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ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil
Resumo
O presente texto tem como objetivo discutir a questão do ensino de Psicologia no ensino médio,
analisando aspectos do seu histórico e apontando alguns desafios. Parte-se do pressuposto que a
Psicologia, enquanto ciência e profissão, tem uma importante contribuição para o processo
educacional dos jovens, tendo em vista a sua formação como cidadãos críticos e participantes.
Palavras-chave: Ensino de Psicologia, Ensino Médio, Educação e Cidadania.
Abstract
This paper aims to discuss the Psychology teaching matter in high school, analyzing aspects of
its historical process and some current challenges. It is assumed that Psychology – as both
scientific and professional area – has an important role in the youth educational process,
keeping in mind their constitution as critical citizens.
Keywords: Psychology Teaching, High School, Education and Citizenship.
Endereço para correspondência: Sérgio Antônio da Silva Leite. Faculdade de Educação– Universidade
Estadual de Campinas. Rua Cayowáa, 1553, Apto 10. Sumaré, São Paulo (SP). CEP: 01258-011. Fone:
(11) 3673-0759. Email: sasleite@uol.com.br.
12 Leite, S. A. S.
programas desenvolvidos, que temas eram maioria dos programas podia ser
tratados e qual a bibliografia utilizada; considerada como uma proposta de ensino
b) elaborar uma proposta de programa burocratizada, fato verificado pela
para a disciplina que representasse um bibliografia utilizada pela maioria dos
avanço em relação às tradicionais, e que professores em sala de aula.
fosse fruto da reflexão dos profissionais Tendo informações que a Secretaria de
envolvidos e interessados; Educação realizaria um concurso de ingresso
c) divulgar a proposta junto à categoria para professores, incluindo as disciplinas da
e acompanhar criticamente o seu área das Ciências Humanas – o que de fato
desenvolvimento na rede. aconteceu em 1986 –, a Comissão de Ensino
Uma das primeiras iniciativas da planejou e desenvolveu um curso para
Comissão de Ensino, ainda em 1980, foi psicólogos, no segundo semestre de 1985,
convocar, através do jornal das entidades, os denominado “Psicólogo – Docente no
psicólogos envolvidos e interessados no Ensino de 2o Grau”, no anfiteatro da CENP,
ensino de Psicologia no 2o grau, para uma na cidade de São Paulo. Este curso, que se
reunião na sede do Sindicato. Tal chamada desenvolveu através de 10 encontros
causou, na época, um grande semanais, durante mais de dois meses, teve a
desapontamento junto aos membros da participação de cerca de 250 psicólogos
comissão, dado que compareceram não mais interessados.
que 10 profissionais. Deve-se lembrar que, Os conteúdos desenvolvidos no curso
no primeiro lustro dos anos 80, a categoria abordaram 11 grandes temas, escolhidos
tinha em torno de 12.500 psicólogos no pela Comissão de Ensino, ouvidos os
Estado de S. Paulo, segundo pesquisa colegas das entidades de representação da
realizada pelo DIEESE – Departamento categoria. Para cada tema foi convidado um
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio- profissional, de reconhecido envolvimento
Econômicos (Sindicato/CRP, 1984). Ainda com a questão e com uma posição também
segundo esta pesquisa, a categoria reconhecidamente não conservadora. Foi-
praticamente desconhecia as possibilidades lhe, então, solicitado que apresentasse um
de docência no ensino 2o grau 2 . seminário sobre o assunto durante o curso,
A aproximação com a CENP ocorreu além de elaborar um texto para possível
em 1984, através da inserção de uma publicação.
psicóloga, que lá atuava, na Comissão de Terminado este curso, e dada a
Ensino CRP/Sindicato. Tal decisão excelente qualidade dos textos produzidos, a
possibilitou um salto qualitativo no trabalho Comissão de Ensino propôs a organização
desenvolvido, pois representava uma do material em um livro, publicado em 1986
parceria direta com o órgão oficial da (CRP/Sindicato, 1986), que representou a
Secretaria de Educação do Estado, primeira grande proposta de conteúdos para
responsável pela normatização do ensino os profissionais que foram aprovados no
público na rede estadual. concurso – para os que já estavam na rede.
A primeira tarefa realizada pela De acordo com o texto de apresentação do
comissão ampliada foi avaliar o ensino de livro, assinado pela Comissão de Ensino
Psicologia que então existia nas escolas de CRP-Sindicato, o livro representou “uma
2o grau. Tal levantamento mostrou uma colaboração efetiva para os licenciados em
realidade parcialmente conhecida, mas Psicologia, para os próprios cursos de
surpreendente: somente metade dos Licenciatura e para todos os profissionais
professores que atuavam na disciplina tinha interessados pelo ensino da Psicologia” (p.
formação específica em Psicologia; a vi). Na seqüência, segue-se uma síntese
dessa primeira proposta de programa para a
2
disciplina Psicologia no ensino de 2o grau.
Segundo a pesquisa, a distribuição dos
psicólogos em termos de área de atividade
principal, no Estado de S. Paulo, em 1984, era a O programa proposto
seguinte: Clínica (57,5%), Organizacional
(21,2%), Escolar (11,9%), Ensino de Psicologia - Para o planejamento do referido curso,
Universidade (6,9%), Pesquisa (1,3%) e que gerou a primeira proposta de programa
Comunitária Social (1,1%). de ensino para disciplina de Psicologia, a
14 Leite, S. A. S.
Comissão de Ensino propôs a seguinte tanto na instância interna, quanto com outros
questão, como ponto de partida para a profissionais externos à comissão – no
discussão: quais a contribuições que a sentido de identificar os conteúdos
Psicologia, enquanto área de conhecimento e específicos produzidos pelo conhecimento
de atuação profissional, tem para oferecer psicológico que pudessem ser recortados e
aos jovens do ensino de 2o grau? Ou, selecionados para serem desenvolvidos.
colocado de outra forma: que experiências e Nesse período, uma decisão importante
conhecimentos acumulados a Psicologia tem assumida pela comissão foi que o recorte
a oferecer ao cidadão (que não vai ser deveria ser por temas e não por correntes
psicólogo) que vive numa sociedade como a teóricas. Isto porque, a avaliação realizada
nossa, para que possa ter uma inserção pela Comissão de Ensino sobre o trabalho
social crítica e transformadora? dos docentes remanescentes na rede, que
Obviamente, os membros da comissão, ministravam a disciplina Psicologia no 2o
ao elaborar estas questões iniciais, grau, indicava que os cursos desenvolvidos
assumiam, como pressuposto, que a em torno das teorias psicológicas conhecidas
Psicologia tinha acumulado conhecimentos e mostravam-se como propostas
experiências considerados relevantes para a burocratizadas, dificultando a contribuição
constituição dos cidadãos e sua inserção da área para a análise das condições de vida
social numa perspectiva de transformação. dos jovens. Eram cursos que reproduziam
Apesar de a área ter sofrido muitas críticas disciplinas teóricas da Graduação, onde se
de vários setores e dos próprios psicólogos ensinavam as escolas psicológicas.
comprometidos com a construção de uma Ao optar por uma organização por
sociedade mais justa. Na intersecção temas, a comissão acreditava na
Psicologia/Educação, por exemplo, podemos possibilidade de abordar assuntos que, de
citar os trabalhos de Patto (1981, 1984) um lado, possibilitassem uma relação com as
denunciando e analisando criticamente o condições de vida dos jovens e, por outro,
conhecimento e as práticas tradicionais dos permitissem uma análise teórica, a partir das
psicólogos escolares, que pouco contribuições das várias correntes
colaboravam com a democratização do psicológicas existentes.
sistema escolar brasileiro, marcado por um
histórico processo de fracasso escolar, A partir daí, o próximo passo foi a
principalmente dos setores socialmente já seleção efetiva dos assuntos: definiram-se 11
excluídos. temas, que serão abaixo explicitados. A
Neste sentido, a resposta que a próxima etapa foi mais delicada: tratava-se
Comissão de Ensino assumiu em relação à de delinear, com um mínimo de clareza, que
questão norteadora acima apresentada é que aspetos julgávamos que deveriam ser
a Psicologia tinha acumulado práticas garantidos em cada tema, bem como
profissionais (mesmo que incipientes) e selecionar um profissional que pudesse
conhecimentos teóricos que, certamente, desenvolver cada tema no curso, elaborar
poderiam colaborar para que os jovens do um texto sobre o assunto, atendendo,
Ensino de 2o grau desenvolvessem uma obviamente, nossas expectativas.
postura crítica a partir das suas relações Embora, na época, os membros da
sociais vivenciadas em nossa cultura. comissão não haviam assumido critérios
Especificamente, o conhecimento rígidos, podemos afirmar que três condições
psicológico poderia ser organizado e balizaram as escolhas, tanto dos
estudado de forma a facilitar o processo de temas/conteúdos recortados, quanto dos
análise e de discussão dos fatores/condições, profissionais indicados:
mediatos ou imediatos, que, de alguma a) os conteúdos teórico-psicológicos
forma, interferem/relacionam-se com a vida abordados deveriam possibilitar uma crítica
dos jovens – envolvendo tanto seu aos modelos tradicionais, principalmente às
comportamento expresso, quanto suas concepções biologizantes e naturalizantes
dimensões subjetivas. dos fenômenos psicológicos. Isto porque
Com este referencial assumido e estes eram os modelos dominantes e
acordado, os membros da Comissão de utilizados de forma ideologizada pela
Ensino iniciaram um período de discussão, Psicologia tradicional, freqüentemente
Psicologia no Ensino Médio 15
social e da cultura; a questão dos estigmas analisar, pelo menos, duas concepções sobre
sociais derivados do conceito tradicional de o tema – de um lado, a interpretação da
“anormalidade”; agressividade como parte da “natureza
- Motivação humana: o que determina o humana” e, de outro, a agressividade como
comportamento e as ações humanas; padrão de comportamento aprendido nas
caracterizar, pelo menos, duas concepções relações sociais vividas; os fatores
de motivação – de um lado, as que conhecidos como desencadeadores da
enfatizam, basicamente, os fatores agressão humana; a agressividade em uma
intrínsecos e, de outro, as que valorizam as sociedade como a nossa; fatores ou
fontes de motivação nas relações que o condições que podem inibir a agressão
indivíduo mantém com a sua sociedade; humana; o papel das formas de controle
analisar situações concretas de envolvimento punitivas como tentativa de diminuir a
dos jovens com aspectos ou questões de seu agressão;
ambiente e discuti-las à luz das concepções - Trabalho e Profissão: a questão da
teóricas sobre a motivação humana; análise escolha profissional; discutir, pelo menos,
crítica das concepções do senso comum duas concepções – de um lado, as que
sobre a questão e suas implicações sociais; enfatizam a vocação individual, de natureza
- Alienação: o que se entende pelo inata e, de outro, as que enfocam a escolha
conceito; analisar, pelo menos duas profissional determinada pelas condições de
concepções sobre alienação – como um vida; a função do trabalho em uma
fenômeno puramente individual ou como um sociedade capitalista como a nossa; as
fenômeno determinado pelas condições opções que os jovens têm para uma escolha
concretas de vida e pela própria ideologia profissional.
subjacente à sociedade capitalista; fatores Obviamente, tais temas e conteúdos não
determinantes da alienação humana em foram propostos com a intenção de se
nossa sociedade, com ênfase nos delimitar um programa fechado, da mesma
adolescentes; a questão da alienação no forma que não esgotam as questões que
trabalho; o papel da escola, da religião, da poderiam ser incluídas no trabalho dos
propaganda na determinação e manutenção professores de Psicologia, com seus alunos
da alienação humana; alternativas que os do 2o grau. Mas, sem dúvida, tal proposta
jovens podem ter para superação das pressupõe uma ênfase na questão do
condições alienantes; exercício da cidadania pelos jovens, numa
- Comunicação: o processo de perspectiva crítica e transformadora.
comunicação na família, no trabalho, na
escola e na comunidade; o papel dos meios
de comunicação de massa em nossa Os anos 90
sociedade; as razões pelas quais o Estado Durante os anos 90, observou-se um
tenta controlar os meios da comunicação nítido refluxo no processo de discussão
social; os efeitos dos meios de comunicação sobre as disciplinas da área das Ciências
de massa na população e, em especial, nos Humanas no ensino de 2o grau. Embora a
jovens; Comissão de Ensino CRP/Sindicato
- Emoção e afetividade: caracterizar houvesse assumido que um dos objetivos da
emoções e afetos; analisar, pelo menos duas política na área seria o acompanhamento da
posições sobre o tema – de um lado, como nova proposta de programa para a disciplina
processos puramente individuais na rede, tal meta não se concretizou. A idéia
determinados exclusivamente por fatores era a realização, em parceria com a CENP,
hereditários e, de outro, como processos de encontros periódicos com professores da
vividos nas relações sociais, dependentes disciplina Psicologia, no qual pudessem
das condições concretas de vida; a questão trocar experiências e aprimorar a referida
da afetividade nas relações que o jovem proposta, elaborada no curso ministrado em
mantém com o seu meio; a questão da 1985.
sexualidade na adolescência; afetividade e Inúmeros fatores podem ter contribuído
valores morais; para o esvaziamento desse processo de
- Agressividade: caracterização do discussão. Com relação à esfera oficial,
comportamento ou da ação agressiva; deve-se destacar que as mudanças no
Psicologia no Ensino Médio 17
tradicionais – baseados no modelo médico – apontávamos que, nos anos 90, é importada
que sempre direcionaram o olhar dos da Inglaterra uma série de idéias que se
profissionais para as causa subjacentes dos opunham aos valores prevalecentes do pós-
problemas que os indivíduos apresentam. guerra (bem estar social, educacional, de
Este modelo, dominante na clínica saúde, mantido pelo Estado): concepções
psicológica, transposto para a educação, inspiradas nas idéias de Friedrich von
pouco contribuiu para a construção de uma Hayek, defendendo o Estado mínimo, a
escola democrática, na medida em que não descentralização, a descentração, a
prioriza os fatores ambientais – sociais, privatização, a desregulamentação e a
econômicos, educacionais, etc. –, sem economia global, enfim, este conjunto de
dúvida os grandes responsáveis pelo questões, nem sempre claras, mas de grande
fracasso dos alunos na escola. impacto, que ficaram conhecidas
Em síntese, a questão da disciplina ideologicamente como neoliberalismo.
Psicologia no ensino médio, a partir do final Moraes (2001) defende que este
dos anos 80 e durante os anos 90, deixou de conceito constitui-se como uma ideologia,
ser assumida e cuidada como deveria e uma forma de ver o mundo, uma corrente de
mereceria ser, seja por parte dos órgãos pensamento, centrada na valorização de
oficiais da Secretaria de Educação, seja por concepções como concorrência, mercado,
parte das entidades de representação da desemprego estrutural, que caracterizam a
categoria. Mas, em ambas as instâncias, por economia moderna, contra as quais seria
falta de uma clara opção política que inútil se contrapor. Tal corrente defende
priorizasse o fortalecimento das disciplinas arduamente a idéia de sociedade aberta,
das Ciências Humanas no ensino médio. sendo que a presença do Estado,
principalmente na esfera econômica, é
sempre entendida como uma ameaça à
Os desafios e as perspectivas liberdade do indivíduo e de competição,
atuais condições assumidas como responsáveis
Com a retomada da discussão sobre a diretas pelo progresso humano. Da mesma
inclusão da Psicologia no ensino médio, a forma, combate as ideologias nacionalistas,
questão a ser discutida nos parece óbvia: desenvolvimentistas e populistas, muito
como se coloca, hoje, o problema do ensino comuns nos países de terceiro mundo ou em
da disciplina Psicologia no nível médio? desenvolvimento. Ainda baseando-se em
Que desafios se apresentam? Será que o Moraes, o neoliberalismo defende uma forte
movimento ocorrido, durante os anos 80, ação do Estado contra os sindicatos e
com o tipo de reflexão desenvolvida, está instituições corporativas, priorizando uma
totalmente defasado para os dias atuais? política antiinflacionária monetarista e
Penso que, em sua essência, a questão reformas orientadas para a realidade do
continua a mesma e pode ser assim mercado.
resumida: qual é a contribuição que a Curiosamente, o neoliberalismo
Psicologia, enquanto ciência e profissão, tem considera que a Educação tem um papel
a oferecer para o processo educacional dos fundamental e determinante na formação das
jovens (que, na maioria, não serão condições de competição entre os países;
psicólogos), numa perspectiva de formação assume que a educação formal é um dos
de cidadãos críticos e transformadores? – a principais instrumentos para conter a
mesma pergunta que colocamos nos anos 80. pobreza, desde que seja direcionada para e
Ou seja, embora reconhecendo que as pela realidade do mercado.
condições sociais e econômicas mudaram Como conseqüência, nossa sociedade,
bastante nestas duas décadas, julgamos, no nesses tempos de neoliberalismo, já
entanto que o problema central que se apresenta os efeitos sensíveis de uma
coloca, em sua essência, é o mesmo. economia globalizada. Marcada: a) por um
Neste ponto parece necessário inacreditável, persistente e crescente
especificarmos um pouco mais as mudanças processo de concentração de renda; b) por
a que estamos nos referindo, frutos das um conseqüente aumento da situação de
transformações recentes em nossa sociedade. exclusão social e econômica da grande
Em outro trabalho (Leite, 2007) já maioria da população que já vivia numa
Psicologia no Ensino Médio 19
Enviado em Setembro/2007
Aceite em Abril/2008
Publicado em Junho/2009