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ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil
Resumo
Este artigo expõe reflexões sobre a formação do professor de psicologia considerando a história
e o papel da Psicologia na educação do cidadão brasileiro. Levanta a hipótese de que a
psicologia aplicada, em conjunto com a crítica que lhe é feita, afastou o interesse dos
profissionais psicólogos pela prática do ensino de Psicologia na educação básica. Segue
descrevendo como o tema da práxis vem sendo retomado nas recentes discussões sobre a
formação de professores como intelectuais críticos e reflexivos. Propõe uma retomada crítica do
interesse pelo ensino da Psicologia em um sistema educativo que tenha como finalidade a
educação contra a barbárie, considerando esta também em sua dimensão subjetiva: para a
formação do cidadão auto-reflexivo, uma educação psicológica é imprescindível.
Palavras-chave: Psicologia, Formação de professores, Educação básica, Teoria crítica,
Adorno, Theodor.
Abstract
This essay aims to reflect upon the education system of psychology professor preparation course
considering the history and the role of psychology in Brazilian education. It suggests the
hypothesis that applied psychology - among its critics – has withdrawn the interest of
psychologists for its teaching practice in the basic education. The paper also describes how the
praxis matter have been reconsidered in the most recent colloquies about the need of the
professor’s education in order to develop more critical and intellectually reflexive
professionals. It proposes a critical retake of the interest by the psychology teaching in an
educational system focused in the education against barbarity, considering that in subjective
dimension as well: a psychological education is essential for a self- reflexive citizenship.
Keywords: Psychology, Professors Education, Basic Education, Critical Theory, Adorno,
Theodor.
Endereço para correspondência: Rua Clóvis Bevilacqua, lote 4, quadra 39, apartamento 101. Bairro: Praia
do Flamengo. Salvador – Bahia. CEP: 41603-120. Telefone: (71)3378-5096. E-mail: ccbarros@usp.br
34 Barros, C. C.
(Pimenta, 2002; Contreras, 1997). Interessa- suas leis não constituem mais
nos, a partir de agora, considerar alguns explicação suficiente por si sós. Não
destes argumentos para refletir sobre a seria possível, a não ser graças à
formação do professor de psicologia. psicologia – através da qual se
A ausência do professor de psicologia interiorizam sem cessar as coações
na educação básica impede a “reflexão na objetivas – compreender nem que os
ação” ou a “reflexão sobre a reflexão na homens aceitem passivamente uma
ação”. Para a formação do professor de irracionalidade sempre destrutiva,
psicologia as idéias iniciais de Schön soam nem que se alistem em movimentos
bastante avançadas. Mas, se levarmos a sério cuja contradição com seus interesses
a hipótese de que a atitude do psicólogo não é difícil de perceber (Adorno,
frente à educação ou é de desinteresse crítico 1969/1995, p. 218).
ou de interesse corporativo, torna-se A psicologia, entendendo o termo como
relevante buscar elementos teóricos que a configuração interna individual ou como a
relacionem a psicologia à práxis educativa. ciência psicológica, não alcança o que é
Um primeiro cuidado a ser tomado é o decisivo no esforço para a saída da barbárie.
de não reduzir a práxis à educação formal ou E neste caso apresenta-se a racionalidade do
ao ensino institucionalizado. Por isso, antes desprezo por uma educação psicológica.
de pensar em uma relação entre psicologia e Mas não pensar psicologicamente, reforçar a
ensino escolar, comecemos nosso ascese contra a psicologia, tem algo de
encadeamento lógico por uma expressão insustentabilidade, com a polissemia que
mais geral da relação entre práxis e este termo pode oferecer. Só a psicologia
psicologia. fornece elementos para a compreensão da
Ao comentar a prevenção do socialismo irracionalidade destrutiva e da aceitação
contra a iminente recaída na barbárie, passiva dos homens diante dela, ou do
fazendo alusão à conhecida fórmula ativismo destes em função de interesses
“socialismo ou barbárie”, Adorno contrários aos seus. A compreensão da
(1969/1995) escreveu o seguinte: “A recaída interiorização da barbárie – elemento para
já se produziu. Esperá-la para o futuro, sua reprodução e, por outro lado,
depois de Auschwitz e Hiroshima, faz parte possibilidade de identificação de possíveis
do pobre consolo de que ainda é possível resistências contra a barbárie – não pode ser
esperar algo pior. [...] Uma práxis oportuna completa sem a psicologia, sem uma
seria unicamente a do esforço de sair da compreensão dos “fatores subjetivos da
barbárie” (Adorno, 1969/1995, p. 214). barbárie” (Barros, 2003) ou da “barbárie
Este esforço leva em conta a atividade interior” (Mattéi, 2002).
teórica, que neste caso não é apenas Se a psicologia é indispensável para a
contemplação da natureza como em práxis mais geral, seria ela também
Aristóteles, mas também contemplação da indispensável para uma escola que esteja
história. Ao contemplar a história e refletir contida nesta práxis?
sobre presente e futuro da humanidade, a
teoria é também práxis. Mas dado um Enquanto a sociedade gerar a
direcionamento para a práxis – a saída da barbárie a partir de si mesma, a escola
barbárie – qual o papel da psicologia nesta tem apenas condições mínimas de
discussão? resistir a isto. Mas se a barbárie, a
terrível sombra sobre a nossa
A teoria objetiva da sociedade, existência, é justamente o contrário da
como algo independizado em relação formação racional, então a
aos seres viventes, retém o primado desbarbarização das pessoas
sobre a psicologia, a qual não alcança individualmente é muito importante.
o que é decisivo. [...] Mas, a ascese A desbarbarização da humanidade é o
contra a psicologia tampouco é pressuposto imediato da
objetivamente sustentável. Desde que sobrevivência. Este deve ser o
a economia de mercado se encontra objetivo da escola, por mais restritos
desorganizada e está sendo remendada que sejam seu alcance e suas
de uma medida provisória a outra, possibilidades. E para isto ela precisa
38 Barros, C. C.
libertar-se dos tabus, sob cuja pressão é também fator indispensável em uma
se reproduz a barbárie. O “pathos” da sociedade cuja racionalidade tecnológica
escola hoje, a sua seriedade moral, administra e gere as vidas das pessoas em
está em que, no âmbito do existente, seus trabalhos, ou até mesmo no chamado
somente ela pode apontar para a tempo livre.
desbarbarização da humanidade, na
Na medida em que pôde se
medida em que se conscientiza disto
apoiar no fato de que na sociedade da
(Adorno, 1971/2000, p. 116).
troca o sujeito não é sujeito, e sim, de
Para uma educação apenas adaptativa, fato, objeto desta última, a psicologia
talvez a psicologia seja realmente pôde fornecer-lhe armas para torná-lo
dispensável. Mas se tomamos como meta mais do que nunca objeto e mantê-lo
uma educação contra a barbárie, a psicologia subordinado. A divisão do homem em
se torna necessária e cabe então questionar suas faculdades é uma projeção da
qual tipo de educação é desejável. Com divisão do trabalho sobre os seus
relação à barbárie como violência, que é pretensos sujeitos, inseparável do
gerada socialmente, mas se expressa interesse de utilizá-los com o maior
individualmente, a educação parece ser o ganho possível e, em geral, de poder
meio que, ainda que não transforme as manipulá-los (Adorno, 1951/1993, p.
condições objetivas, pode levar às pessoas 54)
elementos para refletirem sobre si mesmas e E como criticar a psicologia sem
sobre as violências que executam externa ou conhecê-la ou quando ela entra pelas portas
internamente. É preciso que a escola seja de dos fundos dos currículos escolares como
alguma forma adaptativa, para que o tema transversal?
indivíduo possa sobreviver, trabalhar. Mas O momento educacional atual é um
frente a esse papel adaptativo, propor a momento com potencial para uma educação
resistência contra a barbárie é essencial. Para outra, o discurso em prol de uma educação
que as pessoas tenham ferramentas para para todos possibilita uma reavaliação das
compreender os mecanismos internos de finalidades e dos meios educacionais. Uma
reprodução da barbárie, parece indicado que das forças para a inserção do pensamento
a psicologia faça parte do clima educacional psicológico é justamente a proposta de uma
de forma diferente de como ocorreu até hoje. educação para as diferenças, contra a
Como hoje em dia é discriminação e o preconceito. É um
extremamente limitada a possibilidade momento para se refletir sobre o porquê de
de mudar os pressupostos objetivos, tanta ciência natural na educação básica. Por
isto é, sociais e políticos que geram que vivemos num Estado de direito sem
tais acontecimentos, as tentativas de aprender noções básicas de direito? Por que
se contrapor à repetição de Auschwitz vivemos num mundo regido pela economia e
são impelidas necessariamente para o não aprendemos noções básicas de
lado subjetivo [...] Torna-se economia? Por que somos bombardeados
necessário o que a esse respeito uma pela mídia e pela produção cultural
vez denominei de inflexão em direção industrializada e não aprendemos a ver
ao sujeito. É preciso reconhecer os televisão, ouvir música, a contemplar uma
mecanismos que tornam as pessoas obra de arte? Por que a educação física não
capazes de cometer tais atos, é preciso trata realmente de discutir e ensinar sobre
revelar tais mecanismos a eles cuidados com o corpo e se degenera, na
próprios, procurando impedir que se maior parte dos casos, em competição
tornem novamente capazes de tais esportiva?
atos, na medida em que se desperta A formação de psicólogos e, por
uma consciência geral acerca desses conseqüência, a formação de professores de
mecanismos (Adorno, 1971/2000, p. psicologia deve levar em conta a reflexão e a
121). pesquisa sobre o papel da psicologia na
práxis educacional. É preciso que os
Mas dar espaço à psicologia não psicólogos encontrem sentido na ocupação
significa psicologizar. A crítica à psicologia de professor se desejam lutar por ela. Se a
Reflexões sobre a formação 39
Nota do autor:
Carlos César Barros – Doutorando do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.