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seres vivos (zoa) e objectos do mundo, conhecidos através de

pistis («fé»), O mundo inteligível (noeta) tem também dois


sectores proporcionais a estes, o inferior e o superior, o primeiro
apreendido através da dianoia («entendimento» ou «razão
discursiva»). Nesta última distinção poderá residir, como alguns
supõem, a finalidade principal da analogia: o contraste entre o
conhecimento pela dianoia, que é o das ciências, e o que é pela
noesis, que é o da filosofia. Mas não é menos importante a
antinomia entre opinião e saber, entre doxa e sophia, que
tínhamos visto ao terminar do Livro IV e vai tomar forma
nítida na alegoria da Caverna ( v il ji4 a -ji8 b ):
Homens algemados de pernas e pescoços desde a infância,
numa caverna, e voltados contra a abertura da mesma, por onde
entra a luz de uma fogueira acesa no exterior, não conhecem da
realidade senão as sombras dasfiguras que passam, projectadas
na parede, e os ecos das suas vozes. Se um dia soltassem um des­
ses prisioneiros e o obrigassem a voltar-se e olhar para a luz, es­
ses movimentos ser-lhe-iam penosos, e não saberia reconhecer os
objectos. Mas se ofizessem vir para fora, subir a ladeira e olhar
para as coisas até vencer o deslumbramento, acabaria por conhe­
cer tudo perfeitamente e por desprezar o saber que se possuía na
caverna. Se voltasse para junto dos antigos companheiros, seria
por eles troçado, como um visionário; e quem tentasse tirá-los
daquela escravidão arriscar-se-ia mesmo a que o matassem.
Antes de iniciar a alegoria, no começo do Livro VII, Platão
dissera expressamente que se tratava de dar a conhecer o com­
portamento da natureza humana, conforme ela é ou não sub­
metida à educação (vil 514a). Ora, 0 modo como esta há-de
processar-se constitui 0 tema central do Livro.
Deve notar-se em primeiro lugar que 0 curriculum que se
propõe visa «a disciplina mental e 0 desenvolvimento do poder

XXX
de pensamento abstracto» Por isso, temos em sucessão os vá­
rios ramos então conhecidos76 da matemática (incluindo um
acabado de criar, e ainda sem nome, afutura estereometria), des­
ligados, como sublinha o próprio texto, das suas aplicações prá­
ticas (vil 52sb-d), Temos, assim, como base, a aritmética que
«facilita a passagem da própria alma da mutabilidade à ver­
dade e à essência» (vn. 525c); a seguir, 0 espaço a duas dimen­
sões, ou geometria plana; em terceiro lugar, 0 espaço a três di­
mensões, por meio da estereometria; a astronomia estuda os
corpos sólidos em movimento; e a harmonia, 0 som que eles en­
tão produzem. Trata-se, portanto, de um ensino essencialmente
formatívo. Todas estas ciências têm por missão preparar 0 espí­
rito para atingir 0 plano mais elevado: a dialéctica, cujofim é 0
conhecimento do Bem (vn. 333b-e). Para 0 seu aprendizado, se-
leccionaram-se os mais bem dotados, quando atingem a idade de
trinta anos (vn. 537d), como anteriormente tinham sido escolhi­
dos, aos vinte anos, os que haviam de encetar uma educação su­
perior (vn. 537b-c).
Eis 0 modo como Platão a define:

O método da dialéctica é 0 único que procede, por meio da


destruição das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim
de tomar seguros os seus resultados, e que realmente arrasta aos
poucos os olhos da alma da espécie de lodo bárbaro em que está
atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para
ajudar a conduzi-los as artes que analisámos.
(v i l 533C-d)

75 A frase é de P. Shorey, What Plato Said, p. 236.


76 Os fundamentos da álgebra só foram lançados no séc. m
d. C., por Diofanto, numa obra intitulada, aliás, Aritmética. O nome
e a notação que lhe é própria foram-lhe dados posteriormente
pelos Árabes.

XXXI
E, para nos tirar quaisquer dúvidas sobre a relação entre esta or­
denação dos estudos e os quatro graus de entendimento anterior­
mente referidos, explica de novo:

Bastará pois que, como anteriormente, chamemos ciência à


primara divisão, entendimento à segunda, fé à terçara, e suposi­
ção ã quarta, e opinião às duas últimas, inteligência às duas pri­
meiras, sendo a opinião relativa â mutabilidade, e a inteligência à
essência.
( v ii. 533e-534a)

É próprio do saber dialéctico «apreender a essência de cada


coisa» (vil. 534b). Deve ser capaz de distinguir a natureza es­
sencial do Bem, isolando-o de todas as outras ideias (vil. 534c).
Demorámos um pouco na noção de dialéctica, porque é
uma das várias palavras-chave77 deste diálogo, que mudaram
de tal modo de sentido, que 0 seu emprego sem advertência pré­
via pode induzir em erro78. Derivada de dialegesthai («falar
com», «discorrer», «raciocinar»79), pressupõe interlocutores —exac­
tamente como ocorre no modo de filosofar da obra platônica,
designada, aliás, por uma palavra da mesmafamília: «diálogo».

77 Outras são idea ou eidos (supra, n. 69, p. xxvi) e philosophia e


philosophos (supra, n. 68, pp. xxv-xxvi). Adiante verem os mais
exemplos.
78 O principal seria, conforme foi notado por F. M. Cornford
(The Republic o f Plato, p. 223), atribuir-lhe o sentido que tomou a
partir de Hegel.
” R. L. Nettleship, Lectures on the Republic o fPlato, p. 279, cita o
passo dos Memoráveis (iv. 5.11-12) em que Xenofonte põe na boca de
Sócrates a explicação de que o verbo provém da prática de os ho­
mens se encontrarem para deliberar «pondo de lado os assuntos
que discutiam, segundo a sua espécie», que é «o que tomou os ho­
mens melhores, mais capazes de governar e de discorrer».

xxxn
Por esse motivo, Nettleship pôde escrever: «O termo «dialéctica»,
que desempenha um papel quase tão proeminente na filosofia
platônica como «forma», não significa originariamente nada
mais do que o processo de discussão oral por meio de pergunta e
resposta»80. E ainda: «...a palavra passou do simples significado
de «discorrer» para o de «discorrer com ofim de atingir a verdade»,
e este «discorrer» pode executar-se através de palavras entre
duas pessoas ou ser 'o diálogo silenciosamente conduzido pela
alma consigo mesma' (Sofista 2Óje) » 81. Da designação do mé­
todo òwÂEvctr/.Ti |iÉ0oôoç va. 533c), passa a identificar-se com 0
próprio objecto a alcançar por essa via, que é 0 saberfilosófico.

e) OS LIVROS VIIIE IX

Ao principiar 0 Livro vin, Sócrates recapitula a legislação


estabelecida para a cidade ideal e os seus guardiões e propõe-se
regressar ao caminho anterior (viu. 543c). Recorda ainda que
Gláucon estava a referir-se às outras quatro espécies de governo,
quando foram interrompidos por Polemarco e Adimanto (vm .
544a-b). Retomada a discussão neste ponto, vão-se descrever essas
quatro espécies e a maneira (anti-histórica, mas convincente) como
degeneraram umas nas outras. Deste modo se traça 0 quadro da
timocracia (ou governo que preza as honrarias), oligarquia, demo­
cracia e tirania, bem como do homem que corresponde a cada uma.
A descrição do ponto mais baixo a que chegou a degradação
humana põe de novo a questão inicial da jelicidade e virtude
de cada uma destas espécies, em relação com as qualidades que
predominam na cidade*2, com a conclusão de que 0 tirano, escravo
dos mais sórdidos prazeres e apetites, é 0 que mais se opõe ao

80 The Theory o fEducation in Plato's Republic, p. 115.


81 Lectures on Plato's Republic, p. 280.
“ ix. 577c.

XXXIII
filósofo-rei, que tem acesso aos prazeres puros e reais, e de que é
ajustiça, e não a injustiça, que traz vantagens a quem a pratica.
Ao terminar o Livro IX , Gláucon reconhece que a cidade
que acabam de delinear é utópica. Mas, objecta Sócrates, fica o
paradigma no céu, para quem quiser contemplá-lo e estabelecer
por ele o seu teor de vida. Quer a cidade exista, quer não, é só a
esse modelo que ofilósofo seguirá^.

f ) o liv r o x

O Livro x tem aparecido à maioria dos comentadores como


um suplemento ou um apêndice84. A discussão tinha já termi­
nado, com o contraste entre a vida do homem justo e a do in­
justo, e conclusão sobre a superioridade daquela — respondendo,
portanto, à asserção de Trasímaco em 1.343a-j44c, 34% retomada
em n. j6oe-j6id. Mas Sócrates reabre 0 diálogo, para precisar a
importância das disposições sobre a poesia, que hão-de observar-se
na cidadefundada (x 595a).

83 ix. 529b.
84 Exemplo representativo dessa posição é R. L. Nettleship, que
chega a encontrar vestígios de mais de uma redacção do mesmo tó­
pico (Lectures on the Republic ojPlato, p. 341) e a supor que Platão teria
dois planos em mente para acabar o diálogo (ibidem, p. 355). V.
Goldschmidt ainda é mais incisivo, quando afirma que se, a seguir
ao Livro ix, estivessem as conclusões de x. 612a seqq., ninguém sus­
peitaria de uma lacuna (Les Dialogues de Platon, p. 300). Mais recen­
temente ainda, R. C. Cross and A. D. W oozley (Plato's Republic A
Philosophical Commentary, p. 263) observam que, apesar da sua im­
portância, o Livro x deve ser considerado um apêndice.
[No mesmo sentido, mas numa atitude muito crítica, se pro­
nunciou Julia Annas, An Introduction to Plato’s Republic, cap. 14, que
classifica este livro de "gratuito e confuso" e muito abaixo dos outros,
quer no nível de argumentação, quer no da arte literária (p. 355). Dife­
rentemente, N. P. White, A Companion to Plato's Republic, p. 29, consi­
dera-o ao mesmo tempo um epílogo e uma contrapartida do Livro 1,
destinados a completar ideias que ficaram de lado nos Livros 11 a ix].

XXXIV
Deste modo se retoma, agora em larga escala, o tema da
condenação da poesia «que consiste na imitação»8S, esboçado
nos Livros II e III,
Podemos supor, como P. Shorey e F. M . Cornford, que
Platão se viu na necessidade de se defender contra a celeuma le­
vantada pelas afirmações sobre o tema, feitas naqueles mesmos
livros m, Mas a importância da poesia na vida grega justifica
a expansão dada a este ataque, Embora desde os finais do
séc. VI a.C. a escrita estivesse divulgada, e desde o séc. v hou­
vesse um comércio de livros apreciável87, a verdade é que era a
poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos, quer pelos
actores dramáticos) o principal meio de educação e veículo de
conhecimentos. Esta transmissão intersubjectiva do saber é um
aspecto característico e fundamental da cultura grega, bem visí­
vel, aliás, nos próprios diálogos de Platão. E não esqueçamos
que, mesmo para extensas narrativas em prosa, como eram as

85 Damos à palavra grega mimesis a sua tradução habitual. Di­


versos comentadores de Platão insistem em substituí-la por outra
menos enganadora, como «representação» (e. g., F. M. Comford,
The Republic of Plato, p. 323; J. Ferguson, Plato: Republic Book x, p.
140), para tornar clara a participação do sujeito no acto de imitar.
Sobre a dificuldade da questão e razões que aconselham, apesar de
tudo, a manutenção da equivalência tradicional, vide R. C. Cross
and A. D. W oozley, Plato's Republic A Philosophical Commentary,
pp. 271-272.
86P. Shorey (What Plato Said, p. 248) e F. M. Comford ((The Re­
public o f Plato, p. 321). Seria, portanto, uma explicação paralela à da
relação entre o Livro V e As Mulheres na Assembleia de Aristófanes,
nos moldes em que alguns a imaginam (vide supra, pp. xvi-xvm e
n. 43, p. xvi).
87 As provas de um e outro facto encontram-se nos nossos Es­
tudos de História da Cultura Clássica, F, pp. 18-19. [Mesma paginação
na 8.“ ed., 1998.]

XXXV
eram as Histórias de Heródoto, não estava excluída a prática da
recitação perante um grande auditório™.
Um passo deXenofonte —posto na boca do mesmo Nicérato
quejá referimos atrás, por ser também umas dasfiguras da Repú­
blica — é extremamente elucidativo quanto ao valor atribuído,
em especial, ao conhecimento dos Poemas Homéricos89:
Podeis ouvir de mim como haveis de vos tomardes melho­
res, se comigo conviverdes. Saheis sem dúvida que Homero, o mais
sábio de todos, poetou sobre quase todas as actividades humanas.
Portanto, quem quiser tomar-se um bom administrador da sua
casa, orador público, ou general, ou semelhante a Aquiles, Ájax,
Nestor ou Ulisses, quefale comigo, porque eu sei disso tudo.

É precisamente este ponto que Platão ataca, quando, em li­


gação com a teoria da imitação que acaba de expor, e a conclu­
são a que chegara, de que ela estava três pontos afastada da rea­
lidade, imagina que se dirige a Homero e lhe pergunta90:
Meu caro Homero, se, relativamente à virtude, não estás
afastado três pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens,
a quem definimos como um imitador, mas estás afastado apenas

88 A tradição biográfica de Heródoto fala de um recital em Ate­


nas e outro em Olímpia.
Admite-se actualmente que foi a necessidade de preservar obras
que, pelo seu conteúdo e forma de expressão, não tinham condições
para serem aprendidas de cor — nomeadamente, os escritos dos pri­
meiros filósofos, a partir de Anaximandro — que motivou o uso do
livro na Grécia arcaica. Note-se, contudo que, como é sabido, Platão
mantém o primado da oralidade sobre a escrita (Fedro 2740-2773).
m Banquete iv. 6. Esta maneira de ver perdurou através da An­
tiguidade toda: na época romana, vamos encontrá-la em Estrabão
(1. 1.2) e em Pausânias (iv. 28.7-8). Sobre este assunto em geral, veja-
-se o nosso livro citado na p. anterior, n. 87.
50 x. 599d-e. Não tentaremos sequer pôr o problema da crono­
logia relativa das duas obras, de que, de resto, aqui só nos interessa
confrontar estes passos como representativos de tendências opostas.

XXXVI
dois, e sefoste capaz de conhecer quais são as actividades que tor­
nam os homens melhores ou piores na vida particular, ou pública,
diz-nos que cidadefoi, graças a ti, melhor administrada, como su­
cedeu com a Lacedemónia, graças a Licurgo, e com muitas outras
cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? Que Estado
te aponta como um bom legislador que veio em seu auxílio?
A Itália e a Sicília inüicam Carondas, e nós, Sólon, E a ti, quem?

Esta condenação da poesia já há muito que fo i vista como


tendo um sentido mais profundo que a simples exclusão do ele­
mento lúdico da psicologia humana e a negação do valor para­
digmático das figuras que retrata91. Assim, J. Adam reconhece
que a República é «em certo sentido um requerimento para que
a Filosofia tome o lugar que a Poesia até aí tinha preenchido na
teoria e na prática educativa»92.

91 O passo desencadeou, como é sabido, uma longa série de


defesas da poesia, de que as mais célebres são a Poética de Aristóte­
les e a Defence ofPoetry de Shelley.
92 No seu comentário a 598d, vol. n, p. 396, onde cita Munk,
Die naturalische Ordnung der Platonischen Schriften, pp. 313 seqq. Tem-se
notado, e procurado explicar a razão pela qual a influência que
Platão atribui às artes varia tanto, de umas para outras. Assim, além
da poesia, preocupa-se com o papel da música (m. 398c-40ia),
recordando até a frase de Dâmon, de que «nunca se abalam os
gêneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade» (iv. 424c).
E, por outro lado, as artes plásticas, cujo esplendoroso desenvol­
vimento na Grécia não precisa de ser lembrado, são quase passa­
das em silêncio (uma referência à pintura em óoic seqq. e, espe­
cialmente, em 6020-d). Talvez a razão seja a que aduziu R. L.
Nettleship (The Theory of Education in Plato's Republic, p. 69): «O es­
tado de espírito em que quadros e estátuas, e mais ainda edifícios,
são mais apreciados e gozados, é mais de receptividade aberta e
inalterada do que de emoção activa». O mesmo helenista, em Lec­
tures on the Republic o f Plato, p. 117, recorda a propósito um passo da
Política de Aristóteles (1340328 seq.) que comprova a suposição

XXXVII
Mais recentemente, é esta também a interpretação de E. A,
Havelock93, que considera mesmo que todo o diálogo é um ataque
ao sistema educativo grego então em vigor93, ataque esse que ao
mesmo tempo constitui o melhor documento da crise da cultura
grega «que viu a substituição de uma tradição oral decorada por
um sistema de instrução e educação completamente diferente»94.
Tomaremos, mais adiante, à discussão desta teoria. Antes
disso, porém, temos de voltar a nossa atenção para o outro tema
maior deste grandioso finale: o mito de Er. Examinemos pri­
meiro o modo de transição.
Logo a seguir ao celebérrimo passo da condenação da poesia,
o próprio texto proclama as razões que teve para tanto ( x. 607b):
Aqui está 0 que tínhamos a dizer, ao lembramos de novo
a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte
desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia.

A cidade ideal quer preservar a justiça a todo 0 custo


(x. 608b):
É um grande combate, meu caro Giáucon, é grande, e mais
do que parece, 0 que consiste em nos tomarmos bons ou maus. De
modo que não devemos deixar-nos arrebatar por honrarias, rique­
zas, nem poder algum, nem mesmo pela poesia, descurando a jus­
tiça e as outras virtudes,

de que os Gregos consideravam relativamente pequena a influência


das artes plásticas.
93 Preface to Plato, cap. 1, especialmente pp. 12-13.
94 Op. cit, p. 198. P. Friedlânder (Plato, 3, p. 87) supõe mesmo
que, no Livro 111 (3920398b), ao atacar a poesia mimética, Platão
está a sugerir «que lugar deve destinar-se, no seu Estado ideal, à sua
própria obra literária — aos seus diálogos, onde narração e mimese,
assim como tragédia e comédia, estão combinados e são superados
pela filosofia».

xxxvin
A grande virtude que se tem estado a definir proporciona
altos prêmios e recompensas, de uma magnitude que ultrapassa a
curta duração da vida humana. Deste modo, Sócrates introduz
a doutrina da imortalidade da alma, já expressa no Fédon95, e,
ao mesmo tempo, prepara-nos ^para uma réplica às grosseiras
doutrinas de felicidade no além a que fizera despectiva alusão
no Livro n (jâyc-e).
Essa réplica vai ser dada sob ajorma de um mito —pro­
cesso literário que estava fortemente enraizado na tradição
grega, quer na épica, quer na lírica, e que surge nos diálogos,
a substituir a discussão dialéctica, quando se passa da esfera
do certo para a do provável96. Expor destà forma doutrinas
escatológicasfoi, além disso, praticado mais vezes por Platão: no
Górgias, no Fédon e no Fedro. E se, no primeiro destes diá­
logos, se mantém ainda bastante próximo da tradição sobre o
além —excepto num ponto essencial, que é a definitiva vincula-
ção do destino último das almas ao seu procedimento moral em
vida —nos outros a descrição enquadra-se numa visão cósmica a

95 Sobre as diferenças entre as provas da imortalidade da alma


apresentadas no Fédon, República e Fedro (que justamente levam a su­
por a sua composição na ordem em que as enumerámos) e ainda
noutros diálogos, veja-se, entre outros, R, Hackforth, Plato's Phaedo,
Cambridge, repr. 1972, pp. 11 e 21-22.
96 Esta é a interpretação tradicional, representada por A. Ri-
vaud, Histoire de 1a Philosophie, Paris, 1 , 21960, p. 179. Uma análise do
mito em Platão pode ver-se em P. Friedlander, Plato, 1, cap. 9, que o
descreve como um processo de levar o logps para além dos seus li­
mites, e na obra mais recente (que em parte desenvolve a anterior)
de W . Hirsch, Platons Wegzum Mythos, Berlin, 1971.
Pelas razões expostas supra, p. xxvn e n. 71, não estamos a
considerar nesta rubrica a alegoria da Caverna, nem outras histórias
menores, como a do anel de Giges (11. 359b-36ob) ou a das raças
humanas (111. 4i5a-c).

XXXIX
' que não deve ser estranho (sobretudo na República e no FedroJ
o crescente interesse do Filósofo pela astronomia.
Pressupõem a doutrina da metempsicose97 e, nos dois últi­
mos, a teoria da reminiscência (que é um dos aspectos da teoria
das ideias, presente também no FédonJ, a qual, no Fedro,
ocupa um lugar preponderante.
O mito de E r apresenta a estrutura tripartida que é comum
aos três9S: uma breve introdução (x. 614a), a extensa narrativa
(x. 6l4b-Ó2lb) e a conclusão, que neste caso é uma exortação à
virtude (x. Ó2lc-d).
Ao principiar essa narrativa, Platão alude a um modelo
homérico — 05 «Contos de Alcínoo», designação genérica dada
os Cantos ix a xn da Odisséia, em que 0 herói dos mil expe­
dientes desenrola perante os reis dos Feaces as suas fantásticas
aventuras. A referência ao padrão homérico, ao tratar de escato-
logia, era nossa conhecida do Górgias, cujo mito era posto sob
essa autoridadeMas agora 0 nome de Alcínoo é utilizado
para formar um jogo de palavras com 0 adjectivo alkimos
(«valoroso»), que qualifica 0 imaginário informador — Er, filho
de Armênio, natural de Panfília. Sob 0 gracioso contraste, tão
ao gosto do autor do Crátilo, esconde-se outro de significado
muito mais profundo: a história que vai contar-se não é uma
daquelas que, umas páginas atrás100, tinham sido excluídas, por

97 Se ela está implícita ou não no Gótgias é discutível. Veja-se


a n. 1 da p. 83 do nosso estudo Concepções Helénicas de Felicidade no
Além, de Homero a Platão.
98 Deste e dos restantes mitos escatológicos de Platão tratámos
já na dissertação citada na nota anterior, pp. 77-91,169-184,198-201.
99 523a. Cf. H. W . Thomas, Epekeina. Untersuckungen über das
Überlieferungsgut in den Jenseitsmythen Platons, diss. München, 1938,
pp. 6, 8 seqq.
100 x. 6o6e-6o7a.

Xi
impróprias, da cidade ideal; pelo contrário, diz respeito ao grande
combate (megas agon m), que já referimos, «o que consiste em
nos tornarmos bons ou maus». É um primeiro exemplo da lite­
ratura que merece ser admitida na cidade ideal.
E r fora protagonista de uma estranha experiência: tendo mor­
rido numa batalha, quando, aofim de doze dias, o seu corpo es­
tava na pira para ser cremado, tomou à vida epôde contar as cenas
maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo.
A primeira era ojulgamento das almas, num lugar entre as duas
aberturas que conduziam ao céu e outras duas que comunicavam
com a terra. Pelo caminho ascendente da direita seguiam osjustos,
pelo oposto os injustos. Pela outra abertura celeste vinham as
almas que desciam purificadas; pela terrestre, surgiam as que
regressavam de uma viagem subterrânea de mil anos, cheia de
sofrimento. Entre estes, áta-se o exemplo de um tirano da Panjilia,
Ardieu o Grande, a quem nunca seria permitido acabar a expia-
ção, tantos eram os seus crimes. Esta cena culmina no momento
dramático em que a Ardieu e outrosgrandes culpados é recusada a
passagem pela abertura, ao som de um terrível mugido, e «homens
selvagens que pareciam defogo» (6lj>e) agarram neles e os levam.
A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo,
com a grande luz «direita como uma coluna, muito semelhante
ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura» (6l6b), que
segura a esfera em movimento. Das suas extremidades, pendia o
fuso da Necessidade, cuja complexa estrutura é descrita quanto
à forma e à cor, em termos tais que tios permitem adivinhar
neles a correspondência com o Sol, a Lua, os cinco planetas então
conhecidos e as «estrelas fixas». O fuso repousa nos joelhos da
Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus
contrapesos, uma Sereia, girando com ele, emite uma nota musical.

101x. 6o8b.

XO
Do acorde dessas oito notas resulta a «harmonia das esferas».
Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas
ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto)
e ofuturo (Átropos), fazendo girar ofuso.
No mesmo augusto lugar se realiza a proclamação do hiero-
fante, para que cada uma das almas ali chegadas, ao fim de oito
dias de viagem,faça a sua escolha. E r assiste a esse acto, em que to­
mam partefiguras célebres da mitologia, como Otfeu, Ájax, Aga-
mémnom, Ulisses, cada um dos quais dá preferência a um modelo
oposto ao gênero de vida que anteriormente tinha seguido. O con­
traste maior é entre um homem não-nomeado, que se precipita
para apanhar a sorte de um tirano, sem reparar a tempo nos hor­
rores que ela comportava, e Ulisses, que levanta do chão uma sorte
por todos desdenhada — a de uma vida simples e sem ambições.
Ratificada a escolha do destino pelas Parcas, atingimos o último
quadro, através de umaplanura escaldante e desprovida de vegeta­
ção. Tanto o nome da planura (Letes, «esquecimento»), como o
do rio de que as almas bebem antes de reincamarem (Ameles, «des­
preocupação») são significativos dafunção desta cenafinal, que ter­
mina com um trovão e afuga das almas, «ántilando como estrelas»
(621b), para nascerem nos lugares que lhes estavam determinados.
As fontes de uma parte do mito deErsão identificáveis.
Podemos ter algumas dúvidas quanto às que se têm en­
contrado para certos motivos, como os duplos chasmata que
conduzem do céu à terra, a ida e vinda e saudações das almas,
quefiguram de modo semelhante em mitos iranianos do Avesta;
e como as cores dos contrapesos dofuso, que correspondem apro­
ximadamente aos símbolos dos planetas, do Sol e da Lua entre
os sacerdotes caldaicos102. Mas teremos de reconhecer, por outro

102 A hipótese das origens orientais desta parte do mito foi de­
fendida p o rj. Bidez, Eos ou Platon et 1'Orient, Bruxelles, 1943, cap. vi,

XLII

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