Você está na página 1de 7

O NÚMERO NA COMÉDIA

Camila Dias Manoel

A natureza dos símbolos é, para citar um grande admirador da Comédia, o


labiríntico J. L. Borges, a do jardín de senderos que se bifurcan. Em tal terreno
infindo, esta empresa precisa começar modesta, rogando a herméticos como
René Guénon, que em sua metafísica (ou metafórica) submete o estudo das
significações simbólicas a um esquema cuja linguagem seria iniciática,
aproximando-se de Dante.
Não é à toa o rumor da filiação de Dante a ordens herméticas, linha a que
busco não recorrer aqui, mas sinalizo que o próprio Dante aponta esse tipo de
código (ou língua?) na sua obra filosófica Convívio, em que elabora: qualquer
escrito pode ser interpretado em quatro sentidos principais.
O primeiro seria o literal, restrito à letra corrente — das fábulas dos
poetas.
A segunda camada de leitura, alegórica, estaria oculta pela primeira.
Veja: na narração de Orfeu dada por Ovídio, aquele era capaz de comover
seres inanimados, como as árvores, e amansar as feras apenas com sua
música. Para Dante, aí haveria uma “verdade escondida sob uma bela mentira”,
pois a fábula ilustra que o homem, valendo-se da sabedoria, valendo-se da voz,
pode suplantar as pessoas de coração cruel (que são como feras), comovendo
os que não têm vida racional ou aproximação com a ciência ou a arte (que são
como árvores, pedras).
Ao terceiro vai chamar sentido moral ou pedagógico, que se pode
apreender com as leituras (aqui Dante refere a narrativa do Evangelho em que
Cristo escolhe três dos apóstolos para levar ao Monte, do que se depreende
que, nas coisas importantes, ou secretas, é preciso pouca gente. O mesmo
princípio das ordens herméticas, veja só.
A esses três sentidos soma-se o que Dante vai chamar de anagógico ou
suprassentido, que:

“[...] ocorre quando se expõe espiritualmente um escrito, o qual, pelas


coisas significadas, significa as sublimes coisas da glória eterna”,
citando o canto sobre a fuga do povo de Israel ao Egito, como pode-se
ver naquele canto do Profeta que diz que, na saída do povo de Israel
do Egito, a Judéia é feita santa e livre. Se é manifesto que isto é
verdadeiro segundo a letra, não é menos verdadeiro o que disto se
entende espiritualmente, ou seja, que na saída da alma do pecado esta
torna-se santa e livre em sua potestade.

Este seria o sentido profundo ou a última camada da edificação (a


liberdade?) que começa pela literal. Segundo Guénon, se este for ignorado, os
demais serão incompreensíveis, rasos, porquanto se trata do eixo pelo qual
todos se coordenam, criando uma unidade indissociável e harmônica.
O problema é que, dado o seu caráter metafísico (principalmente
iniciático, cf. Guénon), ou melhor, esotérico (vs. exotérico, para além das
religiões aparentes), esse sentido maior fica de fora dos comentários gerais
sobre a Comédia, ou confundido com um possível paganismo. (É para
preencher modestamente esta lacuna que ensaiamos estes devaneios).
Mas rebate Guénon: a atribuição possivelmente “herética” a Dante de
alguns comentadores é simplesmente equivocada ou mesmo fundada em
preconceitos, uma vez que a metafísica pura não é nem pagã nem cristã, mas
universal. E a este entendimento se conectavam os antigos mistérios da
humanidade, não ao paganismo.
Se Dante se desvia do catolicismo em vários momentos, é razoável
conjecturar que tenha realmente participado de uma das organizações
iniciáticas que tiveram lugar na Idade Média, ainda que estas mantivessem uma
base católica. Tal sincretismo, no entanto, nada tem de superficial, segundo
Guénon, porquanto diversas ordens entendem que a doutrina essencial se
dissimula na diversidade exterior.
A hipótese do significado de caráter iniciático é reforçada na própria
Comédia, vide Canto IX, versos 61-63, do “Inferno”:

Ó vós cujas ideias não se afastam


Das leis da sã razão, vede os preceitos
Que destes versos sobre o véu se engastam.

Sobre tais preceitos e leis ocultas, um ponto parece ser essencial na obra, qual
seja, as regiões simbólicas referidas pela palavra-símbolo “céu”. Dante explica no
Convício (t. 2, cap. XIV) o uso do termo, que entende como sinônimo de “ciência”. O céu,
assim como a ciência, só se apresenta quando rasgado o véu. Para Guénon, trata-se de
mais uma prova da aproximação com o sistema de graus de iniciação.
Na obra magma de Dante, “céus” são as “hierarquias espirituais” pelas quais deve
passar o iniciado. O comentador Aroux (cf. Guénon) entende-os como uma alusão. Os
sete primeiros céus são as sete artes liberais, conhecidas por Dante e contemporâneos,
apreendias pela doutrina astrológica de correspondência dos Cátharos: a gramática
referia-se a Lua; a dialética, a Mercúrio; a retórica, a Vênus; a música, a Marte; a
geometria, a Júpiter; a astronomia, a Saturno; e a aritmética, ou “razão iluminada”, ao Sol.
Corresponderiam ainda às setes primeiras escalas de Kadosch (Grau 30 de alguns
sistemas maçônicos). Pelo viés esotérico ou platônico, seriam essas artes o símbolo, a
metáfora, das ordens superiores.
Pode ainda ser entendido o sentido solar da aritmética como um eco da tradição
pitagórica. Dante sinaliza que um canto é apreciado pelo número de suas partes, “o que
corresponde aos músicos”. A aritmética, ou o número, seria o centro comum que uniria e
explicaria as demais ciências, e esse entendimento parece ficar claro na Comédia, já que
o número tem importância fundamental e estabelece a conexão Pitágoras – Virgílio –
Dante; e também com as doutrinas cujo base é o número. Vejamos:

Na figura está
representada a Árvore da Vida cabalística, tida como fundamento e essência de muitas
ordens iniciáticas e herméticas, também do esoterismo judaico. Nela podemos ver a
correspondência entre os sete planetas do mundo antigo e os atributos de cada sefirat
(ou “esfera”, representada ainda por um anjo ou querubim no judaísmo).
Em números, temos 10 sefirot [11, se contarmos com Daath (Conhecimento), a
sefirat oculta] ou 10 atributos divinos, com 22 caminhos entre elas (as 22 letras do
alfabeto hebraico), tendo o Sol ao centro e para onde todas elas convergem. Há três
colunas, uma masculina (yang), outra feminina (yin), e a do meio (Tao ou Caminho do
meio).
As sefirot 1, 2 e 3 representam a Trindade e são as primeiras manifestações de
Deus. A linha que transpassa Daath é o véu dos Mistérios maiores — ou seja, pura
metafísica — ao encontro de Deus ou Ain Soph (caminho natural para cima e que
corresponde à doutrina platônica segundo a qual as almas retornam às estrelas que as
originaram. Vide Canto IV, “Céu”).
Veja que nos aproximamos aqui de um possível esquema do Céu e do Inferno
dantesco, já que na Cabala também há a árvore das qlifot, sefirot malignas, de mesmo
número e posição, sendo a esfera de Malkhut a Terra e por onde se adentra às qlifot, no
sentido oposto ao Ain Soph.
No inferno dantesco — mira vos — também há nove círculos, que são uma
espécie de reflexo invertido dos nove céus. Malkhut é o Reino ou Paraíso Terrestre, de
onde começa Dante na terceira parte, em direção a Yesos, que corresponde à Lua, e
assim por diante.
A distinção dos três mundos, ou graus de existência, comum a todas as doutrinas
e religiões tradicionais, constitui a estrutura geral da obra. O mundo intermediário seria
então um prolongamento do plano terrestre, tal qual se vê no purgatório. o céu representa
o estado superior do ser: na linguagem astrológica, esferas estelares ou planetárias; na
teológica, hierarquias angélicas, ou nove coros angélicos ao comando de Miguel, arcanjo
que, segundo a tradição, teria organizado a milícia celeste para expulsar Lúcifer ao
inferno.
O inferno indica o estado inferior do ser, ou pré-humano. A verdadeira iniciação,
conforme explica Guénon, seria a tomada de consciência, ativa, desses estados
superiores. Por isso é simbolicamente representada como uma “viagem celeste” ou
ascensão. O inferno, ou estados inferiores, é representado como “escuro” na Comédia e
na Árvore invertida justamente porque é a metáfora do estado inconsciente, anterior ao
aparecimento do ego — ou Queda, cf. hermenêutica judaico-cristã (JUNG. O homem e
seus símbolos).
Grosso modo, na Queda se abriram possibilidades do ser total, no sentido de
ampliar-se e exaltar-se, segundo a explicação de Guénon.
Essas três partes ainda têm correspondência com os gunas hindus, que são as
“tendências” de tudo que é manifestado. São elas: sattwa, o ser, que seria a imagem e
semelhança de Deus; rajas, ou “firmamento”, “atmosfera”, que é o impulso de expandir-
se; tamas, “escuridão”, que corresponde à ignorância ou à tendência à retração. Esse
entendimento representa o esquema da criação do mundo pelo Caos (tamas), e o
processo iniciático “reproduz rigorosamente o processo cosmogônico, conforme a
analogia do Macrocosmo e do Microcosmo” da criação do universo e do homem.
Ainda, é preciso esmiuçar que a narrativa de Dante vai contra a ideia de “fogo
central” da representação do inferno tradicional, já que, quanto mais grave se tornam as
esferas (seguindo a trilha de árvore das qlifot, por exemplo), mais e mais gelado é o
inferno — congelado, no fim do percurso de Dante na primeira parte. Esse traço distintivo
é estranho, mas poderá ser explicado, se nos aproximarmos da noção de Mal de Tomás
de Aquino: a ausência do Bem. Assim, a última esfera do inferno seria a ausência total de
calor, do Bem (o Coração Sagrado em brasa).
É antigo esse modelo da descida aos infernos e depois do retorno e ascensão.
Como na história de Orfeu ou da “viagem noturna” de Mohammed, que vai aos infernos e
depois regressa subindo para as esferas celestes. Ou ainda do jovem Sidarta. As
narrativas assemelham-se: é preciso partir, enfrentar feras e a escuridão, para regressar
triunfante, em contato com Deus, e dotado de um conhecimento antes não conhecido.
Ainda, é de praxe o Viajante contar com a ajuda do Guia. Na comédia, este é Virgílio.
(CAMPBELL. O heroi de mil faces): veja, p.e., novamente a figura do arcanjo Miguel, de
Santo Antonio etc.
A viagem de Dante começa na Segunda-Feira Santa, dia que dá início à Semana
Santa, inaugurada pela Festa de Ramos. Esse dado parece ter relação com o ramo que
Eneias, guiado por Sibila, vai buscar na floresta (“selva selvaggia”), já que Dante parece
procurar o tal ramo misterioso, dando início à descida aos infernos. A narrativa da
Comédia dura até o Domingo de Páscoa, dia da Ressurreição (lembrando que o próprio
Nosso Senhor Jesus Cristo desceu aos infernos).
São três fases, portanto, pelas quais passa Dante, sendo a primeira, de morte e
descida, necessária para as seguintes. As duas fases espelhadas, céu e inferno, têm uma
lógica gradual. No inferno, há toda sorte de andares e escadas circulares que vão
descendo até o último círculo. E, assim como cada céu é morada de determinado
atributo, no inferno igualmente os pecadores são levados a moradas que coincidem com
o grau do pecado.
Já no céu, há uma verdadeira ascensão com o objetivo de transformar-se e
encontrar com o Uno. No Canto XV do “Paraíso”, verso 55 a 57, Dante diz o seguinte:

Tu crês que o teu pensar me é derivado


Do ser Primeiro, como da unidade
Sabida o cinco e o seis se vê formando.

Onde o “primeiro” e a “unidade” podem se referir à esfera número 1 da Árvore da


Vida, Kether (Coroa, a coroa de Cristo ou Deus escarnado, o super-homem), que significa
atingir o encontro com o Criador, que, pela imagem da Coroa, representa ultrapassar os
limites de tudo que é “manifestado”, de onde provêm e retornam todas as coisas. Kether
é o lugar onde todas as outras esferas estão e aonde todas convergem, no entendimento
esotérico judaico.
Já a simbologia dos números 5 e 6 remete, segundo Benini (citado por Guénon), à
duração do movimento dos céus que precedeu o momento em que escreve Dante (1300,
35 anos, “metade da vida”), qual seja, de 65 séculos, e duraria 65 séculos depois.
Acreditava-se que a duração total do mundo era de 13 mil anos, ou 130 séculos, que
corresponde ao “grande ano” dos persas e dos gregos (ano 12960, mais precisamente).
Esse “grande ano” era a duração entre duas grandes renovações do mundo (especula-se
que o último tenha sido a destruição de Atlântida pelo Dilúvio).
Sessenta e cinco, ou melhor, 6 e 5, que somam 11, “são os números simbólicos
do Macro e do Microcosmo”. Vertendo 65 a letras latinas, encontramos LVX ou “Lux”, que
pode ter relação com a “verdadeira luz” referida na maçonaria. No “Inferno”, a maioria do
número de estrofes das cenas completas fecha em exatamente 11 ou 20. Há também o
número 515, que é o número de versos que separa as profecias de Farinata da de
Ciacco; e da profecia de Nicolás III e de Brunetto. Esses números têm uma recorrência
enorme ao longo da obra, conforme apontam os comentaristas. No Canto XXXIII, cujo
texto introdutório traz Beatriz falando em “linguagem misteriosa” e profetizando (referindo-
se a uma esfinge), verso 43, aparece o seguinte:

Um quinhentos dez cinco prenunciam


Que o céu manda a punir a depravada
E o gigante: ambos juntos delinquiam

Ademais, a soma de 515 é também 11, sendo sua transcrição latina DVX, ou
“Dux”: “guia”; 3 x 11 é o número de cantos de cada parte da obra.
O uso dos números considerados sagrados, como o 9, seja no “Apocalipse”, como
soma do 144000 atribuído ao povo casto e eleito de Deus, seja considerando a geometria
sagrada (360º. 3 + 6 + 0 = 9), ou na referência do 9 feita pelo próprio Dante a Beatriz,
sugere um sentido anagógico na Comédia. O 9 simboliza a eternidade, o símbolo
mágico do Ouroboros, que morde a própria cauda e sempre volta a si mesmo.
Dante, ao dividir sua obra em três partes, com diversas simetrias, e colocar a
entrada para o céu no centro do mundo terrestre, parece sinalizar a interpretação
simbólica desse fato, qual seja, a do equilíbrio perfeito, no sentido de que o ser deve,
acima de tudo, identificar “o centro de sua própria individualidade”, e dessa base elevar-
se para os estados superiores. O centro do ser é designado, no hinduísmo, pela “cidade
de Brahma”.
Reforço: se esse ponto final do terreno coincide com a entrada aos céus, Guénon
acredita que existe uma alusão formal à ideia de “retorno às originais” platônica, a
restauração do estado original do ser junto a Deus. O ponto médio seria a representação
de um estado de detenção, em que podem ser tomadas duas direções: desce-se aos
infernos e inicia-se o retorno de lá.
Essas leis cíclicas aparecem nas cosmologias antigas, em Platão e
contemporaneamente nas analogias do universo e do homem estudadas pela psicanálise
junguiana, que destaca esse movimento como a separação do ego e depois seu retorno
ao Si-Mesmo. Este estudo também é ínfimo na literatura. Mas esta é outra história...

Você também pode gostar