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Sobre tais preceitos e leis ocultas, um ponto parece ser essencial na obra, qual
seja, as regiões simbólicas referidas pela palavra-símbolo “céu”. Dante explica no
Convício (t. 2, cap. XIV) o uso do termo, que entende como sinônimo de “ciência”. O céu,
assim como a ciência, só se apresenta quando rasgado o véu. Para Guénon, trata-se de
mais uma prova da aproximação com o sistema de graus de iniciação.
Na obra magma de Dante, “céus” são as “hierarquias espirituais” pelas quais deve
passar o iniciado. O comentador Aroux (cf. Guénon) entende-os como uma alusão. Os
sete primeiros céus são as sete artes liberais, conhecidas por Dante e contemporâneos,
apreendias pela doutrina astrológica de correspondência dos Cátharos: a gramática
referia-se a Lua; a dialética, a Mercúrio; a retórica, a Vênus; a música, a Marte; a
geometria, a Júpiter; a astronomia, a Saturno; e a aritmética, ou “razão iluminada”, ao Sol.
Corresponderiam ainda às setes primeiras escalas de Kadosch (Grau 30 de alguns
sistemas maçônicos). Pelo viés esotérico ou platônico, seriam essas artes o símbolo, a
metáfora, das ordens superiores.
Pode ainda ser entendido o sentido solar da aritmética como um eco da tradição
pitagórica. Dante sinaliza que um canto é apreciado pelo número de suas partes, “o que
corresponde aos músicos”. A aritmética, ou o número, seria o centro comum que uniria e
explicaria as demais ciências, e esse entendimento parece ficar claro na Comédia, já que
o número tem importância fundamental e estabelece a conexão Pitágoras – Virgílio –
Dante; e também com as doutrinas cujo base é o número. Vejamos:
Na figura está
representada a Árvore da Vida cabalística, tida como fundamento e essência de muitas
ordens iniciáticas e herméticas, também do esoterismo judaico. Nela podemos ver a
correspondência entre os sete planetas do mundo antigo e os atributos de cada sefirat
(ou “esfera”, representada ainda por um anjo ou querubim no judaísmo).
Em números, temos 10 sefirot [11, se contarmos com Daath (Conhecimento), a
sefirat oculta] ou 10 atributos divinos, com 22 caminhos entre elas (as 22 letras do
alfabeto hebraico), tendo o Sol ao centro e para onde todas elas convergem. Há três
colunas, uma masculina (yang), outra feminina (yin), e a do meio (Tao ou Caminho do
meio).
As sefirot 1, 2 e 3 representam a Trindade e são as primeiras manifestações de
Deus. A linha que transpassa Daath é o véu dos Mistérios maiores — ou seja, pura
metafísica — ao encontro de Deus ou Ain Soph (caminho natural para cima e que
corresponde à doutrina platônica segundo a qual as almas retornam às estrelas que as
originaram. Vide Canto IV, “Céu”).
Veja que nos aproximamos aqui de um possível esquema do Céu e do Inferno
dantesco, já que na Cabala também há a árvore das qlifot, sefirot malignas, de mesmo
número e posição, sendo a esfera de Malkhut a Terra e por onde se adentra às qlifot, no
sentido oposto ao Ain Soph.
No inferno dantesco — mira vos — também há nove círculos, que são uma
espécie de reflexo invertido dos nove céus. Malkhut é o Reino ou Paraíso Terrestre, de
onde começa Dante na terceira parte, em direção a Yesos, que corresponde à Lua, e
assim por diante.
A distinção dos três mundos, ou graus de existência, comum a todas as doutrinas
e religiões tradicionais, constitui a estrutura geral da obra. O mundo intermediário seria
então um prolongamento do plano terrestre, tal qual se vê no purgatório. o céu representa
o estado superior do ser: na linguagem astrológica, esferas estelares ou planetárias; na
teológica, hierarquias angélicas, ou nove coros angélicos ao comando de Miguel, arcanjo
que, segundo a tradição, teria organizado a milícia celeste para expulsar Lúcifer ao
inferno.
O inferno indica o estado inferior do ser, ou pré-humano. A verdadeira iniciação,
conforme explica Guénon, seria a tomada de consciência, ativa, desses estados
superiores. Por isso é simbolicamente representada como uma “viagem celeste” ou
ascensão. O inferno, ou estados inferiores, é representado como “escuro” na Comédia e
na Árvore invertida justamente porque é a metáfora do estado inconsciente, anterior ao
aparecimento do ego — ou Queda, cf. hermenêutica judaico-cristã (JUNG. O homem e
seus símbolos).
Grosso modo, na Queda se abriram possibilidades do ser total, no sentido de
ampliar-se e exaltar-se, segundo a explicação de Guénon.
Essas três partes ainda têm correspondência com os gunas hindus, que são as
“tendências” de tudo que é manifestado. São elas: sattwa, o ser, que seria a imagem e
semelhança de Deus; rajas, ou “firmamento”, “atmosfera”, que é o impulso de expandir-
se; tamas, “escuridão”, que corresponde à ignorância ou à tendência à retração. Esse
entendimento representa o esquema da criação do mundo pelo Caos (tamas), e o
processo iniciático “reproduz rigorosamente o processo cosmogônico, conforme a
analogia do Macrocosmo e do Microcosmo” da criação do universo e do homem.
Ainda, é preciso esmiuçar que a narrativa de Dante vai contra a ideia de “fogo
central” da representação do inferno tradicional, já que, quanto mais grave se tornam as
esferas (seguindo a trilha de árvore das qlifot, por exemplo), mais e mais gelado é o
inferno — congelado, no fim do percurso de Dante na primeira parte. Esse traço distintivo
é estranho, mas poderá ser explicado, se nos aproximarmos da noção de Mal de Tomás
de Aquino: a ausência do Bem. Assim, a última esfera do inferno seria a ausência total de
calor, do Bem (o Coração Sagrado em brasa).
É antigo esse modelo da descida aos infernos e depois do retorno e ascensão.
Como na história de Orfeu ou da “viagem noturna” de Mohammed, que vai aos infernos e
depois regressa subindo para as esferas celestes. Ou ainda do jovem Sidarta. As
narrativas assemelham-se: é preciso partir, enfrentar feras e a escuridão, para regressar
triunfante, em contato com Deus, e dotado de um conhecimento antes não conhecido.
Ainda, é de praxe o Viajante contar com a ajuda do Guia. Na comédia, este é Virgílio.
(CAMPBELL. O heroi de mil faces): veja, p.e., novamente a figura do arcanjo Miguel, de
Santo Antonio etc.
A viagem de Dante começa na Segunda-Feira Santa, dia que dá início à Semana
Santa, inaugurada pela Festa de Ramos. Esse dado parece ter relação com o ramo que
Eneias, guiado por Sibila, vai buscar na floresta (“selva selvaggia”), já que Dante parece
procurar o tal ramo misterioso, dando início à descida aos infernos. A narrativa da
Comédia dura até o Domingo de Páscoa, dia da Ressurreição (lembrando que o próprio
Nosso Senhor Jesus Cristo desceu aos infernos).
São três fases, portanto, pelas quais passa Dante, sendo a primeira, de morte e
descida, necessária para as seguintes. As duas fases espelhadas, céu e inferno, têm uma
lógica gradual. No inferno, há toda sorte de andares e escadas circulares que vão
descendo até o último círculo. E, assim como cada céu é morada de determinado
atributo, no inferno igualmente os pecadores são levados a moradas que coincidem com
o grau do pecado.
Já no céu, há uma verdadeira ascensão com o objetivo de transformar-se e
encontrar com o Uno. No Canto XV do “Paraíso”, verso 55 a 57, Dante diz o seguinte:
Ademais, a soma de 515 é também 11, sendo sua transcrição latina DVX, ou
“Dux”: “guia”; 3 x 11 é o número de cantos de cada parte da obra.
O uso dos números considerados sagrados, como o 9, seja no “Apocalipse”, como
soma do 144000 atribuído ao povo casto e eleito de Deus, seja considerando a geometria
sagrada (360º. 3 + 6 + 0 = 9), ou na referência do 9 feita pelo próprio Dante a Beatriz,
sugere um sentido anagógico na Comédia. O 9 simboliza a eternidade, o símbolo
mágico do Ouroboros, que morde a própria cauda e sempre volta a si mesmo.
Dante, ao dividir sua obra em três partes, com diversas simetrias, e colocar a
entrada para o céu no centro do mundo terrestre, parece sinalizar a interpretação
simbólica desse fato, qual seja, a do equilíbrio perfeito, no sentido de que o ser deve,
acima de tudo, identificar “o centro de sua própria individualidade”, e dessa base elevar-
se para os estados superiores. O centro do ser é designado, no hinduísmo, pela “cidade
de Brahma”.
Reforço: se esse ponto final do terreno coincide com a entrada aos céus, Guénon
acredita que existe uma alusão formal à ideia de “retorno às originais” platônica, a
restauração do estado original do ser junto a Deus. O ponto médio seria a representação
de um estado de detenção, em que podem ser tomadas duas direções: desce-se aos
infernos e inicia-se o retorno de lá.
Essas leis cíclicas aparecem nas cosmologias antigas, em Platão e
contemporaneamente nas analogias do universo e do homem estudadas pela psicanálise
junguiana, que destaca esse movimento como a separação do ego e depois seu retorno
ao Si-Mesmo. Este estudo também é ínfimo na literatura. Mas esta é outra história...