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Antígona no tempo do desejo e da ética

Ana Vicentini de Azevedo

É preciso desconfiar das explicações sem resto.


Nicole Loraux
(“A tragédia grega e o humano”)

Este trabalho tem no seu horizonte explorar alguns desdobramentos possíveis do comentário de

Lacan, feito no seminário A ética da psicanálise (1986[1959-1960]), de que a temporalidade em

Antígona é central. Nesta exploração, também pretendo interrogar o fascínio que Antígona

exerceu sobre Lacan na elaboração de sua reflexão sobre a ética da psicanálise. Com estes

propósitos no horizonte, parto de três pontos, que também constituirão três tempos desse

desdobramento:1

1) um trocadilho freqüente feito por alunos de graduação em Artes, quando


trabalhávamos o texto de Antígona: “para a próxima aula será Antigona”. Ou seja, um
“remeter” do substantivo próprio para uma temporalidade hiperbólica: Antígona não é
apenas antiga, ela é “antigona”, fora do tempo;

2) um destaque que Lévi-Strauss dá à citação do Parsival, de R. Wagner: “vês, meu filho,


aqui o tempo se transforma em espaço”. Lévi-Strauss acrescenta que esta é talvez a
definição mais profunda que alguém já deu sobre mito (1992:219);

3) uma interpretação que uma analisante faz, após várias sessões em que se trabalhava
sua difícil relação com a chefe, quem sistematicamente fazia submergir sua autoria de
vários documentos importantes. Após um abalado relato sobre mais uma “sacanagem”
da chefe, a analisante pausa por um bom tempo e conclui: “ela ainda vai virar
personagem”. Ou seja, ao transformar a autora das sacanagens em personagem, a

1
O fato de um ponto ser desdobrado no tempo já é indicativo de que vamos trabalhar em uma situação limítrofe
entre tempo e espaço.
2

analisante empreende um trabalho de torção subjetiva – ao invés de personagem-


vítima, ela passa a ser autora.

Tempo 1: Antígona e Antigona

A questão temporal, que o jogo de homofonias com o nome de Antígona traz à baila, de

maneira explosiva, está presente ao longo do ciclo tebano de Sófocles, a saber, Édipo Rei,

Antígona e Édipo em Colono. Nessa última tragédia, Édipo, ao se ver destituído de tudo que

mais prezava, exclama, interrogativamente: “agora que não sou mais, é que passo a ser

homem?” (v.393). Uma destituição subjetiva que toma, na trajetória de Édipo, o tempo de duas

tragédias. Já em Antígona, ela se dá desde o início da peça e constitui um de seus principais

pólos da atração, particularmente para a psicanálise, como veremos no que se segue.

O paradoxo expresso nas palavras atônitas de Édipo permeia a lógica trágica, uma lógica

que também é partilhada pela psicanálise. O seminário de Lacan, A ética da psicanálise, pode

ser visto como girando em torno de um eixo paradoxal: construir uma ética da psicanálise a

partir do desejo e suas origens (Lacan, 1986:13). Se o desejo é desejo do Outro, como postular

uma ética sem preconizar a obediência a uma lei superegóica, a um imperativo moral? Na trilha

do desatar alguns nós do desejo e de suas paradoxais origens, um aspecto se impõe: o fascínio

de Lacan por Antígona, a ponto de ele ter-lhe dedicado talvez sua mais cuidadosa leitura, depois

da que ele faz da obra de Freud.2 Qual o brilho de Antígona para Lacan? E para a psicanálise? Do

texto de Sófocles podemos extrair algumas pistas, muitas delas explicitamente apontadas pelo

próprio Lacan, para pensarmos o fascínio dessa figura paradoxal, sob a ótica do tempo.

2
É significativo, nesse sentido, que este seminário perfaz uma cuidadosa releitura dos principais conceitos da
metapsicologia freudiana, como temos em poucos seminários, antes de chegar à leitura de Antígona.
3

O início da peça delineia um padrão de duplicações que é necessário sublinhar, para dar

maiores contornos à Antígona e à sua singularidade, enquanto epítome do desejo. Sua irmã,

Ismene, emoldura este duplo padrão em termos da família, da philía, e da diferença sexual: “nós

duas estamos destituídas de nossos dois irmãos, que morreram no mesmo dia, um pela mão do

outro” (literalmente, “por uma dupla mão”, diplê cherí, vv.14-15).

Dois pares emergem desta descrição: de um lado, os irmãos, Etéocles e Polinices, do

outro, as irmãs, Antígona e Ismene, numa duplicação que se funda na reflexividade, na

especularidade, como demonstra especialmente a “dupla mão” que mata Etéocles e Polinices. A

tensão que permeia a indiferença entre um e dois é inscrita em um quadro de referência que vai

além de duplicações imaginárias. Mais uma vez é Ismene quem faz isso, quando lembra

Antígona da funesta linhagem da qual descendem, em especial, do triste fim daquela que foi

mãe e esposa de Édipo, “dois nomes em um” (diploûn épos, v.53). Ou seja, essa philía confusa a

que pertencem transborda os limites imaginários e simbólicos do parentesco, trazendo consigo

a marca indelével do real do incesto.

Também no início da peça, e como é próprio à lógica do paradoxo, a especularidade dual

é quebrada por Antígona. Ela se separa do par que formava com Ismene quando assume

enterrar Polinices sozinha, isto é, sustentar seu desejo em ato, sem o suporte da irmã. Dois

outros pares, contudo, podem ser vistos em formação neste momento: Ismene e Etéocles,

acoplados pela identificação à lei da polis; e Antígona e Polinices, por oposição aos interesses

desta pólis.

Tão logo esse novo arranjo se forma, ele se apresenta frágil, ou melhor, Antígona rompe-

o, e nos dá notícia de que, em se tratando de tragédia e de desejo, as identificações se


4

constroem para serem rompidas. Ao ser capturada pelos guardas de Creonte, Antígona

singulariza o lugar que ocupa, diverso daquele em que habitam as demais personagens,

especialmente Creonte. As leis deste, segundo ela, não podem se sobrepor “às leis não escritas

e seguras dos deuses” (ágrapta kasphalê theôn nómima, vv.454-455). Estas, segundo Antígona,

não se marcam por um “hoje e um ontem”, mas são para sempre.

Nessa referência a um “para sempre”, ao infinito, Antígona assume para nós a dimensão

do impossível, impossível este no qual Ismene já lhe havia inscrito em seu diálogo inicial: “tu

desejas o impossível”, (amechánon erâs, v.90). Nos termos dos significantes gregos usados por

Ismene, Antígona se move eroticamente pelo que escapa a qualquer planejamento, a qualquer

recurso simbólico, a qualquer trama. No vocabulário da psicanálise e na ótica do simbólico de

Ismene, o movimento desejante de Antígona é na direção do real, lugar onde também ela vai se

situar ao submeter-se àquilo que não cessa de não se escrever, às leis não escritas dos deuses

subterrâneos. Ou seja, Antígona encena, faz presente, uma operação vertiginosa: ela faz com

que o impossível, o que não cessa de não se escrever, se escreva, cesse de não se escrever. Um

mo(vi)mento ímpar, tanto na tragédia quanto na psicanálise.

O paradoxo no qual Ismene situa Antígona, e esta reitera, é também delineado pelo coro

em seu segundo estásimo, ou canto coral, muito conhecido por seus dois primeiros versos:

“muitas são as coisas maravilhosas/assutadoras [tà deiná], mas nada há de mais

maravilhoso/assustador [deinóteron] que o humano [anthrópou] (vv.332-333). O adjetivo grego

déinos é uma das mais agudas expressões do paradoxo, para o qual não temos equivalente em

português. Ao mesmo tempo em que se refere positivamente ao maravilhoso, fantástico,

extraordinário, ele também diz respeito ao funesto, ao assombroso, ao aterrorizante.


5

É essa qualidade de moldura que o coro compõe, precedendo a volta de Antígona à

cena, após sua captura. Também indicando, indiretamente, a assunção de Antígona no que se

refere às leis não escritas dos deuses, o coro pontua que esse humano adquire um elevado

status na cidade, “quando obedece às leis da terra e à justiça santificada pelos deuses” (vv.368-

369). É precisamente sobre esse ideal de cidadão, ético, do bem comum, que Antígona irá

incidir. Em sua determinação de realizar o impossível, tal qual definido pelas leis de Tebas, ela

desfaz essa conjunção, ou a correspondência entre as leis da terra e as leis não escritas. Tal

cisão é fundamental para a reflexão de Lacan sobre a ética da psicanálise enquanto ética do

desejo.

Logo no início do Seminário VII, Lacan identifica um jogo ambíguo de palavras feito por

Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, entre dois termos gregos, éthos (com épsilon) e éthos

(com êta). O primeiro refere-se a costume, hábito, e nele podemos situar as leis da pólis a que

nos referimos acima. O segundo diz respeito também a costumes, a uso, mas comporta outras

acepções: disposição, caráter, especialmente moral, como resultado de hábitos. Uma última

acepção é bastante importante para nossa discussão, a noção de dramatis persona, de

personagem de um drama, que o segundo éthos traz.

Proponho situar este éthos como dando um norte para Lacan pensar a ética da

psicanálise, que se distingue de uma ética do bem comum, de uma ética dos bens.3 Ou seja,

postulo que a ética do desejo que Antígona encarna seja pensada pela ótica do último éthos,

3
Lacan aponta que “a ética em Aristóteles é uma ciência do caráter. Formação do caráter, dinâmica dos hábitos –
mais ainda, ação em vista dos hábitos” (1986:20). Não é disto que se trata em psicanálise. Aqui, segundo Freud, se
trata “de uma orientação da referência do homem em relação ao real” (Lacan, 1986:21). Esta orientação, a meu ver,
se encontra na acepção de éthos enquanto personagem de um drama.
6

particularmente no que diz respeito a essa dimensão de ficcionalidade presente na acepção de

dramatis persona.4

Ressalto também aí que Antígona traz à psicanálise a possibilidade de pensar uma ética

para além da dicotomia “coletivo x individual”, “comum x particular”, “bem x mal”, na medida

em que eleva a níveis paroxísticos, quase insuportáveis, a dialética entre o próprio e o outro,

entre o que é sua lei e a lei dos outros. Sua lei não é sua, é dos deuses subterrâneos, mas que

ela toma para si por ser inextricável de sua constituição como éthos, como caráter, como

personagem. Este ponto é capital para Lacan pensar a ética. Esta, nas suas palavras, “começa no

momento quando o sujeito ... é levado a descobrir a ligação profunda através da qual, aquilo

que se apresenta para ele como lei, está estreitamente ligado à própria estrutura do desejo”

(1986:92).

A passagem de um saber -- no caso de Antígona, não escrito, inconsciente -- para sua

inscrição, ou assunção, se dá através de uma outra temporalidade, própria à lógica do sujeito do

desejo, enquanto “essa báscula incessante entre o ser e o nada”, como pontua J.-A. Miller

(2000:64), ou, como Édipo nos disse bem antes: “agora que não sou, sou”. Nesse momento,

podemos também inscrever Antígona. É por uma experiência de não ser que ela pode levar à

cena seu ser de desejo; é por não existir que ela ex-iste. Uma operação temporal que se

expressa na fórmula do trocadilho: Antígona caminha para Antigona, a “fora do tempo”.

A cisão temporal de Antígona como personagem de si mesma parece-me central para a

encarnação da dialética do desejo e de uma ética fundada nela.5 Como ela própria nos diz: “se

4
Na diferenciação entre a ética da psicanálise e aquela postulada por Aristóteles, Lacan traz a dimensão ficcional,
marcando-a como sendo “em essência, aquilo que engana (trompeur), ou propriamente, aquilo a que chamamos de
simbólico” (1986:22).
7

eu morrer fora do tempo (thanouméne ... exéde), isso será um ganho” (v.460). Ou seja, Antígona

não está em nenhum tempo, ela não é contemporânea nem dos seus, nem de si própria, ao

contrário de Édipo, que confluiu várias gerações em si: ele foi ao mesmo tempo pai e irmão;

filho e marido. Isso fez dele também uma encarnação do impossível, trazendo à cena, num só-

depois, o insuportável do real do incesto.

O impossível de Antígona é de outra natureza. Ao se lançar na tarefa de sepultar

Polinices, a despeito de sua vontade e sob a ameaça de morte, ela se faz autora e personagem

de sua própria tragédia, ela se faz sujeito de sua história, escrevendo essa história não escrita.

Em outras palavras, há Antígona e “Antígona”, esta que deve pôr em cena o que foi escrito por

aquela. Um escrito, porém, que é da ordem do não-escrito, daquilo que não cessa de não se

escrever.6 Para poder criar “Antígona”, éthos, personagem já destinado à morte, Antígona tem

que se destituir subjetivamente. Esse é um tempo tão próprio à tragédia e à psicanálise, que

Lacan nomeou-o como entre-duas-mortes. Veremos uma das figurações possíveis desse tempo

paradoxal no que se segue.

Tempo 2: “Aqui o tempo se transforma em espaço”

Como escrever, figurar,7 o que não cessa de não se escrever? Como Antígona transforma esse

impossível em um necessário imperioso? Que articulações entre real, simbólico e imaginário são

5
No Seminário XVI, “Do Outro ao outro”, Lacan indica que, em “Kant com Sade”, “se faz a demonstração da total
redução deste mais de gozar ao ato de aplicar sobre o sujeito o que é o término da fantasia, através do qual o sujeito
pode ser colocado como causa de si, no desejo” (lição de 13/11/68, inédito).
6
“Lacan considera o sintoma como o que não cessa de não se escrever do real”, nos diz Maud Mannoni (1988:113).
A citação de Lacan é retirada de Lettres de l’École Freudienne, XVI, p.194.
7
Tomo a noção de figura aqui conforme as postulações de Gérard Genette (1982), no sentido de que ela é um hiato
entre o signo e o sentido (entre significante e significado, nos nossos termos), ou seja, ao mesmo tempo em que
busca transpor esse hiato, ela marca indelevelmente a presença dos limites do dizer, do que figura conforma.
8

tecidas na fulgurante trajetória dessa heroína? Encontro um caminho para pensar essas

questões a partir da citação de Wagner, feita por Lévi-Strauss, para definir a lógica do mito:

“aqui o tempo se transforma em espaço”.

Um primeiro passo dado por Antígona para encenar essa transformação é no sentido de

descolar-se de identificações imaginárias, separando-se de Ismene, de Etéocles, de Édipo e do

próprio Polinices, como sugeri acima. Separada dessas imagos, ela pode dar início ao gesto

simbólico que dá notícias do real, qual seja: dar um lugar, no simbólico, ao real do cadáver de

Polinices. Em outras palavras, Antígona pretende que o simbólico (os rituais fúnebres) possa

encobrir o real (do cadáver), uma operação característica do imaginário. A impossibilidade do

gesto é marcada pelas leis da pólis (e também da psicanálise), que acentua que tal gesto está

fadado a ser fora de tempo. Ou, como mostrou Patrick Guyomard, “esse enterro [de Polinices]

não pode ser contemporâneo, não tanto da vida de Antígona, mas de sua petição, de sua

afirmação absoluta ... inaceitável para a cidade. A questão da sepultura ... põe em jogo uma

defasagem temporal permanente” (1992:106).

De fato, mal ela termina o sepultamento simbólico, surge um redemoinho, uma irrupção

de real, que desenterra Polinices, como se os registros real, simbólico e imaginário, sob a égide

desse sepultamento, não pudessem estar entrelaçados. Dito de outra forma, a operação

simbólica de escrever o real a que se propõe Antígona funda o descompasso temporal, do qual

a personagem é epítome.

Um resto surge desta operação, o objeto a, que Antígona passa a figurar, não sem antes

passar por mais uma separação, uma desidentificação. Ao ver que o corpo do irmão havia sido

desenterrado pelo redemoinho, Antígona reage da seguinte forma, nas palavras de um dos
9

guardas que a captura: ela grita de dor, como uma mãe-pássaro ao ver seu ninho roubado

(vv.423-425; meu grifo). Do que essa símile dá notícias?

A sepultura é o lugar onde se encenam vários tempos dessa história. Um primeiro:

Antígona é mãe antes de sê-lo, fora de tempo. O que nos remete ao tempo do incesto, das con-

fusões entre gerações: o futuro Antígona-mãe retroage sobre o passado, fazendo dela mãe de

Polinices, re-encenando uma dimensão de gozo incestuoso que marca sua história. Alguns

versos mais adiante, a mãe, isto é, o desejo da mãe, pode aparecer com mais nitidez: “se eu

tivesse permitido que o corpo do filho de minha mãe ficasse sem sepultura, isso sim teria sido

um sofrimento agudo” (vv.466-468). Vemos então que, das desidentificações que indicamos

acima, permanece ainda a identificação ao desejo da mãe.

Na trajetória da personagem, esse desejo identificado ao da mãe desliza para um ponto

único, onde não poderá haver qualquer identificação. Creio que tal construção oferece a Lacan

um suporte frutífero para sua leitura-construção de Antígona enquanto figuração do desejo. Na

última justificativa sobre sua determinação, que é também sua despedida da vida, esse ponto é

marcado com precisão. Antígona revela que não teria praticado o ato caso o corpo fosse de seu

marido, de um de seus filhos, de outros irmãos. Marido, ela poderia encontrar outro; filhos,

poderia ter outros.

O que marca o corpo de Polinices como ponto de cristalização do desejo é um aspecto

temporal: não há mais tempo para ter outro irmão, uma vez que seus pais estão escondidos “na

casa de Hades” (vv.905-914), ou seja, em uma espacialização do impossível tempo da morte.


10

Nesse sentido, a sepultura para Polinices representa aqui o ponto último no eixo metonímico do

desejo.8

Por seu caráter limite, por ser “o desejo tornado visível” (hímeros enargés,9

Lacan,1986:327), este é o ponto de maior atração para Lacan, onde ele encontra um terreno

fecundo para tomar Antígona como a articulação metafórica por excelência da questão do

desejo, especialmente do desejo do analista.

O movimento de Lacan em torno de Antígona perfaz caminhos que se distinguem dos

caminhos de uma leitura crítica stricto sensu. Nesse sentido, por exemplo, é digno de nota que a

fala de despedida de Antígona, que tem recebido tantos comentários embaraçados e até

raivosos por parte de muitos críticos e comentadores,10 seja privilegiada por Lacan como um

momento violentamente iluminador (1986:327) da singularidade do desejo.

Sua rigorosa leitura de Antígona pode ser vista como um processo de construção de uma

metáfora onde se pré-figuram11 alguns conceitos que serão desenvolvidos por ele em

seminários mais tardios, tais como a questão do desejo do analista, dos arranjos discursivos,

notadamente do objeto a na posição de agente. Este, a meu ver, é o brilho mais fulgurante de

Antígona para Lacan.

8
Cabe apontar, interrogativamente, se, dada esta característica de ponto último do deslizamento
metonímico do desejo, não estamos face a uma fixidez que marca o campo do gozo. A peça, especialmente o coro,
estabelece a equivalência entre o desejo de enterrar Polinices e o desejo de morte (v.220), e Lacan também marca
esta dimensão do desejo de Antígona como “ilustração do instinto de morte” (1986:327). Dados os propósitos deste
trabalho, reitero a desidentificação de Antígona em sua despedida, seu kómmos, feita após este momento.
9
Ver, a respeito do adjetivo enargés, meu texto “Uma enárgeia freudiana”, nessa coletânea.
10
A mais famosa objeção é a feita por Goethe. Além desta, já bem conhecida, indico uma outra. Em seu comentário
da peça, o renomado classicista inglês, M.A. Bayfield, faz asseverações sobre essa passagem do tipo: “não temos
mais aqui a nobre jovem movida por um ato heróico ..., mas uma pessoa [sic] impossível que, de maneira grotesca e
confusa, explica que desafia a morte ao enterrar Polinices, por ela não pode ter outro irmão... Atribuir isso a Sófocles
é insultá-lo” (Antígona, 1968:116).
11
Destaco aí mais uma vez a questão temporal.
11

Ao longo dessa breve reflexão, uma destas pré-elaborações se salienta: o éthos de

Antígona, nas múltiplas ressonâncias que o texto de Sófocles lhe dá, e que Lacan tão belamente

soube pôr em relevo. Desse éthos, salientamos até agora a cisão temporal entre Antígona e

“Antigona” como se espacializando na sepultura para Polinices. Resta um terceiro tempo, o de

pôr em cena um processo de simbolização que perpassa os dois primeiros e que terá espaço no

terceiro tempo.

Tempo 3: “Ela ainda vai virar personagem”

O poeta e contista argentino, Santiago Kavadloff, disse, em entrevista, que “nunca [teve] o

desejo de escrever teatro e, sim, a fantasia de querer escrever teatro”.12 Esse comentário traz

ressonâncias importantes para essa discussão. A primeira delas diz respeito ao destaque que

Kavadloff dá ao caráter inabalável de um projeto sustentado no desejo: sua produção literária é

algo que transborda a dimensão de uma vontade deliberada. Como ele próprio afirma, “os

escritores não escolhem os gêneros [literários] nos quais trabalham. Somos escolhidos por

eles”. Uma assunção do desejo que é também um assujeitamento a ele, tal como Antígona põe

em cena, especialmente quando indica que sua determinação segue as leis não escritas e

inabaláveis dos deuses. Tanto Antígona quanto Kavadloff empreendem essa articulação nodal

da ética, a que Lacan se referiu acima, isto é, a assunção, por parte do sujeito, do vínculo íntimo

entre a lei e a estrutura do desejo (1986:92).

Digna de atenção também é a oposição que estabelece esse escritor entre fantasia e

desejo. Se este é sólido, consistente, aquela é fugaz e inconsistente, pueril até. Freud nos

12
Caderno “Mais”, Folha de São Paulo, 20 de abril de 2003, p.3.
12

ensina, em “O criador e o fantasiar” (1908), que a fantasia partilha com os jogos infantis desse

caráter pueril. Ela é o jogo do adulto. E mais, como o título já indica, Freud realça que o fantasiar

é inextricável da criação. Nessa linha contínua, está a produção artística, na qual também se faz

presente a dimensão de satisfação de desejo (Wunsh) que preside aos jogos infantis. Pela ótica

freudiana, então, vê-se que a oposição fantasia-desejo é questionável. Aliás, como ele

acrescenta, é ela quem entretece passado, presente e futuro, com o fio do desejo. E como Lacan

mais tarde vai apontar, é a fantasia que dá sustentação ao desejo, sendo sua própria condição

de possibilidade. “A fantasia ... é aquilo através do qual o sujeito se sustenta ao nível de seu

desejo evanescente”, nos confirma Lacan em “A direção da cura...” (1966:637). E, no próprio

Seminário VII, “...a simbolização da fantasia [S barrado punção de a] ... é a forma sobre a qual se

apóia o desejo do sujeito” (1986:119).

A interpretação da analisante a que me referi acima – “ela ainda vai virar personagem” –

traz, com a concisão e precisão de uma boa interpretação, essa articulação entre fantasia e

desejo. Ela dá notícia do que vem se confirmando em sua análise: uma mudança de posição

subjetiva, onde o gozo do sintoma é abandonado, em proveito da criação (que, neste caso,

também se dá na dimensão plástica e não somente na escrita ficcional).

A ambigüidade, ou melhor, o equívoco que permeia o sujeito “ela” da interpretação

deve ser posto em relevo:13 em um primeiro nível, o pronome refere-se à chefe, mas em

questão está também a marca de uma mudança de posição do sujeito: ela, a paciente, vai

também virar personagem. Essa elaboração tem assento em uma significativa operação: a saída

de uma inércia, passando-se de uma posição onde se é vítima gozoza da ficção de um outro, do

13
Lembro, com Lacan, que “é unicamente pelo equívoco que se opera a interpretação” (Seminário XXIII, “O
sinthome”, lição de 18 de novembro de 1975. In J. Lacan, Le séminaire, livre XXIII, Le sinthome. Paris: Seuil, 2005).
13

Outro (“tu és isso”), para se tornar sujeito-autor de uma (sua?) história, para, em suma, ouvir a

pergunta fundamental do desejo: “Che vuoi?”. Note-se, contudo, o hiato temporal dessa

enunciação, que se dá entre um não mais (ser) e um ainda não (ser). É nesse entre, nesse tempo

vazio onde a interpretação é feita.

Há uma segunda operação que se encadeia aqui, da qual o tom irônico da interpretação

nos dá pistas. O “virar personagem”, ou seja, a constituição de uma metamorfose (termo caro a

Lacan para marcar este tempo de concluir) levada a efeito na escrita, repousa em uma distância

entre autor e personagem, entre eu, outro e Outro, estabelecendo novas relações entre eles.

Como nos diz M. Mannoni, “entrar na escrita é ... vir a ser sujeito aí, é ser treinado (entraîné)

por ela para além de seu ser de sujeito, em uma relação ao Outro simbólico” (1988:113). Ao se

recriar como personagem, a analisante-autora indica um caminho no sentido de deixar de ser

“personagem à procura de um autor”, ou, nos termos de Lacan, de deixar de padecer de seu

sintoma, para poder servir-se dele, para se assumir como personagem de um Outro, com o qual

ela está desejantemente implicada.

Nesse que é um tempo de concluir, me dou conta que a interpretação produzida pela

analisante teve um efeito de interpretação sobre minha leitura de Antígona e de seu fascínio

para Lacan. Foi a partir de sua escuta, da escuta de uma disjunção temporal, que a posição de

Antígona, no que concerne à temporalidade, começou a me fazer questão. Situei tal posição, no

primeiro tempo, a partir do paradoxo. E é a ele que retorno para pôr em relevo a força de

atração de Antígona no que concerne à reflexão sobre uma ética fundada no desejo.

Ao se fazer personagem de um ato singular, Antígona traz para si dois pólos trágicos

fundamentais, a ação (práxis e drâma) e o padecimento, (páthos). Esse último se constitui numa
14

experiência de tal forma basal à tragédia, que o verso Ésquilo -- “páthei máthos” (através do

sofrimento, a aprendizagem)14 – foi elevado ao status de paradigma da lógica trágica. Nessa

perspectiva, a singularidade de Antígona parece residir na questão temporal. Se Édipo também

sofre o páthos de seu ato (como todo herói trágico), ele o faz em um intervalo de tempo (desde

o início até o fim da peça). Como lhe diz Tirésias, “este dia te trará a revelação e a ruína” (v.438).

No caso de Antígona, não é no lapso de um dia, mas no mesmo instante em que ela é

sujeito-autor do ato, ela se torna objeto-personagem do páthos trágico. Um nível de concisão,

em um gênero já tão conciso, tem um poder iluminador fulgurante, como uma epifania. A

disjunção temporal que apontei, portanto, tem o valor de um operador lógico que nos permite

ver, com mais nitidez, o paradoxo que Antígona encarna: a de sujeito e objeto.

Sob a égide da fórmula da fantasia, “S barrado punção de a”, podemos situar Antígona

nos dois pólos: enquanto autora de um drama trágico, ela é evanescente, como o S barrado, o

qual é marcado, pontuado (momentaneamente fixado) pelo objeto da produção, o objeto a,

que adquire contornos diferenciais, conforme sua inflexão nos registros imaginário, simbólico e

real. O objeto imaginário dessa fantasia são, inicialmente, Polinices e os ritos fúnebres

apregoados pela lei dos deuses, na leitura de Antígona. (Em termos da posição desta para a

psicanálise, devemos observar seu status de figuração da questão do desejo e de sua

sustentação.

A encenação imaginária de Antígona, que acontece fora do tempo presente da

encenação, é permeada pelo registro simbólico, na medida em que é através dele que a

pequena cena em off nos é apresentada, além da própria inquirição, em cena, da personagem.

14
Agamêmnon, 177. Loeb Classical Library. Cambridge. Mass.: Harvard University Press & London: William
Heinemann, 1983.
15

Sabemos que o imaginário tende a recobrir o real. Nesse sentido, então, a cena

imaginária do enterro de Polinices é algo que recobre um real insuportável na cena aberta do

simbólico.15 O que Antígona traz para esta são os efeitos desse real, os quais ela encarna

enquanto objeto a. Para Lacan, Antígona é a possibilidade de dar contornos simbólicos ao

desejo tornado visível, a este hímeros enárges (1986:327), uma operação que só é possível em

face do real, que, para o sujeito, equivale à morte. É disso que Antígona nos dá notícia, desse

páthos absoluto perante o qual o simbólico fracassa.

A tragédia de Antígona pode ser vista à luz deste fracasso (“humano, demasiadamente

humano”), de uma tentativa de inscrição simbólica daquilo que, insistentemente, não cessa de

não se escrever. Mesmo sabendo estar seu ato vaticinado ao fracasso, Antígona leva-o à cena

imaginária e simbólica, cujos efeitos de real ela traz à cena. Sua encenação fantasística, então,

se dá na articulação dos três registros, numa posição subjetiva que pode ser vista como

antecipando a posição de fim de análise que Lacan elabora mais tardiamente, no seminário “O

sinthome” (1975-1976).

Na lição de 13 de abril de 1976, Lacan declara que

ao imaginário e ao simbólico, isto é, a coisas que são estranhas uma a outra, o


real traz o elemento que pode lhes manter juntas. Está aí qualquer coisa da qual
posso dizer que considero como nada mais que meu sintoma. É minha maneira
de levar a elocubração freudiana a um segundo nível (degré), de levar o próprio
sintoma a um segundo nível”.

Este segundo nível ao qual o sintoma é levado, Lacan chama de sinthome, marcando, pela

nomeação, uma posição diferente do sujeito em relação a seu sintoma. Ao invés de estar

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Discuto essa articulação entre real, simbólico e imaginário, sob a ótica do trágico, em meu livro A metáfora
paterna na psicanálise e na literatura (Vicentini de Azevedo, 2001).
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amarrado na montagem sintomática, o sujeito promove novas montagens, desfazendo as

amarras, abrindo assim a possibilidade para outras nomeações, para criações.

O exemplo paradigmático para Lacan é Joyce, de quem ele destaca a questão da

epifania, “como coisa fantástica”, “sempre ligada ao real”. Acredito que Antígona tenha trazido

para Lacan essa dimensão epifânica e, por isso, tenha impresso traços marcantes em suas

elaborações, cujas ressonâncias podem ser ouvidas na psicanálise até hoje. Esses traços, por

mais que tenham sido escritos, ainda guardam sua dimensão de enigma, e continuam nos

convocando para tentar circunscrevê-los, advertidos de que, nesta tentativa, haverá sempre um

resto indizível, e muito mais a dizer.


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