genuína e ter servido de
fundamentação para toda a ilegítima ação do Papa no Ocidente.
Não obstante nos cingirmos a uma dissertação assaz sucinta, vemo-nos
coagidos, por imperiosa obrigação, a falarmos das “Falsas Decretais Pseudo-
Isidorianas”.
Uma Decretal é um Decreto, ou melhor, é a resposta de um determinado
Papa, dada em relação a certo ponto de doutrina ou de disciplina, tendo como fim
uma aplicação prática.
Mas toda esta aberrante história começa a tomar contornos de catástrofe para
o cristianismo ocidental no século VI, quando Dinis, o Pequeno decide compor uma
coleção canônica. Só que, para infelicidade sua e – muito mais grave – nossa,
insere na mesma coleção alguns decretos papais, desde o Papa Sirício (+ 398).
Para nossa desgraça, o infausto exemplo de Dinis, o Pequeno é seguido por
outros, que julgando estarem a prestar um nobre serviço à Igreja, não se quedaram
a tempo e continuaram, com uma insanidade própria dos incautos, a aumentar o
caudal da vaidade e orgulho papais.
Desde logo, do ponto de vista da Santa Tradição da Igreja, torna-se
extremamente grave esta coabitação de Cânones dimanando de Santos Concílios e
de Decretos dos Bispos de Roma, porque, conhecendo o limitado discernimento do
Homem, fácil seria de prever que em breve se atribuiriam a ambos o mesmo valor.
Daqui em diante torna-se muito fácil inventar uma falsa resposta, um falso Decreto
papal e juntá-lo à coleção inicial, conferindo-lhe a legitimidade dos restantes, ao
juntá-lo à antologia pseudo-canônica. Naquele tempo, que poderia contestar a
autenticidade de semelhante documento?
É em meados do século IX que estas famosas Decretais Pseudo-Isidorianas
(absolutamente falsas) começam a circular. Traziam o nome de Santo Isidoro de
Sevilha com o intuito furtivo de lhes conferir incontestável legitimidade, pois a
reputação de santidade e de sabedoria deste grande Santo Peninsular eram de
todos bem conhecidas.
As Falsas Decretais são fabricadas nos Países francos da margem esquerda
do Reno. O Falsificador tem como objetivo, ao forjá-las, opor ao poder secular, cada
vez mais perigoso (e que começava a invadir a esfera religiosa) o poder eclesiástico,
papal, que seria certamente eficaz e ao mesmo tempo estava suficientemente longe
para causar qualquer tipo de preocupação.

150
Por este motivo, as Falsas Decretais sustentam o duplo princípio de que
“nenhuma decisão conciliar e sinodal é válida antes da aprovação do Papa, e que o
Poder Supremo na Igreja, mesmo em matéria de Fé, pertence ao Papa.” Estas
afirmações reservavam um direito de apelo a Roma, da parte dos Bispos tiranizados
pelos Príncipes.
Mais adiante falaremos das graves e praticamente irreversíveis
conseqüências da aplicação das Falsas Decretais Pseudo-Isidorianas.
Retornando ao que anteriormente referíamos quanto ao Tratado de Quiercy e
suas implicações, cumpre-nos referir que, com o “pacto de amor” selado entre
Francos e Roma, a linha diretriz que devia orientar praticamente toda a História do
Ocidente estava traçada.
Destarte, o “Estado Pontifício”, enquanto complexidade política, encontrava-
se solidamente alicerçado, ainda que a sua natureza institucional, no plano do
Direito de Estado, não fosse completamente nítida. Contudo, a sua desvinculação
integral do domínio bizantino seria, tão somente, uma mera questão temporal.
Com a subida ao Trono Carolíngio de Carlos Magno, estava consolidada a
estrutura Cesaropapista que iria dar a configuração religioso-política da Segunda
metade do século VIII e da primeira metade do século IX, ao “Estado Pontifício” e ao
“Império do Ocidente”.
Carlos Magno é filho de Pepino, o Breve e irá ficar, para o Ocidente –
segundo uns – como aquele que fulge gloriosamente na História, segundo outros
(para nós) como o carrasco impiedoso da desfiguração e aniquilamento dos ritos
litúrgicos locais e o baluarte de um processo de unificação político-religiosa,
desastroso para o Ocidente, suprimindo a idiossincrasia, liberdades e aspirações
locais, próprias e legítimas de cada povo. Vai conseguir fundir as forças nacionais e
estatais dos Germanos com as antigas instituições romanas e com a mentalidade
cristã (ocidental) de então e cria a – nefastamente – grandiosa estrutura de um
Imperium cristianum (Império cristão), que durante séculos encarnou as concepções
e aspirações hegemônicas de Roma (Papado) e foi um poderoso instrumento de
opressão e de cerceamento da vocação de cada um dos povos do Ocidente.
Carlos Magno vai pautar toda a sua concepção de cultura pelos ideais
uniformizadores e niveladores de Roma. Sem dúvida que um novo processo cultural
entra em marcha. Mas é uma marcha sincronizada pela batuta do Papa de Roma,
cilindrando a diversidade riquíssima da iniciativa dos povos do Ocidente.
No que concerne especialmente às relações entre o Estado e a Igreja,
cumpre dizer que sob Carlos Magno, a principal característica do seu governo é a
compenetração do espiritual e do temporal. Ele não é apenas o devoto Defensor da
Santa Igreja, como declarou em 769, mas ainda o “Funcionário de Deus”, o Senhor
da Igreja e do Império, aquele que defende e controla. Os seus teólogos e cortesãos
definem-no como “Rector Eccelsiae” (Defensor da Igreja) e os Bispos do seu Reino,
reunidos em 794 no Concílio de Frankfurt, como “Rex et Sacerdos” (Rei e
Sacerdote).
No círculo daqueles que lhe eram mais íntimos, era denominado com o
significativo nome de David. Interveio nos assuntos mais íntimos da Igreja; até
mesmo nas disputas teológicas (como na questão do Filioque, na heresia
adopcionista e em relação aos iconoclastas); nomeou, sem exceção, todos os
bispos e abades do seu Reino; convocou e presidiu aos Sínodos nacionais (locais) e
inculcou a bispos e padres deveres do próprio Estado. Serviu-se, com a anuência do
Papa, do tesouro e patrimônio da Igreja, para levar a cabo as suas campanhas de
ocupação dos territórios do Império Bizantino. Esta era uma relação – entre o Poder
secular e o Poder religioso – que facilmente podemos classificar de Cesaropapismo,
em que não existe uma demarcação entre os dois poderes. Antes deveria existir
uma íntima harmonia e união entre o Papa e o Imperador (concepção da “Cidade de

151
Deus” de Agostinho de Hipona). Todo o seu governo possui um alinha teocrática,
sustentada por uma concepção mágica do poder régio que era peculiar aos povos
germânicos. Na autoridade do Rei sobre a Igreja, Carlos Magno via uma emanação
imediata dos deveres e direitos a ele conferidos por Deus e agia em consonância.
Tinha como leitura preferida o livro “De Civitate Dei” (A Cidade de Deus) de
Agostinho de Hipona e tudo era redutível, quer no pensamento, quer na sua ação,
ao ideal agostiniano do “Reino de Deus” sobre a Terra.
Todavia, para a Igreja, uma das suas ações mais graves foi, sem dúvida, o
aniquilamento dos ritos litúrgicos locais.
Criou uma Escola na qual reuniu os maiores pensadores, teólogos e homens
de cultura (ocidentais) e, como mestre supremo (hoje diríamos, Reitor) dessa
instituição do conhecimento, colocou um homem, de nome Alcuíno, que mandou vir
de York (na Grã-Bretanha). Alcuíno foi incumbido de uniformizar os Ritos da Gália,
com a subseqüente supressão de todos os que até então existiam.
Contudo, é da mais elementar justiça salientar que Alcuíno, com a inteligência
que por todos lhe é reconhecida, tudo fez para salvar, aquilo que lhe era possível
salvar, em relação a cada um dos ritos e conservou, assim, sob a forma de Prefácios
(parte inicial de cada Anáfora) – cerca de 900 – orações inteiras e hinos que, graças
à sua ação, ainda hoje são ouvidos no Ocidente.
Mais não lhe era possível fazer, dada a tarefa que lhe fora imposta pelo
“Príncipe dos Senadores Romanos” (título que no ano de 800 fora conferido ao Papa
de Roma, Leão). Se mais não se perdeu, deve-se à astúcia e inteligência de
Alcuíno, ao qual devemos fazer justiça, porque poderia Ter, pura e simplesmente,
desfigurado os Ritos da Gália, sem Ter o mínimo respeito por nenhum deles.

152
TEOLOGIA DOGMÁTIICA - 2º ANO

Conseqüências da Queda

A Queda de Adão e Eva teve conseqüências desastrosas. Eles aperceberam-


se de que estavam nús e tiveram vergonha – o que não quer dizer arrependimento
por aquilo que fizeram. Assim o homem e a mulher foram expulsos do Paraíso. Foi
o fim da comunhão “natural” com o mundo espiritual. O homem não ia mais
conhecer Deus pelos Seus passos; fora do Paraíso, o homem estava condenado ao
trabalho; comeria o pão quotidiano amassado com o suor da sua fronte; a mulher
daria à luz na dor. A terra foi ela própria comprometida nas conseqüências da
Queda: ela torna-se um elemento hostil ao Homem. Toda a natureza humana foi
corrompida: “Sujei a minha veste de carne, manchei a Tua Imagem e a Tua
Semelhança, e escureci o amável atrativo da alma, por sucumbir à paixão” (Ofício
de Domingo à noite, da 1a Semana da Quaresma). Enfim, o Homem perdeu a
imortalidade e tornou-se vítima da morte. O Homem foi condenado a “voltar à terra
donde ele foi tomado” (Sexta-feira, Orthros).
Morrer e entrar em putrefação, eis a sorte do homem caído, como nos mostra
São João Damasceno nos seus Cânticos fúnebres: “O que é a nossa vida? – uma
flor, uma brisa, um orvalho, tudo isto na verdade! Vinde, olhemos de perto as
sepulturas, onde está a beleza do corpo? Onde está a juventude? Onde estão os
olhos, a boca, ou a forma corporal? Tudo murchou como a erva! Tudo
desapareceu!... Vinde, posteridade de Adão, vede como jaz por terra a nossa
imagem, como o frescor e a graça, tão depressa ela se vai dissolver no túmulo,
ruída pelos vermes, engolida pelas trevas, desaparecida sob a imensa terra que a
cobre. Em verdade, tudo aquilo que pode encantar a vida é vão e perecível! Nós
todos desaparecemos, todos sucumbimos à morte!”.
E, no entanto, ainda que “se desfigure nos túmulos a beleza criada à Imagem
de Deus, e agora informe, horrenda”, esta imagem não está totalmente perdida.
Mesmo caído, mesmo em sua natureza corrompido, o cristão pode ainda orar
nestes termos: “Eu sou a Imagem da Tua inexprimível magnificência, ainda que
transportando as feridas do pecado... Oh! Leva-me à Semelhança do passado, que
a minha beleza original seja restaurada” (Ritual funerário dos leigos). Deus, no Seu
Amor pelos homens, salvou verdadeiramente a Sua criatura caída, ordenando Ele
próprio por ela, pelo novo nascimento, a Salvação em Jesus Cristo.
O Cânon Eucarístico da Liturgia de São Basílio exprime-se desta forma:
levando em consideração os diversos momentos que comporta a História do
Mistério da Salvação da humanidade: “...Tu não me retiraste para sempre a Tua
Imagem, que Tu criaste, ó Deus Bom; Tu não esqueceste as obras de Tuas mãos.
Mas Tu visitaste-as, de diversas maneiras, pela Graça da Tua Bondade. Tu enviaste
os profetas, Tu fizeste milagres através dos Teus Santos, que Te agradaram em
cada geração. Tu falaste pela boca dos Teus servos, prometendo-nos a Salvação
que ia vir. Como auxílio Tu deste a Lei, como guardas os Anjos. E quando os
tempos foram chegados, Tu nos falaste na Pessoa do Teu próprio Filho, pelo qual
Tu criaste as eternidades; Ele que, refletindo a Tua glória e cheio da Tua hipóstase,
levando o Universo pela Palavra do Seu Poder, nunca considerou como uma proeza
ser igual a Ti, Deus e Pai, mas visto que Ele é Deus antes dos tempos, apareceu

153
sobre a Terra e viveu entre os homens; nascido da Santíssima Virgem Maria,
despojou-Se Ele mesmo, revestindo-Se da forma de um escravo e de um corpo
igual ao nosso, na Sua humildade, a fim de nos tornar semelhantes e conformes ao
Seu Corpo glorioso. Com efeito, porque pelo Homem o pecado veio ao mundo e
com o pecado a morte, agradou a Teu Filho Único, que repousa no Teu seio de
Deus e Pai, nascer de uma mulher, a Santíssima Mãe de Deus e sempre Virgem
Maria, submeter-se à Lei e condenar o pecado na Sua própria carne, a fim de que
aqueles que morrem em Adão recebam a Vida pelo Teu Cristo...” (Liturgia de São
Basílio).

Cristologia

O Dogma Cristológico na Santa Igreja Ortodoxa não difere daquele que


professam as Igrejas cristãs do Ocidente. “Eu creio... em Um só Senhor, Jesus
Cristo, Filho Único de Deus, nascido do Pai desde toda a eternidade..., que por nós
homens e para a nossa Salvação desceu dos Céus e encarnou no seio de Maria
Virgem e Se fez Homem”.
Isto confessa a Igreja Ortodoxa, no Símbolo de Nicéia e Constantinopla, para
Ela inalterável até à consumação dos séculos.
A Fé no nascimento virginal do Filho de Deus, Senhor e Salvador, nascido da
Santíssima Virgem Maria Mãe de Deus, é exprimida com uma perfeita nitidez em
todas as confissões e em todos os livros litúrgicos da Santa Igreja Ortodoxa. Cristo
percorreu sozinho o país impraticável, sem que Ele tivesse sido tornado semente...
A inocente Virgem engendrou Jesus estando para tal “coberta pela sombra do
Divino Pai e do Divino Espírito Santo” (invocação de S. João, o Precursor).
Em Jesus, o Homem-Deus, duas Naturezas, a Divina e a Humana, estão
unidas numa só Hipóstase. “Confesso uma só Hipóstase do Verbo feito Homem;
creio e confesso que há um só e mesmo Cristo em duas vontades e naturezas,
conservando intactas a Natureza Humana e a Natureza Divina unidas sem confusão
e a Vontade Humana e a Vontade Divina, autônomas, sem separação, numa só
Pessoa Divina, tal como Ele nasceu da Virgem e viveu entre nós homens”
(Sagração Episcopal – Terceira Confissão de Fé). “O Filho Único brilhando, fora do
tempo (do seio) de Seu Amado Pai, Ele, Ele mesmo veio-nos por Ti, ó Santíssima
Virgem, da Tua puríssima inocência; duma forma inexplicável e incompreensível,
vestiu-Se da Tua carne, sendo Deus por Natureza tornou-Se, pela carne, Natureza
Humana, e por isso Homem por causa de nós, não dividido em duas pessoas, mas
numa só Hipóstase, reconhecido sem mistura em duas Naturezas” (Dogmática, 6).
“...Tomando carne da Santíssima e Puríssima Virgem Maria e vindo d’Ela, Ele é,
Ele o Filho, duplo quanto à natureza e uno quanto à pessoa. Eis porque a Igreja
afirma de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo, proclamando-O com toda a
Verdade Deus perfeito e Homem perfeito – Cristo nosso Deus” (Dogmática, 8).
“Confesso duas Vontades em Cristo, cada uma delas própria a cada uma das
Naturezas, possuindo cada uma delas atividade própria e autonomia absoluta”
(Sagração Episcopal – Terceira Confissão de Fé).
Segundo a Fé Ortodoxa, a Natureza humana de Cristo foi divinizada em
virtude da união hipostática com a Natureza divina. Todavia, como muito bem
sublinha expressamente São João Damasceno, isto não quer dizer que a Natureza
da carne de Cristo tenha sido sujeita a alguma alteração, alguma mudança, a uma
transformação ou a uma combinação com a Natureza divina.
A Divinização resulta, tão-somente, da União hipostática, pela qual a carne
humana, em tudo igual à nossa, “é inseparavelmente unificada com Deus-Verbo”.
Da mesma forma e pelo mesmo motivo, a Vontade humana de Cristo é, ela
também, divinizada, “não porque o seu movimento natural fosse alterado, mas

154
porque ela foi reunida à Sua Vontade Divina e Toda-Poderosa e torna-se na mesma
Vontade de Deus feito Homem” (Exposé précis de la Foi Orthodoxe III, 18 – S. João
Damasceno). A Cristologia é o grande tema da Teologia da Igreja Ortodoxa dos 10
primeiros séculos da vida cristã. Quase todas as decisões dos Concílios
Ecumênicos ocupam-se da Doutrina de Cristo. Com toda a admirável acuidade de
pensamento e de toda a precisão da linguagem que caracterizaram o espírito grego
e as suas expressões – aliás na ocasião com forte apoio das Igrejas do Ocidente –
a Dogmática grega inseriu o indefinível, o inexprimível Mistério do Deus-Homem em
fórmulas teológicas que exprimem a sabedoria não esotérica da Teologia, porque
elas levaram sempre em consideração a Fé do povo crente, no culto mistagógico.
Criação aparente do intelecto e da Dialética grega, o Dogma cristológico, em
última análise, não pode servir senão para assegurar contra toda a dissolução ou
atenuação racional e manter no seu caráter miraculoso, inacessível a toda a lógica
humana, o Mistério da Encarnação do Logos que confere ao Homem a Salvação e a
Divinização.

A Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus

A Igreja Ortodoxa não faz senão tirar uma conseqüência da Doutrina da


União hipostática das Naturezas Divina e Humana em Cristo, quando Ela ensina
que a Santíssima Virgem Maria não deu à luz somente o Homem Jesus, mas deu à
luz ao Deus-Homem Jesus Cristo e que desde então se Lhe chama com todo o
direito “Mãe de Deus” – Theotokos (contra os Nestorianos).
A Virgem imaculada e sublime, Rainha dos homens, não deu ao mundo nem
um Deus desprovido de corpo, nem um simples homem desprovido da Natureza
divina, mas sim um Homem perfeito e um Deus infalível, Jesus Cristo Salvador, com
duas Naturezas, humana e divina, sem separação, sem mistura, sem confusão,
unidas numa só Pessoa Divina (contra os Monofistas).
Esta é a razão única da grande veneração da Igreja Ortodoxa, que exalta e
honra a Santíssima Mãe de Deus, nossa Mãe por adoção, nossa Rainha por serviço
e Prefiguração da Igreja.
A Igreja chama-A “Sempre Virgem” porque Maria foi e permaneceu Virgem
de alma e de corpo antes, durante e depois do Nascimento de Jesus Cristo.
“Vede, a profecia de Isaías cumpriu-se; porque Tu darás à luz sendo Virgem
e permanecerás da mesma forma durante e depois do parto. O Menino era Deus e
por isso renovará também e igualmente toda a Natureza” (Sábado, Ofício da noite,
I).
Visto que a Santíssima Virgem Maria engendrou o Deus-Homem, Salvador
do mundo e que Se tornou Sua Mãe, a Igreja Ortodoxa acredita que Ela participou
na Salvação realizada por Cristo entre os homens.
Ela foi “a porta da Salvação do mundo”.
Trazendo no Seu ventre o Filho de Deus, Ela estava, por isso mesmo, unida
também à Natureza divina e a Santíssima Virgem Maria não só se renovou a Ela
própria, mas renovou também, com Ela, o mundo inteiro, os homens e as mulheres
todos, dos quais Ela era a representante eleita por Deus. “No Teu seio, o Deus
soberanamente glorificado, nosso Pai, renovou completa e inteiramente, o mundo
inteiro” (Sábado, Ofício de Matinas, I).
Em outros livros litúrgicos, a atenção do fiel é chamada e atraída sobre o fato
da consangüinidade com o Corpo de Cristo; desta forma a Santíssima Virgem Maria
realiza n’Ela própria a união perfeita entre a Terra e o Céu.
Por Ela todos os homens se tornam participantes na Natureza divina. Os
pontos de vista aqui expressos e encontrados amiúde nas Sagradas Liturgias, só se
podem compreender se se considerar que, segundo a concepção teológica

155
ortodoxa, a Humanidade é um todo orgânico, uma unidade na sua pluralidade, e
que a Santíssima Virgem Maria é, por eleição de Deus e por cumprimento do Seu
plano, a representação dessa Humanidade diante da Divindade.
Enfim, a Igreja Ortodoxa crê que a virtude da Sua altíssima dignidade e da
Sua participação nas obras da Salvação por Cristo, a Santíssima Virgem Maria
pede incessantemente por todos nós, Seus filhos adotivos, diante de Deus;
semelhante a uma mãe amante, Ela ocupa-Se em levar as orações dos fiéis diante
de Cristo, Seu Filho, que as apresentará, sem a menor dúvida, diante do Trono de
Deus.
Esta força única de intercessão é uma graça que Lhe vem da parte de Deus
por ter livremente aceitado ser a Mãe do Salvador.
Primeiro Batismo por Sua vontade crucificada, porque aderente à Vontade de
Deus, expressa pelo Anjo; primeira efusão do Espírito que a renova e confirma na
Fé – Crisma; primeira Eucaristia viva a partir do momento da concepção do Verbo;
Maria é a primeira beneficiadora dos Sacramentos, que por méritos antecipados de
Seu Filho, Lhe foram conferidos e a tornam a primeira salva dentre todos aqueles
que Jesus Cristo veio salvar.
Os cristãos ortodoxos pedem mesmo diretamente a Cristo que ouça as
súplicas de Sua Mãe e que as acolha graciosamente e tenha para conosco, infiéis e
pecadores, a mesma atitude que teve nas Bodas de Caná; “Mostra o Teu Amor
pelos homens, oh Misericordioso! Escuta Aquela que Te engendrou, Tu a Santa
Mãe e nossa Mãe, que sem cessar Te pede por nós; pelas suas orações, oh Santo
dos Santos e Filho Único de Maria, livra o Teu Povo dos seus pecados e impede,
por Tua Graça, que ele entre em desespero! (Sábado, Completas, 8).
Numa só palavra, não podemos senão constatar na veneração exprimida à
Santíssima Mãe de Deus, como uma conseqüência lógica, ao mesmo tempo
dogmática e prática da Cristologia Ortodoxa.

A Obra da Salvação realizada por Cristo

A Encarnação do Logos Eterno, do Filho de Deus, é o fato fundamental da


História evangélica, e o Dogma que formula este acontecimento é o Dogma
fundamental da fé e da piedade. Por que é que o Filho de Deus Se tornou Homem?
– A Confissão de Fé de Nicéia–Constantinopla diz brevemente: “Por nós, homens, e
para a nossa salvação, desceu dos Céus, encarnou no seio da Virgem Maria e Se
fez Homem”. Mas nada nos responde com clareza à seguinte pergunta: Como, de
que maneira, o Senhor realizou a nossa Salvação?
O que predomina na Teologia das confissões ocidentais é a concepção
jurídica da Redenção, devida ao teólogo católico-romano Anselmo de Cantuária. Se
este ponto de vista foi igualmente admitido por sistemas dogmáticos de teólogos
ortodoxos dos nossos tempos, ele introduz na Teologia Ortodoxa um elemento
estranho, pois as representações e noções jurídicas não têm lugar na Ortodoxia. As
orações litúrgicas da Igreja Ortodoxa não exprimem nenhuma noção jurídica nelas
próprias, nem nada de semelhante. Desta forma, notáveis teólogos ortodoxos
modernos renovaram a antiga concepção patrística da Obra da Salvação realizada
por Cristo.
Quase todos os Padres da antiga Igreja declaram que o Verbo feito Homem
venceu o Demônio e libertou todos os homens do cativeiro, no qual viviam em
conseqüência da Queda.
Santo Irineu escrevia já no seu tratado “Contra as Heresias”: “Pelo Segundo
Homem (Jesus Cristo), Deus atou o forte, saqueou os seus domínios e destruiu a
morte, fazendo viver o Homem que tinha sucumbido à morte. Porque o primeiro
objeto que o Demônio possuiu foi Adão, que subjugou, induzindo-o injustamente na

156
transgressão e sob o pretexto de o fazer ascender à imortalidade, tornando-o
mortal. Porque pela sua pessoa: vós sereis como deuses (o que lhe era
completamente impossível), ele introduziu neles um fator novo, a morte; é por isto
que foi feito prisioneiro aquele que havia capturado o Homem, enquanto o outro
homem foi libertado das suas cadeias e da perdição”. (cap. III, 23).
São Gregório de Nissa ensina, por sua vez, que Deus salvou o Homem do
império do Demônio, não sendo o Homem capaz, pelo seu próprio esforço, de se
libertar desta vergonhosa e ruinosa servidão. Foi preciso, portanto, que Deus
pagasse ao Demônio o resgate que este queria cobrar ao Homem, seu prisioneiro.
Em lugar do Homem, o Filho de Deus ofereceu-Se ao Demônio. Para levá-lo a
aceitar este resgate, a Divindade encarnou, tomou corpo e forma de Homem, a fim
de que o Diabo não se espantasse diante d’Ela. O Demônio aceitou, mas foi
enganado, porque através da carne, através do Corpo de Jesus, o Demônio vai
encontrar a Divindade.
São Gregório de Nissa não encontra nada de chocante pelo fato de o
Demônio ter sido “enganado” por Deus: o Demônio recebe, assim, a retribuição
daquilo que tinha feito.
Notemos, também, a seguinte passagem; Nós tiramo-la de “A Exposição
precisa sobre a Fé Ortodoxa”, do grande São João de Damasco; “O Criador e
Senhor começa o combate pela criatura, Sua imagem; Ele foi o Instrutor pelo fato, e
porque o Inimigo enganava o Homem pela astúcia, pela esperança de aceder à
Divindade, foi ele mesmo enganado sob o corpo da carne. Isto revela, ao mesmo
tempo, a Bondade, a Justiça, a Sabedoria e o Poder de Deus: a Bondade, porque
Ele não desprezou a fraqueza da Sua criatura, mas teve piedade do Ser caído e
estendeu-lhe a mão: a Justiça, porque depois que o Homem foi vencido, Ele não
deixou a alguém doutro o cuidado de vencer o tirano, e também não libertou o
Homem da morte pela força, violentamente; mas o Senhor, o Bom e o Justo, tornou
vencedor aqueloutro que estava sob o jugo da morte pelo pecado; Ele salvou o
semelhante pelo Semelhante, o que parecia impossível; a Sabedoria, porque o
Senhor descobriu a solução mais adequada para aquilo que parecia impossível,
porque segundo a vontade do Pai, vem o Seu Filho Único, o Verbo Divino, Deus...
descendo dos Céus...; Cristo obedece ao Pai, adotando a nossa condição, Ele cura
a nossa rebelião e tornou-Se o nosso modelo de obediência (op. citada, III, 2).
É bem verdade que, mais à frente, noutro lugar, o mesmo São João de
Damasco se exprime da seguinte forma: “Cristo morre tomado a morte, por nós,
sobre os Seus divinos ombros, e Ele oferece-Se a Deus, Seu Pai e nosso Pai, em
sacrifício por todos nós, homens”.
“Porque nós pecamos contra Ele (Deus) e Ele precisa de receber o nosso
resgate; desta forma nós somos libertados da perdição, longe de nós que o Sangue
do Senhor tenha sido oferecido ao tirano”. Mais adiante, São João de Damasco
continua: “A morte chega e antes de tomar o corpo, ele é trespassado pela lança da
divindade; após ter saboreado um corpo sem pecado e vivificante, cai a pique e
devolve todos aqueles que havia engolido” (III, 27).
Seguramente, esta doutrina patrística não é de todo compreensível senão
para aqueles que verdadeiramente acreditam no Demônio, na sua existência real;
ora isto não levantou, não levanta, nem levantará nunca, nenhuma dúvida para a Fé
Ortodoxa. Está-se, verdadeiramente, convicto disto.
Para compreender estes pontos de vista soteriológicos dos Padres da Igreja
e aqueles que se seguirão, é preciso considerar que, segundo a Fé eclesiástica da
Santa Igreja Ortodoxa, o Logos feito Homem apropriou-Se absolutamente da
condição do Homem caído, a sua reprovação e o seu castigo, à exceção do pecado.
São João de Damasco escreve a este respeito o seguinte: “Que fique bem
definido que há duas apropriações, uma natural e essencial e outra por

157
representação e participação. Natural e essencial é a apropriação pela qual o
Senhor, no Seu Amor pelos homens, adota a nossa natureza e tudo o que ela
comporta, tornando-Se verdadeiramente Homem, experimentando em si mesmo
tudo o que é natural ao Homem; quanto à apropriação por representação e
participação, ela toma lugar no momento em que alguém por simpatia, compaixão e
amor, representa outra e diz em seu lugar os discursos que não lhe convêm a ele
próprio; é desta forma que Cristo Se apropriou da nossa maldição, nosso abandono,
etc., o que não procede da natureza humana ela própria; não porque Ele tenha sido
ou Se tenha tornado nisto ou naquilo, mas tomando, sem Lhe pertencer, o nosso
papel, juntando-Se por adoção à condição de todos os homens, por Sua livre e
magnânima vontade. É isto o que significam as palavras: Ele tornou-Se maldição
por nós” (op. cit. III, 25).
Por outro lado, o Homem-Deus, Jesus Cristo é o Salvador porque restaurou à
sublimidade a natureza do Homem caído; Ele renovou e conduziu a natureza
humana ao seu estado original. Constantemente, esta renovação (natureza
humana) está presente nas orações litúrgicas.“Em Ti (Santíssima Virgem) o Verbo
de Deus habitou, ó Toda Pura, no desejo de restaurar a nossa Imagem” (Domingo,
Ofício da noite, 5). “O Primeiro Nascido da Criação... restaurou n’Ele mesmo a
natureza corrompida da nossa raça” (Domingo, Ofício da manhã, 3). Esta
restauração, é o restabelecimento da Semelhança de Deus no homem, na
Encarnação do Verbo de Deus.
Tornando-Se Homem, Cristo dispensou-nos a Salvação, a fim que nós
descubramos em Cristo aquilo que havíamos perdido em Adão, a Semelhança de
Deus, a identidade da Imagem” (Sto. Irineu, Adv. Haer. III, 18; Conf. V, 15).
Temos o mesmo tipo de pensamento em S. João Damasceno: “O Filho de
Deus torna-Se Homem, a fim de dar ao Homem a razão pela qual ele foi criado...
Ele participou na nossa natureza, para restaurar em Si e por Si a forma da Imagem
e da Semelhança...” (Exposé Précis de la. Foi Orthodoxe IV, 4).
“Rico em Sabedoria, o Criador restaura aquele que tombou por transgressão,
aquele que, criado à Imagem de Deus, tinha completamente caído na corrupção e
tinha perdido a melhor vida divina” (Natal, Ofício da manhã).
Em alguns Padres da Igreja e em alguns textos litúrgicos, diz-se que o Verbo
feito Homem reedificou a minha natureza caída” (Domingo, Ofício da manhã, 8).
É natural que, entre todos estes dons de Cristo, doando a Salvação ao
homem, esteja compreendido o perdão dos pecados, que reconciliou os homens
com Deus e restabelece a comunhão com Ele.
Os homens participam na Salvação porque Cristo é o novo Chefe (Cabeça)
da Humanidade, porque o Senhor recapitulou n’Ele toda a Humanidade. Desta
forma, Cristo é também chamado “Segundo Adão”, a Cabeça da Humanidade por
Ele salva. Ela forma, no seu conjunto, um “organismo espiritual”, uma unidade na
multiplicidade de pessoas. É por isto que a Salvação realizada por Cristo se estende
à totalidade do gênero humano. Enfim, o Filho de Deus, na Sua Encarnação, salvou
os homens da morte e deu-lhes a imortalidade, porque Cristo ressuscitou em Seu
Corpo e subiu aos Céus; desta forma, o Senhor livrou da morte e da putrefação o
corpo de cada homem unido a Ele; Ele glorificou o homem e tornou-o Eterno.
É certo que a Igreja Ortodoxa crê que a Morte de Cristo sobre a Cruz do
Gólgota, como de uma maneira geral a Encarnação do Filho de Deus e a Knosis
que ela supõe, foi um sacrifício do Amor Divino. Mas não um sacrifício
compreendido no seu sentido jurídico ou conforme com o Antigo Testamento.
Se o Apóstolo Paulo empregou, a propósito da Morte de Cristo, expressões,
comparações e imagens tiradas do Antigo Testamento, foi somente para se fazer
compreender pelos Judeus da sua época, que Paulo queria converter a Cristo. A
Morte do Senhor Jesus Cristo sobre a Cruz, foi a suprema manifestação, ou a

158
expressão adequada, da Sua Knosis, da Sua renúncia a Si mesmo e da Sua
obediência ao Pai Celeste, porque “Ele foi obediente até à morte na cruz” (Fp II, 8).
O Pai dos Céus exigiu de Cristo, pela causa de Deus e do Próximo, o total
abandono da Sua vida corporal. Esta obediência, Cristo realizou-a nos Seus
sofrimentos e na Sua Morte sobre a Cruz, o Supremo Dom de Amor. Em nome
deste Amor, Deus teve piedade dos homens, perdoou os seus pecados e refez
deles o objeto do Seu Amor e da Sua Graça; é Cristo que, pela Sua Morte, torna os
homens dignos do Seu Amor.
Pelo olhar da Fé, o cristão ortodoxo considera a Cruz à luz do Ressuscitado
de Páscoa. “Na piedade ortodoxa, a contemplação da Cruz e da Ressurreição, da
Knosis e da Glória, é uma e a mesma realidade, inseparável, organicamente
coordenada” (Nicolau Arseniev).
Só a Ressurreição de Cristo é a plena vitória sobre a Morte e compreende a
ressurreição de todos os homens com Cristo; é a razão pela qual o Milagre de
Páscoa constitui o fundamento do Cristianismo (1 Co XV, 14 – 18).
Esta Fé da Igreja Ortodoxa é o verdadeiro Nó górdio de todas as
experiências religiosas vividas e de todas as visões espirituais; é ela que anima os
crentes e confere a todas as suas vidas um sentido superior.
A obra da Salvação realizada por Cristo compreende, também, a união
restabelecida entre os homens e o Espírito Santo. Porque a Salvação não é só um
Ato exterior, do perdão dos pecados, da parte de Deus; ela é também a real
renovação, o renascimento da natureza humana. Isto, porém, não se poderá
realizar senão com a ajuda de Deus, a Graça do Espírito Santo. Isto inscreve-se no
espírito do Pentecostes, prometido, depois enviado por Cristo aos Seus Apóstolos.
O Espírito Santo realiza a nova Esperança, dá a verdadeira vida espiritual e
torna propriedade dos fiéis a obra da Salvação realizada pelo Senhor Jesus Cristo.

159
PATROLOGIA – 2º. ANO
SÃO GREGÓRIO, Bispo de Nissa (c.335-394)

Irmão mais novo de São Basílio, São Gregório de Nissa, oriundo do mesmo
meio sócio-religioso, possui também o vigor espiritual do seu irmão mais velho, mas
enquanto este o sabe canalizar plenamente para os assuntos da vida pública da
Igreja, São Gregório aspira tão-somente à vida espiritual e ao trabalho intelectual,
onde se sente à vontade.
Homem duma inteligência eminente, ele permaneceu, todavia, muito tempo
no segundo plano, pesando sobre ele o fato de ser irmão mais novo dum homem
célebre e de ser o descendente duma grande linhagem. Por essa razão a sua
personalidade revela-se algo singular a até misteriosa, não obstante ele ter vindo
finalmente a desempenhar, também na Igreja, funções de grande relevo.
Sobre a vida de São Gregório de Nissa conhecemos tão – somente
informações fragmentárias, que nos chegam quase exclusivamente dos escritos que
ele elaborou a partir dos quarenta anos de idade – e ele fala muito pouco da sua
vida pessoal – de modo que não é possível conhecê-la satisfatoriamente. À parte os
seus parentes próximos ele não tem amigos. A sua correspondência que, aliás, é
muito interessante, permanece muda sobre as suas relações pessoais.
Nascendo provavelmente por volta do ano de 335, ele não chegou a
freqüentar qualquer escola superior no estrangeiro, como anteriormente o seu irmão
mais velho. Aliás, boa parte da sua instrução terá sido efetuada a nível doméstico.
Ele inclusivamente não deixou de enaltecer e de louvar entusiasticamente o
educador que para ele foi “um mestre e um pai”: o seu irmão São Basílio. Ele vê nele
“a maravilha do universo e o modelo dum filósofo” (Discurso sobre os 40 mártires,
P.G. 46, 776 A); declara-o “igual aos santos anciãos” e considera serem os seus
escritos inspirados. É fácil apercebermo-nos da dependência de São Gregório do
seu irmão mais velho. Mas isto não significa que ele não fosse capaz dum
pensamento próprio e por vezes divergente de São Basílio. A sua grande inclinação
para o uso da interpretação alegórica das Sagradas Escrituras deixa antever a
influência de diversos autores, que ele terá estudado, quer os filósofos de tendência
platonizante (Platão, Plotino e Fílon), quer os cristãos, como Orígenes. Aliás, os
vastos conhecimentos de São Gregório estendem-se até ao domínio das ciências
naturais e da medicina. Ele é justamente considerado o teólogo mais universal do
seu século. Pelo seu grande saber assemelha-se ao seu irmão, mas ultrapassa-o
sua grande capacidade de síntese. De natureza introspectiva, nele a especulação
teológica vai mais longe que em qualquer outro Padre da Igreja, embora seja dos
menos conhecidos e citados. Considerado “o pai do misticismo”, não foi
injustamente que ele recebeu o título singular de “Pai dos Padres da Igreja” no
Concílio Ecumênico de Calcedônia.
Depois de desempenhar, na sua juventude, as funções de leitor na Igreja,
passou por um período em que foi acusado por São Gregório de Nazianzo de “Ter
trocado as Sagradas Escrituras pelos livros amargos e indigestos deste mundo”, até
chegar a ponto de “ser chamado de preferência rector do que cristão” (Ep. II, ad
Greg.). E ele foi mais longe ainda. Desposou nesse tempo uma mulher de grande
cultura espiritual e de grande beleza – Teosebeia. No seu primeiro livro, intitulado
“Da Virgindade”, ele deplora só poder abordar este ideal com duma felicidade
reservada aos outros e de “Ter posto uma vez o seu pé na vida do mundo” (Da

160
Virgindade 3, PG 46, 325). Mas o seu casamento, que mais tarde se tornou
unicamente “espiritual”, não veio entravar a sua evolução religiosa. São Gregório
manteve-se em estreito contato com o centro monástico que a sua família mantinha
nas margens do rio Íris e para lá se retirava de tempos a tempos.
Laços privilegiados uniam-no à sua irmã mais velha, Santa Macrina,
abadessa dum mosteiro de monjas situado nessa região, a quem ele chamava sua
“mestra espiritual”. Num pequeno livro descreve a sua vida e nascimento para os
Céus, a que assistiu. Mais tarde compôs – à semelhança de Fédon de Platão – um
diálogo “Sobre a Alma e a Ressurreição”, baseado na última conversação que teve
com sua irmã.
Neste tempo ele havia já abandonado a vida livre de rector e de teólogo-
filósofo, apresentando-se antes como erudito e monge. Ele exige o máximo de si
mesmo e as suas maiores realizações são de ordem teológica e filosófica. São
Gregório segue o seu irmão mais velho na vivência do ideal monástico, mas dá-lhe
uma outra expressão. Ele alia à meditação, a reflexão, a investigação e o
desenvolvimento das idéias fundamentais, criando e incrementando uma nova
concepção da piedade monástica e mística que viria a fazer escola.
Entretanto ele foi sagrado bispo “à força” (S. Basílio, Ep. 225, ad Demosth)
pelo seu irmão mais velho, que lhe confiou a Sé episcopal da pequena cidade de
Nissa, localidade modesta, mas relativamente importante para a Igreja. Ele deixara o
seu retiro, as suas meditações pessoais e o seu recolhimento para servir a
comunidade dos fiéis. Depois dessa resistência inicial, ele assumiu a função e
lançou-se mais rapidamente na política da Igreja do que São Basílio o desejaria. Ao
que parece São Gregório tomou algumas iniciativas que mereceram a reprovação do
seu irmão. Acusado pelas autoridades oficiais de dilapidar os bens da Igreja, foi
expulso da sua Sé e substituído por um bispo de tendência ariana, o que fez o seu
irmão protestar veementemente, mas sem obter resultados. Nissa foi perdida e São
Gregório forçado a exilar-se. Dois anos mais tarde, em 378, ele pode finalmente
regressar à sua cidade episcopal, onde foi aclamado calorosamente pela sua
comunidade.
Em 381 participou no Concílio Ecumênico de Constantinopla e o seu prestígio
cimentou-se a ponto de o Imperador Teodósio, o Grande, depois de o nomear como
Bispo da diocese do Ponto – uma diocese extensa embora algo periférica – o
instituiu como homem de confiança do regime imperial. Os seus amplos poderes
incluíam a capacidade de expulsar os bispos arianos das Sés que ocupavam,
entronizando nelas bispos fiéis à teologia nicena. Nestas suas funções ele viajou
pelo Império até à Arábia, visitou Jerusalém e organizou a eleição de dois bispos
para diocese da Pequena Armênia, tendo sido forçado a permanecer lá alguns
meses, no que ele chamou “o cativeiro de Babilônia”, exercendo funções
equivalentes às de Metropolita de Sebástia. Como ele próprio escreve, no seu livro
“Vida de Macrina” (PG 46, 981 B), o seu nome é falado por cidades e aldeias e
solicitada a sua presença pelas comunidades, pedindo-lhe assistência e auxílio.
Todavia, devido ao seu espírito crítico, São Gregório é pouco conciliador.
Assim, ao referir-se, por exemplo, às peregrinações à Terra Santa e levando em
conta as impressões sentidas quando a visitou – sintetizadas numa carta sua (Ep.
2,II ad Censit.) - ele chega a ponto de pura e simplesmente as desaconselhar por ter
lá encontrado uma grande desordem e relaxamento de costumes; depois, ele louva
a verdadeira piedade reinante na sua própria terra, a Capadócia.
As relações entre ele e o seu próprio Metropolita não foram as melhores, pelo
fato de neste caso o homem célebre ser o subordinado.
Sobre a vida de São Gregório de Nissa sabe-se ainda que por duas vezes ele
foi convidado a Constantinopla para pronunciar as orações fúnebres de dois
membros da família imperial e que no ano de 394 participou pela última vez num

161
Concílio, tendo nascido para os Céus pouco tempo depois. Para além destas
informações, pouco mais se poderá dizer que permita, mesmo em traços gerais,
fazer-lhe um esboço biográfico. Para melhor o conhecermos, devemos congir-nos à
sua teologia e aos seus escritos.
Não obstante São Gregório se exprimir duma forma original, não conformista
e crítica, a sua teologia está em perfeito acordo com a da Igreja.
São Gregório realça a importância do culto divino nas suas obras e sermões.
Ele insiste na preponderância da ação salvífica dos Sacramentos, particularmente
do Batismo. Ele define com precisão – é o primeiro teólogo a fazê-lo – o significado
do sacerdócio, afirmado que este transforma a alma pela virtude sacramental.
O bispo de Nissa alia à doutrina da Igreja a filosofia. Ao contrário do seu
irmão São Basílio, que havia prudentemente limitado a sua reflexão à Sagrada
Escritura, São Gregório desenvolve livremente o seu pensamento e, a partir dos
dados existentes da doutrina da Igreja, não se limitando aos comentários
escriturísticos, procura construir em bases lógicas um sistema doutrinal coerente,
como Orígenes o havia feito antes dele. Todavia, no seu tempo, a doutrina da Igreja
era mais precisa e melhor fundada que no tempo de Orígenes. Evitando as
contradições deste Padre da Igreja e analisando com seriedade e profundidade o
antigo esquema gnóstico “que reduzia a teologia à interpretação e descrição do
grande drama cósmico desencadeado pela queda do ser espiritual que, após a
ruptura da sua unidade com Deus, deve, por um longo e penoso caminho, voltar à
sua fonte de origem”, nele a especulação teológica não constitui, contudo, um fim
em si; assim como a cultura profana e a ética: todas têm como único objetivo “ornar
o templo divino da revelação mística” (Vida de Moisés, PG 44, 360 C).
Sobre o conhecimento de Deus, São Gregório segue a linha de Fílon e
Plotino, ensinando que este conhecimento se eleva naturalmente das coisas
sensíveis às supra-sensíveis; mas ele vai mais longe afirmando como corolário
desse conhecimento a elevação do espírito humano até à contemplação imediata de
Deus, numa antecipação da beatitude celeste.
A Salvação do Homem é realizada pela purificação, elevação e regresso da
sua alma ao seu Criador e Senhor. Cristo é o centro de toda a Revelação. O
importante não é proceder a escalonamentos do Ser em graus sucessivos – como
afirmam os gnósticos – mas sim descobrir aquela relação viva com Deus. “Por não
poder subsistir por si, a essência da natureza humana é de tender para Deus”.
Assim, a teologia aponta globalmente para “a união na adoração e no amor com o
Deus inacessível e insondável. As relações entre o Ser incriado e eterno e o ser
criado relevam da graça e concretizam-se na liberdade e na santidade. São Gregório
fala, assim, em deificação ou divinização, no sentido da conformidade com Deus,
que o Homem, Sua verdadeira imagem, como um espelho purificado, deverá
realizar. Ser iluminado e conduzido por Deus é, desde toda a eternidade, o único
objetivo e a própria beatitude, alcançada não por qualquer mérito humano, mas pela
magnanimidade de Deus”.
Exprimindo a sua teologia pela via apofática (da negação), as preocupações
de São Gregório de Nissa inclinavam-se também, como não podia deixar de ser,
para as controvérsias sempre presentes nos domínios trinitário e cristológico, em
que se incluem os escritos contra o ariano Eunômio e contra Apolinário. Mas que
São Basílio, o Bispo de Nissa analisou a unidade interna e as relações entre as três
Hipóstases divinas. As distinções entre as relações das Pessoas divinas têm como
parâmetro o modo de procedência do Pai: o Filho por modo de geração e o Espírito
Santo por modo de spiração. Quanto à sua cristologia, ela antecipa a ulteriormente
defendida pelo Concílio de Antioquia, diferenciando, com toda a nitidez, a natureza
divina da humana na pessoa única de Cristo Jesus. Ele ensina inequivocamente a
comunicação dos idiomas (permuta dos atributos de ambas as naturezas de Cristo,

162
que persistem naquilo que são sem se misturarem). O próprio Logos “plasmou para
Si mesmo, da carne da Virgem, um vaso divino não feito por homem. Por isso a
Santíssima Virgem é Theotokos (Mãe de Deus) e não, como dizem os inovadores,
antropotokos (Mãe do homem)”.
A sua Grande Catequese, composta para servir a pregação evangélica,
propõe uma teologia sistemática de Deus em Três Pessoas, da Encarnação e da
Salvação, bem como do Batismo, Eucaristia, Fé e Regeneração e pode ser
considerada como o primeiro grande ensaio de síntese doutrinal cristã depois de
Orígenes. Mas as suas preocupações vão para além destas questões clássicas e
concentram-se depois no problema da antropologia: a Salvação e sua realização, o
regresso a Deus do ser pessoal, a corporalidade, a escatologia, são os temas a que
a ele volta constantemente. É numa perspectiva cósmica, platônica e origenista que
ele concebe o desenvolvimento do Homem e as possibilidades da sua formação
pessoal.
No seu primeiro livro, Sobre a Virgindade, São Gregório, homem casado, não
condena as alegrias do casamento, bem pelo contrário. Mas enaltece sobremaneira
a vida virginal, a única que prefigura o nosso fim último, na liberdade e na
potencialidade para uma santidade plena, tanto do corpo como da alma. Para além
de todas as alegrias dos sentidos, de todos os prazeres terrestres, surge sempre a
morte, que reduz tudo a nada. Só o espírito é capaz de se elevar acima do mundo e
alcançar a vida eterna. Coloca-se então a questão da nossa corporalidade, que São
Gregório procura explicar apoiando-se nas ciências naturais, evitando assim, seguir
o espiritualismo perigoso de Orígenes. Mais tarde, depois dum longo caminho
percorrido, ele acaba por voltar ao origenismo, um pouco modificado, defendendo a
perfeita espiritualidade do corpo glorificado.
Como ele afirma, “somente a alma, criada à imagem de Deus, detém o
privilégio de ser chamada à comunhão eterna com Ele”. Para São Gregório este é
um dado incontestável, que ele procura analisar e viver em todas as suas
conseqüências. Assim, “a ascese progressiva que ele exige dos seus monges não
se reduz a meros exercícios nem a um esforço moral tendente a um objetivo
longínquo. Ela atualiza, já neste mundo, o encontro de amor, a união de Cristo com
a Sua Igreja, da alma com o seu Deus. Segundo a interpretação alegórica de São
Gregório, toda a Sagrada Escritura, quer o Antigo, quer o Novo Testamento seja, por
exemplo, a vida de Moisés ou os atos de São Paulo, deixam transparecer o mesmo
ideal de purificação, de santificação e união com Deus. A sua piedade mística
alimenta-se, sobretudo do Cântico dos Cânticos”. Enlevada por um santo êxtase, “a
alma, purificada, pressente nas trevas luminosas da noite divina a aproximação e a
beleza de seu esposo, se bem que nunca O possa ver e conhecer na plenitude”.
Para alcançar este objetivo a alma deverá – a exemplo de Cristo – morrer ao mundo.
Depois dos profetas e dos apóstolos, aqueles que vivem estas experiências
comunicam-nas aos homens. A Igreja vai, assim, derramando a Graça, porque a
evolução dos espíritos é irreversível. São Gregório acredita, como Orígenes, num
regresso a Deus de todos os seres e na restauração final de todas as coisas
(apocatástase), embora se oponha decididamente à hipótese da preexistência das
almas.
São Gregório nunca foi condenado por erros de doutrina, não obstante alguns
deles terem sido implicitamente incluídos nas sentenças pronunciadas em Concílio,
nos séculos V e VI, pela Igreja contra algumas heresias. São Gregório, porém, teve
o cuidado, como já antes dele Orígenes, de delimitar bem o que era dogma de fé,
doutrina teológica, definitivamente estabelecida, da hipótese teológica, onde ele
dava livre curso à especulação mística. Assim, as questões por ele longamente
debatidas, como a escatologia (doutrina sobre os últimos tempos), eram incluídas
neste segundo grupo onde, como o seu amigo São Gregório de Nazianzo havia

163
afirmado, “até um erro não apresentava perigo”, (São Gregório de Nazianzo,
Discursos 27,10). A mística terá por objetivo – segundo o Bispo de Nissa – acalmar
e suavizar a tensão existente no homem espiritual quando ele enfrenta a
comunidade organizada da Igreja.
Sobre a obra literária propriamente dita de São Gregório de Nissa, ela abarca
um leque muito vasto de áreas e de temas. Encontramos entre as suas principais
obras polêmicas, já citadas, os Tratados dogmáticos contra Eunômio (uma das
melhores refutações do arianismo que se conhece); a sua Grande Catequese e o
Diálogo sobre a Alma e a Ressurreição ; os tratados em que faz a refutação do
apolinarismo (Contra Apolinário), dos adversários da doutrina do Espírito Santo
(pneumatômacos) e do triteísmo, afirmando as duas naturezas divinas e humanas
de Cristo, a unidade das Três Pessoas da Santíssima Trindade e o valor da
liberdade contra o determinismo.
Num segundo grupo de obras inserem-se os escritos exegéticos, onde
encontramos articulados temas escriturísticos e filosóficos, incluídos, também, entre
as suas obras fundamentais: Do Hexameron e De Hominis Opificio, que continuam
as “Homilias Sobre o Hexameron” de São Basílio, embora com perspectivas
diferentes e mais amplas; nelas é abordada a questão da criação do mundo e do
homem, procurando entender-se racionalmente as verdades reveladas no Gênesis;
Da Vida de Moisés, apresentando o grande patriarca como guia e símbolo da vida
espiritual, encarnado o ideal humano; a perfeição, para o Homem, é definida como
um processo sempre inacabado, tese fundamental da espiritualidade gregoriana; e
as Homilias sobre o Cântico dos Cânticos, que tem um caráter alegórico e místico.
Um terceiro grupo de obras está marcado por preocupações ascéticas,
visando constituir uma doutrina monástica. O seu primeiro livro, que como já
referimos se intitula Da Virgindade, foi escrito a pedido do seu irmão, São Basílio,
que nesse tempo estava absorvido por uma vida de ação e preocupado com a
organização dos seus mosteiros, não tendo nessa altura tempo nem disponibilidades
para dar ao monaquismo um enquadramento teórico, incumbindo, assim, dessa
tarefa, o seu irmão mais novo. Incluem-se neste grupo as obras Da Confissão Cristã,
Da Vida de Santa Macrina e Da Instituição Cristã (sobre a Igreja Institucional). Esta
última representa, por assim dizer, o cume do pensamento espiritual de São
Gregório. Foi escrita a pedido de alguns monges, solicitando-lhe que escrevesse
sobre a essência da vida contemplativa e os meios de acesso a ela. O autor
confessa ter elaborado o tratado baseado nos frutos concedidos anteriormente pelo
Espírito Santo (Inst., GNO, VIII-I, 42, 17), provando a autenticidade, fruto duma
experiência vivida, da sua obra. A sua influência foi grande nos meios monásticos
orientais.
Os Sermões e Discursos de São Gregório incluem-se noutro grupo de obras,
embora não muito numeroso, abordando temas muito variados, como os
dogmáticos, os morais, os litúrgicos, os panegíricos de Santos e as orações
fúnebres.
Finalmente, atribuem-se-lhe 30 Cartas, sendo de salientar o estilo retórico
aprimorado do autor, as quais refletem as suas preocupações e interesses variados,
desde aspectos teológicos e místicos a questões de disciplina religiosa e de
arqueologia, até simples questões do dia-a-dia.
No tempo de São Gregório fazem-se já recolhas de citações (florilégios) dos
antigos Doutores reconhecidos pela Igreja e que defendem a verdade cristã. Ele é
talvez o primeiro Padre da Igreja a fazer apelo não somente à Sagrada Escritura,
mas à “interpretação dos padres” (Adv. Eunom. III, 10, 9). “O fato de a Santa
Tradição, desde o tempo dos Padres, ter chegado até nós como uma herança
transmitida pelos Apóstolos e os Santos que se lhes seguiram, é uma prova
suficiente para se crer na verdade da nossa doutrina” (Adv. Eunom. III, 2, 98). O seu

164
irmão, São Basílio, é citado como uma dessas testemunhas. São Gregório, como já
salientamos, seguiu primeiramente os passos daquele, mas depois abriu o seu
próprio caminho. Respeitando a Tradição, ele explorou outros domínios da vida
espiritual e do pensamento, onde teve uma ação livre e independente.

SINÉSIO DE CIRENE, METROPOLITA DA PENTÁPOLE (c.370-413)

O homem que passamos agora a abordar não é tradicionalmente reconhecido


como um dos grandes Padres da Igreja, não obstante os seus escritos terem sido
lidos avidamente e amplamente difundidos em toda a Idade Média bizantina. Sobre
ele pesa o fato de ter sido quase a sua vida – que não foi longa – um filósofo e,
portanto, segundo os conceitos da época, também um teólogo, embora não fosse
ainda cristão. Só na parte final da sua vida desempenhou funções episcopais.
No seu tempo, a distância entre os últimos filósofos pagãos e os Padres da
Igreja é ainda reduzida. Tanto uns como os outros buscam um espírito religioso e
aspiram à pureza moral, à santificação e ao conhecimento dos tesouros da
Revelação. Todavia, uma só organização está em condições de satisfazer estes
anseios, atraindo a si os próprios pagãos – a Igreja de Cristo.
Sinésio descende de uma distinta família pagã de Cirene, na antiga Cirenaica,
atual Líbia, no Norte da África. Essa província, originariamente “bárbara”, abrira-se à
cultura helenística (grega) e convertera-se ao cristianismo mais rapidamente que a
própria Capadócia (de que falamos anteriormente). Como os Padres Capadócios,
Sinésio está ligado à idéia do Império e a uma vivência cosmopolita (aberta ao
mundo), mas conserva um amor natural e consciente ao seu país, à sua terra natal.
É um homem com um forte sentido de família, do culto da amizade e da
solidariedade social, pronto a socorrer quem quer que se lhe dirija. Nos seus livros,
obras filosóficas, poéticas e retóricas, a que ele chama “os seus filhos”, transparece
a sua vasta cultura: tal como Os Padres Capadócios,também ele conhece toda a
literatura grega clássica. Como ele próprio afirma, “os livros e a caça enchem a sua
vida, exceto quando eventualmente é incumbido duma embaixada” (Sobre os
Sonhos, 18).
Sinésio fez os seus estudos no grande centro cultural que era Alexandria,
vizinho do seu país. Teve como professora na universidade e depois sua amiga
venerada durante toda a vida – amizade comparável à de S. Basílio com S. Gregório
de Nazianzo – uma mulher extraordinária, Hipácia, filósofa neoplatônica. Hoje não
se conhece a doutrina de Hipácia senão de modo fragmentário: sabe-se que ela
exigia grandes esforços intelectuais aos seus alunos e que a sua personalidade
impressionava toda a gente, incluindo as massas populares de Alexandria. Sinésio
estudou a fundo as bases da cultura científica antiga. Todo este conjunto de
conhecimentos fundia-se num vasto sistema neo-platônico, com uma série de
“mistérios” esotéricos, que não era prudente divulgar num mundo cristão. Segundo
esta filosofia “a contemplação da natureza e das suas forças misteriosas introduzia a
um conhecimento superior do mundo das idéias e das realidades do espírito; de
degrau em degrau o filósofo acedia à Unidade divina refletida pelo cosmos inteiro,
tão-somente adorada pela visão capaz de contemplar para além do mundo visível”.
O significado desta contemplação do mundo é apresentado de forma muito
viva e concreta, num pequeno livro que ainda hoje desperta interesse: o “Tratado
dos Sonhos” que, segundo o autor, foi redigido durante as horas duma única
madrugada. Segundo ele, durante o sono, “a alma escapa à sua prisão material e
põe-se em movimento pela força da imaginação. Nas asas do espírito, e aproxima-
se da origem do ser verdadeiro. Mas o sonho pode conter, sem dúvida, o perigo da
ilusão e da sedução: isso dependerá, porém, da essência da alma que sonha! Estas

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artimanhas diabólicas poderão ser rapidamente evitadas pela temperança
santificante e o auto-domínio, peculiares a um coração puro. Então este, casto e
alerta, amparado pela misericórdia divina, ascenderá aos arquétipos da Verdade e
realidade eternas. Sob a superfície multifacetada dos fenômenos, o mundo do
sonho, corretamente interpretado, atesta a coerência do mundo e prova a
imortalidade da alma.” Mas tal conhecimento, como o próprio Sinésio concorda, não
está ao alcance dum público semi-cultivado. Esta constatação fazia-o manter uma
atitude elitista, conservando-se à distância de “filosofia cristã”, por um lado, e de
certos sofistas pagãos, por outro. Independentemente de todas as influências, ele
desejava, tão-somente, conhecer e servir a Verdade suprema – atitude esta
semelhante à de S. Justino, o Filósofo, mártir.
Entretanto, ele movia-se num círculo de estudantes animados do mesmo
entusiasmo que ele. Depois desposou uma cristã pertencente a uma nobre família
de Alexandria, tendo o seu casamento sido abençoado pelo próprio Papa egípcio
Teófilo.
Regressando à sua pátria, colocou-se à disposição dos seus conterrâneos
para realizar um importante serviço. Nesse tempo – como em tantas épocas durante
a História – a sua terra era já gravemente molestada pelas incursões das tribos do
deserto; para além disso era explorada por funcionários incompetentes,
necessitando imperiosamente de ser aliviada da carga dos impostos. Tal concessão
só poderia ser obtida na própria Corte Imperial. Sinésio empreendeu esta missão,
que o reteve 3 anos (de 399 a 402) em Constantinopla. Foram para ele “anos
perdidos”, mas não inúteis, tendo aprendido a evoluir na mais elevada sociedade e
nas suas manobras diplomáticas. Neste tempo ele teve a oportunidade e o privilégio
de fazer um Discurso sobre o Império diante do jovem Imperador Arcádio, onde além
do seu bom estilo retórico perpassa o seu protesto contra a corrupção e o abuso do
poder; mais ainda, ele discorda frontalmente contra a proteção das fronteiras do seu
país pelos “bárbaros” germanos por serem perigosos e inúteis.
Regressando à sua terra, ele passou da palavra à ação, organizando a
proteção das fronteiras e ativando uma milícia de defesa. Ele participou
pessoalmente na campanha, construiu uma nova catapulta e reforçou as
fortificações. Esta tarefa obrigava-o a colaborar freqüentemente com os oficiais e
funcionários governamentais e, quando estes se revelavam incompetentes, a
influenciar a sua substituição.
Quando a paz ficou restabelecida, Sinésio voltou à sua vida de filósofo, à sua
casa rural, aos livros e aos amigos. Os Hinos que ele compôs nessa época
exprimem a admiração pela beleza do cosmos, a oração dirigida ao Uno inefável, a
nostalgia da alma enlevada na pureza e na perfeição. A oração substitui agora –
com grande vantagem – as antigas cerimônias cultuais. Outros Hinos glorificam a
descida de Cristo aos infernos e a Sua Ascensão, descrevem a Adoração dos
Magos, ou dissertam sobre o “Gerado por Deus”, que é o “Logos”, o “Filho”, o “Filho
da Virgem”. A tríade neoplatônica do “Uno”, do “Espírito Criador” e da “Alma do
Universo” torna-se na “força tripartida da Trindade cristã”. Em suma: partindo de
representações tipicamente pagãs, verifica-se uma crescente atração de Sinésio
pela Verdade e os valores cristãos.
Mas até que ponto se poderá considerar, aqui, uma conversão de Sinésio ao
cristianismo, ou os seus Hinos como uma profissão de Fé? Ou, pelo contrário, ter-
se-ia ele servido de “mitos cristãos” para prestar homenagem à verdade filosófica?
É difícil darmos uma resposta isenta e categórica a estas questões. Parece-
nos até que, para ele, as duas confissões (cristã e pagã) são aparentadas e contém
mais verdades espirituais e religiosas comuns que antonomias irredutíveis. Ele não
parecia resolvido a dar o passo decisivo para a conversão plena, ainda que –
dirigindo-se por carta a um amigo seu que enveredou pela vida monástica – ele não

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duvide da seriedade da vida contemplativa e felicite esse amigo por ter atingido um
objetivo na vida que ele há muito tempo ansiava em vão e acrescentando ainda:
“Louvo tudo o que vem pela vontade de Deus” (Ep, 147 ad Johan.), revelando com
isto a sua disponibilidade interior.
Foi neste estado de espírito que na Primavera do ano de 410, não tendo
ainda sido batizado, ele foi eleito Bispo de Ptolemaida. Caso aceitasse. Exerceria as
funções de Metropolita da Pentápole, com jurisdição em toda a Cirenaica.
Importa lembrar que, naquele tempo, as funções dum bispo extrapolavam
muito o domínio religioso: elas incluíam deveres de assistência social; a
administração, pelo menos em parte, da justiça; o direito de resistir à arbitrariedade
dos funcionários do fisco e à burocracia imperial – e era a única voz que o podia
fazer. O exemplo de nós já conhecido de S. Basílio, o Grande – que se notabilizou
em muitos destes domínios – é ilustrativo. Deste modo, Sinésio vê-se confrontado
com uma vocação (no seu sentido autêntico de chamamento de Deus) com a qual
não esperava. Os cristãos de Cirene, pela sua parte, não tinham dúvidas: o senhor
feudal mais influente do seu país, que tantas vezes demonstrara o seu amor pela
pátria e pelos seus concidadãos, era o seu candidato por excelência para os
conduzir, também na Igreja, como pastor desse rebanho de Cristo, ao Reino dos
Céus.
Depois de algum tempo de hesitação, ele escreveu uma carta “aberta”, que
deveria ser lida em primeiro lugar pelo Papa Teófilo de Alexandria - sobre quem
impedia a responsabilidade da sua sagração - explicitando em termos claros as
condições necessárias para a aceitação do cargo episcopal. Nela começa por
"agradecer a confiança nele depositada pelos cidadãos de Ptolemaida, chamando-o
a um dever que ultrapassa as suas forças. A dignidade dessa função espiritual exige
uma alma santa, sacerdotal, plenamente recolhida e sem mancha” e nesse aspecto
ele declara-se “longe de estar satisfeito consigo mesmo”: a vida mundana que teve
torna-o “pouco apto para ensinar em público a fé divina”. No entanto, “dada a
grandeza da causa, declara-se pronto a abandonar os prazeres da caça, os
desportos e os estudos pessoais”. Não renuncia, todavia, ao matrimônio. A sua
conversão oficial e a admissão ao batismo – condições indispensáveis para aceder
ao episcopado – não oferecem dúvidas. Mas em termos de doutrina ele põe
algumas reservas; quer “manter a liberdade de conservar as suas convicções
pessoais sobre: a eternidade do universo, a pré-existência das almas e a fé na
imortalidade, mas não na ressurreição da carne”. Tendo-lhe sido respondido que,
neste domínio, não lhe são permitidas concessões, ele declara “não pretender
insistir sobre estas divergências: não ensinará uma doutrina oposta à da Igreja, mas
também não dará explicações sobre estes aspectos”. Não se conhecem pormenores
das conversações de Sinésio com o Papa Teófilo de Alexandria. Sabemos, no
entanto, que ele esteve não menos de 7 meses junto da Sé primacial antes de voltar
a casa sagrado Bispo. É muito provável que esta permanência junto do categórico
Papa (que conheceremos melhor quando falarmos sobre S. João Crisóstomo) o
tenha feito renunciar às últimas condições que impunha para a sua sagração.
O que é verdadeiramente de realçar e enaltecer é a imagem que transparece
da sua ação pastoral como Bispo. De fato, ele revela-se em todos os aspectos,
como um bispo fiel, consciencioso, perfeitamente ortodoxo, em nada diferente de
outros bispos. Ele percorre a sua diocese, regula os diferendos, ordena padres,
funda mosteiros. Recorre às decisões de Alexandria e aos conselhos do célebre
monge Santo Isidoro de Pelusa. Reprime energicamente todas as heresias
nascentes, como o arianismo radical dos eunomianos. Nos fragmentos que nos
chegam dos seus sermões, a sua teologia é irrepreensível e as citações da Sagrada
Escritura mais freqüentes e precisas do que, no tempo dos seus escritos anteriores,

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as referências a Platão e aos autores clássicos. Ele realiza agora as convicções que,
desde sempre, inspiraram a sua vida de filósofo, assim como a sua vida privada.
Mas havia também que fazer face à dura realidade política da sua pátria. A
luta contra as tribos do deserto reacendera-se, a situação deteriorava-se e parecia
desesperada. O Metropolita Sinésio teve de usar todas as influências de que
dispunha para organizar o recrutamento do exército e a proteção do país. Ele dirige-
se com manifestos cheios de exército e a proteção do país. Ele dirige-se com
manifestos cheios de ardor à população e utiliza agora, em Igreja, um meio
poderoso de que antes não dispunha: a primeira excomunhão solene narrada pela
História da Igreja foi pronunciada por Sinésio contra o duque Andrônico, que se
tornara culpado dum grande número de execuções. Todas as Igrejas irmãs foram
avisadas para fechar santuários a Andrônico e seus cúmplices, e ameaçados todos
os que acolhessem debaixo do seu teto ou à sua mesa de incorrerem na mesma
sanção. O Metropolita Sinésio compeliu, assim, o orgulhoso criminoso a humilhar-se
e a fazer penitência. Quem suspeitaria que sob este comportamento aparentemente
tão duro – mas também necessário em Igreja (para repor as coisas no seu devido
lugar) – se encontrava o mesmo homem, que fora outrora o doce “sonhador”
neoplatônico?
Pesadas contrariedades familiares teve de enfrentar, mas sem nada deixar
transparecer em público. Como Bispo, ele soube estar no lugar onde Deus e a sua
pátria o chamaram. O Metropolita da Pentápole, tendo renunciado à sua vida de
filósofo, apresenta traços comuns aos dos Padres Capadócios: como S. Basílio, ele
renunciou às suas nobres inclinações para satisfazer as exigências do bem comum,
exercendo uma notável ação de organização do seu povo, a nível eclesial e social.
Melhor que S. Gregório de Nazianzo, soube romper com a sua inclinação
individualista e colocar mais plenamente as suas potencialidades aos serviços da
Igreja. Por alguns traços do seu caráter, ele assemelha-se antes a S. Gregório de
Nissa; como este, reservou para si um certo domínio da sua alma onde se sente
mais livre nas suas palavras e ações. A Igreja sempre deixou em paz os seus filhos
que A serviam como Sinésio; as crises começaram quando os teólogos entenderam
tornar imperativas para toda a Igreja as suas exigências sobre a Fé cristã.

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA (c. 354-407)

São João, cognominado desde o século VI “Chrysostomos” (boca de ouro),


nasceu por volta do ano de 354 em Antioquia da Síria, capital cosmopolita situada
nas margens do rio Orontes. Ele não é num um fidalgo das regiões rurais (como
Sinésio de Cirene) nem de linhagem senhorial (como S. Basílio), mas a sua ilustre
família era abastada. O pai, Secundos, capitão (hoje equivalente a general) das
milícias sírias, morreu sendo ele de tenra idade, deixado aos cuidados de sua
piedosa mãe, Antusa, viúva aos 20 anos de idade. Teve por mestre, entre outros, o
célebre reitor Libânio.
Não obstante viver na grande cidade, habituado às grandes aglomerações,
acusa-se a si mesmo, mais tarde, no seu rigor ascético, de ter vivido esse tempo
“acorrentado pelos apetites do mundo”, por ter apreciado os bons pratos e ter sido
um freqüentador dos teatros e dos processos públicos... Pode, contudo, afirmar-se
que a sua juventude foi equilibrada e bem protegida. Aos 18 anos recebeu o batismo
e 3 anos mais tarde, tendo terminado os seus estudos, recebeu as ordens menores
como leitor.
Uma carreira eclesiástica parecia estar-lhe destinada, mas sobre ele pesou
mais a atração pelo ideal da vida monástica, já nesse tempo desenvolvida na Síria e
a influência da célebre Escola teológica antioquina. Assim, decidiu consagrar-se à
vida ascética, inicialmente na casa de sua mãe, para não a contrariar, casa onde

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afluem alguns companheiros animados dos mesmos ideais e que se torna
rapidamente num centro espiritual. É condiscípulo de Teodoro de Mopsuéstia, tendo
ambos por mestre Deodoro, que mais tarde foi Bispo de Tarso.
Com a morte da mãe retira-se para as montanhas vizinhas de Antioquia,
vivendo 4 anos sob a direção de um eremita e depois 2 anos como anacoreta, onde
se entregou à oração e ao estudo aprofundado da Sagrada Escritura, especialmente
do Novo Testamento. A sua entrega obstinada aos exercícios ascéticos do jejum, do
frio e das vigílias, sendo ele já de débil compleição física, valeu-lhe ficar diminuído
fisicamente para toda a vida e obrigou-o a regressar à cidade, onde foi ordenado
diácono em 381 e, em 386, presbítero. Talvez ele tivesse pretendido ser monge toda
a vida; o certo é que ele era por natureza demasiado inclinado à ação e atividade
missionária para se poder satisfazer unicamente na perspectiva ascética.
Sendo por regra, nesse tempo, o Bispo o único pregador na sua diocese,
excepcionalmente e por razões pessoais, o Arcebispo Flaviano designou como
pregador na sua catedral o presbítero João. Aí, durante 12 anos, ele exerceu
brilhantemente este múnus, associado ao cuidado dos pobres e desprotegidos e à
direção espiritual. Empreendeu simultaneamente uma atividade literária que
respondia essencialmente aos problemas pastorais quotidianos: podemos dar como
exemplos uma consolação a um doente, outra a uma jovem viúva; um tratado
pedagógico, outro escrito denunciando desordens na vida monástica; obras
destinadas aos pagãos e aos judeus para provar que Cristo é o Filho de Deus; e
muitos outros escritos.
Quanto às suas pregações propriamente ditas, que eram habitualmente
registradas por vários estenógrafos ouvintes das suas palavras, elas consistem, na
sua maior parte, mais em comentários das palavras das Sagradas Escrituras, do que
propriamente em dissertações versando os grandes temas teológicos. Tratam-se de
“homilias” parafraseando os textos sagrados para deles retirar conclusões práticas
deste modo S. João Crisóstomo explicou e comentou livros inteiros da Sagrada
Escritura. Estes Sermões foram mais tarde publicados ou integrados nos seus
Comentários.
Os sermões deste pregador infatigável exerceram grande influência não só
sobre os seus contemporâneos como para a posteridade. Em pouco tempo tornou-
se no orador mais popular da Antioquia. Muitas vezes calorosos aplausos
intervalavam, na igreja, as suas alocações. Apesar disso, S. João tinha uma figura
insignificante; faltava força à sua voz e a sua saúde vacilava constantemente. Além
disso a sua eloqüência não era composta seguindo as regras artísticas. Eram,
todavia, pregações diretas, espontâneas, dirigidas não à cabeça, mas ao coração.
Apesar de cuidadosamente preparadas, notamos que por vezes ele faz largas
digressões para finalmente voltar ao tema inicial. Ele fá-lo para captar a atenção dos
fiéis, precisamente nas zonas onde eles se dispersavam e também para responder a
algumas perguntas espontâneas dos seus auditores. Exprimia o seu pensamento de
forma simples, de modo a poder ser entendido por todos. Pode dizer-se que ele é,
ainda hoje, o Padre da Igreja cujas pregações mantêm todas a sua atualidade. Ele é
o maior, o mais perfeito e mais absoluto pregador dos Padres de toda a História da
Igreja.
Pregar torna-se, para São João, uma necessidade vital. Quanto mais a
comunidade tem “fome” das suas palavras, mais ele tem “fome” de pregar. Como ele
diz: “A minha pregação cura-me; quando abro a boca para pregar toda a fadiga
desaparece” (Hom. post terrae motum – PG 50, 713s). Nesta expressão dele:
“Comentamos as Escrituras, não para as conhecerdes, mas para que corrijais os
vossos costumes” (Profetas obscuros II, 7), podemos entrever toda a sua postura
pastoral e o seu perfil espiritual.

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Entretanto, chegamos ao ano de 397 em que, por falecimento do Arcebispo
Nectário – que sucedera, no ano de 381, a S. Gregório de Nazianzo – fica vaga a Sé
de Constantinopla. Em breve surgem candidatos de todas as partes, acompanhados
de legiões de apoiantes. O imperador Arcádio, personagem sem nervo e incapaz,
era ao tempo completamente manietado pelo todo-poderoso favorito (hoje diríamos
primeiro-ministro) Eutrópio, que resolveu dar uma solução a este problema de
sucessão. Para não favorecer nenhum dos partidos em disputa, escolheu alguém
completamente estranho à política da Igreja. Teria de ser um teólogo de renome e
que respondesse às exigências da corte e da capital. Sem nada dizer a ninguém das
suas intenções – e muito menos ao interessado, cuja celebridade ultrapassava
largamente a sua cidade natal – o padre João, sem suspeitar de nada, foi conduzido
a Constantinopla. Os bispos, incluindo o Papa Teófilo de Alexandria, estavam
reunidos para votar e, após vãos protestos, foram obrigados a sagrar o padre João
de Antioquia que, da noite para o dia, se tornava no primeiro dos Hierarcas do
Oriente, o Primaz de Constantinopla, pregador do Imperador e duma Corte faustosa.
Este era, sem dúvida, um cargo que S. João não tinha ambicionado e para o
qual não estava preparado. Mas, uma vez entronizado, não hesitou em por em
prática os seus novos deveres com uma energia notável. Como anteriormente,
entendeu ser sua obrigação pregar e dirigir espiritualmente o seu novo rebanho,
tarefa que executou com o seu brilhantismo habitual.
Imediatamente começaram multidões a acorrer para o ouvirem nas
celebrações litúrgicas. Um grande círculo de admiradores, incluindo as piedosas
senhoras das classes mais afortunadas, que punham à sua disposição os seus
proventos, seguiam-no avidamente, o que permitiu a S. João organizar a contento os
serviços de assistência da comunidade aos doentes e necessitados, paralelamente
a uma redução considerável das despesas administrativas. Empreendeu,
igualmente, várias medidas disciplinares, como e recondução para os mosteiros de
alguns monges transviados, submetendo-os no seu devido lugar, afirmando
nomeadamente que “os judeus e os pagãos deverão aprender que os cristãos são
os salvadores, os protetores, os chefes e os mestres da cidade” (Hom. de Stat. I,
12).
Mas a sua ação estendeu-se para além dos limites da capital, cuja
proeminência sobre as Metrópoles vizinhas, se bem que já estabelecida no II
Concílio Ecumênico, em 381, não estava ainda bem definida. Influenciou também na
deposição do indigno bispo de Éfeso e interveio noutras dioceses a fim de corrigir
abusos e desmandos e restabelecer a ordem.
Mas o seu espírito reformador havia necessariamente de esbarrar com
resistência e oposição na sua própria cidade episcopal. Ao contrário do bispo a que
sucedeu, S. João não era nem um bispo de aparato nem dado a luxos e banquetes
principescos. Os seus deveres a este respeito restringiram-se ao indispensável; e
por princípio (por necessidades ascéticas) tomava sozinho as suas refeições. Exigia
economia e pureza de intenções e continuava a defender como os deveres mais
importantes do seu cargo a solicitude para com os pobres e a assistência espiritual.
Assim, facilmente encontrou inimigos junto de eclesiásticos que vegetavam
perpetuamente na capital, em vez de se ocuparem das suas comunidades. Desta
forma foram crescendo à sua volta a hostilidade e as intrigas, que ele procurou
ignorar.
Quanto às suas relações com a família imperial, nos primeiros anos foram
bem cordiais, sendo o novo Arcebispo recebido com grande benevolência e
confiança. Quanto ao favorito Eutrópio, caindo em desgraça em 399, refugiou-se
junto do altar da catedral, ocasião que S. João aproveitou para demonstrar aos fiéis
a vaidade de toda a grandeza humana e repreender sem piedade ao prevaricador o
grande número dos seus pecados, o que lhe salvou a vida. As decisões

170
governamentais continuavam a não depender do Imperador, mas sim da Imperatriz,
Eudócia, mulher viva e empreendedora, que nutria igualmente os melhores
sentimentos pelo Arcebispo. Os ataques contra S. João foram inicialmente
provocados por certas devassas damas da Corte. O próprio Arcebispo prejudicou-se
a si mesmo ao defender uma mulher lesada pela Imperatriz, tendo comparado esta à
rainha Jezabel do AT (1 Re 21) – mulher de Acab, que pretendia a vinha dum súdito
em terras contíguas às suas e que, pela sua recusa, foi entregue à morte. Esta sua
comparação foi imediatamente aproveitada pelos seus adversários, incluindo bispos
de outras dioceses, que habilidosamente distorceram as suas palavras, levando-os a
fazer causa comum, com a Corte, contra ele, para o conduzirem à abdicação.
O Papa Teófilo foi um dos principais promotores deste processo. Chegou,
entretanto, a Constantinopla, um grupo de monges provenientes do Egito a quem o
Papa alexandrino declarara heréticos, os quais pediram proteção ao Arcebispo da
capital. S. João Crisóstomo arranjou-lhes alojamentos exteriores aos edifícios
eclesiásticos e escreveu ao Primaz de Alexandria uma carta polida e correta
informando-o do assunto. Os monges dirigiram-se ainda à Corte, que aceitou as
suas queixas e convocou um Concílio para Constantinopla, onde Teófilo se devia
apresentar como acusado, e que seria presidido por S. João Crisóstomo.
Em vez de responder à convocatória, o Papa Teófilo começou antes por
procurar informações, em Antioquia, sobre o passado de S. João Crisóstomo, em
busca de algo de que o acusar – nada tendo encontrado que servisse os seus
intentos. Exerceu, então, uma influência junto de bispos punidos com medidas
disciplinares pelo Primaz de Constantinopla, a fim de reforçar, junto da Corte, o
partido hostil ao Arcebispo João. Fez ainda publicar sermões de S. João, mais ou
menos falsificados, contendo reparos ofensivos contra a imperatriz e a vida luxuosa
da Corte. Finalmente, fez-se acompanhar – contra todas as ordens recebidas – de
todo um séquito de bispos egípcios, fazendo com eles uma entrada triunfal em
Constantinopla. Após declinar com rudeza a oferta de aposentos episcopais pelo
Arcebispo João, aceitou alojamento num palácio posto à sua disposição pela
Imperatriz Eudócia. Tudo levava a crer que ele viria a aparecer não no papel de
acusado, mas no de acusador, como efetivamente aconteceu.
Não nos caberá a nós, aqui, fazer um juízo das intenções do Papa de
Alexandria. O certo é que, em Setembro de 403, ele mesmo convocou um Concílio
no palácio do “Carvalho”, perto de Calcedônia, em que passou ao contra-ataque,
instando S. João Crisóstomo a comparecer para se defender das acusações que
eram levantadas contra o Primaz de Constantinopla. Este recusou-se a comparecer,
afirmando, todavia, que estaria presente se fossem afastados do Concílio os seus
grandes opositores. Nada foi feito. O Concílio reuniu, então, na sua ausência,
acabando por forjar uma acusação em 46 pontos, onde se misturam as calúnias com
os mal entendidos. Assim, é condenado, por exemplo, por “comer sozinho e viver
como um ciclope, de se entregar à violência e de praticar crimes de lesa-
majestade...” O Imperador Arcádio teve a fraqueza de assinar a sentença.
O povo ficou indignado e S. João Crisóstomo poderia muito facilmente ter-se
oposto à execução do julgamento. Mas ele não era homem para organizar uma
revolução em proveito próprio. No silêncio da noite, entregou-se livremente aos
soldados que o vieram prender e deixou-se conduzir para fora da cidade sem que
ninguém se apercebesse disso.
Mas novo acontecimento ocorre que inverte a situação. A imperatriz Eudócia,
que movera a sua influência nos bastidores em todo o processo, teve um aborto e,
atemorizada, atribui-o a um castigo divino e reclama o regresso imediato à capital do
Arcebispo banido, tendo para isso de vencer as duras resistências que se lhe
opunham.

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S. João Crisóstomo voltou, mas a situação manteve-se sempre tensa a partir
daí. Algumas semanas mais tarde, a comemoração da inauguração duma coluna
erigida em honra da Imperatriz perturbou o desenrolar da Sagrada Liturgia que o
Arcebispo celebrava, o que fez levantar a este observações que, evidentemente,
chegaram aos ouvidos da Imperatriz.
Noutra ocasião, numa festa em honra de S. João, o Precursor, S. João fez-lhe
uma alusão ainda mais direta, dizendo que “uma vez mais Herotíade se inflama e
arrebata, dança e reclama a cabeça de João”.
Perto da Páscoa de 404 mantinha-se ainda aceso o clima de intrigas contra S.
João Crisóstomo. Sem que nada o justificasse, novo Sínodo foi reunido, com a
tolerância daquele. Quando o Arcebispo se preparava, com o seu clero, para batizar
perto de 3 mil catecúmenos, na Festa Pascal, foi impedido pela força militar de o
fazer, tendo havido alguns distúrbios e derramamento de sangue. Uma vez mais o
Imperador assinara, contrariado, o decreto que obrigava S. João ao exílio. Depois de
reunir os seus padres e bispos fiéis para uma oração e de exortá-los a continuarem
a trabalhar com o mesmo zelo, bem como às diaconisas e a todos os seus
auxiliares, deixou-se conduzir, calmamente, pela segunda vez, para o exílio. Uma
vez mais o Imperador Arcádio, não querendo empreender o que quer que fosse
contra S. João Crisóstomo, não pode impedir o incêndio da sua catedral nem as
cruéis perseguições aos seus seguidores, denominados “Joanitas”, que se
recusaram a obedecer ao novo bispo da capital, usurpador.
Na sua longa viagem de exílio S. João contatou com vários bispos e muitos
clérigos e leigos, que se lhe dirigiram em busca de conselho de conforto. As suas
numerosas cartas desse tempo dão-nos descrições extremamente vivas da situação
e dos seus sentimentos. Denotando uma profunda humanidade e sentindo-se muito
debilitado e doente pelos maus tratamentos, as marchas forçadas, o frio, a falta de
medicamentos e outras privações é, contudo, para os outros que ele se volta, não
cessando de acalmar, encorajar e consolar os seus amigos, mantendo-se apesar de
tudo e mesmo afastado deles, como seu diretor espiritual.
Chegado a Cucuso, na Pequena Armênia, local inóspito, aquilo que mais o
faz sofrer é não ter ocasião de pregar. O dinheiro que recebe, distribui-o aos pobres.
As cartas que recebe e envia vão-no informando sobre os acontecimentos que se
vão passando e permitem-lhe vibrar com os seus amigos advertindo-os,
aconselhando-os e encorajando-os. Mas as suas vistas estendem-se também para
novos horizontes, encarando a possibilidade de se criar uma missão cristã na Pérsia
vizinha.
Além disso, mantinha-se em relação com os principais representantes das
Igrejas Orientais e Ocidentais. Se os seus esforços não foram inúteis, contribuíram,
todavia, para lhe aumentar as dificuldades no exílio. No fim do verão de 405 foi
forçado a abandonar Cucuso e seguir para Arabissa, onde numerosos grupos de
peregrinos foram vê-lo, tendo aí permanecido dois anos. No verão de 407 foi de
novo forçado a deslocar-se para Pítios, no mar Negro, nos extremos limites do
Império. Já gravemente doente, sujeito a marchas forçadas, ao calor e à chuva, sem
lhe permitirem repouso, veio a desfalecer depois de sair da cidade de Comana, onde
foi reconduzido. Tendo comungado pela última vez, fez o sinal da Cruz e deu graças
pela sua vida inteira, dizendo: “Honra a Deus por tudo! Amém”.
Não demorou muito, todavia, a reabilitação de S. João Crisóstomo quer no
Oriente quer no Ocidente: no ano de 438 o Imperador Teodósio II, filho do Imperador
Arcádio, ordenou a transladação solene das Relíquias do Santo para a igreja dos
Apóstolos, na capital, tendo pedido, em ato solene e público, perdão a Deus para os
seus antecessores.
A glória póstuma de S. João Crisóstomo foi incomparável. Nenhum outro
Padre da Igreja teve tantos leitores, incluindo em muitas línguas estrangeiras. Se os

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seus adversários procuraram encher a sua vida de amargura, após o seu
falecimento só teve amigos que, ainda hoje, entre todas as confissões o veneram.
Os seus sermões provam que a Teologia está sempre à medida da sua ação
pastoral. As suas homilias são as únicas, de toda a Antiguidade oriental, que ainda
hoje podem servir à pregação cristã. Simples, sóbrias, profundamente espirituais,
elas refletem o espírito autêntico do Novo Testamento.
Passando a abordar mais concretamente as suas obras, constatamos que S.
João comentou grande números de livros escriturísticos. Pertencendo à Escola
antioquena de Teologia, da qual foi o seu maior expoente, explanou o sentido
histórico-literal do texto sagrado duma forma ao mesmo tempo tão profunda e tão
prática com nenhum outro Padre da Igreja o fez. Ainda hoje as suas homilias
exegéticas são altamente apreciadas e gozam, do ponto de vista da exegese, de
plena aceitação. Entre elas destacam-se, no Antigo Testamento, as homilias sobre o
Gênesis e Isaías e, no Novo Testamento, as homilias sobre os Evangelhos de
Mateus, Lucas e João, os Atos e todas as Epístolas de S. Paulo, pelo qual nutria
grande simpatia.
Entre os sermões de circunstância importa mencionar as célebres 21 homilias
sobre as estátuas, 3 sermões sobre a precariedade dos valores mundanos, o
sermão sobre a invencibilidade da Igreja (pronunciado pouco antes da sua partida
para o exílio), panegíricos dos Santos do Antigo Testamento, dos mártires e dos
bispos da Igreja antioquina.
Com finalidade dogmático-polêmicas, as 12 homilias contra os anomeus
sobre a incompreensibilidade de Deus e a consubstancialidade do Filho com o Pai.
E ainda os sermões contra os judeus (acautelando contra a participação em festas
ou costumes judaicos); 3 sermões sobre o diabo; 9 sobre a penitência; as 12
catequeses batismais, etc.
Entre os seus Tratados, salientamos a obra “De Sacerdotio”, em 6 livros, onde
fala da sublimidade e responsabilidade do sacerdócio e, mais ainda, do episcopado;
o tratado “Sobre a vanglória e a educação dos filhos”, onde expõe a perdição
causada pelo luxo e os excessos em Antioquia e explana os princípios duma boa
educação; tratados encorajando o monaquismo e dissertando sobre aspectos
diversos da vida ascética; 3 obras sobre o sentido e a importância do sofrimento; e
escritos apologéticos.
As 236 cartas de S. João Crisóstomo, quase todas muito breves, datam do
seu 2º exílio e dirigem-se a mais de 100 destinatários diferentes, procurando em 1º
lugar consolar os seus amigos e seguidores e fazer-lhes chegar notícias da sua
saúde. As mais importantes são as 17 cartas enviadas à sua mais fiel discípula,
Olímpia, viúva e diaconisa.
Sobre a chamada Liturgia de S. João Crisóstomo, existe apenas uma
tradição, não apoiada em bases históricas, que não nos permite atribuir a sua
autoria, com segurança, ao ilustre Arcebispo de Constantinopla.
Pode-se dizer que, embora não se possa considerar a Teologia de S. João
Crisóstomo como particularmente original, ela teve o grande mérito de explicitar em
termos acessíveis aos fiéis a doutrina dos Padres Capadócios das Três Hipóstases
de Deus e da união, no Verbo de Deus, das naturezas divina e humana.
Em Cristologia, sobre a união das duas naturezas distintas em Cristo, ele
declara: “Quando digo um (Cristo), quero afirmar união e não confusão; uma
natureza não se transmutou na outra, mas somente foi-lhe unida”. (7ª Hom. sobre a
Ep. aos Hebreus 3). “O Homem não deve indagar o ‘como’ desta união; apenas
Cristo o sabe” (11ª Hom. Jo 2).
Sobre o pecado original S. João pregou a pena original sem incorrer no erro
da culpa original desenvolvido posteriormente por Agostinho de Hipona.

173
Fala da Sagrada Eucaristia com a máxima precisão (ou não fora ele o
eminente liturgo e liturgista a que está associada a Liturgia de seu nome). Assim,
declara que, na Eucaristia, o sacerdote segura com as mãos o Corpo de Cristo que
viveu na terra; que Cristo, na Última Ceia, bebeu o Seu próprio Sangue (24ª Hom. 1
Co. 4; 82ª. Hom. Mt.1). Chama, com freqüência, à Eucaristia, sacrifício e identifica-a
com o sacrifício da Cruz (17ª Hom. Hb 3)

SÃO CIRILO, PAPA DE ALEXANDRIA (380-444)

Os conflitos existentes no tempo de São João Crisóstomo, Arcebispo de


Constantinopla e do Papa Teófilo de Alexandria, vieram a repetir-se na geração
seguinte com o Arcebispo Nestório da capital do Império e São Cirilo, Papa de
Alexandria.
Fazendo nominalmente parte do Império, o Egito e as dioceses sufragâneas
desfrutavam desde há muito de uma autonomia interna; sujeita a uma centralização
rigorosa, onde a soberania e a ortodoxia tradicional do seu chefe carismático, o
Primaz alexandrino, jamais havia sido posta em causa, esta tradição encarnara em
homens de forte personalidade, como Demétrio, Santo Atanásio e Teófilo, até
chegar ao sobrinho e sucessor deste, São Cirilo.
São Cirilo começou muito cedo a desempenhar as suas funções com o
mesmo espírito que animara os seus antecessores. De fato, o Trono de São Marcos
ficou somente vacante dois dias, findos os quais ele foi sagrado Bispo e entronizado
como sucessor de seu tio, no ano de 412. Mantendo as suas grandes linhas
pastorais, ele exerceu, também, uma forte ação política e social, mas ao contrário do
Papa Teófilo, ele apresenta uma vertente muito mais acentuada de teólogo,
pregador e escritor fecundo, cujas obras enchem algumas dezenas de grandes
volumes.
O seu trabalho intelectual constitui para ele uma alegria espiritual. O método
que utiliza, refletindo uma aplicação tenaz, é por vezes muito repetitivo – fazendo
lembrar em muitos aspectos Santo Atanásio – mas o estilo é algo mais rebuscado e
por vezes pouco elegante. Não obstante as lacunas que apresenta, o autor expõe
com precisão aquilo que pretende, denotando um pensamento claro e sistemático. A
filosofia não o atrai, considerando-a mesmo perigosa. Quanto à teologia de São
João Crisóstomo, pertencendo ela à grande Escola Teológica de Alexandria, rival da
sua (Alexandria) e apesar da sua simplicidade e clareza de exposição, São Cirilo
não a pode aceitar.
Na interpretação da Sagrada Escritura defende, por princípio, o sentido
alegórico e tipológico da sua Escola teológica, embora minimize quase
completamente o sentido humano e histórico dos textos escriturísticos.
A sua atenção está centrada exclusivamente no caráter dogmático e
polêmico. Para ele, a Sagrada Escritura refuta todas as heresias, estabelecendo os
fundamentos da Teologia da Santíssima Trindade e da Pessoa divina do Salvador,
base da piedade autêntica. Destarte, “a santidade cristã alcança a perfeição com a
adoração destes mistérios divinos, a recepção dos Sacramentos vivificantes e a
prática das virtudes ascéticas dos monges”, como ele afirma.
Ao expor a doutrina da salvação, São Cirilo sente-se na linha e com herdeiro
dos Padres da Igreja anteriores, sobretudo os que o precederem na cátedra
alexandrina. Deste modo, no seu 1º grande tratado dogmático, “Tesouros da
Trindade Santa e Consubstancial”, estão incluídos mais de um terço dos Discursos
de Santo Atanásio sobre o mesmo tema. Outras fontes são Dídimo, o Cego e os
Padres Capadócios. Todavia, não é sobre as novas disputas teológicas que ele
começa por se debruçar, mas sim sobre os antigos adversários, como Ário, Eunômio
e o Imperador Juliano, o Apóstata, a quem denomina “o Ímpio” e contra o qual

174
escreveu uma obra enorme em 30 volumes. Para São Cirilo, a doutrina autêntica
apresenta-se sempre como um dado revelado e tradicional, que só pode ser alterado
ou ignorado por uma vontade depravada e diabólica.
Cristo, Logos divino, o próprio Deus, está no centro de todas as coisas. Pela
Sua Encarnação, Ele uniu a nossa natureza à Divindade e divinizou-a. Conhecer
Jesus tão-somente pela natureza humana parecia ao Primaz alexandrino o cúmulo
da impiedade: só o Filho de Deus Encarnado é o autor da nossa salvação.
Inversamente, uma tese que diminuísse a natureza humana da Pessoa do Salvador,
não merecia ao Papa egípcio atenção digna de nota, razão pela qual São Cirilo foi
acusado mais tarde de ter utilizado fórmulas de Apolinário (herege cujas doutrinas,
condenadas no II Concílio Ecumênico, afirmavam ser Cristo um misto de Homem e
Deus, confundindo natureza e pessoa e, não podendo admitir duas pessoas,
professavam uma só natureza no Salvador). Mas São Cirilo foi ilibado
completamente no V Concílio Ecumênico (Constantinopla II, em 553), que
proclamou a Ortodoxia do Primaz alexandrino.
Nestório, Arcebispo de Constantinopla desde 427 (20 anos após o
nascimento para os Céus de São João Crisóstomo), era um homem pouco dado à
diplomacia. Ele empreendeu uma luta sem tréguas contra todas as heresias e achou
por bem desenvolver e precisar cada vez mais a sua própria teologia, impondo-a de
modo inflexível e pretendendo fazê-la reconhecer em toda a parte.
Como ocorrera já no tempo de São João Crisóstomo, um grupo de monges
egípcios banidos da Igreja alexandrina apareceu em Constantinopla solicitando
proteção e apresentando queixa contra o Papa egípcio “despótico”.
A história repetiu-se. O Imperador Teodósio II convocou um Concílio, que veio
a reunir-se em Éfeso, onde foi São Cirilo com os seus bispos fiéis que excomungou
Nestório; neste Concílio foi proclamada, ainda unidade hipostática e indivisibilidade,
sem separação nem confusão, de Cristo, Deus e Homem: duas naturezas, divina e
humana, numa só Pessoa, divina (embora nesse tempo os termos não fossem ainda
tão precisos).
São Cirilo é o Padre da plena divindade de Cristo e da unidade da Pessoa do
Salvador.
O Primaz de Constantinopla, por sua vez, reunindo os seus bispos fiéis noutro
local, excomungou São Cirilo.
O Imperador, finalmente, mandou prender ambos os Hierarcas.
Difíceis conversações começaram então, até que Nestório, cedendo,
resignou, retirando-se para o seu antigo mosteiro de Antioquia. São Cirilo regressou
a Alexandria, onde fez proclamar por todo o lado o triunfo da verdade e a derrota do
seu adversário ímpio.
É verdade que Nestório não pode ser acusado de toda a evolução da sua
doutrina – o nestorianismo – desenvolvida de forma ainda mais extremista pelos
seus discípulos. O certo é que teve um erro (entre os outros) que tornou ainda mais
rápido o seu descrédito, fazendo-o até abominável à vista dos piedosos cristãos da
capital: ousar contestar a maternidade divina da Santíssima Virgem Maria.
Se o animava um zelo legítimo de evitar que os fiéis divinizassem Nossa
Senhora a ponto de A igualarem a uma das Pessoas da Santíssima Trindade – e
nós sabemos que essa divinização não é possível pela natureza, mas é–o por
semelhança – ele não teve depois o cuidado pastoral de repor a veneração à
Santíssima Mãe de Deus no seu devido lugar, distorcendo-a completamente.
Tornada pública esta sua atitude, não deverá surpreender-nos a condenação
de Nestório pelo Concílio e os festejos jubilosos do povo nas ruas pela derrota do
“inimigo da Santa Virgem”, celebrando “a honra da grande, sublime e gloriosa Mãe
de Deus”.

175
Muito contribuiu para isso toda a ação tenazmente desenvolvida por São
Cirilo, que teve como um dos pontos altos o extenso louvor da Mãe de Deus
pronunciado no próprio Concílio de Éfeso (embora haja autores que ponham em
dúvidas e autoria deste hino ser do Papa alexandrino), Concílio que veio a
proclamar, como Dogma, a maternidade divina da Santíssima Virgem Maria
(Theotokos).
Passando agora a abordar as suas obras literárias, a parte mais volumosa é
constituída pelos escritos exegéticos, onde se destaca uma explicação nitidamente
mais alegórica para os textos veterotestamentários (Antigo Testamento), dos quais
nos restam 30 livros sobre o Pentateuco e ainda um Comentário de Isaías e dos
Profetas Menores e fragmentos de outros livros (Salmos, etc.); quanto aos textos
neotestamentários (Novo Testamento) utiliza explanações mais baseadas no sentido
literal: Comentário de São João, Homilias sobre São Lucas e fragmentos sobre São
Mateus e algumas Epístolas Paulinas.
Entre as obras dogmático-polêmicas, além de já referida “Tesouros da
Trindade Santa e Consubstancial”, tem uma outra “Da Santa e Consubstancial
Trindade”, ambas refutando o arianismo; escritos anti-nestorianos; outros dirigidos à
Família Imperial; anátemas; apologias (incluindo a supracitada obra em 30 livros
contra o “Ímpio” Imperador Juliano): e outros trabalhos sobre Cristologia e
Mariologia; mais de uma centena de Cartas, a maior parte de relevância dogmática e
outras de conteúdo prático, canônico ou histórico.
Se, por um lado, o grande Papa de Alexandria, como chefe carismático e pai
do seu povo – não apenas no domínio religioso e espiritual – se apoiou no poder
político, afirmando a sua autoridade eclesiástica, ele fê-lo com verdadeiro teólogo
em prol da proclamação da Fé e da defesa da verdadeira Tradição. E se nós vimos
já a grande autoridade que São Cirilo atribui à Sagrada Escritura, ele alarga-a, no
espírito da vivência da Tradição da Igreja, à importância dos Padres da Igreja. Ele
foi, entre os antigos teólogos, um dos que mais insistiu na autoridade e valor dos
Padres, afirmando que “eles nada omitiram de essencial” e que “todos os que
queiram confessar a Ortodoxia encontrarão nas suas profissões de Fé e
comentários tudo o que é necessário para refutarem, a todo o momento, cada
heresia e imprudência ímpia” (De Symb. 4 – Aco. I,4,4).

PADRES LATINOS

Após havermos feito uma introdução ao estudo dos Padres da Igreja “Grega”
– e não podemos olvidar a existência de tantos outros igualmente importantes, como
São Dinis o Pseudorareopagita, São Máximo o Confessor, São João Damasceno,
São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório Palamas ou São Marcos de Éfeso,
entre muitos outros – passamos a abordar, também, alguns Padres da Igreja
“Latina”.
Esta distinção entre os povos cristãos de língua grega e latina só começa a
desenhar-se com nitidez a partir do século III. Antes disso, a Igreja disseminara-se
entre os Judeus da Diáspora e os restantes povos do Império, cuja língua comum
era o grego. A razão da generalização do uso da língua grega em todo o Império
deve-se a uma aculturação da civilização vencedora, romana, pela civilização
vencida, grega, culturalmente mais evoluída e refinada. Por este motivo já o Novo
Testamento havia sido redigido em grego (à exceção do Evangelho de São Mateus)
e nessa língua evangelizara os povos do Império.
Depois, porque “a Luz veio do Oriente” os próprios Padres da Igreja Latina
foram instruídos e formados por mestres gregos. Progressivamente, a prevalência
de valores mais voltados, no Ocidente, para o legalismo e o moralismo, conduziu a
uma vivência cristã com algumas afinidades com o judaísmo, pela sua vertente

176
jurídica e moral, caracterizada, do ponto de vista dogmático, pelo “evolucionismo”.
Ao invés, o Oriente, desde há muito utilizando um pensamento mais especulativo,
voltado para a contemplação e caracterizando-se por uma vivência mística,
desenvolveu uma teologia mais espiritual e pneumática (do Espírito Santo).

TERTULIANO
(2ª metade século II – 1ª metade séc. III)

O Padre que passamos agora a abordar – Tertuliano – que viveu na segunda


metade do século II e primeira metade do século III, era do Norte da África, do
território da atual Tunísia, nesse tempo província colonizada pelos Romanos. Nessa
altura veirifica-se já o regresso ao uso do latim nas obras literárias, em vez do grego;
um exemplo ilustrativo disso é precisamente o caso de Tertuliano, que sabemos ter
escrito as suas primeiras obras em grego e as restantes em latim.
Nascido em Cartago, capital dessa antiga província romana, Tertuliano é filho
de um oficial subalterno e o seu caráter é temperado entre a disciplina e alguma
rebeldia. Recebeu uma sólida formação literária e jurídica. Permaneceu algum
tempo em Roma e terá exercido a advocacia.
Não sendo considerado um erudito, os seus conhecimentos são vastos e a
linguagem prolixa. A sua inteligência é viva e voltada para o sentido prático, do
mundo real e não para a vida contemplativa. É impetuoso e ardente e lamenta-se de
ele próprio nunca ter aprendido a nobre virtude da paciência. Mas nada tem de
primitivo: se o seu caráter é ardente, o seu estilo é refinado.
Ignoram-se as circunstâncias em que Tertuliano foi recebido no cristianismo,
como, aliás, se ignora quase todo o decorrer da sua vida. A admiração pelo
testemunho e o exemplo dos Mártires e a atração da mensagem cristã dum Deus
único, criador e regulador do mundo que, pelo Seu Cristo, aniquilou o império dos
demônios, chamando todos os homens a uma decisão capital – escolher Deus, ou
não – terão tido ação determinante na conversão de Tertuliano. (É interessante
constatar aqui dois aspectos influentes, já referenciados: o sentido prático da vida -
no testemunho pelo martírio – e a sua concepção jurídica – o Deus regulador, que
aniquilou o império, etc.).
Os conhecimentos que Tertuliano granjeou da Sagrada Escritura eram de tal
modo amplos, que dir-se-ia ele quase conhecer de cor o seu texto e conteúdo;
acrescenta-lhe ainda o seu comentário, entrevendo a Palavra de Deus não somente
nas palavras do Salvador, com também nas dos Apóstolos e dos Profetas. Ele sabe
e repete-o constantemente, que das Escrituras perpassa algo incomparavelmente
superior ao poder do espírito humano e a toda a sabedoria do mundo. E torna-se no
mais penetrante dos exegetas da Igreja antiga, inultrapassável na sua precisão e
perspicácia de pormenor.
Sendo um membro considerado na comunidade cristã de Cartago,
desfrutando de uma relação familiar equilibrada e de uma situação independente e
segura, se bem que não completamente desafogada do ponto de vista econômico,
pode colocar-se à disposição da comunidade, não somente por intermédio dos seus
escritos, como pela instrução direta de catecúmenos e neófitos, sendo possível ter
ocasionalmente pregado.
Mas ele distingue-se, sobretudo pelos seus escritos, numa linguagem muito
rica, servindo-se de todo o gênero de combinações, jogos de palavras, rimas, etc.; o
conteúdo, servindo-se de muitas sentenças e aforismos, trata de toda a espécie de
temas. A apresentação varia também desde as simples folhas de divulgação, bem
concebidas, até aos tratados teológicos de grande envergadura. As suas obras,
sempre bem compostas, não perdem nunca de vista os seus objetivos, atraindo o
leitor à importância e significado dos assuntos propostos, prevenindo as suas

177
objeções, não lhe deixando tempo de respirar e conseguindo algo difícil entre os
teólogos: não ser nunca enfadonho nem monótono.
Outro aspecto sobressai das suas obras: elas são polêmicas, agressivamente
voltadas contra os inimigos e perseguidores da Igreja, os mestres do erro e
sedutores das almas. Os seus argumentos encadeiam-se com força demolidora,
numa impressionante progressão, não dando hipóteses de réplica. Por vezes,
parece conceder ao adversário já batido uma expectativa fingindo aceitar, como que
num inventário, as teses já demonstradas falsas, para depois as demolir ainda mais
completamente três ou quatro vezes mais. Finalmente, entrega o adversário ao
ridículo diante de todos, enquanto a Verdade sai incólume e vitoriosa, “como a fênix
renascendo das cinzas”.
Os primeiros escritos que se conservam de Tertuliano pertencem já ao
período em que ele utiliza o latim e versam sobre apologia. Após um estudo
aprofundado das apologias até então conhecidas a da análise das razões da sua
ineficácia, ele escreveu primeiro uma obra em dois volumes “Ad nationes” (Aos
Pagãos), que deixou inacabada, seguindo-se o grande “Apologeticum”, que ele
próprio reviu e reelaborou algumas vezes. Traduzido imediatamente para o grego
(desiderato que poucas obras latinas mereceram, e sempre com atraso) foi uma
obra–prima inigualada nos primeiros tempos da apologética cristã.
Tertuliano afirma nomeadamente, sobre a Verdade, que “não é pelas súplicas
que ela procurará mudar a sua sorte. Ela sabe que nada tem de seu entre os que a
hostilizam e que somente no Céu tem a sua origem, a sua pátria, esperança, honra
e dignidade. Por agora, ela só pede uma coisa: que a queiram conhecer antes de a
condenarem” (Apologeticum I, 2 s). Como se fora um processo jurídico, Tertuliano
mostra a loucura da perseguição aos cristãos, que são os cidadãos mais dignos de
confiança de todo o Império. Todavia, depois disto, o autor abstém-se de fazer um
apelo à conversão ao cristianismo, deixando o leitor tirar as suas próprias
conclusões, ao se inteirar da doutrina, moral e espírito dos cristãos.
Ouçamos ainda a força da sua argumentação: “Pois bem! Vós, as
Excelências do Governo, certificai-vos do amor que o povo vos tem sacrificando-lhe
cristãos! Torturai, maritirizai, condenai, suprimi-nos; a vossa iniqüidade é a maior
prova da nossa inocência. Por esta razão Deus suporta que nós suportemos tudo
isto... E todavia: os maiores refinamentos da vossa crueldade nenhum proveito vos
trazem. Não conseguireis mais do que propagandear a nossa solidariedade. Nós
crescemos em número e tanto mais quanto nos fazeis perecer: o sangue dos
mártires é semente de cristãos. O nosso único motivo de gratidão é que concluís
rapidamente o nosso processo. “Na luta entre Deus e os homens, dois tribunais
estão frente a frente, enquanto nos condenais, recebemos então de Deus a
absolvição” (id.50,12 s.).
O argumento decisivo não é, pois, de ordem jurídica, mas teológica: é a Deus
que cabe a última palavra. Quanto ao politeísmo, ele assenta no nada, enquanto
existe um Deus único, que Se revelou. O paganismo reverencia a mentira e adora o
homem e as suas práticas vãs; por detrás dele estão os demônios, cegando-o e
seduzindo-o, como inimigos natos da Verdade.
Nova concepção do mundo sobressai, insuspeitada antes da vinda do
cristianismo. A obediência prática solicitada pela fé obriga a um compromisso mútuo
entre Deus e o Homem. Noutro plano, põe a descoberta a falsidade do caráter
sagrado do Imperador e do aparelho de Estado, carregado de mentira e hipocrisia.
Apesar de inseridos na sociedade em todos os seus empreendimentos, os
cristãos são alertados por Tertuliano contra todo o compromisso com o modo de
vida pagão, onde agem os demônios. Para ele, o paganismo não é somente uma
insanidade, nem um erro que se possa esclarecer e corrigir com explicações, mas

178
sim um “mundo” demoníaco, que é necessário reconhecer como tal, repelir e
transformar “dos pés à cabeça”.
Precavê, igualmente, os cristãos contra a filosofia. Para ele, os filósofos são
sofistas em busca, não da verdade, mas da sua fama e sucesso pessoais. Afirma
que eles sempre misturaram à verdade as suas falsas doutrinas e os seus erros e
seria como que um retrocesso, não isento de perigo, pretender aprender a Verdade
a partir das hipóteses filosóficas, em vez de procurá-la na Igreja, onde é pura e
plena.
Quanto às aproximações filosóficas à doutrina cristã, nomeadamente do
platonismo, Tertuliano explica-se de acordo com uma teoria antiga, de origem
judaica, segundo a qual ele se teria inspirado no Antigo Testamento (tese que
atualmente não pode ser confirmada nem desmentida); noutras circunstâncias, esse
entendimento proviria do “senso comum”, pela contemplação da natureza e da
ordem natural das coisas.
Outro aspecto importante a reter é a diferença entre o conhecimento pela fé e
o conhecimento pela filosofia: enquanto o cristão se atém àquilo que Deus revelou,
tomando por “medida” a palavra de Deus, o filósofo imagina poder aprofundar, pelos
seus próprios meios, até as questões que ultrapassam o horizonte humano. Haverá,
pois, que limitar a insolência intelectual do homem, a fim de que, pela obediência
divina, ele possa, livre de deformações, encontrar-se com o seu Deus e Senhor.
Esta “curiosidade” impúdica, ultrapassando os limites do razoável, não é exclusiva
dos filósofos: é extensiva a todos os hereges em geral.
É precisamente contra estes últimos – os hereges – que é dedicada a maior
parte da obra conhecida de Tertuliano. Os seus primeiro adversários estão incluídos
naquela larga faixa dos mestres de escola adeptos da autodenominada alta
sapiência, que mais tarde designada pelo nome de “gnose”, aos quais Tertuliano
chama “patriarcas dos heréticos” (De Anima 3, I).
Não obstante os exageros polêmicos e a veemência da sua argumentação,
Tertuliano compreende e denuncia os pontos essenciais dos seus adversários,
afirmando que as teorias deles conduzem a um sincretismo (confusão e nivelamento
de planos) que tende a desvalorizar a natureza espiritual do Homem e a divinizar o
Ego, pretendendo esbater a sólida fronteira entre a Divindade e a criatura.
O herético não sabe o que é crer. Ele põe toda a ênfase no conhecer. Em vez
de se deixar ensinar por Deus, prefere seguir os mestres humanos. E depois,
arroga-se o direito de saber que é Deus e o que faz, o que é digno e o que não é
digno de Deus.... E Tertuliano remata, com ironia, afirmando que talvez Nosso
Senhor Jesus Cristo tivesse feito um erro “escolhendo confiar a simples pescadores
– e não a sofistas – a missão de pregar” (De Anima 3,3)!...
Não crendo em Deus, o gnóstico, herético, não compreende o fato de que o
Filho de Deus Se tenha feito Homem. Efetivamente, o espiritualismo gnóstico nega a
Encarnação, que lhe parece supérflua e indigna de Deus. Ele não pode aceitar
senão uma entrada aparente de Jesus na carne (heresia conhecida pelo nome de
docetismo). Para o gnóstico, a figura humilhada, desconsiderada do Salvador, na
Sua Paixão, é objeto de escândalo. Ele não compreende que a glória de Deus é
diferente da glória humana e que “nada é mais digno de Deus que a salvação dos
homens” (Adversus Marcionem II, 27, I). A Encarnação de Cristo e a Sua Morte na
Cruz – pedras de tropeço para os docetas – são o verdadeiro segredo da nossa
Salvação. Tal como Tertuliano afirma na sua obra “Scorpiace” (Um antídoto contra o
escorpião), “todas as tentativas tendentes a desvalorizar o testemunho do sangue,
conduzindo a uma concepção etérea de Deus, cairão, com o tempo, num vago
sincretismo sem contornos nem fronteiras definidos, estranho à carne e à história”.
A obra principal de Tertuliano, nesta temática polemista, em 5 volumes,
“Contra Marcião”, destina-se àquele que ele considera ser o seu mais perigoso

179
adversário. Marcião, ao contrário dos outros heresiarcas, fundara uma comunidade
consistente, com as suas próprias igrejas e já disseminada por toda a parte.
Aspirando a ser um fiel discípulo de Jesus, ele rejeitava, todavia, a relação entre a
mensagem cristã e a revelação judaica no Antigo Testamento. Por detrás desta
encontrar-se-ia, segundo ele, outro Deus, severo e hostil, o Deus “moral” e “justo”
deste mundo, em função do qual o Evangelho nada poderia ter em comum.
Baseando-se nesta idéias, Marcião compôs a sua própria “Escritura”, que continha
somente passagens truncadas de São Lucas e das Epístolas Paulinas.
Contra ele, Tertuliano demonstra, com uma clareza teológica inegável, quanto
essas teses são insustentáveis. Assim – bem ao seu estilo – propõe-se refutar o
heresiarca, utilizando o próprio texto falsificado por Marcião. Estabelece
inequivocamente a sua fé num Deus único, demonstrando que a Justiça é
inseparável da Bondade divina e que se não pode provocar uma dualidade entre a
transcendência e independência do Criador, e a Sua imanência e propensão
misericordiosa para com a humanidade, inseparáveis ao interior da concepção cristã
de Deus.
Em suma, os gnósticos não negam a transcendência e a realidade do espírito
divino, mas a existência e o significado do mundo terrestre e material. Não têm
dúvida sobre a necessidade da salvação, mas sobre a origem divina da criação;
logo, não é o lado divino do Salvador que rejeitam, mas a Sua humanidade, a Sua
natureza corporal, a Sua carne.
Conhecemos já alguns traços dominantes de Tertuliano, no seu
posicionamento enquanto cristão: materialista – voltado para a concretização prática
do ideal cristão – e juridista – escrupuloso defensor da lei, do mandamento de Deus
e da obediência incondicional. Devemos salientar ainda a sua austeridade e o seu
rigorismo exacerbado a propósito de questões práticas da disciplina da comunidade
e da moral quotidiana. Assim, ele critica acerbamente não só qualquer eventualidade
de contato dum cristão com a menor representação pagã, como a ostentação de
toda a espécie de luxo, advogando, por exemplo, o uso de vestes discretas.
A este propósito, devemos referir uma obra que ele dedicou aos apreciadores
de teatro e dos espetáculos públicos, intitulados precisamente “De Spectaculis”,
onde, depois de satirizar todos os espetáculos mundanos, descreve então o único
“espetáculo” digno da nossa atenção: o do Julgamento Final! O tom irônico e satírico
com que pinta o desfile dos condenados e a envergadura da sua exposição, constitui
um documento único e que só da sua pena poderia sair!
Muito diferente é a sua espiritualidade da dum São Gregório de Nissa, que
defende inequivocamente a prática da oração pelos condenados e pelos próprios
demônios, a fim de lhes minorar, no Inferno, o afastamento de Deus!
A austeridade e excesso de zelo de Tertuliano conduziram-no a uma
deficiente vivência com a Hierarquia da Igreja e a distorcer o seu posicionamento
eclesiológico – não obstante ele próprio mais tarde ter sido sagrado bispo – na parte
final da sua vida e fazer recair sobre ele a amarga acusação de heresia.
Entretanto, surgiu no Norte da África, no início do século III, um movimento de
“profetas” que despontara na Frígia (Àsia Menor) já na segunda metade do séc. II.
Os seus profetas – o bispo Montano e as mulheres que o acompanhavam –
apregoavam uma nova efusão do Espírito, o “Consolador” prometido no Evangelho
de São João. Assemelhavam-se, pela sua exuberância de manifestações
“carismáticas” aos Pentecostais dos nossos dias, mas distinguiam-se pela prática da
austeridade, da penitência, da conversão e por uma propensão ao martírio.
Anunciavam, também, a próxima vinda do Reino de Deus.
Tertuliano aderiu rapidamente a este movimento, tornando-se no seu mais
célebre e ardente militante. Vários fatores concorreram para isso: a sua propensão
para os fenômenos prodigiosos, como as visões e os êxtases; a sua necessidade de

180
ação; as suas práticas austeras; e a sua crença de que a vivência dos prodígios do
montanismo era uma reedição do autêntico espírito primitivo do cristianismo.
Não possuindo ao interior de si a coesão necessária para se estabelecer em
grande escala, esta seita constitui uma pequena “igreja” separada. Quando
Tertuliano aderiu a este movimento, este só havia ainda sido denunciado pelos
bispos da Ásia Menor. Algum tempo depois, os bispos ocidentais, como os do Norte
da África e o de Roma, seguiram-lhes o exemplo. Tertuliano – que, entretanto, foi
sagrado Bispo – não se sentiu atingido por essa rejeição da Hierarquia e, tomando
por base a sua nova comunidade, continuou a dirigir as suas obras contra os seus
antigos adversários. Aliás, se alguma vez o montanismo adquiriu foros duma
estrutura religiosa com a sua própria teologia, deve-o exclusivamente a Tertuliano.
A este período da vida deste Padre da Igreja africano pertencem os seus
escritos contra Praxeas, um “monarquiano” que, para contestar os gnósticos, havia
levado tão longe a afirmação da unidade divina, que contestava a distinção entre
Deus Pai e Deus Filho. Tertuliano, depois de refutar categoricamente a interpretação
das passagens do Evangelho de São João de ressonância “monarquiana”, trouxe
elucidações sistemáticas à doutrina trinitária, nesse tempo ainda em elaboração.
Quanto ao posicionamento de Tertuliano ao interior da sua adesão ao
montanismo, ele afirma-se convicto de que o Paráclito nada muda em relação à
antiga doutrina da Igreja, antes a confirma a legitima. Todavia, esta “nova
Revelação” não é isenta de conseqüências, exigindo dos seus adeptos a perfeita
santidade e o cumprimento de todos os mandamentos. A partir daí, Tertuliano
esboça um novo esquema da História da Salvação, não em duas, mas em três
etapas: as duas primeiras o Antigo e Novo Testamento e a terceira a “nova
Revelação”, que viria “exaltar” a ordem antiga e conduzi-la a seu termo. Esta
perspectiva é típica duma concepção de vida em que a “iluminação” é encarada
como essencial e em que os seus adeptos se não contentam unicamente pela
santificação por Cristo, como era o caso de Tertuliano.
Posteriormente, Tertuliano tornou-se ainda mais radical, considerando, por
exemplo, o segundo casamento de viúvos como uma depravação e a fuga ao
martírio como apostasia. As suas críticas estenderam-se à Hierarquia,
nomeadamente em relação à aplicação do Sacramento da Penitência (Confissão) –
as quais teriam a sua quota parte de razão. Via relaxamento de costumes e
corrupção entre os bispos (incluindo o papa) e os padres, fazendo-os perder a
firmeza. Contra isso defendeu a pureza da Igreja, mas desligada deste mundo, da
sua queda e corrupção. Todavia, se é certo que a Santa Igreja não pode ser atingida
pela impureza do mundo, não é menos verdade que Ela está neste mundo.
Não ignorando a Misericórdia de Deus, Tertuliano desequilibra a balança
colocando o peso na Justiça e na Lei. Assim, ele afirma, por exemplo, que “o estado
de graça repousa inteiramente na firmeza e na disciplina” (De Paenitencia 9,8).
Deste modo, para ele, a vida do cristão dependerá mais da obediência aos
mandamentos de Deus e à disciplina, do que da misericórdia e perdão do Senhor. A
lógica de Tertuliano a este respeito, que lhe parece irresistível, é a seguinte: “Lá
onde começa o perdão, cessa também o temor” (De Pudicitia 16,14); e “lá onde
falta o temor, não intervém a correção” (De Paenitentia 2,2). Ela peca, porém, por
ser uma inversão da atitude de Jesus Cristo para com os pecadores; e lança a
suspeição, se não no poder em si mesmo do perdão divino, pelo menos nos efeitos
que ele terá no pecador arrependido.
Assim, para ele, a virtude cristã deverá ser conquistada pelo temor de Deus, a
repressão dura, a correção austera, dando a entender que desconfia que o perdão
de Deus possa provocar um abrandamento e relaxamento de costumes.
Esta é uma imagem muito triste e desfigurada da relação do cristão autêntico
com Deus. Se nós admitimos que o temor de Deus seja a primeira etapa do

181
relacionamento com o Senhor – e já o Salmista inspirado diz que “o temor de Deus é
o princípio da sabedoria” (Sl. CXI,10) – esse temor não deixa de ser uma etapa, na
qual não nos podemos fixar definitivamente, senão não passaríamos de escravos ou
de servos de Deus. Mas o Senhor chama-nos a sermos Seus filhos. E qual é a
relação natural entre pais e filhos? É ainda o temor? Não, é o amor. É o amor que
Deus nos dá. É o amor que nos faz galgar etapas, vencer barreiras e permite chegar
à presença do Senhor. É o amor divino que concede o perdão; e é por amor que o
pecador se arrepende e vai ao encontro do Senhor, pedindo-Lhe perdão. Isto é
definitivamente confirmado pelas próprias palavras do Senhor, quando diz: “Porque
muito amaste, muito te será perdoado” (Lc VII, 47).
Infelizmente, esta era uma concepção e uma vivência do cristianismo que
Tertuliano não tinha.
Se desconhecemos até aqui as incidências principais da vida de Tertuliano,
desconhecemos igualmente a evolução dos seus últimos anos de vida, tendo, ao
que consta, atingido idade avançada.
Os seus escritos sobreviveram, na sua maior parte, à Idade Média e
chegaram até aos nossos dias. Não obstante os seus exageros e os seus erros de
ter tocado a fímbria da heresia, ele foi, inquestionavelmente, o melhor, mais hábil,
infatigável e leal defensor da Igreja, no Ocidente, contra aos Seus inimigos.
Pela sua força, sobriedade, orientação prática da sua teologia e, mais ainda,
pelo seu espírito realista, juridista, vendo na Igreja uma organização religioso-sócio-
política e ainda pelo seu acento na vontade, na lei e na disciplina, Tertuliano aparece
autenticamente como o primeiro Padre da Igreja Latina. Ele distingue-se, também,
pela autoridade que insistentemente reconhece à Sagrada Escritura, mas a sua
teologia não privilegia mais o Novo que o Antigo Testamento, oscilando entre o
“legalismo” (com conotações de tipo judaízante) e o “iluminismo”.

SÃO CIPRIANO, BISPO DE CARTAGO (c.2007-257)

À grande personalidade eclesiástica que foi Tertuliano, seguiu-se na África


uma outra não menos importante – São Cipriano, Bispo de Cartago – o que
ocasionou esta Igreja africana desempenhar, nos primeiros séculos do cristianismo,
um papel de 1º plano no Ocidente. Todo este florescimento viria a fenecer e a ser
esmagado mais tarde com o avanço do Islã para o Ocidente, a partir do séc. VII,
levando ao quase desaparecimento da Igreja em terras norte-africanas – exceto a
Oriente, no Egito.
S. Cipriano é Bispo de Cartago, autêntica metrópole e principal cidade
episcopal do Noroeste africano. Sobre a vida deste eminente Antístete, antes da sua
sagração episcopal, pouco se sabe. Mas é certo que S. Cipriano é oriundo da alta
sociedade africana, onde cresceu e recebeu uma sólida formação, tendo mantido
relações amistosas com as autoridades.
Sobre a ligação a estabelecer entre a teologia de Tertuliano e a de S.
Cipriano, devemos referir que este último não cita nunca o primeiro, devido à
conotação de apostasia que impendeu sobre ele. Todavia, se do ponto de vista
formal S. Cipriano foi forçado a agir assim, intimamente a aproximação espiritual
entre ambos era tal que, para além de perpassar pelos escritos do Bispo de Cartago,
o secretário deste contou mais tarde que não se passava um dia sem que São
Cipriano não lhe pedisse a leitura duma obra do seu caro Tertuliano, a quem
denominava “o mestre”. Quanto às personalidades de ambos, elas são bem
distintas.
Entretanto, no espaço de uma ou duas gerações, a situação eclesial evoluiu:
a Igreja encontra-se francamente desenvolvida em todo o Norte da África e
obrigando a um trabalho diferente de estrutura e orientação, mas igualmente

182
categórico e decidido: o de defesa da Igreja já instalada. Com uma formação que
apontaria para a dum alto funcionário de administração, é duma forma natural que S.
Cipriano transpõe o seu sentido de organização para a sua atividade eclesiástica,
tendo sido, por assim dizer, 1º. Bispo “de Cúria”, com todo um escalonamento de
departamentos, serviços e funcionários.
Conhecendo, também, os grandes autores pagãos, S. Cipriano abstém-se,
nas suas obras, de citá-los porque, como ele diz, “há uma grande diferença entre os
cristãos e os filósofos” (Epistolae 16,55), ou seja, para ele iria baixar de nível
espiritual se entrasse em controvérsia direta com este último – ao contrário do que
Tertuliano fizera antes, com tanta paixão. O célebre Bispo de Cartago revela-se,
como já antes dele Tertuliano, exímio conhecedor e comentador da S. Escritura. Ele
não tem pejo em compor as conclusões de um tratado com citações escriturísticas.
Para ele, basta-lhe que a palavra de Deus seja constantemente ouvida, apreendida
e sabida. O seu objetivo é torná-la proveitosa a quem o ouve ou lê.
Como novo membro da comunidade, S. Cipriano compõe a sua 1ª obra, “Ad
Donatum”, dirigida a um amigo de quem desconhecemos outras informações. Nela
explana as razões que conduziram à sua conversão e como toda a imoralidade
existente no mundo, com as guerras, os espetáculos chocantes, as obscenidades
públicas e privadas demonstram quanto o mundo está entregue ao mal. O único
porto de paz é no Além, onde se poderá chegar tão-somente por uma via: aquela
que Deus revelou e que é a virtude pura e simples dos cristãos. Pelo batismo, o
cristão escapa aos horrores pagãos e, armado pela graça divina, desde que a queira
conservar e fazer frutificar, está pronto a enfrentar o Julgamento Final. Podemos
considerar esta obra ainda dentro do estilo apologético, e versando questões mais
do ponto de vista moral que teológico.
Outra obra, com maior importância teológica, são os chamados “Testemunhos
a Quirino” (Testimonia libri ad Quirinum), da qual redigiu primeiro dois livros: trata-se
de um florilégio – coleção de textos escriturísticos (cuja origem remonta já ao séc. II),
textos esses agrupados por determinados temas, tendo em vista uma aplicação
prática, acompanhados de breves enunciados de teses.
O 1º livro aborda as controvérsias sempre acesas com os judeus; o 2º
engloba os mais importantes textos cristológicos. Mais tarde o autor acrescentará
um 3º versando sobre a moral prática da Igreja. E finalmente, já depois do início das
perseguições, um 4º sobre a futilidade dos sacrifícios aos ídolos, a obrigação de
confessar a fé e as promessas feitas aos mártires. Pode dizer-se que o incremento
dado por S. Cipriano a este tipo de coleção de textos fez com que ele se
popularizasse e desenvolvesse em grande extensão.
É muito provável que S. Cipriano fosse já presbítero ou bispo quando
escreveu estas obras. Sabe-se que ele ascendeu ao episcopado pouco tempo
depois do batismo. Não se conhecem as circunstâncias em que ele ascendeu a esta
elevada função, mas sabe-se que ela provocou descontentamento entre alguns
clérigos mais velhos.
O Bispo de Cartago não teve muito tempo para se afirmar. Não tinha ainda
um ano de episcopado, quando veio a sofrer uma prova de fogo: irrompeu uma
grande perseguição aos cristãos, organizada segundo um vasto plano, tendente a
desestabilizar e a minar completamente a Igreja. Desencadeada em 249 pelo novo
Imperador, Décio, ela limitava-se, na aparência a exigir de cada súdito a participação
numa oração e num sacrifício pela prosperidade do Imperador e do Império. Quem
se tentasse esquivar ao seu cumprimento incorreria em sanções: degradação,
confiscação e tortura. Aos que tomassem parte na cerimônia era dados certificados.
É evidente que estas medidas visavam especialmente os cristãos.
O plano de Décio assentava na idéia de que os cristãos, depois de
apostasiarem, estariam irremediavelmente perdidos para a Igreja. Não contou ele

183
com a Providência – que lhe tirou a vida ao fim dum ano – nem com a capacidade
da Igreja de enfrentar e encontrar o seu equilíbrio nessa situação.
Foi nestas crises que o novo bispo de Cartago alcançou a sua maturidade e
se definiu como grande homem de Igreja, capaz de conduzi-la perante todas as
misérias e contratempos e com Ela triunfar.
Com o primeiro surto da perseguição, os estragos foram importantes: “Grande
parte dos irmãos traíram a fé; não foi o ataque selvagem da perseguição que os fez
cair, mas foram eles próprios que, espontaneamente, se lançaram por terra” – como
nos narra S. Cipriano (De Lapsis, 7). Outros deixaram-se imediatamente prender e
outros ainda procuraram refúgio em localidades mais afastadas. Os padres que
ficaram em liberdade não poupavam esforços para serenar os fiéis atemorizados,
para os tranqüilizarem e protegerem na medida do possível.
Quanto a S. Cipriano, encontrava-se no campo, em local seguro, junto de
alguns fiéis companheiros. Sendo ele, sem dúvida, o alvo mais ameaçado entre
todos, escolheu retirar-se para fora da sua cidade episcopal, a fim de, à distância,
poder tomar as rédeas do comando.
Esta decisão de S. Cipriano teve, para ele, conseqüências pesadas, trazendo-
lhe dificuldades até ao fim da sua vida. Elas vieram em 1º lugar dos próprios cristãos
discípulos de Tertuliano e dos montanistas, que o acusavam de ter abandonado o
seu rebanho, em tempo de provação, em vez de dar, pela sua morte, exemplo de
coragem em confessar a fé e prova de fidelidade, como o haviam feito os bispos de
Roma, Antioquia, Jerusalém e Cesaréia, martirizados logo nos primeiros dias de
perseguição. Não foram estes os únicos a duvidar das intenções do Bispo de
Cartago. Os diáconos remanescentes da diocese de Roma puseram também as
suas dúvidas por carta ao Bispo de Cartago sobre a sua atitude. Este responde-lhes
de forma inequívoca, felicitando os Romanos “com alegria” pela brilhante e gloriosa
“consumação” do seu bispo (Epistolae 9,2). Somente mais tarde, enviar-lhes-á outra
carta (Epistolae 20,1), explicando por que escolheu o afastamento “ausente de
corpo, não em espírito” não em atenção à sua própria vida, mas no interesse da
defesa da sua jovem comunidade.
A atividade de S. Cipriano não se limita às piedosas exortações e aos
copiosos louvores àqueles que confessaram a fé, mas aborda também questões
práticas, como a distribuição de subsídios aos pobres da comunidade, do
quantitativo de que pode ainda dispor; a organização da assistência aos irmãos
presos, através de visitas regulares dos diáconos, dar alimento, roupa e trabalho
àqueles que saem da prisão; colocar em segurança os corpos dos mártires,
recolhendo todas as informações úteis para serem comemorados mais tarde e um
sem-número de atividades semelhantes.
Se em função dos membros da Igreja o entendimento era perfeito, as
dificuldades principiaram quando começaram a aparecer aqueles que, coagidos
pelas medidas de terror, haviam obedecido às ordens imperiais e apostasiado. O
uso da Igreja nestes casos era severo, mas as circunstâncias desse tempo também
não eram as mesmas de outras apostasias de outrora, por superficialidade e
fraqueza, comparadas com as atuais repressões. Quanto aos prevaricadores,
pediam ardentemente o perdão e a sua readmissão na comunidade.
Papel preponderante nesta situação era protagonizado pelos confessores da
fé – que haviam sido torturados, mas sobreviveram – junto dos quais os penitentes
buscavam assistência devido ao maravilhoso testemunho que aqueles haviam dado,
os quais lhes deram uma audiência favorável. Procuravam, destarte, dos
confessores, uma absolvição verbal ou escrita, ou declarações coletivas para
pecadores individuais. A noção de hierarquia das coisas estava a perder-se e a
situação ameaçava tornar-se insustentável. Além disso, a falta, quando

184
generalizada, tende a esbater o sentido de reprovação, dificultando o próprio
arrependimento. (enfraquecimento).
S. Cipriano estava consciente deste estado de coisas. Ele sabia que era
necessária certa compreensão, mas na situação atual, não poderia tomar uma
resolução definitiva. Assim, remeteu para o fim da perseguição a decisão final
quanto à reconciliação dos apóstatas (denominados “lapsos”) no seio da Igreja, de
modo a que não se perdessem de vista, fosse tratados com penitentes e não fossem
reprimidos. O mesmo procedimento foi adotado em Roma, com o pôde constatar
pela correspondência trocada com o clero romano. Como concessão extrema foi
permitida a reintegração na Igreja aos penitentes que estivessem à morte. Quanto
aos confessores da fé exortou-os a usarem de maior comedimento, interpretando as
decisões deles em função dos penitentes, não como autorizações, mas com
recomendações, em vista duma futura permissão, a qual é do foro exclusivo da
Autoridade eclesiástica competente, ou seja, o Bispo.
Se a dificuldade era grande em fazer prevalecer as suas diretrizes à distância,
ela aumentou quando parte do clero lhe recusou obediência fazendo causa comum
com os confessores, obrigando-o a tomar medidas contra esses eclesiásticos, a
fazer novas ordenações e a exortar a comunidade a recusar obediência aos
pastores usurpadores que viviam nela. Em oposição a esse grupo, que se arrogava
o direito de falar em Nome da Igreja, S. Cipriano afirma categoricamente que
“somente os Bispos e unicamente eles são chamados, segundo as palavras do
Senhor, a agir em Nome da Igreja. Os Bispos, com o seu clero e cristãos fiéis
constituem a Igreja”. Declara ainda, o seu “espanto pela impudicícia de gente que
deveria guardar o silêncio, numa atitude humilde e contrita”. (Epistolae 26,1).
A ruptura, porém, estava feita, tendo os cismáticos chegado a eleger um anti-
bispo. Mas o rumo dos acontecimentos estava a alterar-se. S. Cipriano reuniu e
presidiu a um Sínodo de Bispos na Primavera de 251, o qual não só deu
pessoalmente razão ao Bispo de Cartago, com fixou os princípios destinados a
regular a questão dos que haviam apostasiado e agora se penitenciavam. Contra a
oposição dos mais radicais, quer da atitude de perdão, quer da de repressão, foi
adotada uma atitude equilibrada, escalonando o grau de penitência pela gravidade
da falta. Finalmente, o regresso de S. Cipriano a Cartago, depois de 15 longos
meses de ausência, veio restabelecer a estabilidade da comunidade, ao mesmo
tempo em que era consolidada a sua autoridade pessoal.
Destes tempos bem difíceis e conturbados sobressaem duas importantes
obras de S. Cipriano: “A propósito daqueles que caem” (De Lapsis) e, uma das suas
mais conhecidas, “Da Unidade da Igreja Católica” (De Catholicae Ecclesiae Unitate),
esta última começada, sem dúvida, ainda no tempo da perseguição e a primeira
composta imediatamente após o seu regresso a Cartago.
Na primeira – De Lapsis – fala das atitudes dos cristãos, revelando os seus
atributos de Pastor e de Pai, “chorando com aqueles que choram” e dando o seu
tributo de louvor e de admiração pelos irmãos “que não vergaram”. A conduta,
porém, de outros, amargura-o: são aqueles que, tendo apostasiado, não querem
reconhecer plenamente a sua falta; são também os confessores que se arrogam o
direito de perdoar os pecados, poder esse unicamente transmitido aos Bispos; são
ainda, os padres rebeldes que, não estando em comunhão com o Bispo, não tem
jurisdição (poder para ministrar sacramentos). No fim, lança um apelo a que cada um
tome as suas responsabilidades espirituais, a fim de se submeter e obedecer. Estes
seus esforços foram, em grande medida, coroados de êxito.
Mais importante ainda para a História da Igreja é a obra “Da Unidade da Igreja
Católica”, que ficou inacabada, onde conduz até ao fundo a controvérsia com os
cismáticos. Se no seio da Igreja são necessárias algumas precauções, d’Ela para o
exterior estas não são necessárias; a certeza da própria salvação e da fé cristã em

185
si mesma, pela qual ele sofre, vive e combate. “A Igreja é a Esposa de Cristo, a Mãe
Igreja para todos os fiéis... Ninguém pode ter a Deus por Pai se não tem a Igreja por
Mãe” (Da Unid. 6). Fora da Igreja não há salvação. E não há senão uma só Igreja,
fundada por Cristo e entregue aos Apóstolos para a conduzirem. Ela conserva a sua
unidade, mesmo estando disseminada por todo o Universo, “tal como o sol tem
múltiplos raios, mas a luz é única... como uma fonte dá origem a vários ribeiros”
(ibid. 5).
Estas imagens de que Tertuliano se servia para explicar o mistério dum só
Deus em três Pessoas, são agora transpostas para o plano eclesiológico,
manifestando a unidade da Igreja na sua diversidade. Por outro lado, demonstra a
impossibilidade de ser cismática: poder-se-á separar um raio do sol, um ramo da
árvore, ou um ribeiro da fonte, sem que um desapareça ou os outros sequem? Mais
ainda: esta unidade da Igreja repousa no episcopado. Não há Igreja sem Bispo, nem
Bispo sem Igreja (Epistolae 66,8). O Diabo é o autor dos cismas e os cismáticos
estão em seu poder.
O fato de que tudo repousa na unidade do episcopado não é uma pura teoria.
S. Cipriano dirige-se aos seus irmãos no episcopado, reunindo-os em diversos
Sínodos, enviando-lhes mensageiros e cartas, suscitando tomadas de posição
comuns e estimulando a confiança mútua. Deste modo, a unidade da Igreja Católica
torna-se uma realidade sensível, fazendo reinar a ordem em toda a Igreja no
Ocidente.
A atividade pastoral de S. Cipriano desdobra-se em múltiplas ações,
ensinando, pregando e escrevendo diversos pequenos tratados de edificação
espiritual. Nestes últimos perpassa um sentido racional, um moralismo prático, um
tom conciliatório, persuasivo, pedagógico, não hesitando em repetir as mesmas
idéias e as mesmas imagens, a fim de elas serem entendidas e vividas, visando,
finalmente, a formação espiritual. Com exemplos práticos duma vivência empenhada
das virtudes cristãs ele venera particularmente o esforço das virgens consagradas a
Deus na comunidade e o glorioso modelo oferecido pelos santos mártires. Entre as
virtudes que ele mais aprecia encontram-se o espírito pacífico, a humildade, a
modéstia, porque proporcionam a paz na comunidade. A vivência do amor cristão é
ferida gravemente pelo orgulho, o espírito de discórdia e a insubordinação dos
cismáticos. Deus “deixou ao homem o uso da sua liberdade e fê-lo mestre da sua
vontade; ao homem caberá servir-se dela para sua salvação ou para a sua perdição”
(Epistolae 59,7). Para isso, necessário é cumprir, em jejum e oração, “obras justas”
como a da esmola, que apagam as chamas dos pecados do cristão, como o batismo
havia apagado os crimes cometidos durante a nossa existência pagã.
Estas exortações não “caíram em saco roto”; a sua Igreja tornou-se um
modelo de cristianismo “prático”, em que a generosidade dos seus membros deu
largas provas. Vejamos um exemplo ilustrativo: a um pedido dos bispos da Numídia,
devastada pelas incursões inimigas, S. Cipriano prescreveu um peditório que rendeu
100 mil sestércios!
S. Cipriano compõe também, nesta época, escritos de cariz apologético,
contra os perseguidores da Igreja e dirigidos aos cristãos, dizendo nomeadamente
que nós não somos deste mundo e estamos cá como hóspedes e estrangeiros... O
nosso anseio é de empreendermos o caminho para a nossa pátria... onde
poderemos saudar os Patriarcas, nossos Pais (De Moralitate, 26). Encontramos aqui
uma ressonância político-escatológica, virada para o Reino de Deus, bem ao estilo
do grande Bispo de Cartago.
Durante estes anos a posição de S. Cipriano na Igreja estendeu-se bem além
dos limites africanos, sendo solicitado de toda a parte para dar opiniões e conselhos.
As suas repostas são dadas num tom fraternal, visando “consolidar o cimento da

186
concórdia” que une os bispos da Igreja Católica, apesar das diversidades locais e
fazê-los enfrentar os inimigos da Igreja, interiores e exteriores.
Novo acontecimento veio, porém, trazer a amargura aos últimos anos que a
S. Cipriano foram dados viver: se o relacionamento com o papa de Roma, Cornélio,
fora privilegiado, a verdade é que, à morte dele, as coisas mudaram muito com a
entronização do novo papa, Estêvão I.
A questão de fundo tinha a haver com o modo de recepção na Igreja de fiéis
batizados fora da verdadeira Igreja de Cristo. Para o Bispo de Cartago a questão era
clara e decorria da sua concepção geral de Igreja: toda a ação sacramental
realizada fora da única comunidade salvífica é em si mesma nula. E pergunta:
“Como poderia um apóstata, um herético, possesso pelo Demônio, transmitir os
dons do Espírito Santo que ele mesmo perdeu?” Preconiza, desta maneira, novo
batismo dos heréticos, à semelhança do que os seus antecessores (Bispo Agripino e
Tertuliano) haviam defendido. Em Roma aceitavam-se, em princípio, como válidos,
os sacramentos fora da Igreja reconhecida – e não só o batismo, como também as
ordenações conferidas pelos novacianos, etc.
Trata-se de uma questão de fundo, desde sempre suscitada na História da
Igreja, ultrapassando claramente a noção de acribia (posição de S. Cipriano) e a de
economia (posição do papa Estêvão). Hoje podemos dizer que, no fundo, a razão
estava do lado de Roma: o Batismo é único e não pode ser ministrado mais que uma
vez, desde que quem o tenha ministrado tenha válida sucessão apostólica e
situação canônica regular. Se alguma “enfermidade” existia do lado de quem o
conferiu, comunicando-a a quem o recebeu, a Igreja ao admiti-lo supri-la-á pelo
Sacramento do Crisma. Mas se não existir sucessão apostólica comprovada por
quem conferiu o Sacramento, então far-se-á novo Batismo, porque o 1º é
considerado inválido.
Se a razão estava do seu lado, o papa Estêvão utilizou argumentos
completamente desajustados para fazer prevalecer a sua posição. Enquanto S.
Cipriano presidiu a alguns Sínodos, que aprovaram as suas teses, o papa Estêvão
resolveu reivindicar a primazia que lhe seria devida pelo fato de “ser titular da
cátedra de S. Pedro”, relegando, assim, todos os outros Bispos para um plano
secundário, subordinado ao papa de Roma, a quem se veriam obrigados a
obedecer. Esta era uma pretensão, até aí, inaudita.
Várias facetas desta questão têm de ser clarificadas, do nosso ponto de vista,
enquanto Ortodoxos:
1º Quanto ao principal argumento aduzido de Cristo, quando diz: “Sobre esta
pedra edificarei a Minha Igreja”, Ele não se refere, literalmente, ao Apóstolo Pedro. E
o Senhor confirma essa confissão de Fé, declarando que “sobre essa pedra”, isto é,
n’Ele próprio, coloca o fundamento da Sua Igreja; a Fé de Pedro confessa a Cristo
como Deus e o fundamento da Fé é o próprio Cristo.
2º São Pedro era um apóstolo e não um bispo. Como já o afirmamos antes a
jurisdição do Apóstolo é universal e a do Bispo é local (a sua diocese). Destarte, é
tão descabido dizer que São Pedro é bispo de Roma, como foi bispo de Antioquia,
por exemplo. Eram os Apóstolos que, ao passarem nas comunidades, nelas
entronizavam os seus bispos. Por outro lado, se o sucessor de São Pedro fosse o
bispo de Roma, qual foi o sucessor de São Paulo, ou o de São João, ou o de São
Filipe, etc?
3º A tradição da estadia de S. Pedro em Roma é tardia e, do ponto de vista histórico
carece de comprovação documental.
Para S. Cipriano, como para toda a Igreja cristã antiga e para a Igreja
Ortodoxa nos nossos dias, se o Senhor conferira a S. Pedro o Poder Soberano em
Igreja (de ligar e desligar os pecados), transmitido pela Sucessão Apostólica, fizera-
o simbolicamente para sublinhar a necessária unidade e Unanimidade do apostolado

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e, posteriormente, do episcopado. Desta forma, “os outros Apóstolos não eram, por
esse fato, menos do que S. Pedro; eles possuíam a mesma plenitude de poder e a
mesma dignidade do que ele” (cf. Da Unidade da Igreja Católica, 4). Não havia,
assim, qualquer legitimidade em reclamar para o “sucessor” de S. Pedro uma
primazia de direito que ultrapassasse, o mínimo que fosse, uma proeminência
honorífica.
Podemos afirmar que, pelo seu posicionamento eclesiológico, Estevão foi, por
assim dizer, o 1º. papa de Roma, ao pretender reivindicar para si a primazia
universal.
Uma vez mais S. Cipriano presidiu a novo Concilio em Cartago que,
novamente, veio apoiar as teses de S. Cipriano relativas ao batismo dos heréticos. A
delegação enviada a Roma para dar a conhecer estas conclusões ao papa Estêvão
nem foi recebida nem lhe foi dado alojamento.
Chamadas a pronunciar-se sobre este diferendo, as Igrejas do Ocidente e as
do Oriente não manifestaram atitude uniforme quanto a essa questão da recepção
na Igreja dos heréticos; mas quanto à questão da primazia de Roma – até então
desconhecida no Oriente – a rejeição foi global.
Novos acontecimentos vindos do exterior puseram termo a esta contenda.
Nova perseguição imperial irrompeu. Estêvão nem foi martirizado, assim como o seu
sucessor, Sixto II, no ano seguinte. Quanto a S. Cipriano, também ele não ficou em
liberdade. Assim, a comunhão entre Roma e Cartago acabou por restabelecer-se
naturalmente.
Globalmente, S. Cipriano exerceu as suas funções episcopais somente
durante uma dezena de anos, recheados de lutas e dificuldades. Se nos primeiros
tempos não pode confiar numa assistência segura do seu clero, assumindo
voluntariamente uma situação de exílio voluntário, escolhendo a fuga, não por não
ter vocação para o martírio, mas porque a sua comunidade não estava ainda
suficientemente “madura” para poder subsistir sem o seu Pastor, a verdade é que
nos últimos anos usufruía a posição de guia espiritual incontestado da Igreja no
Noroeste africano, considerado como um “mestre” em todo o Ocidente, célebre e
respeitado no Oriente. Agora, só lhe faltava a glória do martírio, uma vez que a sua
comunidade estava já consolidada e “madura” para poder sobreviver.
Preso, foi conduzido a uma pequena localidade, não longe de Cartago e
algum tempo depois autorizado a regressar à sua cidade episcopal. Novo édito do
Imperador Valeriano fez recrudescer as perseguições, de que S. Cipriano foi
previamente informado e às quais poderia ter escapado. Mas, tomou as suas
medidas noutro sentido, informando não só o seu clero como os bispos vizinhos “a
fim de que, pelas suas exortações, eles pudessem fortalecer os fiéis e prepará-los a
lutar pelo espírito. Deste modo, cada um de nós terá mais alegria que temor em
confessar a fé, consagrada que estará no poder ilimitado da fé no Senhor” (Epistolae
80,2).
Noutra carta – Epistolae 81 – prescreveu aos seus clérigos que mantivessem
a calma e que “nenhum dos irmãos suscitasse a desordem ou se fosse entregar
voluntariamente aos pagãos”.
Dois altos funcionários e respectiva comitiva levaram-no, acompanhados por
uma multidão, que queria “morrer com ele”. No dia seguinte o interrogatório foi
formal e breve. A sentença entrava imediatamente em execução. Chegado ao local
do suplício, S. Cipriano deitou por terra o seu manto, sobre o qual se ajoelhou para
uma última oração. Num gesto nobre mandou entregar 25 moedas de ouro ao
carrasco pelo trabalho que ele tinha de executar. A multidão estendeu panos para
recolher o precioso sangue do mártir. E o corpo foi sepultado no próprio local da
execução. À noite, os cristãos foram buscá-lo com tochas e velas para o sepultarem
mais solene e dignamente, “escoltado pelas orações e os gritos de alegria de

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numerosos irmãos” – como nos narra a sua biografia escrita pelo seu arcediago
Pôncio.
S.Cipriano foi um dos Padres da Igreja de maior projeção no Ocidente, tendo
as suas principais obras vencido a barreira dos séculos, circulando em diferentes
recolhas e coleções. Uma antiga nomenclatura chega a citar os escritos do grande
Bispo de Cartago imediatamente após os livros da Sagrada Escritura. Mais ainda
foram os livros que circularam servindo-se abusivamente da autoridade do seu
nome.
No seu “legalismo” cheio de fé, S. Cipriano encarna a “disciplina” da Igreja. No
seu inabalável posicionamento hierárquico “colegial” é exemplo, ainda hoje, da
eclesiologia ortodoxa, em oposição à eclesiologia centralizadora romana. No seu
devotamento à causa que abraçou, procurou desempenhar calorosa e seriamente as
funções a que foi chamado, cumprindo-as retamente e sem restrições. No ponto de
vista eclesiológico, as suas concepções – expressas nomeadamente pela obra “Da
Unidade da Igreja Católica” – são incomparáveis, influenciando toda uma
eclesiologia que, finalmente, acabou por vingar mais no Oriente que no Ocidente.

189
SAGRADA LITURGIA – 2º. ANO

Desenvolvimento do Rito da Sagrada Liturgia - Séculos III e IV

O século XIX é rico em descobertas arqueológicas, desde papiros até


inscrições em barro e em pedra (túmulos funerários, por exemplo). Alguns papiros e
inscrições feitas em barro, atribuídos aos séculos III e IV, embora não se lhes possa
com exatidão determinar a idade, comportam já orações e fórmulas da Liturgia
Eucarística. Cada uma destas inscrições faz com que nos lembremos das orações e
das fórmulas litúrgicas usadas nos nossos dias:
Nós anunciamos, Senhor, a Tua morte
E cantamos, ó Cristo, nosso Deus,
A Tua gloriosa Ressurreição.

Que podemos comparar com a Anamnese (1) da Sagrada Liturgia de São


Basílio, o Grande:
Celebrando, pois, Senhor, o memorial
dos Sofrimentos salvíficos de Cristo,
Teu Filho, da Sua Cruz vivificante,
da Sepultura durante três dias,
da Sua Ressurreição dos mortos...

Já no início do século III, numa inscrição de Pectorius de Autun, encontramos


a nossa compreensão do Sacramento Eucarístico, bem como numa outra do Bispo
Aubércius de Hierópolis, na Frígia, no tempo do Imperador Marco Aurélio.
O século III deixou-nos um documento importante, descrevendo o
desenvolvimento e encadeamento da Liturgia Eucarística. Este documento intitula-
se “A Tradição Apostólica” de Santo Hipólito de Roma.
Não se trata, ainda, do longo desenvolvimento que é de nós hoje conhecido,
mas, no “pouco” que nos narra Santo Hipólito, encontramos apelos, exclamações,
orações e respostas que usamos em nossos dias.
Diz Santo Hipólito, a propósito da Sagrada Liturgia, na “Tradição Apostólica”:
- “Após o que todos os celebrantes partilham entre si o Beijo da Paz e os
Diáconos apresentam a oblação, sobre a qual o Bispo, com todo o colégio dos
presbíteros, impõe as mãos. O Bispo diz – O Senhor esteja convosco – e todos
respondem – E com o teu espírito – Corações ao alto – Nós os elevamos ao Senhor
– É digno e justo.”
Depois segue-se uma oração cujos termos são muito semelhantes àqueles
que encontramos nas Liturgias de São João Crisóstomo e de São Basílio.
Seguem-se as três orações feitas pelo Bispo, bem como as palavras do
Diácono: “Estejamos atentos. Orai, vós que estais de pé, inclinai a cabeça diante do
Senhor”; e o Bispo diz: “Os Santos Dons aos Santos”; ao que o povo responde:
“Não há senão um só Pai, um só Filho Santo e um único Espírito Santo”.
As orações após a Sagrada Comunhão e a despedida dos fiéis são muito
semelhantes às de hoje.

190
Logo, ser-nos-á fácil constatar que, no princípio do século III, algumas
práticas litúrgicas, tais como a Concelebração, Epiclesis, Comunhão sob as duas
Espécies, estavam já em uso na Igreja Cristã.
“A Tradição Apostólica” de Santo Hipólito de Roma comporta ainda um
capítulo sobre as “Observâncias da Igreja”. Podemos aí encontrar, no que concerne
à Sagrada Eucaristia, uma prescrição assaz igual que continua em vigor nos nossos
dias e que aborda a questão intercomunhão: “Que todos tomem cuidado para que
nenhum infiel comungue a Sagrada Eucaristia”.
Existe ainda um outro documento do século III, conhecido sob o nome de
“Anáfora (2) dos Apóstolos”. A. Hamman diz que este documento deve de ser
originário de Edessa e que foi utilizado na Síria e ainda hoje os cristãos do Malabar
lhe fazem apelo. Também aqui encontramos as Ações de Graças, o Sanctus, a
narração da Instituição e uma Epiclesis muito idêntica à dos nossos dias.
Para nós, Cristãos Ortodoxos, é gratificante constatar que a Igreja Ortodoxa
permanece fiel à Igreja dos primeiros séculos e em estreita união, não somente na
Fé, mas também no rito litúrgico dos seus Egrégios Antepassados.
Vai ser no século IV que todo o encadeamento da Divina e Sagrada Liturgia
irá tomar a forma que nós hoje lhe conhecemos (aproximadamente). Vários
documentos cuevos (dessa época) nos transmitem, de uma maneira bastante
segura, como se desenrolava a Sagrada Liturgia.
Um primeiro documento, que se apelida de Eucológio (3) de Serapião, dá-nos
algumas noções litúrgicas bem precisas.
São Serapião, mártir (festa a 24/V-6/VI), era Bispo de Thmuis, no Baixo Egito.
Amigo de Santo Ambrósio e de Santo Atanásio, redigiu por volta do ano 350 uma
antologia que continha 30 orações, das quais 18 respeitavam à Sagrada Liturgia.
Encontramos aí uma oração após a Homilia que se seguia à proclamação do
Santo Evangelho.
- Uma oração pelos Catecúmenos e uma bênção dos Catecúmenos antes da
sua despedida. Esta oração é dita sem interrupção, ao passo que hoje é dita sob a
forma de litania cantada pelo Diácono. Quanto ao seu conteúdo, ele é o mesmo. A
oração é, em muitos pormenores, praticamente a mesma do que a oração secreta
dita pelo Bispo.
- Uma oração litânica pelas autoridades, pelo país, pelos viajantes, por todos
os que sofrem e pelos prisioneiros; orações pelos doentes, bens terrestres e pela
Igreja.
- A Oração de Oblação (Prefácio) ou de Ação de Graças: “É digno e justo
que...”
- Enfim a Anamnese (1). Epiclesis, a fração do Pão e uma oração após a
Comunhão dos fiéis.
Depois do ano 380, foi redigido por um autor anônimo em Constantinopla, ou
na Síria, uma compilação canônica e litúrgica chamada de “As Constituições
Apostólicas”. O oitavo livro das Constituições Apostólicas dá-nos a conhecer o
formulário da Liturgia que hoje conhecemos.
Nele descobrimos, numa primeira parte da Liturgia dos Catecúmenos
comportando a leitura das Escrituras, a homilia, a oração pelos catecúmenos e a
sua despedida.
A segunda parte, ou Liturgia dos Fiéis, segue a ordem que hoje nos é
familiar, comportando ectenias, orações, cânticos, os ingentes convites do diácono
para que o povo esteja atento, enfim as fórmulas de Bênção análogas a todas as de
hoje. O desenrolar da Liturgia era o seguinte: Oração pelos fiéis, Beijo da Paz,
oferta das Oblatas, Oração de Oblação: Prefácio, Triságion, Instituição, Anamnese,
Comunhão, Ação de Graças e despedida dos fiéis.

191
Com São Basílio, o Grande (+ 379) e com São João Crisóstomo (+ 407), a
nossa Liturgia tomará, quase exatamente, a sua forma atual.

Notas:

(1) – Anamnese – (Literalmente: recordação, memória) – Parte da Anáfora


onde o Presbítero evoca os grandes Mistérios realizados por Cristo para a
nossa salvação: Paixão, Morte, Ressurreição, Ascensão à Direita do Pai e
a Segunda Vinda.
(2) – Anáfora – (Literalmente: oferenda, oblação) – É a parte central da
Sagrada Liturgia, durante a qual é feita a Consagração Eucarística.
(3) – Eucológio – Livro litúrgico contendo o ordinário da Liturgia e Ofícios
divinos, Sacramentos e muitos outros Ofícios e Bênçãos.

A Diversificação das Liturgias Orientais

Como poderemos constatar mais adiante, aquilo que divide os Cânones em


duas Famílias, é o lugar que os Dípticos ocupam na Anáfora Eucarística.
Na Família Oriental, os Dípticos aparecem inseridos na Anáfora Eucarística.
Na Família Ocidental, os Dípticos precedem a Anáfora.
Os liturgistas dividem as Liturgias em dois grupos:
1) Sírio-Galicano ou Euro-asiático, do qual fazem parte, por exemplo, os Ritos
Bizantino e Sírio de Antioquia.
2) Alexandrino-Romano ou Euro-africano, ao qual pertencem nomeadamente os
Ritos Copta, Etíope e Romano, entre outros.
Este segundo Grupo, Alexandrino-Romano ou Euro-africano, abre o “Diálogo
Solene do Prefácio” por intermédio da saudação bíblica “Dominus Vobiscum” (O
Senhor esteja convosco), ao passo que o primeiro Grupo, Sírio-Galicano ou Euro-
asiático, utiliza a saudação proferida pelo Santo Apóstolo Paulo: “A Graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, o Amor de Deus Pai e a Comunhão do Espírito Santo estejam
sempre convosco” (2 Co XIII, 13).
De acordo com as Igrejas locais, a Sagrada Liturgia foi tomando formas
diversas.
Nem a língua usada, nem o Credo dogmático devem ser tomados como o
princípio ou a razão para a Diversidade dos Ritos litúrgicos, porque numa mesma
língua podem celebrar-se vários Ritos e por outro lado, tanto ortodoxos como
heterodoxos podem celebrar a mesma Liturgia.
Logo, o princípio desta diversidade é, pelo menos, originalmente, geográfico
e tem a haver com a idiossincrasia do povo que celebra o Rito.
É imprescindível distinguir dois Grupos de Ritos Orientais, que por sua vez,
correspondem aos dois Patriarcados Ortodoxos mais antigos – Antioquia e
Alexandria (Cânone VI do I Concílio Ecumênico de Nicéia I, 325).
I) GRUPO ANTIOQUENO (Grupo Sirio-Galicano ou Euro-asiático),
subdivide-se em dois tipos diferentes:
1) – Tipo Sírio-Ocidental - Rito Sírio de Antioquia
Rito Maronita
Rito Bizantino
Rito Armênio
2) – Tipo Sírio-Oriental – Rito Nestoriano
Rito Caldaico
Rito Malabar
II) GRUPO ALEXANDRINO (Grupo Alexandrino-Romano ou Euro-africano),
que compreende:

192
- Rito Copta
- Rito Etíope
- Rito Romano

I – GRUPO ANTIOQUENO

Este Grupo subdivide-se em dois Tipos diferentes. Inicialmente a Jurisdição


do Patriarca de Antioquia estendia-se aos territórios do Império Romano e aos
territórios submetidos aos Persas. As comunidades cristãs que se tinham
estabelecido na bacia do Tigre e do Eufrates (rios) eram de língua siríaca e viviam
sob o jugo dos Persas. Foram forçados a viver num relativo isolamento e
constituíram-se desde o século V em comunidades autônomas. Por isso não causa
perplexidade que hajam formado uma Liturgia diferente: o Rito Siríaco Oriental. As
restantes comunidades do Patriarcado de Antioquia têm Liturgia do tipo Sírio-
Ocidental, com variantes bastante numerosas.
1- Tipo Sírio-Ocidental. Pertencem a este tipo os Ritos: Sírio de Antioquia,
Maronita, Bizantino e Armênio.
a) Rito Sírio de Antioquia, celebrado por: Jacobitas, Sírios unidos a Roma
(uniatas) e Malancares.
Antioquia foi, após Jerusalém, o primeiro grande centro de difusão do
cristianismo e teve uma influência reconhecidamente incontestável. Era uma
província romana, onde a língua cultural era o grego; por esta razão, a Síria Ocidental
constituiu muito cedo uma Liturgia de língua grega, pelo menos nas cidades; somente
nas regiões de Odessa e Osrohoene, que permaneceram Reinos independentes até
ao século III (200), se preservou a cultura siríaca.
A Liturgia de Jerusalém e da Palestina era muito próxima da de Antioquia.
Todavia, o aumento das peregrinações aos Lugares Santos deu-lhe uma fisionomia e
uma característica totalmente novas que, aliás, iria influenciar outras liturgias, muito
concretamente a Armênia e a Georgiana. Esta influência que a Liturgia de Jerusalém
e da Palestina exerceu sobre as Liturgias Armênia e Georgiana é-nos comprovada
por importantes documentos:
- Catequeses de São Cirilo de Jerusalém
- Diário da Peregrinação de Etéria
- Lecionário Armênio Antigo
- Calendário Georgiano
- Kanonárion Georgiano.

O Concílio de Calcedônia (451) veio, como conseqüência, a provocar um


cisma na Igreja de Antioquia, apesar de continuar a existir um Patriarcado Ortodoxo,
o qual, com o decorrer dos anos, viria a agrupar principalmente os súditos do Império,
donde ficou o nome de Melkitas. Quase na sua globalidade adotaram o Rito
Bizantino.
A “vitória” vai caber aos monofisitas, e a Igreja “Jacobita” de Antioquia reuniu
à sua volta as comunidades de língua grega e siríaca. Além do mais, as invasões
árabes cindiram a Síria do Império Romano e a língua grega, que era falada nas
principais metrópoles (cidades-mãe), foi abandonada em benefício da língua nacional
e posteriormente do árabe.
O Rito Antioqueno foi “organizado” a partir de elementos traduzidos do grego
e por muitos outros genuinamente siríacos. As obras de Santo Efrém proporcionaram
a existência de uma abundante hinografia. Antioquia vai ainda recolher uma enorme
parte do patrimônio litúrgico de Jerusalém.

193
O Rito Siríaco de Antioquia viria a receber a sua fisionomia atual no século
XII, principalmente com Dinis Bar Salibi (+ 1171). Além da antiga Anáfora de
Sant’Iago, possui cerca de 70 outras Anáforas, muitas das quais são bastante tardias.
O ofício litúrgico caracteriza-se pelo predomínio da hinografia em detrimento
da salmodia, que quase não existe. Também os Ritos pontificais foram fixados no
século XII, por Miguel, o Sírio, encontrando-se neles usos estranhos a todas as
demais liturgias.
Por exemplo, nas ordenações, antes de impor as mãos sobre o ordinando, o
Bispo pousa-as sobre as Sagradas Espécies, como que para captar a Graça divina.
A língua oficial desta Liturgia é o Siríaco, no entanto as leituras e um grande
número de orações são cantadas em árabe.
No século XVII alguns Sírios de Antioquia uniram-se a Roma. Teve lugar,
então, a criação de um Patriarcado Católico Romano onde o Rito Siríaco tem sido
sempre praticado.
No mesmo período, na costa ocidental da Índia, alguns Malabares, que
repudiaram a união com Roma, uniram-se ao Patriarcado monofisita de Antioquia e
adotaram a Liturgia Sírio-Ocidental.
A partir de 1930, alguns dos seus Bispos uniram-se a Roma: chamam-se
Malancares. Preservam o Rito Siríaco, que é celebrado na língua nacional, o
Malayalam.
b) Rito Maronita – É uma variante do Rito Siríaco da Antioquia e é praticado
pelas comunidades cristãs do Líbano, que se constituíram em Igreja
autônoma, no decorrer dos séculos VIII e IX, em torno do mosteiro de São
Marão. Uniram-se a Roma (por imposição desta) quando das Cruzadas. A
par do que possuem de comum com Antioquia, os Maronitas têm também
as suas próprias tradições. Sofreram, infelizmente, excessivas influências
latinas.
c) Rito Bizantino – É pelas suas origens, um Rito que está ligado a Antioquia
e que tem muitas afinidades com o Rito Siríaco de Antioquia. Formou-se,
todavia, na cidade imperial, em Constantinopla. A Liturgia Bizantina é a
Liturgia de Constantinopla, inspirada, em grande parte, no fausto da Corte
Imperial. Concomitantemente com elementos que lhe vêm de Antioquia, a
Liturgia Bizantina possui outros, oriundos da Capadócia.
A Anáfora de São Basílio é, tudo indica que assim seja, obra do grande
Metropolita da Capadócia.
A Anáfora de São João Crisóstomo é mais tardia: provavelmente será uma
refundição de uma antiga Anáfora Antioquena, posterior certamente a São João
Crisóstomo.
Este Rito comporta também a Liturgia dos Dons Pré-Santificados.
Ao Rito Bizantino temos de juntar ainda o Rito Ruteno, que é celebrado pelas
Igrejas Bizantinas da Ucrânia, unidas a Roma no século XVII, e da mesma forma o
Rito Melkita (Imperial). Chamam-se Melkitas as comunidades da Síria e do Egito
que permaneceram fiéis a Calcedônia: continuaram a celebrar o seu Rito,
inicialmente, mas progressivamente foram adotando o Rito Bizantino.
O Rito Bizantino é, por isso, celebrado pelos Ortodoxos e pelos Católicos
(Rutenos e Gregos unidos a Roma). Há, também, Melkitas Ortodoxos e Melkitas
Católicos, unidos a Roma.
d) Rito Armênio – Quem marcou indelevelmente o Rito Armênio foi o
Patriarca Católico Sahak, que viveu no século IV, o qual viria a estar,
também, na origem de toda a literatura armênia.
Para a feitura do Lecionário e do Calendário, Sahak inspirou-se
principalmente na Liturgia de Jerusalém, embora seja difícil de afirmar quais os

194
elementos contidos no Rito que pertencem às origens, uma vez que a Liturgia
Armênia sofreu consideravelmente a influência de Bizâncio e de Roma.
É um dos Ritos mais latinizados, mesmo aquele que é celebrado pelos
cristãos não unidos a Roma. A língua litúrgica é o Armênio Clássico, que difere
muito da língua hoje falada.
2 – Tipo Sírio-Oriental – Como anteriormente o afirmamos, as comunidades
cristãs existentes na Mesopotâmia sob a denominação persa, escaparam à
influência de Antioquia, devido a razões de ordem geográfica e política. A todo este
isolamento veio ainda juntar-se a separação dogmática: os Sírios Orientais não
acataram as decisões do Concílio de Éfeso (431) e abraçaram o Nestorianismo. A
Liturgia Sírio-Oriental confundiu-se, durante vários séculos, com a Liturgia
Nestoriana.
a) Rito Nestoriano – Tal como hoje é reconhecido, o Rito Sírio-Oriental foi
“organizado” no século VII pelo Patriarca Ishô-‘Yab III. Possui três
Anáforas:
- A dos Apóstolos Adeu e Mári
- A de Teodoro de Mopsuéstia
- A de Nestório
A Anáfora dos Apóstolos, tal como chegou até aos nossos dias, não possui
as Palavras da Instituição e a Epiclese surge após os Dípticos, e não antes,
como nos outros Ritos Siríacos desta Família. A língua é, essencialmente, o
Siríaco.
b) Rito Caldaico – Os Nestorianos de Chipre, no século XV, depois uma
parte dos Nestorianos da Caldéia, no século XVI, uniram-se a Roma e
formaram a Igreja Caldaica. Conservaram a Liturgia praticada pelos
Nestorianos, com algumas correções. Os nomes de Teodoro de
Mopsuéstia e de Nestório foram suprimidos das Anáforas (dos títulos
destas), mas estas continuaram a serem usadas.
c) Rito Malabar – Os Nestorianos foram grandes missionários e levaram o
Evangelho ao Extremo Oriente. A maior parte das comunidades por eles
fundadas desapareceram, à exceção da Igreja do Malabar.
No Século XVI os Portugueses, que ocuparam o território, quiseram trazer
ao Catolicismo Romano esta Igreja. Fizeram-no de uma forma desastrada
e tentaram impor a Liturgia Romana, ou, pelo menos, corrigir a Liturgia
Siríaca ali em uso. É atualmente o Rito mais latinizado (com o Armênio),
mantendo somente uma parte das suas tradições. Só a Liturgia dos
Apóstolos (Adeu e Mári) está em uso, tendo sido suprimidas as de
Teodoro de Mopsuéstia e de Nestório.
As comunidades que se não uniram a Roma aderiram ao Patriarcado
monofisita de Antioquia e constituíram a Igreja Malancar, que celebra o
Rito Siríaco de Antioquia.

II – Grupo Alexandrino-Romano ou Euro-Africano

São muito escassos os documentos que possuímos concernentes às


origens da Sagrada Liturgia e restante do Ritual egípcio.
O Eucológio de Serapião, devido à sua originalidade, é um documento
que não nos permite nem mesmo uma conclusão genérica. Aquilo a que apelidamos
de “Constituição da Igreja Egípcia” é, tão-somente, a Tradição Apostólica de Santo
Hipólito de Roma, enquadrada por alguns outros documentos de uma coleção
canônica que de modo nenhum nos permite enveredar por uma conclusão da
Liturgia Egípcia primitiva.

195
No decorrer da Idade Média a Liturgia Egípcia que encontramos
apresenta-se-nos sob duas formas: o Rito Copta e o Rito Etíope.

RITO COPTA
A Sagrada Liturgia celebrou-se em grego em Alexandria e no Baixo Egito.
Afigura-se-nos muito provável que tenha sido celebrado o Rito Copta, nos vários
dialetos coptas, no Alto Egito e restam-nos alguns fragmentos de manuscritos
antigos em saídico. A partir do século IX, o dialeto boérico tornou-se a língua oficial
da Liturgia alexandrina, apesar de o grego ter sido ainda empregado. Nos nossos
dias, na maioria do Egito, a Liturgia é celebrada em árabe, que é a língua oficial do
país. Conservou-se até aos nossos dias a Anáfora de São Marcos, a qual, sob uma
forma mais breve, já existia no século IV.
Os Coptas (cristãos ortodoxos “monofistas” do Egito) usam a Anáfora de São
Cirilo, que é uma tradução e adaptação da Anáfora grega de São Marcos. Ao invés
das Anáforas siríacas, os Dípticos aparecem na primeira parte da Ação de graças
antes do “Sanctus”. Além disso, existe uma Epiclese breve que procede as Palavras
da Instituição, enquanto um Epiclese longa, análoga à dos ritos sírios, se encontra
imediatamente a seguir à Anamnese e Oblação. A maior dificuldade reside em
saber se esta segunda Epiclese é primitiva no Egito, ou não. No momento atual da
documentação de que dispomos, é impossível pronunciarmo-nos.
Além das Anáforas de São Marcos – São Cirilo, duas outras estão em uso:
uma tem o nome de São Basílio e é uma forma um pouco mais antiga do que
aquela usada pela Igreja Ortodoxa (Liturgia de São Basílio); a outra Anáfora é a de
São Gregório. É importante salientar que estas duas Anáforas não são do tipo
alexandrino, mas sim do tipo siríaco. Foi indubitavelmente significativa a influência
siríaca no Egito.
Notam-se, também, bastantes influências da Anáfora de Sant’Iago na de São
Marcos, encontrando-se, da mesma forma, nos ritos sacramentais, orações de
origem siríaca. Tanto no Egito como na Síria, a Igreja nacional (local) não aceitou o
Concílio de Calcedônia (451) e enveredou por professar a heresia monosifita. Um
grupo de Melquitas (fiéis ao Concílio de Calcedônia ao Imperador Bizantino),
continuou fiel à Ortodoxia, cuja Liturgia se foi pouco a pouco bizantinizando. Por fim,
temos os Coptas unidos a Roma.
RITO ETÍOPE
Já na época de Santo Atanásio o Grande (séc. IV), a Etiópia tinha Bispos;
todavia, a grande evangelização aconteceu no século VI, por monges oriundos da
Síria (majoritariamente) e, portanto, monofisitas. Data deste período a primeira
tradução da Sagrada Escritura em gé’ez.
Somente através de documentos tardios nos é facultado o conhecimento da
Liturgia Etíope e, no seu conjunto, podemos afirmar que se trata de uma liturgia
traduzida do copta. Possui, no entanto, uma poesia original e, especialmente, hinos
mariais notáveis.
Para além disto, possui 17 ou 18 Anáforas, sendo a maior parte delas não
alexandrinas.
A correntemente, apelidada Liturgia dos Apóstolos é mesmo a Anáfora de
Santo Hipólito. Uma outra, de nome Anáfora de Nosso Senhor é uma adaptação
etíope do Testamento de Nosso Senhor que, por sua vez, é uma refundição da
Tradição Apostólica. Estas duas Anáforas não são muito antigas, se nos
recordarmos que a maioria das Anáforas remontam ao fim da primeira metade do 1º
milênio, e foram retiradas de escritos literários. A Anáfora dos Apóstolos só
começou a ser utilizada após a tradução etíope da compilação canônica copta, que
possuía a Tradição Apostólica de Santo Hipólito, e isto só veio a verificar-se no

196
século XIII. A língua litúrgica da Igreja Etíope foi sempre o gé’ez, que hoje é uma
língua morta.

RITO BIZANTINO
O Rito Bizantino, como anteriormente já dissemos, é oriundo da cidade
imperial de Constantinopla, o que lhe conferiu características próprias que o foram
diferenciar dos restantes ritos orientais.
Com o decorrer dos séculos, por razões de ordem vária – nunca por
imposição – o Rito Bizantino começou a ser celebrado por todas as Igrejas
Ortodoxas.
É este o Rito litúrgico que herdamos e que a nossa Santa Igreja celebra. Por
isso se impõe, com evidente acuidade, que o conheçamos em maior profundidade e
dele falemos mais pormenorizadamente.
Nos Eucológios (10/1) Bizantinos mais antigos, a Liturgia de São Basílio
precede a de São João Crisóstomo e na maioria dos antigos manuscritos, o
formulário da Liturgia segundo São João Crisóstomo aparece-nos incompleto (11/2).
Só em finais do século VIII, ou em princípios do século IX, a Liturgia segundo
São João Crisóstomo adquire um formulário completo, praticamente igual ao que
hoje lhe conhecemos, altura em que passa do segundo para o primeiro lugar (por
razões de nós desconhecidas) no Eucológio Bizantino.
Uma obra fragmentária intitulada “De Traditione divinae missae” atribui esta
Liturgia a São João Crisóstomo (13/3). Esta obra é da autoria de Proclo, Patriarca
de Constantinopla (+ 446), obra esta em que pretende explicar a origem das
Liturgias, afirmando que vários Padres da Igreja compuseram liturgias (afirmação
duvidosa e causadora de perplexidade, uma vez que não existe na Tradição
Ortodoxa o mínimo indício de que isso jamais alguma vez tenha sucedido), tais
como São Clemente Romano, Sant’Iago e São Basílio, que “abreviou a Liturgia em
uso no seu tempo, pois a extensão dos Ofícios litúrgicos gerava aborrecimento e
tristeza na alma dos fiéis...”.
Algum tempo depois, prossegue o mesmo autor, “e pelos mesmos motivos,
nosso Pai João Crisóstomo abreviou ainda mais o texto transmitido pelos seus
predecessores”.
Estas “razões” carecem de fundamento. Nada nos indica que possam ser
estas as razões que presidiram à abreviação do texto litúrgico. Segundo o nosso
santo Primaz, Sua Beatitude Gabriel I, o que aconteceu no tempo de São Basílio e
posteriormente, na época de São João Crisóstomo, foi o seguinte:
Em meados do século IV, os presbíteros começaram a celebrar fora da
catedral do seu Bispo, indo para as paróquias que então começavam a surgir em
cada uma das dioceses. Na maioria dos casos, o índice cultural do clero não seria
muito elevado (muitos não saberiam ler) e os presbíteros eram obrigados a celebrar
de cor toda a Sagrada Liturgia. Daí que um texto litúrgico muito extenso causasse
muitas dificuldades. Esta foi a principal razão que permitiu que o texto litúrgico fosse
abreviado. Além disto, a obra “De Traditione divinae missae” é muito posterior ao
século IV. As orações que foram abreviadas eram de cariz repetitivo e não foram
abreviadas ou suprimidas por um qualquer Padre da Igreja em particular. Ao longo
dos tempos as comunidades começaram a rejeitá-las ou a impor a necessidade de
serem abreviadas. É verdade que durante os três primeiros séculos, não só as hoje
denominadas Liturgias segundo São Basílio e segundo São João Crisóstomo, mas
todas as demais Liturgias, eram assaz extensas (cinco a seis horas de Ofício).
Segundo Sua Beatitude o Senhor Dom Gabriel, nosso Santo e Bem-Amado
Primaz, justificava-se plenamente a “morosidade” da Sagrada Liturgia porque se
revestia de um caráter sócio-religioso. Os fiéis aproveitavam para meditar ouvindo
as longas e repetitivas orações. A Sagrada Liturgia conglomerava-os em torno dela

197
exclusivamente, dado que era o único momento das suas vidas em que podiam
estar comunitariamente juntos.
Depois, com a tolerância religiosa conferida pelo Imperador, a Liturgia passou
a ter um caráter unicamente religioso e místico, o que veio permitir uma abreviação
do formulário litúrgico original.
Impõe-se ainda que clarifiquemos a seguinte questão: Quanto às Liturgias de
São Basílio e de São João Crisóstomo, a designação correta no que concerne à sua
apelidação será: Liturgia segundo São Basílio e Liturgia segundo São João
Crisóstomo.
São Basílio e São João Crisóstomo não criaram as Liturgias que em epígrafe
se reclamam de um e de outro. É verdade que enquanto eminentes liturgos que
foram – muito particularmente no caso de São Basílio – conferiram um cunho
pessoal à liturgia que celebraram. Não podemos ignorar que a Anáfora de São
Basílio foi inteiramente composta por este mesmo Padre da Igreja e que, sem
sombra de dúvida, abreviou o texto inicial da Liturgia (no que respeita às longas e
repetitivas orações “secretas”, hoje assim denominadas).
Todavia, o que um e outro fizeram foi fixar o formulário litúrgico, o qual sofreu
alterações mínimas até aos séculos VIII e IX, permanecendo a partir de então, até
aos nossos dias, quase inalterável. Isto não nos legitima afirmar que as Liturgias em
questão são da sua autoria. A Tradição litúrgica ortodoxa exclui completamente
essa possibilidade.
Fazem parte do Rito Bizantino não somente as Sagradas Liturgias de São
Basílio, de São João Crisóstomo e de São Gregório do Diálogo (Liturgia dos Dons
Pré-Santificados), como ainda todas as Horas Canônicas (monásticas), todos os
gestos litúrgicos, paramentos, Bênçãos de doentes, das casas, das sementeiras,
etc.
Quanto à Sagrada Liturgia de São Basílio, é mais longa do que a de São
João Crisóstomo, principalmente devido às orações do sacerdote (ditas secretas)
serem mais longas do que nesta última. É celebrada dez vezes por ano: nos cinco
primeiros Domingos da Grande Quaresma, na Quinta-feira Santa e no Sábado
Santo, no dia de São Basílio (1/14 de Janeiro) e, em determinadas circunstâncias,
nas Festas do Natal e da Teofania. Quanto à Sagrada Liturgia dos Dons Pré-
Santificados, é celebrada, durante a semana (quartas e sextas-feiras), ao longo da
Grande Quaresma. No fim deste Nosso trabalho abordaremos sucintamente esta
Liturgia de São Gregório, o Grande.
Todavia, a Sagrada Liturgia que é celebrada em todos os domingos (com
exceção daqueles em que se celebra a de São Basílio) ao longo do Ano litúrgico, é
a de São João Crisóstomo e é esta a que vai merecer uma maior atenção da Nossa
parte.
A Sagrada Liturgia de São João Crisóstomo (como também a de São Basílio)
divide-se em três partes:
I – Protése ou Preparação dos Dons.
II – Liturgia dos Catecúmenos
III – Liturgia dos Fiéis.

I – PROTÉSE OU PREPARAÇÃO DOS DONS

Ao contrário do que muitas vezes – erradamente – se afirma, a Sagrada


Liturgia não começa com a Liturgia dos Catecúmenos, ou seja, pela Grande
Doxologia. Visivelmente, para os fiéis, inicia-se neste momento, no entanto,
realmente, ela principia com a Protése, dentro do Santuário (Santo dos Santos),
com as Portas reais e as cortinas fechadas.

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É neste momento – Protése – que o Presbítero procede à preparação das
Oblatas. Esta preparação, inicialmente, tinha lugar no meio do Ofício Eucarístico,
mas foi deslocada para o princípio da Liturgia por razões de ordem prática; iremos
constatar que se o Presbítero ler os Dípticos apresentados pelos fiéis de uma forma
conscienciosa, facilmente esta leitura demorará cerca de 40 a 60 minutos.
Uma vez que a ordenação da Liturgia segundo São João Crisóstomo e
segundo São Basílio é a mesma, por motivos didáticos esquematizá-la-emos da
seguinte forma:
1ª. Parte
Preparação para a Liturgia

1. Preparação dos ministros para o Serviço Divino:


- Orações diante das Portas Reais
- Entrada no Santuário
- Paramentação dos ministros
- Ablução das mãos

2. Protése ou Preparação dos Dons:


- Ordenação dos Objetos Sagrados
- Preparação do pão e do vinho a consagrar
- Comemoração da Mãe de Deus e dos Santos
- Dípticos dos Vivos e dos Defuntos
- Incensação dos Dons
- Orações finais

2ª. Parte
Liturgia dos Catecúmenos

1. Ritos preparatórios:
- Incensação
- Orações diante do Altar
2. Prelúdio ou “Enarxis”:
- Doxologia inicial
- Grande Litania ou Litania da Paz
- Primeira Antífona
- Primeira litania menor
- Segunda Antífona
- Segunda litania menor
- Terceira Antífona ou Bem-aventuranças

3. Entrada ou “Eisodikon”:
- Procissão do Evangelho
- Cântico de Entrada ou “Eisodikon”

4. Tropários do dia
5. Trisághion
6. Salmodia e Leituras:
- Cerimônia do trono
- Prokímenon
- Epístola
- Aleluia e versículos intercalares
- Evangelho
- Homilia

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7. Oração por toda a Igreja
- Oração geral por todos os Fiéis
- Oração pelos Defuntos
- Oração pelos Catecúmenos e sua despedida

3ª. – Parte
Liturgia dos Fiéis

1. Primeira e Segunda Oração pelos Fiéis


2. Grande Entrada ou Procissão dos Dons
- Hino dos Querubins
- Oração preparatória do Presbítero
- Procissão
3. Ritos do Ofertório: litania diaconal e oração do Ofertório
4. Beijo da Paz
5. Credo ou Símbolo da Fé
6. Anáfora Eucarística
- Diálogo Solene do Prefácio
- Prefácio
- Sanctus
- Post Sanctus
- Palavras da Instituição
- Anamnese
- Oblação
- Epiclese
- Post Epiclese
- Comemorações
- Benção do “Antidoron”
- Dípticos dos Vivos e dos Defuntos
- Doxologia final
7. Comunhão
a) Preparação
Litania diaconal
Pai Nosso ou Oração Dominical
Benção dos Fiéis
Elevação dos Santos Dons
Fração do Pão
Immixtio
Zéon
b) Comunhão
Cântico da Comunhão
Comunhão do Clero
Comunhão dos Fiéis
Litania de Ação de graças

8. Conclusão da Liturgia
- Despedida dos Fiéis
- Oração diante do ambão
- Benção final
- Distribuição do “antidoron”

9. Desparamentação do Clero e ação de graças em privado.

200
I PARTE

Preparação para a Sagrada Liturgia

Esta primeira parte comporta, fundamentalmente, a “preparação do Clero


para a celebração dos Santos Mistérios” e a “Protése ou Preparação dos Dons” que,
pela força inacessível do Espírito Santo, serão transformados no Corpo e Sangue
de Cristo.
Chegada a hora da Celebração, diante das Portas Reais, o Presbítero e
Diácono, depois de fazerem três metanóias, recitam as “Orações iniciais” de todo o
Ofício, seguidas de tropários penitenciais (1-15).
Ao recitarem o último dos tropários, inclinam-se profundamente e abrem-se
as Portas Reais. Veneram, então, o Ícone do Salvador, nosso Deus e Senhor Jesus
Cristo e o Ícone da Mãe de Deus, recitando, respectivamente, as orações seguintes:
“– Senhor misericordioso, nós nos prostramos diante da Tua puríssima
imagem, pedindo o perdão das nossas faltas, ó Cristo, nosso Deus. Livremente
aceitaste que o Teu Corpo fosse crucificado para resgatares da escravidão do
Inimigo aqueles que havias criado. Por isso, nós Te damos graças e Te cantamos:
Tudo encheste de júbilo, ó Salvador, porque salvaste o mundo.”
“- Ó Mãe de Deus, fonte de ternura, torna-nos dignos da Tua misericórdia.
Baixa o olhar sobre o Teu povo que pecou e mostra sempre o Teu poder e o Teu
amor, pois, cheios de esperança, nós Te saudamos, dizendo: Salve! Como fez o
Arcanjo Gabriel, chefe das milícias celestes” (2-16).
Depois, descobrindo e inclinando a cabeça, o Presbítero, consciente de que é
indigno para celebrar os Santos e temíveis Mistérios, pede a Deus “estenda a mão
do alto da Sua Santa morada e lhe dê força para, sem cair em condenação, celebrar
o Santo Sacrifício incruento” (2-16).
Voltando-se, seguidamente, para os fiéis, a quem pedem perdão, o
Presbítero e o Diácono entram no Santuário recitando alguns versículos do Salmo
5: “Pela grandeza da Tua benignidade, entro na Tua casa, Senhor. Penetrado de
temor, prostro-me diante do Teu Templo Sagrado...(3-17).
Chegados diante do altar, depois de fazerem três metanóias, o Presbítero
beija o Evangeliário e o Altar, beijando o Diácono somente o Altar. Seguidamente,
vão paramentar-se.
Estes ritos e orações preparatórias são relativamente recentes. Os
Eucológios e os “typica” dos sécs. XIII e XIV recomendam apenas ao Presbítero
que, antes de entrar no Santuário, faça, quer diante do Altar, quer diante da
Iconostase, três metanóias e recite uma breve oração, sensivelmente do mesmo
teor que a oração de preparação para o Sacrifício, recitada ainda hoje: “Estende a
Tua mão do alto da Tua santa morada, Senhor...” (4-18)
Este rito, na sua redação definitiva, não é anterior ao séc. XV.
A Paramentação do Clero é acompanhada de várias orações, orações estas
que se cingem, quase exclusivamente e de uma maneira feliz, a citações bíblicas
(5-19). As orações ditas durante a paramentação variaram grandemente ao longo
dos séculos. As fórmulas atuais vêm-nos dos séculos XIII e XIV.
Dentre os vários liturgistas que, no decorrer dos séculos, falaram e
escreveram sobre a simbologia dos paramentos, destaca-se São Nicolau Cabasilas
(séc. XIV), nascido em Tessalônica por volta do ano 1320. Todavia, a descrição de
São Nicolau restringe-se aos paramentros em uso na sua época, pelo que Nos
decidimos pela narração simbólica que a Tradição da Igreja guardou e que nos foi
veiculada e transmitida, integralmente, por Sua Beatitude Gabriel I:

201
Alva ou Estikarion – A alva é a primeira veste do paramento litúrgico a ser
colocada quando da paramentação, seja pelo Presbítero ou pelo Bispo. A alva é a
antiga toga patriciana, com barras no fundo de cor púrpura e roxo com aplicações
em dourado – é uma veste muito ampla. Simboliza a disponibilidade do Homem
posta ao serviço de Deus.
Estola ou Epitrakílion – É usada pelo Bispo pelo Presbítero (a estola diaconal
é diferente) e toma raízes no Antigo Testamento, no momento em que o Óleo é
derramado sobre a cabeça de Aarão (por Moisés) e lhe escorre até aos pés,
simbolizando por isso a graça do Sacerdócio que é derramada sobre o Bispo. Esta
graça repousa sobre o pescoço que recebeu o jugo de Cristo, ela desce pelo peito
até aos pés, suaviza o coração e santifica todo o corpo.
Zona – Pela zona, os Bispos e os Presbíteros devem, na prática das virtudes
e domínio dos desejos carnais, abraçar esta graça contra eles e, por assim dizer,
fazê-la fundir em si mesmos, segundo a ordem de São Paulo, divinamente
inspirado, que recomendava a Timóteo: “Não negligencies o dom espiritual que está
em ti” (Jo-25)
Punhos – Eram sinal de dignidade na Corte. Só os altos Dignitários da Corte
os usavam e eram o equivalente às luvas que, também no Ocidente, só os altos
Dignitários usavam.
Casula ou Felônion – É a antiga Pénula romana, que servia para proteger
das chuvas e das intempéries e que, na Igreja, tomou a simbologia da proteção
daqueles que se aproximam dos Santos Mistérios (proteção essa que é atribuída ao
Espírito Santo).
- Nota importante: Os Presbíteros não tinham nenhuma peça de vestuário
estritamente eclesiástica, uma vez que eles eram os colaboradores do
Bispo e usufruíam a proteção do seu Bispo. Quando, em meados do
século IV, foram – pela primeira vez – enviados a celebrar sozinhos, a
Igreja descobriu uma peça de vestuário (a estola), que simboliza o Óleo
derramado sobre a cabeça de Aarão e que lhe escorria pelas barbas até à
fímbria do seu vestido – este Óleo é o sinal exterior da proteção e graça
do Espírito Santo. Nesta altura, os Bispos começaram, simultaneamente,
a usar também a estola por baixo da Pénula (Casula – Felónion).
Sakos - É uma veste semelhante ao Sakos (Dalmática) diaconal, porque o
Bispo é, também, o Servo de Deus; diaconia é serviço. O Bispo é o primeiro obreiro
da Diocese. O Sakos é ladeado de guizos, como a veste do Sumo Sacerdote de
Jerusalém, porque ele (Bispo) é Ícone de Cristo e por isso, Sacerdote único na
Diocese. Na antiga Lei, os guizos do “Sakos” do Sumo Sacerdote tinham duas
funções: uma eminentemente prática e outra de ordem espiritual. A primeira
prendia-se com o fato de o Nome de Deus estar inscrito numa banda de tecido que
circundava a cabeça do Sumo Sacerdote. Como os fiéis (judeus) não podiam
(estavam interditados pela Lei) ver o Nome de Deus, assim que ouviam os guizos,
prostravam-se. A segunda função dos guizos era a de afastar os demônios, os
quais, terrificados pela recordação da presença divina, se afastavam de imediato.
Hoje, a simbologia desta segunda parte da função desempenhada pelos guizos,
continua presente na Igreja.
- Nota importante – Impõe-se que salientemos o seguinte fato: o Sakos,
enquanto veste exclusivamente eclesiástica, só começa a ser usado
depois de 1453 (século XV) e em primeiro lugar pelo Patriarca de
Constantinopla. Inicialmente, esta era a veste que o Imperador de
Bizâncio trazia em todos os momentos da sua ação governativa e em
todas as alturas em que assistia à Sagrada Liturgia. O Imperador cristão
de Bizâncio era o Diácono do Povo cristão e o seu Protetor. Por isso,
usava a veste diaconal (Dalmática, com guizos – Sakos), na medida em

202
que tinha a grande função diaconal, que era precisamente o serviço e a
vigilância constante dedicada ao seu povo.
Tinha, também, durante a Sagrada Liturgia, uma outra atribuição diaconal –
fazia, pegando no turíbulo, algumas incensações litúrgicas: não esqueçamos que o
Imperador não era um Leigo comum – era sagrado (ungido) pelo Patriarca de
Constantinopla.
Com a queda do Império, o Patriarca Ecumênico toma para si esta atribuição
imperial do Protetor do povo e seu único defensor e interlocutor exclusivo diante do
Sultão da Sublime Porta, daí passar a usar todos os símbolos exteriores que eram
próprios do Imperador, desde o Sakos à Mitra e ao Báculo. À imagem do Patriarca
de Constantinopla, todos os outros Patriarcas, Metropolitas, Arcebispos e Bispos
passaram a usar o Sakos, a Mitra e o Báculo imperiais, ficando a Casula
estritamente para os Presbíteros.
Hypogonátion – É a espada dos Confessores. Os mártires foram mortos por
uma espada assassina e portadora de morte. Aqueles, a quem hoje é dado o
Hypogonátion usam à cintura, não mais a espada que mata, mas a espada que
concede vida, porque é uma espada de Amor. É usado por todos os Bispos,
Arquimandritas, Arciprestes e por alguns Presbíteros.
Grande Omofórion – Simboliza a ovelha perdida que o Bom Pastor vai buscar
para introduzir no aprisco junto do resto do rebanho. É ainda a única veste
exclusivamente de origem eclesiástica, não tendo paralelo em nenhuma outra
“sociedade”.
Pequeno Omofórion – É semelhante ao Éfod que o Sumo Sacerdote do
Templo de Jerusalém usava e que o Bispo só usa quando as Oblatas estão sobre o
Altar, como o primeiro diante da Arca da Aliança. Em vez das 12 pedras preciosas,
que representavam as 12 Tribos de Israel e que se distribuíam sobre o Éfod em 4
filas de 3 pedras preciosas diferentes, cada uma representando uma tribo, o
Pequeno Omofórion, por seu lado, tem apenas uma cruz de cada lado, que
simboliza a Igreja , que é a grande Tribo do Povo de Deus.
- Nota importante – Quando um Bispo celebra, fá-lo em união com todos os
Bispos e por isso, a Graça que decorre da sua celebração, extravasa o
Templo onde celebra, o Povo concreto por quem celebra (a sua Diocese)
e é derramada sobre todo o Cosmos, tal como quando Cristo celebrou.
- A Sagrada Liturgia tem, por esta razão, efeitos cósmicos, que penetram
perpassam e vivificam todo o Cosmos.
O Bispo é Pastor, Liturgo e Doutor, o que nenhum presbítero é, por muito
preparado, piedoso e inteligente que seja. Por isso, quando um presbítero está
separado, cortado, cindido do seu Bispo, não pode celebrar, na medida em que o
Presbítero celebra no seu Bispo e o seu Bispo celebra em Cristo, no qual participa
na plenitude do Sacerdócio.
Nota: O Omofórion simboliza, ainda, o Poder de Ordem.
Mitra – Hoje a Mitra episcopal ortodoxa é a Mitra imperial de Bizâncio que,
após 1453, passou a ser usada por todos os Antístetes (Hierarcas, Bispos)
ortodoxos. O percurso feito pela Mitra episcopal até 1453 divergiu um pouco
consoante a toponímia (o local geográfico) própria às várias comunidades.
Inicialmente (sécs. I – III) aquilo que mais tarde viria a ser designado como
Mitra episcopal era tão somente uma faixa de tecido posta em torno da cabeça, com
o fim prático de impedir que os longos cabelos dos Bispos tocassem nas Oblatas,
podendo causar distúrbios e perturbar a oração. Depois, com o decorrer do tempo
(no Oriente), esta banda de tecido seria “substituída” pelo skúfia monástico que,
diferentemente do dos monges, tinha uma fímbria mais grossa e era mais longo do
que o monástico, possuindo uma cruz à frente. Depois do século IX (nos países
eslavos), este skúfia passa a ter uma cruz no centro e a fímbria em pele e era mais

203
curto que aquele usado (a que chamamos já de Mitra) entre os sécs. III, IV e o séc.
XV, entre os ortodoxos de origem ou influência grega. No Ocidente, aquela faixa de
tecido, que nos primórdios do cristianismo era usada por todos os Bispos, começa a
aumentar de altura, verificando-se nas partes anterior e posterior uma elevação da
dita faixa, permanecendo aberta e baixa nas suas partes laterais. A altura desta
Mitra episcopal ocidental teria – durante os 10 primeiros séculos – cerca de 8 a 15
cm. Depois do séc. X e muito particularmente no fim da Idade Média e princípios da
Renascença, chega a atingir a insólita altura de 90 cm.
Nota: A Mitra é o símbolo do Mestre (espiritual) e do Doutor (ou Sábio). Só ao
Doutor era permitido usar esta distinção.
Báculo – É o símbolo do Poder de Jurisdição, que tem de ser exercida com
discernimento e com sabedoria.
É ao mesmo tempo símbolo de Poder espiritual e de Conhecimento – de
Teologia, da Tradição, dos Cânones, etc.
As serpentes simbolizam a Sabedoria do Antigo e do Novo Testamento,
afrontando-se, mas não se antagonizando, cuja harmonia é encontrada na Cruz,
para a qual as serpentes estão viradas.
Kalimáfia (Em grego: Kalimafkia) - Inicialmente, era feito de pele de camelo,
daí o seu nome. Os Magistrados e os Príncipes usavam chapéus semelhantes, que
lhes conferiam, diante do povo, a dignidade e o poder de Jurisdição, enquanto
Autoridade moral. Nos nossos dias, o Kalimáfia é símbolo de Autoridade espiritual.
Hoje, no caso particular dos monges e monjas, o Kalimáfia é coberto com o véu
monástico (antigo capuz dos monges). Este acontecimento começou a ocorrer a
partir do princípio do II milênio (sécs. XII e XIII), muito particularmente nos países
eslavos, vindo depois a influenciar toda a Igreja.
Raso - É o tau (letra do alfabeto grego), que simboliza a morte na cruz e a
pobreza na vida. Se abrirmos o Raso, constataremos que tem exatamente a forma
de uma cruz. É uma peça do vestuário eclesiástico usada por todas as Ordens
maiores (Bispos, Presbíteros e Diáconos) e por todos os Monges e Monjas. É ainda
uma das vestes mais belas (se não mesmo a mais bela) não só da Igreja como do
mundo profano.
Alfaias litúrgicas
Patena – É um objeto de metal (às vezes em prata ou em ouro) com a
configuração de um disco, que simboliza a Terra, onde o Verbo encarnou, e o
Cosmos, que o Verbo salva – é ainda a Gruta de Belém e o Túmulo em Jerusalém.
Vai ser o espaço geográfico cósmico onde o Cordeiro vai ser imolado para a
santificação dos fiéis.
Cálice – É um vaso (também muitas vezes em prata ou em ouro) onde é
derramado o Vinho (durante a Protése) que no decurso da Sagrada Liturgia irá ser
transformado em Sangue de Cristo, para a santificação dos fiéis.
Simboliza a Vida divina que deve pulsar dentro de cada cristão.
Asterisco – Tem a forma de uma cruz de braços iguais, que simboliza a
morte de Cristo e a Graça derramada sobre todos e sobre tudo o que existe, porque
os braços do Asterisco são também os 4 pontos cardeais. É a Graça divina
derramada sobre todo o Cosmos.
Estrela – A Estrela que encima (outras vezes está dependurada) o Asterisco,
simboliza ao mesmo tempo a Estrela que brilhou sobre Belém de Judá anunciando
o Nascimento de Cristo, Verbo Encarnado e a Santíssima Virgem Maria, por quem e
em quem o Verbo encarnou.
Lança – A Lança serve para partir o Cordeiro e simboliza a lança com a qual
– no Gólgota – o Soldado perfurou o lado de Cristo, donde brotou Sangue e Água.
Está colocada sobre o lado esquerdo do Purificador.

204
Colher da Comunhão – É a Colher com a qual o Bispo, ou o Presbítero,
distribui a Sagrada Comunhão aos fiéis e que, até à altura em que se fecham as
Portas Reais e a Cortina, se encontra sobre o Altar, sobre o purificador, do lado
direito deste.
Turíbulo – É um objeto dourado ou prateado, suspenso por 4 correntes, no
qual se põe incenso para proceder às incensações dos Ofícios litúrgicos. O fumo do
incenso simboliza a oração que se eleva para Deus: “Que a minha oração se eleve
como o incenso diante de Ti, e a elevação das minhas mãos, como um sacrifício
vespertino”, diz-nos o Salmista.
No Apocalipse (V, 8) as orações dos Santos são, também, simbolizadas por
perfumes, que os Anciãos oferecem ao Cordeiro.
Ainda no mesmo livro (cap. VIII) , São João o Teólogo, divinamente inspirado,
diz: “Veio um Anjo com um turíbulo de ouro e pôs-se junto do Altar. Foram-lhe
dados muitos perfumes para que os oferecesse com as orações de todos os Santos
no Altar de ouro que está diante do Trono. E o fumo dos perfumes subiu das mãos
do Anjo, com as orações dos Santos, até junto de Deus.
“Todas as incensações devem, ainda, recordar aos Presbíteros, Diáconos e
Povo fiel, o dever de se prepararem para a celebração dos Santos Mistérios
tornando-se, pela sua vida, o “bom odor de Cristo”.
Véus do Cálice e da Patena – Os Véus que tapam o Cálice e a Patena
simbolizam o Mistério que permanece escondido até depois da Epiclesis, altura em
que ele é revelado aos fiéis.
Terceiro Véu ou Aér – Simboliza o Espírito Santo, que cobre com a Sua
sombra o Mistério já escondido pelos dois Véus. No Altar os Véus do Cálice e da
Patena são retirados, mas o terceiro Véu permanece, sendo só retirado durante o
Credo. A partir deste momento, a Epiclesis dar-se-á após as Palavras da Instituição
e os fiéis já podem contemplar, através dos olhos da Fé, o Mistério que lhes foi até
à altura escondido e, mais intimamente do que contemplar o Mistério, protegidos
pelo Espírito Santo, serem chamados a partilhar o Mistério, comungando ao Corpo
e ao Sangue de Cristo.
Prósforas – Pão do qual se irá extrair o Cordeiro e todas as partículas em
Honra da Mãe de Deus, dos Santos, dos Vivos e dos Defuntos. Podem tomar-se
para a Protése uma Prósfora, três Prósforas ou cinco Prósforas.
Uma - simboliza a unidade de tudo e de todos feita em Cristo (tudo –
cósmico); três- simbolizam a Santíssima Trindade e tornam imanente a Sua
Presença; cinco – simbolizam a morte na Cruz e ao mesmo tempo a Ressurreição
com Cristo.
Artofórion – Sacrário onde se guarda a Reserva Eucarística – uma partícula
da Sagrada Eucaristia que aí é colocada e que permanece sempre no Altar,
podendo ser distribuída em Comunhão aos doentes em suas casas.
Após a paramentação, os ministros lavam as mãos, recitando ao mesmo
tempo alguns versículos do Salmo XXVI: “Entre os justos lavo as minhas mãos e
ando, Senhor, em redor do Teu Altar, para anunciar em público o Teu louvor e
proclamar as Tuas maravilhas...” (7-31).
O lugar normal da ablução das mãos é antes do Ofertório. Unicamente nos
sécs. XIII-XIV é que o “lavabo” se dissociou dos ritos do Ofertório e se inseriu entre
os ritos da “Preparação dos ministros” (Prótese), exceto na Liturgia Pontifical, em
que se mantém no seu lugar primitivo.
O Presbítero (ou o Bispo na Liturgia Pontifical) lava as mãos – afirma São
Nicolau Cabasilas (8-32) – “pois ele deve purificar-se perante o olhar de Deus até
ao mais profundo do seu ser...”, antes de oferecer o Sacrifício.

205
Assim que os Diáconos e os Presbíteros se encontram preparados, segue-se
a “Preparação dos Dons” - pão, vinho e água – elementos que, pelo poder do
Espírito Santo, se transformarão no Corpo e no Sangue de Cristo.
Ao contrário do que muitas vezes – erradamente – se afirma, a Sagrada
Liturgia não começa com a Liturgia dos Catecúmenos, ou seja, pela Grande
Doxologia. Visivelmente, para os fiéis, inicia-se neste momento, no entanto,
realmente, ela principia com a Protése, dentro do Santuário (Santo dos Santos),
com as Portas Reais e as cortinas fechadas.
É neste momento – Protése – que o Presbítero procede à preparação das
Oblatas. Esta preparação, inicialmente, tinha lugar no meio do Ofício Eucarístico,
mas foi deslocada para o princípio da Liturgia por razões de ordem prática; iremos
constatar que se o Presbítero ler os Dípticos apresentados pelos fiéis de uma forma
conscienciosa, facilmente esta leitura demorará cerca de 40 a 60 minutos.
Ao longo dos séculos, o rito da Protése ou Preparação dos Dons sofreu
algumas modificações: inicialmente um rito simples, tornou-se posteriormente um
rito desmesuradamente longo e complexo. O texto atual é de um equilíbrio perfeito e
não é muito anterior ao século IX.
Até ao séc. V, a Protése tinha lugar antes da “transferência dos Dons para o
Altar”, no início da Liturgia dos Fiéis. Uma vez despedidos os catecúmenos, os Fiéis
apresentavam as suas oferendas, delas se retirando que era necessário para o
Sacrifício Eucarístico. Depois de preparados os Dons na “Mesa da Protése”, eram
conduzidos em procissão para o Altar, para aí serem consagrados.
No séc. VIII, na quase totalidade das Liturgias, aparece-nos já a Protése
inserida imediatamente antes da “Liturgia dos Catecúmenos”.
Primitivamente, a “Preparação dos Dons” era uma função diaconal: o
Diácono recebia as oferendas dos Fiéis, delas retirava uma parte necessária para o
Sacrifício e que colocava no Altar. O Presbítero limitava-se a abençoar as oferendas
que o Diácono lhe trazia.
A partir do séc. VIII, a Protése foi reservada ao Presbítero, limitando-se o
Diácono a derramar o vinho e a água no Cálice. Do séc. XI ao séc. XIV surge uma
dupla corrente ou tendência: em certos lugares, a ação principal na “Preparação das
Oferendas” era reservada ao Diácono, noutros ao Presbítero. A partir do séc. XIV é
a última corrente que prevalece.
A Protése é a recapitulação da História da Salvação desde o Nascimento até
à Morte de Cristo.
Inicialmente, a Protése não compreendia nenhum rito especial. A parte das
oferendas que não era necessária para o Sacrifício, tinha como fim a manutenção
do Clero, das viúvas, dos órfãos e dos pobres. Os primeiros rituais manuscritos a
partir do séc. VIII assinalam uma oração que o Presbítero recitava ao colocar o Pão
na Patena e uma outra para a Incensação dos Dons, isto é, quando o Presbítero
cobria a Patena e o Cálice com os Véus litúrgicos. Todavia, todas estas fórmulas
são breves.
Depois do séc. XI coexistem duas tendências: uma moderada, que mantém
os ritos da Protése em “limites aceitáveis” e uma outra que favorece uma “extensão
desmesurável” com a introdução das Comemorações, a multiplicidade de Prósforas
e o alongamento das fórmulas.
O ritual da Prótese, que é hoje de nós conhecido, é praticamente o mesmo
que, na segunda metade do séc. IX foi fixado por uma Constituição de Filoteu,
Patriarca de Constantinopla. Afirmamos ser sensivelmente o mesmo não obstante
haverem sido introduzidas algumas variantes até ao séc. XII – XIII.
A Prósfora – Pão da Oblação – contém impresso, no centro, o seguinte Sêlo,
cujas abreviaturas significam: Jesus Cristo vence!

206
O Presbítero imola o Cordeiro, ou seja, corta com uma lança a Partícula
principal, de forma cúbica, que representa Cristo, recitando simultaneamente
algumas profecias alusivas à Paixão: “Como um Cordeiro foi conduzido ao
matadouro; e como a ovelha, perante os tosquiadores, Ele não abriu a boca. Por um
iníquo julgamento foi condenado. Quem pensou em defender a sua causa? A Sua
vida foi arrebatada da terra” (9-33).
Depois de o Diácono derramar vinho e água no Cálice (10-34), o Presbítero
pega numa segunda Prósfora, de que extrai uma partícula triangular em Honra da
Mãe de Deus e que coloca na Patena à direita do Cordeiro, dizendo, ao mesmo
tempo: “À Tua direita estava a Rainha, ornada de finíssimo ouro de Ofir” (11-35).
Logo depois, extrai de uma terceira Prósfora, à medida que vai fazendo a
comemoração dos Santos, nove partículas triangulares, de tamanho um pouco mais
reduzido e que coloca na Patena, dispondo-as em três filas verticais, à esquerda do
Cordeiro (12-36).
De uma quarta Prósfora extrai, em seguida, as partículas pelos Vivos (13-37),
partículas que coloca longitudinalmente na Patena, abaixo do Cordeiro.
Por último, de uma quinta Prósfora, extrai as Partículas pelos Defuntos (14-
38). Encontra-se, assim, simbolicamente representada sobre a Patena, em torno do
Cordeiro, toda a Santa Igreja Católica, Apostólica e Ortodoxa.
Transportando-se, em pensamento, ao tempo do Nascimento de Cristo, como
os Pastores, o Presbítero inclina-se, então, diante do Filho de Deus e, como os Reis
Magos, ele oferece o Incenso (15-39).

207
ANGEOLOGIA – 2º. ANO

“HIERARQUIA CELESTE” - de S. Dinis, o Areopagita

Introdução

O objetivo do presente trabalho consiste na apresentação da “Hierarquia


Celeste” de S. Dinis, o Areopagita, obra de referência obrigatória no estudo da
Angeologia.
A apresentação tem por base o texto publicado nas “Oeuvres Complètes du
Pseudo-Denys l’Areopagite”, traduzido para o francês, anotado e comentado por
Maurice de Gandillac, numa edição apresentada em 1980 pela editora Aubier na
sua coleção “Bibliothèque Philosophique”. Importa advertir, desde já, que o texto
aqui exposto não corresponde a uma tradução rigorosa e integral da referida obra
para o português. Pretendeu-se tão somente proporcionar uma abordagem
relativamente facilitada a um texto que nada tem de fácil nem no seu estilo nem no
seu conteúdo.
S. Dinis, o Areopagita foi discípulo de S. Paulo e iniciado por ele no
conhecimento dos mistérios divinos. Encontramos uma referência a respeito dele
nos “Atos dos Apóstolos”: “E assim Paulo saiu do meio deles. Todavia, chegando
alguns varões a ele, creram, entre os quais foi Dionísio, Areopagita (...)” At. 17, 33-
34. Terá sido o primeiro ateniense convertido por S. Paulo e foi o primeiro bispo de
Atenas. A sua obra teve grande impacto em toda a Igreja, sobretudo após a sua
divulgação que se iniciou pelo século V. Na sua teologia transparece uma forte
formação filosófica imbuída do pensamento neoplatônico.
Os textos de S. Dinis conhecidos no nosso tempo são os seguintes:
“Hierarquia Celeste”, “Hierarquia Eclesiástica”, “Os Nomes de Deus”, “Teologia
Mística” e 10 cartas.
A crítica histórica quer a que procura examinar as evidências externas, como
a que se dedica à investigação do próprio texto, afirma que as obras não pertencem
a S. Dinis, mas a um autor desconhecido do século IV ou V. Esse hipotético autor é
designado por uns como pseudo-Dinis, o Areopagita e outros lhe chamam Dinis, o
pseudo-Areopagita. Afirmam uns e outros que somente no ano de 533, num concílio
realizado em Constantinopla, os textos de S. Dinis – o chamado “Corpus
dionysiacum” – fazem a sua aparição na história.

208
É claro que os críticos, para fazerem valer as suas teses, têm de contradizer
S. Gregório de Nazianzo, S. Jerônimo, Orígenes, S. Máximo, o Confessor, Liberatus
de Cartago, além de muitos outros autores.
É sabido que existiram doutrinas e costumes elaborados e mantidos
secretamente desde os tempos de S. Paulo, pois S. Basílio, o Grande e Tertuliano
referiram-se a alguns deles. É ainda possível admitir a existência de interpolações
posteriores. Mas a conjunção destes dois fatores era pouco grata aos defensores de
ambas as teses.
De qualquer modo e para lá desta polêmica, os textos afirmam-se de modo
especial em virtude do seu valor interno. Foram sempre cristãos ortodoxos os que
os invocaram em virtude da sua retidão dogmática, solidez filosófica e profundidade
espiritual. Entre eles destacam-se S. Máximo, o Confessor, S. João Damasceno, S.
Teodoro, o Estudita, S. Simeão, o Novo Teólogo e S. Gregório Palamas. Entre
outros aprofundamentos teológicos, podemos citar a teologia apofática como aquela
que tem em S. Dinis, Areopagita o seu propositor.
Os seus textos difundiram-se largamente tanto no ocidente como no oriente
cristão. S. Máximo, o Confessor (580-662) impõe-nos definitivamente no seio da
tradição oriental. Até S. Gregório Palamas e mesmo para lá dele, S. Dinis é
considerado como o verdadeiro inspirador de toda a mística. No ocidente foi
necessário esperar mais dois séculos para que a importância do “Corpus” se
impusesse através do entusiasmo por ele demonstrado por João Scot.
A “Hierarquia Celeste” é constituída por 15 capítulos ao longo dos quais S.
Dinis nos fala da iluminação divina, da relação entre os símbolos, alegorias e os
mistérios divinos a eles associados, da função hierárquica, do significado do nome
dos anjos, da composição das três grandes ordens angélicas, e das imagens
utilizadas para a representação dos seres angélicos. Mas para conhecer a obra,
nada melhor do que mergulhar no próprio texto.
Pe. Sérgio

A Luz irradia do Pai. A Luz sai d’Ele para nos iluminar com os seus dons
excelentes. Apenas ela nos restabelece e nos eleva. É ela que nos converte à
unidade do Pai. Porque segundo a santa palavra, “dele e por ele e para ele são
todas as coisas” (Rm 11, 36). “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto
descendo do Pai das Luzes” (Tg 1,17).
É por isso que, invocando Jesus, Luz do Pai, “a luz verdadeira que ilumina
todo o homem que vem ao mundo” (Jo 1, 9), pelo qual recebemos acesso ao Pai,
princípio de toda a luz, elevemos os olhos, tanto quanto podemos até essas
iluminações provenientes das Sagradas Escrituras e iniciemo-nos, na medida das
nossas forças, no conhecimento da hierarquia das inteligências celestes tal como
no-las revelam as próprias Escrituras.
Os santos que primitivamente regularam os nossos ritos, organizaram a
nossa hierarquia sagrada segundo o modelo das hierarquias celestes. Estas
hierarquias encontram-se revestidas, na sua descrição, duma variedade de figuras e
formas materiais para que elevemos a nossa compreensão de forma analógica,
desses símbolos às realidades espirituais das quais esses símbolos são apenas
imagens.
De fato, é impossível para nós a contemplação das hierarquias celestes sem,
para isso, utilizarmos meios materiais adequados à nossa natureza, para nos
guiarmos nessa contemplação. A beleza manifesta-se na harmonia das figuras, os
aromas agradáveis representam a iluminação intelectual, a luz material representa a
efusão de luz imaterial, a recepção da Santa Eucaristia manifesta a participação em
Jesus.

209
A nossa própria hierarquia imita a hierarquia celeste tanto quanto isso é
possível enquanto instituição humana, a fim de que ela entre em colegialidade com
o sacerdócio angélico.
II
É necessário que elevemos a nossa compreensão a partir das alegorias com
as quais as inteligências celestes nos são representadas nas Sagradas Escrituras,
para não pensarmos, como o faria qualquer pessoa desprevenida, que as
inteligências celestes têm vários pés e vários rostos, que se assemelham a gado,
como os bois, que apresentam o aspecto selvagem do leão ou o bico curvo da
águia, ou ainda que possuem asas e penas tal como as aves. Nem os imaginamos
como rodas inflamadas girando no céu, como cavalos ou como guerreiros armados
de lanças, nem sob qualquer das outras formas que a Sagrada Escritura nos
transmite através de uma variedade de símbolos reveladores.
Se os teólogos aplicaram esta imaginação poética às inteligências celestes,
foi porque tiveram em conta o caráter humano da nossa inteligência, para nos
proporcionar um meio de elevação espiritual adaptado à nossa natureza.
Se aceitarmos estas alegorias como figurações de realidades que não
podemos conhecer nem contemplar, julgar-se-á que as imagens usadas pelas
Sagradas Escrituras para representar as inteligências celestes, são inadequadas ao
seu objetivo, que os nomes atribuídos aos anjos não correspondem senão muito
parcialmente às realidades que sugerem. Objetar-se-á que para materializar os
anjos os teólogos deveriam ter utilizado imagens tanto quanto possível adequadas
ao seu objeto, utilizando substâncias que consideramos como sendo as mais
nobres, em lugar de aplicar a essas realidades uma multiplicidade de figuras
retiradas do que poderá ser considerado como pertencendo às mais baixas
realidades terrestres. Assim, a alegoria seria mais rica de ensinamentos espirituais
e não nos arriscaríamos a ultrajar as potências divinas. Não seremos levados a
imaginar, com efeito, que o céu está cheio de rebanhos de leões, manadas de
cavalos, bandos de pássaros e de outros animais, com essas alegorias
inadequadas?
Mas se procurarmos a verdade será claro para nós que os autores Sagrados
tiveram o cuidado providencial de simultaneamente dar expressão contida a tudo
isso que os nossos contraditores consideram um ultraje às potências divinas e de
nos pouparem aos riscos de uma ligação excessiva a tudo o que os tais símbolos
podem ter de baixo e vulgar.
Se, é necessário dar figura ao infigurável, dar forma ao que é sem forma, isso
não é somente porque somos incapazes de contemplar diretamente essas
realidades, mas porque convém às passagens místicas da Escritura, ocultar sob a
forma de enigmas a santa e misteriosa unidade dessas inteligências que não
pertencem a este mundo. Porque nem todos são santos e, como diz a Escritura,
“Nem em todos há conhecimento” (I Co 8, 7).
Quanto ao caráter inadequado das imagens escriturísticas é necessário
responder a esta objeção afirmando que a revelação do sagrado se faz segundo
dois modos:
O primeiro modo procede por imagens adequadas ao seu objeto.
O segundo modo passa, pelo contrário, pela inadequação das imagens que
modela levada até à extrema inverosimilhança, até ao absurdo. É por isso que nas
escrituras se refere à Trindade sobre-essencial sob os nomes de Razão,
Inteligência, Essência, manifestando assim o que convém atribuir a Deus de
racionalidade e sabedoria; designando-a como Substância que subsiste por si
própria, como causa verdadeira da existência de todos os seres, ou ainda como Luz
e Vida.

210
Estas designações são seguramente mais santas e parecem de algum modo
superiores às imagens materiais. Mas na realidade, elas não são menos deficientes
que as outras se se pretender significar toda a Verdade da própria Divindade, que
está para lá de toda a essência e de toda a vida, que não se caracteriza por
nenhuma luz, da qual nenhuma razão nem nenhuma inteligência podem dar uma
imagem autêntica.
É por isso que acontece também nas mesmas escrituras celebrar a Trindade
representando-A de um modo que não é deste mundo, por imagens que não se lhe
assemelham de modo algum. Elas descrevem-Na como invisível, ilimitada,
incompreensível, não procurando significar o que Ela é, mas o que não é.
A meu ver, esta segunda maneira de celebrar a Trindade Santíssima
convém-Lhe mais, porque seguindo a Tradição sagrada nós temos razão em dizer
que Ela não é nada do que são os outros seres e nós ignoramos essa indefinível
Sobre-essência que não se pode pensar nem dizer.
Temos assim que as negações são verdadeiras no que concerne aos
mistérios divinos, enquanto que toda a afirmação pela positiva permanece
inadequada. Convém mais ao caráter secreto d’Aquele que permanece em si
próprio indizível não revelar o invisível a não ser através de imagens sem
semelhança com o seu objeto.
(S. Dinis introduz-nos nos dois métodos teológicos: o afirmativo ou Catafático
e o negativo ou Apofático. O primeiro, que S. Dinis considera menos adequado,
refere-se a Deus através de afirmações, como seja, por exemplo, as de que Deus é
Amor, Verdade, Mestre, Senhor, Pai, Todo-poderoso, Santo, Eterno, etc. O método
Apofático, proposto por S. Dinis, procede pela negativa, pois como também nos diz
S. João Crisóstomo, o reconhecimento da incompreensibilidade de Deus é a única
maneira de o compreender. Refere-se a Deus como sendo inacessível, inexprimível,
invisível, incompreensível, imutável, etc.).
Portanto, longe de aviltar as legiões celestes, as alegorias honram-nas
porque mostram até que ponto essas legiões, que não pertencem a este mundo,
excluem toda a materialidade.
(Teremos que entender este termo “materialidade” como empregue para
designar uma materialidade terrena. De fato, só Deus é espírito puro e toda as
criaturas, mesmo as criaturas angélicas, são dotadas de alguma materialidade).
A utilização de figuras sagradas de natureza mais elevada induziriam mais
facilmente em erro, porque elas levar-nos-iam a imaginar as essências celestes
como figuras de ouro ou como seres luminosos lançando raios, seres de bela
estatura, revestidos de suntuosas vestes repletas de esplendor ou sob todas as
outras formas do mesmo gênero de que a teologia fez uso para representar as
inteligências celestes.
“e aquele que falava comigo tinha uma cana de ouro, para medir a cidade”
(Ap 21,15)
“enquanto Ele subia, eis que junto deles se puseram dois varões, vestidos de
branco” (At 1,10)
“então todos os que estavam assentados no conselho viram o seu rosto
como o rosto de um anjo” (At 6,15)
“apareceram-lhe o anjo do Senhor no deserto do Monte Sinai, numa chama
de fogo de um sarçal” (At 7,30)
“Porque um anjo do Senhor, descendo do Céu, chegou removendo a pedra e
sentou-se sobre ela e o seu aspecto era como um relâmpago, e o seu vestido
branco como neve” (Mt 28, 3)
Não importa qual imagem pode servir de ponto de partida para a bela
contemplação e podemo-nos apoiar em figurações materiais para aplicar a esses
seres que são inteligíveis e inteligentes as metáforas sem semelhança com o objeto,

211
de que falamos atrás. Mas na condição de nunca esquecermos a grande diferença
existente entre o comportamento dos seres inteligentes e o comportamento dos
seres sensíveis (estes são privados de razão).
As alegorias sagradas são usadas pelos teólogos não somente para revelar
as ordens celestes, mas também para manifestar os mistérios de Deus. Ainda que a
Ele se refiram fazendo apelo às mais belas imagens: Sol de Justiça (Mt 4, 2);
Estrela da Manhã (Ap 22, 16; Nm 24, 17; II Pe 1, 19), Luz Radiante (Jo 1, 5), assim
como fizeram igualmente apelo a símbolos de nível mediano, tais como: Fogo que
queima sem ferir (Êx 3, 2) e Água que conduz à plenitude da vida (Jo 8, 38) e
também recorrendo a metáforas vulgares, quando se fala, por exemplo, de
Ungüento suave (Ct 1,2) e Pedra Angular (Ef 2, 20). A Sagrada Escritura faz ainda
uso de figuras animais quando atribui a Deus qualidades de leão e da pantera ou
quando O apresenta como um leopardo ou um urso que perdeu os seus filhos (Os
13, 7).
Finalmente, a metáfora mais indigna de todas e que parece ser a mais
inadequada: com efeito, não foi sob a forma de um vaso de terra que os admiráveis
intérpretes dos mistérios divinos nos representaram?
Por tudo isto se vê que nada há de absurdo quando os teólogos representam
igualmente as essências celestes por imagens inadequadas que não apresentam
nenhuma similitude com o seu modelo original. Talvez nós próprios não tivéssemos
procurado a exegese espiritual dessas santas realidades se não nos tivéssemos
perturbado pelo caráter disforme das imagens que na escritura representam os
anjos.

III
Hierarquia é uma santa ordem, um saber e uma ação tão próximos quanto
possível da forma divina, elevada à imitação de Deus na medida das iluminações
divinas. Na sua simplicidade, na sua bondade, na sua perfeição fundamental, na
perfeição que convém a Deus, comunica a cada ser, segundo o seu mérito, uma
parte da sua própria luz. Ela o aperfeiçoa através da iniciação divina, revestido da
sua própria forma, de modo harmonioso e estável aqueles que ela aperfeiçoou.
A finalidade da hierarquia consiste, pois em conferir às criaturas, tanto quanto
possível, a semelhança divina para as unir a Deus. Deus é para ela, com efeito, o
mestre de todo o conhecimento e de toda a ação. Ela não cessa de contemplar a
sua divina bondade e dos seus seguidores ela faz imagens perfeitas de Deus.
Tendo recebido a plenitude do seu esplendor são em seguida capazes, seguindo
os preceitos da Trindade, de transmitir essa luz mesmo aos seres que lhe são
hierarquicamente inferiores.
Assim, quem fala de hierarquia entende por isso uma certa ordenação
perfeitamente santa, imagem do esplendor divino, tendendo tanto quanto possível e
sem sacrilégio, a assemelhar-se àquele que é o seu próprio princípio. Para cada
um dos membros da hierarquia a perfeição consiste em imitar Deus tanto quanto
possível, tornando-se “cooperadores” de Deus.
“nós somos cooperadores de Deus” I Co 3, 9.
Se, por exemplo, a ordem hierárquica impõe a uns a função de receber a
purificação e, a outros a de purificar; a uns a de receber a iluminação e a outros a
de iluminar; a uns de receber o aperfeiçoamento e a outros a de aperfeiçoar; cada
um imitará Deus segundo o modo que convém à sua própria função.
Convém que os purificados se libertem de toda a impureza, de toda a
dessemelhança; que os iluminados recebam a plenitude da luz divina, que elevem
a sua inteligência até atingirem a capacidade de contemplar; que os perfeitos
tenham abandonado toda a imperfeição e tomem parte da perfeição dos iniciados;
que os purificadores comuniquem aos outros uma parte da sua própria castidade;

212
que os iluminadores, inteligências mais transparentes que as outras, difundam essa
luz por todo o lado e por todos aqueles que disso forem dignos.
Assim, cada escalão da ordem hierárquica eleva-se até à cooperação divina,
na medida das suas forças, cumprindo sob a ação da Graça e na virtude, o que a
Divindade cumpre ela própria graças ao seu caráter sobre-essencial e que, à sua
volta, a hierarquia revela às inteligências que amam a Deus.

IV
Antes de mais afirmamos em primeiro lugar que foi por bondade que a
Divindade criou, porque a Ela pertence, a esse Dom totalmente transcendente,
chamar os seres a entrar em comunhão com Ela, na medida do que cada um é
capaz. É por isso que nada existe que não tenha alguma relação com a Divindade,
a Causa Universal. Porque sem essa participação n’Aquela que é a essência e o
princípio de todo o ser, nada existiria.
É, portanto, a esses que recebem de forma inicial e múltipla a participação
divina e que revelam ao seu redor, de modo original e múltiplo, o mistério da
Divindade, que é atribuído de forma meritória e eminente o título de seres angélicos
– pois que receberam em primeiro lugar a iluminação e é por seu intermédio que se
transmitem até nós essas revelações que nos ultrapassam. Como ensina a
Teologia, a Lei foi-nos transmitida por anjos.
“Logo, para que é a Lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até
que viesse a posteridade, a quem a promessa tinha sido feita; e foi posta
pelos anjos na mão de um medianeiro” (Gl 3, 19)
Tanto nos tempos que precederam a Lei, como no tempo da Lei, foram os
anjos que guiaram os nossos veneráveis antepassados em direção às realidades
divinas, tanto na prescrição de regras de conduta e desviando-os de uma vida
repleta de erros e de pecados, como na revelação da interpretação da santa
hierarquia, das visões secretas dos mistérios que não são deste mundo ou ainda
das profecias divinas.
“Vós, que recebestes a lei por ordenação dos anjos, e não a guardastes” At 7,
53.
“Este, quase à hora nona do dia viu claramente, numa visão, um anjo de Deus,
que se dirigia para ele e dizia: Cornélio” At 10, 3.
Se alguém argumentar que Deus se manifestou Ele próprio, e sem
intermediários, a alguns santos, que esse saiba, porque essa verdade provém
claramente das Sagradas Escrituras, que a própria substância de Deus, naquilo
que tem de mais secreto, nunca ninguém a viu nem a verá jamais.
“Deus nunca foi visto por alguém; o Filho unigênito, que está no seio do Pai,
esse o fez conhecer” Jo 1, 18;
“Aquele que tem, ele só, a imortalidade e habita na luz inacessível, a quem
nenhum dos homens viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder
sempiterno. Amém” I Tm 6, 16.
Seguramente, Deus apareceu a certos homens piedosos segundo o modo
que convinha à sua divindade, revelando-se por visões adaptadas à medida dos
visionários. A santa teologia tem, pois, razão ao chamar visão divina – Teofania – a
essa espécie de aparições nas quais se reflete a similitude divina segundo o modo
que convém à figuração do infigurável, isto é, elevando espiritualmente os
visionários para as realidades divinas. Com efeito, através dessa visão, os
visionários recebem a plenitude da iluminação divina e uma certa iniciação sagrada
em relação aos mistérios de Deus. Mas os nossos ilustres antepassados não foram
iniciados através dessas visões, senão por intermédio das potências celestes.
Objetar-se-á que a tradição escriturística afirma que os mandamentos da Lei
foram transmitidos diretamente por Deus a Moisés. Certamente! Mas, se a escritura

213
se exprime assim, é para que não possamos ignorar que essas prescrições são a
própria imagem da Lei divina e sagrada. A Teologia ensina, sabiamente, que essas
prescrições vieram até nós por intermédio dos anjos para que a ordem instituída
pelo divino legislador nos ensine que é por intermédio de seres hierarquicamente
superiores que os que lhe são inferiores se elevam espiritualmente para o Divino.
“Se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda a transgressão e
desobediência recebeu a justa retribuição” Hb 2, 2.
Mesmo no que concerne ao mistério divino do amor de Jesus pelos homens,
foram os anjos que em primeiro lugar receberam a iniciação. E foi por seu
intermédio que esse conhecimento desceu até nós.
Foi assim que o divino Gabriel ensinou ao grande sacerdote Zacarias que o
filho que iria ter, contra toda a esperança e por graça de Deus, seria o profeta da
obra divino-humana que Jesus iria operar para bem do mundo e para sua salvação.
É igualmente Gabriel a ensinar a Maria que nela se cumpriria o mistério da
Encarnação. Um outro anjo instruía José sobre a verdade dos acontecimentos e
sobre o cumprimento das promessas divinas feitas a David. Um outro, ainda,
difunde a boa nova aos pastores, de algum modo purificados pela vida tranqüila
que levavam, afastados das multidões, ao mesmo tempo em que os exércitos
celestes transmitiam a toda a terra o célebre cântico de glorificação “Glória a Deus
nas alturas, paz na terra aos homens a Quem Ele ama”.
Foi por intermédio dos anjos que José foi avisado de que deveria partir para o
Egito. E de novo assim foi para o regresso à Judéia. E não nos falou Jesus como
um mensageiro quando nos comunicava a vontade do Pai?
V
Importa agora procurar qual a razão pela qual os teólogos chamam anjos a
todas as essências celestes, indistintamente, enquanto que reservam o termo
angélico mais propriamente à ordem mais baixa, que é subordinada às legiões dos
Arcanjos, dos Principados, das Potestades, das Dominações e, em geral, essas
essências que a tradição revela e as Escrituras reconhecem como superiores.
Ora, nós afirmamos que em toda a ordenação sagrada, as ordens superiores
possuem todas iluminações das ordens inferiores, sem que estas últimas
participem nos privilégios das que lhes são superiores. É por isso que os teólogos
chamam anjos aos escalões mais altos e mais santos das essências celestes,
enquanto reveladores da iluminação divina.
Quando nos referimos à ordem inferior não seria adequado designar os seus
membros por Principados, Tronos ou Serafins, porque não participam de modo
algum nas capacidades das essências celestes que têm um nível superior.
Podemos ainda afirmar que se todos os anjos recebem um nome comum, isso
sucede também pelo fato das potências celestes possuírem em comum o poder de
permanecerem em harmonia com Deus e de entrarem em comunhão com a luz que
vem de Deus.

VI
Quais são e quantas são as ordens desses seres que vivem no Céu? Como é
que cada hierarquia recebe a sua consagração ou o seu aperfeiçoamento? Afirmo
que apenas o Princípio Divino poderia responder exatamente a essas questões.
Mas os seres angélicos não ignoram nem as qualidades que lhes são próprias nem
a hierarquia sagrada que os rege e que não pertence a este mundo.
É-nos impossível conhecer os segredos das inteligências que vivem no céu,
a menos que Deus no-las revele por intermédio dessas mesmas inteligências que
não ignoram a sua própria natureza. Portanto, não avançaremos nada da nossa
própria autoria e contentar-nos-emos em expor, na medida das nossas forças,

214
essas visões angélicas tal como os santos teólogos as contemplam e tal como no-
las revelaram.
Os seres angélicos dividem-se em três ordens e têm nove nomes.
A primeira ordem rodeia Deus de modo permanente e está unida a Ele
constantemente, primeiro que todas as outras e sem qualquer mediação: são os
Tronos santíssimos e esses batalhões notáveis pelo número dos olhos e das asas
dos seus membros, que recebem o nome de Querubins e Serafins. Têm uma
proximidade de Deus superior à de todos os outros. Esta ordem a três batalhões
forma uma só e primeira hierarquia de nível igual.
A segunda ordem compõe-se de Virtudes, Dominações e Potestades.
A Terceira constitui a última hierarquia celeste. É a ordem dos Anjos,
Arcanjos e Principados.
VII
Todos os nomes atribuídos às inteligências celestes designam capacidades
para receberem a semelhança divina. (Nome, natureza e função).
Em hebraico Querubim significa “aquele que arde”. Querubim significa
também “massa de conhecimento, efusão de sabedoria”.
A primeira hierarquia é a mais sublime de todas e, graças à sua proximidade,
recebe primeiro que todas as outras as aparições de Deus e os seus nomes
revelam o modo como se ligam a Deus.
O movimento perpétuo em torno dos segredos divinos, o calor, a
profundidade, o ardor dum constante movimento que não conhece diminuição, o
poder de elevar eficazmente à sua semelhança os que lhe são inferiores,
comunicando-lhes o mesmo ardor, a mesma chama e o mesmo calor, o poder de
purificar, a evidente e indestrutível aptidão para conservar a sua própria luz e o seu
poder de iluminação, a faculdade de abolir toda a treva, tais são as propriedades
dos Serafins.
O nome dos Querubins designa a aptidão a conhecer e a contemplar Deus, a
receber os mais altos dons da Sua Luz, a contemplar na sua potência primordial o
esplendor divino, a acolher em si a plenitude dos dons que transmitem sabedoria e
a comunicá-los, em seguida, às essências inferiores graças à efusão da própria
Sabedoria que lhes foi transmitida.
Quanto ao nome dos Tronos, sublimes e luminosos, ele indica a ausência
total de qualquer concessão aos bens inferiores e a tendência contínua para os
cumes, que sublinha bem o fato de eles nada terem em comum com o que lhes
está abaixo, a sua indefectível aversão a toda a baixeza, a tensão de todas as suas
capacidades para se manter em constante e firmemente perto do Altíssimo, a
capacidade de receber impassivelmente todas as visitações da Divindade, o
privilégio que têm de servir de assento a Deus e o seu zelo em se abrirem aos dons
de Deus.
Esta é a explicação dos seus nomes, na medida do que é possível revelar
aos homens.
Resta-nos dizer que o que entendemos pela sua hierarquia. Que o objeto de
toda a hierarquia seja o de imitar constantemente Deus, que toda a função
hierárquica consiste em acolher e transmitir a pureza sem mistura da luz divina e da
sabedoria, penso que já o dissemos. Por agora, proponho-me mostrar o que as
escrituras revelam da sua hierarquia.
Estes seres angélicos constituem uma só hierarquia inteiramente
homogênea. Devemos pensar que eles são puros não apenas porque estão livres
de todo o pecado e de tudo o que é profano, mas porque ignoram toda a
imaginação material, porque estão acima de toda a fraqueza, porque a sua sublime
pureza ultrapassa a de quaisquer outras inteligências angélicas, porque conservam

215
sem qualquer perda ou corrupção a estabilidade perpétua do poder que possuem
de estarem em harmonia com Deus.
São igualmente contemplativos. Não porque contemplem intelectualmente
símbolos nem porque se elevem espiritualmente através de santas alegorias, mas
porque recebem em toda a plenitude o saber de uma luz superior através da
contemplação desse Ser Sobre-essencial e triplamente luminoso que está na
origem e no princípio de toda a beleza. Têm igualmente o mérito de entrar em
comunhão com Cristo através de uma verdadeira proximidade, pois tomam parte no
conhecimento das suas operações divinas, uma vez que lhes foi dada ao mais alto
grau a capacidade de imitar Deus. Entram em contato, tanto quanto lhes é possível,
com as virtudes pelas quais Ele exerce a sua ação divina face aos homens e
manifesta o Seu amor por eles.
São perfeitos, não pela iluminação de uma sabedoria que lhes permitiria
analisar a variedade dos santos mistérios, mas pela plenitude duma deificação, pela
ciência superior que possuem, na qualidade de mensageiros das operações divinas.
É diretamente de Deus que recebem a iniciação sagrada e é graças a esse poder
de se elevarem diretamente até Deus que eles devem a superioridade sobre todos
os outros seres.
Os teólogos mostram claramente que as ordens inferiores das essências
celestes aprendem dos seus superiores tudo o que concerne às operações divinas
enquanto que a ordem mais elevada é iniciada por Deus. Eles revelam-nos que
certos anjos são iniciados por aqueles que possuem um nível mais elevado que o
seu, e que aprendem através destes que Deus é o Senhor das potências celestes, o
Rei da glória que sob a forma humana sobe aos céus. Outros recebem de Jesus
Cristo a sua iniciação, sem intermediários, recebendo d’Ele antes de todos os
outros, a revelação da obra redentora que Ele levou a cabo por amor dos homens.
“Porque Sou Eu quem notifica, pelo meu Verbo a justiça e o julgamento da
salvação” Is 63, 1.
Assim é, tanto quanto eu posso conhecer, esta primeira ordem das essências
celestes, a que rodeia Deus e se situa na sua vizinhança, a que envolve o seu
perpétuo conhecimento. Pode não somente contemplar, mas ainda receber
iluminações e sustentar-se do maná divino.
Digna ao mais alto nível, de entrar em comunhão e em cooperação com
Deus, esta primeira ordem assemelha-se tanto quanto pode à bondade dos poderes
e das operações próprias a Deus.
É por isso que a teologia nos transmite os hinos que cantam estes anjos,
onde se manifesta o caráter transcendente da sua sublime iluminação. Se ousarmos
utilizar uma imagem terrena, assemelham-se à voz de uma torrente tempestuosa,
quando gritam: “Bendita seja a glória do Senhor, desde o seu lugar” Ez 3, 12.
Outros entoam o hino célebre e venerável: “Santo, Santo, Santo é o Senhor
dos Exércitos (Senhor Sabaoth): Toda a terra está cheia da sua glória” Is 6, 3.
Eles são os lugares divinos onde, segundo a expressão das Escrituras, a
Divindade “repousa”. Esta primeira ordem ensina também aos outros anjos que a
Divindade é Una. Una em três pessoas e que Ela exerce a sua Providência
benfeitora desde as essências que vivem no céu até às mais baixas criaturas
terrenas, porque Ela é o Princípio e Causa de toda a essência e é Ela que envolve o
universo de modo sobre-essencial num abraço irresistível.
VIII
Abordamos agora a ordem média das inteligências celestes, iniciando-nos no
conhecimento das Dominações , Virtudes e Potestades.
Cada uma destas denominações revela a forma própria de cada inteligência
angélica imitar e se conformar a Deus.

216
É assim que o nome das santas Dominações significa uma elevação
espiritual livre de qualquer compromisso terreno tal como convém a uma entidade
incorruptível e verdadeiramente livre, tendendo com um firme vigor para o
verdadeiro Princípio de toda a Dominação, recebendo ela e os seus subordinados,
à medida das suas forças, a semelhança do Senhor e participando do Princípio
constante e divino de toda a Dominação.
No que concerne às santas Potestades, o seu nome indica uma certa
virilidade corajosa em todos os atos pelos quais se conformam a Deus. Virilidade
que exclui qualquer lassidão na recepção das iluminações divinas que lhe são
outorgadas, que se eleva corajosamente até à imitação de Deus, que não
abandona a ascensão para a forma divina, cujo olhar permanece inflexivelmente
virado para a fonte de toda a potestade sobre-essencial. Porque essa virilidade
torna-se imagem da potestade da Qual ela assume a forma, ligando-se a ela com
todas as suas forças para fazer descer sobre as essências inferiores o seu
processo dinâmico deificante.
O nome das Virtudes indica que elas têm o nível igual ao das Dominações e
Potestades. Elas são dispostas harmoniosamente e sem confusão para receberem
os dons divinos. Indica ainda que o poder intelectual que lhes pertence é
perfeitamente ordenado, que longe de abusarem dos seus poderes se elevam
harmoniosamente para as realidades divinas, conduzindo na sua bondade as
essências inferiores, imitando tanto quanto podem a virtude fundamental que é a
fonte de toda a virtude, sem cessarem de a difundir na medida das suas
capacidades.
Eis como a segunda hierarquia das inteligências celestes manifesta a sua
conformidade com Deus. É assim que ela se purifica, que ela se ilumina e se
aperfeiçoa, graças às iluminações divinas que lhes transmitem os membros da
primeira ordem hierárquica.
Essa tradição que se transmite regularmente de anjo em anjo simbolizará
para nós essa perfeição que, vinda de longe, se obscurece descendo
progressivamente do primeiro ao segundo nível. Do mesmo modo as evidentes
perfeições das realidades divinas são mais perfeitas que as participações nas
visões divinas, que se fazem através de intermediários. Assim, parece-me que a
participação imediata das ordens angélicas que mais se aproximam de Deus é mais
clara que a dos anjos cuja iniciação é mediata. É por isso que, segundo os termos
consagrados pela nossa tradição, as primeiras inteligências iluminam e purificam as
que têm um nível (hierárquico) inferior de modo que estas últimas, elevadas por seu
intermédio até ao princípio Universal e Sobre-essêncial, tomem parte, tanto quanto
lhes é possível, nas iluminações e nos aperfeiçoamentos operado por Aquele que é
o princípio de toda a perfeição.
É instituída pelo Princípio Divino a lei universal pela qual as essências
celestes do segundo nível participam por intermédio das do primeiro nível nas
iluminações divinas.
Deste modo e logo que Deus, no seu amor paternal pelos homens, depois de
ter corrigido Israel para o converter e o reconduzir ao caminho da salvação, o livrou
em primeiro lugar da sua entrega à barbárie vingativa das nações, a fim de
assegurar o aperfeiçoamento dos homens submetidos à sua Providência, praticou
em seguida o ato de o libertar da sua atividade e de o devolver à sua antiga
felicidade. Ora, segundo a visão de um dos seus teólogos, Zacarias (Zc 1, 8-17)
parece ter sido um anjo dos da primeira ordem e daqueles que vivem junto de Deus
que recebeu do próprio Deus, como diz a Escritura, as palavras consoladoras e é
um outro anjo pertencente aos níveis inferiores que foi enviado ao encontro do
primeiro para receber e para transmitir a sua iluminação e que, uma vez iniciado na
vontade divina, confia por seu lado ao teólogo a santa nova de que Jerusalém

217
refloresceria e que multidões de homens a repovoariam. Um outro teólogo,
Ezequiel, declara que esta lei foi santamente instituída por Deus que na Sua glória
mais elevada que qualquer outra, comanda os querubins.
“Estes são os animais que vi debaixo do Deus de Israel, junto ao rio Quebar,
e conheci que eram querubins” Ez 10, 20.
Como disse Deus no seu amor paternal pelos homens e querendo punir
Israel para o ensinar, ordenou por um ato de justiça que os inocentes fossem
separados dos responsáveis. Ora é o primeiro dos querubins que, segundo o texto
sagrado, recebe a santa ordem e se reveste, como símbolo da sua função sagrada,
de um manto que caía até aos pés. Em seguida, somente o Princípio Divino de toda
a ordem prescreve que o segredo da decisão divina seja transmitido pelo primeiro
dos anjos aos outros, àqueles que usam armas destruidoras. É-lhe ainda ordenado
que atravesse toda a cidade de Jerusalém e marque os inocentes nas suas frontes.
Aos outros ordena: “Passai pela cidade, após ele, e feri: não poupe o vosso olho,
nem vos compadeçais. Matai velhos, mancebos e virgens, e meninos e mulheres,
até exterminá-los; mas a todo o homem que tiver o sinal não vos chegueis: e
começai pelo meu santuário. E começaram pelos homens mais velhos que estavam
diante da casa”. Ez 9, 5-6.
E que dizer ainda daquele anjo que anunciou a Daniel: “No princípio das tuas
súplicas, saiu a ordem e eu vim, para to declarar, porque és mui amado: toma pois,
bem sentido da palavra” Dn 9, 23. Ou daquele que recebe o fogo do meio dos
querubins? : “e falou ao homem vestido de linho, dizendo: vai por entre as rodas até
debaixo do querubim e enche as tuas mãos de brasas acesas de entre os
querubins e espalha-as sobre a cidade” Ez 10, 2. Ou, ainda, daquele que
demonstra mais claramente a boa ordem que preside aos anjos: o querubim que
transmite o fogo entre as mãos daquele que estava revestido de linho? (Ex 10, 6-7).
Que dizer, igualmente, daquele que chamou o divino Gabriel e que lhe diz: “E
ouvi uma voz de homem nas margens do Ulai, a qual gritou e disse: Gabriel, dá a
entender a este a visão” Dn 8,16. Ou enfim, de todos os outros exemplos
fornecidos pelos santos teólogos?
IX
Falta-me contemplar a ordem que termina a hierarquia angélica e que se
compõe de Principados, Arcanjos e Anjos. Creio que em primeiro lugar importa
explicar o sentido destes nomes sagrados.
O nome dos Principados celestes significa que eles possuem na ordem
sagrada um princípio e uma hegemonia de forma divina, das potências de comando
da mais alta conveniência, o poder de se converter inteiramente ao Princípio que
está acima de todo o princípio e de conduzir os outros para ele com uma autoridade
primordial, de revelar o Princípio Sobreessêncial de toda a ordem pela harmonia do
seu comando.
Os santos Arcanjos têm o mesmo nível que os principados celestes. Formam
uma única hierarquia juntamente com os Anjos.
A ordem dos Arcanjos, graças ao seu lugar intermédio na hierarquia, participa
nos dois extremos, uma vez que entra em comunhão com os Principados e com os
Anjos. Com uns, no sentido de que ele se converteu ao Princípio Sobreessêncial, e
lhes confere a unidade, graças aos poderes invisíveis da harmonização; com outros
no sentido de que ele também pertence ao nível dos intérpretes, recebendo
hierarquicamente a iluminação por intermédio das potências do primeiro nível,
transmitindo-as aos Anjos e, por intermédio destes, revelando-as a nós próprios na
medida em que cada um de nós possa receber a santa iluminação dos segredos
divinos.
Como já dissemos, os Anjos terminam e completam o dispositivo das
inteligências celestes, porque entre elas são eles que possuem o mais baixo grau

218
da qualidade angélica, e se nós os designamos por anjos é precisamente na
medida pela qual, por seu intermédio, se manifesta a hierarquia mais claramente
aos nossos olhos.
A ordem superior (Tronos, Querubins e Serafins) mais próxima, como já
dissemos, pela sua dignidade, do santuário secreto, inicia misteriosamente a
segunda ordem, aquela que se compõe das Dominações, Potestades e Virtudes,
que por outro lado comanda os Principados, Arcanjos e Anjos. A segunda ordem
revela os mistérios menos secretamente que a primeira hierarquia, mas menos
abertamente que a última. Assim, é à ordem dos Principados, Arcanjos e Anjos que
pertence a função reveladora; é a ela que, através dos graus da sua própria
ordenação, preside às hierarquias humanas, a fim de que se produzam de modo
ordenado a elevação para Deus, a conversão, a comunhão, a união e ao mesmo
tempo o movimento que provém de Deus que gratifica liberalmente todas as
hierarquias dos dons e as ilumina, fazendo-as entrar em comunhão com ela. Daí
resulta que a Teologia reserva aos Anjos o cuidado pela nossa hierarquia,
chamando a Miguel o arconte do povo judeu e a outros anjos arcontes de outras
nações, porque “o Altíssimo estabeleceu as fronteiras das nações segundo o
número dos anjos de Deus” Dt 32, 8 (versão dos 70).
E se nos perguntarmos como é que apenas o povo judeu foi elevado às
iluminações de origem divina? É necessário dizer que os anjos preencheram de
retidão a sua função de vigilância e não é culpa deles se outras nações se
envolveram no culto de falsos deuses. Foram elas, com efeito, que pelo seu próprio
movimento abandonaram a via da ascensão espiritual para o divino. Foi à medida
do seu orgulho e da sua presunção que elas veneraram os ídolos que lhes
pareciam divinos. O povo hebreu testemunha ele próprio esta verdade, pois que lhe
sucedeu o mesmo acidente. Porque, diz a Escritura, “o meu povo foi destruído,
porque lhe faltou o conhecimento; porque tu rejeitaste o conhecimento, também eu
te rejeitarei” Os 4, 6.
Nem a nossa vida é necessariamente determinada, nem a liberdade dos
seres submetidos à Providência das luzes divinas priva essas luzes do seu poder
de iluminação providencial. Mas é a insuficiente assimilação das visões – e da
sabedoria que por elas é transmitida – que suprime toda a participação nos dons
luminosos da bondade paternal e constitui obstáculo à sua difusão, na medida em
que torna as comunicações desiguais, pequenas ou grandes, obscuras ou claras,
enquanto que a fonte radiante permanece única e simples, sempre idêntica a si
própria e superabundante. É assim mesmo entre as outras nações, nações das
quais nós nos elevamos para o oceano indefinido e generoso desta Luz divina que
difunde os seus dons sobre todos os seres. É para o único Princípio universal que
os anjos encarregados de cuidar de cada nação elevaram todos aqueles que os
quiseram seguir.
Lembremo-nos de Melquisedec que teve em si próprio um grande amor a
Deus, mas do Deus Altíssimo e verdadeiro, porque os conhecedores da sabedoria
divina não se contentaram em chamá-lo amigo de Deus, mas chamaram-no
Sacerdote, para indicar claramente aos homens sensatos que o seu papel não foi
somente o de se converter pessoalmente ao culto do verdadeiro Deus, mas ainda,
enquanto grande sacerdote, o de conduzir os outros na ascensão espiritual que
conduz à única e verdadeira divindade.
“e Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho e era sacerdote do Deus
Altíssimo” Gn 14, 18.
O Faraó aprendeu sob a forma de visão de um anjo dedicado ao cuidado dos
Egípcios (Gn 41, 1-7), tal como o príncipe dos Babilônios através do seu anjo
particular (Dn 2), a solicitude do poder universal. Ministros do verdadeiro Deus
foram instituídos como condutores dessas nações para interpretar as visões

219
enviadas por Deus sob a forma alegórica, por intermédio de homens cuja santidade
era próxima da dos anjos, tais como Daniel e José; porque no Universo há um só
Princípio e uma só Providência. Não poderíamos imaginar que Deus partilhasse o
governo do povo judeu com anjos ou falsos deuses. As expressões que o poderiam
fazer crer devem ser interpretadas segundo um sentido sagrado. Elas não
significam que Deus tenha partilhado o governo da humanidade, mas sim que neste
mundo em que a Providência universal do Altíssimo tinha confiado para a salvação
de todos os povos, em anjos encarregados de os conduzir para Ele, só Israel se
converteu à Luz e confessou o verdadeiro Senhor. Por isso, para mostrar que Israel
se tinha devotado ao culto do verdadeiro Deus, a Escritura exprime-se assim:
“porque este povo é a parte do Senhor” (Dt 32, 9). Mas para mostrar que um dos
anjos foi designado para a função de o conduzir à confissão d’Áquele que é o
princípio único e universal, a teologia relata igualmente que Miguel preside ao
governo do povo judeu.
“Eu te declarei o que está escrito na escritura da verdade; e ninguém há que
se esforce contra aqueles, a não ser Miguel vosso príncipe” Dn 10, 21.
Ensina-nos assim, de modo claro, que não existe mais do que uma só
Providência para o universo inteiro. Providência sobreessencialmente
transcendente a toda a potência visível ou invisível. Na medida do possível, todos
os anjos dedicados a cada nação elevam para esta Providência, aqueles que os
seguem de bom grado.
X
Concluamos, portanto, que a ordem mais antiga entre as inteligências que
envolvem Deus, iniciada nos mistérios pelas iluminações que lhe vêem do próprio
Princípio de toda a iluminação, recebe purificação, iluminação e aperfeiçoamento
graças ao dom das iluminações mais secretas da Divindade.
Depois desta e proporcionalmente à sua natureza, vem a segunda ordem e
depois a terceira. Depois da terceira vem a hierarquia humana. Todas as ordens se
elevam hierarquicamente para o Princípio fundamental de toda a harmonia.
Estas ordens são reveladoras e mensageiras das que as precedem. Mas
Deus distinguiu esta ordens segundo os modos de harmoniosa deificação que
convêm em particular a cada uma. Deste modo os teólogos dizem-nos que os
Serafins trocam mútuos clamores mostrando assim, segundo creio, e de modo
claro, que os primeiros transmitem aos segundos conhecimentos teológicos .
“E clamavam uns para os outros, dizendo Santo, Santo, Santo é o Senhor
dos Exércitos” Is. 6, 3.
XI
Uma vez colocadas estas questões convém considerar qual a razão pela qual
nos acostumamos a chamar igualmente “potências celestes” a todas as essências
angélicas. Não se pode dizer como o fizemos para o termo anjo, que a ordem das
santas Potestades é a última das ordens e que as essências superiores participam
na iluminação das ordens inferiores, enquanto que estas últimas não tomam parte
da iluminação das primeiras. Um tal motivo não justificaria a extensão a todas as
inteligências divinas do nome de potestades celestes, para além dos Serafins,
Tronos ou das Dominações, em virtude do princípio segundo o qual as ordens
inferiores não participam nas propriedades das superiores. Restariam os anjos e
antes deles os Arcanjos, os Principados e as Virtudes que os teólogos subordinam
às Potestades e que recebem freqüentemente, na linguagem comum, o nome de
potestades ou potências celestes ao mesmo título que os outros anjos.
Afirmamos, portanto, que ao usar o nome de potestades para designar todas
as essências não introduzimos nenhuma confusão nas propriedades de cada
ordem. No seio de todas as inteligências divinas distinguimos, com efeito, três
qualidades: a essência, a potência e o ato. Ora se nos ocorre designá-las

220
indistintamente por essências ou potências celestes importa considerar que o
fazemos por perífrase e não se trata de atribuir na totalidade às essências
subordinadas a eminente propriedade das santas potestades. Como já foi dito as
ordens superiores possuem as propriedades das ordens inferiores porque somente
uma parte das iluminações primordiais lhes é transmitida pelas ordens superiores, à
medida das suas capacidades.
XII
Vejamos um outro problema que se coloca a quem quer que se envolva na
exegese escriturística: Uma vez que as últimas ordens não participam inteiramente
nas ordens superiores porque é que os grandes sacerdotes da hierarquia humana
recebem, na Escritura, o título de anjos do Senhor Todo Poderoso?

“porque ele (o sacerdote) é o anjo do Senhor dos Exércitos” Ml 2, 7 , Cf Ap


2,1.

Creio que o uso deste termo não contradiz as definições dadas até aqui.
Quando se diz que às inteligências do último nível falta a inteira potência, integral e
sublime que pertence às ordens mais antigas, entende-se que elas participam na
medida das suas forças numa comunhão única e universal, harmoniosa e sintética.
É assim, por exemplo, que se a ordem dos Querubins participa numa sabedoria
mais elevada, as legiões formadas de essências inferiores participam também na
sabedoria, mas de forma mais parcial. A participação geral na sabedoria é a
característica comum a todas as inteligências que vivem em conformidade com
Deus.
Mas o que não é comum é o caráter mais ou menos imediato, mais ou menos
primordial dessa participação, grau que se define para cada essência na medida
das suas próprias capacidades. Esta verdade pode aplicar-se sem risco de erro a
todas as inteligências divinas, porque tal como as primeiras possuem as
propriedades das suas subordinadas, também as últimas possuem as das suas
superiores, não do mesmo modo, mas de modo inferior. Eu não vejo qualquer
inconveniente em que um grande sacerdote da hierarquia humana seja chamado
anjo pelos teólogos porque ele participa segundo a sua própria capacidade no
papel de intérprete que é o dos anjos e, na medida das suas possibilidades, tende a
imitar o seu poder revelador.
Notareis não somente que a teologia concede o título de deuses às
essências celestes, mas também chama “deuses” aos homens que se distinguem
pelo seu amor a Deus e pela sua santidade.

“vi Deus” , diz Jacob depois de ter lutado com o anjo – Gn 32, 30.
“Então disse o Senhor a Moisés: Eis que o tenho posto por Deus sobre
Faraó, e Aarão, teu irmão, será o teu profeta” - Êx 7, 1.
“Vós sois deuses” - Sl 81, 6.
Ora, o mistério divino é transcendente; o seu caráter sobre-essencial separa-
o de todas as coisas e nenhum ser merece em propriedade ser nomeado do mesmo
modo. Toda a inteligência que tende integralmente, no máximo da sua potência,
para a união com Deus, que se eleva incessantemente tanto quanto pode para as
iluminações divinas, imitando o próprio Deus, se isso se pode dizer, à medida das
suas forças, então merece bem o título de divina.
XIII
Prossigamos o nosso caminho e examinemos porque é que se diz que um
dos teólogos recebeu a visita de um Serafim. Reparemos que é um anjo do nível
das mais antigas essências celestes que desce para purificar o profeta.

221
“Mas um dos serafins voou para mim, trazendo na sua mão uma brasa viva,
que tirara do altar com uma tenaz” Is 6, 6.
1) Alguns intérpretes respondem que em virtude da definição já dada dos
nomes que se atribuem em comum a todas as inteligências, a Escritura
não afirma que a inteligência que desce a purificar o teólogo pertence a
esta ordem superior, que se situa próxima de Deus, mas que se trata de
um dos anjos que nos são designados a título de ministro sagrado
encarregado da purificação do profeta. Seria um desses que teria
recebido por homonímia o nome de Serafim em virtude da operação que
realiza, apagando pelo fogo os pecados que a Escritura enumera e
restabelecendo na obediência de Deus aquele que assim tinha sido
purificado... Assim, segundo esta exegese, falando simplesmente de
Serafim, a Escritura não designa uma dessas inteligências que se situam
na proximidade de Deus, mas outra das potências purificadoras que nos
são dedicadas.
2) Um outro exegeta oferece uma solução pertinente para nos tirar deste
embaraço. Este grande mensageiro que aparece ao Teólogo para o iniciar
nos segredos divinos “relatou” a Deus e depois de Deus à hierarquia
primordial a santidade da sua própria operação purificadora. O exegeta
que assim falava afirmava ainda que a potência divina se difunde por todo
o lado e penetra todas as coisas de modo irresistível, permanecendo
misteriosa não somente pela sua total e sobre-essencial transcendência,
mas ainda pelo mistério pelo qual envolve todas as suas operações
providenciais. Portanto está claro que ela se revela a quem quer for
dotado de inteligência e que à medida da suas capacidades receptoras.
Tendo feito dom da sua própria luz às essências mais antigas ela usa em seguida o
serviço dessas mesmas essências para transmitirem essa mesma luz de modo
harmonioso às essências de nível inferior, segundo a aptidão visionária de cada
ordem. Ou, por outro lado, se preferir uma expressão mais clara e imagens mais
adequadas, a difusão do raio solar atravessa mais facilmente a primeira matéria que
é mais translúcida que todas as outras e, através dessa matéria o seu próprio
esplendor brilha de modo mais visível, mas quando se depara com matérias mais
opacas, a sua potência de difusão obscurece-se porque as matérias penetradas
resistem pela sua própria natureza à passagem da efusão luminosa e esta resistência
aumenta progressivamente a ponto de quase impedir inteiramente a passagem do
raio luminoso.
Pela mesma razão o calor do fogo transmite-se melhor nos corpos que são
mais aptos a recebê-lo e que pelo seu movimento interno de ascensão se
aproximam mais da sua semelhança. Mas logo que se aproxima das substâncias
refratárias a sua chama permanece sem efeito, ou pelo menos não deixa mais do
que um ligeiro traço. Digamos melhor ainda: o fogo não atua sobre substâncias que
não têm afinidade com ele a não ser por intermédio de corpos já familiarizados de
modo a fazer chegar o fogo aos objetos inflamáveis e somente em seguida, através
deles, a aquecer a água ou outra substância rebelde à ignição.
É através desta lei harmoniosa que rege toda a natureza, que o Princípio
maravilhoso de toda a ordem visível e invisível manifesta originalmente, por efusões
benfeitoras a chama da sua própria luz às essências superiores, pois que por seu
intermédio as que veem depois delas participam na luz divina. Com efeito, essas
essências que confessam Deus em primeiro lugar e que tendem mais do que todas
as outras para a virtude divina, merecem ser as primeiras na imitação divina. São
elas que na sua bondade distribuem generosamente aos níveis inferiores esse
esplendor que as penetra para que, por seu lado, eles as distribuam a outras
subordinadas. É assim que, por graus, a que precede distribui à que segue a luz

222
divina que ela própria recebeu, e que se distribui providencialmente sobre todas as
essências à medida das suas capacidades.

223
3º ANO
HISTÓRIA DA IGREJA – 3º. ANO

O Enfraquecimento dos Direitos Metropolitanos

No que concerne ao enfraquecimento dos Direitos Metropolitanos no Ocidente,


não podemos retirar a Bizâncio uma grande parte de responsabilidade.
Bizâncio, ainda que não explicitamente, defendia a famigerada teoria da
“Pentarquia”, que conduzia a Igreja a um falso sistema de cinco Patriarcados,
permitindo assim a perda de vitalidade da Instituição dos Primazes. No século IX, a
Igreja de Cartago estava a viver sérias dificuldades e tinha perdido muita da sua
importância, acontecendo o mesmo com a Igreja da Espanha e da Bretanha.
Podemos constatar que nem o I Concílio Ecumênico de Nicéia I (325), nem o II
de Constantinopla I (381) mencionam um sistema pentárquico. Apenas este último
Concílio refere que nenhuma Igreja Autocéfala deve imiscuir-se nos assuntos
próprios e exclusivos de cada uma das outras Igrejas. Este Concílio afirma, ainda,
que há já Igrejas Autocéfalas constituídas em território estrangeiro (como a Igreja
das Espanhas, da Bretanha, da Gália, etc.).
Em 451, o Concílio de Calcedônia reconhece que há um Primaz em cada Igreja
local, diante do qual devem ser levados os conflitos existentes entre Bispos,
Arcebispos ou Metropolitas. Aliás, neste Concílio, o Hierarca de Roma é apelidado e
tratado como Bispo de Roma e o de Constantinopla como Arcebispo.
O VI Concílio Ecumênico (de 680) não recusa a Pentarquia, mas também não a
ratifica; limita-se a estabelecer a ordem de precedência de cinco Igrejas: Roma,
Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém.
Convém sublinhar que esta teoria tem a haver com a idéia de exclusividade
que Bizâncio sustentava: a idéia de um Império único. Neste Concílio, os outros
Primazes não são rejeitados; só não são é referidos na ordem de precedência; a
lista acaba em Jerusalém e cada um dos restantes Primazes é deixado na sombra,
funcionando a Autocefalia das suas Igrejas por Tradição.
Para Bizâncio, trata-se também de preservar o Primaz de Roma – que está em
território do Império – de lhe reservar um lugar de proeminência no Ocidente, com o
fim de que os reinos bárbaros permaneçam de qualquer forma ligados
religiosamente a Roma, para que não possam ir muito longe na sua ânsia de
independência religiosa, que corresponderia a uma independência política, temida
por Bizâncio.
Todavia, apesar desta atitude política de Bizâncio em função de Roma,
protegendo a sua ânsia de supremacia, as restantes Sés primaciais no Ocidente
ainda pugnam por se afirmar, fazendo apelo a uma Tradição local multissecular.
O principal motivo de litígio entre as Sés Primaciais no Ocidente e Roma foi,
sobretudo, o Direito de Apelo. Um antigo cânon do Concílio de Sárdica (343)
permitida aos padres e bispos apelares de determinado julgamento quando este lhes
parecesse injusto. Pelas suas características sócio-político-religiosas, Roma pouco a
pouco foi-se impondo (por comodidade) como a Sé à qual mais regularmente
recorriam, fazendo uso do Direito de Apelo.
No entanto, no século que se seguiu à morte de Carlos Magno, verificou-se um
uso contínuo e abusivo do Direito de Apelo. Quando um bispo sufragâneo tinha
qualquer “coisa” contra o seu Metropolita, apelava para Roma e, contrariamente a
todas as regras canônicas, Roma reunia um Concílio (em Roma) e decidia o que
fazer em função desse bispo, intrometendo-se, desta maneira, nos assuntos internos
de uma outra Igreja irmã.
Durante todo o século IX as ações por parte de Roma foram de tal forma
escandalosas que, Primazes como Hinemar de Reims (“Rance”), viram-se obrigados

225
a relembrar o Bispo de Roma do Direito de Apelo sancionado pelo Concílio de
Sárdica e dos limites no quais deveria de ser exercido.
O Concílio de Sárdica afirma que “O Bispo de Roma não tem o direito de se
imiscuir nos assuntos internos de outra Igreja, mas deve tão somente pedir uma
nova reunião conciliar, a ter lugar no território de uma província adjacente à do bispo
incriminado”. Roma não tem o direito de julgar pessoalmente o assunto em questão.
Mas o Papa, fazendo apelo às famosas Falsas Decretais Pseudo-Isidorianas,
afirma que tem esse direito, porque Bispos de Roma seus antecessores agiram
dessa maneira. Os Metropolitas opõem-se a estas afirmações, dizendo que a
Tradição ignora semelhantes regras.
Estas Decretais (Decretos) surgem como instrumento de trabalho por parte de
Roma, no século IX (860). Muitos dos autores destas falsas Decretais são
provavelmente bispos sufragâneos que, para escaparem à tutela dos seus
metropolitas, davam a Roma e ao seu Concílio um direito de superioridade sobre os
seus metropolitas e sobre os seus Concílios locais. Outras (a maioria) foram
fabricadas por Roma, tendo depois Dinis, o Pequeno compilado uma coleção
canônica (de verdadeiros Decretos) à qual juntou uma outra exclusivamente de
falsos decretos e assim misturando ambas. A partir daqui, século após século, esta
compilação foi crescendo, conferindo direitos ao Bispo de Roma, que ele nunca
teve.
As Falsas Decretais ainda não são tudo, mas são já um resumo substancial
das teses da supremacia papal. É com a Reforma de Gregório VII (Papa de Roma)
que estas teses se acentuarão ainda mais, agora já não na direção do centralismo,
mas do absolutismo teocrático, que irá desembocar na perniciosa e espúria
Infalibilidade Papal.
Todavia, impõe-se-nos salientar que as Falsas Decretais continham elementos
que justificavam apenas canonicamente a supremacia papal. Não tinham nenhum
conteúdo dogmático em ordem à justificação da dita Supremacia Papal.

Os Primórdios do Monaquismo

Podemos afirmar que o surgimento do monaquismo está alicerçado em duas


vertentes distintas e que caracterizam com exatidão o dealbar da vida monástica.
A primeira vertente prende-se com a necessidade que alguns homens e
mulheres sentiram de uma vivência particular da sua Fé e a vontade firme de uma
dedicação exclusiva ao serviço de Deus, no cumprimento livre da sua vocação
monástica.
A Segunda vertente está ligada a um testemunho de fidelidade à Tradição
eclesial, que alguns entenderam ser chegado o momento de viverem.
A Igreja, nos fins do séc. III (em algumas regiões) e em princípios do século IV
(em todo o Império), começou por usufruir um estatuto religioso equiparando-A às
demais Denominações religiosas do Império. Esta nova etapa da sua existência
causou, em muitos dos seus membros mais responsáveis, uma certa lassidão de
conduta, inusitada flexibilidade teológica face às constantes investidas das seitas
heréticas, um certo compromisso sócio-político com a Sociedade e o Poder estatal
instituído, enfim, perspectivou-se em certos períodos a possibilidade de uma ruptura
com a Tradição ou, na melhor das hipóteses, um “esquecimento” e um
“abrandamento” da vivência exigente a que a Igreja dos dois primeiros séculos
obrigava.
Assim, no fim do século III e princípio do século IV, são muitos os que – ao
interior da Igreja – pretendem, pelo testemunho de suas vidas, revitalizar os seus
membros, repondo-os de novo em perfeita sintonia com a Tradição Apostólica.

226
Partem, então, para o deserto, despidos de bens e com a única vontade de
nada quererem nem desejarem, a não ser cumprirem a Vontade de Deus, segundo a
sua missão específica.
Entre os primeiros monges – com uma acentuada tonalidade ascética – temos
Santo António, o Grande o qual, ainda em seus dias, reuniu na sua montanha mais
de 50.000 monges e é o primeiro grande baluarte da motivação monástica no Egito.
Outros se perfilam a seu lado, igualmente incontestáveis expoentes da vida
monástica, como Santo Arsênio, Santo Hilarião e São Paulo, o primeiro eremita
conhecido, entre muitos outros, como São Pacômio.
São Pacômio é o grande Abade da transição da vida eremítica para a vida
cenobítica. É o primeiro reorganizador cenobítico de todo o Norte da África sendo,
como São Basílio, o Grande, um dos pioneiros da nova dimensão do monaquismo
que fora a vida cenobítica.
Até então, cada monge vivIa no deserto, mais ou menos segundo o seu
discernimento pessoal, obedecendo a ditames interiores próprios, ou em pequenos
aglomerados eremíticos, tendo apenas de comum entre si a proximidade física,
sendo que cada um vivia completamente separado e cortado da realidade dos seus
irmãos.
Com São Pacômio e, depois, São Basílio, o Grande (na Capadócia), nascem
os primeiros mosteiros e as primeiras comunidades monásticas de vida em comum,
com uma regra comum, tudo partilhando quotidianamente e obedecendo a um
abade, que é o Pai da comunidade monástica.
Nos séculos III, IV, e V, os desertos do Egito, Síria e Palestina estão repletos
de monges, muito particularmente os de Nítria e Scété (Sítia).
Do Egito, berço do monaquismo, a vida monástica propaga-se por toda a Ásia
Menor, Ponto, Europa Central e Ocidental. Mosteiros como os de São Sabas, no
Sinai, de São Theodósio, perto de Jerusalém, alguns junto ao Mar Morto e, mais
tarde o de Stoudion, que teve como seu mais eminente Abade, São Theodoro o
Estudita, são verdadeiros marcos imperecíveis da vida cenobítica.

Florescimento do Monte Athos

A Santa Montanha fica situada numa das três penínsulas que penetram o Mar
Egeu. É a península mais setentrional das três (Kassandra, Longos e Athos), com
cerca de 2.000 metros de altitude e quase 400 km.
Esta península, que de forma alguma tem a aridez do Egito ou do Sinai, mas
pelo contrário, usufrui um clima privilegiado e de uma natureza incomparável,
tornou-se muito cedo um dos lugares de eleição da vida monástica.
Pensa-se que já no século IV aí existissem alguns eremitas. Contudo, no
século VII é com segurança que podemos afirmar a existência de largas centenas de
monges (se não mesmo de alguns milhares).
É por esta altura que o Imperador Constantino Pogonata dá o território do
Monte Athos aos monges que se haviam nele fixado. Ainda aqui se não vislumbrava
nenhum traço de organização cenobítica, vivendo os eremitas, dispersos pela
montanha, habitando as suas inumeráveis grutas.
No século VIII, a perseguição iconoclasta dispersou-os. Um século depois, os
árabes e os piratas devastaram a península, fazendo muitos mártires entre os
monges.
Somente um século mais tarde, os Imperadores macedonianos restauraram a
quietude e tranqüilidade monásticas assegurando, tanto quanto possível, o seu
futuro.
Finalmente, no século X, surge o grande Santo Atanásio, o Atonita, nome pelo
qual a posteridade o apelidou, devido à sua eminente ação na Santa Montanha.

227
Quando chega ao Monte Athos, encontra pequenos agrupamentos de eremitas;
constituiu o primeiro mosteiro, que hoje é denominado por “Grande Lavra”. Aí
estabeleceu a vida em comum, baseada na regra monástica de São Theodoro, o
Estudita, por sua vez decalcada sobre a de São Basílio: determinou a disciplina, as
condições de trabalho e detalhou a vida de oração diária, pois a vida do monge,
segundo os Padres do Deserto, dever-se-ia compor de oração e de trabalho, como
via ascética e como meio para suprimir a dispersão.
Santo Atanásio não acabou com o anacoretismo; este continuou a persistir até
aos nossos dias – mas é uma vocação particular ao interior do monaquismo.
Outros mosteiros formaram-se e a todos dotou de um abade. A vida monástica
no Monte Athos tornou-se de tal forma um exemplo a seguir em todo o mundo
ortodoxo, que o Imperador Constantino Monómaco a apelidou de άγιον Ορος
(“Águion Órós”: Santa Montanha). Por essa altura contavam-se mais de 180
agrupamentos monásticos, tendo o mosteiro de Santo Atanásio mais de 700
monges.
A partir deste momento, o Monte Athos passou a ser um Estado Autônomo,
dependendo apenas do Imperador. O Imperador Alexis I Comneno, num decreto por
ele assinado, diz: "Nós ordenamos que a Santa Montanha seja livre e isenta de toda
a contribuição e que os seus monges sejam livres até ao fim do mundo. Que
nenhum Soberano ouse imiscuir-se nos assuntos da Santa Montanha”.
Do ponto de vista eclesiástico e no que concerne à jurisdição, todos os
mosteiros do Monte Athos passaram a depender diretamente do Patriarcado de
Constantinopla, solicitando apenas o Bispo de Iérisso (o mais próximo
geograficamente) para ordenação diaconais e presbiterais.
A administração da Santa Montanha faz-se através de um Conselho de Abades
(vinte, oriundos de cada um dos vinte grandes Mosteiros). O Presidente do Conselho
é sempre um dos vinte Abades e é eleito por um ano.
Reúnem-se três vezes por ano: na Páscoa, na Ascensão e no Natal, para tratar
de problemas concernentes a todos os Mosteiros, na pequena “capital”, Kariés.
Nos séculos XII, XIII e XIV o monaquismo atonita floresceu consideravelmente,
mas foi no século XV que atingiu o seu apogeu; à parte uma multidão de pequenos
mosteiros, poder-se-iam contar mais de 30 grandes, todos eles com mais de 1.000
monges. Neste período, pensa-se que cerca de 60.000 monges habitassem a Santa
Montanha.
Como sabemos, o Império Bizantino desmorona-se no ano de 1453. Ora os
Abades do Monte Athos, em 1430, enviaram emissários a Brousse e a Andrinopola
fazendo um ato de submissão aos Turcos, cujo poder crescia de dia para dia.
Assim, quando cai o Império, o Monte Athos nada sofre. Permanece com todos
os seus bens e privilégios, que os Turcos permitiram como compensação pelo seu
ato de submissão.
Talvez isto tenha sido o princípio do fim: demasiado auto-suficentes
materialmente, a ponto de até alguns Sultões, como Silim II, construírem e ajudarem
na reconstrução de alguns mosteiros como, por exemplo, o de Xeropotamos,
entraram em decadência nos séculos XVI e XVII; transgressões à regra monásticas,
discórdias internas, vida de indolência e de preguiça... colapso de vocações
monásticas. O grande Mosteiro de Simonos Petras, outrora com alguns milhares de
monges, via-se agora (sécs. XVI e XVII) reduzido a 5 ou 6 monges. A prática da
idiorritmia, que permitia aos monges uma vida de forma alguma compatível com a
regra monástica cenobítica, fora a principal causadora deste descalabro espiritual.
Só no fim do século XVIII, o Patriarca de Constantinopla, reunindo os Abades
do Monte Athos, decide restaurar a vida monástica segundo a regra primitiva,
conferindo um novo rumo espiritual ao monaquismo atonita.

228
Atualmente, cerce de 90% dos mosteiros vivem mediante o regime cenobítico.
Por volta de 1830, já se contava aproximadamente 2.500 monges na Santa
Montanha. Em 1912, só o mosteiro russo de São Pantaleimon contava mais de
10.000 monges.
Regressando, ainda, à administração do Monte Athos, diremos que, para além
do Conselho dos Abades representando cada um dos vinte mosteiros, o poder
executivo é detido por quatro representantes destes mosteiros, eleitos anualmente,
chamados de Epístatos; o primeiro deles, tem o título de Protoepístatos. Estes
quatro monges reúnem-se três dias por semana. O Estado Autônomo possui um
selo oficial, representando a Virgem Maria. O selo está dividido em 4 partes,
possuindo cada Epístato uma delas, tendo que estar todos presentes sempre que
carece de ser utilizado.
Todos os mosteiros cenobíticos praticam a regra antiga de São Basílio, de São
Pacômio e de São Theodoro, de uma forma particularmente severa.
Para além dos dias ordinários de jejuns, quartas e sextas feiras, observam as
quatro quaresmas ortodoxas, o que possibilita mais 125 dias de jejum. Nunca se
ingere carne e há apenas uma refeição por dia. Por volta de 2:00 h da manhã, os
monges levantam-se para os Ofícios matinais, sendo todo o seu dia pautado pelas
horas canônicas. À tarde, repousam durante duas horas, quando o calor se faz
sentir mais fortemente.
Nos dias de Festa, a Liturgia e os Ofícios poderão absorver cerca de 16 a 17
horas sobre as 24 do dia. Além da oração comunitária e pessoal, os monges fazem
ainda grandes prostrações (grandes metanóias), na igreja ou nas suas celas,
prescritas pelo Abade. Vão aumentando em número consoante o crescimento
espiritual do monge em questão e podem ir de 100 para um jovem noviço, até 1.200,
para um Grande Monge. Tudo isto não são mais do que algumas particularidades da
vida cenobítica.
Nos mosteiros que conservaram a idiorritmia, a vida é assaz diferente. Não tem
Abade; os monges estão divididos por grupos de 8 ou 10, sendo um deles
responsável pela disciplina; em alguns mosteiros chegam mesmo a eleger um
“abade”, como que uma reminiscência do passado. Na prática, esse “abade” não
exerce poder de jurisdição algum, nem lhe é reconhecida nenhuma paternidade.
Não tem refeitório em comum. É fornecido pelo mosteiro pão e alguns gêneros
alimentícios. Todavia, cada um vive como entende e organiza a sua vida e o espaço
onde vive como pretender. A única obrigação consiste em estar presente nos ofícios
religiosos. Lamentamos que grandes mosteiros como, por exemplo, o grande
Mosteiro de Simonos Petras, permaneçam ainda num regime semi-idiorrítmico.
Ainda uma especificidade do Monte Athos prende-se com o fato de o Patriarca
Nicolau (de Constantinopla) ter interditado a permanência de qualquer mulher na
Santa Montanha (1046), devido ao grave acontecimento havido com os pastores da
Valáquia.
Atualmente, a Tradição monástica – podemos afirmá-lo – foi resposta
praticamente na sua plenitude e as vocações são numerosas. Existem perto de
6.000 monges, presentemente, no Monte Athos.
Os monges atonitas têm sido, ao longo dos tempos, em momentos críticos da
vida da Igreja, verdadeiros defensores, intrépidos, da fidelidade à Tradição, não só
monástica como teológica. É nosso desejo continuar a alimentar a Esperança que
assim continue a ser no futuro e que nada nem ninguém os demova da sua missão
de revitalizadores da espiritualidade cristã monástica ortodoxa.
Impõe-se, ainda, que precisemos uma questão que tem suscitado alguma
celeuma nos últimos tempos e que concerne à abusiva afirmação de apelidar os
Abades de Pais espirituais, numa relação de Paternidade espiritual exclusiva para
com os seus filhos espirituais.

229
Convém referir que, embora todo o Abade ou toda a Abadessa seja o Pai ou a
Mãe de determinada comunidade monástica, o vínculo que os une aos seus monges
e monjas é bem mais diáfano do que o que vincula um Pai espiritual aos seus filhos
espirituais.
As características de um Pai espiritual são bem diferentes daquelas que são
permitidas a um Abade viver. Todo e qualquer Abade ou Abadessa, pela sua própria
função abacial, está limitado no tempo para poder exercer a sua Paternidade
espiritual – no mais denso sentido do termo – pela simples razão que o Abade ou
Abadessa tem a responsabilidade não só espiritual, mas também material dos
mosteiros. As preocupações e ocupações dos Abades são demasiado grandes e
ocupam demasiado tempo para que este ou esta se ocupe de filhos espirituais.
Além disto, há mosteiros com 20, 50, 100, 500, 1.000 monges... mesmo que
tenha 10 monges, é impossível a um Abade exercer a Paternidade, própria somente
ao Pai espiritual, para com eles. Nenhum Pai espiritual tem mais de um, dois ou no
máximo três filhos espirituais e a razão deste exíguo número é simples: cada Pai
espiritual não ora menos de 4 a 5 horas por dia por cada um dos seus filhos; tem,
necessariamente, que falar com cada um, diariamente, ouvindo o que cada um tem
a dizer em relação ao dia que viveu, até ao mais ínfimo pormenor, entrando no local
mais recôndito da sua alma. Tudo é contado ao Pai espiritual para que este possa
conduzi-lo, encaminhá-lo e corrigi-lo. Como se pode depreender, cada um destes
momentos pode prolongar-se tanto quanto o Pai espiritual ache necessário.
A um Abade ou a uma Abadessa, pelos contornos da sua própria função, tal
missão está-lhes praticamente vedada. Normalmente, são Pais espirituais alguns
hieromonges ou grandes monges, alguns arquimandritas sem funções de reitoria
paroquial e alguns startsi, anacoretas e os Bispos.
A intimidade espiritual entre um filho espiritual e o seu pai espiritual tem uma
tonalidade espiritual qualitativa, que reputaríamos de consangüínea. É um trabalho
minucioso, moroso e que carece de disponibilidade.
Pelo que acabamos de dizer se infere que nenhum Abade ou Abadessa pode
exercer esta qualidade de Paternidade espiritual em função de 10, 20, ou 30
monges. Depois, há a considerar que nem todos os monges ou monjas tem
qualidades humanas para serem filhos espirituais. É-se filho espiritual, não
egocentricamente, unicamente para benefício de si próprio, mas para mais tarde
também ajudar outros.
A Paternidade que um Abade exerce no seu mosteiro é uma Paterinidade de
função, enquanto que a Paternidade do Pai espiritual é uma Paternidade de serviço
– existe uma primazia de qualidade desta última em função da primeira. A
Paternidade do Abade é de Pai no monasticado, em substituição do Bispo da
diocese, que é o verdadeiro Pai dos monges; o Bispo é o Pai na Fé porque, sendo
Ícone de Cristo, por Ele, leva todos para Cristo; o Pai espiritual é o Starets – e
Starets não é quem quer, mas aquele a quem o Bispo reconhece o carisma de
direção das almas. Um reitor de paróquia pode ser confessor, diretor espiritual, mas
não é nunca um Starets ou Pai espiritual.
Por conclusão, diremos que, com toda a propriedade, se pode dizer dele e só
dele, do Bispo, que é o Pai espiritual da Diocese, exercendo o seu tríplice carisma
de Doutor, Liturgo e Pastor. Sendo comum a todos os Bispos, esta Paternidade
espiritual é–o com muito mais razão no Primaz, no qual todos os Bispos se revêem e
encontram.

230
TEOLOGIA DOGMÁTICA – 3º ANO

A Obra da Salvação realizada por Nosso Senhor Jesus Cristo (continuação)

Todo o homem salvo por Cristo é, pois, um portador do Espírito Santo. Sem o
Espírito Santo, a natureza humana teria permanecido no seu estado inicial e o
Homem não teria podido usufruir a força da Graça, sem a qual não pode vencer o
pecado nem revestir-se de Justiça e de Santidade. Sem o Espírito Santo, o Homem
não teria sequer Esperança alguma da imortalidade, porque só o Espírito Santo é
Dispensador de Vida.
A Soteriologia Ortodoxa abrange também a idéia de “deificação”. “Deus
tornou-Se Homem para que o Homem se tornasse deus”. Assim se expressa o
princípio fundamental da doutrina ortodoxa da Salvação. A “deificação” não é
unicamente exposta nas obras dos Padres e Doutores da Igreja, mas igualmente
nos livros litúrgicos. Naturalmente não se pretende afirmar que o Homem se torna
Deus segundo a Essência, mas sim segundo a Graça.
São João Damasceno afirma que o “o Homem se tornou ‘divino’ ao entregar-
se a Deus; e isto por participação na iluminação divina e não por uma
transformação que lhe conferiria a Essência divina”.
A “deificação” do Homem significa que, em Cristo, ele foi adotado por Deus,
como filho.
“O Verbo de Deus tornou-Se Homem e o Filho de Deus Filho do Homem,
para que o Homem, unido ao Verbo de Deus e recebendo a Filiação, se tornasse
um filho de Deus” (St. Irénée, Adv. Haer. III, 18).
São Simeão, o Novo Teólogo escreve: “Assim que o Cristão recebe a Graça
do Espírito Santo, passa a participar na Natureza divina em Jesus Cristo, Nosso
Senhor; então o Cristão transforma-se pela força da Graça, alcançando um estado
semelhante ao estado divino”. Mas quanto à sua natureza, o Homem permanece
Homem. Por outras palavras, a “deificação” é a Comunhão com Deus através da
filiação e pela participação no Verbo de Deus, em virtude da Graça do Espírito
Santo que habita o Homem, operando nele o novo nascimento e possibilitando-lhe
participar na Divindade. Permanecendo homem, o Homem é penetrado e habitado
por Deus.
O princípio desta “deificação” é, ainda, evidentemente, a Encarnação do
Verbo de Deus; ou, mais precisamente, a “Divinização”, a Salvação vinda através
de Cristo, é a conseqüência da Encarnação do Logos Divino. Por causa da união
hipostática das duas naturezas, divina e humana, em Jesus Cristo, Deus-Homem, a
Sua natureza humana foi divinizada, deificada. Ora, através da Sua Natureza
humana, o Verbo, tornado carne, está organicamente unido a toda a humanidade, a
todos os homens e mulheres; por isso, também a nossa natureza humana é
divinizada. Porque o efeito da Graça deificante depende do estado de união entre a
pessoa humana (o homem) e Cristo, ainda que para a maioria dos homens a
deificação não seja um fato real; mas como possibilidade real; “in potencia”, ela já
foi dada a todos.
Nos textos litúrgicos da Igreja Ortodoxa, esta doutrina está claramente
expressa. Aí vem referida, entre outras, a fórmula patrística: “Deus tornou-Se
Homem para que o Homem se tornasse deus”. “O Mistério eterno é hoje revelado e
o Filho de Deus torna-Se Filho do Homem...”
Deus fez-Se Homem a fim de que Adão se tornasse deus” (Ofício da Anunciação a
Maria). Várias vezes, a deificação pela Encarnação do Verbo, é relacionada com a
tentação do primeiro casal humano no Paraíso, pela serpente. Por exemplo: “A
Serpente, aparecendo subitamente no Éden, seduziu-me pela aspiração a ser
deificado e assim arrastou-me para a Terra; mas Deus misericordioso e compassivo

231
por natureza, deifica-me, cheio de bondade, habitando no Teu ventre (ó Mãe de
Deus!)...(Domingo, Ofício da manhã, 7). É por este mesmo motivo que a Igreja,
aquando da Festa do Natal, exclama: “Louvor e honra Àquele que nasceu sobre a
Terra e que deificou o ser nascido na Terra!”
Os Padres da Igreja insistiram igualmente sobre o alcance moral da
Encarnação do Logos Divino. O Filho de Deus fez-Se carne para dar aos homens
um exemplo de vida virtuosa, pois o Homem, incapaz de pautar a sua vida por uma
conduta agradável a Deus, não tinha acesso à Salvação. “O vasto oceano do Amor
de Deus pelo Homem, escreve São João Damasceno, revelou-se quando o Verbo
de Deus Se fez Homem, porque era necessário mostrar e ensinar ao Homem o
caminho que o afastava da perdição e o conduziria à Vida Eterna”. (Exposé Précis
de la Foi Orthodoxe, III,I).
O que salva também o Homem é o Amor e a Compaixão de Nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo, porque nos convida a abandonarmos o caminho do pecado,
a fazermos penitência e a levarmos uma vida virtuosa.
A este respeito, vejamos o que diz um teólogo ortodoxo, o hieromonge
Tarassi: “Ao surgir sobre a Terra, como Mártir amante, pelos nossos pecados Cristo,
devido a uma lei imutável, chamou a Si o coração de muitos homens. Aqueles que
foram assim despertados por Ele, libertaram-se do pecado; significa isto que
deixaram de viver mediante as leis pecaminosas do mundo e que morreram para as
paixões. Para a vida consciente, é necessário um modelo; dito de outra forma, é
preciso um objeto de veneração e de “imitação”. Para aqueles que seguem Cristo é,
Ele próprio, vítima humilde, que Se tornou este “ideal”, Ele que chama todos a Si
pelo Seu infinito Amor. Olhando o Mestre com os olhos do espírito, tomando d’Ele o
exemplo de humildade incomparável, os cristãos auferem, nesta contemplação,
novos princípios de vida, que verdadeira e visivelmente libertam o Homem do
pecado”.
Nos seus trabalhos sobre a Salvação, o Metropolita Antônio Chrapowitzky
expôs o seu pensamento com uma amplitude única.
A Obra da Salvação realizada por Cristo apresenta, também, um significado
cósmico. Não foi somente o Homem, mas com ele, o “mundo”, divino na sua origem,
que recebeu pela segunda vez a santificação e a divinização, ou seja, foi elevado a
um estado superior de divindade.
Cristo, Verbo Encarnado, salvou não só o Homem, mas também todo o
mundo substancial, que faz parte do Seu Corpo divinizado. Neste sentido podemos
ler as palavras de São Máximo, o Confessor: “Os seres renovam-se e Deus faz-Se
Homem para salvar aquele que estava separado...De natureza inteira, Cristo reúne
em Si tudo que estava separado... N’Ele tudo é recapitulado, isto é, Cristo reúne em
Si tudo o que existe no Céu e sobre a Terra, tudo o que para Ele foi criado. Através
do Homem-Deus, Jesus Cristo, o mundo inteiro restabelece a sua Comunhão com o
Deus Trinitário”.
Também Arseniev afirma que a “Vida Eterna, ao vir a este mundo, foi o
fermento para a transfiguração do cosmos”.
Resulta, por isso, destas exposições teológicas, que a Salvação do Homem
é, absolutamente, uma Obra de Deus. Obra de Amor do Pai Celeste, do Filho de
Deus Encarnado e da Graça do Espírito Santo. Novo nascimento, renovação,
santificação e deificação do Homem. São Dons de Deus e, por sua vez,
conseqüências da Obra de Salvação realizada por Cristo e, simultaneamente,
efeitos do poder da Graça do Espírito Santo.

Participação do Homem na sua Salvação


Isto que atrás foi referido não significa que a salvação, o perdão dos
pecados, a justificação e a santificação decorrentes da Obra Salvífica de Cristo

232
sejam impostos ao Homem a partir do exterior, mecânica ou magicamente. Não. De
acordo com a Doutrina Ortodoxa, é necessário que o Homem participe, colabore,
empenhe a sua vontade e se aproprie de uma forma ativa daquilo que Cristo
realizou objetivamente; é necessário que o Homem penetre por si próprio na Nova
Vida que surgiu neste Mundo com a Vinda de Cristo, Verbo Encarnado e siga a
prescrição do Santo Apóstolo Paulo: “De sorte que, meus amados, assim como
sempre obedecestes, não só na minha presença, mas muito mais agora na minha
ausência, assim também operai a vossa Salvação com temor e tremor” (Fp II, 12).
Em que é que consiste, então, esta ativa participação do Homem na sua
Salvação?
A resposta da Igreja Ortodoxa é aquela que decorre da sua norma ascética
da vida. “E desde os dias de João, o Precursor até agora, faz-se violência ao Reino
dos Céus e pela força se apoderam dele” (Mt XI, 12), disse Cristo. Por outras
palavras: a participação ativa do Homem na sua Salvação, consiste em travar duros
combates com as paixões, com a natureza pecadora, em arrepender-se e em se
afastar dos poderes do mal; é a purificação do pecado, a consolidação da vontade
no Bem, o cumprimento da Vontade de Deus, dos Mandamentos divinos, o
crescimento na vida virtuosa, no amor por Deus e pelo próximo, na renúncia
absoluta de si próprio; oferecendo-se a si mesmo, o Homem deve estar sempre
disponível a transportar a Cruz de Cristo.
Tudo isto, naturalmente, requer, necessariamente, a assistência da Graça
divina – a Salvação do Homem é um processo divino-humano.
À pergunta: - O que é que justifica o Homem?
A resposta de católicos romanos e de protestantes não é concordante.
Vejamos o que dizem os teólogos da Igreja de Roma: - O que justifica o Homem são
a Fé e as boas obras. Quanto aos protestantes, sustentam que só a Fé justifica o
Homem e apelidam a prática católica romana de desprezível santidade pelas obras.
Desta forma, a oposição reside, na maioria das vezes, mais nas palavras
(terminologia) do que nas “coisas”.
De uma e de outra parte há convergência, no essencial, com a Igreja
Ortodoxa, quando Esta responde com o Apóstolo Paulo: “...A Fé que age pela
Caridade” (Gl V, 6).
Dia após dia, o fiel ortodoxo repete na sua oração matutina: “...Ó meu
Salvador, liberta-me pela Tua Graça; pois se quisesses que alcançasse a felicidade
através das obras, isso não seria nem uma graça nem um dom, mas antes uma
obrigação... Tu disseste: “- Aquele que crer em Mim viverá e não verá jamais a
morte. Assim a Fé em Ti salva os desesperados. Vê, Senhor; eu creio; salva-me,
pois Tu és o meu Deus e o meu Criador. Que agora, Senhor, a Fé seja cantada à
guisa de obras; não exijas as obras que me deveriam justificar: é esta a minha Fé
que deve ser bastante para tudo, responder por mim e permitir-me participar na Tua
Glória eterna...”
Em todas as orações, em todas as obras dos Santos Padres e Doutores a
Igreja Ortodoxa confessa que o homem pecador é indigno do Amor, da Misericórdia
e da Graça de Deus, merecendo unicamente ser rejeitado e punido.
“Choro e lamento-me amargamente, ao ver a terrível retribuição da Palavra;
através das minhas obras não possuo nenhuma justificação e eu possuo muito
pouco relativamente aos meus pecados, infeliz que sou! Assim, imploro-Te... envia-
me o perdão dos pecados, ó Cristo e Senhor meu Deus, e uma grande Graça!”
(Domingo, Ofício da noite, 5). Será apenas salvo aquele que, em Cristo, é uma
“nova criatura”. Ora só é uma “nova criatura” aquele que abandone e rejeite a
“antiga conduta do homem velho, corrompido pela concupiscência do engano”; só é
uma “nova criatura” aquele que se renove no seu foro íntimo espiritual, e se revista
do “homem novo”, “criado por Deus na Justiça e Santidade verdadeiras” (Ef IV, 22-

233
24). Também para isto a Graça de Deus é necessária. Por esta razão a Igreja ora
desta forma: “Ó Salvador, pela Tua Misericórdia, salva das transgressões o Teu
servidor que Tu agora arrebataste pela Fé, pois Tu, Senhor, que amas os homens,
sabes que pelas obras humanas ninguém é justificado” (Ritual funerário dos
padres). É unicamente pelo Espírito Santo que “toda a alma é vivificada, elevada
para receber a purificação, iluminada pela Santíssima Trindade no Santíssimo
Mistério” (Domingo, Ofício da manhã, 4).

A Santificação pela Graça do Espírito Santo

A Salvação objetiva realizada por Cristo é apropriada ao Homem pela Graça


do Espírito Santo; para que tal aconteça, é necessário que o Homem seja ou se
torne digno desta apropriação: é a Santificação pelo Espírito Santo.
Na verdade, a Igreja Ortodoxa ensina, também, (trata-se de uma evidência)
que as Três Hipóstases da Santíssima Trindade participam nesta Santificação;
embora seja de preferência atribuída ao Espírito Santo, porque é o Espírito Santo
que a completa. A necessidade da Santificação decorre das palavras de Nosso
Senhor Jesus Cristo, quando afirma: “Na verdade, na verdade te digo que, aquele
que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus” (Jo III,
5).
Assim, todos aqueles que crêem em Cristo, são também portadores do
Espírito Santo: “Quem crê em Mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão
do seu ventre. E isto disse Ele do Espírito que haviam de receber os que n’Ele
cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido
glorificado” (Jo VII, 38-39). Por isso o Senhor prometeu a descida, a efusão do
Espírito Santo sobre os Seus discípulos: “Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro
Consolador, para que fique convosco para sempre” (Jo XIV, 16). “Todavia, digo-vos
a verdade, que vos convém que Eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não
virá a vós; mas, se Eu for, enviar-vo-lo-Ei” (Jo XVI, 7).
Esta promessa realizou-se quando do Pentecostes. Depois desse dia todo
aquele que crê em um “templo do Espírito Santo” (1 Co VI, 19). Os frutos do Espírito
Santo em nós são “o Amor, o Júbilo, a Paz, a Paciência, a Doçura, a Bondade, a
Fidelidade e a Temperança” (Gl V, 22). Por isso, no dia da Ascensão, a Igreja
Ortodoxa pronuncia esta oração: “Envia-nos o Teu Santíssimo Espírito, que
esclarece as nossas almas e as fortifica, que as santifica e as ilumina”.
Constantemente, as orações evocam o dom da Graça do Espírito Santo. Assim, no
Cânon Eucarístico da Liturgia de São Basílio, o Sacerdote exprime-se da seguinte
forma: “Por Cristo foi-nos enviado o Espírito Santo, o Espírito de Verdade, o carisma
de adoção, a garantia externa da herança futura, as primícias dos bens eternos, a
força vivificante, a fonte de Santificação; fortificada por Ele, toda a criatura racional e
espiritual presta esta doxologia eterna...” Nas antífonas do Ofício dominical da
manhã, é dito (Tom 1): “Pelo Espírito Santo toda a Criação é renovada; ela retorna à
sua primeira condição... Ao Espírito Santo, em próprio, (pertencem) o princípio da
Vida e da Honra, pois Ele produziu tudo que está criado”. (Tom 2): “... Porque Ele
(Espírito Santo) é Deus; do Espírito Santo é derramada toda a Verdade; através
d’Ele a Graça encheu os Apóstolos; por Ele os Mártires foram coroados nos
combates; por Ele os Profetas tiveram visões”. (Tom 3): “Do Espírito Santo irradia
todo o Dom benéfico; ...n’Ele todas as ‘coisas’ têm movimento e vida; n’Ele
vislumbram-se toda a Santidade e toda a Sabedoria! É Ele que chama ao ser toda a
Criação, é por Ele que chega a toda a Criação a Graça e a Vida”. (Tom 4): “Pelo
Espírito Santo toda a alma é animada e elevada ao purificar-se; ela é iluminada
pela Santíssima Trindade no Santo Mistério... No Espírito Santo encontram a sua
fonte todos os rios da Graça, que regem toda a Criação para que nasça a Vida... Ao

234
Espírito Santo pertencem riqueza própria, conhecimento de Deus, visão e
sabedoria, porque é n’Ele que o Verbo revela todas as Doutrinas Paternas”. (Tom
6): “Ao Espírito Santo pertencem, em próprio, a complacência, a compreensão, a
paz e a bênção”. (Tom 7): “Ao Espírito Santo pertence a fonte dos tesouros divinos,
donde vêm a sabedoria, a inteligência e o temor... Ao Espírito Santo pertencem o
abismo das graças, a opulência da Glória, a vasta profundeza das sentenças.
Estas citações demonstram já como na Fé da Igreja Ortodoxa o Espírito
Santo é o dispensador de toda a vida e de todos os dons espirituais. Ele revela a
Verdade, dá o verdadeiro Conhecimento de Deus, a Luz, a Sabedoria, o Perdão dos
pecados, a Santificação, a Paz, o Temor de Deus e a Piedade. É o próprio Espírito
Santo que celebra a Sagrada Liturgia, através do Sacerdote e nele; daí esta oração
do Oficiante: “Pelo poder do Teu Espírito Santo, torna-nos aptos, pois, para a
celebração desta liturgia, a fim de que, diante da Tua Glória Santa e sem perigo de
condenação, nós Te oferecemos um sacrifício de louvor, pois és Tu que operas tudo
em todos” (Liturgia de São Basílio, o Grande).
Mas o Espírito realiza, ainda, o maior de todos os Mistérios: “Faz descer
sobre nós o Teu Espírito Santo e faz deste Pão o precioso Corpo do Teu Cristo, e
do que contém este cálice o Sangue precioso do Teu Cristo!” (Liturgia de São João
Crisóstomo).
Por último, através do envio do Espírito Santo, Jesus Cristo, nosso Deus e
Salvador, fundou a Sua Igreja sobre a Terra, remetendo para Esta a administração
e a dispensação dos Santos Mistérios, através dos quais os fiéis participam na
Graça de Deus. Daí as afirmações de São Paulo: “Pois todos nós fomos batizados
em um Espírito formando um Corpo... e todos temos bebido de um só Espírito” (1
Co XII, 13). “Lá onde está a Igreja, lá também está o Espírito de Deus – escreve
Santo Irineu de Lyon – e lá onde está o Espírito de Deus, lá está a Igreja, com toda
a Graça” (Adv. Haer. III, 24).

235
PATROLOGIA – 3º. ANO

SANTO AMBRÓSIO, ARCEBISPO DE MILÃO (339-397)

Após o nascimento para os Céus de S. Cipriano de Cartago, em meados do


século III, a Igreja no Ocidente teve de esperar cerca de um século para ver surgir
outro grande Padre da Igreja. Já no século IV, assistiu-se a uma importante melhoria
de relações entre o Império e a Igreja; com a transferência da capital administrativa
do Império para Constantinopla e a relativa autonomia política do Ocidente, mais se
acentuou o isolamento espiritual deste em função do Oriente. Foi no Oriente que
nasceram e foram combatidas algumas grandes heresias – que o Ocidente
desconheceu – e também no Oriente foi organizada e formulada a Teologia pelos
Padres da Igreja e, bem assim, incrementada a espiritualidade ascética e monástica,
pela vivência dos Padres do Deserto.
Se o Símbolo de Nicéia (325) prevalecera no Oriente contra os seus
opositores, a partir do momento em que Constâncio alargou o seu poder ao
Ocidente (353), procurou também fazer prevalecer a sua política religiosa contra
Santo Atanásio e os defensores do Símbolo Niceno, colocando-se do lado dos
arianos. No Ocidente, a querela do arianismo, de que mal se vislumbravam os
fundamentos teológicos, tomou antes contornos de independência da Igreja face ao
poder imperial. Com o novo Imperador Juliano, o Apóstata (361-363) todas as
tendências foram livremente aceites, tendo os ortodoxos nicenos readquirido
vantagem. Depois sucedeu-se um Imperador perfeitamente ortodoxo, Valentiniano I
que, todavia, não conseguiu restabelecer a unidade, mantendo-se os bispos arianos,
coevos de Constâncio, em funções. Não tendo as decisões sinodais contra eles
poderes de execução, o governo preferiu “ignorá-los” e esperar que eles
“desaparecessem” por si mesmos.
A reorganização da Igreja “de Estado” tendo como base o Concílio de Nicéia,
foi obra realizada pelo Padre da Igreja que passamos a abordar: Santo Ambrósio de
Milão – com influência decisiva, também, na disputa com os arianos. Antes dele,
porém, é da mais elementar justiça referir que essa obra foi começada por Santo
Hilário Bispo de Poitiers, um ortodoxo niceno inquebrantável. Este Santo Pontífice
gaulês foi exilado para o Oriente, onde apreendeu o significado e a complexidade
teológica da disputa e compôs depois tratados e opúsculos destinados a informar os
outros bispos ocidentais sobre o alcance eclesial e teológico em causa. De volta à
sua pátria, ocupou-se em reorganizar a unidade da sua Igreja, opondo-se aos
arianos mais renitentes. Finalmente esbarrou contra a resistência e a indiferença
administrativas, assim como contra o influente bispo ariano Auxentios de Milão,
tendo, entretanto, nascido para os Céus.
Ambrósio nasceu em Trevas, na Gália, em 339, onde seu pai, Aurélio
Ambrósio, exercia a elevada função de Prefeito da Gália. A morte prematura deste
conduziu a sua piedosa viúva para Roma com os seus três filhos, sendo a sua
família uma das primeiras da cidade. Tendo Ambrósio nascido em ambiente cristão,
desfrutou ainda duma ótima formação, tendo adquirido sólida cultura, que se
associou às suas faculdades naturais de inteligência, caráter enérgico e de
diplomata-nato. Não será, pois, de admirar que, do mesmo modo que o seu irmão
Sátiros, tenha exercido a advocacia em Sirmium – junto ao tribunal central – ao
tempo a mais importante metrópole dos Bálcãs. Em 370, com 30 anos de idade, foi
nomeado governador das províncias da Ligúria e da Emília, na Itália do Norte, cuja
capital administrativa era Milão, funções que exerceu com a estima do povo.
Á morte do bispo Auxentios, em 374, os nicenos acreditaram ter chegado a
hora de se pôr fim à heresia ariana. Os partidários de Auxentios não estavam,

236
porém, “pelos ajustes”, pelo que a “campanha eleitoral” ameaçava degenerar em
conflito aberto e generalizado.
Ambrósio acorreu à igreja tentando serenar os ânimos, ocorrendo então um
incidente inesperado e providencial: uma criança, no meio da multidão, grita:
“Ambrósio, bispo!” e imediatamente, como por milagre, todos os presentes ter-se-ão
unido espontaneamente a essa candidatura proposta (cf. Paulino, Vida de Santo
Ambrósio, 6). Nessa convergência favorável terão pesado a sua conduta
irrepreensível e intocada pelas querelas precedentes, até certo ponto “neutra”, se
bem que de vertente nitidamente pró-nicena.
Apanhado de surpresa, Ambrósio, ainda não batizado, tentou inicialmente
eximir-se à eleição, acabando, por fim, por submetê-la à aprovação do Imperador.
Chegando, todavia, ao assentimento incondicional de Valentiniano I, submeteu-se e,
antes de concluído esse ano de 374, com 35 anos de idade, foi sagrado Arcebispo
de Milão.
Se o Governo e o Povo esperavam de Santo Ambrósio o restabelecimento da
unidade na sua Igreja, ele não os decepcionou: começou, primeiro, por pedir o
batismo e a sagração das mãos dum bispo niceno. Depois, o seu primeiro ato, já
como bispo, consistiu em fazer transladar solenemente para Milão as Santas
Relíquias do seu predecessor na Sé milanesa, Dinis, ortodoxo niceno, exilado
compulsivamente e substituído por Auxentios e que nascera para os Céus no exílio.
A viragem no sentido da Fé de Nicéia foi, assim, inequívoca. Por outro lado, o novo
titular da cátedra milanesa abriu as portas ao clero de Auxentios, o que permitiu
completar a sua obra de unificação e conservar junto de si um clero que se lhe
manteve fiel nas lutas futuras.
Como a maior parte dos Padres da Igreja, Santo Ambrósio estimava que o
dever essencial do bispo residia na explicação e pregação da Sagrada Escritura. Por
diferenciadas que fossem ao longo dos anos as suas atividades – que passaram
pela administração, a política da Igreja, a formação do seu clero e a direção
espiritual – Santo Ambrósio nunca negligenciou este dever de pregar. Como S. João
Crisóstomo, de voz fraca e débil, sabia, porém manusear com mestria a arte da
retórica, embora esta em si mesma o não condicionasse na sua exposição. Era um
orador altamente apreciado atraindo também assistentes de fora de Milão (como
testemunha Agostinho de Hipona, que assistiu a algumas dessas pregações na sua
juventude).
O conteúdo das pregações era, também, altamente aliciante. Santo Ambrósio
utilizou a interpretação alegórica do Antigo Testamento o que, no Ocidente, era algo
de novo. Conhecedor profundo da língua grega, hauriu na fonte e no essencial as
obras dos Padres Gregos (sobretudo os alexandrinos, e em especial Orígenes) e
ainda de Fílon de Alexandria, a partir das quais explanou os seus comentários em
sermões na sua forma preferida: em séries temáticas. Começou, desta maneira, pelo
1º livro da S. Escritura, que foi sempre o seu favorito, publicando posteriormente
tratados sobre o Paraíso, Caim e Abel, Noé e a Arca, etc. Mais tarde publicou,
baseado em S. Basílio, a sua obra “De Hexameron” (os seis dias da Criação).
Progressivamente, a sua interpretação torna-se cada vez mais livre
relativamente aos teólogos gregos. As exigências da vida prática fizeram-no
acentuar a vertente moral da vida cristã. Em belos comentários aos Salmos e ao
Evangelho de S. Lucas, vê-se emergir a doutrina da Salvação e a Boa-Nova sob
uma forma vigorosa e pessoal.
Mas a sua obra literária começou pelos panegíricos em honra de seu irmão
Sátiros, nascido para os Céus poucos meses depois da entronização de Sto.
Ambrósio na Cátedra milanesa. A estes seguiram-se outros, pouco tempo depois,
em honra de sua única irmã, Marcelina. É de sublinhar que os três irmãos haviam
conservado o estado celibatário, tendo sua irmã feito voto de virgindade ainda antes

237
de ele ser sagrado bispo. Este tema da virgindade, sobre o qual muitas e muitas
vezes falou e escreveu, é caro o Santo Ambrósio, defendendo-a como uma forma
superior de vida. As suas recomendações ascéticas dirigem-se, por assim dizer,
exclusivamente às virgens consagradas a Deus e às viúvas, as quais não estavam,
ainda nessa época, reunidas em mosteiros, formando na Igreja um “estado” à parte.
Santo Ambrósio define três graus de “castidade”: o matrimônio – fiel e único,
se possível – a viuvez e a santa virgindade das “esposas de Cristo”. Os méritos da
virgindade são incontestáveis. O Arcebispo de Milão não imprime, todavia, a tônica
num esforço ascético exagerado, tendente a bater recordes de zelo, mas antes que
as virgens levassem, no seio de suas famílias, uma vida silenciosa e recatada,
votada ao jejum, à oração, em suma à santificação, num espírito de devotamento e
de humildade. Muitas vezes, porém, Santo Ambrósio teve de enfrentar publicamente
os próprios pais dessas virgens zelosas, dispostos a desviá-las da vida ascética
para o matrimônio, por lhes proporcionar uma situação social mais confortável,
contra os quais procurou evidenciar a seriedade e a sublimidade da vida espiritual
baseada na renúncia.
Mas Santo Ambrósio não podia limitar a sua pastoral aos aspectos
comunitários: outras situações exigiam a sua atenção, como a situação da Ortodoxia
nas dioceses vizinhas. Santo Ambrósio e outros bispos conseguiram a entronização
de um Hierarca ortodoxo, no lugar dum ariano, na Metrópole de Sirmium. Mas ainda,
reunidos em Concílio nesta mesma cidade, proclamaram novamente, de forma
solene, a Fé de Nicéia. A gravidade da necessidade de proclamação da Fé fez de
Sto. Ambrósio, nos anos seguintes, um dogmático: aprofundou os seus estudos dos
Padres Gregos e estabeleceu relações pessoais com S. Basílio, o Grande. À
doutrina, já desenvolvida de forma acessível por Tertuliano, da inseparável unidade
da “substância” divina e das três Pessoas divinas distintas, restava acrescentar,
contra os arianos, a “igualdade” das Pessoas e excluir todo o subordinacionismo,
que fazia derivar, inferiorizando-Os, o Filho do Pai, e o Espírito Santo do Filho.
A sua doutrina trinitária foi desenvolvida seja pela pregação seja por escrito:
primeiro num grande volume, “Sobre a Fé, a Graciano”, depois em três volumes
“Sobre o Espírito Santo” (obra homônima da de S. Basílio), e finalmente no grande
estudo sobre “O mistério da Encarnação do Senhor”, onde são aplicadas na Pessoa
de Deus-Homem as conseqüências da doutrina trinitária, indo mais além que os
seus antecessores orientais.
Não deixa de surpreender a decisão e a segurança como em poucos anos
(entre 378 e 382) Santo Ambrósio percorreu este ciclo de questões. Quanto à
filosofia, ela não lhe era estranha, mas acaba por condenar as grandes correntes
filosóficas, poupando apenas o platonismo, afirmando, à semelhança de outros
Padres Orientais, que Platão se inspirara no A. Testamento.
O argumento escriturístico permanece, para o Sto. Hierarca milanês, como
imprescindível para toda a Teologia, tendo Deus por objeto. A sua teologia é uma
Teologia de Revelação. O abismo, instransponível, entre Deus e a criatura, só pode
ser superado pela palavra e a ação de Deus, em razão das duas naturezas divina e
humana da Pessoa Divina do Salvador.
As questões religiosas têm um limite: ao aflorar as profundezas da divindade,
ele “prefere temer a conhecer” (sobre a Fé, a Graciano, V, 18,221), colocando o
acento na Fé e na obediência à Fé como elemento essencial da Religião. O seu
pensamento segue o rigor categórico de Tertuliano. Ninguém exprimiu de forma tão
enérgica a lógica inquestionável e a esquematização da doutrina trinitária, razão
porque alguns lhe atribuíram a redação do Símbolo da Fé de Sto. Atanásio.
É interessante referir que passados estes seus primeiros anos dedicados às
questões dogmáticas, nos anos subseqüentes limitou-se tão-somente a conservar e
a defender a Verdade já encontrada e definitivamente estabelecida e, quanto ao

238
resto, em desempenhar os deveres impostos pela vida espiritual e prática da
pastoral.
A ação de Santo Ambrósio situou-se, também, num plano onde se sentia à
vontade: na política. Tratou, primeiro, de assegurar o reconhecimento e proteção da
parte do Estado do cristianismo ortodoxo – que foi garantido no tempo do Imperador
Valentiniano I – depois pela liberdade, direito e poder da sua Igreja. Finalmente,
serviu-se dos meios coercitivos do Estado para submeter os hereges que lhe
opunham outra fé.
Concretamente, os Godos, que em 378 haviam aniquilado o exército romano
e ocupado a quase totalidade dos Bálcãs, eram mantidos a custo nos territórios por
eles conquistados. Se parte deles era pagã, a outra, convertida por Ulfila, professava
o arianismo, pelo que os termos “germânico” e “ariano”, por um lado, e “romano” e
“cristão ortodoxo”, por outro, se tornaram em conceitos quase sinônimos.
Santo Ambrósio proclama, como dever do cristão, a lealdade ao Império, não
somente por parte dos cidadãos romanos, como pelos bárbaros das regiões
exteriores ao Império.
Pressionado, o Governo vê-se na contingência de, temporariamente, se
mostrar compreensivo para com os Godos, enquanto Santo Ambrósio se vê a tolerar
que, na própria cidade de Milão, uma igreja seja colocada à disposição dos arianos.
Mas, entretanto, a situação vai-se equilibrando, não só política como
eclesiasticamente. O jovem Imperador Graciano, a quem Santo Ambrósio dedicara a
sua obra “Sobre a Fé”, fixa a sua residência em Milão e adota espontaneamente
como conselheiro o Arcebispo dessa cidade metropolitana do Norte da Itália. Ao
mesmo tempo, o mais importante dos homens que com ele partilham o poder, o
general Teodósio, oriundo da Península Ibérica, faz também confirmar o
reconhecimento da Fé de Nicéia no Oriente.
O grande Concílio Ecumênico de Constantinopla em 381 e, no Ocidente, o de
Aquiléia, presidido por Sto. Ambrósio, puseram fim a esses anos perturbados, sendo
os bispos arianos afastados das suas Sés pelas autoridades governamentais. A
Ortodoxia passou a reinar com exclusividade em toda a Itália e na Ilíria.
Em 383, o imperador Graciano foi assassinado e após algumas negociações
diplomáticas com o anti-imperador, Santo Ambrósio assegurou a proteção de
Valentiniano II, ao tempo com 12 anos de idade, e que era irmão do defunto
imperador, conservando para ele a Itália. Para o Arcebispo de Milão, não se tratava
aqui, como em muitas ocasiões durante a sua vida, de “meter a mão” em assuntos
de Estado, mas sim do exercício tradicional dos Bispos em favor dos fracos (cf.
Epistolae 24,5), para a proteção da Fé e da sua Igreja.
Entretanto, o paganismo e o arianismo, que não haviam sido definitivamente
erradicados, procuravam recuperar terreno: 1º o paganismo, que havia sido a
religião oficial do Império. Ainda no tempo do Imperador Graciano, havia sido
retirada do Senado romano a estátua da deusa Vitória. Agora, através do seu atual
prefeito, Símaco, simultaneamente o mais ilustre escritor e rector de Roma, ainda
aparentado a Santo Ambrósio, foi enviada por aquele em petição, redigida com toda
a arte da retórica, ao Imperador, pedindo a tolerância para a religião dos seus pais e
a reposição da estátua, com uma argumentação quase irresistível. Tendo tomado
conhecimento das negociações que já se desenrolavam nesse sentido, o Hierarca
milanês conseguiu inverter o processo, afirmando a direta competência do Bispo nos
assuntos de Deus e na causa da Religião. Escreveu ao Imperador na qualidade de
seu diretor espiritual afirmando, por exemplo, que se admirava de alguém poder
conceber que o dever de um imperador cristão fosse de reerguer altares pagãos (cf.
Epistolae 17,3). Tendo em seu poder um exemplar da petição de Símacos, refutou-a
adotando inicialmente uma atitude de pseudo-neutralidade, mas declarando depois
que as religiões não podem serem postas todas em pé de igualdade; explica,

239
nomeadamente que, na política, o sucesso e o insucesso nada tem a haver com a
Religião. E “agora que (Roma) já não partilha com os Bárbaros o fato de não
conhecer ainda o verdadeiro Deus, ela nem sequer cora de querer mudar para pior!”
(cf. Epistolae 18,7). Santo Ambrósio ganhara a causa, mas também a antipatia dos
meios influentes, que em breve se iria fazer sentir.
Quanto à reação do arianismo, sem apoio popular, os seus partidários
procuraram reservar para si o estatuto de igreja minoritária, servindo-se do apoio da
força pública, mais especificamente da imperatriz-mãe, Justina. De temperamento
autoritário e por diversas vezes, no passado, forçada a submeter-se às diretrizes do
titular da cátedra de Milão, a viúva do Imperador Valentiniano I sentia-se agora livre
para impor as suas idéias conservadoras. Tendo por capelão um ariano da Ilíria,
eleito como bispo antiniceno para Milão, este escolheu para si o nome significativo
de Auxentios. A exigência apresentada pela corte a Santo Ambrósio já tinha
antecedentes: colocar à disposição de Auxentios uma pequena igreja às portas da
cidade. Santo Ambrósio, porém, com o apoio de todo o povo, recusou liminarmente
o pedido. Tendo o povo irrompido em tumulto pelo palácio, a corte retirou-se, por um
período de quase um ano, de Milão. Em janeiro de 386, surge um édito imperial
outorgando o direito da reunião pública aos seguidores da teologia dita “homeana”,
isto é, anti-nicena e interditando-o “àqueles que imaginavam serem os únicos com
possibilidade de reunir as ditas assembléias”. A transgressão a este édito era
punível com a morte (Codex Theodosianus XVI, I, 4).
Perante a gravidade das ameaças, Santo Ambrósio começou primeiro por
reunir-se com os bispos circunvizinhos, que lhe deram valentemente o seu apoio.
Depois inflamou entusiasticamente todo o seu povo pelos sermões, as alocuções e
os cânticos religiosos. Distribuiu ainda peças de ouro aos seus fiéis cristãos.
Quando, pouco antes da Páscoa, os enviados da corte chegaram para tomar posse,
não da pequena igreja pedida, mas da própria basílica, encontraram-na repleta de
povo fiel ao seu bispo ortodoxo. Agostinho de Hipona recorda, com emoção, a
vivência destes momentos, para eles inesquecíveis. Não obstante a presença dos
soldados, o povo espancou uns inesquecíveis. Não obstante a presença dos
soldados, o povo espancou um presbítero ariano que apareceu (e depois disso
nenhum mais ousou aproximar-se) e continuou a afluir à igreja, em massa, disposto
a sofrer e a morrer. Quanto a Sto. Ambrósio, mantinha na retaguarda o controle da
comunidade. Além disso, elevou sempre a questão para o plano espiritual,
declarando, por exemplo: “Não excitei o povo a sublevar-se, é um negócio de Deus,
não meu, reconduzi-lo à calma” (Epistolae 20,10). Quanto ao recurso à violência, só
poderia trazer conseqüências desastrosas. Pelo contrário, recorre a uma só arma
nova, cuja autoria atribui a S. Paulo, quando diz: “No momento em que estou fraco,
é então que sou forte” (2 Co. XII, 10): esta arma é a resistência passiva, aplicada
pela primeira vez em grande escala, e que se tornará doravante na arma principal da
Igreja em todas as contendas com o poder do Estado.
Convocado a comparecer no palácio para aí negociar, Santo Ambrósio
escreveu, antes, uma admirável carta diplomática dirigida à pessoa do Imperador e
da qual ressalta a intangibilidade doutrinal da Igreja e a necessária independência
do seu clero. Por outro lado, até o próprio poder imperial é limitado pelo poder da
Igreja. O Imperador: é “filho da Igreja”, o que não é uma ofensa, mas uma honra
(Sermão contra Auxentios, 36).
Por fim o Governo cede e na Quinta Feira Santa desse ano (386) decide por
côbro a uma causa sem esperança: as bandeiras imperiais foram retiradas da
Basílica, as sentenças revogadas, os presos postos em liberdade e até os próprios
soldados se juntaram ao povo fiel. A catástrofe fora evitada.
Algum tempo depois Teodósio, o Grande, na seqüência duma guerra civil que
Santo Ambrósio tentou em vão evitar, assumiu praticamente sozinho o poder em

240
todo o Império. Sendo não só excelente militar como ótimo político, procurou alargar
ao Ocidente o ideal de uma Igreja dogmaticamente estabelecida, como o conseguira
no Oriente.
É de realçar que de 388 a 391 Teodósio fez de Milão a sua residência
preferida, sendo freqüentes os seus encontros com o Arcebispo milanês. Todavia,
alguns atritos houve entre ambos: Teodósio pensou, a pedido do Senado,
restabelecer as prerrogativas ao culto pagão, ao que Santo Ambrósio se opôs, “por
questão de prestígio” da Igreja. Outro motivo foi um incidente causado pelo incêndio
duma sinagoga por parte de alguns monges, os quais Teodósio se propunha
castigar exemplarmente. Uma vez mais foi contrariado por Santo Ambrósio, que
declarou ser um crime oferecer tal triunfo aos Judeus enjeitados por Deus: que é
que, afinal, deveria prevalecer: uma concepção de ordem, ou o interesse da
religião? “Quando a piedade ordena, o direito de punir deve ceder” (Epistolae 40,11).
Outra situação, porém, revestiu contornos muito mais dramáticos. Para vingar
um motim sangrento ocorrido em Tessalônica, na Macedónia, Teodósio acabara por
mandar massacrar alguns milhares de habitantes pelos soldados...
Uma cruel execução em massa seria perdoável pelo fato de provir do poder
imperial? Impunha-se uma penitência, que nesse tempo era tão-somente pública.
Entretanto, Santo Ambrósio retirou-se da cidade para, mais uma vez, assegurar o
acordo dos bispos mais próximos. Depois, dirigiu uma carta a Teodósio, redigida,
com sempre, com o maior cuidado. Nela afirma que “Deus é misericordioso e não
quer que o pecador se perca. Mas não lhe perdoa o seu pecado se ele não se
arrepender e não estiver disposto a sofrer as conseqüências... Se o padre não disser
a verdade àquele que se afunda no erro, este morrerá no seu pecado e o sacerdote
levará consigo a responsabilidade da punição, por não ter advertido aquele que se
desencaminhava” (Epistolae 51, 15, 3).
Exemplos admiráveis a seguir são os do rei David e do poderoso Job. Se o
fizer, colocar-se-á ao nível dos Profetas de outrora. Ao Imperador cabe a decisão:
“Se tens Fé, obedece-me, aceita o que eu digo; se não tens Fé, perdoa-me o que
faço – devo dar glória a Deus” (Epistolae 51,17).
E o Imperador submeteu-se, com sincero arrependimento: pelo menos uma
vez, foi à igreja, sem qualquer insígnia da dignidade imperial, como penitente e lá,
como o exigia o costume, reconheceu a sua falta diante da comunidade.
Em 391 o Imperador partiu de novo para o Oriente deixando em Itália o Santo
Arcebispo como homem de confiança. Pouco depois, a Gália sublevou-se de novo
com um usurpador que não reconhecia Teodósio e que tentou ganhar Santo
Ambrósio para sua causa. O Arcebispo de Milão retirou-se para Florença, não
revendo a sua cidade durante um ano. E quando Teodósio, uma vez mais,
regressou vencedor, o Santo Arcebispo apressou-se a ir ao seu encontro pedindo o
perdão para os vencidos; ao que o Imperador respondeu publicamente dever a sua
salvação “aos méritos e às orações do Arcebispo” (Paulino, Vida de Santo Ambrósio,
31). Teodósio morreu pouco tempo depois e Santo Ambrósio fez-lhe o elogio
fúnebre enaltecendo-o como modelo de grande e piedoso príncipe.
Os objetivos da sua vida foram plenamente alcançados. Santo Ambrósio,
todavia, não deixou por isso de continuar com uma pastoral extremamente ativa até,
por fim, após ter regressado duma viagem em que sagrou um bispo vizinho, contrair
uma doença com a qual veio a nascer para os Céus, em 397.
O bom presbítero e ancião Simpliciano, que o havia instruído antes do
batismo e o acompanhara nos momentos decisivos, foi o seu sucessor. O
desaparecimento de Santo Ambrósio poupou-lhe o assistir ao desmoronamento do
Império Romano. Só a Igreja viria a subsistir num mundo transformado.

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Quando enaltece a magnificência da Igreja, Santo Ambrósio não se refere às
suas formas visíveis, mas àquilo que Ela é misteriosamente no Espírito. A Igreja é a
Esposa de Cristo, a Santa Cidade de Deus, a grande encruzilhada dos povos.
Santo Ambrósio é um teólogo fecundo dos Sacramentos e Sacramentais e o
1º a dar o exemplo mandando fundir alfaias litúrgicas para minimizar os efeitos da
pobreza quando dos ataques dos Godos. Como ele diz “os pobres são o verdadeiro
tesouro da Igreja” (cf. Exposição do Ev. S. Lucas VIII, 79).
Em matéria de eclesiologia, Santo Ambrósio age como Metropolita, em pé de
igualdade com o titular de Sé de Roma. Afirma que Pedro foi tão-somente o 1º a
confessar a Cristo (Mt XVI, 16).
Para ele, o bem supremo já não é a virtude, mas a felicidade eterna no Além
e a comunhão com Deus. Neste sentido, Santo Ambrósio desenvolve a noção da
liberdade espiritual, da fé, da graça, da cristificação dos fiéis. De nada servira a
vinda de Cristo ao mundo se Ele não entrar também nos corações, a fim de expulsar
não somente o pecado como o deleite em pecar.
Santo Ambrósio é também poeta e compositor de hinos religiosos: cria o estilo
ambrosiano e inicia a himnologia na Idade Média, no Ocidente. Foi com esses hinos
que se pôde consolar, em benfazejas lágrimas, após o falecimento de sua mãe.

BEM-AVENTURADO AGOSTINHO, BISPO DE HIPONA (354-430)

Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia (hoje Argélia). É um cidadão


africano, tendo o latim por língua materna. O seu pai, Patrícios, um proprietário,
pertence à nobreza imperial e era pagão, só se tendo aproximado da Igreja e
recebido o batismo já perto dos seus últimos dias de vida (371). Sua mãe, Mônica,
era cristã fervorosa; para este seu filho extraordinariamente bem dotado, sonhava
com a recepção dele na Igreja e lhe assegurar um futuro brilhante. Criança ainda,
ele adoeceu gravemente, pedindo o batismo, tendo sido inscrito como catecúmeno
pela mãe. Mas tendo recuperado rapidamente, a sua recepção na Igreja foi
protelada.
Os seus estudos primários efetuaram-se em Tagaste, continuando-os depois
na vizinha Madauro. Segundo a vontade do pai, ele deveria formar-se como reitor (o
que seria equivalente, hoje, a professor catedrático). A concretização deste projeto
auspiciava, para um aluno bem dotado como ele, as melhores perspectivas de
futuro.
Um aspecto importa salientar desde já, que teve importantes conseqüências
na sua futura formação teológica: nunca conseguiu aprofundar os seus
conhecimentos da língua grega, o que veio a limitar o desenvolvimento do seu
pensamento na filosofia e na teologia e a condicioná-lo às escassas e insuficientes
traduções para o latim dos principais autores gregos, tendo como conseqüência, por
não se poder fundamentar nas principais obras dos Padres da Igreja, o ter avançado
para a improvisação do autodidata e para a originalidade... o que comporta graves
riscos no domínio da Teologia.
Em 371 transferiu-se para Cartago (onde cometeu alguns disparates). Dois
anos depois, aos 18 anos de idade leu, conforme o programa de estudos, a obra
“Hortensius”, de Cícero (hoje perdida), que despertou nele o interesse pela filosofia –
“o amor da sabedoria” – e a uma busca da Verdade, que viria a animar toda a sua
vida. Esta busca impeliu-o ao estudo da Sagrada Escritura, que depressa o
desiludiu: para o jovem Agostinho, como mais tarde para os humanistas da
Renascença, esta desilusão deveu-se, não ao conteúdo, mas tão-somente a
questões de pureza gramatical e estilística (de forma) dos textos sagrados.
Pouco tempo depois aderiu, na qualidade de ouvinte, ao maniqueísmo, que
lhe parecia, homem orgulhoso do saber, como religião fundada na “razão” e livre de

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toda a autoridade – contrapondo-se à Igreja Católica e arrogando-se a condição de
detentora da “verdadeira doutrina cristã”. Quando em 374 / tendo concluído com
brilhantismo os seus estudos, regressou a Tagaste como mestre de “gramática”,
Mônica não recebeu em sua casa o filho apóstata, que rejeitara a Fé de seus pais.
Regressando, pouco tempo depois, a Cartago e tendo de sustentar um
agregado familiar, com vinte anos de idade, recorreu naturalmente ao ensino, ofício
que viria a exercer durante 13 anos. Nesse período, as dúvidas que foi concebendo
sobre a verdade do maniqueísmo foram-se acentuando, reconhecendo as
contradições do seu dualismo estrito e da sua noção de Deus. A sua decepção foi
total quando, por ocasião de um debate público com o célebre bispo maniqueísta
Fausto de Mileve – considerado o maior expoente da sua seita – constatou a falta de
cultura do bispo (para além da deficiente argumentação teológica). Agostinho
abandona, então, o maniqueísmo (383).
Após um período em que lecionou em Roma (a indisciplina dos alunos de
Cartago – que zombavam da sua baixa estatura – tornara-se-lhe insuportável)
obteve, a instâncias do prefeito de Roma, Símacos (cf. textos sobre Sto. Ambrósio
de Milão), a cátedra oficial de mestre de retórica, em Milão. Apesar da sua eminente
situação social e de estar novamente acompanhado de sua mãe e outros parentes
próximos, Agostinho sentia avolumarem-se as suas dúvidas e perturbações
interiores.
A audição das magistrais e empolgantes pregações de Santo Ambrósio – que
explicava, freqüentemente, pela alegoria, os textos veterotestamentários –
desvendou-lhe um caminho para vencer a crítica maniqueísta do Antigo Testamento.
Pode, então, conciliar o reconhecimento de Deus como puro Espírito, a
espiritualidade da alma e a liberdade desta, em harmonia com a doutrina da Igreja,
apesar da aparentes contradições com o AT.
A leitura de obras de inspiração neoplatônica (nomeadamente de Plotino, em
tradução para o latim), revelou-lhe ser Deus uma “substância” puramente espiritual e
não ser o mal substância em si mesmo. O presbítero Simpliciano, igualmente de
orientação neoplatônica, futuro sucessor de Santo Ambrósio na cátedra milanesa,
relacionando a cristologia com a doutrina sobre o espírito, abre a Agostinho novas
perspectivas.
Assim, foi pela filosofia que Agostinho chegou à fé em Deus – Logos Eterno.
O mesmo padre Simpliciano alertou-o para a importância das Epístolas Paulinas,
que lhe revelaram ser a Graça o único meio para o Homem ascender à união com
Deus na Fé, a qual pretendera, como neoplatônico, alcançar por meio da meditação
filosófica.
Perante a impetuosidade dos conflitos interiores de Agostinho, o Pe.
Simpliciano evoca-lhe o exemplo do célebre reitor Mário Victorinos, que
energicamente se fizera cristão, para surpresa da sociedade romana. Aliás, foi
precisamente pela leitura das traduções para latim deste ex-reitor, de alguns
tratados de Plotino e de Porfírio, que Agostinho melhorou os seus conhecimentos de
platonismo, “acendendo nele uma chama incrível” (Contra Acadêmicos II, 2 – 5). Só
muito mais tarde, nos seus últimos anos de vida, Agostinho constata algumas
incompatibilidades entre o platonismo e o cristianismo, nomeadamente a noção do
corpo – cujo papel é votado ao desprezo pelo platonismo, em oposição à concepção
autenticamente cristã do Homem, constituído por alma e corpo, corpo ao qual é
prometida a Ressurreição.
Um dia, um amigo faz-lhe referência à vida austera de Santo Antônio do
Deserto e Agostinho sente que chegou a sua hora de decisão. Passa-se, então, uma
das cenas da sua vida mais conhecidas – o célebre episódio do jardim, ao qual
desce, profundamente comovido. Ouve nesse momento uma voz de criança, na rua,
repetir as palavras: “Tolle, lege” (toma e lê) e tendo aberto as Epístolas de S. Paulo,

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leu a passagem de Rm XIII, 13 s, que exorta à honestidade, à continência e a
revestirmo-nos do Senhor Jesus Cristo. A partir daí, como ele próprio afirma, “as
trevas da dúvida dissiparam-se-lhe” (Confissões, 8, 12, 29).
Algumas semanas mais tarde renunciou à sua cátedra e retirou-se para
Cassiciacum, propriedade rural dum amigo, não longe da cidade, com alguns
familiares e amigos, preparando-se para sua recepção na Igreja. Na noite pascal de
387 foi batizado por Santo Ambrósio.
A conversão de Agostinho não é uma passagem da descrença à fé, nem da
filosofia à teologia, nem tão-pouco da independência espiritual à submissão à Igreja:
é a renúncia a uma vida mundana para abraçar um modo de vida autenticamente
cristão. Após um longo e duro combate renuncia, por convicção, à hipótese do
casamento, à riqueza, à fama e à admiração dos homens. É uma conversão de
ordem prática, marcada por um cunho ascético.
Alguns meses mais tarde, parte de regresso a África, passando por Roma,
ocorrendo então o nascimento para os Céus de sua mãe. Santa Mônica, cristã
admirável, despedira-se reconfortada, dizendo que “já nada tinha a fazer aqui, pois
vira o seu filho não só ter-se tornado cristão católico, como ainda empenhado em
servir a esta vida desprezando as felicidades terrenas”. De volta a Tagaste, sua
cidade natal, vendeu as propriedades paternas e agrupou em torno de si os seus
mais fíéis amigos, organizando uma comunidade de cariz ascético, onde pensava
passar o resto dos seus dias em retiro, na ascese e no aprofundamento da sua
vocação filosófica e religiosa. A verdade, porém, é que este período da sua vida não
chegou a durar três anos.
No ano de 391 entrou, um dia, na catedral de Hipona, desconhecendo que as
circunstâncias em que o fazia iriam mudar a sua vida. O Bispo Valério, de
ascendência helênica e com dificuldades em pregar em latim, necessitava de quem
o pudesse secundar nesse múnus, que ordinariamente era exercido pelo Bispo. A
fama de piedade e de ciência de Agostinho havia-o, porém, precedido e não tardou
muito que o Bispo, com a aclamação do povo, o quisesse ordenar diácono.
Apanhado de surpresa e recusando inicialmente, acabou por aceitar, iniciando-se
nova etapa da sua vida. O seu interesse intelectual, que até ao momento estava
virado para a filosofia e as artes liberais, voltou-se então para a teologia e a ação
pastoral.
Com o nascimento para os Céus do Bispo Valério, Agostinho é sagrado
Bispo, sucedendo-lhe na cátedra de Hipona, no ano 395.
Hipona era a cidade mais populosa da Numídia, com seu porto na costa
mediterrânica e a mais importante depois de Cartago. Era composta por um tecido
heterogêneo de pessoas de todos os estratos sociais, de diversas confissões
religiosas e até de línguas diferentes. O Bispo estava lá para todos, pois a sua
jurisdição não se cingia somente à pregação e à direção das almas, mas tinha
também, segundo a prática desse tempo, funções mais alargadas (como veremos
de seguida).
Como Bispo, Agostinho continuou a viver uma vida de pendor monástico,
reunindo em torno de si o clero diocesano – como havia feito antes em Tagaste com
os seus amigos – e instituindo uma regra: ascetismo (moderado) castidade e
pobreza (com entrega dos bens ao entrar na comunidade). Esta comunidade
episcopal, vocacionada para o trabalho pastoral, veio a inspirar nos tempos
medievais a instituição dos cônegos regrantes.
Este trabalho pastoral incluía, para além da celebração litúrgica diária, da
administração dos sacramentos, da pregação - à qual Agostinho dedicava um zelo
incansável (não sendo Agostinho o criador do sermão latino, conduziu-o, no entanto,
à perfeição, tornando-o em modelo para os tempos vindouros) – múltiplas outras
ações sociais e caritativas: defesa e proteção dos pobres junto dos magistrados;

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administração do patrimônio da Igreja; exercício da justiça até em questões profanas
(como tutelas, heranças, etc.); para além de viagens, colóquios e reuniões
conciliares; tudo isto associado à sua quase inconcebível atividade literária, para a
qual reservou boa parte das suas energias.
Sendo o seu amigo e irmão no episcopado o Bispo Aurélio de Cartago,
Primaz da Igreja do Nordeste africano, este cedeu ao Bispo de Hipona muitas vezes
a palavra ou a pluma, conduzindo este último a ser o verdadeiro animador de toda a
política eclesiástica africana no seu tempo. A sua correspondência estendeu-se a
toda a Igreja no Ocidente, chegando episodicamente ao Oriente.
Após o seu abandono do maniqueísmo e os seus esforços de refutação do
mesmo durante cerca de uma dezena de anos (até 400), seguiu-se o período em
que se empenhou em vencer o cisma donatista, que desde o ano de 312 dividia a
Igreja de África, proveniente duma história pouco clara duma antiga eleição dum
bispo para a Sé de Cartago. No tempo de Agostinho, esta cisão implicava uma nítida
divisão sócio-política: dum lado os donatistas, implantados, sobretudo junto dos
berberes, mais pobres, menos “colonizáveis”, menos instruídos, mas também mais
obstinados e constantes – testemunhando-o em tempo de perseguição por
numerosos mártires – e do outro, os católicos que, para os primeiros, representavam
o poder dos colonizadores e dos poderosos. O conflito cristalizou-se na questão dos
sacramentos: a versão dos donatistas era a de que só os clérigos “santos” (sem
faltas graves) podiam ministrar os sacramentos. A partir do momento em que essa
regra terá sido violada com a sagração do dito bispo de Cartago, os católicos
estariam privados do batismo, do sacerdócio, em suma, do Espírito Santo, e não
constituiriam uma Igreja, mas uma seita.
Os Bispos Aurélio e Agostinho empenharam-se, mediante tratados,
pregações e disputas, em procurar negociar com os donatistas, intentando ganhá-
los para a reta fé. Agostinho defendeu a unidade “no seio da Igreja, Corpo de Cristo,
no Espírito Santo, pelo amor vivido entre os irmãos... o amor é a graça do Novo
Testamento; ele é a paz e o próprio Espírito Santo” (veremos adiante a gravidade
desta afirmação...). “Fora desta unidade não há vida em Cristo, nem justificação (do
pecador), nem salvação, nem santificação”. Daqui parte para o argumento da
catolicidade da Igreja, em união de fé e comunhão de amor. “Fora da Igreja não
salvação”.
Agostinho responde objetivamente a cada um dos argumentos dos donatistas
e chega a levantar um inquérito sobre a dita sagração, que ocorrera há três
gerações atrás. Faz uma distinção, no sacramento, entre válido, lícito e eficaz e
apresenta de forma satisfatória a doutrina católica dos sacramentos, concluindo que
o batismo é único e não pode ser repetido (ao contrário do que pretendiam os
donatistas). Quanto à dignidade do ministro do sacramento, é assunto que só diz
respeito ao julgamento de Deus: “Se o servo da palavra evangélica e do sacramento
for bom, torna-se ‘companheiro’ do Evangelho; se for mau, como ‘mordomo infiel’ do
Evangelho, não deixa, porém, de o servir” (Contra litteras Petiliani III, 67). “A
Verdade de Deus serve-se de todos os instrumentos, porque só de si mesma retira a
sua força e a sua fecundidade”.
Sentindo-se do lado mais fraco e não tendo quem pudesse disputar com
Agostinho, os donatistas refugiaram-se numa resistência obstinada e hostil. A
situação arrastou-se ainda alguns anos sem resultados frutuosos, a não ser algumas
conversões isoladas de donatistas. Em 405, o Imperador Honórios publicou um édito
prescrevendo a conversão forçada dos donatistas, com entrega de suas igrejas e
bens aos católicos, interdição de fazerem reuniões cultuais e expulsão. O ponto
culminante desta intensa atividade foi o Concílio de Cartago, em Junho de 411, onde
compareceram 286 bispos católicos e 279 donatistas. Estes últimos, condenados
pelo poder imperial, foram reconduzidos à unidade pela mão tão brutal quanto eficaz

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do braço secular – ação consentida, não sem mágoa, por Agostinho. Perante os
resultados desastrosos e sangrentos dessa ação, o bispo de Hipona vê-se, depois,
forçado a justificar teologicamente o uso da violência, dizendo que “o recurso à
ameaça ou à coerção é lícito em certos casos, do mesmo modo que os pais obrigam
os filhos a obedecer, ou os mestres os aprendizes a trabalhar”. Afirma que “o próprio
Deus, por amar o Homem, também o castiga”; e apóia-se, ainda, na Parábola da
Boda, na exortação de Cristo em “forçarmos” todos aqueles que pudermos a entrar
em Sua casa.
Mas mais importante, para Agostinho, é o argumento de não se tratar neste
caso, de uma questão de consciência ou dum conflito de crença, mas apenas de
preconceitos irredutíveis, da excitação popular e da força do mau hábito, contra os
quais seria adequada uma moderada intervenção das forças da ordem.
Seja como for, estes argumentos afiguram-se-nos demasiado “forçados”.
Como afirma Sua Beatitude Gabriel I, o recurso ao braço secular significa uma perda
de confiança no poder da própria Igreja e na ação do Espírito Santo. Donde, a
atitude de Agostinho de consentimento de intervenção das forças armadas, é
condenada pela Igreja.
Mas Agostinho não pôde respirar fundo após o infeliz encerramento da
questão donatista: novo e temível adversário se perfilou - o pelagianismo – contra o
qual viria a lutar até ao fim dos seus dias.
Pelágio, que se havia distinguido como asceta respeitado, moralista com o
cuidado do progresso espiritual, pôs o acento de tal forma no esforço do Homem e
no seu livre arbítrio, que chegou a minimizar, senão a negar, o papel da intervenção
divina na vida humana e na salvação, pela graça (e, segundo Agostinho, pela
predestinação). Os seus erros foram condenados no fim do Verão de 411 noutro
Concílio em Cartago, na pessoa de Celéstios, que fora discípulo de Agostinho e que,
sendo menos teólogo que Pelágio, extremara ainda mais as suas afirmações.
Mais tarde, em 417-418, novo Concílio Geral em Cartago condenou as
proposições pelagianas que, em síntese, negava as conseqüências do pecado
original, minimizando a obra salvífica de Jesus Cristo. Afirmam, por exemplo, que
“antes de Cristo alguns homens viveram sem pecado, podendo um homem cumprir
os mandamentos de Deus sem dificuldades e preservar-se a si próprio em estado de
inocência e, ainda, que a graça nos é dada em proporção aos nossos méritos”.
É pouco provável que estas afirmações fossem todas proferidas por Pelágio,
pois sempre se expressou cautelosamente. Contra elas levantou-se Agostinho,
dizendo justamente que, quem declara a “inocência” dos recém-nascidos, afirmando
que o Homem, naturalmente, é bom, nega a condição fundamental em que se
encontram os homens “depois de Adão” e torna supérflua a Salvação realizada por
Cristo. E, com isto, nega a Graça, pela qual o ímpio é justificado e que faz
essencialmente, de nós, cristãos (Retractationes II, 52).
Os pelagianistas nunca formaram uma seita propriamente dita, embora o seu
sistema teológico nunca tivesse deixado de existir. Mas após o Concílio de Cartago,
outra personagem entrou na liça e que se revelou, para o Bispo de Hipona, como
adversário mais temível. Se, até aí, ao refutar maniqueístas e donatistas africanos,
Agostinho defrontara contendores medíocres, a situação mudou quando, ao assumir
a defesa dos pelagianistas, se perfilou Juliano, bispo de Eclana, na Campânia (na
Itália) que, como Agostinho, era mestre de retórica e muito culto, e de quem se disse
ter sido o maior mestre de língua latina após Tertuliano. A tática de Juliano incluía,
desde a habilidade em fazer apelos sucessivos de caráter pessoal (afirmando, por
exemplo, que Pelágio não havia roubado pêras na sua infância – como o fizera
Agostinho) ou acusando-o – por vezes com razão – de nalgumas passagens
conservar um pensamento maniqueísta.

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Juliano não entende a nossa condição caída e avança múltiplos argumentos
“lógicos” contra ela. Num ponto específico demarca-se dos seus apaniguados
quando, ao defender que a natureza humana é boa, a concupiscência e a
sexualidade são também boas e conformes à natureza, não obstante terem de ser
controladas.
Agostinho rebate dizendo que a concupiscência está inequivocamente ligada
ao pecado. Defende-se da acusação de maniqueísmo, dizendo que o mal não pode
ser posto em paralelo com o bem: o mal, como tal, é o não-ser, mesmo que, na
perversão da natureza e da vontade, se possa manifestar de forma palpável, como
poder. Mais difícil era explicar a Juliano como se deu a transmissão do pecado
original a todos os filhos de Adão: é certo que todos os homens estavam “nele”
quando Adão comeu do fruto proibido, tendo assim também a sua parte no pecado.
Mas o verdadeiro lugar do pecado é no espírito humano; foi por ele que Adão se
desviou da soberania de Deus, pela sua desobediência e o seu “orgulho”. O pecado
está lá, desde o primeiro instante da vida, e adere ao Homem “por contágio e não
por decisão” (Opus imperfectum IV,98).
Ao abordar a questão da liberdade do Homem, Agostinho declara que “a
vontade libertada faz verdadeiramente o bem e pode adquirir méritos”. Embora
Agostinho diga, acertadamente, que, sem a Graça, o Homem não tem méritos, a
Santa Igreja Ortodoxa corrige-o declarando que todos os méritos foram, de uma vez
por todas, conquistados em nosso favor por Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a
Cruz. Como o próprio Agostinho tantas vezes repetiu, “que tens tu que não tenhas
recebido?” (1 Co. IV, 7).
Á medida que Agostinho avança em idade, mais ele vive para a sua Igreja e
para a sua comunidade com uma afeição sempre mais calorosa e espontânea.
Apraz-lhe constatar que o cristianismo não é vivido como um simples conceito mais
como um testemunho contagiante. Nesse sentido, favorece o culto dos Santos (que
encontra agora novo incremento com o monaquismo) e das Santas Relíquias e
dedica atenção especial ao registro dos milagres conhecidos, que se vão produzindo
principalmente junto dos túmulos dos mártires, a fim de serem lidos nos ofícios
litúrgicos.
Nova provação veio a amargar os últimos dias do grande Bispo de Hipona,
com a irrupção dos Vândalos no Norte da África. Até ao fim, Agostinho não deixou
de exortar e encorajar os funcionários e os militares a cumprirem energicamente o
seu dever. Ele mesmo deu assistência aos refugiados que afluíram à sua cidade
episcopal cercada. Mandou fundir alfaias eclesiásticas preciosas, para minorar a
miséria e continuou a pregar, sem descanso, a palavra de Deus.
No 3º mês de cerco adoeceu passando, a seu pedido, praticamente isolado o
resto dos seus dias, até à sua última hora, em que acorreram os seus amigos, para
unirem as suas orações às dele. Em jeito de testamento ordenou que conservassem
a biblioteca da igreja que, aliás, continha, em grande parte, as suas próprias obras.
Nasceu para os Céus em 28 de Agosto de 430.
Muito contestada – e com razão – durante a vida de Agostinho e pelos
séculos fora, a sua doutrina da graça constituiu uma das suas mais importantes
pedras de tropeço. Segundo ele, a Graça não é dada a todos os homens; ela poderá
ser dada, recusada ou retirada por Deus aos homens, por razões só conhecidas de
Deus. “Mesmo que o Homem seja perfeitamente justo, não pode viver a não ser que
Deus lhe conceda o socorro da eterna luz da justiça” (De natura et gratia 26,29).
A Santa Igreja Ortodoxa refuta esta doutrina, declarando que Deus dá a
Graça a todos e que todos sempre poderão beneficiar dela: o “defeito” está do nosso
lado em não abrirmos a ela. Como Sua Beatitude Gabriel I tantas vezes afirmou, “a
Graça corre abundante e continuamente nos canais da vida; ao Homem caberá
‘abrir a torneira’ para dela beneficiar e nela se santificar”.

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Para refutar o pelagianismo e valorizar a intervenção divina, pela Graça, na
vida e salvação do Homem, Agostinho, em certas ocasiões, quase cai no extremo
oposto como, por exemplo, ao formular a sua teoria das “Duas Cidades” – a dos
“predestinados” e a dos “condenados” – (cf. infra o comentário à sua obra “Da
Cidade de Deus”), onde o Bispo de Hipona parece por todo o peso do lado de Deus,
em detrimento da liberdade humana. E vêm a ser, de fato, discípulos seus que
enveredam por este extremo, denominado predestinacionismo (doutrina afirmando a
pré-eleição da alma humana para a bem-aventurança, em nome da soberania da
Graça divina e negando o princípio da liberdade humana), que viria a ter mais tarde,
no século XVI, como um dos seus maiores expoentes, Calvino. No outro extremo
encontra-se, como vimos, o pelagianismo (que concebe a Graça divina como
conseqüente e proporcional aos nossos “méritos”).
Agostinho consegue, todavia, nesta questão, adotar uma posição intermédia,
afirmando que “é necessário professar com fidelidade a liberdade e a predestinação
(termo usado, aqui, no sentido de “Providência”), esta para bem crer e aquela para
bem viver.” Está, contudo, ainda longe da doutrina do sinergismo (que concilia
harmoniosamente a Graça divina com a liberdade humana responsável), doutrina
esta conhecida e vivida no Oriente Ortodoxo praticamente desde os primórdios da
Igreja e só redescoberta no Ocidente, no séc. XVI, por Melâncton (partidário, no
Movimento da Reforma, de Lutero e famoso como interventor conciliatório nas
disputas entre as Escolas Luterana e Calvinista).
Sobre a verdadeira Liberdade, Agostinho diz que o Homem “resgatado” não a
encontra em si, nem na sua consciência ou confiança em si, mas em Deus, a fonte
da vida. Acrescenta que a verdadeira Liberdade consiste em fazer a vontade de
Deus, que só quer o nosso bem. Aqui, o seu pensamento é perfeitamente ortodoxo.
Faremos, tão-somente, uma ressalva para a infeliz expressão “livre arbítrio”. Ela
traduz uma escolha, ou opção, entre o bem e o mal, equiparados com duas forças
igualmente “substanciais” e poderosas. A verdade, porém é que, como o próprio
Agostinho declarou, o mal não tem “ser” em si mesmo, sendo um vazio, uma
ausência do bem, podendo, todavia, degenerar em destruição e morte. No dia-a-dia,
como no Julgamento Final, o Homem não escolhe entre o bem e o mal: vai, isso sim,
aproximando-se mais de Deus, ou não. Depois da partida deste mundo, já não é
possível inverter-se o sentido dessa marcha.
Passamos, agora, a outros temas caros ao eminente Bispo de Hipona.
Sobre a fé, afirma que ela consiste em ter Deus sensível no coração; que é a
confiança com que a vontade se entrega a uma autoridade reconhecida divina. O
objeto deste ato de confiança não é algum conhecimento “sensível” mas a confissão
das verdades dogmáticas respeitantes a Deus Triúnico, justo e misericordioso e ao
Verbo Encarnado, para a nossa salvação... A fé toma caráter existencial e faz um
corpo único com a esperança e o amor. “Crer” passa a significar, também, aprovar,
aceitar por um ato de vontade, “amar”. É esta atitude que permite “reconhecer” a
Verdade. E reconhecêmo-la na medida em que nos entregarmos a ela, na medida
em que progredirmos em pureza e bondade. A fé é um ato integral de toda a pessoa
humana.
Como muitos místicos, Agostinho sublinha o caráter imperfeito da experiência
de Deus, jamais assimilável na Sua essência, resumindo-se nesta Terra a êxtases
momentâneos e, na Eternidade, à contemplação beatífica de Deus, no sentido duma
jubilosa bem-aventurança.
A solução do problema do “bem supremo” do platonismo, não tem senão uma
resposta: Deus – que é a nossa felicidade, a nossa bem-aventurança, ao qual
importa adorar e darmo-nos por inteiro. Como chegar lá? Pela fé, iluminados pelo
esclarecimento que a Igreja nos dá das Escrituras. Por este meio, na Igreja e pela

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Igreja, pode-se com segurança, chegar ao conhecimento de Deus, necessário à
salvação.
Sobre a fé e o conhecimento, Agostinho não se cansa de repetir: “É preciso
compreender para crer” (intellige ut credas). Mas também afirma: “Se não creres,
não poderás saber”; e ainda, “se não podes compreender, crê, a fim de
compreenderes”. Todavia, Agostinho parece desdizer-se ao declarar que a
desvalorização da Razão (em relação à Fé) levaria a incorrer na heresia do
“fideísmo”. Baseando-se nisso, desenvolve uma concepção de cultura cristã, acima
de tudo escriturística.
A Igreja deixa, porém, em aberto esses dois caminhos para Deus: via mística,
que mesmo tempo vai adquirindo, mais conhecimento; e pelo “estudo” aplicado, cujo
conhecimento for permeável à fé e à iluminação interior. A Fé tem de ser alimentada
pelo conhecimento da Verdade, senão degenera em crendice ou superstição; e o
conhecimento de Deus, sem Fé, não passa duma mera especulação, racionalista e
estéril.
A Fé tem atributos negativos – “impedimento à razão de entrada daquilo que
ela nunca poderá compreender” – e positivos – riqueza, inesgotável, no seio da qual
o espírito progride, de luz em luz, sem nunca chegar ao fim, mas sem nunca deixar
de adquirir maior iluminação: “Procuramos como se alguma vez fôssemos encontrar,
mas nunca encontraremos se não estivermos sempre a procurar” (De Trinitate IX, 1-
1).
O conhecimento de Deus (como fim) passa pelo conhecimento da alma (como
meio). É na alma-criada à imagem e semelhança de Deus – naquilo que ela tem de
mais puro, que aprendemos a descobrir a presença e o selo de Deus, Uno e Trino.
Como esse conhecimento de Deus é sempre imperfeito e limitado, Agostinho nega-o
(passa da catafase – conhecimento positivo, à apofase – conhecimento negativo)
para penetrar mais na inacessibilidade de Deus.
O Amor é subordinado a uma ordem: a Deus, só, por Ele mesmo; e a todos
os seres em função deste amor por Deus, na medida em que a sua perfeição
intrínseca permite colocá-los ao serviço do amor a Deus.
Toda a moral agostiniana é condensada na distinção entre “desfrutar” e
“utilizar”; somente em Deus, o Bem Supremo, nos é permitido repousar e d’Ele
desfrutar. Tudo o resto só poderá servir-nos para esse fim. Neste seu utilitarismo
estrito, rejeita toda a curiosidade e todo o “divertimento” que nos afaste do
pensamento de Deus (característico da sua vertente ascética e monástica). “O
Homem não vive nesta terra para si mesmo nem para ela – mas para Deus”.
Passando agora à Teologia Trinitária, que versa sobre o dogma fundamental
da Fé cristã, podemos dizer, por essa razão, que qualquer erro de doutrina se
reveste de conseqüências muito graves. Vejamos o que afirma Agostino sobre
assunto tão delicado.
Não tomando os Padres da Igreja como referência – como vimos, devido às
suas lacunas de conhecimento da língua grega – Agostinho começa,
“filosoficamente”, pela existência eterna de Deus em Si mesmo. Por esta via, adquire
a consciência de que o mistério da divindade escapa a todas as tentativas de
representação. Conseqüentemente, qualquer abordagem conceitual deverá possuir
algo de simbólico. Este Padre da Igreja entende que tudo o que é espiritual tem
caráter trinitário. Exemplo disso é a própria consciência do Homem: o Eu
reconhece-se ao mesmo tempo como pensante, como pensado e como referindo-se
a si mesmo. Nós não somos imagem de Deus senão na medida em que O
encontramos, na Sua Trindade, e o amamos. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são o
protótipo de toda a pessoa espiritual porque, também n’Eles, existe uma consciência
de Si, um conhecer-Se e um querer-Se. A partir daqui, Agostinho denominou as
Pessoas por o Amado, o Amante, referindo-Se mutuamente por um terceiro, o Amor.

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Daqui não foi difícil a Igreja católica romana perfilhar a afirmação herética de
que o Espírito Santo é o resultado do amor entre o Pai e o Filho (!), principalmente a
partir do tempo em que essa Igreja adotou o Filioque como doutrina sua (o qual,
afirmando que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, encaixa “às mil
maravilhas” na afirmação agostiniana), tendo como conseqüência a perda do
equilíbrio no seio da Trindade e a diminuição da Terceira Pessoa – não obstante o
próprio Agostinho haver declarado que não pode ser posta em causa qualquer
subordinação ao interior da Trindade. Um exemplo prático desta doutrina, ainda hoje
em uso na Igreja latina, é a ecfonese concluída por: “... com o Pai e o Filho, na
unidade do Espírito Santo”.
Infelizmente, a deformação da teologia trinitária agostiniana não ficou por
aqui. Em Agostinho, a unidade de Deus aparece tão acentuada que as Pessoas, por
vezes, parecem ser simples “momentos” do único Ser vivo da divindade; do mesmo
modo, torna-se difícil distinguir as suas ações no exterior. Agostinho critica o
conceito tradicional duma “substância” divina portadora do Ser divino e das suas
“propriedades”, em função das quais se distinguiriam as três Pessoas da divindade:
para ele, isto é um “antropomorfismo blasfematório”. Diz que Deus não tem
propriedades distintas com que O poderíamos medir, como se mediria um homem –
afirmação em si mesma gratuita e excessiva, pois não se trata, neste caso, de
“medir” Deus, mas sim de saber que Ele Se nos revelou como três Pessoas: uma
como Pai, outra como Filho e outra como Espírito Santo, com as conseqüentes
distinções a fazer entre as Suas relações mútuas e as suas relações para fora de Si
mesmas. Se, é certo que as propriedades humanas com que analisamos Deus não
podem ter, em função d’Ele, senão valor simbólico, também não é menos verdade
que a pessoa humana, criada “à imagem e semelhança de Deus”, tem “traços de
união”, “pontes” que ligam às Pessoas Divinas (embora esteja fora de causa
qualquer aproximação a nível das essências – divina e humana). Se assim não fôra,
tornar-se-ia impossível uma relação pessoal entre Deus e o Homem. A Encarnação
do Verbo e, bem assim, a Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo,
trariam ao Homem uma salvação de escravos, afastados da possibilidade de
acederem à condição de filhos (adotivos) de Deus.
Não seguindo esta doutrina da relação pessoal entre Deus e o Homem,
Agostinho salienta, apesar de tudo, que o Ser, em Deus, é essencialmente pessoal
(ser pessoa). “Deus não é bom pelo fato de possuir a bondade como uma qualidade,
mas é a bondade em pessoa, de modo que tudo o que é bom não o pode ser senão
por Ele e n’Ele”.
Por aquilo que foi exposto, não é difícil de constatar as fortes “razões” que
conduziram a Igreja Romana a encontrar a unidade, ao interior da Trindade, na
essência divina, o que trouxe como conseqüência a concepção dum Deus algo
“etéreo”, distante e inacessível aos homens...
A Santa Igreja Ortodoxa, pelo contrário, sempre afirmou que a unidade, em
Deus, provém da Pessoa do Pai, única Causa, único Princípio da Divindade, do qual
é gerado o Filho e procede o Espírito Santo. É a um Deus pessoal, Deus-Homem,
Nosso Senhor Jesus Cristo, que o Homem é confrontado de modo a aceitá-Lo, amá-
Lo e servi-Lo - e ser salvo; ou não - e ser condenado!
Ao analisarmos a doutrina da Encarnação do Verbo, em Agostinho,
observamos que a difícil passagem duma concepção que cerrava de tal modo as
ligações entre as Pessoas divinas, para a Cristologia, foi resolvida pelo Bispo de
Hipona pondo de parte a filosofia, por entender que o dogma da Encarnação está
para além das fronteiras da filosofia e da Revelação. Podemos perguntar-nos:
porquê esta exclusividade de ponto de vista em função deste mistério e não em
relação ao dogma da Santíssima Trindade? Porquê dois pesos e duas medidas para
sondar o mesmo Deus inacessível, mas que Se dá a conhecer?

250
A cristologia de Agostinho, mais ortodoxa que a sua teologia trinitária,
desenvolve largamente a noção de Kenosis, da humildade de Deus (trocando a Sua
riqueza divina pela nossa pobreza) que, querendo resgatar o nosso orgulho, nos
mostra o caminho da humildade e também o da beatitude.
A concepção da Igreja, do Mundo e do Estado, é abordada por Agostinho
principalmente na sua obra “Da Cidade de Deus” (24 volumes) que é, ao mesmo
tempo, uma espécie de síntese da teologia agostiniana.
Esta obra surge em resposta às objeções levantadas contra a Igreja devido à
queda e pilhagem de Roma, em 410, por ação das hordas de Alarico. Perguntava-
se: Como é que a capital do Império, a cidade “eterna” podia Ter caído dessa
maneira? Ao que os pagãos respondiam: “Por causa do abandono das divindades
tradicionais, demonstrando que o “novo” Deus cristão do Império Se revelava
impotente (!)...
Este trabalho aparece, então, como a última grande apologia da Igreja contra
o paganismo, composto como uma teodiceia, uma “teologia da história” – doutrina
defendendo a justiça de Deus, não obstante os males deste mundo.
O autor denuncia a falsidade da afirmação de que “o bem-estar da
humanidade estaria necessariamente ligado ao culto de múltiplas divindades”
(Retratações II, 43), salientando que os velhos demônios seriam incapazes disso.
Além disso, não foi difícil provar que, apesar de tudo, eles não protegeram tão bem
Roma, no passado, como o próprio Cristo, contra O qual se levantam os pagãos –
tal como outros Padres da Igreja também já haviam afirmado, antes de Agostinho.
Passando a argumentos mais teológicos, o Bispo de Hipona salienta que, se
os próprios cristãos tremem perante esta lógica dos pagãos, é porque ainda não
entenderam o verdadeiro sentido da sua fé, pois só parecem crer em Deus na
medida em que Ele lhes proporcione uma vida de paz, de tranqüilidade e de bem
estar neste mundo. O sentido desta vida só é verdadeiramente compreendido por
aqueles que, humildes de coração diante de Deus, recebem de Sua mão tudo o que
lhes envia e crêem numa eternidade que cumulará todas as suas aspirações, não se
revoltando, assim, devido aos sofrimentos que tiverem neste mundo. O sofrimento
pode ter conseqüências benéficas ou maléficas, dado que purifica e liberta o homem
piedoso, enquanto endurece e corrompe mais o ímpio. Não se deve procurar Deus
tão-somente pelo bem-estar, mas por Ele mesmo. É na Fé que se encontra a força
capaz de resistir a todos os enigmas da vida. A palavra-chave da atitude cristã é –
uma vez mais – a humildade, pela qual é defendido o cristianismo contra o orgulho e
soberba demoníacos dos homens. É, sobretudo, esta questão do orgulho que é
desenvolvida nesta obra.
Mas esta obra é condenada pela Igreja Ortodoxa devido à teoria das “duas
cidades” nela exposta: dum lado aparece Roma, a pretensa cidade “eterna” e do
outro a “cidade de Deus”, “a única verdadeiramente eterna”. As grandezas de Roma
teriam sido dignas de admiração se tivessem sido fruto duma piedade autêntica e
não duma vontade hipócrita e duma ambição desmedida. Assim, estas grandezas
não são virtudes, mas antes faltas, “vícios esplêndidos”. Agostinho faz um ousado
ataque à “sacrossanta” tradição romana, parafraseando todo a sua história, desde a
fundação até aos últimos horrores da República. Não se trata, para ele, de fazer um
julgamento da História, mas de reconhecer uma nova ética política. A política não é,
por si, uma atividade proscrita. A consideração mundana e o poder por si mesmos
são condenáveis, porque “tudo é vaidade debaixo do sol”. Só serão dignos de
consideração na medida em que concordem com a vontade de Deus para a
salvação dos “cidadãos” (Da Cidade de Deus XIX, 19).
Segundo o autor, duas cidades coexistem e interpenetram-se neste mundo (a
sua separação só surgiria quando do Julgamento Final): a cidade de Deus (dos
predestinados), “construída pelo amor de Deus até ao desprezo do Homem em Si

251
mesmo” e a cidade terrestre (dos condenados) “construída pelo amor próprio até ao
desprezo do amor de Deus”.
Esta teoria é muito atraente, mas é rejeitada pela Santa Ortodoxia, porque
reflete, uma vez mais, o dualismo maniqueísta que Agostinho nunca conseguiu
extirpar completamente de si próprio. O mal, em si mesmo, não tem substância
(como Agostinho sabia e parece Ter-se esquecido), nem tem o poder de “criar uma
comunidade” em oposição a outra comunidade, sendo ele próprio ausência de
comunhão, isolamento, vazio e destruição. Colocar um poder paralelo e em
oposição ao poder de Deus seria conhecer paridade entre Deus e o Demônio; na
verdade, todas as criaturas – incluindo o Demônio – nada podem fazer fora dos
planos de Deus.
A obra “Da Cidade de Deus” deu origem a vários mal-entendidos no Ocidente
ao longo da História, sobretudo na Alta Idade Média, em que as contendas entre a
Igreja e o Estado tenderam a politizar e clericalizar as idéias do livro; houve quem
quisesse encontrar nele uma depreciação diabólica do poder do Estado e uma
sacralização do poder da Igreja, interpretação que estava afastada do pensamento
de Agostinho.

Obra Literária

Fato único entre os autores sacros da Antiguidade, as informações relativas à


vida de Agostinho e à sua evolução interior são copiosas, tendo como fontes
principais as suas “Confissões” e as “Retratações”, para além da sua “Vida” redigida
pelo fiel discípulo Possídios de Cálamo.
As Confissões (Confessiones), compostas como louvores a Deus (13
volumes), permitem seguir o seu percurso interior até ao nascimento para os Céus
de sua mãe (387) e reviver a sua penosa luta para atingir “o repouso em Deus” (1-
10). Os três últimos livros, partindo da narração escriturística da Criação, versam
sobre Deus e o mundo, o tempo e a eternidade. É, por alguns, considerada uma
obra-prima da literatura universal; revela a mestria com que Agostinho descreve
estados de alma.
As Retratações (Retractationes), ou “revisões, inacabadas (2 volumes),
informa sobre a sua atividade literária até 427. Tendo a consciência de ser não só o
pastor da sua Igreja como “o doutor que mostra o caminho” na comunidade a que
pertence e perante essa alta responsabilidade, procurou nos últimos anos da sua
vida trazer alguns esclarecimentos à sua obra global, por meio destas “revisões”.
Corrige alguns excessos da juventude e traz luz a alguns pontos obscuros,
declarando que, em geral, os seus escritos não deverão ser tidos por infalíveis, nem
ser aceites sem prévio exame. É de lamentar que os seus seguidores não tivessem
respeitado estas suas últimas recomendações...
A Vida (Vita) de Agostinho é uma obra sóbria e sem exageros, relatando
muitos pormenores biográficos, na qualidade de monge e de bispo. Em anexo inclui
um Catálogo (Indiculus) das obras do Bispo de Hipona, embora com algumas
imprecisões.
A fecundidade literária de Agostinho só fica atrás da de Orígenes. O próprio
Bispo de Hipona conta ter composto, até 427, 93 obras distribuídas em 232 volumes,
sem contar os numerosos sermões e as não menos numerosas cartas, por vezes
bem extensas, constituindo verdadeiros tratados. Apenas 10 dessas obras se
perderam.
De posse da cultura do seu tempo, dominando a fundo os recursos da
retórica, Agostinho era um mestre da palavra escrita e falada. A retórica não
constitui, todavia, para ele, um fim em si, nem sequer um meio para alcançar os
vãos aplausos dos ouvintes ou leitores “estetas”. Procura, antes, adaptar o seu estilo

252
à situação e ao assunto visado. Evita, assim, sempre que necessário, os
ornamentos retóricos e utiliza uma linguagem simples, mas não banal. Na obra
literária de Agostinho não há uma só questão teológica que não tenha sido objeto de
abordagem sua!
Nos escritos dogmáticos avulta a sua obra “Da Trindade” (De Trinitate), em 15
volumes. Começa por apresentar a prova escriturística (1-4) e a formulação do
dogma dela resultante (5-7). Nos restantes volumes procura tornar mais inteligível o
mistério, alegando particularmente as múltiplas analogias existentes nas criaturas e
no espírito humano. Ele mesmo afirmou que poucos leitores serão capazes de
seguir as suas explanações.
Quanto ao conteúdo, merece da nossa parte as reservas já apontadas (cf.
teologia trinitária).
Nas obras apologéticas sobressai a já citada “Da Cidade de Deus” (De civitate
dei), em 22 volumes.
Nos escritos anti-heréticos, para além de um “Haeresibus”, ilustrando 88
heresias (desde Simão o Mago até Celéstios!), composta a pedido do seu diácono,
de uma obra “Adversus Iudaeos” e de outras três anti-arianas (nomeadamente
contra Maximino, bispo dos Godos), ressaltam naturalmente as obras contra as
heresias de maior importância no seu tempo (maniqueísmo, donatismo e
pelagianismo) e que mais absorveram as suas energias, em numerosos escritos.
Vejamos apenas alguns exemplos de títulos dessas obras:
- Anti-maniqueístas : De genesi contra Manichaeos (2 vols.); De vera
religione; De utilitate credendi; etc. Na sua obra “Ad Orosium contra
Priscillianista et Origenistas”, dirigida ao seu amigo escritor e historiador
lusitano Paulo Orósio, Agostinho volta-se contra os priscilianistas, que
tiveram forte implantação na Península Ibérica, e que eram espiritualmente
aparentados com os maniqueístas.
- Anti-donatistas: De baptismo contra Donatistas (7 vols.); Breviculus
collationis cum Donatistis; Psalmus contra partem Donati (composto em
forma de poema, destinado a advertir e galvanizar os fiéis contra o perigo
donatista); etc.
- Anti-pelagianistas: De natura et gratia; De peccatorum meiritis et
remissione et de baptismo parvulorum (3 vols.); De gratia et libero arbitrio;
etc. Sendo a doutrina agostiniana da graça condenada pela Santa Igreja
Ortodoxa, é óbvia a rejeição dos escritos de Agostinho que versam sobre
este tema.
Nas suas obras exegéticas adota, preferencialmente, o sentido literal. Entre
as exceções a esta regra encontram-se as homilias sobre os Salmos e sobre o
Evangelho de S. João, onde adota o sentido alegórico-místico. No tocante ao Antigo
Testamento, destacam-se os trabalhos sobre o Gênesis – de que faz 6 vezes (!) o
estudo exegético – sobre o Heptateuco e sobre os Salmos. No Novo Testamento
realçam-se os 124 Tractatus in Joannis evangelium e os 10 Tractatus in epistolam
Joannis I (lidos em sermões); as Quaestiones evangelistarum; os Comentários a
Epístolas Paulinas (Rm, Gl.); etc.
Algum destaque neste grupo merece a obra “De doctrina christiana” (4 vols.)
onde Agostinho procura dar uma abordagem cristã às sete disciplinas tradicionais de
“ciência” (ou das artes liberais) da Idade Média, de modo a desenvolver uma “cultura
cristã”. É destinada não somente aos clérigos como a todos os cristãos cultos que,
num grau mais elevado de ensino, não tinham à sua disposição senão autores
pagãos. Sendo esse estudo baseado na S. Escritura, os 2 primeiros volumes
abordam uma preparação “técnica” (quer profana, quer teológica) para esse estudo.
O 3º trata de hermenêutica e o 4º de homilética. Neste trabalho Agostinho faz uma
síntese entre a cultura antiga e a teologia cristã, a qual exerceu notável influência na

253
cultura medieval. Sobressai da “De doctrina christiana a concepção de que a única
sapiência, a única “filosofia” é a de Cristo, que venceu a filosofia pagã e constitui a
única “ciência” cristã – que é a da S. Escritura, com a arte de bem entender o que
nela é revelado (ciência escriturística ) e de bem anunciar o que a Verdade contém
(eloqüência eclesiástica). O texto escriturístico é uma “ciência para a ciência”, que
não perde de vista o fim último do Homem, no serviço da Verdade, em contraste
com qualquer outro saber que só alimente o amor próprio e a vaidade dos sábios.
Nos escritos sobre moral e pastoral são abordados temas diversos como o
pecado, o demônio, a mentira, a virgindade, o matrimônio, a viuvez, os trabalhos
monásticos, instruções aos catecúmenos, etc.
Nos trabalhos pedagógicos poder-se-á incluir, além da supracitada “De
doctrina christiana”, a obra “De catechizandis rudibus” (pequeno tratados de
iniciação cristã) e outras.
Os escritos filosóficos desempenham, para Agostinho e seus seguidores
grande lugar de destaque, como não podia deixar de ser, se levarmos em conta que
é pela filosofia que Agostinho acede à teologia. Por um lado, esse posicionamento é
compreensível na medida em que, nesse tempo, a separação entre filosofia e
teologia não era nítida; mas por outro lado, carrega pesadamente com a carga
filosófica a teologia, com as conseqüências que daí advêm.
Entre estes textos encontram-se os trabalhos que redigiu durante a sua
permanência em Cassiciacum, reproduzindo os diálogos com os seus amigos. Na
obra Contra Acadêmicos (3 vols.) impugna o ceticismo da Nova Academia e afirma
que a verdade é cognoscível, não consistindo a felicidade na busca, mas no
conhecimento da Verdade; noutro livro, De beata vista, acrescenta que a verdadeira
felicidade consiste no conhecimento de Deus; em De Ordine (2 vols.) aborda a
questão da origem do mal; os Soliloquia e outras obras versam especialmente sobre
a imortalidade da alma.
Os Sermões, incluindo tratados e escritos exegéticos, constituem um
numeroso conjunto de obras (cerca de 500 exemplares).
As Cartas (perto de 300) tratam-se, por vezes, como vimos, de verdadeiros
tratados. Abordam, para além de assuntos pessoais, temas de filosofia, teologia e
pastoral.
Sobre a Regra Monástica que tem o seu nome, importa salientar que sofreu
diversas modificações ao longo dos tempos. À partida, nem mesmo na comunidade
eclesiástica de Agostinho ela estava redigida por escrito. Existia tão-somente uma
regra oral. Agostinho “era” a regra. Mas ele fez de fato uma regra escrita – para
virgens – tendo-a enviado por carta para uma comunidade ascética feminina na
Itália. Mais tarde, no séc. VII, o nosso S. Frutuoso, Metropolita de Braga, tê-la-á
adaptado para monges, seguindo-se-lhe outras revisões ulteriores.
Enfim, uma palavra sobre a grande diversidade de temas e de conteúdo das
obras agostinianas, que conduziu o seu fiel discípulo Possídios, depois de classificar
160 títulos segundo nove grupos, a ver-se forçado a incluir num décimo grupo – que
designou por “Obras diversas, úteis a todos” – as restantes, que eram não menos de
475... tal foi o embaraço, justificado, do biógrafo de Agostinho!
Conclusão
Considerando o mais exímio filósofo entre os Padres da Igreja e o maior
teólogo da Igreja no Ocidente, foi-lhe dada a significativa designação de “Pai do
Ocidente”.
A sua influência estendeu-se a toda a vida da Igreja no Ocidente e perdurou
até à era moderna. Isto ocorreu não só na teologia e filosofia como na vida social e
caritativa, na política eclesiástica e no direito público e ainda na formação da cultura
medieval. Todos os seus trabalhos foram orientados para a aquisição da Verdade
cristã, na mais estreita união à autoridade eclesiástica a qual, por sua vez, seguiu

254
amplamente a Agostinho. Até na doutrina da Graça conseguiu obter grande
concordância, no Ocidente, não obstante muitas vezes se insurgirem – e com razão
– contra ela.
Não se considerava detentor da infalibilidade (cf. a este respeito o comentário
sobre as “Retractationes”) e a sua honestidade justificava-se: são rejeitados da
Ortodoxia – por serem heréticos – os seus escritos sobre a Graça, a sua noção da
“cidade de Deus” e alguns aspectos da sua teologia trinitária, concepções que viriam
a influenciar negativamente a teologia católica romana até aos dias de hoje.
Paralelamente ao gigantismo a que foi guindado como figura eminente da
Igreja e à sua autoridade como teólogo e prolixo autor eclesiástico, sobressai, no
meio da sua comunidade e para fora dela, como pastor zeloso e implacável na
defesa da Verdade (chegando a recorrer a métodos anti-cristãos para a fazer
prevalecer, com foi o caso da permissão da repressão armada na questão
donatista).
A renovação efetuada no Ocidente pela filosofia – pela via do neoplatonismo
– passou por homens como Mário Victorinos, S. Simpliciano e Santo Ambrósio, até
chegar ao Bem-aventurado Agostinho (onde esta vertente filosófica é mais
acentuada), abrindo mais o cristianismo ocidental à vivência neotestamentária (por
meio das doutrinas sobre Deus e sobre o espírito) e atenuando – um pouco – o
pender judaizante, fortemente moralista e racionalista do pensamento ocidental.
Mais tarde, este racionalismo acentuou-se muito mais, com a viragem da orientação
filosófica para a via aristotélica e a implantação e desenvolvimento da Escolástica.

S. MARTINHO DE DUME, METROPOLITA DE BRAGA, ARCEBISPO PRIMAZ


DAS ESPANHAS (510? – 579)

Ao falarmos sobre os Padres das Igrejas Ocidentais, não poderíamos deixar


de abordar aquele que é o nosso Grande Padre da Igreja e Santo Pai na Fé, S.
Martinho de Dume, Metropolita de Braga, Arcebispo Primaz das Espanhas.
Sobre a vida daquele que é considerado o maior Padre da Igreja do seu
século, falarmos de forma abreviada, uma vez que noutros lugares foi já
apresentada de modo mais circunstanciado (cf. Revista “Ortodoxia” nº 28, pp.7-10 e
textos de “História da Igreja”, pp.70-73).
Existe uma grande escassez de apoios biográficos deste eminente Homem da
Igreja, que se distinguiu como Primaz, Teólogo, Liturgista, Liturgo, Monge e
Canonista. A única referência à sua Pátria é – nos dada pelo epitáfio de S. Martinho,
redigido por ele mesmo: “Nascido na Panónia...” (território que incluía a Hungria e
parte de alguns Estados da ex-Iugoslávia e da Áustria). Sabemos que viveu no
Oriente, onde aprendeu a língua grega e se instruiu nas Ciências Eclesiásticas, “tão
exaustivamente que ninguém o excedeu no seu tempo” (S. Gregório de Tours). Pela
magnífica “bagagem” adquirida de vida cristã e de conhecimentos teológicos,
litúrgicos, canônicos e monásticos, que lhe permitiram fazer uma obra apostólica
ímpar nas Espanhas, deduzimos ter certamente vivido entre os Monges do Egito, da
Palestina e de Constantinopla, estando aí, nesse tempo, o monaquismo em pleno
florescimento.
Depois, “por inspiração divina” (como refere no seu epitáfio) dirige-se à
Península Ibérica, ao território ocupado pelos Suevos, onde terá chegado por volta
do ano 550, terra esta “de gente estranha, a fim de a regar com as torrentes da sua
sabedoria” (S. Gregório de Tours); porque “esta porção do rebanho de Cristo, desde
que a luz da Fé lhe amanhecera, nunca se achara tanto em trevas”. Efetivamente,
os nossos antepassados neste País, depois de darem testemunho da sua Fé pelo
sangue dos Mártires, deixaram-se perverter pela heresia priscilianista (composto
monstruoso dos erros de outras heresias) e pelo arianismo.

255
Ao chegar à Galécia (cuja capital era Braga), S. Martinho funda vários
mosteiros (cf. Sto. Isidoro de Sevilha “De Viris illustribus”), começando pelo de
Dume, do qual era Abade, dotando-os de uma regra própria, animada pelo espírito
monástico oriental. Começou por incumbir o diácono Pascásio de verter para o latim
uma coletânea de apofetegmas dos Padres do Egito, com as quais organizou a
Regra monástica. Mais tarde, o próprio S. Martinho traduziu também outras
Sentenças dos Padres do Deserto.
O seu zelo pastoral não se limitou à vida monástica, mas abrangeu os fiéis,
que procurou instruir com a doutrina da Verdade, e os heréticos, a quem procurou
desarraigar os erros de crença. Em 556, o Metropolita de Braga, Lucrécio, sagrou-o
Bispo: pela primeira vez na História da Igreja, a um bispo era dada como jurisdição
diocesana um mosteiro e as suas dependências, que era quase abrangido pela
cidade metropolitana.
Revestido do caráter episcopal, S. Martinho pugnou pela restauração da
disciplina eclesiástica; sendo tão douto em cânones (como o demonstrou nos dois
primeiros Concílios de Braga e no Código que compilou), como zelosos em fazê-lo
cumprir, não é de duvidar ter sido ele o verdadeiro animador e inspirador do 1º
desses Concílios (em 561), dado que ao 2º (em 572) presidiu já S. Martinho na
qualidade de Metropolita de Braga e Arcebispo Primaz das Espanhas. A ascensão
de S. Martinho ao Sólio Metropolitano efetua-se após o nascimento para os Céus do
Metropolita Lucrécio, em 569, a quem sucede.
A ação pastoral incansável de S. Martinho tornou-se, inquestionavelmente, no
Apóstolo dos Suevos (Sto. Isidoro de Sevilha, Chron. Suev. E De vir. Illustr) – como
S. Leandro de Sevilha foi o Apóstolo dos Visigodos - tendo reconduzido do
arianismo à verdadeira Fé o Rei Teodomiro e o seu povo e continuado essa ação
com o sucessor desse príncipe cristão – o Rei Miro que, freqüentemente, lhe pedia
instruções e consolações e a quem S. Martinho dedicou o seu opúsculo “Formula
Vitae honestae” (Regra da Vida virtuosa).
Poucos mais pormenores se conhecem da vida do nosso glorioso Metropolita
Martinho para além daqueles que transparecem dos dois referidos Concílios
Provinciais e das obras por si mesmas redigidas; as referências de outros autores
são quase omissas a esse respeito.
De correspondência haviada com outros Bispos dá prova a Epístola dirigida
ao Bispo Bonifácio sobre o Batismo: “De Trina Mersione”; o Tratado “De Ira”
destinado ao Bispo Vitimiro de Orense; o Tratado catequético “De Correctione
Rusticorum” (Da Instrução dos Rústicos) dirigido ao Bispo Polémio de Astorga; a
Coleção de Cânones ao Bispo Nitigísio de Lugo; e ainda com o pio e erudito S.
Venâncio Fortunato, como este mesmo confirma. As suas Epístolas chegaram a
serem coligidas num volume, como o testemunha Sto. Isidoro de Sevilha (cerca de
50 anos após o nascimento para os Céus do Primaz das Espanhas).
As outras obras conhecidas de S. Martinho e que chegaram aos nossos dias,
não consta serem dirigidas a alguém em particular. Incluem tratados ascético-
morais: “De moribus” (Dos costumes), “Pro repellenda jactancia” (Como se repelirá a
Jactância), “De superbia” (Da Soberba) e “Exhortatio humilitatis” (Exortação à
humildade); e um Opúsculo “De Pascha” (Da Páscoa). A inspiração deste Santo
Padre não era, ainda, estranha à Poesia, conhecendo-se-lhe alguns Versos.
O seu Testamento foi perdido, conhecendo-se-lhe apenas uma menção
indireta dos Padres do X Concílio de Toledo: nele não é mencionada qualquer
disposição de bens próprios, mas tão-somente a dos bens que se mantinham para a
conservação do Mosteiro de Dume, informando que o Santo confiara a execução e
defesa daquelas pias disposições aos Reis Suevos. Até no seu Testamento, S.
Martinho prodigalizava os seus cuidados não para si, mas para os outros!

256
Finalmente, depois de tantas boas obras, chegou ao termo a sua gloriosa
carreira, no dia 20 de março de 579 (Breviário de Soeiro, de meados do séc. XIV),
no qual “cheio de virtude, passou a gozar a vista do Senhor” – como no-lo refere S.
Gregório de Tours. O pranto havido quando do seu nascimento para os Céus
chegou até à longínqua terra onde vivia este Sto. Historiador.
Se, terminaram aí os exemplos vivos das suas ações, não findaram os seu
frutos. E entre estes o menor não foi, certamente, a Restauração da Igreja Ortodoxa
em Portugal e Espanha, como legítima herdeira da florescente Igreja Peninsular do I
Milênio, pela Graça de Deus e pela obra incansável de Sua Beatitude Gabriel I,
nosso Pai na Fé e lídimo Sucessor do “Apóstolo dos Suevos”, sob cuja proteção
colocou a sua Catedral Primacial de Lisboa.
Vamos falar agora dos dois primeiros Concílios de Braga, para depois
passarmos às obras de S. Martinho propriamente ditas.

I Concílio de Braga (561)


A Convocação do I Concílio surge, sem dúvida, a instâncias de S. Martinho,
com o objetivo de restaurar a disciplina eclesiástica num território que tantos anos
viveu afogado no priscilianismo e no arianismo.
Presidido o Concílio pelo Metropolita Lucrécio, a sua ordem de trabalhos
incluiu a leitura dos Dogmas da Fé Ortodoxa; a leitura dos Cânones Disciplinares
dos anteriores Concílios das Espanhas e dos Cânones dos SS. Padres; e
apresentou a Disciplina Eclesiástica em vigor. O priscilianismo foi recondenado e
sentenciado com a pena de excomunhão quem ousasse defender “cousa
semelhante”.
É de salientar que, neste Concilio, a única heresia visada e condenada é o
priscilianismo, não sendo o arianismo, praticamente, aflorado. Se, é verdade que a
heresia do arianismo tinha sido recentemente abjurada, não é menos verdade que
na grande massa do povo continuavam a prevalecer práticas exteriores arraigadas
de priscilianismo (muito mais antigo na Península) que só podiam advir da
ignorância e duma crassa carência de instrução dos fiéis – a irrupção dos bárbaros
no nosso território martirizara os Bispos ou forçara-os ao exílio, deixando o povo fiel,
anos a fio, sem poder ser convenientemente instruído na verdadeira Doutrina cristã.
Outro aspecto da vida pastoral abordado pelos Padres Conciliares tinha a
haver com a diversidade de práticas para o mesmo culto, tendo sido deliberada a
sua uniformização. Neste sentido, foram aprovados Cânones que ordenaram a
mesma seqüência no Cântico de Véspera e Matinas, evitando os usos particulares e
os dos mosteiros (can. I); que todos os textos próprios das Festas solenes e da
Liturgia fossem os mesmos em todas as igrejas (can. II); que a Liturgia fosso
celebrada uniformemente (can. IV); que à saudação do Bispo, ou do Presbítero, “O
Senhor esteja convosco”, os fiéis respondessem sempre: “E com o teu espírito” (can.
III); que o batismo fosse ministrado como a Igreja Metropolitana de Braga sempre o
fez – a saber, pela tripla imersão a antiguidade da sua sagração, guardando a
Primazia para o Bispo Metropolitano (can. VI). Outras disposições: as rendas e bens
eclesiásticos far-se-iam em três partes iguais, a saber, uma para o Bispo, outra para
o Clero e outra para as reparações da Igreja e manutenção das suas luzes: que esta
última fosse administrada pelo Arcipreste ou pelo Arcediago, dando contas ao Bispo
(can. VII). Que nenhum Bispo ousasse ordenar clérigo algum de outra diocese,
como os antigos cânones já o haviam proibido (ex: can. XVI do Concílio de Nicéia I)
sem terem recebido cartas (demissionárias) assinadas pelo respectivo Bispo (can.
VIII).
Que os Diáconos usem o Orarion sobre o ombro, a fim de se distinguirem dos
Subdiáconos (can IX); que aos leitores não seja permitido manusearem os vasos
sagrados (can. X); que os eclesiásticos que não apreciam as comidas de carne, ao

257
menos provem vegetais cozidos com carne, para evitarem toda a suspeita de
heresia prisciliana; recusando-se a fazê-lo, incorreriam na deposição e excomunhão
como suspeitos dessa heresia (can. XIV); que se não celebre Liturgia nem Ofício de
defuntos por alguém que tenha morrido na excomunhão, nem justiçado por crimes
(can. XVI). (Graciano interpreta esta última parte – relativa aos criminosos – como se
tratando dos impenitentes); etc.
Dos 22 cânones e normas emanados deste I Concílio de Braga, ficou cada
Bispo incumbido de informar a respectiva diocese. E se depois de publicados os
cânones, algum bispo achasse algum clérigo ou monge que se opusesse a esta sã
doutrina, pressentindo nele erros priscilianistas e o não excomungasse,
anatematizasse e expulsasse da comunidade, ficaria ele próprio excluído da
comunhão dos seus Irmãos e entregue como réu à sentença divina.

II Concílio de Braga (572)

Se no I Concílio haviam comparecido 8 Padres Conciliares, este reuniu 12,


constituintes de duas Metrópoles: Braga e Lugo (que S. Martinho destacara da sua
Metrópole).
Neste Concílio, depois de lidas as Atas do I Concílio de Braga, afirmou o
Metropolita Martinho: “Com a ajuda de Deus, as coisas que no I Concílio foram
ordenadas, conservam agora a sua inviolável firmeza. Não havendo dúvidas nesta
Província acerca da unidade e integridade da Fé, haverá que examinar se alguma
coisa de irrepreensível, porque estranha, se acha na Disciplina eclesiástica, seja por
ignorância ou por negligência, a fim de ser corrigida”. Seguiu-se a leitura da perícopa
da Epístola de S. Pedro relativa aos deveres dos sacerdotes (1 Pe. V,1 s) e depois
os cânones propostos por S. Martinho:
I – Que o Bispo visite a sua diocese e que por 20 dias antes da Páscoa sejam
os catecúmenos, destinados ao Batismo, exorcizados e instruídos no Símbolo da Fé.
A visita dos Bispos a todas as paróquias destina-se a conferir se a celebração
e administração dos sacramentos são corretamente ministradas pelos padres e a
corrigi-las, se for caso disso; a instruir os fiéis, ensinando-os a fugirem da idolatria e
dos crimes diversos e a crerem nas verdades da Fé. Feito isto, passará o Bispo a
outra paróquia.
Repara-se que neste can. I está praticamente resumido o essencial da vida
pastoral da Igreja.
II – Que o Bispo, na visita da diocese, receba o honorário devido à sua
cátedra; mas não pretenda a Terça parte das oblações; nem force os clérigos a
trabalhos servis. (Por um lado, refreia uma eventual cobiça e, por outro, um
excessivo autoritarismo).
Outros cânones:
Que o Bispo não receba honorários pela ordenação de clérigos (simonia -
can. III); nem pelo sacramento do crisma (can. IV) ou do batismo (can. VII); nem pela
sagração de igrejas, mas que verifique antes se estas têm dotação (com que se
sustentar) antes de as sagrar (can. V) e que se não benza capela edificada em terra
de alguém para utilidade própria (com o objetivo do lucro dos seus proventos, em
vez de destinada à piedade - can. VI). Se alguém acusar um clérigo (de
incontinência) e não provar o crime, será excomungado (can. VIII).
Repare-se que, se até aqui, o Concílio havia procurado corrigir abusos de
eclesiásticos, nomeadamente o da ambição, este cânone vem refrear também a
malignidade dos acusadores caluniosos.

258
O Can. IX ordena que o Bispo Metropolitano anuncie, no dia de Natal, a data
da próxima Páscoa e o can. X ameaça com a pena da deposição qualquer
presbítero que não observe o jejum antes de celebrar uma Liturgia.

Talvez possa parecer algo defasada e até fora do âmbito da Patrologia, esta
abordagem que acabamos de fazer aos dois primeiros Concílios de Braga. Esta
impressão desvanecer-se-á se considerarmos que S. Martinho foi, de fato, a alma e
o “motor” inspirado destes Concílios e se constatarmos a admirável justeza,
equilíbrio e concórdia emanados dos seus cânones e normas, congregando nesse
espírito os seus Bispos e firmando-se no filial e fraternal respeito à pessoa do seu
santo e douto Metropolita; espírito esse que, naturalmente, transpareceu para o
clero, os monges, os fiéis e até para os corações de muitos que estavam transviados
da Igreja, reconduzindo-os ao seu seio maternal.
Depois destas considerações, será ainda motivo da nossa admiração,
constatarmos como todos estes cânones (salvo um ou outro pequeno pormenor)
mantêm ainda hoje toda a sua atualidade?
E sobre o prestígio e a glória conquistados por S. Martinho, não nos bastará
repetirmos que “quem pratica a verdade vem para luz, a fim de que as suas obras
sejam manifestas, porque são feitas em Deus” (Jo III, 21)?

Obras literárias de S. Martinho de Dume

Para além das epístolas e cartas e das composições poéticas, já aqui


mencionadas, as obras de São Martinho dividem-se em dois grandes grupos:
ascético-morais e canônicas.
Obras Ascético-Morais

Neste grupo está incluída a maior parte das obras conhecidas de S. Martinho.
No opúsculo “Fórmula Vitae honestae” (Regra da Vida Virtuosa), como já
mencionamos, dirigido ao Rei Miro, S. Martinho, segundo parece, inspirado no
filósofo Sêneca, desenvolve magnificamente 4 virtudes destinadas a conduzir a uma
vida perfeita: a Prudência, a Magnanimidade (ou Fortaleza), a Temperança e a
Justiça. Nela, o Autor concilia o seu zelo de Prelado com o respeito do vassalo,
redigindo-a “não para a instrução do Rei, sendo-lhe natural a sagacidade da
sabedoria, mas para aqueles que estão ao seu serviço”. Vejamos só alguns extratos:
Da Prudência: “...É próprio do prudente examinar os conselhos e não se
deixar levar arrebatadamente pelos falsos com fácil credulidade... O prudente nem
quer enganar nem pode ser enganado...”
Da Magnanimidade: “... Do inimigo dirás: Não me fez mal; teve intento de o
fazer. E quando o colheres debaixo do teu poder... deverás saber que honrado e
grande gênero de vingança é o perdão...”
Da Temperança: “... Não queiras parecer coisa maior do que és... Não chores
o teu, nem admires o alheio... foge das adulações... Para todos sê afável, para
ninguém meigo, com poucos familiares, para todos justo...”.
Da justiça: “... A Justiça não é instituição nossa, mas Lei divina... para seres
justo, não só não faças dano, mas impedirás que o façam, porque não fazer dano
não chega a ser justiça...”
O opúsculo “De moribus” (Dos costumes), que não é dedicado a alguém em
especial, mantém o estilo do anterior. Um exemplo de extratos seus:
“Todo o pecado é ação. Ora toda a ação é voluntária, seja boa, ou não: logo
todo o pecado é voluntário. Não tens desculpa; ninguém peca sem vontade...
Refreia com vigor como a desaforados escravos da alma, a língua, o ventre e
o apetite... Antes que prometas, delibera; mas uma vez tendo prometido,

259
cumpre... Não aproveita a esmola tanto aos que a recebem, como aos que a
dão... Não podes ser rico e feliz... A outrem perdoa sempre, a ti nunca...”.
O tratado “De ira” (Da Ira) é destinado ao Bispo Vitimiro de Orense que, por
ocasião do II Concílio de Braga, solicitara ao Metropolita de Braga uma obra
abordando a paixão da Ira e os seus efeitos. O Primaz das Espanhas faz uma
síntese da obra homônima de Sêneca e apresenta a sua própria versão:
Sobre a figura da Ira, uma imagem bastante realista e descritiva do irado: “Um
ar ousado e semblante de arremeter, fronte triste e vista carregada... ferve o
sangue, cintilam os olhos, tremem os beiços, ferram-se os dentes, arqueja o
peito... enraivecida erupção de voz, colo estendido, freqüente estortegação de
dedos... bater do pé no chão... todo o corpo agitado por descontrolada
convulsão, despedindo de si grandes ameaças, é como se desmanda e
entumesce a horrível Ira... Enquanto os outros vícios se escondem, a Ira
avança de resto descoberto.”

Segue-se a descrição dos efeitos da Ira e de modo de a combater e


apaziguar:
“... Se a Ira rompeu, o melhor remédio para ela é a dilatação do tempo... Peleja cada
um consigo para que, se não puder vencer a Ira, tenha ao menos o acordo de a
encobrir... Se alguém perceber a tua ira, ninguém, contudo a sinta... Nada é mais
glorioso que mudar a ira em amizade... Ninguém é mais gravemente castigado que
aquele que fica entregue ao suplício do arrependimento... Dentro de si cada um
achará tudo o que nota nos outros...”.
Outros três tratados de S. Martinho versam sobre a repulsão de Jactância e
da Soberba e exortando à Humildade, que alguns autores (por ex.: Altaner)
afirmaram ser provavelmente dedicados, também, ao Rei Miro. Alguns excertos:
“Pro repellenda Jactancia” (Como se repelirá a Jactância):
“... Uns deixam-se vencer pela Ira... outro é arrastado pela Avareza... outro
pela Concupiscência... outro dominado pela Gula... e outros por múltiplos vícios...
mas entre todos há uma enfermidade que, pela sua condição, não se pega somente
a um ou a outro, mas geralmente a todos. E quando os outros vícios só se
apoderam daqueles a que tem vencido, este é o único que não se contenta com
menos do que dominar a todos. Ele é o vão desejo de louvor e é conhecido por
vanglória, ou jactância...”.
“...Por tudo o que o homem faz, nada deseja tanto, como ser louvado... Uns
desejam louvor pelas honras que aceitam, outros pelas que recusam... Uns gloriam-
se por serem bons, outros de serem maus...”
“Idem de superbia” (o mesmo acerca da Soberba)
“...Consiste, pois, a vanglória em nos deleitarmos nos louvores humanos e a
Soberba em aplicarmos o bem, de que somos louvados, a nós mesmos, e não a
Deus... Todo o que se deixa inchar de Soberba, pretende imitar a glória de Deus, em
que ninguém lhe seja semelhante... Todas as castas de pecado, como a luxúria, a
avareza, etc., ainda que provoquem a ira de Deus, contudo o seu castigo é
executado por meio dos anjos, ou dos homens. Mas a Soberba tem por adversário o
próprio Deus. Porque está escrito: “Aos soberbos Ele mesmo (Deus) resiste (Tg.IV; 1
Pe.V,5)... Se alguma coisa, pela providência de Deus, lhes sai bem, imputando-a
logo às suas próprias forças e ao seu engenho, exclamam: Eu fiz isto, eu disse, eu
pensei; e roubada a glória de Deus, propõem-se à Sua semelhança como objeto de
pasmo, de admiração de todos...”.
“Incipit Exhortatio Humilitatis” (Começa a Exortação da Humildade):
“... Receia sempre os carinhos excessivos dos homens... Repreenda-me o
justo, é caridade, mas que o óleo do ímpio jamais me ornamente a cabeça (Sl CXLI,
5). O óleo do ímpio é a adulação... És terra... és homem e pecador... Quanto maior

260
fores mais a humildade te humilha... Quem há que tenha alguma coisa que por Deus
não lhe fosse dada? Sendo todas as coisas d’Ele, por Ele e n’Ele: glória, pois, a Ele,
pelos séculos dos séculos. Amém (Rm XI, 35-36)”.
Seguidamente, um curioso tratado catequético “De Correctione Rusticorum”
(Da Correção dos Rústicos), inspirado, em parte, na “Civitate Dei” de Agostinho de
Hipona e dirigido ao Bispo Polémio de Astorga, em resposta à questão sobre a
origem e malefícios dos ídolos. É uma obra importante para o conhecimento moral e
religioso do povo inculto desse tempo, ainda ligado a práticas supersticiosas e
pagãs.
A obra faz uma síntese global do ato da Criação de Deus e da Sua Economia
da Salvação do Homem, focando as suas grandes linhas, desde a Criação até ao
Julgamento Final. Refere que, “após o Dilúvio, os homens esqueceram-se de novo
do Senhor e começaram a dar culto às criaturas, desprezando o Criador, adorando
aos astros, a água, o fogo, dizendo que essas coisas não haviam nascido de Deus,
mas de si mesmas... Alguns homens e mulheres gravemente pecadores, como
Júpiter, Mercúrio, ou Vênus, foram elevados à categoria de deuses, sendo os
homens instigados pelos demônios a erigir-lhes templos, onde levantaram altares
nos quais derramaram não só sangue de animais como de homens. Chegaram a
ponto de dedicar cada dia da semana um deles – como ainda hoje se constata a sua
utilização em muitos Países (exceto em Portugal, por intervenção do próprio S.
Martinho!) - ... Outros erros se introduziram, ainda, entre os rústicos e ignorantes,
como a estultícia de se guardarem dias de traças e de ratos, bichos que não fazem
mais do que minar aquilo que encontram!... Não vedes que os demônios vos
mentem claramente nestas observações a que vãmente vos entregais, nos agouros,
nos cantos das aves e coisas vãs que tais, que vos fazem perder a Fé? ...
Considerai, filhos, as promessas que fizeste no Batismo, em que vos ligastes a Deus
e renunciastes a Satanás, aos seus anjos e às suas más obras. E agora voltais aos
cultos do Diabo?... Por que desprezais o Sinal da Cruz e temeis que tomastes para
vós?... Não duvides da misericórdia de Deus: ajusta-te, de novo, no teu coração,
com Deus, de que não voltarás a dar culto aos demônios, mas somente adorarás ao
Deus do Céu; nem hás de cometer homicídio, nem adultério, nem qualquer
impureza. E tendo prometido isto a Deus, de todo o teu coração, não cometendo
mais aqueles pecados, espera firmemente o Seu perdão”.
As “Aegytiorum Patrum Sententiae” (Sentença dos Padres do Egito), foram
coligidas em grego por autor anônimo e traduzidas para latim por S. Martinho.
Constituem uma importante coletânea de regras ascéticas. Vejamos, tão-somente, 3
destas sentenças ou Apofetegmas (em nº de 110):
35. “Dizia o Abade Moisés: Se as ações não concordam com a oração, em
vão trabalha o homem; porque quando alguém ora por si mesmo, para que lhe
sejam perdoados os pecados, guarda-se de os cometer novamente. Quando, porém,
algum perdeu a vontade de pecar e se conserva no temor de Deus, a este receberá
logo o Senhor, com júbilo”.
95. “Dizia um Ancião: O homem que a toda a hora traz a morte diante dos
olhos, vence a pusilanimidade”.
97. “Disse um Ancião: É impossível que o homem, sem a guarda da língua,
aproveite uma só virtude que seja; pois a primeira virtude é a guarda da língua”.
Referiremos, ainda, a Coleção de Sentenças, traduzida igualmente do grego,
pelo diácono Pascásio, conhecida pro “Verba Seniorum” (Palavras dos Antigos),
mas organizada, sem dúvida, por S. Martinho, numa série temática, em 44 capítulos,
a fim de servir como Regra Monástica, adotada nos seus mosteiros.

261
Obras Canônicas
Num segundo grupo de obras de S. Martinho, incluímos os “Capitula Martini”,
coleção de Cânones dos Concílios Orientais, dirigida ao Bispo Metropolitano
Nitigísio de Lugo. O Arcebispo Primaz das Espanhas propõe-se, nesta obra, corrigir
e simplificar as anteriores traduções e facilitar a consulta dos Cânones. Destes, os
68 primeiros destinam-se ao clero e os 17 restantes aos fiéis.
O opúsculo “De Pascha” (Da Páscoa) debruça-se sobre uma questão que
muita polêmica tem levantado na História da Igreja: a data da celebração da Páscoa.
S. Martinho não procura, aqui, esmiuçar os cálculos dessa data, mas antes,
apoiando-se nas Atas do Concílio de Cesaréia (Palestina), em 198, trata de abordar
a questão mais como teólogo do que como historiador ou matemático.
Outro opúsculo importante neste grupo é, sem dúvida, o “De Trina Mersione”
(Da Tripla Imersão). Motivo de redação da obra é a resposta à carta dum Bispo
Bonifácio, de quem não se declara a Sé, mas que é presumível tratar-se do
venerável Bispo Bonifácio de Ferento, na Etrúria.
Dizia Bonifácio que haviam chegado à sua diocese pessoas oriundas da
Galécia declarando que nessa Igreja se batizava não em Nome da Trindade, mas
nos Nomes. Responde o nosso Santo afirmando que isso é completamente falso.
Em testemunho da prática existente na sua Igreja, alega uma missiva que o Papa de
Roma, Vigílio, enviara alguns anos antes ao Metropolita Profuturo de Braga, que o
consultara neste ponto, e confirmando o Batismo num só Nome da Trindade (do Pai,
do Filho, e do Espírito Santo), com tripla imersão e não nos Nomes, com uma única
imersão. Acrescenta que esta tradição “foi conservada pelos Bispos desta Província
e confirmada pelo Prelado da cidade de Constantinopla nas Festividades da Páscoa,
estando presentes os Legados deste Reino, que haviam sido enviados ao Império”.
Ao concluir o opúsculo, S. Martinho volta a fundamentar a prática da tripla
imersão como “ensinada pela autoridade da Sé Romana e conservada na antiga
prática das Igrejas Orientais, sendo também assim demonstrada nas exposições dos
Antigos Padres (da Igreja) bem como nos documentos dos manuais dos
sacramentos”, dando assim um cariz eclesial e universal a esta prática sacramental.
Como refere – e muito bem – o Santo Primaz das Espanhas, num só Nome
mostra-se a unidade da essência divina e nas três imersões a distinção das três
Hipóstases.
Dado que os arianos batizavam da mesma maneira que os ortodoxos, alguns
houve que, para se demarcarem deles, resolveram fazer uma só imersão,
reconhecendo a unidade da Divindade, mas não manifestando diferença alguma nas
Pessoas sendo, por isso, acusados de sabelianismo (que afirmava serem o Pai, o
Filho e o Espírito Santo aspectos diferentes de uma só Pessoa).
“Não se pode – como escreve S. Martinho – fugir a vizinhança do batismo
(alheio) para se cair noutro erro”. Não se pode legitimar um erro pastoral com um
erro teológico!

Conclusão

É mal conhecido e divulgado o nosso Pai entre os Santos Martinho de Dume,


começando pelo nosso próprio País, sendo algumas das suas obras traduzidas do
latim para diversas línguas e só dezenas de anos mais tarde para o nosso próprio
idioma, para vergonha nossa... A razão disso talvez não seja muito difícil, de
encontrar, pois que interesse poderia haver para uma Igreja Católica Romana,
centralizadora e esterilizadora de todas as diferenças de expressão de cultos, na
unidade da Fé, característica das Igrejas locais, da coexistência – no Ocidente –
precisamente de uma Igreja local como a das Espanhas, de que S. Martinho foi

262
justamente um dos seus filhos e simultaneamente Pastor, dos mais ilustres, e seu
inquestionável Primaz de Igreja local, autocéfala?
No fundo, a questão subjacente é, uma vez mais, a da Primazia, que os
Chefes das Igrejas locais não souberam manter e que Roma habilmente
açambarcou. Mas não poderia fazer no tempo de S. Martinho, porque ele não
permitiria! Nem o fez em Portugal até ao séc. XII... Resumindo, à figura eminente de
S. Martinho de Dume não foi dado o seu justo valor: devido à nossa própria
pusilanimidade... e por não convir à Igreja de Roma!
Todavia, doa a quem doer, S. Martinho de Dume é e será sempre uma
referência obrigatória, ao qual podem recorrer aqueles que ainda vivem no seio da
Santa Igreja de Cristo, na certeza antecipada de que a Teologia e a Tradição por ele
vividas em tudo são conformes à proclamação dos Santos Dogmas e Cânones
sagrados, pelos Santos Padres da Igreja – de que ele é lídimo representante – como
a Santa Tradição nos legou e a Santa Igreja nos ensina.

263
SAGRADA LITURGIA – 3º. ANO

II Parte
Liturgia dos Catecúmenos

1- Ritual Preparatório

A Liturgia dos Catecúmenos começa pela incensação do Altar, da


Iconostase, da Igreja e dos Fiéis, durante o cântico da Grande Doxologia.
Esta incensação, que hoje se faz no início da Liturgia dos Catecúmenos,
outrora teve lugar no momento da “Entrada do Clero no Santuário” - atualmente
apelidada de “Pequena Entrada” (16-40).
O Bispo, depois de haver feito a sua oração diante do Altar de Deus – diz
São Dinis, o Areopagita – “incensa o Altar e a Igreja em toda a volta” (17-41).
Esta incensação quando, no século VIII, se fez preceder a “Entrada”
(Pequena), de um pequeno Ofício designado por “Prelúdio”, ou “Enarxis”, foi
transferida, naturalmente, para antes deste Ofício.
O fumo do incenso simboliza a oração que se eleva para Deus: “Que a minha
oração se eleve como o incenso diante de Ti e a elevação das minhas mãos como
um sacrifício vespertino” (18-42) afirma o Salmista. Também no Livro do Apocalipse
(V, 8), as orações dos Santos são igualmente simbolizadas pelos perfumes que os
Anciãos oferecem ao Cordeiro.
No capítulo VIII do mesmo livro São João, o Teólogo, divinamente inspirado,
diz: “Veio um anjo com um turíbulo de ouro e pôs-se junto do Altar. Foram-lhe dados
muitos perfumes para que os oferecesse, com as orações de todos os Santos, no
Altar de ouro que está diante do Trono. E o fumo dos perfumes subiu das mãos do
Anjo, com as orações dos Santos, até junto de Deus” (19-43).
A incensação deve recordar ainda, ao clero e aos fiéis, o dever de se
prepararem para a celebração dos Santos e Divinos Mistérios tornando-se, pela sua
vida, “o bom odor de Cristo” (20-44).
Depois de o Bispo invocar o Espírito Santo: “Rei dos Céus, Consolador,
Espírito de Verdade..., vem e habita em nós...” (21-45), o Presbítero faz três
metanóias e venera o Santo Evangelho e o Altar, ou “Antimension” (22-46), onde
estão guardadas as Relíquias de Santos Mártires: a Igreja dos primeiros séculos
celebrava a Liturgia sobre o túmulo dos Mártires associando, assim, o seu Sacrifício
ao do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo.

2- Prelúdio, ou Enarxis

Como dissemos, a Liturgia começava com a “Entrada do Clero no Santuário”


(Pequena Entrada).
O Prelúdio, ou Enarxis, é um Ofício pequeno, que nos deve preparar para a
Sagrada Liturgia; este Ofício compreende Litanias e Salmos antifonados. Após as
Orações preliminares do Bispo, chega o momento de o Presbítero efetuar a
Doxologia: “Bendito e glorificado seja o Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
eternamente agora e sempre e pelos séculos dos séculos”:
1- O Presbítero inicia a Sagrada Liturgia dos Catecúmenos por um louvor ao
Deus Tri-Único.

264
2- O diálogo com Deus (através da Oração litúrgica – que é a Oração
normativa) é Ação de Graças, Glorificação (Doxologia), Confissão e
Imploração.
3- O primeiro destes elementos é a Glorificação (Doxologia).
4- Aquele que pede, fá-lo na intenção de evidenciar os seus próprios
interesses. Aquele que confessa, desejando ver-se livre dos seus males,
acusa-se a si próprio. Quanto ao que agradece, naturalmente, feliz com o
que possui, agradece Àquele que lhe concedeu esses dons. Mas aquele
que glorifica (Deus), esquecendo-se de si próprio e de todos os seus
interesses, esse glorifica o seu Mestre por aquilo que o Mestre é em Si
mesmo, no Seu Poder e na Sua Glória.
A natureza e conveniência do ato litúrgico que se realiza, impõe que o
primeiro lugar seja dado à glorificação. Qualquer pessoa que esteja no caminho de
uma aproximação de Deus tem necessariamente a percepção da transcendência da
Sua Glória, do Seu Poder e da Sua Grandeza. A Doxologia permite encaminhar o
Homem para esse encontro com Deus.
Conhecendo a Bondade infinita de Deus, o Homem implora, pede, através
das suas orações, que Se digne olhar os seus pedidos com benevolência. É natural
que o Homem, conhecedor do Amor de Deus, confie plenamente na Sua Bondade.
No nosso diálogo com Deus, a Doxologia toma o primeiro lugar. Por isso,
antes de toda e qualquer oração, o Presbítero glorifica o nosso Deus Tri-Único.
Mas, por que razão se celebra a Trindade de Deus e não a Sua Unidade?
- Pois o Presbítero não diz: “Bendito seja Deus”, ou “Bendito seja o Reino
de Deus”, mas distingue as Três Pessoas: “Bendito e glorificado seja o
Reino do Pai, do Filho e do Espírito Santo...”
A razão principal radica no fato de ter sido pela Encarnação do Verbo de
Deus – Segunda Pessoa da Santíssima Trindade – que os homens tomaram
conhecimento da realidade trinitária (pela Encarnação do Senhor, os homens
sabem que há Três Pessoas Divinas, em Deus).
Assim, os ritos que se vão seguir são a introdução ao Mistério desta
Encarnação do Senhor: necessário se torna, por isso, desde o início, proclamar e
fazer resplandecer a Trindade.
Proclamada a Glória da Santíssima Trindade, o Diácono (ou o Presbítero)
inicia a Grande Litania da Paz, que é uma longa oração litânica apresentando-se
como um diálogo entre o Diácono e o Povo: “Em Paz, oremos ao Senhor”. – Porque
é em Paz que se deve orar. S. Nicolau Cabasilas afirma que “aquele que está
insatisfeito, descontente e intranqüilo com a sua vida, não pode encontrar paz nele
próprio”.
Após nos ter ensinado quais as disposições gerais que é obrigatório respeitar
para orar, a Igreja ensina-nos, também, qual a primeira “coisa” a pedir a Deus: “Para
que Ele nos conceda a Paz celeste e a Salvação das nossas almas”. Porque,
primeiramente, importa solicitar a Paz que vem de Deus. Esta é a Paz da qual o
Senhor disse: “Deixe-vos a Minha Paz, dou-vos a Minha Paz” (Jo XIV, 27).
É necessário adquirir “a Paz de Deus, que transcende toda a inteligência e
guardará os vossos corações e os vossos pensamentos centrados em Cristo” (Fp
IV, 7).
Tomando estas precauções, podemos então, com Amor, pedir a Deus pelos
outros – pela Igreja, pela Hierarquia, pelos que nos governam, pelos aflitos, pelos
prisioneiros, etc.
Entretanto, os fiéis respondem a cada solicitação da Litania pelas palavras
“Kyrie, eléison”, que significam, na sua tradução mais pura: “Senhor faz-me um
carinho; Senhor, faz-me uma festinha” (e não propriamente “tem piedade de nós –
ou, de mim” - forma fria, desconhecida no Oriente, no seu diálogo com Deus).

265
“Senhor, faz-me um carinho” (Kyrie, eléison) é o pedido natural e íntimo de
um filho que, diante de seu Pai, lhe pede uma demonstração do Seu Amor. S.
Nicolau Cabasilas diz-nos, ainda, que neste pedido dos fiéis, quando pronunciam as
palavras “Kyrie, eléison” está implícita a imploração a Deus da Sua Misericórdia e a
obtenção do Seu Reino Celeste: “O Senhor escuta a oração dos humildes e não
despreza as suas súplicas” (Sl. CI – CXIX).
No fim da Grande Litania da Paz, depois de termos invocado a Mãe de Deus
e todos os Santos, somos convidados a confiarmo-nos, nós próprios e todos os
outros, em cada momento da nossa vida, a Cristo, nosso Deus. S. Nicolau
Cabasilas diz-nos que “a Lei do Amor obriga-nos a não procurarmos unicamente, o
nosso bem, mas também o dos outros homens e mulheres, nossos irmãos”.
Durante a Grande Litania da Paz, o Presbítero diz a primeira oração “secreta”
(silenciosamente) – mais exatamente, oração “sacramental”, “mística”, “misteriosa”.
Nesta oração, o Presbítero ora pelos fiéis presentes, implorando a Deus a efusão da
Sua Misericórdia e da Sua Ternura divina sobre o povo.
A conclusão da Litania explica-nos por que razão estas súplicas são dirigidas
a Deus – É que é a Deus que “pertencem toda a Glória, toda a Honra e toda a
Adoração”.
Estas orações “secretas”, em princípio, não se justificariam, uma vez que o
espírito comunitário da Igreja não admite a separação do Presbítero dos fiéis.
No séc. VI, o Imperador Justiniano prescreveu que fossem cantadas em voz
alta e inteligível todas estas orações (137ª novela). Todavia, desde o princípio do
séc. VII, a leitura silenciosa implantou-se no Oriente e tornou-se tradicional. No
Ocidente, chegou-se ao extremo – insólito – das chamadas “Missas Baixas”. Os
teólogos contemporâneos viram, aqui, um sinal de degradação e perda da
consciência religiosa e litúrgica.
Quando em 1906 foi instituída a Comissão Preparatória do Concílio Pan-
Ortodoxo, muitos dos Bispos consultados insurgiram-se contra a prática das
orações secretas. Contudo, o retorno às fontes ou a práticas esquecidas, mas
plenamente justificáveis, não pode, de forma nenhuma, fazer-se sob a iniciativa
pessoal (individual) deste ou daquele bispo, presbítero ou diácono. São decisões
que relevam de um posicionamento e decisões finais, conciliares. Toda e qualquer
“fantasia” individual de condenar.
- Terminada a Grande Litania, segue-se a 1ª Antífona, seguida da 1ª Litania
e chegamos ao Cântico que precede a Pequena Entrada.
- Ainda em relação às Antífonas que se intercalam com as Litanias, convém
realçar que são Salmos chamados “típicos” ou “representativos”, que
refletem a Esperança do Povo da Antiga Aliança no Salvador Prometido.
As Antífonas entre as Litanias variam consoante os dias e as Festas. São
cantadas durante a semana:
As Antífonas (respostas) porque, primitivamente, o Presbítero começava a
Antífona e o Povo continuava.
A 1ª Antífona é tirada do Salmo XCII: “É bom confessar o Senhor e cantar o
Teu Nome, ó Altíssimo”.
Após cada versículo do Salmo, responde-se: “Pelas orações da Mãe de
Deus, salva-nos Senhor”.
A 2ª Antífona é tirada do Salmo XCIII: “O Senhor reina, vestido de
majestade...” E a resposta é: “Salva-nos, ó Filho de Deus, que és Admirável em
Teus Santos. Nós Te cantamos: Aleluia!”.
Por fim, a 3ª Antífona é tirada do Salmo XCV: “Vinde, alegremo-nos no
Senhor...” e o seu refrão é: “Salva-nos, ó Filho de Deus, que és Admirável em Teus
Santos...”.

266
Estes Salmos não são cantados inteiramente:
Para a 1ª Antífona cantam-se os versículos 2, 3 e 15.
Para a 2ª Antífona cantam-se os versículos 1 e 5.
E para a 3ª Antífona cantam-se os versículos de 1 a 5.

Aos Domingos, as duas primeiras Antífonas são substituídas pelos “Típicos” -


assim se designam o Salmo CIII: “Minha alma bendiz o Senhor...” e o Salmo CXLVI:
“Minha alma louva o Senhor...” Geralmente, nas paróquias, cantam-se apenas
alguns versículos destes Salmos.
A última Antífona é substituída pelas Bem-Aventuranças. Na prática, nas
paróquias, só as Bem-Aventuranças são cantadas, ainda que o Tipikon prescreva
que se deve intercalar, para o final, entre cada estrofe, um tropário do Cânon do
Octoeco, dos Menaia, do Triódio ou do Pentecostário. Há outras exceções, que não
vale a pena referir agora, aqui. Por isso, acontece que nalgumas grandes Festas
consideradas de 1ª e 2ª classes, as Antífonas são consagradas à Festa, sendo os
textos retirados dos Salmos.
“Beatitudes ou Bem-Aventuranças”
“BEM-AVENTURADOS OS POBRES EM ESPÍRITO, PORQUE DELES É O
REINO DOS CÉUS”.
O Reino dos Céus é o Reino dos espíritos celestes, entre os quais vivem os
Anjos, a última das Hierarquias, a qual deve o seu nome a todas as outras
Hierarquias incorporais, porque ultrapassar (franquear) a porta do Reino dos Céus
implica, por si só, ter percorrido um grande e longo caminho.
Esta primeira Beatitude é a dos Anjos, ela anuncia as outras, ela é a
Beatitude da Libertação, a Beatitude porta das Beatitudes; do exterior, ela é a mais
importante.
Os Anjos são mensageiros rápidos, ligeiros como o vento, como o fogo:
aquele que é pobre, livre de qualquer possessão, livre da atribulação dos seus
sentimentos, livre até das suas virtudes, bem como dos seus pecados, esse adquire
a ligeireza, a leveza, a rapidez, a velocidade e a transparência angélicas, esse sim,
é forte, ágil, ligeiro, porque jamais se pode agarrar, circunscrever ou limitar e a
obediência não lhe pesa, é - diríamos – quase que a sua própria natureza.
Aquele que (na sua liberdade) decidiu nem sequer ser dono do seu próprio
corpo e da sua alma, esse é ainda mais livre (o monge: escravo – servo – filho), é
mestre não só do seu “destino” (plano de Deus), mas até da sua própria natureza.
Quanto mais pobre, mais livre para poder dar (e dar-se) como Deus, mais
livre e próximo de Deus.
O Reino dos Céus pertence aos pobres. Cristo diz que é a eles que o
Evangelho será anunciado e mesmo a morte se lhes fará doce.
Nesta primeira Beatitude é anunciada a plenitude da nossa missão (enquanto
plano de Deus para nós) e a razão da nossa condição, como que a inscrição triunfal
à entrada da Via Real: Sede pobres de tudo, para possuirdes tudo – ou melhor, não
possuais nada, pois tudo vos é “destinado”.
Além do mais, esta Bem-Aventurança é aquela da Criação e do Fim do
Mundo: quando Deus criou, fez espaço para o vazio, para as trevas, o caos e o
abismo; aqui também havia a Pobreza. Adão não será somente o coroamento de
toda a Criação, porque superior a todas as outras criaturas da Terra, mas
principalmente porque participou diretamente na pobreza original: ele é tirado da
terra (húmus, barro, argila), onde sopra o Espírito.
Pela morte e julgamento final tudo nos será tirado, para que possamos
receber Deus e reinar com Ele.
Ser pobre é, pois, estar preparado para partir, correr, viver. Da pobreza,
decorre a humildade que, nela própria, é já gérmen e princípio de uma maior

267
perfeição na pobreza (como que um vaso comunicante: Pobreza – Humildade –
Pobreza), que tem como conseqüência o silêncio e a obediência – princípio (ambos)
da oração (diálogo com Deus). Conscientes da Pobreza, nasce a súplica ardente e
possibilidade de aceitarmos e recebermos tudo, sem orgulho, dando graças a Deus,
porque Ele é Bom.
Resumindo o sentido desta Beatitude: tomar consciência de que fomos
criados (devemos tudo a Deus) e aceitar a permissão de nos aproximarmos de
Deus (pela pobreza). Esta Beatitude indica-nos três aspectos das Bem-
Aventuranças: cada uma delas é uma Lei, uma Hierarquia angélica e uma Presença
de Deus. A Lei é Deus escondido, o Anjo é o mensageiro divino e Deus aproxima-
Se de nós sob a forma de um escravo (Cristo – Verbo Encarnado).
Mais tarde falaremos das demais Bem-Aventuranças. Esta foi tomada apenas
como exemplo.

________________________________+_____________________________
_

Voltando agora à Sagrada Liturgia e à abordagem das Antífonas, temos


como exemplo que, para a Festa da Anunciação, as Antífonas são extraídas dos
versículos dos Salmos LXXII, XCVI, CXXXII e o refrão da 3ª Antífona será o Tropário
da Festa. Mas no caso da 2ª Antífona, depois de: “Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo...”, segue-se o cântico glorificando a Encarnação do Verbo de Deus:
“Ó Filho Único e Verbo de Deus, que sendo Imortal, para a nossa salvação, sem
deixares de ser Deus, Te fizeste Homem, nascendo da sempre Virgem Maria e foste
crucificado, ó Cristo, nosso Deus, que pela morte venceste a morte, pois Tu és Um
da Santíssima Trindade, glorificado com o Pai e o Espírito Santo, salva-nos”.
Este cântico foi introduzido nos anos 535-536.
A Sagrada Liturgia é alimentada pela Sagrada Escritura. Nela encontramos
98 citações tiradas do Antigo Testamento e 141 do Novo Testamento.
Estas citações estão repartidas ao longo da S. Liturgia, da seguinte forma:
I – Liturgia dos Catecúmenos: 49 citações do A T. e 38 do N T.
II- Liturgia dos Fiéis:49 citações do A T e 76 do NT.
Para aqueles que conhecem a “Missa” Latina, convém salientar que esta
parte da S. Liturgia – cânticos das Antífonas ou Típico – corresponde ao Intróitus.
Durante o Cântico das Beatitudes, ou Bem-Aventuranças, o Presbítero
prepara-se para a Pequena Entrada.

Sagrada Liturgia dos Catecúmenos


A origem da Pequena Entrada, inicialmente, é de ordem eminentemente
prática. Os livros litúrgicos, e principalmente o Evangeliário, eram raríssimos, sendo
por essa mesma razão extremamente preciosos e guardados em locais especiais
fora do Santuário e era em procissão que se iam buscar.
A Pequena Entrada simboliza o princípio da vida pública de Cristo, na medida
em que o Evangelho simboliza o próprio Cristo, Verbo Encarnado, da mesma forma
que os livros do Antigo Testamento são designados pelo termo genérico de “a Lei e
os Profetas” (Lc XVI, 29), significando desta forma o conjunto da S. Escritura (S.
Nicolau Cabasilas).
Até ao séc. XIII, a S. Liturgia tinha início (visivelmente, para os fiéis) com a
Procissão da Pequena Entrada. Depois, pouco a pouco, por influência monástica,
introduziram-se as três litanias atuais que a precedem e as antífonas respectivas.

268
O Diácono leva solenemente, em Procissão, o Evangelho, precedido dos
Ceroferários. Representa Cristo anunciando a Boa-Nova e precedido de S. João o
Precursor, “lâmpada que arde e ilumina”. Quando chega diante das Portas Reais, o
Diácono recomenda aos fiéis que se mantenham de pé, com sapiência! É um apelo
dirigido aos fiéis no sentido de evitarem tudo o que os possa desviar do “ato de
adoração”, fortemente expresso na “Oração da Entrada” (23-52), pronunciada pelo
Bispo em voz baixa.
À medida que o Clero vai entrando no Santuário, o Coro canta o “Eisodikon”
(24-53) ou o Cântico de Entrada o qual, noutros tempos, comportava um salmo
antifonado, que hoje está reduzido a um versículo único com o respectivo refrão.
Os Tropários do dia, que são variáveis segundo a Festa celebrada e o
Temporal, não surgem nos primeiros Eucológios manuscritos.
Cantam-se igualmente os Kondákia, onde descobrimos uma gama riquíssima
de variantes: a escolha destes Tropários e Kondákia, o seu número e a ordem na
qual são cantados, variam com os Ciclos hebdomadário e anual, no que concerne
aos Santos e ao Títular da Igreja.
Também aqui podemos constatar toda a imensidão da riqueza do Ofício
Litúrgico da Igreja. Todas as variantes, cuja exata repetição quase nunca acontece,
são um verdadeiro tesouro litúrgico, teológico e simbólico (da simbologia teológico-
litúrgica falaremos mais adiante), que desapareceria com o advento de um novo
Calendário. Em 1954, a 28ª sessão do Conselho Econômico das Nações Unidas
ouvia, pela primeira vez, a Índia apresentar à consideração de todos a possibilidade
de se optar por um “Calendário Universal”, comportando 8 meses de 30 dias e 4
meses de 31, num total de 364 dias. O 365ª dia do ano seria feriado no mundo
inteiro. Mediante este sistema, cada data corresponderia sempre a um dia fixo; por
exemplo, o 1ª dia de janeiro seria sempre a um Domingo.
Este novo “Calendário” aniquilaria totalmente a riqueza litúrgica que a enorme
gama de variantes de tropários, kondákia, etc., permite.
Os católicos romanos, no Concílio Vaticano II, por 2057 votos sobre 2071
votantes, aceitaram este calendário, reservando-se o direito de o usarem se todas
as outras Igrejas cristãs o aceitassem igualmente...
À medida que vão sendo cantados os Tropários e Kondákia, o Bispo lê a
oração do Trisághion através da qual, depois de ter proclamado a Glória de Deus,
suplica ao Senhor que receba “dos nossos lábios pecadores o hino triplamente
Santo... nos perdoe todas as nossas faltas voluntárias e involuntárias e nos
santifique. Esta oração termina, ainda, por uma doxologia. Durante esta oração é
cantado o Hino do Trisághion: “Deus Santo, Santo Forte, Santo Imortal, tem piedade
de nós”, pórtico aberto ao insondável Mistério do Deus Tri-Único pelo qual, na
amplidão da oração litúrgica, Cristo avança e aparece diante dos fiéis.
Antes de terminar o Trisághion, o Diácono diz: “Dinamis” (que significa: com
força), convidando os fiéis a redobrarem de intensidade para que o Hino do
Trisághion possa ressoar em toda a sua plenitude.
A certeza da antiguidade do Trisághion radica no fato de muito cedo ter
aparecido, tanto nas Liturgias Orientais como nas Ocidentais. Existe uma carta,
atribuída ao Patriarca Acácio de Constantinopla (472-488), que nos diz ter sido o
Cântico do Trisághion fruto de uma revelação.
Constantinopla, a cidade imperial, era assolada freqüentemente por
devastadores tremores de terra. Num desses infaustos acontecimentos, o Povo
implorava a Deus a Sua Misericórdia quando, inesperadamente, uma criança é
elevada nos ares até ao terceiro Céu, onde ouviu os Anjos cantarem o Trisághion.
Ao regressar à Terra, a criança narrou o que vira e ouvira ao Patriarca Proclo (434 –
446), que pediu à multidão de fiéis cantasse aquele Hino... Após o Trisághion haver
sido cantado, os tremores da terra cessaram.

269
Devemos referir, ainda, que o Concílio “in Trullo”, reunido em 692, no seu
Cânon 81, condena, a adição ao Trisághion “que foi crucificado por nós”, feita por
Pedro Fulão, Patriarca de Antioquia, no ano de 470.
A doxologia final: “Glória ao Pai...”, que hoje vemos inserida no Trisághion, foi
introduzida posteriormente.
Depois do Cântico do Trisághion (ou do Cântico que o substitui), o Bispo
abençoa o Leitor, que proclama o Prokimenon (cântico que precede a Epístola –
equivalente ao Gradual, de acordo com a terminologia ocidental-latina) e que muda
segundo o dia da semana. As Festas, os Santos, cada um dos Tons, todos têm um
Prokimenon que lhes é próprio.
Sentado por detrás do Altar, no seu trono, o Bispo (estando o clero nas
partes laterais do Santuário), demonstra por este gesto a sua igualdade aos
Apóstolos, na sua missão de liturgo e escuta o “Prokimenon”, o qual, com os
versículos do “Aleluia”, que se segue à Epístola, é um vestígio dos Salmos
antifonados, em tempos idos cantados pelo Coro entre as várias leituras. O cântico
do Aleluia foi introduzido por volta do século VII e prepara a Proclamação do
Evangelho.
Outrora, as leituras eram compostas por uma perícopa do Antigo Testamento
– particularmente dos Profetas – uma perícopa das Epístolas e por fim uma dos
Evangelhos. No Rito Bizantino a leitura das perícopa do Antigo Testamento
manteve-se apenas na Liturgia dos Dons Pré-Santificados e na Liturgia de S.
Basílio, quando está unida ao Ofício de Vésperas.
O Aleluia é uma aclamação hebraica que significa “Louvai ao Senhor” e, com
o “Amém” (nós estamos de acordo), são os únicos termos judaicos que não foram
traduzidos. O Aleluia é retirado do livro do Apocalipse (cap. XIX) onde ele figura o
Cântico da Eternidade. Durante o Aleluia, o Bispo dirige a Deus uma oração,
pedindo-Lhe que lhe dê, a ele e ao povo, o dom da compreensão das palavras do
Evangelho que vai ser proclamado.
De seguida, procede-se à incensação do Evangelho, ao qual são prestadas
as mesmas honras que à Sagrada Eucaristia.
O incenso, que liberta um fumo odorizado, como sabem, simboliza a oração e
a elevação da alma para Deus. Encontramos no Salmo CXLI, no 2º. versículo: “Que
a minha oração se eleve a Ti, como o incenso...”, uma prova do que acabamos de
afirmar. Também os Anciãos do Apocalipse seguram em taças, que libertam
perfumes, cujo odor é oferecido ao Cordeiro.
S. Dinis, o Areopagita afirma que o Bispo “antes de orar no Altar sagrado, o
incense primeiro...”.
Podemos constatar que o uso do incenso, que tanto desgosta e desagrada
às “Igrejas” da Reforma (Protestantes), remonta à época do Antigo Testamento e ao
tempo dos primeiros séculos da Igreja.
Segue-se a Proclamação do Santo Evangelho, pelo Diácono (Protodiácono
ou Arcediago), que é escutado de pé. Esta tradição é já mencionada nas
“Constituições Apostólicas”. Esta atitude de permanecer “de pé” simboliza a alegria,
a liberdade e a ressurreição espiritual, que o Evangelho trouxe ao Homem. É a
atitude de quem está pronto a partir e anunciar o Evangelho aos Gentios.
A leitura dos textos do Evangelho, bem como a das Epístolas, segundo a
prática em vigor na Santa Igreja Ortodoxa, é a da leitura contínua. Temos assim
que:
- Da Páscoa ao Pentecostes se lêem os Atos dos Apóstolos e o Evangelho
segundo S. João.
- Do Pentecostes até ao Domingo de Ramos, lêem-se, sucessivamente, as
Epístolas aos Romanos, Coríntios, Gálatas, Efésios, Colossenses, a

270
Timóteo e aos Hebreus. Lê-se, sucessivamente, o Evangelho segundo
São Mateus, São Lucas e S. Marcos.
São raras as exceções: No Domingo de Ramos lê-se S. João, em vez de S.
Marcos, e no Domingo das Mulheres Miróforas ler-se-á S. Marcos e não S. João.
Existem, ainda, alguns dias em que são lidos dois Evangelhos, uma vez que
algumas Festas e Santos têm um Evangelho que lhes é próprio. A ordem da leitura
da Palavra Divina divide, ela também, os cristãos, pois os Católicos Romanos e os
Protestantes admitiram muitas outras leituras diferentes.
S. Nicolau Cabasilas explica-nos as razões que presidiram à fixação das
leituras, nesta ordem, durante a Sagrada Liturgia: “Elas dão-nos a conhecer a
manifestação do Salvador, tal qual ela aconteceu depois da Sua primeira aparição.
Com efeito, a primeira elevação do Evangelho, livro fechado, simboliza a primeira
aparição do Salvador, enquanto ainda não havia iniciado a Sua vida pública,
permanecendo em silêncio, sendo dado a conhecer pelo Pai... Mas, aqui, o que nos
é representado, é a Sua manifestação mais perfeita, no decurso da qual o Senhor
Se misturava com a multidão e Se dava a conhecer a Si próprio, não somente
através das Suas próprias Palavras, mas ainda por aquelas que fazia dizer aos
Seus Apóstolos... Por que não proclamar o Evangelho antes da leitura da Epístola?
– Porque, dar a conhecer o que disse o Senhor pessoalmente, constitui uma
manifestação mais perfeita do que dar a conhecer o que foi dito pelos Apóstolos... O
Senhor (para Se mostrar aos homens) procedeu, progressivamente, do mais
obscuro até ao mais luminoso. Eis a razão pela qual se devem de ler os escritos
apostólicos antes do Evangelho”.
Depois das leituras da Epístola e Evangelho, deve se decorrer a homilia do
Bispo (ou, na ausência deste, do presbítero). Esta prática conservou-se em todas as
Igrejas de Tradição Grega. Contudo, nas Igrejas de Tradição Eslava, muito
particularmente no Patriarcado de Moscou, a homilia foi transferida para o final da
Liturgia. Uma homilia feita por um presbítero que não tenha o dom da Palavra, mal
preparada e proferida numa linguagem vulgar, pode provocar uma dissonância após
as orações de profunda elevação espiritual, contidas na Sagrada Liturgia.
Todavia, o 19ª Cânon do Concílio de Laodicéia (séc. IV) prescreve que a
homilia seja proferida após a Proclamação do Santo Evangelho, sempre que haja
catecúmenos presentes.
De seguida, o Diácono canta a Litania pela Igreja, ou Grande Ectenia, que
difere da Grande Synaptia, ou Grande Litania da Paz, de caráter mais geral, ao
passo que as orações instantes daquela Litania se referem mais à comunidade em
questão. Existe, ainda, a possibilidade de se lhe juntar pedidos e orações pelos
doentes, pelas vítimas dos cataclismos, etc... – naturalmente que devem ser
retirados do Ritual e jamais serem um produto da “boa-vontade” ou fantasias
pessoais.
Segue-se a Litania pelos Defuntos, somente cantada nos dias próprios
consagrados à sua comemoração: o Sábado da Semana do Carnaval (8ª Semana
antes da Páscoa), os 2o, 3o, e 4o Sábados da Grande Quaresma, o Sábado que
precede o Pentecostes, o dia da Degolação de S. João o Precursor, o Sábado
anterior à festa de S. Demétrio (que é a 26 de outubro), bem como as liturgias
celebradas antes da “Absoute” (Absolvição Geral), no 9o e 40o dia após o
nascimento para os Céus, ou anualmente, no aniversário deste, quando
especialmente pedidas em memória de alguém.
Imediatamente depois, vem a Litania pelos Catecúmenos e a ordem para
saírem, antes do início da Liturgia dos Fiéis.
Na categoria de catecúmenos estavam inseridos aqueles que se
encontravam em instância de serem batizados e os penitentes. Já no séc. VII, S.
Máximo, o Confessor dizia que a saída dos catecúmenos e dos fiéis indignos só se

271
fazia como um pró-forma. Fundamentando-se nesta atitude, hoje, algumas Igrejas
Ortodoxas suprimiram esta parte da Liturgia. Quanto a nós, continuamos a defender
que, suprimir esta ou qualquer outra parte da Liturgia, ainda que subjacente, a esta
medida se perfilem razões assaz defensáveis pode, por arrastamento, engendrar
uma mentalidade evolucionista na Liturgia. Esta mentalidade sempre foi, é e será,
estranha à visão litúrgica da Igreja Ortodoxa.
A exclusão das diferentes categorias de pessoas ao longo da S. Liturgia
conferiu aos Ocidentais uma elevadíssima idéia do Mistério que a Sagrada Liturgia
encerra, a ponto de a apelidarem de “Missae” - que significa “saídas”.
A Saída dos Catecúmenos termina a segunda parte da Sagrada Liturgia, pois
só aos Fiéis, os santos de Deus, é permitido participar no Mistério Eucarístico.

Glossário Litúrgico

ACATISTE – Grego ακαθιστοσ (akáthistos). De a (partícula negativa) + Kathisis


(“estar sentado”): “de pé”. Hino à Mãe de Deus que deve ser cantado e ouvido
de pé. Ofício de ação de graças em honra da Santíssima Mãe de Deus, cantado
no Sábado da Quinta Semana da Quaresma e, por partes sucessivas, nas
primeiras Sextas feiras da Quaresma, à tarde.

ALTAR – Mesa santa, de forma cúbica, inicialmente de pedra (solidez: Cristo – a


Rocha Mística). É revestido de uma cobertura (catasarca) e esta de uma saia
que vai até ao chão (indícia). É o lugar mais santo que existe na Terra. Nele
estão depositadas as Relíquias de Santos Mártires. Representa o Trono de
Deus, o Altar de ouro celeste (contemplado por São João no Apocalipse).
Representa ainda o Santo Sepulcro e o nosso próprio Deus e Salvador Jesus
Cristo. As quatro colunas, nos seus quatro cantos, representam os quatro
Evangelistas.

ANÁFORA – Grego αναφορα (anaphorá), de ana (“para cima + phoreo (“levar”):


“elevar”, “exaltar”; elevação dos Dons litúrgicos para a Consagração. Oblação.
Oferenda. Parte central da Sagrada Liturgia durante a qual é feita a
Consagração Eucarística. É composta por : Diálogo introdutório; Oração
Eucarística. É composta por: Diálogo introdutório; Oração Eucarística: “Demos
graças ao Senhor ... Sanctus; Palavra da Instituição; Oferenda; Anamnese;
Epiclesis; Conclusão (doxologia e bênção do Sacerdote).

ANAMNESE – Grego αναμνεσισ (anámnesis), de ana (“para cima”) + mneo


(“lembrar”): “recordação”, “memória”. É a oração litúrgica que rememora a
Paixão, Ressurreição, Ascensão, o Trono à direita do Pai, a segunda e gloriosa
Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Termina com a exclamação: “Aquilo que é
Teu, recebendo-o de Ti, nós Te oferecemos por todos e por tudo”.

ANÁRGIROS – Grego αναργυροι (anargyroi), de na (“sem”) + argyros (“prata”).


Chamam-se assim os santos que curavam os enfermos sem cobrar nada em
troca. Título atribuído principalmente aos Santos Cosme e Damião, Ciro e João.

ANTÍFONA – Grego ανντιφονα (antiphona), de anti (“do lado oposto”) + phoné


(“voz”): “canto alternado”. Cântico executado alternadamente por dois cantores
ou pelos dois coros, ou à oitava, segundo o uso litúrgico antigo. Atualmente,
constitui um salmo antifonado, cujos versículos são intercalados por um refrão.
Exemplos: os três grupos de versículos sálmicos com refrão e tropário do início
da Sagrada Liturgia.

272
ANTIMÊNSION – Grego αντιμενσιον (antiménsion), de anti (“no lugar de”) + mension
(“mesa”): “que está no lugar da mesa”, onde “mesa” significa o Altar. Peça de
tecido de linho ou de seda onde está representado o Corpo de Cristo, depois da
Descida da Cruz. No reverso contém cosido, um pequeno saco com Relíquias.
Primitivamente substituía o Altar (e ainda hoje pode, em caso de necessidade,
exercer a mesma função), ficando sobre ele todo o ano, exceto de Sexta Feira
Santa até à Ascensão (altura em que é substituído pelo Epitaphios, a partir do
Sábado Santo). O Antimension é consagrado pelo Bispo (ou pelo Primaz da
Igreja) com um rito semelhante ao da sagração do Altar. Representa o Sudário
(lençol) que envolveu o Corpo de Cristo.
APÓLISE – Grego απολυσισ (apólysis), de apó (com sentido negativo) + lyo (“ligar,
prender, atar”). Em grego clássico, “absolvição, libertação”. Em grego litúrgico
“despedida”. Nome da última bênção do celebrante ao fim da Liturgia, que se
inicia com: “Retiremo-nos em Paz”.

APOLITÍKION – Grego απολυτικιον (apolytíkion). Ver Apolise. Hino litúrgico


referente à festa celebrada e cantada no fim do ofício e antes da Apólise sendo,
pois, de fato, o hino de despedida da cerimônia. Plural: APOLITIKIA.

APÓSTICA – Talvez do grego apo (“em continuação a”) e stichos (“verso”).

ARTOFÓRION – Grego αρτοφοριον (artophórion). De arto (“pão”) + pher (“levar”).


Tabernáculo em forma de pequeno cofre, ou de túmulo, no qual se conserva a
Reserva Eucarística, em cima do Altar. Também assim se designa o viático
destinado a levar a Comunhão, pelo Sacerdote, a algum fiel que a solicitou.

BENÇÃO – Latim benedictione. De bene (“bem”) + dicere (“dizer”), tradução do


grego eulogia. Bendizer a Deus: reconhecer na Adoração e Ação de Graças, a
perfeição de Deus e os Seus dons gratuitos. Abençoar alguém consiste em
transmitir-lhe os Dons perfeitos de Deus. Podem abençoar os que possuem a
paternidade de Deus: os Bispos e, mandatados por estes, os Presbíteros,
enquanto seus representantes e cooperadores.

CATISMA – (Consultar “ADENDA”, no final deste “Glossário”, pág. ).

CATÓLICO – Grego καθολικοσ (catholicos). De Katá (“em direcção a”) + holos


(“tudo, todos”): “geral, universal”. Significa, em Igreja, detentor da plenitude da
Verdade.

CLERO – Grego κληροσ (klerós), “lote, herança”. Desde os primeiros séculos do


cristianismo que a Igreja constatou que o Clero recebeu em herança a Graça
especial para realizar a sua missão apostólica. Desde o nascimento para os
Céus dos Apóstolos, a Missão Apostólica é realizada pelos Bispos, seus
sucessores e por todos aqueles a quem estes mandatarem. São abrangidos
pelo termo “clero” todos os bispos, presbíteros, diáconos (independentemente
do seu grau hierárquico ao interior da sua ordem), todos os membros das
ordens menores e ainda o clero monástico.

DIOCESE – Grego διοικηεσισ (dioikesis). De diá (“através de”) + oikos (“casa”):


“administração da casa, governo, direção”). É um território delimitado
geograficamente, ao interior do qual o Bispo residencial exerce o seu poder de
Jurisdição na sua tríplice função de Pastor, Liturgo e Doutor, apascentando o

273
seu rebanho que, através das mãos do seu Primaz local, o Senhor Nosso Deus
e Salvador Jesus Cristo lhe confiou.

DOXOLOGIA – Grego δοξολογια (doxologia). De doxa (“glória) + logos (“palavra”):


“hino ou cântico de glória”; Verdadeiro louvor – conclusão de uma oração
contendo o louvor às três Pessoas da Santíssima Trindade.

ECFONESE – Grego εκφωνησισ (ekphonesis). De ek (“para fora”) + phoneo


(“falar”): “exclamação”. Parte final de uma oração dita em voz alta. Doxologia
ou, em geral, toda a conclusão dita em voz alta – em oposição à oração feita em
voz baixa (em grego, mystikos, “segredo”) – cantada pelo Celebrante.

ECTENIA – Grego εκτενεια, “tensão”. Literalmente, “o que é prolongado”. Série de


convites instantes a orar por diversas intenções. A Grande Ectenia, logo após o
Evangelho: “Digamos com toda a nossa alma e com todo o nosso espírito...”,
comporta uma tríplice resposta: “Kyrie eléison, Kyrie eléison! Kyrie eléison!”
E há também duas pequenas Ectenias: uma após a Grande Entrada:
“Completemos...” e a outra após a conclusão da Anáfora: “Tendo invocado...”

EPICLESE – Grego επικλησισ (epiklesis) . De epi “por cima”+ klesis “chamamento”:


“invocação”. Invocação do Espírito Santo sobre os Dons Eucarísticos. Parte da
Anáfora Eucarística onde se invoca a Descida do Espírito Santo para a
Consagração dos Dons. Transformação do pão e do vinho em Corpo e Sangue
precioso de Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo.

EPIGONÁTION – Grego επιγωνατιον (epigonation). De epi “por cima” + gonatos


“joelho” (termo mais correto do que “hipogonátion”). Simboliza a espada dos
Confessores. Os mártires foram mortos por uma espada assassina e portadora
de morte. Aqueles, a quem hoje é dado o Epigonátion usam à cintura, não mais
a espada que mata, mas a espada que concede vida, porque é uma espada de
Amor. É usado por todos os Bispos, Arquimandritas, Arciprestes e por alguns
Presbíteros.

EPITRAKÍLION – Grego επιτραχηλιον (epitrachelion). De epi “por cima”+ trachelos


“pescoço”. Também conhecido por Estola, é usado pelo Bispo e pelo Presbítero
(a estola diaconal, o “Orarion”, é diferente) e toma raízes no Antigo Testamento,
no momento em que o Óleo é derramado sobre a cabeça de Aarão (por Moisés)
e lhe escorre até aos pés, simbolizando por isso a graça do Sacerdócio que é
derramada sobre o Bispo. Esta graça repousa sobre o pescoço que recebeu o
jugo de Cristo, ela desce pelo peito até aos pés, suaviza o coração e santifica
todo o corpo.

ESTIKARION – O Estikárion, ou Alva, é a primeira veste do paramento litúrgico a


ser colocada quando da paramentação, seja pelo Presbítero ou pelo Bispo. A
Alva é a antiga toga patriciana, com barras no fundo de cor púrpura e roxo com
aplicações em dourado. É uma veste muito ampla e simboliza a disponibilidade
do Homem posta ao serviço de Deus.

ESTIQUÉRON – Grego στιχηρον (sticheron). Breve hino litúrgico que desenvolve o


tema de um versículo (stichos).

EULOGITÁRIA – Conjunto de bênçãos (eulógion). Partes dos ofícios litúrgicos


compostas por tropários que acompanham o Salmo 119, da 3ª esticologia em

274
Orthros de Domingo e que começa em grego pela palavra Eulóghitos “Tu és
bendito”. Distinguem-se os Eulogitária Anastásima (em honra da Ressurreição
do Senhor) dos Eulogitária Necrósima (em honra dos defuntos).

HEXAPSALMO – Em grego, “seis salmos”. Conjunto de seis salmos lidos no ofício


de Matinas.

HIRMOS – É o primeiro tropário de cada ode do Cânon e o modelo de todas as


demais estrofes, imprimindo-lhes o seu ritmo e a sua melodia. A série dos hirmi
pode ser independente dos restantes tropários. Na Sagrada Liturgia é sinônimo
de Hino à Virgem, cantado no início da Oração de Súplica.

IGREJA – Grego εκκλεσια (ecclesia). De ek (partícula de intensidade) + klesis


(“chamamento”): “assembléia dos convocados, dos chamados”. É o “Corpo
Místico de Cristo”; é a “Esposa Mística de Cristo”. A Igreja é o “Corpo Místico de
Cristo” quanto à sua natureza e constatamo-lo quando Ela distribui os
Sacramentos; a Igreja é a “Esposa Mística de Cristo” quando os seus membros
(os fiéis) recebem os Sacramentos. “A Igreja é uma comunidade de homens em
tensão para Deus” (Metropolita Gabriel I, de Braga e Lisboa).
IKOS – (Casa): estância. Estrofe de um poema no estilo dos Kondákia de Romanos,
o Mélodo. Geralmente é um só em Orthros.

KONDÁKION – Grego κοντακιον (kontákion). Estrofe, prelúdio, independente do


resto do poema, tanto pela sua construção poética como pela sua melodia,
terminando por uma aclamação que é repetida no fim de cada estrofe (ikos). Na
Sagrada Liturgia, é a estrofe que termina a série de tropários. Em Orthros, é o
hino que se segue à 6ª Ode do Canon, seguindo-se-lhe (aos Domingos e
Festas) o Ikos.

LAUDES – Latim laudes, “louvor”. Simbolizam o anúncio da Ressurreição e


Transfiguração do Mundo.

LITANIA – Grego λιτανεια (litaneia). Do verbo litó “pedir em oração”, suplicar.


Seqüência de curtas invocações da Sagrada Liturgia ou dos Ofícios Divinos.

LUCERNÁRIO – Latim lucernariu. De lucerna “lanterna”. Salmos do Lucernário são


aqueles que se cantam antes da procissão da “Luz Jubilosa”, em que se
acendem as velas, durante o ofício de Vésperas.
MAGNIFICAT – Primeira palavra, na tradução latina, do hino cantado pela
Santíssima Virgem Maria: “Magnificat anima mea Deum...” (Engrandece, ó
minh’alma, a Deus...).

MENOLÓGION – Grego μηνολογιον (menologion). De menaion (“mês”) + logos


(“palavra”). Livro litúrgico que contém as vidas dos Santos, organizado por
meses ao longo do Ano Litúrgico Ortodoxo, que começa em Setembro.

MENAIA - Livro dos meses. Contém, em vários volumes, as partes próprias das
Festas fixas e próprias dos Santos do Ano Litúrgico.

OCTOECO – Grego οκτωηεχοσ (octoechos). De octo (“oito”) + echo


(“tom”) oito tons. É o livro litúrgico que contém os vários hinos dos Serviços
Divinos que vão do Dia de Todos os Santos (1º Domingo após o Pentecostes)

275
até ao Domingo que antecede o Domingo do Fariseu e do Publicano (10º
Domingo antes da Páscoa), altura em que é introduzido o Triódio, livro que
contém os ofícios litúrgicos da Quaresma até ao Domingo de Páscoa. Os hinos
do Octoeco são cantados, consecutivamente, nos oito tons tradicionais da
música eclesiástica e litúrgica bizantina.

OMOFÓRION – Grego ωμοφοριον (omophorion). De omo (ombro) + phero (levar).


Simboliza o Poder de Ordem.

Grande Omofórion - simboliza a ovelha perdida que o Bom Pastor vai buscar para
introduzir no aprisco junto do resto do rebanho. É ainda a única veste
exclusivamente de origem eclesiástica, não tendo paralelo em nenhuma outra
“sociedade”.

Pequeno Omofórion: é semelhante ao Éfod que o Sumo Sacerdote do Templo de


Jerusalém usava e que o Bispo só usa quando as Oblatas estão sobre o Altar,
como o primeiro diante da Arca da Aliança. Em vez das 12 pedras preciosas,
que representavam as 12 Tribos de Israel e que se distribuíam sobre o Éfod em
4 filas de 3 pedras preciosas diferentes, cada uma representando uma tribo, o
Pequeno Omóforion, por seu lado, tem apenas uma cruz de cada lado, que
simboliza a Igreja , que é a grande Tribo do Povo de Deus.

PANAGUIA – Grego παναγια (panaghia). De pan (“todo”) + hagia (“santa”): “Toda


Santa, Santíssima”. Nome pelo qual a Virgem Maria, Mãe de Deus, é designada
na Igreja Ortodoxa. Também é usada para designar um dos “enkolpia” (“colar”)
usados pelo Bispo, que contém um ícone da Mãe de Deus.

PARÁCLITO - Grego παρακλετοσ (parákletos). De pará (“ao lado de”) + klesis


(“chamamento”): “aquele que é chamado para ficar ao lado, para fazer
companhia”. Em grego clássico jurídico, designava o advogado de defesa, o
intercessor. Nome com que o Espírito Santo é designado no Evangelho de São
João. Orígenes interpretou-o como “Consolador”, isto é, o que consola os
Apóstolos pela ausência de Cristo. Mas no mesmo Evangelho (XIV, 16), o termo
refere-se ao próprio Filho de Deus, Cristo, Verbo Encarnado.

PARÓQUIA – Grego παροικα (paroikia). De pará (“ao lado”) + oikia (“casas”). As


casas que ficam ao lado, em torno da igreja.

PHOTAGÓGICA – Do grego, significando “que conduz à luz”. (Talvez equivalente


de Lucernário). Os Photagógica substituem, na Quaresma, os Exapostilários do
tempo comum, no ofício de Orthros; os Photagógica cantam a Cristo como a
Luz do Mundo.

PROKÍMENON – Grego προκειμενον (prokeimenon). De pro (“antes”) + keimenon


(“texto, leitura”). Versículos que antecedem a leitura apostólica.

PRÓSFORA – É um pequeno pão fermentado, redondo, do qual são extraídas as


partículas a consagrar na Sagrada Liturgia (que incluem o Cordeiro). É rodeada
por uma espécie de sulco que parece dividi-la em duas partes sobrepostas,
representando as duas naturezas de Cristo. A prósfora inteira simboliza a
unidade de tudo e de todos feita em Cristo (Tudo cósmico) e, simultaneamente,
Maria, a primeira a fazer a experiência dessa unidade interna, à qual o homem é
ingentemente convidado. É ainda Maria (simbolicamente) porque é d’Ela que se

276
irá extrair o Cordeiro. Três prósforas simbolizam a Santíssima Trindade e
tornam imanente a Sua presença. Cinco prósforas simbolizam a morte e, ao
mesmo tempo, a Ressurreição com Cristo. As prósforas não são
confeccionadas pro um padeiro comum, mas sim por um fiel, para essa função
designado pelo Bispo, simbolizando a eleição do Povo de Deus e são feitas
segundo uma técnica própria.

PROSKOMIDE – Grego προσκμιδε (proskomide), “preparação dos víveres”.


Serviço de preparação do pão e do vinho para a Eucaristia, efetuado sobre a
mesa da Protése. A Proskomide costuma, também, receber o nome desta
mesa, à esquerda do Altar, na qual é realizada.

PROTÉSE – Grego προθεσισ (próthesis). De pró (“antes) + thesis (“colocação”):


“aquilo que é colocado, feito antes”. É o nome da mesa sobre a qual se realiza a
preparação dos Santos Dons (Proskomide).

SALMO ANTIFONADO – Salmo cantado, executado alternadamente pelos Coros.

SALTÉRIO - Grego ψαλτεριον (psaltérion). Nome do instrumento de cordas usado


para acompanhar o canto dos salmos. Mais tarde, conjunto de salmos.

THEOTOKOS – Grego θεοτκοσ (theotokos). De Theos (“Deus”) + tokás (“dar à


luz”). Título dado à Mãe de Deus desde os primórdios da Igreja pelos primeiros
Padres e consagrado pelo Concílio de Éfeso (431). O hino cantado em seu louvor
recebe o nome de “Theotokion”.

TÍPICON – E o livro que contém o cerimonial ou regras da oração litúrgica e as


rubricas. No Ocidente, o seu equivalente é o “Ordo Missae”.

TÍPICOS – São os Salmos 104 e 147 e as Beatitudes (ou Bem-aventuranças) que,


por vezes, substituem o canto da 1ª, 2ª e 3ª Antífonas na Sagrada Liturgia.

Ofício de Típicos – A sua origem não é bem conhecida. Atualmente é recitado, em


vez da Liturgia completa, nos dias em que esta não é celebrada. De origem
palestina, era um ofício de Comunhão para os dias sem Liturgia, à semelhança
dos Pré-Santificados (de origem constantinopolitana).

TIROFAGIA – Grego τυροφαγεια (tyrophageia). De tyros (“queijo”) + phageo


(“comer”). Domingo da Tirofagia: Domingo a partir do qual se inicia o jejum de
leite e seus derivados. Último dia de “comer queijo”.

TRÍÓDIO (ou TRIÓDION) – Grego τριωδιον (triódion): “três odes”. É o livro litúrgico
que contém as diversas partes da Liturgia e dos outros Ofícios Divinos, num
período particular do Calendário Ortodoxo: começa no Domingo do Fariseu e do
Publicano (10ª antes da Páscoa) e termina no Grande Sábado Santo. Chama-se,
também, Triódio, a este período de 10 semanas antes da Páscoa, sendo as 3
primeiras de preparação e as outras 7 as da Quaresma propriamente dita. O
nome deriva do fato de, durante este período, os Cânones de Orthros conterem
apenas três Odes, em vez de nove usuais.

TRISÁGHION – Significa – “três vezes Santos”. É uma oração dirigida à Santíssima


Trindade: “Deus Santo, Santo Forte, Santo Imortal, tem piedade de nós”. Este

277
hino à Santíssima Trindade é comum em todos os ofícios e quase todas as
Liturgias. Na Liturgia de Defuntos, é o cântico da Procissão do enterro.
Encontramos este hino (o Trisághion) na aclamação dos anjos que é citada pelo
Profeta Isaías (VI, 3) e por S. João (Ap IV, 8) e ainda por David (Sl XLII-XLIII). A
sua origem remonta ao séc. V, quando durante os tremores de terra, que se
fizeram sentir por toda a cidade, foi revelado ao Patriarca Proclos de
Constantinopla (434-436). Logo que a multidão, aterrada, cantou este cântico, o
flagelo cessou. Este cântico, nos dias da Festa da Cruz, é substituído por: “Aos
pés da Cruz...” Nas Festas do Natal, Teofania, Sábado de São Lázaro, Grande
Sábado Santo, Páscoa e Pentecostes, pelo cântico: “Vós todos os que fostes
batizados em Cristo...”.

TROPÁRIO – Grego τροπαριον (tropárion). De trópos “melodia, cântico, modo de


expressão”. É uma curta composição poética, que segue um ritmo baseado no
acento tônico. O tropário principal de cada festa chama-se “Apolitíkion”.

ADENDA
CATISMA - Grego καθισισ (kathisis), “estar sentado”. Agrupamento, para uso
litúrgico, em vinte grandes divisões do Saltério, cada qual dividida em três
estâncias.

Catisma Poético – Tropário que se segue, em Orthros, à pequena Coleta (pequena


Litania), após cada esticologia e à pequena Coleta após a 3a Ode do Cânone.

SIMBOLOGIA – A Sagrada Liturgia. A Atemporalidade Litúrgica

I - O “Mistério” na Liturgia – O seu caráter

Do ponto de vista especificamente cristão, a noção de “mistério” decorre de


uma reflexão profunda sobre o Tempo.
Partindo do princípio que existe uma coerência escriturística quanto à noção
de “mistério”, ela dever-nos-á permitir aceder a uma inteligência original, primordial,
primeira, do Tempo, na Revelação cristã.
A noção de “Mistério” (litúrgico) deve fornecer-nos a trave mestra para uma
equilibrada e justa percepção cristã do sentido da Liturgia. Esta noção e esta
certeza de “mistério” que descobrimos na Liturgia encerra a densidade de uma
experiência original que está indissoluvelmente associada a uma prática e a um
conhecimento sob a forma de um paradoxo temporal, ao qual designamos,
normalmente, por História da Salvação.
História, Economia, Mistério, têm, em alguma parte, uma região de
equivalência. Dito de outra forma, o “mistério” confere um ponto de encontro entre a
Economia eterna da Revelação divina e a finitude da História humana. A noção
justa do “mistério”, a um tempo, da sua imanência e da sua transcendência, é um
instrumento-chave a partir do qual o Novo Testamento nos convida à leitura do
Antigo, enfim, da globalidade da Sagrada Escritura. É, pois, o próprio Novo
Testamento que nos inicia e nos estabelece no sentido adequado do entendimento
teológico da Tipologia escriturística cristã.
Por outras palavras, o Mistério pressupõe, antes de toda e qualquer outra
coisa, uma Iniciação cristã à sacralidade da Palavra de Deus.
É o Mistério que nos vai permitir entrar e penetrar na sacralidade daquilo a
que apelidamos de Sacramentos. O ponto de partida para deixarmos que a
sacralidade da Sagrada Escritura e a sacralidade dos Sacramentos da Igreja, nos
penetre, é um só; é o Espírito Santo. É necessário os fiéis estarem em estado de

278
graça, cheios do Espírito Santo, para que os Sacramentos que Ele realiza e
consubstancia pela Sua presença sejam pelos fiéis recebidos. E é ao contínuo
movimento que vai de uma para os outros no Espírito Santo, que chamamos de
Sagrada Liturgia.

II – Mistério da Economia de Deus

Toda a abordagem, que aqui fazemos em função do sentido e significado


último do “Mistério”, é fundamentada na noção neotestamentária de “mistério”. Ao
longo de todos os Evangelhos Sinóticos (Parábola do Semeador: Mt XIII, 11; Mc IV,
11; Lc VIII, 10), das Epístolas de S. Paulo e do Apocalipse de S. João, a palavra
“mistério” é empregada 28 vezes. Apercebemo-nos, rapidamente, que o Mistério, na
sua qualidade própria de mistério, se situa entre Deus e o Homem. Este Mistério
não encerra um conteúdo objetal, mas sim de relação. Quando dizemos: “Mistério
de Deus”, isto não significa, de forma alguma, o Mistério do que Deus É, n’Ele
próprio enquanto Trindade, mas o Mistério que vem de Deus e que nos referencia
diante de Deus. O Mistério de Deus consiste numa disposição de Deus (quanto à
sua Sabedoria “misteriosa”) na medida em que ela se revela em Cristo: “Jesus
Cristo – e Jesus Cristo crucificado”, como diz S.Paulo na sua I Epístola aos
Coríntios (II, 7); ou ainda: “Cristo no meio de vós, a Esperança da Glória” (Cl I, 27);
e ainda: “Cristo em quem estão escondidos todos os tesouros da Sabedoria e da
Ciência” (Cl II, 2-3). Poderíamos prolongar a lista das referências: Ef V, 32; Ef III, 9;
Ef I, 9.
É na Epístola aos Efésios que nós encontramos uma das utilizações mais
admiráveis do termo “mistério”, onde a freqüência da palavra é já indicativa da sua
importância (V, 31-32): “Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a
sua mulher; e serão dois numa só carne. Grande é este mistério; digo-vos, porém, a
respeito de Cristo e da Igreja”. A possibilidade é a seguinte exclamação paulina:
“Este mistério é grande”. – não concerne apenas à realidade factual do casamento,
da união entre o homem e a mulher, nem tão-pouco, unicamente, acerca das
núpcias entre Cristo e a Sua Igreja; mas respeito à relação entre uma e outra.
Poderá ser difícil de provar tendo somente como base a literalidade do versículo:
“Grande é este mistério; digo-vos, porém, a respeito de Cristo e da Igreja”.
Mas não podemos esquecer-nos que, aqui, S. Paulo tem a exclamação de
um exegeta inspirado diante da Palavra de Deus. Isto não quer dizer que o
significado do termo “mistério” tenha, tão-somente, a dimensão limitada que a
Sagrada Escritura lhe confere, mas engloba-a também, naturalmente, numa
perspectiva escatológica, fundamental.
A contemplação da profundidade da disposição divina, penetrada pela leitura
da Palavra de Deus, faz emergir o Mistério.
A sacralidade da Sagrada Escritura e a sacralidade da Igreja, são ambas
abarcadas por um único olhar de S. Paulo, através da sua percepção da noção de
“mistério”.
O Mistério impulsiona o surgimento da estrutura fundamental e tipológica da
Economia divina, que traduz uma isomorfia essencial entre o ato do princípio de
todas as coisas criadas (gênese) e o ato final (escatologia) – do acabamento,
enquanto realização última, de tudo em Cristo, ou seja, entre o Ato da Criação e o
Ato da Salvação (cf. Ef I, 9).

O Mistério abre-se ao nosso conhecimento, pela Fé, através do trilho


tipológico de uma estrutura imanente e que decorre da Palavra de Deus, susceptível
de ser descoberta, sendo no caso presente um quadro de relações onde Cristo é o
centro.

279
1º nível de tipologia: a arquetipologia legal de Adão e Eva figuram a realidade
das núpcias humanas.
2º nível de tipologia: a teleotipologia espiritual das núpcias escatológicas de
Cristo e da Igreja, figurando a união, com Cristo, da humanidade resgatada.
- Entre Adão e Cristo há uma relação de tipo e de anti-tipo, bem como entre
Eva e a Igreja; existe ainda uma relação entre as duas relações;
- Ou seja, entre os dois níveis tipológicos – de um lado a relação nupcial
entre o homem e a mulher, do outro a relação nupcial entre Cristo e a Sua
Igreja.
Nesta última relação convergem as figuras da Antiga Aliança e já os sinais da
Nova Aliança, e constitui o Mistério da relação fundamental manifestada na
Revelação do próprio Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo como Palavra Viva de
Deus. O “Mistério” despoja-se, concomitantemente, numa auto-Revelação e numa
auto-realização da Economia divina de Cristo.
Desta forma, o Mistério exprime a sacralidade da Sagrada Escritura, onde a
Palavra de Deus se manifesta.
O Mistério designa, assim, da forma mais concreta possível, a Economia
Salvífica do Verbo Encarnado, na medida em que esta Economia Salvífica
manifesta, realiza no Homem a imagem da Criação sob o modelo da Imagem
Incriada do Filho.
O Mistério é uma figura escatológica do plano eterno de Deus em função da
Sua Criação, dado a conhecer e realizado em Cristo, Senhor da Ressurreição
Pascal, Monógeno, gerado do Pai desde toda a Eternidade, Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade e Salvador Único de toda a Criação.
Revelação e fim último do Homem no Senhor da Segunda Vinda são os dois
grandes eixos em torno dos quais se perfilam todas as utilizações
neotestamentárias do termo Mistério.
E é no ponto em que se cruzam estes dois eixos em torno dos quais se
perfilam todas as utilizações neotestamentárias do termo Mistério.
E é no ponto em que se cruzam estes dois eixos – Revelação e Parusia –
que intervém a noção de Tempo.
O Mistério revela-nos a relação entre a Eternidade de Deus e a
temporalidade do Homem. Segundo S. Paulo, Deus, na Sua Benevolência,
“descobriu-nos o Mistério da Sua vontade, segundo o Seu beneplácito, que
propuser em Si mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na
dispersação da plenitude dos tempos, tanto as coisas que estão nos Céus como as
que estão na Terra” (Ef I, 9-10).
A partir daqui, podemos esboçar o ponto de partida para uma definição
genérica da noção de Mistério, na qual será afirmado o princípio fundamental da
coerência entre a sacralidade das Escrituras e a sacralidade da Igreja, de forma que
esta definição possa servir de axioma para uma efetuação da participação
divinizante, querida por Deus, da criatura na Obra da Criação, sob a certeza
escatológica.

280
ANGEOLOGIA - 3º. ANO

A ANGEOLOGIA NO LIVRO DO SANTO PROFETA EZEQUIEL

Depois de uma introdução em que apresentaremos, sucessivamente, uma


esquematização do livro de Santo Ezequiel, uma abordagem dos Profetas em geral
e um olhar pela personalidade de Santo Ezequiel, passaremos a uma muito sucinta
abordagem da obra, em que focaremos os seus símbolos relevantes, para
concluirmos com a visão dos Querubins propriamente dita.

Conteúdo do Livro de Ezequiel


O Livro de Ezequiel é constituído por 48 capítulos.
- VISÃO: Cap. I, retomada nos caps. X e XI,
- MISSÃO: do Cap. II, 1 ao III, 21;
- Profecias sobre Israel e outros Povos: do III, 22 a XXXII.
- Descrição do Templo: XL a XLVIII – São 8 capítulos repletos de medidas
e de números; por detrás destes cálculos dissimula-se a Jerusalém
Celeste.

EZEQUIEL E O PERÍODO PROFÉTICO


O período que vai de Moisés a Jesus cobre cerca de 1.300 anos. É no século
XIII anterior à nossa era que começa o profetismo porque Moisés, o amigo de Deus,
é um profeta. Depois, do séc. XIII ao séc. VI antes de Jesus Cristo, desencadeia-se
toda uma linhagem de Profetas, que se prolonga até Malaquias. Deus abana o Seu
povo através da Sua Palavra potente, comparada a um trovão.
A partir do séc. VI antes de Jesus Cristo mergulhamos num silêncio, que se
prolonga por 500 ou 600 anos, até São João, o Precursor. Isto não significa que de
todo não houve profetas, mas que estes foram pouco relevantes e isto sem contar
com os falsos profetas, que sempre apareceram em todas as épocas.
Os homens que resplandecem na Sagrada Escritura e incrementaram a
consciência da humanidade em Israel, ergueram-se entre os sécs. XIII e VI, durante
aproximadamente 800 anos. Estes 800 anos representam um instante, um pico de
profetismo na História da humanidade.
Mas o Espírito Santo atua desde o princípio do mundo e atuará até ao fim
dos tempos. Vejamos o exemplo das Sagradas Escrituras: ao longo de 14 a 15
séculos diferentes escritores inspirados dão à luz os livros da Bíblia, até ao último
que é o Apocalipse. Isto quererá dizer que a ação do Espírito Santo parou? Que
Ele Se afastou? Que não há mais homens e mulheres receptivos ao Espírito? De
maneira nenhuma. O dinamismo do Espírito continua sem interrupção, mas há
limites temporais que circunscrevem determinadas manifestações. É por isso que
vemos o profetismo do Antigo Testamento enfraquecer antes da Natividade do
Salvador.
Vejamos mais em pormenor como se distribuiu o movimento profético:
- MOISÉS: 13 séculos antes de Jesus Cristo, segundo se pensa;
- DÉBORA, a profetiza: séc. XII (não escreve);
- ELIAS, ELISEU e SAMUEL: por volta do séc. X (nada escreveram);
Subitamente, do séc. IX ao VI, em apenas 300 anos, manifesta-se uma
falange de profetas. O profetismo floresceu em Israel e Judá com a aproximação da
destruição de Jerusalém, assim como durante o cativeiro, isto é, durante os

281
períodos de maior perturbação. Podemos dizer que o período profético se estende
antes, durante e depois do Cativeiro.
Quais são os nomes dos profetas do Antigo Testamento neste breve
período? Há várias hipóteses, segundo diversas escolas e investigadores, mas de
um modo geral consideram-se situados, no:
- Séc. IX: AMÓS, OSÉIAS, ISAÍAS (haverá mais do que um Isaías?) e
MIQUÉIAS;
- Séc. VIII: SOFONIAS E JEREMIAS;
- Séc. VII: NAÚM, EZEQUIEL, DANIEL, AGEU e ZACARIAS (princípio do
Cativeiro – em 587/586 Jerusalém cai sob o domínio dos babilônios);
- Séc. VI: MALAQUIAS.

Destes 12 Profetas sobressaem 4: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel, em


seqüência cronológica.
Essa proeminência não é atribuída ao valor intrínseco dos Profetas, mas à
abundância dos seus escritos (critério que só compromete a Igreja Romana).
Torna-se evidente uma coincidência numérica curiosa:
-12 profetas, 12 tribos de Israel, 12 apóstolos;
- 4 profetas, 4 evangelistas.
Lista dos profetas “menores” sem indicação de data:
- Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naúm, Habacuc, Sofonias,
Ageu, Zacarias e Malaquias.

PERSONALIDADE DE EZEQUIEL
Ezequiel significa Deus fortalece.
Ezequiel pertence ao meio sacerdotal. Ele permanece sacerdote. Ele vê,
sobretudo o Templo no futuro. O Ritual preocupa-o e entende que as leis devem ser
restauradas. A inspiração do Espírito Santo não irá quebrar a sua vocação,
realizando-se deste modo a sinergia divino-humana.
O homem, elevado pela inspiração, não é mais do que um instrumento. No
profeta realiza-se um choque entre a sua personalidade, a sua condição humana e
a graça. O profeta não se exalta nem eleva os seus agradecimentos a Deus pelo
fato de o fazer profeta. Pelo contrário, ele resiste e muitas vezes recua. Vejamos o
exemplo de Moisés.
O profeta não se coloca na situação de mestre, mas é, tantas vezes, o servo
esmagado. Freqüentemente ele descreve a sua visão em palavras que não teria
querido aceitar, porque Deus lhe comunica qualquer coisa que vem de outro mundo.
O profeta é um homem nu diante de Deus e das Energias divinas.
Ezequiel conserva a sua linguagem eclesiástica. Outros profetas anunciam a
universalidade messiânica. Isaías fala de novos Céus e nova Terra. Ezequiel não
desvia a sua atenção de Israel. Para ele Israel está primeiro do que a humanidade.
Quando descreve o Templo futuro, ele é influenciado pelo Templo de Salomão, mas
o seu simbolismo transcende-o. A ressurreição de Israel é a imagem da
Ressurreição universal e o Templo de Salomão a da Igreja.
A sua limitação é apenas verbal e Cristo cita-lo-á na parábola do Bom Pastor.
O Senhor revela o sentido universal daquilo que em Ezequiel se restringe ao
contexto de Israel:
- Ezequiel XXXIV, 11 – 12, 23: “Eis que Eu mesmo procurarei as Minhas
ovelhas e as buscarei. Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em
que está no meio das suas ovelhas dispersas, assim buscarei as Minhas
ovelhas; e as farei voltar de todos os lugares por onde andam
espalhadas... E levantarei sobre elas um só Pastor e Ele as apascentará:
o Meu servo David é que as há de apascentar; ele lhes servirá de pastor”.

282
- João X, 14: “Eu sou o Bom Pastor, e conheço as Minhas ovelhas e das
Minhas sou conhecido. Assim como o Pai Me conhece a Mim, também Eu
conheço o Pai, e dou a Minha vida pelas ovelhas... elas ouvirão a Minha
voz e haverá um rebanho e um Pastor”.

O LIVRO DE EZEQUIEL
Capítulo I

A visão de Ezequiel, tal como todas as visões celestes, situa-se no tempo e


no espaço. Não constitui um condicionamento, uma limitação, mas um ponto de
partida.
A visão celeste, precisamente porque ela se eleva para fora do tempo
histórico, desencadeia no visionário a necessidade de se referenciar temporal e
espacialmente.
I, 1 – 3: “E aconteceu, no 30º. ano, no 4º .mês, no dia 5º. do mês que,
estando eu no meio dos cativos, junto ao rio Quebar, se abriram os Céus, e eu vi
visões de Deus. No 5ª dia do mês (no 5ª ano do cativeiro do rei Joaquim), veio
expressamente a palavra do Senhor a Ezequiel, filho de Buzi, o sacerdote, na terra
dos caldeus, junto ao rio Quebar, e ali esteve sobre ele a mão do Senhor”.
Reparemos como o profeta se situa para mostrar que o que se vai passar
não é uma projeção da sua imaginação, mas a violação da sua personalidade
psíquica pelo choque da revelação, uma erupção no seu próprio ser de fatos
estranhos à sua existência normal.
O verdadeiro profeta – verdadeiro cristão – é humilde, registra e inclina-se
diante de qualquer coisa que o transcende e que muitas vezes ele não
compreende.
Quando Ezequiel nos diz que é filho de um sacerdote e se encontra nas
margens do rio Quebar, ele não comenta nem interpreta, mas limita-se a descrever.
Do mesmo modo, ele continuará apenas a descrever as palavras de Deus.

O Céu aberto
Detenhamo-nos um pouco na expressão “abriram-se os Céus”.
Lembremo-nos que na descrição da Teofania feita por S. Mateus, S. Marcos
e S. Lucas, todos eles dizem que os Céus se abriram quando o Senhor saía da
água. No Evangelho de S. João, a certa altura o Senhor diz a Natanael que ele verá
os Céus abertos e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem
(Jo 1, 51).
S. Pedro, num arrebatamento, viu o Céu aberto (At X, 4).
S. João, no Apocalipse, anuncia o combate do Verbo de Deus e diz:
“Vi o Céu aberto” (Ap XIX, 11).
Sto. Estêvão, no livro dos Atos, testemunha que “viu os Céus abertos e o
Filho Homem que está em pé à mão direita de Deus” (At VII, 56).
Ora os céus designam o mundo angélico. A abertura dos céus é o contato
visual e sensível com esse universo angélico, é a abertura do mundo divino, pois
onde estão os anjos está Deus e vice-versa.
Quando o profeta vê os céus abrirem-se e opera-se em si próprio uma
transformação: o seu coração, o seu espírito e a sua inteligência abriram-se. O céu
aberto é um fenômeno simultaneamente exterior e interior que cria uma forma nova
de conhecimento superior.
Pela descrição de Ezequiel: cativeiro, deportação num país estrangeiro e
hostil ao seu povo, longe do Templo, ele que era sacerdote e filho dum sacerdote,
mostra-nos que se encontrava num estado de alma distante da visão triunfal da
Glória de Deus – o Céu estava fechado para ele.

283
Mas os céus abrem-se e essa transformação do ser, essa aquisição
espontânea da capacidade de ver e ouvir indica que para lá da sua vivência interior,
os seus olhos vêem algo espantoso, mas tão concreto como um objeto.
“... E esteve sobre ele a mão do Senhor”
A mão do Senhor pousa sobre ele porque para O ver é necessário ser tocado
por Ele.
De cada vez que Ezequiel tem visões ou recebe ordens para lá das suas
forças, a mão do Senhor pousa sobre ele:
III, 14: “Então o espírito me levantou e me levou... , mas a mão do Senhor era
forte sobre mim.”
VIII, 1,3: “Sucedeu, pois, no 6º. ano... estando eu assentado na minha casa...
a mão do Senhor Jeová caiu sobre mim... E estendeu a forma de uma mão e me
tomou pelos cabelos da minha cabeça; e o Espírito me levantou entre a terra e o
céu...
“XXXIII, 22: “Ora a mão do Senhor estivera sobre mim pela tarde...; abriu a
minha boca, até que veio a mim pela manhã; e abriu-se a minha boca e não fiquei
mais em silêncio”.
XXXVII, 1: “Veio sobre mim a mão do Senhor, e o Senhor me levou em
espírito, e me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos”.
E finalmente, no cap. XL que começa a descrição do Templo eterno:
“...Naquele mesmo dia vi sobre mim a mão do Senhor e me levou para lá” (XL, 1).
A mão do Senhor é a potência divina, a energia criadora, a forma
transformante, protetora, aquela que abençoa.
Mas existem duas características (se assim se pode dizer) da mão do
Senhor: a primeira manifesta-se nas palavras de Cristo, na Cruz: “Nas Tuas mãos,
Senhor, Eu entrego o Meu espírito”; a outra manifesta-se nas palavras de S. Paulo
na sua Carta aos Hebreu (X, 31): “Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus Vivo”.
1ª O grito do Salvador, expressão de abandono e de confiança no apogeu da
Sua Paixão, resume o Salmo de David chamando Deus no momento da sua
tribulação: meu refúgio, meu rochedo, minha fortaleza. Aqui a mão aparece amável
e protetora.
2ª As palavras de S. Paulo fazem lembrar as de Jó em momento de grande
dor: “Desvia a Tua mão para longe de mim, e não me espante o Teu terror” (Jó XIII,
21).
Nenhuma contradição separa as mãos protetoras das mãos terrificantes. A
antinomia está presente na ação divina. Lembremo-nos que antes da distribuição
da comunhão o Diácono diz: “Aproximai-vos com fé, caridade e temor de Deus”.
Ezequiel estabelece uma clara relação entre a mão do Senhor e o Espírito
Santo: é porque a “mão” que pousa sobre ele comunica o Espírito Santo, que
Ezequiel compreende a “palavra” que o Senhor lhe dirige.
“Então entrou em mim o espírito, quando falava comigo, e me pôs em pé, e
ouvi o que me falava” (II, 2).
Os três Arautos
O vento tempestuoso, a grande nuvem e o fogo são os três arautos das
Teofanias. Estabelecem o ambiente propício às Teofanias. A este respeito vamos
ouvir dois textos, um do Antigo Testamento e outro do Novo. De um procede a Lei,
do outro é transmitida a Graça.
Dt. V, 22-27: “Estas palavras falou o Senhor a toda a vossa congregação no
monte, do meio do fogo, da nuvem e da escuridade, com grande voz e nada
acrescentou; e as escreveu em duas tábuas de pedra e a mim as deu.
E sucedeu que, ouvindo a voz do meio das trevas e vendo o monte ardendo
em fogo, vos achegastes a mim, todos os Cabeças das vossas tribos e os vossos
Anciãos, e dissestes: Eis aqui o Senhor, nosso Deus, nos fez ver a Sua glória e a

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Sua grandeza, e ouvimos a Sua voz do meio do fogo: hoje vimos que Deus fala
com o homem e que o homem fica vivo. Agora, pois, porque morreríamos? Pois
este grande fogo nos consumiria: se ainda mais ouvíssemos a voz do Senhor
nosso Deus, morreríamos. Porque quem há de toda a carne, que ouviu a voz do
Deus vivo, falando do meio do fogo, como nós e ficou vivo?
Chega-te tu e ouve tudo o que disser o Senhor nosso Deus: e tu nos dirás
tudo o que te disser o Senhor nosso Deus, e o ouviremos e o faremos”.
At II, 1-4: “E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no
mesmo lugar; e de repente veio do céu um som como de um vento veemente e
impetuoso e encheu toda a casa em que estavam assentados.
E foram vistas, por eles, línguas repartidas como que de fogo, as quais
pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e
começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que
falassem”.
Temos presentes as trevas, fogo, ruído, vento e línguas de fogo.
As trevas, a nuvem, têm numerosos sentidos. De um modo dissimulado estão
presentes no Batismo de Cristo, envolvem o monte Sinai, rodeiam a
Transfiguração. Designam o mistério da necessidade da ignorância – do
reconhecimento do estado pessoal de ignorância – para entrar em contato com
Deus. Quando o homem se sente conhecedor, intelectualmente brilhante,
estabelece desse modo um muro, uma barragem que impede o desenvolvimento
mútuo da sensibilidade espiritual e da inteligência.
Como vimos, o fogo e a luz têm um papel importante nas teofanias.
Antes de nos debruçarmos sobre estes símbolos, não podemos deixar de
notar como o significado de um determinado texto sagrado é, por vezes dificilmente
comentável. Enquanto que as obras profanas apresentam algumas idéias-chave
tanto quanto possível claras e delimitadas, as Sagradas Escrituras contêm uma
multiplicidade de sentidos.
Nós apenas possuímos algumas gotas de água do oceano doutrinal da
Igreja. Tantas vezes nos apercebemos que após séculos de estudo algum
elemento precioso escapou à análise; os Padres da Igreja não disseram tudo –
guiam-nos, mostram-nos o caminho.
Tantas vezes um Padre aborda um determinado tema, mais tarde outro
enuncia uma questão que o primeiro não referira e depois um terceiro amplifica-a.
Lembremo-nos das palavras de S. Gregório, o Teólogo: “Perfeito é aquele
que dirige alguns passos em direção ao Inacessível”.
O fogo que devora os corações, o fogo purificador, é ícone do amor, mas
também do seu oposto – o fogo destruidor (o do Inferno).
O fogo é a divindade que se retrai por “kenosis” (extrema abnegação,
retração, humilhação), imagem da natureza divina.
Lembremo-nos do Salmo 104: “Tu fazes dos ventos Teus mensageiros e de
Teus servidores chamas de fogo”.
O fogo está presente mesmo nas teofanias do nosso tempo. Por exemplo,
em Fátima, o mistério do sol é um dos elementos centrais.
Na festa da Teofania – Batismo de Jesus – Ele esconde o fulgor da Sua
divindade para poder estar entre nós como um de nós, mas permanece “fogo
devorador”.
Hb. XII, 29: “Porque o nosso Deus é um fogo consumidor”.
Importa reconhecer que o mesmo não ocorre na teofania presenciada pelo
Profeta Elias, estando na caverna, após 40 dias de caminhada e de jejum:
I Rs XIX, 11-13: “E Ele lhe disse: Sai para fora, e põe-te neste monte, perante
a face do Senhor. E eis que passava o Senhor, como também um grande e forte
vento que fendia os montes e quebrava as penhas, diante da face do Senhor;

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porém o Senhor não estava no vento; e depois do vento um terremoto; também o
Senhor não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo; porém também o
Senhor não estava no fogo; e, depois do fogo, uma voz mansa e delicada”.
Por que razão as visões de Ezequiel, de Isaías e de Moisés palpitam com o
elemento fogo e esta, de Elias, “no som de uma brisa ligeira”, ou “um murmúrio
doce e sutil”, ou noutras traduções, “o assopro duma branda viração” (Pereira de
Figueiredo)?
Nota-se que a Elias, aquele que foi elevado aos Céus num carro de fogo,
homem impetuoso e ardente, Deus manifesta-Se de modo subtil – a Sua
manifestação adapta-se àquele que a recebe, porque o Deus que Se manifesta no
turbilhão e no fogo não exclui o Deus de ternura e misericórdia.
É este aspecto (face) divino, oferecido ao ardente Elias, que fará Cristo dizer:
“Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai
sobre vós o Meu jugo e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração”. (Mt
XI, 28-29)
Tudo começa pela “água” da sabedoria divina e tudo terminará pelo “fogo” do
amor divino.
Vejamos como S. Pedro no-lo afirma, na sua II Epístola: “Pela palavra de
Deus, já desde a antiguidade, existiram os céus e a terra, que foi tirada da água e
no meio da água subsiste... mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma
palavra se reservam como tesouro, e se guardam para o fogo, até ao dia do Juízo”
(2 Pe III, 5-7).
O Juízo Final será o fogo do amor de Deus.

O Ícone da Glória Divina


Os Seres Vivos – I, 5-14:
“E do meio dela (da nuvem) saía, à semelhança de quatro animais; e esta era
a sua aparência: tinham a semelhança de um homem. E cada um tinha quatro
rostos, como, também, cada um deles quatro asas. E os seus pés eram direitos; e
as plantas dos seus pés como a planta do pé de uma bezerra, e luziam como a cor
de cobre polido. E tinham mãos de homem, debaixo das suas asas, aos quatro
lados: e assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas.
Uniam-se as suas asas uma à outra: não se viravam quando andavam; cada
qual andava diante do seu rosto. E a semelhança dos seus rostos era como o rosto
de homem; e à mão direita, todos os quatro tinham rosto de leão, e à mão
esquerda, todos os quatro tinham rosto de boi; e também rosto de águia, todos os
quatro. E os seus rostos e as suas asas eram separados, em cima: cada qual tinha
duas asas, juntas uma à outra, e duas cobriram os corpos deles.
E cada qual andava diante do seu rosto; para onde o espírito havia de ir, iam;
não se viravam quando andavam.
E, quanto à semelhança dos animais, o seu parecer era como brasas de fogo
ardentes, como uma aparência de tochas; o fogo corria por entre os animais, e o
fogo resplandecia, e do fogo saíam relâmpagos; e os animais corriam, e tornavam,
à semelhança dos relâmpagos”.

As rodas – I, 15-21:
“E vi os animais: e eis que havia uma roda na terra, junto aos animais, para
cada um dos seus quatro rostos. O aspecto das rodas, e a obra delas, era como cor
de turquesa; e as quatro tinham uma mesma semelhança: e o seu aspecto, e a sua
obra, era como se estivera uma roda no meio de outra roda.
Andando elas, andavam pelos quatro lados deles; não se viravam quando
andavam. Estas rodas eram tão altas que metiam medo; e as quatro tinham as

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suas cambas cheias de olhos, ao redor. E, andando os animais, andavam as rodas
ao pé deles; e, elevando-se os animais da terra, elevavam-se, também, as rodas.
Para onde o espírito queria ir, iam; para onde o espírito tinha de ir; e as rodas
se elevavam defronte deles, porque o espírito da criatura vivente estava nas rodas.
Andando eles, andavam elas e, parando eles, paravam elas e, elevando-se eles da
terra, elevavam-se, também, as rodas defronte deles; porque o espírito dos animais
estava nas rodas”.

O aspecto do Homem sobre o Trono – I, 22-28:


“E sobre as cabeças dos animais havia uma semelhança de firmamento,
como um aspecto de cristal terrível, estendido por cima, sobre as suas cabeças. E
debaixo do firmamento, estavam as suas asas direitas, uma em direção à outra:
cada um tinha duas, que lhe cobriam o corpo de uma banda; e cada um tinha
outras duas, que os cobriam da outra banda.
E andando eles, ouvi o ruído das suas asas, como o ruído de muitas águas,
como a voz do Onipotente, a voz de um estrondo, como o estrépito de um exército:
parando eles, abaixavam as suas asas.
E ouviu-se uma voz por cima do firmamento, que estava por cima das suas
cabeças: parando eles, abaixavam as suas asas. E por cima do firmamento, que
estava por cima das suas cabeças, havia uma semelhança de trono, como de uma
safira; e sobre a semelhança do trono havia como que a semelhança de um
homem, no alto, sobre ele.
E vi como a cor de âmbar, como o aspecto do fogo pelo interior dele, desde a
semelhança dos seus lombos e daí para cima; e desde a semelhança dos seus
lombos e daí para baixo, vi como a semelhança de fogo, e um resplendor ao redor
dele. Como o aspecto do arco que aparece na nuvem do dia da chuva, assim era o
aspecto do resplendor em redor: este era o aspecto da semelhança da glória do
Senhor: e, vendo isto, caí sobre o meu rosto, e ouvi a voz de quem falava”.
Os quatro seres vivos e as rodas estão ligados como a alma está ligada ao
corpo: quando eles avançam, as rodas avançam, o mesmo ocorrendo quando se
detêm e quando se elevam sobre a terra.
Por outro lado, entre o aspecto do Homem e o dos quatro seres vivos surge
uma separação, uma linha de demarcação semelhante à transcendência do mundo
espiritual sobre o mundo físico, sem todavia se fragmentar a unidade destes três
planos.
O que Ezequiel vê e nos procura transmitir pertence a outro mundo distinto
do mundo material visível. Por isso o profeta utiliza termos que proporcionem uma
similitude, uma imagem, pois o vento, a nuvem, o fogo não são materiais, mas
espirituais. Eles conservam uma tal semelhança com as suas imagens físicas que o
profeta as utiliza sem reservas. Mas quando se trata das coisas mais sublimes e de
maior profundidade, a dificuldade de comunicação aumenta. Assim, a imagem dos
quatro seres vivos e das rodas não é fotográfica, mas iconográfica. Ezequiel não vê
os quatro seres vivos, mas a forma de quatro seres. Não são humanos, mas têm
uma forma humana.
Ezequiel não vê rodas, mas o aspecto de rodas. Enfim, sobre a “semelhança
de um trono havia como que a semelhança de um homem”.
E o profeta resume esta espantosa visão dizendo: “Este era o aspecto da
semelhança (o Ícone) da glória do Senhor”
É seguro que esses seres vivos que se manifestam ao olhar estupefato de
Ezequiel não são, na realidade, tal como ele os descreve. Não são um homem, um
leão, um touro e uma águia colados uns aos outros para formarem um monstro de
quatro faces, mas uma forma, um aspecto, um símbolo espiritual de potências
celestes.

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Reparamos que eles correm com as rodas nas quatro direções opostas sem
se afastarem do centro. Isto faz-nos lembrar uma tortura medieval.
De modo antinômico, o arranque súbito dos seres e das rodas em quatro
direções, afasta-os e aproxima-os simultaneamente, constituindo suporte estável
para aquele que tem “o aspecto de homem sobre o trono” e está presente sobre as
suas cabeças.
Podemos encontrar uma analogia, para este Ícone, com os Apóstolos:
obedecendo à ordem do Verbo e empurrados pelo Espírito, eles percorrem o
mundo nas quatro direções cardeais, formando assim um suporte estável para o
“Filho do Homem”.
Os Querubins são-nos apresentados sob o seu aspecto quantitativo: são
quatro.
Este número, assim como outros, aparece-nos freqüentemente nas Sagradas
Escrituras, sendo estudados por uma doutrina judaica – a Kabbala – mas da qual
não falaremos, por estar fora do contexto destas aulas.

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