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Platão, a alegoria da caverna e o sentido e missão da Filosofia

Apresentação
A "alegoria da caverna" constitui um excerto do livro VII de A República (514a -
517c) 1, uma das obras mais conhecidas de Platão. Trata-se duma situação descrita por
Platão para nos elucidar sobre o que pensa da condição humana relativamente à posse
ou ausência de educação e conhecimento. Platão, através do personagem Sócrates,
descreve a situação vivida por um grupo de prisioneiros no interior duma caverna, onde
estavam acorrentados desde sempre, mantendo-se virados para uma parede onde vêem
desfilar sombras de figuras que passeiam fora da caverna que transportavam consigo
vários objetos, entre os quais estatuetas. Tudo se altera quando um dos prisioneiros se
liberta (com ajuda ou não, não sabemos) e percorre dolorosamente o caminho íngreme e
pedregoso que o leva até ao exterior da caverna. Aqui constata que as sombras que viam
eram o reflexo de pessoas reais que uma fogueira iluminava, projetando as suas sombras
no fundo da caverna. Aos poucos vai observando, com dificuldade pois os seus olhos
estavam habituados a viver desde sempre numa quase total escuridão, a realidade
exterior. Nomeadamente, a sua própria imagem refletida na água. Até que consegue
contemplar diretamente o Sol, fonte de luz e vida. Entretanto resolve regressar ao
interior da caverna, para contar aos seus companheiros o que lhe vir e como estavam
enganados em relação à realidade. Quando o faz, os seus companheiros acham que ele
não está bom da cabeça, que variou com a ida à realidade exterior. E, não aceitando o
que ele lhes conta, chegam ao ponto de o quererem matar.
Várias ideias estão supostas neste conhecido texto de Platão. É possível, a partir
da "alegoria da caverna", retirar algumas considerações sobre o papel da Filosofia e do
Filósofo. É que nesta perspetiva, como veremos, Platão associa a atividade filosófica à
própria atividade educativa que se irá exprimir sob a forma literária do próprio diálogo 2.
É isso que pretendemos fazer. Contudo, vamos primeiro situar a vida e obra de Platão
na Grécia antiga e esta no contexto da história e cultura do mundo ocidental.

1
Platão, A República, Introd. e trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1980 -
3ª ed., pp. 317-321.
2
"Platão chama «filosofia», amor da sabedoria, à própria indagação, à própria atividade educativa, ligada
a uma expressão escrita, à forma literária do diálogo". Cf. Giorgio Colli, O Nascimento da Filosofia, p.
13.

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A época de Platão

a) Atenas
Atenas conhece o seu apogeu cultural, artístico e social nos séculos V-IV a.C.,
nomeadamente durante a governação de Péricles e que se exercerá de 444 a 431 a.C.
Esse apogeu [vds] também assinala a sua supremacia política e económica no mundo
grego. O fim da hegemonia política da cidade ática sobre o mundo grego acontecerá no
fim do século V; posteriormente, durante o século IV, essa supremacia manter-se-á nos
planos económico e cultural. [desenvolver]

b) A importância da palavra e o prestígio dos Sofistas


Em Atenas, a palavra e o discurso são fundamentais: na organização política, no
governo da cidade, na disputa em tribunal, nos debates nas assembleias. O bom orador
consegue melhor os seus objetivos: dominar o auditório, ganhar um processo privado,
convencer o interlocutor. "Em Atenas, para existir, é preciso saber falar"3.
Daí o prestígio de que gozam os sofistas: vão de cidade em cidade ensinando a
arte de bem falar à jovem classe política em ascensão. Eles desenvolvem e ensinam não
um verdadeiro saber sobre as coisas, mas tão-só um saber aparente, um saber falar sobre
as coisas, adaptando o discurso às circunstâncias, às pretensões dos oradores e às
expetativas e desejos do auditório. Por isso, tanto se pode dizer da justiça e do justo uma
coisa e, no momento seguinte, o seu contrário. Tanto se pode dizer que ser justo é tratar
os outros de forma igual, como afirmar que ser justo não é tratar os outros de forma
igual. O que interessa verdadeiramente é o propósito e o efeito que se pretende alcançar
com o discurso. A palavra e o discurso acabam por ser acessórios, adereços,
instrumentos ao serviço dos interesses políticos privados. A palavra, o logos, já não está
ao serviço do ser. Houve um tempo em que falar era dizer o ser das coisas, sem
subterfúgios. "Neste período feliz da humanidade, falar era dizer o ser: uma ação dita
corajosa merecia realmente louros e uma ação dita virtuosa merecia efetivamente ser
louvada. O logos dizia as coisas tal como elas eram e os homens só tinham que se
entregar a ele"4.

3
Christophe Rogue, Compreender Platão, p. 10.
4
Christophe Rogue, op. cit., p.12.

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Ora, a Atenas clássica surge-nos aturdida [vds] e baralhada com os discursos que
estão ao serviço dos interesses privados e pretendem manipular os auditórios. Os
discursos contradizem-se entre si e apresentam-se como verdadeiros apesar de
afirmarem tanto uma coisa como o seu contrário. o célebre sofista Protágoras ensina-nos
que "o homem é a medida de todas as coisas...". Isto é, o ser das coisas depende do que
cada um acha.
Aos poucos, a flexibilidade e ambivalência da linguagem infetam e contaminam
o próprio ser das coisas. Este acaba por se tornar também ambíguo, inconsistente,
cinzento. [continua]

c) A oposição de Sócrates
A tudo isto se vai opôr Sócrates, que recusa este aviltamento [vds] do logos e do
ser. Daí a sua incessante procura das definições das coisas e dos conceitos, um aspeto
essencial nos seus diálogos e que acabam por os dominar e que Platão nos irá revelar. É
assim que se interroga sobre o que é a coragem (Lacques), a piedade (Eutîfron), a
sabedoria (Cármides) [vm]. Sócrates interroga os seus concidadãos (dialética), não só para
colocar em causa o saber aparente que os seus interlocutores possuíam e exibiam de
forma arrogante (ironia), como também os conduzia à produção de novos e verdadeiros
saberes (maiêutica) através do achamento das definições. Perante os seus concidadãos
dominados pela lógica sofística, Sócrates dirige-lhes a mesma interrogação: o que é?,
pretende joeirar o seu discurso, afastar as definições (e ideias) contraditórias e
inconsistentes [vds]. "Reencontrar o acordo perdido do logos com as coisas é o sentido da
procura socrática"5.

d) A morte de Sócrates e o seu significado


Consideram alguns que a filosofia de Platão nasce de um acontecimento
escandaloso e traumático para o jovem Platão, com 28 anos na altura: a condenação à
morte de Sócrates, ocorrida em 399 a.C. Com efeito, para além do choque que foi a
morte do mestre, também é verdade que toda a sua obra é posterior àquela data 6. Talvez
se possa, por essa razão, afirmar que a morte de Sócrates irá ser decisiva no despoletar e
sentido da sua obra, pelo menos no que respeita aos primeiros escritos 7. Platão não

5
Christophe Rogue, op. cit., p. 13.
6
Cf. Rogue, op. cit., p. 19.
7
Será após a morte de Sócrates em 399 a.C. que Platão iniciará a sua produção filosófica, com a escrita
dos seus primeiros diálogos: A Apologia de Sócrates, Críton, Protágoras e Êutifron, entre outros.

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poderá deixar de, após o choque inicial, interrogar-se sobre o que levou os atenienses e
o seu governo a condenarem aquele que, para lá dos reiterados diálogos, se preocupava
em encontrar o logos exato, o dizer rigoroso das coisas e, desse modo, revelar (ou
desocultar) o autêntico ser das coisas.

e) Vida e obra de Platão [desenvolver mais]


Platão nasceu em Atenas, por volta de 428-427 a.C.
Em 429 a.C., tinha morrido Péricles, grande político, cujo nome estará para
sempre associado ao período de ouro da democracia ateniense. O fim do século V a.C.
assinala o fim desse período grandioso, antecedido (431-404 a.C.) pela desgastante
guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta. Também neste período, em 425 a.C.,
ocorre a morte de Heródoto, denominado «pai da História»; em 406 a.C. falecem dois
dos três grandes dramaturgos trágicos da Grécia clássica: Sófocles e Eurípides (o
terceiro nome seria o de Ésquilo). O comediógrafo Aristófanes morrerá em 385 a. C.
Em 388 a.C. viajará até Siracusa.
No ano seguinte fundará a Academia, a sua escola.
Será depois dos diálogos de juventude8, que entre 385 e 370 a.C., Platão
escreverá os diálogos considerados da maturidade: O Banquete, Fédon, A República,
Fedro. Nestes, e sobretudo nos diálogos da velhice (Parménides, Teeteto, Sofista,
Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis), o personagem principal continua a ser Sócrates,
só que Platão coloca na boca daquele, ideias e propostas que são exclusivamente suas.
Em 367 a.C. e em 361 a.C., Platão deslocar-se-á novamente a Siracusa. Até que se
estabeleceu definitivamente em Atenas a partir de 360 a.C., onde morrerá em 347 a.C.

A Alegoria da caverna

a) Escuridão e luz, educação e sua falta


Platão indica, através de Sócrates, qual a sua intenção ao descrever a situação
dos prisioneiros: refletir sobre "a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua
falta". Ora, a educação e a sua falta correspondem a estados mediados pela luz e a sua
falta. A falta de educação corresponde à situação dos prisioneiros no interior da caverna.
A falta de educação corresponde à falta de luz ou de iluminação, tal como viver na
8
Cf. nota 7.

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obscuridade é como viver numa ignorância quase absoluta. E não se trata duma
ignorância absoluta porque, de facto, os prisioneiros também não vivem na escuridão
absoluta; é que, para poderem ver alguma coisa, mesmo sombras, terá sempre que
existir alguma réstea de luz (e de esperança); será este resíduo de conhecimento que
permitiu que um dos prisioneiros se libertasse ou, pelo menos, caminhasse para a luz.
Da escuridão absoluta nada poderia resultar, nenhuma evolução seria possível. Essa
centelha de luz pode ser dada pela dúvida, por exemplo. A dúvida é sinal de alguma luz,
tal como não duvidar pode ser sinal de uma escuridão absoluta onde se mergulhou. Só
duvida aquele que já sabe alguma coisa, mesmo que seja um saber que nada sabe9.
Por todas estas razões, o objetivo imediato da educação será a passagem da
ignorância ao conhecimento, ilustrado pela metáfora da passagem das trevas à luz,
através duma caminhada ascensional.
Contudo, apesar da quase ignorância total, a realidade para esses prisioneiros
não lhes levantava quaisquer problemas, era-lhes evidente (ou elementar, meu caro
Watson?). Os prisioneiros tomam por única e verdadeira realidade as sombras que veem
e sempre viram desde que nasceram. Os prisioneiros estão cativos, por isso, das suas
crenças, com base nas informações dos sentidos, escudados na sua educação ou na sua
falta. Assim, desconhecem a sua situação e condição. Vivem uma situação de dupla
ignorância: são prisioneiros que desconhecem que estão presos; desconhecem e ignoram
que desconhecem. Tal como o que se passa com o mais escravo dos escravos, que é
aquele que não é livre julgando-se livre. Pior que a ignorância é a ilusão, tal como o pior
cego é aquele que não quer ver. De qualquer modo, constataremos em Sócrates a
existência reiterada duma valorização positiva do reconhecimento da própria ignorância.
É que só o ignorante que se reconhece enquanto tal, está predisposto a saber e a
conhecer. Aquele que julga que já sabe, ficará por aí, fica imune ao impulso para o
saber. A posse arrogante de um pretenso saber não estimula, antes pelo contrário, o
sujeito a saber mais. Se já sabe, porque é que há-de querer saber?
A situação que se vive no interior da caverna descreve a nossa situação. Os
prisioneiros representam-nos a nós próprios, representam a própria Humanidade. Tal
como eles, também nós vivemos num mundo ilusório, artificial, feito de ecos e de
ilusões, de miragens, isto é, de simulacros da realidade. A ilusão é total: estamos assim

9
Ver aqui o significado da Aufklärung, do movimento das Luzes. E como Kant, em Was ist die
Aufklärung, respondia à pergunta. Ora, para Kant, as Luzes eram a saída do homem da sua menoridade,
menoridade de que ele próprio era responsável. E concluía com um apelo: Sapere aude! Ousa pensar!

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desde sempre e completamente. Porém, esta prisão também nos garante alguma
segurança e conforto. A prisão pode ser a nossa zona de conforto, do não-confronto.
A educação será, assim, a passagem da ignorância para o conhecimento. A
inteligência e o conhecimento processar-se-ão progressivamente, gradualmente,
discursivamente. O conhecimento corresponde a uma deslocação do sujeito do ilusório
para o mais real, do mais obscuro para o mais luminoso.

b) O prisioneiro que se liberta


O prisioneiro que surge liberto dos grilhões (sem sabermos muito bem como isso
aconteceu) vai realizar o efetivo caminho ascensional que o leva (ou eleva) do fundo da
caverna até ao mundo exterior. Por várias vezes, Platão associa este caminho a um
processo doloroso. Doloroso e difícil, não só devido à própria natureza do chão que
pisa, mas também devido às dificuldades e dores que sente ao iniciar movimentos, a
erguer-se e a caminhar e, depois, a enfrentar a luz. Tudo porque estava a contrariar
velhos hábitos: a imobilidade e a obscuridade em que sempre vivera. Toda a sua subida
e descoberta vêm contradizer uma vida que consolidara hábitos e crenças que se
instalaram no seu corpo e na sua mente.
Daí que também se possa dizer que a dificuldade do caminho ascendente
também possa remeter-nos para a dificuldade do próprio exercício da liberdade: ter que
caminhar com as pernas que nunca caminharam, fazer um caminho caminhando sem
qualquer indicação sobre o caminho a seguir. Ou seguindo apenas a via da luz que se
anuncia ao fim do túnel...
A libertação da situação de prisioneiro no interior da caverna irá pressupor uma
conversão radical que envolve o corpo (que pela primeira vez se movimenta), o espírito
que descobre o mundo para além das sombras e, afinal, o próprio sujeito na sua
totalidade, que pela primeira vez se re-flete e se vê a si mesmo e, portanto, se descobre,
como que pré-anunciando a posteriori a célebre palavra de ordem ou divisa "conhece-te
a ti mesmo" do mestre Sócrates, consagrando aí a chamada viragem antropológica da
filosofia por comparação com as preocupações naturalistas dos filósofos anteriores.
Assiste-se, pois, a uma conversão, a um convertere [vm], um voltar-se
inteiramente, virando-se para o sítio certo 10. O processo é doloroso, tal como um parto é

10
"A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar
a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele não está na
posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso." (Platão, A República - 518d, ed.
cit., p. 323).

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doloroso, convocando as dores necessárias para que nasça um novo ser, um homem
convertido ao conhecimento, renascido, ou não fosse Sócrates filho duma parteira e de
um escultor [vm].
A conversão de todo o nosso ser suporá uma renúncia ao mundo anterior, às suas
convicções antigas, uma dolorosa rutura. Ou uma saborosa rutura, tendo em conta a
aventura que começa e as descobertas que se anunciam.
Uma rutura também em relação à perspetiva que se tinha: os prisioneiros estão
presos das vistas que (não) tinham, já estavam virados para uma parede. O prisioneiro
que se liberta ganha uma nova perspetiva, um novo olhar que é também olhar para o
sítio certo.

c) O prisioneiro que regressa - o filósofo comprometido


Depois de ter tomado conhecimento da realidade exterior e reconhecido a sua
situação anterior, o prisioneiro que se liberta decide regressar até junto dos seus
anteriores companheiros. Podia não ter decidido assim; podia ter optado por permanecer
na realidade exterior, de que ninguém duvida que era mais colorida e agradável.
Portanto, algo o impele a voltar até ao fundo da caverna e contactar com os outros
prisioneiros. De que natureza é esse impulso que o faz regressar?
Ao que parece, o prisioneiro que se libertara não adquire apenas conhecimento,
mas também um certo sentido do dever. Ele não protagoniza apenas um novo
conhecimento, mas também um certo sentido do dever, uma certa forma de exercer a
ética.
Provavelmente, devemos concluir que não existe conhecimento sem ética, que
são elementos inseparáveis, mesmo que disso não se tenha consciência ou não seja
suficientemente claro. O que acontece é que um conhecimento mais autêntico envolve o
conhecimento da virtude (aretê), um conhecimento de o que se deve fazer.
Ora, este prisioneiro que se libertara e atinge um conhecimento superior 11,
personifica o filósofo e a missão da filosofia. E o verdadeiro lugar onde o saber se joga,
o lugar de destino da filosofia e do filósofo não é uma torre fechada, protegido ou imune
do/ao contacto com a realidade, a rua, os desabrigados.
Existe uma dimensão ética no conhecimento. Que verdade é essa que, depois de
adquirida e possuída, não nos leva ao re-encontro com os outros, com os nossos

11
Conhecimento superior quer pelo tipo de conhecimento, quer pela natureza dos objetos que aí são
conhecidos.

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semelhantes? O conhecimento que conduz o seu possuidor a fechar-se aos outros, a
encerrar-se em si mesmo num espaço próprio e inacessível, não é um conhecimento
elevado, autêntico. Tal como o seu possuidor não merecerá ser conhecedor [vm]. O sábio
é, por isso, também, um ser virtuoso, um ser de excelência. Se sabe, se conhece, então
também conhece a virtude, o dever de ser solidário. O conhecimento que nos toca, leva-
nos aos outros, obriga-nos a essa preocupação com os outros. O prisioneiro que se
libertara e que passara pela experiência do conhecimento não pode ficar indiferente em
relação aos seus companheiros de infortúnio. Ele não poderia esquecê-los.
Conhecer implica o dever de regressar até junto dos desafortunados. A filosofia
implica, pois, a pólis, a cidade, tal como é implicada pela pólis. Aquele que sabe não
pode ficar quieto, antes recebe novas razões para continuar inquieto. Um filósofo nunca
está parado, porque permanentemente procura saber e partilhar esse saber. Um filósofo
quieto ou aquietado é uma contradição nos termos.

d) O risco da Filosofia
Por isso, o indivíduo regressa, mesmo que isso signifique ter que lidar com a
ignorância, a indiferença, o escárnio, as ameaças, mesmo ameaças de morte como acaba
por suceder. Regressa assumindo o risco. Mas também não houve já quem tivesse pago
esse dever com a própria vida? Pagar com a vida o amor ao saber, que é amor aos
homens.

e) A dificuldade de transmitir (certos) conhecimentos


O regresso significa a verdadeira preocupação com a educação (dos outros). E é
com a educação dos outros que se exercita a política. O prisioneiro que se libertara
podia ter permanecido no agradável mundo que tinha acabado de descobrir. Contudo,
não opta por aí permanecer. O filósofo que Platão pressupõe, é alguém que vive para os
outros, que está preocupado com a situação dos outros. Por isso, vai regressar até junto
dos seus antigos companheiros. Mesmo que isso signifique reviver um doloroso
caminho. Mas ele é solidário com a condição humana.
Só que a simples transmissão de conhecimentos nunca será suficiente para os
homens, para aqueles homens, presos às suas crenças e perspetivas de sempre. Quando
se pretende uma alteração de postura e visão do mundo, a aquisição de novos
conhecimentos e de uma nova atitude, enfrenta-se a dificuldade de ensinar. É que o
conhecimento mais autêntico não é facilmente transmissível. Como se pode transmitir a

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alguém como é o sabor da laranja? Apenas convidando o outro a ser ele próprio a
saborear a laranja!...
A última mensagem da alegoria tem a ver com o modo como se transmitem
conhecimentos. A missão do prisioneiro quando regressa para junto dos outros acaba
por não correr bem. Platão sabe disso. E por isso recorre à alegoria. Platão não ensina,
sugere, impele o outro para conhecimento, mas espera que seja o outro a realizar o
caminho, a caminhar. O conhecimento verdadeiro e superior não é transmissível; só se
pode adquirir experienciando, vivendo a sua dolorosa aquisição. O que o filósofo pode
fazer é levar os outros a caminhar, mas nunca contentar-se em descrever um caminho. O
filósofo sabe que o seu ensinamento, mesmo sugestivo e poético, ou por ser assim
mesmo, apenas se pode traduzir num convite para o outro realizar a experiência de
aprender.

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Bibliografia

Obras de Platão
PLATÃO, A República, Introd. e trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1980
- 3ª ed., 500 pp.
PLATÃO, A Apologia de Sócrates, Introd., notas e versão de Manuel dos Santos Alves, Lisboa, Livraria
Popular Francisco Franco, 1985, 82 pp.

Outras obras de consulta


- Alexandre KOYRÉ, Introdução à Leitura de Platão, Lisboa, Ed. Presença, 1979, 132 pp.
- Anthony KENNY, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 1999, 460 pp.
- António Pedro MESQUITA, Introdução ao Estudo da Filosofia Antiga, Lisboa, Edições Colibri, 2006,
249 pp.
- Christophe ROGUE, Compreender Platão, Porto, Porto Editora, 2002, 224 pp.
- E. A Dal MASCHIO, Platão - a verdade está noutro lugar, Lisboa, Cofina Media, 2015, 140 pp.
- Emanuele SEVERINO, A Filosofia Antiga, Lisboa, Ed. 70, 1986, 207 pp.
- F. Cabral PINTO, Sócrates - um filósofo bastardo, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, 128 pp.
- Francesco ADORNO, Sócrates, Lisboa, Ed. 70, 1986, 166 pp.
- Gaston MAIRE, Platão, Lisboa, Ed. 70, 1986, 117 pp.
- Giorgio COLLI, O Nascimento da Filosofia, Lisboa, Ed. 70, 2001, 101 pp.
- Indro MONTANELLI, Historia de los Griegos - Historia de Roma, Barcelona, Plaza & Janes Editores,
1976, 634 pp.
- Simone MANON, Para Conhecer Platão, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, 170 pp.
- Vasco de Magalhães VILHENA, O Problema de Sócrates - o Sócrates histórico e o Sócrates de Platão,
Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1984, 596 pp.

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