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de pensamento abstracto» Por isso, temos em sucessão os vá
rios ramos então conhecidos76 da matemática (incluindo um
acabado de criar, e ainda sem nome, afutura estereometria), des
ligados, como sublinha o próprio texto, das suas aplicações prá
ticas (vil 52sb-d), Temos, assim, como base, a aritmética que
«facilita a passagem da própria alma da mutabilidade à ver
dade e à essência» (vn. 525c); a seguir, 0 espaço a duas dimen
sões, ou geometria plana; em terceiro lugar, 0 espaço a três di
mensões, por meio da estereometria; a astronomia estuda os
corpos sólidos em movimento; e a harmonia, 0 som que eles en
tão produzem. Trata-se, portanto, de um ensino essencialmente
formatívo. Todas estas ciências têm por missão preparar 0 espí
rito para atingir 0 plano mais elevado: a dialéctica, cujofim é 0
conhecimento do Bem (vn. 333b-e). Para 0 seu aprendizado, se-
leccionaram-se os mais bem dotados, quando atingem a idade de
trinta anos (vn. 537d), como anteriormente tinham sido escolhi
dos, aos vinte anos, os que haviam de encetar uma educação su
perior (vn. 537b-c).
Eis 0 modo como Platão a define:
XXXI
E, para nos tirar quaisquer dúvidas sobre a relação entre esta or
denação dos estudos e os quatro graus de entendimento anterior
mente referidos, explica de novo:
xxxn
Por esse motivo, Nettleship pôde escrever: «O termo «dialéctica»,
que desempenha um papel quase tão proeminente na filosofia
platônica como «forma», não significa originariamente nada
mais do que o processo de discussão oral por meio de pergunta e
resposta»80. E ainda: «...a palavra passou do simples significado
de «discorrer» para o de «discorrer com ofim de atingir a verdade»,
e este «discorrer» pode executar-se através de palavras entre
duas pessoas ou ser 'o diálogo silenciosamente conduzido pela
alma consigo mesma' (Sofista 2Óje) » 81. Da designação do mé
todo òwÂEvctr/.Ti |iÉ0oôoç va. 533c), passa a identificar-se com 0
próprio objecto a alcançar por essa via, que é 0 saberfilosófico.
e) OS LIVROS VIIIE IX
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filósofo-rei, que tem acesso aos prazeres puros e reais, e de que é
ajustiça, e não a injustiça, que traz vantagens a quem a pratica.
Ao terminar o Livro IX , Gláucon reconhece que a cidade
que acabam de delinear é utópica. Mas, objecta Sócrates, fica o
paradigma no céu, para quem quiser contemplá-lo e estabelecer
por ele o seu teor de vida. Quer a cidade exista, quer não, é só a
esse modelo que ofilósofo seguirá^.
f ) o liv r o x
83 ix. 529b.
84 Exemplo representativo dessa posição é R. L. Nettleship, que
chega a encontrar vestígios de mais de uma redacção do mesmo tó
pico (Lectures on the Republic ojPlato, p. 341) e a supor que Platão teria
dois planos em mente para acabar o diálogo (ibidem, p. 355). V.
Goldschmidt ainda é mais incisivo, quando afirma que se, a seguir
ao Livro ix, estivessem as conclusões de x. 612a seqq., ninguém sus
peitaria de uma lacuna (Les Dialogues de Platon, p. 300). Mais recen
temente ainda, R. C. Cross and A. D. W oozley (Plato's Republic A
Philosophical Commentary, p. 263) observam que, apesar da sua im
portância, o Livro x deve ser considerado um apêndice.
[No mesmo sentido, mas numa atitude muito crítica, se pro
nunciou Julia Annas, An Introduction to Plato’s Republic, cap. 14, que
classifica este livro de "gratuito e confuso" e muito abaixo dos outros,
quer no nível de argumentação, quer no da arte literária (p. 355). Dife
rentemente, N. P. White, A Companion to Plato's Republic, p. 29, consi
dera-o ao mesmo tempo um epílogo e uma contrapartida do Livro 1,
destinados a completar ideias que ficaram de lado nos Livros 11 a ix].
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Deste modo se retoma, agora em larga escala, o tema da
condenação da poesia «que consiste na imitação»8S, esboçado
nos Livros II e III,
Podemos supor, como P. Shorey e F. M . Cornford, que
Platão se viu na necessidade de se defender contra a celeuma le
vantada pelas afirmações sobre o tema, feitas naqueles mesmos
livros m, Mas a importância da poesia na vida grega justifica
a expansão dada a este ataque, Embora desde os finais do
séc. VI a.C. a escrita estivesse divulgada, e desde o séc. v hou
vesse um comércio de livros apreciável87, a verdade é que era a
poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos, quer pelos
actores dramáticos) o principal meio de educação e veículo de
conhecimentos. Esta transmissão intersubjectiva do saber é um
aspecto característico e fundamental da cultura grega, bem visí
vel, aliás, nos próprios diálogos de Platão. E não esqueçamos
que, mesmo para extensas narrativas em prosa, como eram as
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eram as Histórias de Heródoto, não estava excluída a prática da
recitação perante um grande auditório™.
Um passo deXenofonte —posto na boca do mesmo Nicérato
quejá referimos atrás, por ser também umas dasfiguras da Repú
blica — é extremamente elucidativo quanto ao valor atribuído,
em especial, ao conhecimento dos Poemas Homéricos89:
Podeis ouvir de mim como haveis de vos tomardes melho
res, se comigo conviverdes. Saheis sem dúvida que Homero, o mais
sábio de todos, poetou sobre quase todas as actividades humanas.
Portanto, quem quiser tomar-se um bom administrador da sua
casa, orador público, ou general, ou semelhante a Aquiles, Ájax,
Nestor ou Ulisses, quefale comigo, porque eu sei disso tudo.
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dois, e sefoste capaz de conhecer quais são as actividades que tor
nam os homens melhores ou piores na vida particular, ou pública,
diz-nos que cidadefoi, graças a ti, melhor administrada, como su
cedeu com a Lacedemónia, graças a Licurgo, e com muitas outras
cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? Que Estado
te aponta como um bom legislador que veio em seu auxílio?
A Itália e a Sicília inüicam Carondas, e nós, Sólon, E a ti, quem?
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Mais recentemente, é esta também a interpretação de E. A,
Havelock93, que considera mesmo que todo o diálogo é um ataque
ao sistema educativo grego então em vigor93, ataque esse que ao
mesmo tempo constitui o melhor documento da crise da cultura
grega «que viu a substituição de uma tradição oral decorada por
um sistema de instrução e educação completamente diferente»94.
Tomaremos, mais adiante, à discussão desta teoria. Antes
disso, porém, temos de voltar a nossa atenção para o outro tema
maior deste grandioso finale: o mito de Er. Examinemos pri
meiro o modo de transição.
Logo a seguir ao celebérrimo passo da condenação da poesia,
o próprio texto proclama as razões que teve para tanto ( x. 607b):
Aqui está 0 que tínhamos a dizer, ao lembramos de novo
a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte
desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia.
xxxvin
A grande virtude que se tem estado a definir proporciona
altos prêmios e recompensas, de uma magnitude que ultrapassa a
curta duração da vida humana. Deste modo, Sócrates introduz
a doutrina da imortalidade da alma, já expressa no Fédon95, e,
ao mesmo tempo, prepara-nos ^para uma réplica às grosseiras
doutrinas de felicidade no além a que fizera despectiva alusão
no Livro n (jâyc-e).
Essa réplica vai ser dada sob ajorma de um mito —pro
cesso literário que estava fortemente enraizado na tradição
grega, quer na épica, quer na lírica, e que surge nos diálogos,
a substituir a discussão dialéctica, quando se passa da esfera
do certo para a do provável96. Expor destà forma doutrinas
escatológicasfoi, além disso, praticado mais vezes por Platão: no
Górgias, no Fédon e no Fedro. E se, no primeiro destes diá
logos, se mantém ainda bastante próximo da tradição sobre o
além —excepto num ponto essencial, que é a definitiva vincula-
ção do destino último das almas ao seu procedimento moral em
vida —nos outros a descrição enquadra-se numa visão cósmica a
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' que não deve ser estranho (sobretudo na República e no FedroJ
o crescente interesse do Filósofo pela astronomia.
Pressupõem a doutrina da metempsicose97 e, nos dois últi
mos, a teoria da reminiscência (que é um dos aspectos da teoria
das ideias, presente também no FédonJ, a qual, no Fedro,
ocupa um lugar preponderante.
O mito de E r apresenta a estrutura tripartida que é comum
aos três9S: uma breve introdução (x. 614a), a extensa narrativa
(x. 6l4b-Ó2lb) e a conclusão, que neste caso é uma exortação à
virtude (x. Ó2lc-d).
Ao principiar essa narrativa, Platão alude a um modelo
homérico — 05 «Contos de Alcínoo», designação genérica dada
os Cantos ix a xn da Odisséia, em que 0 herói dos mil expe
dientes desenrola perante os reis dos Feaces as suas fantásticas
aventuras. A referência ao padrão homérico, ao tratar de escato-
logia, era nossa conhecida do Górgias, cujo mito era posto sob
essa autoridadeMas agora 0 nome de Alcínoo é utilizado
para formar um jogo de palavras com 0 adjectivo alkimos
(«valoroso»), que qualifica 0 imaginário informador — Er, filho
de Armênio, natural de Panfília. Sob 0 gracioso contraste, tão
ao gosto do autor do Crátilo, esconde-se outro de significado
muito mais profundo: a história que vai contar-se não é uma
daquelas que, umas páginas atrás100, tinham sido excluídas, por
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impróprias, da cidade ideal; pelo contrário, diz respeito ao grande
combate (megas agon m), que já referimos, «o que consiste em
nos tornarmos bons ou maus». É um primeiro exemplo da lite
ratura que merece ser admitida na cidade ideal.
E r fora protagonista de uma estranha experiência: tendo mor
rido numa batalha, quando, aofim de doze dias, o seu corpo es
tava na pira para ser cremado, tomou à vida epôde contar as cenas
maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo.
A primeira era ojulgamento das almas, num lugar entre as duas
aberturas que conduziam ao céu e outras duas que comunicavam
com a terra. Pelo caminho ascendente da direita seguiam osjustos,
pelo oposto os injustos. Pela outra abertura celeste vinham as
almas que desciam purificadas; pela terrestre, surgiam as que
regressavam de uma viagem subterrânea de mil anos, cheia de
sofrimento. Entre estes, áta-se o exemplo de um tirano da Panjilia,
Ardieu o Grande, a quem nunca seria permitido acabar a expia-
ção, tantos eram os seus crimes. Esta cena culmina no momento
dramático em que a Ardieu e outrosgrandes culpados é recusada a
passagem pela abertura, ao som de um terrível mugido, e «homens
selvagens que pareciam defogo» (6lj>e) agarram neles e os levam.
A segunda cena contém o quadro da estrutura do universo,
com a grande luz «direita como uma coluna, muito semelhante
ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura» (6l6b), que
segura a esfera em movimento. Das suas extremidades, pendia o
fuso da Necessidade, cuja complexa estrutura é descrita quanto
à forma e à cor, em termos tais que tios permitem adivinhar
neles a correspondência com o Sol, a Lua, os cinco planetas então
conhecidos e as «estrelas fixas». O fuso repousa nos joelhos da
Necessidade, e, no cimo do rebordo circular de cada um dos seus
contrapesos, uma Sereia, girando com ele, emite uma nota musical.
101x. 6o8b.
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Do acorde dessas oito notas resulta a «harmonia das esferas».
Além dessas figuras femininas, estão lá também as três Parcas
ou Moirai, que cantam o passado (Láquesis), o presente (Cloto)
e ofuturo (Átropos), fazendo girar ofuso.
No mesmo augusto lugar se realiza a proclamação do hiero-
fante, para que cada uma das almas ali chegadas, ao fim de oito
dias de viagem,faça a sua escolha. E r assiste a esse acto, em que to
mam partefiguras célebres da mitologia, como Otfeu, Ájax, Aga-
mémnom, Ulisses, cada um dos quais dá preferência a um modelo
oposto ao gênero de vida que anteriormente tinha seguido. O con
traste maior é entre um homem não-nomeado, que se precipita
para apanhar a sorte de um tirano, sem reparar a tempo nos hor
rores que ela comportava, e Ulisses, que levanta do chão uma sorte
por todos desdenhada — a de uma vida simples e sem ambições.
Ratificada a escolha do destino pelas Parcas, atingimos o último
quadro, através de umaplanura escaldante e desprovida de vegeta
ção. Tanto o nome da planura (Letes, «esquecimento»), como o
do rio de que as almas bebem antes de reincamarem (Ameles, «des
preocupação») são significativos dafunção desta cenafinal, que ter
mina com um trovão e afuga das almas, «ántilando como estrelas»
(621b), para nascerem nos lugares que lhes estavam determinados.
As fontes de uma parte do mito deErsão identificáveis.
Podemos ter algumas dúvidas quanto às que se têm en
contrado para certos motivos, como os duplos chasmata que
conduzem do céu à terra, a ida e vinda e saudações das almas,
quefiguram de modo semelhante em mitos iranianos do Avesta;
e como as cores dos contrapesos dofuso, que correspondem apro
ximadamente aos símbolos dos planetas, do Sol e da Lua entre
os sacerdotes caldaicos102. Mas teremos de reconhecer, por outro
102 A hipótese das origens orientais desta parte do mito foi de
fendida p o rj. Bidez, Eos ou Platon et 1'Orient, Bruxelles, 1943, cap. vi,
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